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antropofagia

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Raul Bopp

 Vida e morte da Antropofagia

 ApresentaçãoRĂ©gis Bonvicino

2ÂȘ edição

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herdeiros de Raul Bopp, 2006

bservação: Os textos de Raul Bopp desta edição, com exceção do capítulo “Magiciso universo amazînico num poema” foram publicados, esparsamente, entre 1965/66m jornais ou em livros de tiragens reduzidas.

eservam-se os direitos desta edição à

DITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.ua Argentina, 171 – 1Âș andar – SĂŁo CristĂłvĂŁo921-380 – Rio de Janeiro, RJ – RepĂșblica Federativa do Brasil

el.: (21) 2585-2060 Fax: (21) 2585-2086oduzido no Brasil

endemos pelo Reembolso Postal

BN 978-85-03-01170-9

apa: ISABELLA PERROTTA / H YBRIS DESIGN

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Bopp, Raul, 1898-1984

716v  Vida e morte da antropofagia [recurso eletrĂŽnico] / Raul Bopp. - Rio de Jan: JosĂ© Olympio, 2012.

  (Sabor literĂĄrio) recurso digital 

Formato: ePub

Requisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-03-01170-9 [recurso eletrĂŽnico]

1. Literatura brasileira - SĂ©culo XX - HistĂłria e crĂ­tica. 2. Modern(Literatura) - Brasil. 3. Livros eletrĂŽnicos. I. TĂ­tulo.

-40   CDD: 869.909CDU: 821.134.3(81).09

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SUM RIO

resentação: Antropofagia: oitenta anosscunho autobiogråfico

bliografia de Raul Bopptos de vista sobre a Semana de Arte Moderna

da e morte da Antropofagiaagicismo do universo amazĂŽnico num poemaventĂĄrio da Antropofagia

erungauarasil, choca o teu ovo...” 

mbiente literĂĄrio em 1922o Paulonifesto AntropĂłfago

py or not tupy, ainda a questĂŁo — por Maria AmĂ©lia Mello

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 APRESENTAÇÃO

 ANTROPOFAGIA: OITENTA ANOS

O Movimento AntropofĂĄgico teve trĂȘs personagens principais: a artista plĂĄstica TaAmaral (1886-1973), entĂŁo casada com Oswald de Andrade, o prĂłprio poe

mancista Oswald de Andrade (1890-1954), e o poeta Raul Bopp (1898-1984meira fase do movimento, inaugurado com o “Manifesto Antropófago”, de 1928

vra de Oswald, com idĂ©ias de Tarsila, veiculou-se por uma revista mensal, a Revisttropofagia; e a segunda, em uma pĂĄgina do extinto DiĂĄrio de SĂŁo Paulo, conhemo “Antropofagia Brasileira de Letras”, a partir de 29 de agosto de 1929. O jornaraldo Ferraz explica: “Em 1929, houve a cisĂŁo, surgindo em uma simples pĂĄginnal a segunda fase, onde emergia uma grande radicalização, com a saĂ­da de MĂĄrdrade. Na primeira fase, ninguĂ©m gostava de fazer um movimento polĂ­tico-sociolĂł]. Ficaram uns poucos como Raul Bopp e Oswald de Andrade.” AliĂĄs, anoto que, n08, MacunaĂ­ma tornou-se igualmente octagenĂĄrio.Enquanto revista, o movimento publicou poemas de Murilo Mendes (1901-1975

portante “Anedota BĂșlgara”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) — o meta brasileiro de todos os tempos: “Era uma vez um czar naturalista/ que camens// Quando lhe disseram que tambĂ©m/ se caçam borboletas/ e andorinhas,/ uito espantado/ e achou uma barbaridade.” Na pĂĄgina do jornal, publicou-se o es

tela Abaporu [O AntropĂłfago], de Tarsila do Amaral, atĂ© hoje uma artista plĂĄsuperĂĄvel. Chamo a atenção para duas afirmaçÔes do “Manifesto”: “Contra todoportadores de consciĂȘncia enlatada. A existĂȘncia palpĂĄvel da vida.” Hoje, o Bporta cultura de massas, despreza, por exemplo, a cultura erudita norte-ameriultura crĂ­tica), e importa tambĂ©m “consciĂȘncia” enlatada no campo da arte, no quve momento epigonal. “A existĂȘncia palpĂĄvel da vida” significa curiosidade, invençãe nos falta.Vida e morte da Antropofagia Ă© documento literĂĄrio relevante para a compreensĂŁ

ovimento AntropofĂĄgico de 1928 e tambĂ©m para a inteligĂȘncia da gĂȘnese do poobra Norato”, do prĂłprio Bopp, autor para o qual vale a mĂĄxima “o menos Ă© m

creveu (na verdade, reescreveu ao longo de sua vida) “Cobra Norato”, em 1928 (ição saiu com capa de outro antropófago, Flávio de Carvalho), um dos

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portantes poemas do sĂ©culo XX brasileiro, e meia centena de poemas dispesiguais. Neste Vida e morte da Antropofagia — Ășnico relato sobre o movimento, pemorialĂ­stica, fragmentĂĄria, Ă s vezes precĂĄria e atĂ© mambembe, todavia coesa em Ă©ias — repassa, na condição de testemunha ocular, a Semana de Arte Moderna22:

Enquanto Paris se agitava dentro de novas correntes culturais, no Brasil, somente algumas poucas åreassensíveis a essa inquietação. Pressentia-se, em vibraçÔes vagas, a necessidade de substituir a expressão a

por formas mais evoluídas. São Paulo, em problemas de arte, permanecia ainda num velho conformismo, ama formas antiquadas, em contradição com sua pujança econÎmica.

Tratava-se, observo, de traduzir a pujança econîmica da elite de então, que “ha todos os anos da Europa”, em “arte moderna”, para servi-la — em outras palav

ptura com permissão da corte —, contradição que a Antropofagia tentaria, seis ais tarde, superar.Vem-me à tona, quando penso sobre o modernismo brasileiro, uma fotografi

aduto do ChĂĄ, de SĂŁo Paulo, de meados dos anos 1920. Seis carros transitam nelem imenso e desproporcional letreiro da Chevrolet, equivalente ao tamanho de Ă­culos; a seu lado, vĂȘ-se um outdoor da Oldsmobile, afixado na lateral de um prĂ©dem estilo mistura adĂșltera de tudo. O Vale do AnhangabaĂș estĂĄ ermo, interiorano,rros estacionados em suas duas calçadas. A propaganda e o americanismo do negaram antes do consumo, antes mesmo da prĂłpria cidade. Essa imagem, auncia seu caos futuro e denuncia a despreocupação da elite local, exceto de OswaTarsila, com os temas verdadeiramente modernos. Lembro-me, de pronto, qua

nso no Centro (hoje velho) de SĂŁo Paulo, de um poema intitulado “pai negro”wald: “Cheio de rĂłtulas/ Na cara nas muletas/ Pedindo duas vezes a mesma esmrque sĂł enxerga uma nuvem de mosquitos.” RĂłtula significa janela, provida deteparo, feito de pequenos sarrafos, predecessora das persianas modernas. No ter dizer que a personagem — aleijada — estĂĄ cheia de feridas e chagas, com muha, arranhada pelo desgaste. O poema nĂŁo Ă© ainda “antropofĂĄgico” estrito senso

m Pau Brasil, de 1924) mas dialoga com A negra, de 1923, de Tarsila do Amaraal os enormes beiços da escrava liberta saltam da tela, que traz ao fundo um quométrico de Ferdinand Léger (1881-1955), ironizando-o, para distinguir o Bras

mpo vanguardismo europeu.Bopp não escapa da ideologia evolucionista das vanguardas — há muito criticada

rmos teĂłricos — quando relata a gĂȘnese da Semana, talvez influenciado poesma, mas vai se redimir desse “pecado venial”, quando anota sua participaçãovimento AntropofĂĄgico:

 A reação modernista de 1922 desviou-se das formas habituais de expressĂŁo. Aproveitou alguns fragmfolclĂłricos, com uso de falas rurais. Desencadeou uma forte reação contra o mau gosto. Destruiu inutilidade

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seus dividendos nas letras e nas artes eram muito reduzidos. Não haviam trazido um pensamento novo, cacondensar as preocupaçÔes do momento. Com o retorno aos valores nativos, remexeram-se os mesmos nacionais refundidos em poesia ociosa.

