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VIDEOPOEMAS DE ÚLTIMA GERAÇÃO: A ICONICIDADE RADICAL Luciano Rodrigues Lima * (UFBA) “And he said Now is there anything I can tell you? And I said I dunno sir, or, “Yes, Doctor, what do they mean by Noigandres?” And he said Noigandres! NOIgandres! You know for seex mon’s of my life Effery night when I go to bett, I say to myself Noigandres, eh, noigandres Now what the DEFFIL can that mean? (POUND, Ezra. Cantos. XX, p. 89-90.) Resumo: O trabalho analisa a semiose e as representações culturais da última geração de videopoemas (em inglês denominada visual poetry ou video poems), suas relações cada vez mais esmaecidas com a linguagem verbal e a sua adesão à “guinada icônica”. Como referencial teórico, o ensaio dialoga com autores consagrados como Charles Sanders Peirce, Pierre Lévy e Jean Baudrillard, traça um breve histórico da poesia visual no Brasil, através do registro resumido do pensamento de pesquisadores e criadores como Lucia Santaella, Ricardo Araújo, Mello e Castro, Antonio Carlos Xavier, Jorge Luiz Antônio, além de reportar-se reiteradamente às contribuições de Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O objeto de análise é o videopoema da Radiolab (Nova York) “Symmetry”, o qual é abordado semiótica e culturalmente. As conclusões apontam para a fundação de um novo gênero de poesia, menos verbal e mais icônico- cinematográfico, diretamente ligado à natureza dos signos naturais ( índices) e icônicos, (sem, entretanto, substituir a poesia verbal, apresentando-se como mais uma alternativa) mas ainda assistidos na comparação ou na oposição aos poemas verbais, por ainda vivermos em uma era de transição da cultura verbal para a cibercultura. Palavras-chave: Videopoesia - Poesia Visual – Iconicidade Abstract: The essay analyzes the semiosis and cultural representations of the latest generation of video poems (in English also called visual poetry), their relationships increasingly dimmed with verbal language and its adherence

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VIDEOPOEMAS DE ÚLTIMA GERAÇÃO: A ICONICIDADE

RADICAL

Luciano Rodrigues Lima * (UFBA)

“And he said Now is there anything I can tell you? And I said I dunno sir, or, “Yes, Doctor, what do they mean by Noigandres?” And he said Noigandres! NOIgandres! You know for seex mon’s of my life Effery night when I go to bett, I say to myself Noigandres, eh, noigandres Now what the DEFFIL can that mean? (POUND, Ezra. Cantos. XX, p. 89-90.)

Resumo: O trabalho analisa a semiose e as representações culturais da última geração de videopoemas (em inglês denominada visual poetry ou video poems), suas relações cada vez mais esmaecidas com a linguagem verbal e a sua adesão à “guinada icônica”. Como referencial teórico, o ensaio dialoga com autores consagrados como Charles Sanders Peirce, Pierre Lévy e Jean Baudrillard, traça um breve histórico da poesia visual no Brasil, através do registro resumido do pensamento de pesquisadores e criadores como Lucia Santaella, Ricardo Araújo, Mello e Castro, Antonio Carlos Xavier, Jorge Luiz Antônio, além de reportar-se reiteradamente às contribuições de Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O objeto de análise é o videopoema da Radiolab (Nova York) “Symmetry”, o qual é

abordado semiótica e culturalmente. As conclusões apontam para a fundação de um novo gênero de poesia, menos verbal e mais icônico-cinematográfico, diretamente ligado à natureza dos signos naturais ( índices) e icônicos, (sem, entretanto, substituir a poesia verbal, apresentando-se como mais uma alternativa) mas ainda assistidos na comparação ou na oposição aos poemas verbais, por ainda vivermos em uma era de transição da cultura verbal para a cibercultura. Palavras-chave: Videopoesia - Poesia Visual – Iconicidade Abstract: The essay analyzes the semiosis and cultural representations of the latest generation of video poems (in English also called visual poetry), their relationships increasingly dimmed with verbal language and its adherence

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to the "iconic turn". As a theoretical framework, the text dialogues with renowned authors such as Charles Sanders Peirce, Pierre Lévy and Jean Baudrillard, traces a brief history of visual poetry in Brazil, through the summary record of the thinking of researchers and developers as Lucia Santaella, Ricardo Araújo, Mello e Castro, Antonio Carlos Xavier, Jorge Luiz Antonio, and repeatedly refers to the contributions of Haroldo de Campos and Augusto de Campos. The object of analysis is the videopoem of Radiolab (New York) "Symmetry", which is addressed both semiotically and culturally. The findings point to the founding of a new genre of poetry, less verbal and more-iconic/filmic, directly linked to the nature of natural signs (indices) and icons (not, however, replacing the verbal poetry, but representing itself another alternative) but still watched in comparison or in contrast to verbal poems, for we are still living in an era of transition from verbal culture to cyberculture.

Key-Words: Videopoetry – Visual Poetry - Iconicity

Peirce e a poesia virtual

Se o curioso e atilado Charles Sanders Peirce ainda vivesse entre nós, é possível

que estivesse interessado em categorizar as novas produções de poesia virtual na

internet, a partir da sua tricotomia dos signos: ícones, índices e símbolos, ou de

qualquer outra que houvesse inventado. Em sinal de respeito ao seu legado,

começo este breve artigo com ele dialogando. Embora a teoria dos signos de Peirce

padeça dos excessos da mente racionalista (o mesmo racionalismo que ele

criticava), a qual tenta apreender e descrever a complexa realidade através de um

modelo taxonômico, com infinitas categorias e sub-categorias, é provável que ele

considerasse a nova geração de videopoemas como signos icônicos, mais próximos

daquilo que o próprio Peirce exemplifica, isto é, da fotografia e da pintura (um

poema escrito e impresso tradicional seria um símbolo, signo no qual, segundo

Peirce, a relação entre a representação e a coisa representada depende de uma

imputação). Entre seus escritos de 1873, encontra-se “On the Nature of Signs”

(“Sobre a natureza dos signos”) um dos textos centrais para a compreensão da sua

semiótica. O texto começa com a sua definição do signo:

A sign is an object which stands for another to some mind. I propose to describe the

characters of a sign. In the first place like any other thing it must have qualities

which belong to it whether it be regarded as a sign or not. Thus a printed word is

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black, has a certain number of letters and those letters have certain shapes. Such

characters of a sign I call its material quality. In the next place a sign must have

some real connection with the thing it signifies so that when the object is present or

is so as the sign signifies it to be, the sign shall so signify it and otherwise not. What

I mean will best be understood by illustration. A weathercock is a sign of the

direction of the wind. It would not be so unless the wind made it turn round. There

is to be such a physical connection between every sign and its object. Take a

painted portrait. It is the sign of the person for whom it is intended. It is a sign of

that person in virtue of its likeness to that person: but this is not enough—it cannot

be said of any two things that are alike one is a sign of the other but the portrait is

a sign of that person because it was painted after that person and represents him.

The connection here is an indirect one. The appearance of the person made a

certain impression upon the painter's mind and that acted to cause the painter to

make such a picture as he did do so that the appearance of the portrait is really an

effect of the appearance of the person for whom it was intended. The one caused

the other through the medium of the painter's mind. (Peirce, 2012, p. 63)

Um signo é um objeto que representa um outro objeto para alguém. Proponho-me a

descrever os características de um signo. Em primeiro lugar, como qualquer outra

coisa, ele deve ter qualidades que pertençam a ele e o façam ser considerado

como um signo ou não. Assim, uma palavra impressa é negra, tem um certo número

de letras e as letras têm certas formas. Tais características de um signo eu chamo

de sua qualidade material. Em segundo lugar, um signo deve ter alguma ligação real

com a coisa que ele significa de modo que quando o objeto não está presente, e é

assim que o signo significa, o signo deverá significá-lo e outro signo não. O que

quero dizer vai ser melhor compreendido pela ilustração. Um cata-vento é um sinal

da direção do vento. Não seria isso a menos que o vento o fizesse virar. Há de existir

uma conexão física entre cada signo e seu objeto. Tomemos um retrato pintado. É

o signo da pessoa a quem se destina. É um signo da pessoa em virtude de sua

semelhança com essa pessoa, mas isso não é suficiente, pois não pode ser dito que

as duas coisas são iguais: uma é um signo do outro, mas o retrato é um signo da

pessoa porque foi pintado a partir dela e para representá-la. A conexão aqui é

indireta. A aparência da pessoa causou uma certa impressão sobre a mente do

pintor e agiu para fazer com que o pintor para fizesse um retrato como ele fez,

para que a aparência do retrato fosse realmente um efeito da aparência da pessoa

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para quem ele se destina. A aparência da pessoa criou o signo por meio da mente

do pintor. (Peirce, 2012, p. 63, tradução nossa)

Na definição do signo peirceano, destaça-se a noção de que o significante possui

uma relação, ainda que indireta, com o significado, isto é, a representação

relaciona-se com a coisa representada (para Ferdinand de Saussure esta relação era

arbitrária, mas a teoria saussurriana limita-se aos signos lingüísticos, enquanto a

peirceana abrange os signos em geral). Ele afirma que deve haver uma conexão

física entre todo signo e seu objeto. Outro aspecto da natureza dos signos descrito

por Peirce é o “efeito”, ou a “impressão”, isto é, o objeto causa um efeito na

mente daquele que o representa, a exemplo do fotógrafo ou o pintor, e os signos

por ele produzidos, a saber a fotografia ou a pintura, irão produzir um efeito sobre

o fruidor/receptor. A questão do efeito dos signos será muito relevante, mais

adiante, quando comentarmos os videopoemas.

Ainda sobre a natureza dos signos, Peirce observa que um signo, para se

caracterizar como tal, não pode ser entendido apenas por aquele que o criou, mas

deve ser reconhecido como tal e ter o seu significado reconhecido por qualquer

pessoa. Ainda nos seus Escritos de 1873, à página 77, Peirce fala das três

características do signo:

We have seen that a cognition is a sign, and that every sign has these three

elements: First, the qualities which belong to it in itself as an object; second, the

character of addressing itself to a mind; and thirdly, a causal connection with the

thing it signifies. (Peirce, 2012, p. 77)

(Vimos que uma cognição é um signo e que cada signo tem estes três elementos:

primeiro, as qualidades que lhe pertencem enquanto um objeto; segundo, a

característica de destinar-se a uma mente; e, por último, uma conexão causal com a

coisa que ele significa.) ( Tradução nossa)

Das três características citadas, destaco a terceira, isto é, a de que o signo possui

uma relação causal com a coisa que ele significa. Este conceito será, também,

discutido quando da análise do videopoema. Tanto o efeito dos signos quanto a sua

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relação física com a coisa representada, por integrarem mais diretamente a

definição de Peirce dos signos icônicos (dentro da sua divisão tripartite de ícones,

índices e símbolos) interessam a este trabalho, voltado para a análise da

iconicidade radical dos videopoemas da nova geração.