Poesia e pensamentos “ociosos”, ou seja, decorativos, que seriam alvo tropĂłfagos, implacĂĄveis.O Movimento AntropofĂĄgico articulou-se precipuamente para pensar um Bscolonizado e independente, que tomava de assalto as letras do outdoor da Chevcensado pelos modernistas de “mera casca literĂĄria” (expressĂŁo de Bopp), nsformĂĄ-las em: “Contra o Padre Vieira. Autor de nosso primeiro emprĂ©stimo, nhar comissĂŁo” (“Manifesto AntropĂłfago”, de Oswald de Andrade). Ou, em “Monjema de Bopp, geomĂ©trico, paratĂĄtico, composto de oito versos, entrecortados pofrĂŁo violento, que dialoga com a tela A negra e com o poema “pai negro”:

Fazenda velha Noite e diaBate-pilĂŁo

Negro passa a vida ouvindoBate-pilĂŁoRelĂłgio triste o da fazendaBate-pilĂŁoNegro deita Negro acordaBate-pilĂŁoQuebra-se a tarde Ave MariaBate-pilĂŁoChega a noite Toda a noiteBate-pilĂŁo

Quando hĂĄ velĂłrio de negroBate-pilĂŁoNegro levado para a covaBate-pilĂŁo

“Monjolo”, escrito entre 1925 e 1927, Ă© o melhor poema de Bopp, depois de “Crato” (poema antropĂłfago tambĂ©m), muito superior ao famoso “Coco”, no qual cegu (PatrĂ­cia GalvĂŁo, escritora), figura presente nos open houses antropofĂĄgicosal Tarsila e Oswald, como ele mesmo narra em Vida e morte da Antropofagi

frĂŁo Ă© destacado em itĂĄlico por representar a voz do capataz. O tempo, “modernoarcado em “relĂłgio”. O verso “Quebra-se a tarde Ave Maria” insinua surra levada gro liberto. Os versos podem ser entendidos como de oito sĂ­labas, como sugefrĂŁo de quatro. Esse poema nĂŁo o levaria a MĂĄrio, mas obrigatoriamenttropofagia.Bopp relata que o Movimento AntropofĂĄgico “oficializou-se” durante um jantar, em

staurante especializado em rĂŁs, no bairro paulistano de Santana:

Quando, entre aplausos, chegou o prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se, começou a fazer o elo

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rĂŁ, explicando, com uma alta percentagem de burla, a doutrina da evolução das espĂ©cies. Citou autores imagios ovistas holandeses, a teoria dos homĂșnculos, para provar que a linha da evolução biolĂłgica do homempassava pela rĂŁ — essa mesma rĂŁ que estĂĄvamos saboreando entre goles de um Chablis gelado.

Tarsila interveio: â€” Com esse argumento, chega-se teoricamente Ă  conclusĂŁo de que estamos sendo agora uns...

antropĂłfagos.

Esse livro revela a força da interação Tarsila-Oswald, que, quando desfeita, afeto

mo artistas — os dois. Bopp descreve Oswald, segundo ele o ponta de lança de Tamo “um tipo de paladino, destemido, inconformado diante de um mundo em ppansĂŁo, servido por uma arte que nĂŁo correspondia Ă s suas exigĂȘncias [reaparecerto apego ao evolucionismo por parte de Bopp/Andrade]. Por isso, provocava. Atacfendia. [...] Era ĂĄvido de renovaçÔes”. JĂĄ MĂĄrio era, para ele, figura sĂłbria: “A somprofessor do ConservatĂłrio Musical estava sempre a seu lado. [...]. Era solte

origerado e sem estroinices. Vivia pacatamente com as tias. Houve Ă©poca em queompanhava a procissĂŁo de vela na mĂŁo.” Explica que a Antropofagia afastou os

drades, em virtude de MĂĄrio sentir-se “satisfeito com a popularidade que lhe coubventĂĄrio da Semana”, considerada insatisfatĂłria por Oswald, que buscava o Brasilaces profundos”.Depois do “changĂ© de dames geral” que separou o casal Tarsila e Oswald — escou por Pagu (a musa teen) pouco antes do Congresso AntropofĂĄgico, agendado tubro de 1928, em VitĂłria, no EspĂ­rito Santo, que nĂŁo se realizou —, para Bop

gado do movimento foi: “Com suas sátiras audaciosas, provocou uma derrubadores, de mera casca literária, sem cerne. Sacudiu hierarquias inconsistentes. Assin

ma Ă©poca.” Bopp registra todos os planos do movimento desde o de estimular igiĂŁo prĂłpria, antropofĂĄgica (indĂ­gena, negra e branca), ao de criar um dicionĂĄriogistra algumas dessas palavras no livro, criticando a gramĂĄtica portuguesa, numĂ©tico: “Carregou-se o casco do vocĂĄbulo com acentos de toda a espĂ©cie.” “Mirongaarme indecifrado, e “sombra”, invenção dele mesmo, para aquele que estivesse “olhos entupidos de escuro”. Nunca Ă© demais lembrar que o poema “No mei

minho”, de 1928, de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado pela primeiralo Movimento, na Revista de Antropofagia, sua publicação mensal desde maio de 1

e depois migrou para uma página do Diário de São Paulo, no qual findou, tampar em letras garrafais, sob o título SUBORNO, o seguinte trecho da Bíblia —ema ready-made anînimo: “Em verdade, se fizerdes o que vos digo, no dia do

nal estareis comigo no ParaĂ­so.” Cabe destacar que Bopp — um bisneto de alemĂŁes — foi o primeiro poeta brasilezer a AmazĂŽnia para o centro das atençÔes. Fez parte do curso de Direito em Bera ganhar proximidade com a floresta: “O romanceiro amazĂŽnico, de uma substùética fabulosa, com o mato cheio de ruĂ­dos, misturado com a pulsação das flore

sones, nĂŁo podia se acomodar num perĂ­metro de composiçÔes medidas.” Declara

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ro, que a experiĂȘncia o marcaria para toda a vida. HĂĄ o “Cobra Norato” poesia mbĂ©m o “Cobra Norato” antropofagia, que, de modo pioneiro, soletrou a flomazĂŽnica para o Rio de Janeiro e para SĂŁo Paulo: “Esta Ă© a floresta de hĂĄlito porindo cobras// Rios magros obrigados a trabalhar.” HĂĄ um Bopp mĂșltiplo, rmanece imprescindĂ­vel — embora sem o protagonismo seminal de Oswald e Tarsi

RĂ©gis Bo

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RASCUNHO AUTOBIOGR FICO

OS BOPP

Meu bisavÎ era alemão. Morava nas imediaçÔes de Manheim (Bishofen). Com cerver as åguas do Reno correrem para o Atlùntico, teve um dia a idéia de tomar

esma direção.A velha Europa estava ainda mal refeita do seu estado caótico. As gu

poleÎnicas tinham deixado fundas marcas de desolação, notadamente na renana. Pequenos reinos vassalos, fracionados com concessÔes territoriais, ficaeiramente depauperados. A paz estava continuamente perturbada pelas folíticas dominantes.Dentro desse quadro histórico, com um cansaço das guerras, gerou-se entre gentebalho, fora dos clãs militares, um anseio de vida nova, um desejo de evasão d

mosfera pesada de inquietaçÔes. Foi nessa situação que o meu bisavÎ de nonardo, ainda solteiro, articulou-se ao conjunto de 550 alemães, organizados

upos, que vieram, Ă  sua custa, logo apĂłs a proclamação da nossa IndependĂȘncistalar no Rio Grande do Sul. Leonardo veio no primeiro grupo de 471 famĂ­lias,egou ao Brasil, em julho de 1824, na sumaca SĂŁo Joaquim Protector — pequeno vedois mastros, que era o tipo de embarcação comum, numa Ă©poca em que m

boçavam os primeiros ensaios da Revolução Industrial.Na província do Rio Grande a família Bopp criou raízes. Os seus elemeestraram-se nas condiçÔes ambientes, com iniciativas oportunas. Alguns dos scendentes dedicaram-se à criação de gado. Meu avÎ, em São Martinho, no muni

Santa Maria, era conhecido pela sua perĂ­cia no manejo do laço e das boleadeirase tinham experiĂȘncia em quĂ­mica, como meu pai, consagraram-se Ă  indĂșstria do ccurtume. Mais tarde, um ramo da famĂ­lia ensaiou, com ĂȘxito, plantaçÔes de arroztro multiplicou suas atividades no cultivo da cevada. O Ășnico Bopp que teve empblico fui eu.

OS KROEFF

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lo lado materno, minha famĂ­lia procedia dos Kroeff, chegados posteriormente (1Alemanha, da comunidade de Merl, conforme dados que Mario Kroeff (Imagen

eu Rio Grande) obteve em Koblenz, para compor a ĂĄrvore genealĂłgica da famĂ­lia. nhecidos vinhateiros que, durante alguns sĂ©culos, fabricavam o famoso vinho Moover Nacktasck (“Bunda de Fora”). Mas devido Ă s interminĂĄveis disputas franco-alebre a AlsĂĄcia-Lorena, decidiram vender a propriedade, de antiga tradição, aos Kullers, e embarcaram para o Brasil no navio HortĂȘnsia, levando, com as esperas

ntos intermediårios, vårios meses no trajeto Bremen-Rio-Porto Alegre-São Lourntigo Porto das Telhas), à margem do rio dos Sinos.Os Kroeff se compunham de quatro irmãos: Lourenço, que adquiriu os campo

zenda Porteirinha, em SĂŁo Francisco de Paula de Cima da Serra; Jacob, tabeleceu um hotel em Novo Hamburgo (que hospedou Pedro II, na sua viagem aoande); EmĂ­lia, viĂșva do barĂŁo de Dusseldorf (que adquiriu propriedade em Starina) e meu avĂŽ Migue1, que instalou-se no Pinhal, em terras prĂłximas Ă  estradro, que tinha um ponto de embarque denominado Parada Kroeff. O casarĂŁo colonia

oradia era rodeado de uma longa taipa de pedra, Ă  beira de um riozinho, com ĂĄrvnamentais e frutĂ­feras. PossuĂ­am alguns escravos, que eram tratados dentrormas de convivĂȘncia humana, nas lides de trabalho. Minha mĂŁe fazia versos

emĂŁo.