Este brevíssimo diálogo com Charles Sanders Peirce, contudo, não é um

reducionismo do seu complexo pensamento. A teoria peirceana dos signos, de

natureza triádica, incluía a noção de interpretante, isto é, de que o signo faz

sentido apenas através do pensamento do receptor, única instância capaz de

conferir-lhe significado aos. Ainda, Peirce dividia tricotomicamente os

interpretantes em remas, dicentes e argumentos, mais uma sub-classificação típica

do seu modo de argumentar. O conceito de interpretante de Peirce valoriza o papel

do receptor (leitor, espectador, ouvinte etc) e isto é retomado, na

contemporaneidade, nas teorias da estética da recepção. Isto também interessa

neste artigo. Por último, o diálogo com Peirce é necessário por ser crucial algum

conhecimento da semiótica para a análise dos videopoemas, ainda que este breve

artigo utilize também a crítica cultural em sua análise.

Lévy e a arte digital

Pierre Lévy, em Cibercultura, dedica um capítulo ao comentário da obra de Jeffrey

Shaw “O bezerro de ouro”, vista por ele em uma exposição de artes digitais

intitulada Artifices, em Paris. A instalação digital de Shaw consiste de um pedestal

vazio, sem nenhuma estátua do bezerro de ouro, e uma tela giratória de cristal

líquido, que pode ser deslocada pelos visitantes livremente. Quando a tela é girada

em direção ao pedestal, surge nela a imagem de uma bela estátua do bezerro de

ouro sobre aquele pedestal vazio. Segundo Lévy, o que está em discussão, aí, é o

próprio processo de representação, agora uma representação vazia de

corporeidade física (além da problematização estética do conceito de ídolo, o qual

só existe na cabeça dos adoradores e nunca no próprio objeto, através da discussão

sobre um símbolo idolatrado na antiguidade). Em seguida, Lévy aproveita para

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conceituar o virtual, citando uma idéia de Gilles Deleuze, sem lhe citar o nome,

isto é, associando-o aos conceitos deleuzianos de “atual” e “atualização”. Define,

ainda, o virtual ligando-o ao conceito de desterritorialização:

É virtual toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diversas

manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem

contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular. Para usar um

exemplo fora da esfera técnica, uma palavra é uma entidade virtual. O vocábulo

árvore está sempre sendo pronunciado em um local ou outro, em determinado

dia numa certa hora. Chamaremos a enunciação desse elemento lexical de

“atualização”. Mas a palavra em si, aquela que é pronunciada ou atualizada em

certo lugar, não está em lugar nenhum e não se encontra vinculada a nenhum

momento em particular (ainda que ela não tenha existido desde sempre). (Lévy,

1996, p. 48)

Embora a qualificação do virtual como desterritorialização seja, atualmente,

questionável, pois já se percebe uma violenta territorialização no reino do virtual,

que denomino de “reterritorialização” (as redes sociais, blogs e sites são territórios

fortemente marcados por subculturas ou comunidades fechadas e todo estranho ou

invasor será convidado a retirar-se ou será hostilizado), o capítulo de Lévy serve

como demonstração das potencialidades do virtual para além do mundo da

Internet.

As colocações de Lévy servem como guia teórico para a compreensão da arte digital

contemporânea (arte eletrônica, virtual, da informação, multimídia etc), a qual

ganha cada vez mais adeptos e não mais se constitui em uma curiosidade

tecnológica e sim em uma tendência em expansão. Atesto isso em uma recente

visita à Tate Gallery, de Londres, onde aparece em destaque, no grande vão da

entrada, uma instalação digital projetada na enorme parede ao fundo desse

espaço. Destaco, também, a tendência da Bienal de Artes de São Paulo,

principalmente a 29² e a 30ª, dominadas pelas instalações digitais (vídeos em telas

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de TV, fotomontagens, projeções em Data Show e trabalhos interativos baseados

em softwares de computador).

Para uma melhor e mais aprofundada compreensão da arte digital, em todas as

suas dimensões e aplicações, inclusive no mundo da ciência (sim, pois a arte

também é utilizada pela ciência para ilustrar procedimentos, educar a população

sobre práticas da medicina e saúde, e com finalidades pedagógicas nos centros de

formação de cientistas, em trabalhos de modelização etc) recomendo a leitura do

tratado de Stephen Wilson Information Arts: Intersections of Art, Science and

Technology. Trata-se de uma obra recomendável para a compreensão profunda das

interfaces entre arte e ciência, demonstrando o caráter científico da arte e

artístico da ciência, propondo a abolição das tradicionais fronteiras bem

demarcadas entre os dois discursos e exemplificando fartamente as aplicações da

arte no mundo da ciência e da tecnologia no domínio artístico. Assim, este artigo,

embora objetivando discutir principalmente a natureza e os aspectos semióticos e

culturais dos videopoemas de última geração, faz algumas referências aos outros

tipos de arte digital, de modo que o leitor possa fazer o maior número possível de

associações.