INFLUÊNCIA DO MEIO GEOGRÁFICO

scido em Pinhal, municĂ­pio de Santa Maria, criei-me em TupanciretĂŁ, zona campeu espĂ­rito se formou dentro dos quadros rurais. Aquela paisagem dilatadarizontes livres, sem mistĂ©rios, terĂĄ certamente deixado em mim traços marcantessponde a uma relação espacial do homem com as distĂąncias. Delineou componentimentais. Recolhi as primeiras emoçÔes poĂ©ticas, de marca local, em sonetomação medĂ­ocre. Era um desejo natural de dizer coisas, sem preocupaçÔes literĂĄriaMais tarde, em Porto Alegre, quando iniciei os estudos acadĂȘmicos, procurei se

m sucesso, a trilha dos mestres regionalistas. Cheguei mesmo a fazer parte do Gs Cinco, com Figueiredo Pinto, André Carrazoni, Olmiro Azevedo e Mårcio Dias. Mando, o que eu gostava mesmo era dos nossos poetas romùnticos: o velho Zefearcelo Gama, Wamosi, Eduardo Guimarães. Fora do Rio Grande, continuei fazersos, de ressonùncias líricas, que nunca reuni em volume.

INTERESSE EM CONHECER O BRASIL

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Como se sabe, fiz cada ano do curso de Direito em uma diferente Academia. Inicil. Cursei o terceiro ano no Recife, o quarto em Belém do Parå, o quinto no Rineiro. Pude, dessa forma, conhecer um pouco do Brasil, especialmente o Norte. Viampre que podia, para assistir festas folclóricas. Fazia exames na segunda época.

 AMAZÔNIA

chegar na AmazĂŽnia, senti que estava ante um cenĂĄrio completamente diferentema violĂȘncia desconcertante. A linha constante de ĂĄgua e mato era a moldura deundo ainda incĂłgnito e confuso. A impressĂŁo que me causava o ambiente, natranha brutalidade, escapava das concordĂąncias. Era uma geografia do mal-acabflorestas nĂŁo tinham fim. A terra se repetia, carregada de alaridos anĂŽnimos.

zes indecifradas. Sempre o mato e a ĂĄgua por toda a parte.

Depois de algum tempo, em freqĂŒente contato com a selva, adivinhando seu seĂĄgico, comecei a acreditar em coisas que me contavam: causos do MinhocĂŁo, gĂȘaus da floresta, o Curupira, o Caapora, o Mapinguary. Os pontos de encontro de canr exemplo, em Pacoval, onde, Ă  tardinha, pousam velas vigilengas, como pĂĄssnsados, era o local de se ouvir histĂłrias da regiĂŁo. Canoeiros, de pĂ©s no cnfraternizavam, uns com outros, entre os cuitĂ©s de cachaça. Cada um contava os usos.O romanceiro amazĂŽnico, de uma substĂąncia poĂ©tica fabulosa, com o mato chei

dos, misturado com a pulsação das florestas insones, nĂŁo podia se acomodar rĂ­metro de composiçÔes medidas. Os moldes mĂ©tricos fracionados serviam parapressĂŁo Ă s coisas do universo clĂĄssico. Mas deformam ou sĂŁo insuficientes para rem sensibilidade um mundo misterioso e obscuro em vivĂȘncias prĂ©-lĂłgicas. Precisavr isso, romper com as limitaçÔes da processualĂ­stica do verso, ensaiar qualquer c

m novas escolas de formas (Ă  maneira da vida vegetal, espontĂąnea), em linguata, em moldes rĂ­tmicos diferentes.A estada de pouco mais de um ano na AmazĂŽnia deixou em mim assinal

luĂȘncias. CenĂĄrios imensos, que se estendiam com a presença do rio por toda pfletiam-se com estranha fascinação no espĂ­rito da gente. A floresta era uma esdecifrada. Agitavam-se enigmas nas vozes anĂŽnimas do mato. Inconscientemententindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A prĂłpria malĂĄria, contraĂ­danhas viagens, acomodou meu espĂ­rito na humildade, criando um mundo surream espaços imaginĂĄrios. Ensaiei, nessa Ă©poca, alĂ©m do esboço da “Cobra Norguns poemas avulsos: “MĂŁe Febre”, “PĂąntano”, “Sapo”, “Cidade Selvagem”. Procstituir, em versos, impressĂ”es recolhidas em minhas andanças na regiĂŁo. S

ramente o desgaste das antigas formas poéticas, de vibraçÔes silåbicas em uso.

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ram sendo substituĂ­das por maneiras de dizer mais simples, em novos moldes literĂĄm a minha vivĂȘncia na AmazĂŽnia, de profundidades incalculĂĄveis, fui pouco a prendendo a sentir o Brasil, com o seu sentido mĂĄgico desdobrado na sua totalidade

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BIBLIOGRAFIA DE RAUL BOPP

ESIA

içÔes de Cobra Norato

— SĂŁo Paulo, 1931. Edição promovida por Jaime Adour da CĂąmara e Alberto PĂĄdua de AraĂșjo. Estabelecimento GĂŁos Ferraz. Rua Tobias Barreto, 28. Capa de FlĂĄvio de Carvalho. Tiragem: 2.600 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1937. Edição Ilustrada. ComissĂŁo organizadora da edição: Luiz Vergara, JosĂ© de QueirĂłs Lima, chado, Carlos Echenique e Carlos A. LeĂŁo. IlustraçÔes de Oswaldo Goeldi. Composição a cargo de Mateus di M

pressĂŁo por Armando di Monca. Tiragem: 150 exemplares numerados.

— Zurique, 1947. Edição publicada pelo autor, sob o título de Poesias. Oficinas Gráficas Orel Fussli tzingerstrasse, 3. Capa de Zoltan Kemeny. Tiragem: 500 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1951. Edição promovida por Augusto Meyer. Oficinas de Bloch Editores Ltda, rua Frei Canecapa de Zoltan Kemeny. Tiragem: 1.000 exemplares.

— Barcelona, 1954. Edição preparada por Alfonso Pinto. Editora Dau al Set. Impresso em Gráficas Fomentoanova, 57. Vinheta de Juan Miró. Tiragem: 1.000 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1956. Edição da Livraria SĂŁo JosĂ© Ltda. Foram incluĂ­dos alguns poemas do livro Urucungo, pu

1932, pela Ariel Editora Ltda. Capa de Aldemir Martins. Tiragem: 1.000 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1967. “Antologia PoĂ©tica”, com prefĂĄcio de M. Cavalcanti Proença. Edição da GrĂĄfica Editora L., rua das Marrecas, 40/3Âș andar. T iragem: 2.000 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1969. O poema estĂĄ incluĂ­do na parte de poesias do livro Putirum, com nota explicativa de Manda. Edição da GrĂĄfica Leitura S.A., rua das Marrecas, 40/3Âș andar. Capa de SĂ©rgio Bopp. Tiragem: mplares.

— Rio de Janeiro,1973, seguido de Outros Poemas, com nota introdutĂłria de AntĂŽnio Houaiss e ilustraçÔes detora Civilização Brasileira, rua da Lapa, 120/12Âș andar. Montagem de Capa de DounĂȘ. Tiragem: 2.000 exemplares

— Rio de Janeiro, 1975, seguido de Outros Poemas, com nota introdutĂłria de AntĂŽnio Houaiss e ilustraçÔes detora Civilização Brasileira, rua Muniz Barreto, 91-93, em convĂȘnio com o Instituto Nacional do Livro/MEC. Montaga de DounĂȘ. Tiragem: 3.000 exemplares.

— Rio de Janeiro, 1976, seguido de Outros Poemas, com nota introdutĂłria de AntĂŽnio Houaiss e ilustraçÔes detora Civilização Brasileira, rua Muniz Barreto, 91-93. Montagem de capa de DounĂȘ. Tiragem: 5.000 exemplares.

-16ÂȘ ediçÔes publicadas pela editora Civilização Brasileira.

artir da 17ÂȘ edição (1994), Ă© publicado pela editora JosĂ© Olympio.

cungo. Poemas negros. Publicação promovida por Jorge Amado, Luiz Vergara, Manlio Giudice, Danton Coelho e

enique Jr. Ariel Editora: Rio de Janeiro, 1932.

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OSA

Ă©rica (Folheto). Los Angeles: Commonwealth Press, V.S.A., 1942.

as de viagem (Uma volta pelo mundo). Berna: Druck Stampfli & Cia, 1960.

as de um caderno sobre o Itamarati. Berna: Druck Stampfli & Cia, 1960.

vimentos modernistas no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966.

mĂłrias de um embaixador. Rio de Janeiro: Record, 1968.

rum: Poesias e coisas de folclore. Edição organizada por Macedo Miranda. Rio de Janeiro: Editora Leitura S.A, 196

sas do Oriente. Edição promovida por Joaquim Inojosa. Rio de Janeiro: Gråfica Tupi Ltda., 1971.

pp passado a limpo por ele mesmo. Rio de Janeiro: GrĂĄfica Tupi Ltda., 1971.

mburĂĄ: notas de viagens e Saldos literĂĄrios. BrasĂ­lia: Editora BrasĂ­lia, 1973.

gitudes: crĂŽnicas de viagens. Porto Alegre: Editora Movimento, 1980.

COLABORAÇÃO

minho para o Brasil, com Américo R. Neto e Donald Derrom. São Paulo: Ed. da Associação Paulista de Boas Est8.

ografia mineral, com José Jobim. Tóquio: Ed. Kokusai, Shuppan Insatsusha, 1938.

e banana, com José Jobim. Tóquio: Ed. Kokusai Shuppan, Insatsusha, 1938.

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 Vida e morte da Antropofa

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PONTOS DE VISTA SOBRE ASEMANA DE ARTE MODERNA

EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MODERNO

arte moderna veio de longe, seguindo os caminhos da mĂĄquina. Relacionou-se coocesso tĂ©cnico, num contĂ­nuo encadeamento de causas e efeitos. Foram surgnseqĂŒentemente, problemas de representação plĂĄstica das mais variadas formas.

Numa primeira fase, procurou-se representar o objetivo dentro de formas geomĂ©tras. A realidade ficou reduzida a um tipo de natureza-morta, com a supressĂŁmosfera envolvente. Desse tipo de cezanismo, com formas geometrizadas, alcançoadativamente o Cubismo, de carĂĄter estĂĄtico, chamado tambĂ©m “pintura a mensĂ”es”, isto Ă©, pintura de volumes em superfĂ­cies planas, com decomposiçÔejeto.Quase ao mesmo tempo, surgiu, na ItĂĄlia, o Futurismo, em perfeita concomitĂą

m a mĂĄquina. Trouxe consigo realizaçÔes plĂĄsticas fascinantes, com a predominĂąformas dinĂąmicas, de alto valor expressivo. O seu ruĂ­do, de carĂĄter polĂȘmico, tea

clamatĂłrio, acordou o interesse pĂșblico internacional para os problemas de oderna.O Expressionismo teve as suas raĂ­zes no inĂ­cio do sĂ©culo (1903 em Dresde; 1906rlim, com o grupo Die Brucke, e alongou-se atĂ© a faixa de 1920). Fiel aos ndamentos de “expressar sentimentos”, o movimento veio recolhendo tendĂȘnĂĄsticas diversas. Enriqueceu-se com experiĂȘncias novas. Algumas fases da sua evol

caracterizam com integraçÔes exóticas. Cores vibrantes invadem as telas, upçÔes desbordantes. Quebram-se estruturas, envolvidas em massas convulsapressionismo toca profundidades. Nele predominam, geralmente, as formas tråg

m ensaĂ­sta francĂȘs classificou-o de “um simples fauvismo mais violento”.Quando veio a guerra (1914), as forças de destruição refletiram-se, necessariameespĂ­rito da geração montparnasiana. Esta, numa fĂșria vanguardista, conduzia as n

presentaçÔes plĂĄsticas no caminho da desagregação. A arte espelhava um mnvulso tocado de angĂșstia humana, com dramas profundos e arrasado pelo choqu

assas brutas.O grupo DadĂĄ (composto, em parte, de subartistas apĂĄtridas, refugiados num Ca

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íço, em 1916) aproveitou-se da confusão para fazer uma tåbula rasa de valoresfé Voltaire, em Zurich, os dadaístas soltavam manifestos. Proclamavrogantemente, a antiarte. As suas demonstraçÔes levavam, geralmente, à tÎnicrcasmo ou burla. Nas revistas do grupo (391, Canibale), entretinham-se em elogiostaclismos. Exaltavam, com um sentido anarquista, as formas homicidas.Este movimento, com as heranças da guerra, derivou, mais tarde, para o Surreal

egistrado por alguns crĂ­ticos como filho bastardo de DadĂĄ). Reduziu o mundo rea

aginĂĄrio com aspiraçÔes obscuras. Fechou parĂȘnteses Ă s idĂ©ias cartesianas, que aevaleciam nas letras e nas artes. “O homem nĂŁo Ă© mais prisioneiro da sua randrĂ© Breton). Abriu portas ao subconsciente, para a fermentação de idĂ©ias intuitfinges interrogando interioridades humanas.

PARIS

ris, o centro magnético da Europa, agitava-se, direta ou indiretamente, com ultiplicidade de escolas.ManifestaçÔes nos domínios da arte, por vårios cantos do mundo, tinham seus refgrande cidade. Essa situação se repetia desde as primeiras tentativas de

oderna, em busca de maior poder expressivo.Nessa fase de inquietaçÔes, nos começos do século, os cafés da rive gaimavam-se em controvérsias teóricas. Os artistas discutiam idéias que resultavam

vas experiĂȘncias plĂĄsticas. Telas do grupo de vanguarda eram recusadas pelo Scial. A crĂ­tica consagrava artistas, sob um jogo de influĂȘncias. Mas as novas tem ganhando terreno. Algumas escolas iam caindo em descrĂ©dito. Cediam lugtras, em transformaçÔes contĂ­nuas.

CONTRADIÇÕES

quanto Paris se agitava dentro de novas correntes culturais, no Brasil somgumas poucas åreas eram sensíveis a essa inquietação. Pressentia-se, em vibragas, a necessidade de substituir a expressão artística por formas mais evoluídas.São Paulo, em problemas de arte, permanecia ainda num velho conformi

marrado a formas antiquadas, em contradição com a sua pujança econĂŽmica. GuarsiçÔes acadĂȘmicas, numa rigorosa sujeição aos preceitos rotineiros.Os andaimes se projetavam, cada vez mais altos. As chaminĂ©s afirmavam a sua f

dustrial, pelos setores urbanos. Mas o espírito moderno (no período anterior a 19m suas tímidas vacilaçÔes, não havia penetrado nos seus håbitos de atividade

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tonia com a sua evolução material. Estava embrionårio. Ocultava-se, entre resíssadistas, vago e desajustado.

DARIUS MILLAUD

r volta do ano 1917, em plena guerra, veio ao Brasil, como Enviado Plenipotenciul Claudel, para cuidar dos interesses da França (arrendamentos de navios confiscAlemanha; transaçÔes de café com a firma Prado Chaves etc.).Veio, com ele, Darius Millaud, como adido cultural da Missão. De chegada, Mi

mou carinho pelas coisas brasileiras. Fascinou-se pelas formas tropicais. Em hgas, fazia excursĂ”es com Claudel pelas Paineiras, Tijuca, imediaçÔes do largoticĂĄrio e pelo Jardim BotĂąnico. Encheu os quintais da Embaixada, Ă  rua Paissandu,hagens de plantas exĂłticas. Amigos lhe arranjaram uma coleção de araras e tucas suas relaçÔes com gente jovem e de instinto boĂȘmio, contagiou-se com mĂșsicarnaval, que desciam dos morros, em ritmos novos, num cerrado de contrapontmbores.FreqĂŒentemente, Claudel e Millaud iam Ă  casa dos Betim Pais Leme, onde passa

stos de tarde. Dona Isar, com uma apurada sensibilidade musical, trazia, em revmbas e outros fragmentos de Ernesto Nazaré e Tupinambå. A casa dos Pais Lerecia um ambiente delicioso, para essas duas personalidades. Estavam aprendÔes de Brasil...

BOEUF SUR LE TOIT

ando Millaud voltou Ă  Europa, levou consigo a tĂŽnica da nossa mĂșsica. O ritmmba, em novas estilizaçÔes, estendeu-se pela sua obra (publicou os Souvenirs du BNotes sans musique). A marchinha Boi no telhado transformou-se no famoso Boeutoit. Mais tarde, virou boate que, por uns tempos, foi em Paris ponto de reuniĂŁ

ementos de vanguarda: Apollinaire, Cocteau, LĂ©ger, o prĂłprio Darius Millaud e outrAs conversas do grupo semearam entusiasmos geogrĂĄficos. Narrava-se um B

aginĂĄrio, cheio de paisagens coloridas, como um paĂ­s de utopia.“A terra Ă© de tal maneira graciosa.” Trenzinhos subindo o Corcovado. LĂĄ em cima, os paredĂ”es de rocha viva,

culturas monolíticas. E a cidade imensa se estendendo, em sínteses geométricas,ira do mar. Sambas por toda parte.Essas digressÔes iam se repetindo, com acréscimos individuais. Espalharam-setros grupos. Os próprios brasileiros, que faziam suas férias em Paris, começara

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star desse “Brasil” cordial, narrado na sua frescura primitiva.

ELITE PAULISTA

via, em SĂŁo Paulo, uma pequena elite culta, que ia e vinha todos os anos da Eurma seminobreza rural, com longas tradiçÔes de famĂ­lia, florescia Ă  base do cafĂ©. Empos tranqĂŒilos e de fartura plena. LatifĂșndios opulentos. Cafezais a se perderemta.O reduzido grupo de pessoas de bom gosto e cultas, que fazia regularmente as gens transatlĂąnticas, nĂŁo ficava indiferente aos fatos mais notĂłrios da vida artropĂ©ia. Ouviam os diĂĄlogos de um mundo em plena transformação.Em contato com artistas de vanguarda, procuravam conhecer as vĂĄrias modalidpintura moderna e suas sutilezas tĂ©cnicas. De volta a SĂŁo Paulo, traziam con

ças adquiridas, de pintura figurativa ou de correntes abstracionistas. E explicavammigos os princĂ­pios bĂĄsicos desses movimentos. Com as novas tendĂȘncias plĂĄstictista estava em pleno domĂ­nio de expressĂŁo, isto Ă©, podia exprimir livremente as açÔes, com maneiras que lhe eram peculiares, emancipado de qualquer formutilĂ­stico.