Quanto a Pierre Lévy, um dos arautos da cultura digital, ressalto a sua capacidade

de realizar projeções sobre a interferência das tecnologias do virtual na vida

contemporânea, sobretudo nas esferas da educação e da arte, esta última objeto

deste trabalho. A cibercultura parece impregnar a arte do século XXI, em todas as

etapas do circuito da produção artística: teorização e concepção, criação,

veiculação e consumo. Entretanto, o tom do discurso de Lévy, frequentemente,

apresenta-se acrítico, como se ainda estivesse extasiado com as conquistas

cibernéticas. Como contraponto a essa postura entusiasta de Lévy, cito o tom ácido

de Jean Baudrillard no seu clássico ensaio Simulacra and Simulation (do original

Simulacres et simulation), no qual adverte para os riscos da substituição e abolição

do real pelas simulações de todo tipo, principalmente da mídia, com a conseqüente

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ascensão do “hiperrreal”, categoria final e quase apocalíptica resultante da

proliferação e saturação dos simulacros. O conceito de hiperrealidade inspirou a

trilogia Matrix, para o cinema.

O pensamento sobre tecnologia, cultura e arte digital no Brasil

No Brasil, as teorias e aplicações das tecnologias digitais em arte e educação já se

constituem em uma área relevante de pesquisa e produção de idéias. Nas artes,

pode-se afirmar que possuímos uma tradição e um reconhecimento internacional

nessa área, que remonta às teorizações e produções de Haroldo de Campos,

Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, ainda os que

assinaram o manifesto neoconcretista, como Amílcar de Castro, Franz Weissmann,

Lygia Clark, Reynaldo Jardim, Lygia Pape e Theon Spanudis, e outros como Melo e

Castro, Antonio Risério, Arnaldo Antunes e Nacho Durán. A característica comum a

esses artistas é que todos eles, de algum modo, contribuíram também com o

debate teórico sobre as relações entre arte e tecnologia.

O mundo acadêmico brasileiro, com a consolidação das pesquisas e publicações

científicas universitárias, a partir da década de 1970, passa a liderar a produção do

pensamento. Nele, destacam-se pesquisadores que transitam, de modo

interdisciplinar, em áreas como tecnologias virtuais e suas associações com a

semiótica, educação, poesia e literatura, jogos eletrônicos, educativos ou não,

letramento digital, sociologia da leitura, estudos culturais, tradução, lingüística

aplicada ao ensino de línguas etc. Aqui, faço apenas um recorte de alguns

representantes do pensamento universitário para registrar a contribuição desses

pesquisadores no debate teórico sobre o tema desse artigo. São professores

pesquisadores como Lucia Santaella, Ricardo Araújo, Antonio Carlos Xavier e Jorge

Luiz Antônio, e outros. Alguns deles mais periféricos, dentre os quais me incluo,

outros mais próximos dos centros tradicionais de produção e disseminação do

conhecimento, mas todos aproximados e integrados pela tecnologia digital e pelas

trocas de saberes e experiências possibilitadas pelos congressos científicos, como o

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Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação, criado pela Universidade Federal

de Pernambuco.

Lucia Santaella, em seu artigo “Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do

pós-humano”, defende que os intelectuais, pesquisadores e mestres devem se “

dedicar à tarefa de gerar conceitos que sejam capazes de nos levar a compreender

de modo mais efetivo as complexidades com que a realidade em mutação nos

desafia” (Santaella, 2003). Nesse artigo, Santaella faz uma espécie de resenha do

seu livro Culturas e artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, fala

da importância do pensamento de Néstor Garcia Canclini, autor de Culturas

híbridas, para a sua obra, resgata a atualidade de Marshall McLuhan (embora a

noção contida no conceito “o meio é a mensagem”, ao meu ver, já houvesse sido

anunciada pelos Formalistas Russos com idéia de que “a forma já é o conteúdo”),

fala das seis eras ou formações culturais, discorre sobre as distinções entre cultura

de massas, cultura das mídias e cultura digital, destaca algumas reações à

ciberealidade e, no tópico “Desafios do pós-humano”, argumenta que devemos estar

ao lado dos poetas e ouvi-los, em momentos de rápidas mutações, pois eles

possuem a sensibilidade necessária para perceber significados e tendências

norteadoras. Conclui analisando a expressão “pós-humano”, referindo-se ao seu

aspecto assustador e, ao mesmo tempo, chamando a atenção para as suas

implicações para a humanidade, nos planos cultural, psíquico e mesmo fisiológico.

Lúcia Santaella é uma das mais importantes pesquisadoras da cibercultura no

Brasil, além de ser conhecida internacionalmente. Penso que o mais relevante em

sua contribuição é aliar os estudos sobre as teorias do virtual à atuação prática em

projetos voltados para a criação de produtos culturais. Em seu breve texto “Games

e comunidades virtuais”, ela descreve a importância dos jogos virtuais, seu grau de

disseminação no mundo inteiro e as suas implicações1. Define, em diálogo com

1Nesse texto, ela repete um dístico insustentável atualmente, que eu denomino de “a grande falácia essencialista”,

típica do pensamento racionalista – ainda que contido em Marx, Rousseau, Heidegger e mesmo em Derrida –

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autores como Espen Aarseth e Janet H. Murray (os quais também interessam na

discussão teórica deste artigo, pois tratam de questões da literatura cibernética) a

estética e a cibercultura envolvidas no universo dos games virtuais. Ainda sobre a

estética, recomendo o artigo de Santaella intitulado “As imagens no contexto das

estéticas tecnológicas”. Esse artigo traça um histórico dos estudos sobre a semiose

do texto icônico, até os tempos da imagem nos “ambiente simulados”. Na

conceituação da imagem virtual e suas conseqüências, Santaella recorre a termos

como “ambientes autopoieticos” de Maturana e Varela, “telepresença”, de Minsky,

e “realidade aumentada”, de Mario Maciel e Suzete Venturelli. O artigo em pauta

carece de aprofundamento, mas pode servir como guia para estudos mais

completos. No Brasil, é aconselhável, para os que se iniciam nos estudos sobre

cultura e arte digitais, recorrer aos trabalhos de Lucia Santaella. Os textos da

autora citados aqui se encontram disponíveis online.