IDÉIA DE UM MOVIMENTO MODERNISTA

ma vez, numa roda de intelectuais, a conversa se espalhou pelos meangionalistas, atĂ© escorregar numa pergunta:— Por que Ă© que, em SĂŁo Paulo, nĂŁo se passava a limpo aquele “Brasil” de Paris, r inĂ­cio a uma renovação geral das artes? Elas estavam completamente subtraĂ­daualidade, numa situação desalentadora. Davam uma melancĂłlica sensação de atraOswald de Andrade denunciava: “Estamos atrasados de cinqĂŒenta anos em cul

afurdados em pleno parnasianismo.” Graça Aranha, preocupado com a renovaçãmbiente literĂĄrio, dizia: “A nossa literatura estĂĄ morrendo de academicismo. NĂŁnova. SĂŁo os mesmos sonetos, os mesmos romances, os mesmos elogios, as messcomposturas que ouço desde os tempos da fundação da Academia.” O desejo de renovação, que se sentia em alguns setores, coincidia com o plano dvalcanti, jĂĄ em entendimentos com Menotti del Picchia (que era a figura de mstaque do grupo), Guilherme de Almeida e Rubens Borba de Morais, para se reasalĂŁo da livraria Jacinto Silva, uma exposição de quadros de vanguarda, existente

o Paulo. A iniciativa abriria caminho para experiĂȘncias modernistas, que poderiamvas raĂ­zes ao pensamento brasileiro. Mas, para isso, antes de tudo, era preciso ve

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sistĂȘncias conservadoras, que dominavam o ambiente cultural de SĂŁo Paulo.O plano inicial passou das conversas para os fatos. Tomou perspectivas grandio

ticularam-se outros elementos, em atitude de ofensiva, para romper esse estadsas. A coincidĂȘncia com o ano do centenĂĄrio do Ipiranga daria ao Movimento nificação de autonomia, nas letras e nas artes.

CONCRETIZAÇÃO DO PLANO

guns dias mais tarde, reuniam-se num salĂŁo do AutomĂłvel Clube, Paulo Prado, OsAndrade, Menotti, Brecheret e Di Cavalcanti, para planejarem, concretament

mana de Arte Moderna, em SĂŁo Paulo. Em vez da campanha modernista ntralizada numa livraria, decidiu-se dar-lhe base em ambiente de maior amplitra alcançar uma repercussĂŁo adequada. RenĂ© Thiollier, da direção do JornamĂ©rcio, de SĂŁo Paulo, tratou logo de entrar em entendimento com o administradoatro Municipal. Pagou pela semana, de 11 a 17 de fevereiro, a importĂąncia de 847s.Paulo Prado foi o primeiro a subscrever a lista das contribuiçÔes, arrastando contros nomes, para assegurar o financiamento da iniciativa. Planejou a colocaçãsas e poltronas a elementos mais destacados da sociedade paulista. Com a publicis jornais, formou-se um ambiente de intensa expectativa. Graça Aranha, figura pdiplomata da velha escola, ainda com um “saldo de juventude”, que por mo

ssoais tinha vindo a SĂŁo Paulo, foi convidado a ocupar a cena de teatro, cnferencista.

TEATRO MUNICIPAL

noite da inauguração, o Municipal transformou-se num dos maiores pontonvergĂȘncia da cidade. Filas contĂ­nuas de autos despejavam seus ocupantes pediaçÔes. Uma onda humana foi-se alinhando, lentamente, pelos corredores do tegalhando-se em ascensĂŁo pelas escadarias. A casa ficou repleta.*À hora indicada, sob um estrondo de palmas, cortados de silvos e alaridos, G

anha apareceu no palco, para fazer a sua anunciada conferĂȘncia, sobre a “EmtĂ©tica na obra de arte”.Ao conseguir uma clareira de silĂȘncio, o “ás” do modernismo brasileiro procla

m dicção grave, o “estado de insurreição nos domĂ­nios da inteligĂȘncia”.Declarou que era preciso vencer a estagnação em que se encontravam as letras

tes no nosso país. À medida que ele prosseguia a dissertação, condenando retoriq

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e nĂŁo correspondem mais Ă  Ă©poca em que vivemos, engrossava-se, tambĂ©m, a apartes. Vozes, nas torrinhas, começavam a cacarejar. O pĂșblico tomou parte a

s debates. A atmosfera foi se carregando. Graça Aranha, que jĂĄ tinha uma cperiĂȘncia com o insucesso de Malazarte, em 1913, no Teatro Femina, em Posseguia impassĂ­vel.Oswald de Andrade, que havia dado pelos jornais umas lambadas em Castro A

sponsĂĄvel por muita poesia ramalhuda, de resĂ­duos romĂąnticos, leu, debaixo de v

chos do seu romance inédito Os condenados.Os participantes do programa, apresentados no palco por Menotti del Picclamaram versos de sabor moderno, de própria autoria ou de poetas ausentes. MAndrade, com um sorriso mandibular, recitou alguns versos de índole satírica, a

Ă©ditos, da PaulicĂ©ia desvairada. SĂ©rgio Milliet teve tambĂ©m parte saliente no progrovocando, da parte do pĂșblico, relinchos e miados.No intervalo, fermentavam comentĂĄrios. Grupos, formados pelos corredores e sala

mar, reliam programas impressos. O impacto de impressÔes, nesse primeiro dia

mana, dava lugar a pontos de vista os mais diversos.

 VILLA-LOBOS

ando a maré de espectadores voltou aos seus lugares, a orquestra começou, tamse localizar junto à ribalta e demais filas do palco. Alinhou-se o conjunto

strumentos de corda. Depois, os instrumentos de sopro e tambores. Apareceuguida, o material das congadas: tamborim, puĂ­ta, ganzĂĄ, reco-reco, adufos engueiro. Violinos afinavam as cordas. Alguns mĂșsicos ainda corrigiam a posiçãodeiras. A platĂ©ia estava rumorejante.Villa-Lobos, ao aparecer no palco, de batuta na mĂŁo, foi entusiasticamente acolr palmas prolongadas. Piadas avulsas prenunciavam discordĂąncias.Villa aprumou-se. Deu inĂ­cio Ă  ouverture. Depois de um prelĂșdio de violinos, a m

elódica começou a tomar corpo. Ia e vinha, acompanhada de oboés impertinente

rinetes respondiam, ora aqui, ora acolå. Num momento de profundeza rítmica, o, das galerias, um acorde gaiato de gaitinha de boca, que intrometeu-se no tusical, glosando um scherzo. A platéia desatou-se em gargalhadas.A orquestra inalterada prosseguia, rompendo barreiras sucessivas, em ass

tumbantes pela sala. O piano esfaimado deglutia notas. Passou uma rajadaoloncelos, abrindo caminho para um desabafo sonoro de toda a equipe sinfĂŽnica.

Em seguida, ocupou a cena musical, num destacado solo, uma folha vibratórico. A torrinha não se conteve. Deu sinal de vaia maciça, com assobios e g

ulantes. Começou um ruidoso tropel pelas escadas. Jå não se ouviam mais os viol

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orquestra parou. Uma parte da platĂ©ia aplaudia freneticamente. Exigia a permanĂȘmaestro no palco. Estrugia um vozerio atordoante. O ruĂ­do era de abalar as parteatro.Villa estava desolado, com a incompreensĂŁo ambiente. Depois de 15 minutosvairamentos, a direção do Municipal mandou baixar o pano, para pĂŽr um ponto espetĂĄculo.

OUTRAS PARTES DO PROGRAMA

segunda parte do programa realizou-se dois dias mais tarde (15 de fevereiro)guĂŁo do teatro foram expostos 84 trabalhos modernos, de colecionadores ouĂłprios artistas participantes da Semana. Foi uma apresentação espetacular, de fornda inĂ©ditas para o pĂșblico paulista.

Uma massa anĂŽnima, de curiosos, se comprimia diante das obras expostas. O imps impressĂ”es dava lugar a comentĂĄrios mais diversos. Na opiniĂŁo de um aprecmero de espectadores, as peças exibidas nĂŁo passavam de espĂ©cimes de “generada”.A Ășltima noite (17 de fevereiro) foi mais calma. Com uma assistĂȘncia reduzida (

sa), Villa-Lobos se impĂŽs, integralmente, com um programa mais a gosto do pĂșbnata n.Âș 2, Farrapos, Kankikis, Kankukus.

CONSCIÊNCIA DO MOVIMENTO

ssada a fase de alvoroço, provocado pela Semana de Arte Moderna, começou-rmar uma lenta consciĂȘncia do Movimento. O impacto de idĂ©ias de vanguarda lançoelectuais em posiçÔes novas. ConseqĂŒentemente, verificou-se, em vĂĄrios setoresandono gradativo dos princĂ­pios, que sujeitavam letras e artes aos moldes formaoca.Iniciou-se um ciclo diferente para a conquista da expressĂŁo prĂłpria, em ruptura c

nformismo acadĂȘmico.A evolução era inevitĂĄvel. Com ela, desenvolveram-se formas embrionĂĄrias denascimento brasileiro. Um espĂ­rito jovem alastrou-se, com entusiasmo, por vcantos do paĂ­s, sob o impulso de ritmos construtivos. Foi um ponto de partida critores e artistas irem se buscando, aos poucos, com uma nova compreensĂŁomento. Embora nĂŁo tivesse exercido uma influĂȘncia imediata, o Movimento foradualmente, e com um alcance coletivo, um conjunto de idĂ©ias bĂĄsicas, coerentesealidade brasileira.