O professor Ricardo Araújo é autor do livro Poesia visual: videopoesia, de 1999

(refiro-me à edição da Perspectiva). Embora a obra, como qualquer outra, não

possa ultrapassar os seus próprios cronótopos, pois refere-se ainda à tecnologia do

Betacam, da Sony, de 1982, constitui-se em uma fonte confiável sobre a teoria da

poesia concreta (nela são discutidos termos como verbivocovisual, estrutura

sintético-ideogrâmica, paragrafia, parafonia etc) e da poesia visual, sua história e,

principalmente, sobre o processo criativo dos principais videopoetas brasileiros,

como Julio Plaza, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e

Arnaldo Antunes, os quais deixam ainda registrados os seus depoimentos. O livro de

Ricardo Araújo é recomendável para quem se interessa pelas inúmeras

possibilidades das relações entre arte e tecnologia, incluindo-se aí os estudantes de

sobre a distinção essencial entre seres humanos e animais, através de idéias como a de que a fala é uma

“capacidade especificamente humana, distinta dos outros animais”, ou que o homem é o único animal que ri.

Atualmente, sabemos, através das pesquisas sobre cultura e linguagem animal, que os animais possuem

linguagem complexa e criativa, ludicidade e que são seres culturais também. A diferença entre humanos e não-

humanos é quantitativa. Os riscos dessa aporia essencialista é que ela serve de desculpa para o extermínio dos

animais, sem sentimento de culpa.

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letras, pois o autor demonstra segurança quando discorre sobre o signo lingüístico e

o signo poético. A obra em apreço ocupa um espaço estratégico na história da

crítica universitária, colocando-se em posição complementar ao clássico livro

Teoria da poesia concreta, escrito pelos próprios poetas criadores Haroldo, Augusto

e Décio. O trabalho teórico-crítico de Ricardo Araújo possui o devido

distanciamento do objeto de pesquisa e coloca-se, cronologicamente, em um

tempo em que já se pode observar a produção do pensamento “pós-utópico”

(termo haroldiano) e sua repercussão e consequências. Os poemas analisados por

ele, entretanto, ainda possuem (como “Patafísica”, de Haroldo de Campos e

“Femme”, de Décio Pignatari, dentre outros) aporte na semiose do texto verbal.

O trabalho do professor Antônio Carlos Xavier, da UFPE, também merece destaque

neste breve relato sobre o pensamento sobre tecnologia, cultura e arte digital no

Brasil. Situado no universo acadêmico, Antônio Carlos Xavier atua como

pesquisador e articulador de ações, projetos e instituições para a disseminação do

conhecimento sobre hipertexto, aplicado aos campos do letramento digital e novas

tecnologias da educação. Fundador da Associação Brasileira de Estudos de

Hipertexto e Tecnologia Educacional (Abehte) e um dos idealizadores do Simpósio

Hipertexto, seus trabalhos escritos em linguagem objetiva e com propósito

didático, geralmente, acessíveis ao grande público, ajudam a democratizar o

acesso aos conhecimentos sobre cultura digital. O professor Antônio Carlos Xavier,

aliado aos trabalhos do Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologia Educacional

da UFPE, dá continuidade um trabalho iniciado pelo professor Marcuschi, o que

confere à Universidade Federal de Pernambuco uma posição de destaque na

produção de conhecimentos nessa área. Recomendo a leitura do artigo “Identidade

docente na era do letramento digital: aspectos técnicos, éticos e estéticos”, que se

encontra nos anais do 2º Simpósio Hipertexto e Tecnologias da Educação. O

trabalho pode ajudar o professor contemporâneo a posicionar-se pedagogicamente

em relação ao uso das tecnologias e atuar ética e criativamente nesse ambiente,

sem perder a sua individualidade. No texto, o professor Xavier demonstra como sua

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própria experiência serve de lastro para um discurso pedagógico consistente, em

um momento de tomada de decisão diante das tecnologias para todos os docentes.

Trabalhos como o do professor Antônio Carlos Xavier são importantes para o

letramento digital dos nossos alunos (e mesmo para muitos dos nossos colegas

professores). Sem o letramento digital não é possível acessar e compreender a arte

digital, nas suas mais variadas formas, objeto deste artigo. Assim, a educação

digital do público precede qualquer experiência no universo das artes digitais, daí a

relevância dos educadores digitais, como Antônio Carlos Xavier.

Jorge Luiz Antonio, autor de Poesia eletrônica: negociações com os processos

digitais (2008), também localiza a sua fala a partir do entrecruzamento da

docência universitária, a teorização e a criação poética. Sua formação

interdisciplinar em letras, comunicação e semiótica permite-lhe analisar a poesia

digital sob um olhar múltiplo, o que lhe beneficia na compreensão mais profunda

sobre a semiose da videopoesia, infopoesia, tecnopoesia (esta não

necessariamente digital/virtual) ou poesia eletrônica, como ele próprio prefere

denominar.

Em sua própria resenha do livro citado acima, Jorge Luiz Antonio define a obra como:

“...um rápido olhar na passagem do meio impresso para o digital, exatamente

no momento em que o poeta estava interessado em negociar com os signos tecnológico-computacionais, para um mergulho nos diferentes processos, tipos e produções da poesia eletrônica. Os exemplos foram coletados em diversos países e configuram uma amostragem internacional.” (ANTONIO, 2012, p. 3)

Resultado de uma pesquisa de doutorado, o trabalho de Jorge Luiz Antonio se

configura

como uma das mais completas fontes de referências internacionais sobre

videopoesia, além de ter sido lançado em formato de livro com CD ROM, a preço

acessível. O CD traz uma antologia teórica, com artigos publicados em meio digital,

e uma antologia de poesia eletrônica, que serve, também, como exemplificação

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das discussões teóricas e conceituações de poesia eletrônica apresentadas pelo

próprio autor.

Embora de nacionalidade portuguesa, E. M. Melo e Castro tem contribuído para a o

ampliação do espaço da poesia digital no Brasil, devido às suas ligações com a

poesia concreta brasileira e, mais recentemente, através de seus laços acadêmicos

com a USP. Figura central da poesia experimental portuguesa, Melo e Castro

introduz elementos lógicos, estatísticos e matemáticos na sua poesia. Seus poemas

cinéticos dialogam com as propostas de Augusto de Campos de aproximar a poesia

do design, dando-lhe um corpo, uma ergonomia e, se possível, uma função prática.

“O pêndulo”, talvez o seu videopoema mais conhecido no Brasil, integra o vídeo

Cinco poemas concretos, um dos trabalhos do gênero mais acessados na internet.

Trata-se de um videopoema minimalista, explorando a constituição gráfica da

palavra “pêndulo”, como uma exibição circense das letras-operárias, que montam

e desmontam a palavra, com som musical e movimento pendular, obedecendo às

projeções formais do próprio pêndulo. O poema possui forte conteúdo

metalingüístico, uma característica da obra de Melo e Castro. Através da montagem

e desmontagem gráfica da palavra, discutem-se os rastros, os ecos e as projeções

deixadas pelas letras, suas possibilidades de recombinação, os processos

imaginativos e estéticos disparados pela palavra na mente humana alfabética, e o

apelo lúdico que costuma estar presente em toda poesia visual.

Para um conhecimento mais adequado da obra de E. M. Melo e Castro, em sua fase

mais recente, recomendo acessar e percorrer a exposição virtual dos seus poemas

cibervisuais, alguns criados com o auxílio do gerador de códigos de caracteres na

imagem (letras e números), o que confere à série de criações uma tênue ligação

com a esfera verbal. A exposição pode ser acessada clicando-se em “vitrine”, no

bem montado site Infopoesia: produções brasileiras (1996-99)

(http://www.ociocriativo.com.br/guests/meloecastro/). Muitos poemas, ou

picture poems, guardam uma relação direta com o elemento verbal, (como

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“Síntese genética – Fracta”,) enquanto outros são concebidos por um viés

abstracionista, utilizando uma feição caleidoscópica computacional, mantendo uma

relação indireta com o código verbal.

Alguns pressupostos teóricos da videopoesia

As preocupações com uma poesia onde a forma adquira autonomia em relação ao

conteúdo e se constitua como uma mensagem autotélica são antigas. Conforme

cito, em meu artigo “Teoria e prática do hipertexto literário: análise da semiose do

videopoema”,

o poeta inglês George Herbert, no século XVII, já escrevia poemas visuais como

“Easter Wings”, em forma de asas, ou “The Altar”, em formato de altar. William

Blake, no século XVIII, ilustrava seus próprios poemas. Em Songs of Experience,

“The Sick Rose”, por exemplo, é um poema caligráfico ilustrado. Mallarmé, com o

seu conceito de poema-constelação, praticado no histórico manifesto-poema e

poema-manifesto “Un coup de dês...”, contribuiu para a teoria semiótica dos

videopoemas atuais com a noção de que, na folha de papel visível do poema, a mancha

gráfica é o som e o espaço em branco é o silêncio. Ezra Pound, nos Cantos, investe na idéia

de que a palavra escrita é símbolo, forma e corpo, utilizando os ideogramas chineses,

como no poema LVI, embora traduzidos para o inglês, para tirar disso proveito estético e,

ao mesmo tempo, discutir suas possibilidades teóricas,como se toda letra tivesse, também,

características de ideograma.2

Em um plano estético-filosófico, a teoria da videopoesia está relacionada com o conceito

estético moderno de “poética do espaço”, isto é, uma arte que instaura uma discussão

sobre os seres unidimensionais, a espacialidade sem tempo, cuja única temporalidade é o

aqui e agora, onde se discute o objeto artístico em si, através dos seus infinitos jogos de

recombinações espaciais. Para se compreender eficientemente este conceito, é necessário

imaginar o mundo sem a noção de tempo, existindo somente a dimensão de espaço. Esta

2 Não se está julgando o sujeito empírico Ezra Pound, admirador de Mussolini, a quem dedicou referências em dois dos seus Cantos, mas a sua contribuição para a teoria da videopoesia.