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OS DOZE APÓSTOLOS

uve quem, num artigo, citasse como os seus “doze apĂłstolos” os patrocinadoremana: Paulo Prado, Alfredo Pujol, Oscar Rodrigues Alves, Numa de Oliveira, Albnteado, RenĂ© Thiollier, AntĂŽnio Prado JĂșnior, JosĂ© Carlos de Macedo Soares, Martado, Armando Penteado, Edgard Conceição e Graça Aranha. MĂĄrio de Andotestou. Dizia que “estes senhores nĂŁo pregam religiĂ”es”, mas “patrocinam ap

ma plĂȘiade de artistas”. Os pregadores, na verdade, eram outros, Ă  altura da Semadecorrer do Movimento: Graça Aranha, Oswald de Andrade, MĂĄrio de Andrade, Ma

ndeira, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Álvaro Moreyra, Menottcchia, Prudente de Moraes Neto, AntÎnio de Alcùntara Machado, Sérgio Milliet e Sarque de Hollanda. Também tomaram parte ativa na cruzada modernista Re

meida, Rubens Borba de Moraes, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, TĂĄcito de Almeida, Plgado, Luiz Aranha Pereira e Yan de Almeida Prado.

REPERCUSSÕES

surto de rejuvenescimento nas letras alcançou dimensÔes nacionais. Os seus reflnetraram mesmo em camadas do mundo oficial, propiciando um climansformaçÔes na vida nacional.O Chefe do Governo, permeåvel às idéias modernistas, que traziam no seu cont

guns germens de renovação social, advertiu-se da Ă©poca. Introduziu leis que nvinham ao PaĂ­s, de modo a conciliar conveniĂȘncias e evitar impacto com as forçaquerda. O aproveitamento da inteligĂȘncia nos altos quadros do Governo (desatendpressĂ”es do coronelismo retrĂłgrado) mudou sensivelmente o panorama polĂ­tico.Os problemas fundamentais do PaĂ­s foram alcançando soluçÔes intuit

mpletadas, mais tarde, em esquemas de planificação técnica.Esse processo de transformação, nessas décadas, estå, direta ou indiretam

ado aos impulsos da corrente modernista de 1922. Os estudiosos da vida cu

asileira determinarão, com um senso de perspectiva histórica, os méritos que cabeovimento Modernista nessas mudanças de mentalidade nacional.

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ta

ĂŁo participei pessoalmente da Semana de Arte Moderna, em SĂŁo Paulo. Por isso, apenas procurei, com elemhidos, ressaltar o sentido de irreverĂȘncia que nela prevaleceu.

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 VIDA E MORTE DA ANTROPOFAGIA

Os que estudam, em grandes linhas, a nossa história literåria, dentro dos respecríodos, assinalam a falta de identificação das letras com as condiçÔes sostentes. Em séculos que se seguiram ao Descobrimento, o espírito da metrópole,

ma tirania purista, dominava as parcas elites cultas do País. Cultivava-se a línguém-mar, num normatismo rígido. Refundia-se o material usado, no propósitoocurar semelhanças com a literatura lusa. Copiavam-se os mesmos figurinos. Não h

m diĂĄlogo direto com o ambiente. Por isso, estivemos sempre desacertados njunturas sociais.Fomos Ă©picos, numa fase da vida colonial, em que nĂŁo havia nada de Ă©pico a exa

u canto o valoroso Lucidemo...” Fomos lĂ­ricos com a insurreição mineira. As tropasi ocupavam a ProvĂ­ncia. Faziam-se confiscaçÔes, deportaçÔes, esquartejamentoeres foi condenado a “morrer irrevogavelmente de morte de forca para semlgou-se a terra, onde ele deixou os “seus rastos infames”. Mas esses acontecimeo emocionaram os corifeus do arcadismo. Tudo isso deu, apenas, em loas Ă  Ma

ntil pastora, como nas Ă©pocas do “galante rimar”.Veio a IndependĂȘncia. Veio a RepĂșblica. O romantismo, com a força que tnsigo, arriscou alguns ensaios vacilantes, usando termos da linguagem falada do rcebia-se jĂĄ “um novo boleio de frase” (JosĂ© VerĂ­ssimo), com o abandono graduarmas castiças. Registraram-se algumas insubordinaçÔes gramaticais.Em ambientes histĂłricos que se sucederam, salvaram-se, certamente, dos depĂł

bliogråficos, alguns filÔes riquíssimos, tipicamente nossos. Mas essa literatura de ero correspondia à época em que se vivia. Uma boa porção de homens de l

oliferava, sem raĂ­zes prĂłprias, ainda ocupados com musas e anfitrites, que nada tĂȘr com a vida nacional.A reação modernista de 1922 desviou-se das formas habituais de expresroveitou alguns fragmentos folclĂłricos, com o uso de falas rurais. Desencadeou rte reação contra o mau gosto. Destruiu inutilidades. Mas os seus dividendos nas lnas artes eram ainda muito reduzidos. NĂŁo haviam trazido um pensamento novo, ccondensar as preocupaçÔes do momento.Com o retorno aos valores nativos, remexeram-se os mesmos temas nacio

fundidos em poesia ociosa. Deram-lhe uma aparĂȘncia modernista. Repetira

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uívocos fundamentais. Conseguiram, apenas, deformar, reestilizar os assuntos cm século anterior o haviam feito Alencar, Gonçalves Dias, no famoso ciclo do mùntico.De qualquer modo, não se pode deixar de reconhecer efeitos salutares da insurre

erĂĄria de 1922. Deu maior autonomia aos meios de expressĂŁo: libertou o idiomamaticalismos inĂșteis; desamarrou a poesia em versos livres, em vez de os mesarem metidos numa armação silĂĄbica, com rima obrigatĂłria; tambĂ©m com orn

sos e artifĂ­cios, como a chave de ouro. Mas, com exceção dos principais cebanos (Rio, SĂŁo Paulo etc.), nĂŁo exerceu influĂȘncia imediata nas letras e nas artes sto do PaĂ­s. As revistas que, nessa fase, condensavam idĂ©ias admirĂĄveis sobodernismo (EstĂ©tica, de Prudente de Moraes Neto e SĂ©rgio Buarque de Holandaxon e outras) tinham alcance pĂșblico reduzido. Era, por isso, de assinalado interesvulgação das teses de renovação que vinha sendo realizada, sistematicamente, upo de intelectuais ligados Ă  AgĂȘncia Brasileira de Divulgação de NotĂ­cias de SĂŁo PAs idĂ©ias rotineiras tinham fundas raĂ­zes no nosso sistema cultural. Esse mat

ulso, anÎnimo, discretamente planificado, alastrava-se, aos poucos, através nais, pelo Brasil, abrindo caminho para um trùnsito de idéias novas, com o abanadativo de princípios, que sujeitavam letras e artes aos moldes formais da época.Em resumo: o principal mérito da agitação de 1922 foi acordar o Brasil de um esestagnação. O ùnimo de renovação liquidou não somente um passivo de id

tiquadas, que predominavam nas letras e nas artes, como chegou mesmo a influrmação de um espírito novo, que veio ocupar a nossa órbita política.

 ANTROPOFAGIA

reflexos da Semana alcançaram os setores mais diversos. O impulso da caodernista (1922) deu lugar, alguns anos mais tarde (1928), a uma subcorrenteéias, na própria cidade de São Paulo. Essa agitação no mundo das letras, que sum um sentido ferozmente brasileiro, denominou-se Antropofagia. Foi um movim

imado de um espĂ­rito jovem, independente, burlĂŁo, negativista. Com sĂĄdaciosas, provocou uma derrubada de valores, de mera casca literĂĄria, sem cecudiu hierarquias inconsistentes. Assinalou uma Ă©poca.

SÃO PAULO

o Paulo, por esse tempo, era uma cidade em transição. Começava a mostrar o graalidade em seus aspectos externos. Alcançava, com ousadias técnicas, um níve

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tensão tentacular. Os impulsos de renovação, apregoados no Movimento de 1meçavam a ter reflexos na grande urbe tumultuåria. A cidade patriarcal, de vtrutura, ia cedendo lugar aos interesses manipulados sob a pressão do ponÎmico. Desfaziam-se preconceitos, de uma marcada austeridade, que rrespondiam mais ao movimento vertiginoso da vida moderna.Intelectuais da Paulicéia, interessados nos movimentos de vanguarda, conservaseus grupos. Manifestavam, em suas reuniÔes habituais, os diferentes modos de

m matĂ©ria literĂĄria, sob a tĂŽnica modernista. O esforço de compreender a sua Ă©scitava debates. Provocava divergĂȘncias. As discussĂ”es em mesas de cafĂ©, saladação, punham em evidĂȘncia problemas relacionados com inquietaçÔes de secial. Oswald de Andrade, com seu espĂ­rito buliçoso, agitava os diferentes grerĂĄrios. Avivava discussĂ”es fragmentĂĄrias. Aparecia, de vez em quando, na AgĂȘasileira (rua Xavier de Toledo), onde costumavam se reunir intelectuais e figlĂ­ticas dos mais variados matizes.

MÁRIO DE ANDRADE

ma noite, Oswald levou-me Ă  casa de MĂĄrio de Andrade, encaramujado na sua casrua Lopes Chaves. Tive ainda, outras vezes, oportunidade de visitar o poeta, tretanto descer a nĂ­veis de maior intimidade.MĂĄrio era comediante amĂĄvel. Guardava uma austeridade sob medida. A sombr

ofessor do ConservatĂłrio de MĂșsica estava sempre a seu lado. A sua erudição pegmaticamente nas conversas. Deliciava-se com o seu repositĂłrio de folclore. Tzado cuidadosamente em fichas. Era disciplinado nos seus esquemas de trabmem de arquivo, tinha uma atividade epistolar imensa. Multiplicava-se em cacrevia para todo o Brasil.MĂĄrio gostava de falar, em termos abstratos, das suas atribulaçÔes. Mas ele tin

da estruturada em ordem. Convivia num cĂ­rculo social restrito. Era solteirĂŁo, morigesem estroinices. Vivia pacatamente com as tias. Houve Ă©poca em que

ompanhava a procissĂŁo de vela na mĂŁo.— Parecia um anjo deste tamanho, vestindo a opa da Irmandade — contavaonista de SĂŁo Paulo.NĂŁo conheci MĂĄrio como eu teria querido, com o seu enorme potencial poĂ©tico. Owald tinha de natural, com reflexos desordenados de sua personalidade, Mvelava precisamente o contrĂĄrio. Era medido, controlado, fechado.Entretanto, os que privaram com ele, num trato mais Ă­ntimo, diziam que, em roda

migos, era folgazĂŁo e jovial. Margarida Guedes Nogueira (nossa cĂŽnsul geral em M

56-1959) assegurou-me que, nos bailes fechados da SAM (Sociedade de

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oderna), Mårio puxava cordão, como um sambista de morro. Adorava a graçola picm um ambiente jocoso, esvaziava-se em risadas.

OSWALD DE ANDRADE

wald era diametralmente diferente. Figura de singular complexidade. Tipo de palastemido, inconformado diante de um mundo em plena expansĂŁo, servido por umae nĂŁo correspondia Ă s suas exigĂȘncias. Por isso, provocava. Atacava. Defestentava controvĂ©rsias. Elogiava. Deselogiava. Era ĂĄvido de renovaçÔes. Deanifestos literĂĄrios. Abria caminho aos mais jovens. Emprestava idĂ©ias, com um tapersivo. De vez em quando, saĂ­a do seu Cadillac, para ler versos dos outros em amigos. Era exuberante de substĂąncia humana. Tinha uma vida sacudida

enturas. Quando ganhava algumas causas, das questÔes complexas de herastava em lautas celebraçÔes, na RÎtisserie Sportman.Na fase que se seguiu aos agitados dias da Semana, Oswald não ocultava

açÔes (Ă s vezes violentas) em debates sobre coisas de arte moderna. Mas, depoa uniĂŁo com Tarsila, a pintora, com uma deliciosa feminilidade, conseguiu habilmutralizar um pouco os seus Ă­mpetos polĂȘmicos. Em vez de agressividade cussĂ”es, Oswald, com uma sensibilidade intuitiva, foi se amoldando ao diĂĄidenciava os seus ĂȘxitos orais em anĂĄlises persuasivas.Algumas vezes, em pequenos grupos, Ă­amos ao palacete da alameda BarĂŁ

acicaba, onde o casal costumava receber amigos e figuras intelectuais. O velho se tornando conhecido, como um pequeno centro de agitação literĂĄria. NeuniĂ”es, discutiam-se, geralmente, os critĂ©rios bĂĄsicos do modernismo. A freqĂŒĂȘtadamente nos dias estabelecidos para um tipo de open house, era, na sua mrte, composta de gente jovem. Incentivavam-se na ocasiĂŁo programas adequados ambiente existente.Os recitais de mĂșsica clĂĄssica ou de ritmos improvisados eram geralmente executlo pianista Souza Lima. Diziam-se poemas em dimensĂ”es novas, de um sabor inĂ©

gu, em plena adolescĂȘncia, ainda sob a carinhosa tutela de Tarsila, era presençados festejada. Remexiam-se, Ă s vezes, velhos repertĂłrios de anedotas, para dar mor ao ambiente.Uma vez, Oswald foi buscar a cozinheira para mostrar, na sala, como se dan

arimbondo. A mulata tirou o avental e remexeu-se toda, dando nĂ­tida impressĂŁrpo picado. “Ele faz assim. E depois assim.” Dulce, a filha de Tarsila, de uns olhos sonhadores, recĂ©m-chegada da S

quivava-se, as mais das vezes, de participar dessas reuniÔes. Preferia ficar sozinha

a privada, mexendo distraidamente as teclas do piano. O velho Kaiserling es

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dissimulavelmente enamorado dela. Durante a sua estada em SĂŁo Paulo, apaase todos os dias no conhecido solar.

RESTAURANTE DAS RÃS

ma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar um grupo de amigos, que freqĂŒentaa casa, a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana. Especialidade: rĂŁrçom veio tomar nota dos pedidos. Uns concordaram em pedir rĂŁs. Outros eriam. Preferiram escalopinis.Quando, entre aplausos, chegou o prato com a esperada iguaria, Oswald levanto

meçou a fazer o elogio da rĂŁ, explicando, com uma alta percentagem de burutrina da evolução das espĂ©cies. Citou autores imaginĂĄrios, os ovistas holandeseoria dos homĂșnculos, para provar que a linha da evolução biolĂłgica do homem, nanga fase prĂ©-antropĂłide, passava pela rĂŁ — essa mesma rĂŁ que estĂĄvamos saboretre goles de um Chablis gelado.Tarsila interveio:— Com esse argumento, chega-se teoricamente Ă  conclusĂŁo de que estamos s

ora uns... quase-antropĂłfagos.A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a um

vertido de idéias. Citou-se logo o velho Hans Staden e outros estudiosostropofagia:

“LĂĄ vem a nossa comida pulando!” Alguns dias mais tarde, o mesmo grupo do restaurante reuniu-se no palacetameda BarĂŁo de Piracicaba para o batismo de um quadro pintado para TatropĂłfago.Nessa ocasiĂŁo, depois de passar em revista a exĂ­gua safra literĂĄria, posterimana, Oswald propĂŽs desencadear um movimento de reação genuinamente brasidigiu um Manifesto. O plano de derrubada tomou corpo. A flecha antropofĂĄ

dicava outra direção. Conduzia a um Brasil mais profundo, de valores a

decifrados.A Antropofagia apontou seus rumos: debaixo de um Brasil de fisionomia extevia um outro Brasil de enlaces profundos, ainda incĂłgnito, por descobrir. O movimertanto, seria de descida Ă s fontes genuĂ­nas, ainda puras, para captar os germennovação; retomar esse Brasil, subjacente, de alma embrionĂĄria, carregadosombro e procurar alcançar uma sĂ­ntese cultural prĂłpria, com maior densidadnsciĂȘncia nacional.

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CICLO GENTIO

m fases que se sucederam, o grupo empenhou-se num reestudo do ciclo gezendo em anĂĄlise resĂ­duos clĂĄssicos a fim de melhor compreender o sentido totĂȘcomer o seu semelhante, isto Ă©, fazer, em disposiçÔes mĂĄgicas, uma absorção

rças em comunhão incruenta. O índio, antes do arado, era feliz na sua dignimana. Sans roi et sans loi [Sem rei e sem lei] (Montaigne). Mas chegaram

egoeiros da catequese. Mandaram perguntar, em Roma, “se o gentio tambĂ©mnte”?O nosso indĂ­gena foi obrigado a crer; ser devoto; acompanhar as liturgias da Igetrar as leis da Boa RazĂŁo. Perdeu aquela inocĂȘncia contente de que nos fala Vm essa transposição cultural, aquele indivĂ­duo de instintos primĂĄrios, “impacientjeição” (Vieira), transformou-se num catecĂșmeno submisso. Desvalorizou-se mildade.

CIVILIZAÇÃO TÉCNICA

Somos prisioneiros de uma civilização tĂ©cnica. Perdemos contato com a tecisamos — dizia Oswald, em Ă­mpetos de um nacionalismo transbordante — deasil afastado das calmarias. O homem branco chegou, trazendo a gramĂĄtica lusralho e a idĂ©ia do pecado. Essas trĂȘs sementes criaram profundas raĂ­zes. Degener

formas daninhas. Quase que acabam com o Brasil.

 A “DESCIDA” 

Descida agitou os araias literĂĄrios de SĂŁo Paulo. Formou barricadas. Entrou em com grupos da velha escola, numa linguagem agressiva e impiedosa. A va

tropofĂĄgica imunizava algumas atitudes destemidas. FlĂĄvio de Carvalho, por exemalizou a sua ExperiĂȘncia NĂșmero 2, em sondagem psicolĂłgica da multidĂŁo, nocissĂŁo de Corpus Christi. Quase foi linchado.O interesse intelectual do movimento fazia-se jĂĄ sentir em diversos setores.cutido nas livrarias e pelos cafĂ©s da rua Quinze. O teatro negro, que Di Cavalimava, com um grupo da nova escola (AntĂŽnio Bento, MĂĄrio Pedrosa, LĂ­vio Xanio Melo e outros), remexia idĂ©ias que foram se instalando na Ăłrbita do modernim um tempero de sĂĄtira social.