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condição é geralmente difícil para a maioria das pessoas, mesmo para os astrofísicos que

acreditam na teoria do “big bang”, a qual se apóia no conceito de origem, início da

contagem do tempo, portanto muito influenciada pelo senso comum, baseado na “poética

do tempo”, que inspirou os românticos do século XIX.

Para se compreender a proposta estética e semiótica de videopoemas como

“Words”, “Moments” e “Symmetry”, da última geração de videopoemas,

produzidos pela Radiolab, é preciso ir além dos conceitos fundamentais da poesia

visual, consagrados na idéia joyceana do verbivocovisual, ou mesmo do conceito de

“verbal picture”, (pintura verbal) utilizado por Augusto de Campos no célebre

poema VIVA/VAIA. Nos poemas do Radiolab, talvez esteja em prática um conceito

como poesia paraverbal, ou, ainda, poesia pós-verbal, como preconizava Haroldo

de Campos. Mesmo não se assemelhando com a poesia verbal, a constituição

teórica dessa geração de videopoemas se sustenta, por comparação, oposição e

rejeição, nos aspectos tradicionais do poema verbal. Dois elementos constitutivos

da teoria dos novos videopoemas são oriundos do conhecimento de poesia

tradicional: a) a noção de que a poesia está em toda parte e é sempre maior do

que o poema; b) a constatação de que todas as coisas, sob a perspectiva humana,

já possuem nome, nas diversas línguas. Disso concluímos que mostrar (em foto,

desenho, pintura, filme ou vídeo) um objeto, ou ação, e designá-lo ou descrevê-lo

com palavras representa um redundância. Assim, se apresento a foto de uma casa e

coloco uma legenda onde se lê “casa”, ou se mostro um vídeo de alguém tomando

o café da manhã e narro oralmente ou ponho uma legenda dizendo isto, estamos

diante de uma duplicidade ou redundância de linguagens. Então, mesmo a

linguagem icônica é, subliminarmente, verbal.

A poesia está em tudo e se a capto em imagens de vídeo, tenho um vídeo que

contém essa poesia, um videopoema. Isto justifica o nome videopoema. Os

videopoemas da Radiolab, embora quase sem palavras, mas com os sons eventuais

do mundo real, inclusive as palavras que ocorrem naturalmente nas situações

representadas, porém sem qualquer destaque, apresentam uma sintaxe e uma

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estrutura rítmica assemelhadas à poesia lírica. O videopoema Symmetry, em

análise, é constituído de tomadas rápidas, que funcionam com o ritmo das linhas de

um poema. Além disso, elas privilegiam as sensações, emoções e efeitos estético-

visuais de instantes, não se constituindo em uma narrativa sequenciada típica do

gênero épico tradicional (ressalvando-se o conceito modernista de épico enquanto

fragmentação histórica, a exemplo de Ulysses, de James Joyce, ou The Waste

Land, de T. S. Eliot). O ponto de enunciação é a posição de observador em que o

autor escolhe para captar as cenas/momentos. Esta escolha é individual e

aleatória, tipicamente lírica. Somente o eu lírico criador poderá revelar uma

coerência entre os fragmentos sucessivos apresentados. Além disso, a questão da

duração da obra é mais aproximada do lírico, ou seja, uma apresentação para a

fruição rápida e concentrada, diferente, por exemplo, daquela do romance ou da

novela. Concluímos que, embora construídos em linguagem dominantemente

icônica, o videopoema analisado possui, no estágio histórico em que nos

encontramos, um conteúdo verbal subliminar, indispensável para a sua recepção,

como exemplificaremos adiante. Ainda, se se quiser dialogar com as teorias

tradicionais da poesia visual, esses poemas seriam vísio-voco-verbais.

Semiose e culturalidade no videopoema “Symmetry”, do Radiolab.

Não é possível separar a análise semiótica da cultural em um produto estético.

Quando escolho os dados para construir a sintaxe de um videopoema, encontro-os

na minha esfera cultural e do público ao qual se destina o produto. Em Symmetry,

os pares “simétricos” são, na sua maioria, ícones da cultura contemporânea dos

Estados Unidos.

Conceitualmente, a proposta do videotexto baseia-se na completude e na

incompletude, no paradoxo dos extremos que se tocam, na antítese, na

complementaridade que os opostos contêm. Assim, visualmente, o videopoema,

estruturado como um curta metragem, apresenta um ritmo duplo, da tese e da

antítese, representadas pelas metades da tela. Uma mensagem subliminar pode ser

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a ironia que está presente em toda simetria, pela sua impossibilidade, na inevitável

assimetria da vida, justamente onde está contida a sua poesia, o inesperado, o

indômito. Antes de ser um videopoema sobre opostos ou contrastes, o texto parece

chamar a tenção para a continuidade e a interdependência entre os pólos

extremos, uma vez que os processos de causa e efeito, ou de origem e

conseqüência são, muitas vezes, invertidos. Como todo videopoema, Symmetry

possui um poema verbal subjacente, um subtexto, que poderia ser assim

redundantemente estruturado e traduzido intersemioticamente:

Simetria

O princípio e o fim

Creme de amendoim ou geléia?

Arremessar, agarrar,

A tinta e o pincel

O arremesso e a cesta

A fechadura e a chave

A lavagem e a secagem

O músculo e os alteres

O leite e os biscoitos

Coca ou Pepsi?

A pipoca e o filme,

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As fritas e o molho

O sal e a apimenta

A noiva e o noivo

Família pequena e a grande família

A mãe e o pai separados

Os filhos divididos

O tiro que mata e o tiro virtual

Mocinho e bandido

O gato e o rato

O que come a carne e o que a fornece em sacrifício

O ídolo e a fã

A troca de identidade

Dualidade e sexualidade

Feminino e masculino

O que entra e o que sai

Do gasoso ao líquido

Maré vazia, maré cheia

Água que é fim e água que é meio

O que cura também vicia

O veículo único e a finalidade múltipla

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Religião e ciência

O natural e o artificial

O dia e a noite

A vigília e o sono

O nulo e o valor

O analógico e o digital

Em papel ou moeda

A cidade e campo

O que vem e o que vai

A experiência e o documento frio

Trôpegos na infância e na velhice

Ondas magnéticas e do mar

O coração e a razão

Fogo ou gelo?

Sexo: humano ou animal

A agressão e o carinho

Amor: de mãe ou carnal

O riso e o choro

O primeiro vagido e o último suspiro

E tudo é silêncio e escuridão

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Na montagem cênica das “simetrias” existem diálogos intertextuais com a poesia

americana, por exemplo “Fire and Ice”, de Robert Frost, com os textos míticos da

cultura ocidental, como o enigma da esfinge ( qual o animal que caminha com

quatro pés, quando nasce, com dois quando é adulto e com três quando fica

velho?), com o poema setecentista de Alexander Pope, “An Essay on man”, todo

construído sobre as contradições do humano, com uma antítese em cada verso,

com o pensamento nietzscheano sobre a fusão e complementaridade dos opostos,

(essa idéia advém de Epicuro, de que tudo está contido em tudo) e tantos outros

intertextos com o cinema, os comerciais de TV e os videoclips musicais, de onde os

videopoemas de última geração absorvem o ritmo, a duração e os efeitos

fragmentados de som e imagem, ou seja, algumas características ou convenções de

gênero.

O painel cultural, o universo humano, as paisagens urbanas e naturais se reportam

aos Estados Unidos. São também tipicamente americanos o estilo de vida, os

hábitos alimentares ( a geléia de amendoim, insuportável para nós, a Coca e a

Pepsi), o modo de nascer e morrer em hospitais (a semelhança irônica entre o idoso

e o bebê, explorada no conto “Curious Case of Benjamin Button”, de Scott

Fitzgerald), as relações humanas e o modo de vestir, a paisagem temperada e o

clima, os esportes, os produtos consumidos, o casamento, a sexualidade, a moradia

e os móveis, a importância do automóvel, os gestos e o conceito de educação

doméstica, a noção de higiene, a supremacia do mundo industrial, o hábito de

registrar por escrito e arquivar o que se passou na experiência do mundo da vida,

enfim os maiores valores do “sonho americano” como prosperidade e felicidade. A

videopoesia submete-se aos mesmos cronótopos bakhtinianos relacionados por ele

com a literatura e a arte em geral, ou seja, às representações do tempo e do

espaço da criação da obra. Se assisto Simmetry, identifico um tempo e um lugar.

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Considerações finais:

Os videopoemas de última geração são construídos com técnicas e sintaxe

cinematográficas, mas apresentam alguma simetria com a poesia verbal, quer pela

possibilidade de se construir um texto poético verbal subjacente, pelo fato de

todas as coisas possuírem nomes e esses nomes saltarem espontaneamente a cada

imagem apresentada, quer pela utilização de um conceito de poesia, poema e

poeticidade praticado milenarmente pela poesia verbal, ou seja, de que a poesia é

maior do que o poema, está em toda parte no mundo da vida e encontra-se no

inesperado. O ritmo do videopoema em apreço, entrecortado, assemelha-se aos

versos curtos de um poema escrito. Os videopoemas radicalmente icônicos da

Radiolab, como Symmetry, mostram-se redundantes, pois, embora geralmente

suprimam o conteúdo verbal ( a fala, o texto escrito ou a legenda) mostram cenas

do cotidiano que possuem uma descrição verbal subjacente, isto é, podemos

assisti-los como poemas verbais encenados.

Esta forma indireta de recepção dos videopoemas, entretanto, pode ser o resultado

de uma era de transição cultural no universo da literatura, da cultura escrita para a

cultura visual ou icônica. Ainda precisamos traduzir linguisticamente ou comparar

esteticamente o videopoema com o poema escrito. No futuro, talvez, poesia seja,

como defendiam os concretistas, não mais parte da literatura, mas uma arte

vocovisual autônoma, ou, simplesmente, uma arte multimídia. A videopoesia quer

ser espetáculo em um mundo narcisista, exibicionista, em que a corporeidade -

ainda que virtual - tem que ser mostrada de modo insinuante, quase escandaloso.

Os signos icônicos do videopoema em apreço provocam um efeito audiovisual,

envolto em uma aura de poesia. Em Symmetry existe uma relação do texto

cinematográfico com a realidade cultural representada, por conter um painel

cultural dos Estados Unidos, reportando-se deliberadamente ao “American way of

life”. Somente quando atingirmos a era pós-verbal, que Haroldo de Campos já

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discutia, e formos capazes de assistir um videopoema sem que as palavras nos

assaltem a mente, poderemos “curtir” integralmente a videopoesia.

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*Luciano Rodrigues Lima

Professor da Universidade Federal da Bahia, ligado ao Programa de Pós-Graduação

em Literatura e Cultura da UFBa. Mestre e doutror em Letras. Autor e coordenador

do site Literatura, Crítica, Teorias.