Quando Berta Singerman, numa das suas andanças declamatórias pelo B

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unciou o seu novo recital de poesia, no Teatro Municipal, a Antropofagia lambĂ©m, em vistoso cartaz, no mesmo dia, um recital literĂĄrio da negra Sorunominada “a nossa diseuse”.*

DIVULGAÇÃO NOS ESTADOS

m maio de 1928, apareceu a Revista de Antropofagia. O mensĂĄrio servia de cartĂŁita, para contato com nĂșcleos intelectuais de vanguarda, nos estados: com o gneiro, de A Revista, de Belo Horizonte, e da Verde, de Cataguases; a Revista do NRecife; a MaracajĂĄ, de Fortaleza; a Madrugada e a Revista do Globo, de Porto Al

c. Por sua vez, a AgĂȘncia Brasileira, atravĂ©s da sua rede de jornais por todo o vulgava, com freqĂŒĂȘncia, sĂșmulas dos acontecimentos no mundo das letras.

REAJUSTAMENTOS

pois de um primeiro perĂ­odo, ainda em fase de transição, viu-se que o movimtropofĂĄgico necessitava de reajustamentos na sua orientação. Em vez de piadiseiros, em torno de assuntos em debate, o grupo deveria fixar-se em anĂĄlises rias. Achou-se, tambĂ©m, que seria conveniente captar maior interesse pĂșblico paĂ©ias bĂĄsicas do movimento. A sua divulgação teria, naturalmente, maior alc

ravés de algum órgão idÎneo da imprensa paulista.Rubens do Amaral, que chefiava a redação do Diårio de São Paulo, concordou

der, para essa finalidade, uma pĂĄgina inteira de seu matutino Ă s quinta-feiragina ficou, desse modo, conhecida como ĂłrgĂŁo da Antropofagia Brasileira de Letrade agosto em diante).

PEQUENAS HOSTILIDADES

ós a publicação de Macunaíma (um dos trabalhos mais notåveis do modernismo, noca), Oswald procurou persuadir Mårio a participar do movimento. As idéias do pPaulicéia desvairada ajustavam-se perfeitamente aos esquemas antropofågicos.

årio desinteressou-se pelo convite. Sentia-se satisfeito com a popularidade queube no inventårio da Semana. Tinha, além disso, fortes implicaçÔes de amizade

ma confraria de admiradores. Preferia ficar em sossego. Afastou-se, aos poucos

upo.

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Oswald, ao contrårio, queria agitação. Vitalizava o movimento com um ùnimo satrmentava malícias. Criava confusÔes, quando convinham. Uma vez, às escondspingou a mitra verde-amarelista. Menotti saiu a campo. Chamou Mårio (que ha com a coisa) de Nilo Peçanha da Literatura Nacional. Saíram bodocadas em pad

sos. Osvaldo Costa agitava o mundo das letras com os seus famosos moquĂ©ngina das quintas-feiras tornou-se notĂłria pelas suas irreverĂȘncias. Um dia, publ

m destaque, uma citação do Novo Testamento:

“Em verdade, se fizerdes o que vos digo, no dia do JuĂ­zo estareis comigo no ParaĂ­sA citação levava o seguinte tĂ­tulo: SUBORNO. Rubens do Amaral perdeu a calma. Pra acabar definitivamente com a pĂĄgina. Cresciam as devoluçÔes de jornais,otesto contra as notas que se publicavam.

TRÊS CICLOS

cerrou-se, dessa forma, o segundo ciclo do movimento. O primeiro, com a Revisttropofagia, teve apreciåveis proveitos para tomadas de contato. Penetrou em alcleos jovens que agitavam as letras nos estados, com anseios de renovaçãgundo assinalou-se pela sua agressividade. Demoliu alguns elementos que, sem senguardistas, figuravam na cena dos acontecimentos, numa ruidosa confusãoores; na fase final (terceiro tempo), sem comichÔes de publicidade, começou-nsar, com mais serenidade, numa reestruturação de idéias, de modo a sa

sultados possĂ­veis.

CONGRESSO

wald era de opiniĂŁo que se precisava firmar postulados, para conduzir o movimm novos critĂ©rios. Para isso, cogitava da preparação de um retiro de alguns diaszenda de cafĂ© de Tarsila, de ambiente tranqĂŒilo. De acordo com as conclusĂ”es a egasse o grupo, seria oportunamente convocado um congresso, de ressonĂącional, para debates de teses.O secretĂĄrio de Educação do Estado do EspĂ­rito Santo (nĂŁo me lembro o nome),

sistia, casualmente, a essa formulação de planos, entusiasmou-se pelas idĂ©ias deasil mais autĂȘntico”. Sugeriu que o Primeiro Congresso Mundial de Antropofagia falizado em VitĂłria. Os seus membros seriam hĂłspedes do estado. Marcou-se data realização desse encontro. Oswald propĂŽs que fosse a 11 de outubro (o Ășltimo d

mérica livre. Dia seguinte chegou Colombo...).

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CLÁSSICOS DA ANTROPOFAGIA

m tardança, deram-se início às reuniÔes para a preparação de teses a serem discuCongresso. Remexeram-se os clåssicos da Antropofagia com o fim de catar resí

utrinårios. E também para apoiar, com sedimentação erudita, as teses em estudo.Thevet, com seiscentas notas de interesse etnogråfico; Jean de Levy, que vei

asil com Villegaignon; Hans Staden; Henry Koster; Karl von den Steinen (estudo

bos do Xingu); Claude d’Abbeville; Yves D’Evreux; Taunay; Saint-Hilaire; KĂŒnberg; Humboldt Capistrano de Abreu (falares dos CaxinauĂĄs); glossĂĄrios de lĂ­ndĂ­genas, de Martius, traduzidos por Teodoro Sampaio; EmĂ­lio Goeldi; Bardrigues; Couto de MagalhĂŁes. E por fim, como remate dessa enumeração de autstres, o grande Montaigne (Les Essais, De Canibalis) e Jean-Jacques Rousseau.

 â€œGRILO” 

ocurou-se, de inĂ­cio, firmar o conceito antropofĂĄgico do nosso PaĂ­s. “O Brasil eralo.” A idĂ©ia de posse contra a propriedade veio tomando evidĂȘncias de lei. Podia-se fa

ova dos nove com a nossa História: as demarcaçÔes do Tratado de Tordesilhas nuram observadas. O loteamento do Brasil, em capitanias hereditårias, não assegurgistro de propriedade aos respectivos donatårios. O estatuto do uti possidetis

ais força que documentos pontifícios e outras legitimaçÔes de propriedade.

MATERIAL

temas iam sendo planificados, de modo a proporcionarem, no seu conjunto, uma s realidades brasileiras. Procurou-se, ao mesmo tempo, descobrir quem estaria

ndiçÔes de estudar assuntos de cada tese, num desdobrante conveniente, sem pevista o seu aproveitamento na organização de uma “bibliotequinha”.

UMA SUB-RELIGIÃO NO BRASIL*

wald de Andrade, na sua versatilidade, Ă s vezes com lampejos geniais, mas tamtras vezes com destemperos incrĂ­veis, estava empenhado, num fecundo perĂ­od

ação literåria, na formulação das bases teóricas de dois assuntos: Uma sub-religiã

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asil e a Suma AntropofĂĄgica.Para a primeira tese, procurava ele fundamentos de unidade para uma seita religicamente brasileira, isto Ă©, constituĂ­da com o substratum de crenças dos trĂȘs grciais que formam os alicerces Ă©tnicos do Brasil. Esperava, dentro desse esqutruturar um sistema derivado de cultos fetichistas, de apelo Ă s forças mĂĄgicatureza. Tinham parte marcante no plano os atributos ocultos de seres e coisas, deum clima de surrealismo religioso. TambĂ©m, as relaçÔes subjetivas com espĂ­

otetores, como o TatĂĄ de Carunga, e o santoral afro-catĂłlico, venerado em terreiroacumba. A invocação Ă s forças totĂȘmicas seriam feitas em ritmo de batuque, erpolaçÔes de termos cabalĂ­sticos, para preservar uma parte do mistĂ©rio.O segundo assunto, Suma AntropofĂĄgica, seria de natureza essencialmente polnsistiria em uma sĂ©rie de notas e advertĂȘncias que formariam um Tratado de Goveo Ă©, como seria, no Brasil, um governo de formação antropofĂĄgica, capaz de solucintro de irrestritas conveniĂȘncias nacionais, os seus problemas de uma desvamplexidade. Creio que Oswald nĂŁo chegou a deixar nada escrito a esse respeito.

SUBGRAMÁTICA

Subgramåtica teria em vista, acima de tudo, a recuperação da simplicidade do idimodo a libertå-lo da sua complicada engrenagem pedagógica. Gastav

dentemente, um precioso tempo no estudo de meros bizantinismos.

Posteriormente, na Ă©poca do ConvĂȘnio OrtogrĂĄfico, em Lisboa, escrevi sobre o esm que alguns gramĂĄticos deixaram a desditosa lĂ­ngua portuguesa, remendadtificialismos inĂșteis. Carregou-se, por exemplo, o casco do vocĂĄbulo com acentoda espĂ©cie: circunflexos, enfeites graves e agudos e atĂ© de tremas germĂąnmpletamente desnecessĂĄrios. O ConvĂȘnio, em suas mĂșltiplas resoluçÔes, reduziuemplo, os domĂ­nios da letra K. O H era uma letra assexuada. Entrava graciosams composiçÔes lĂ©xicas, sem lhes causar alteraçÔes. Em alguns casos, ajudaprimir uma certa linhagem etimolĂłgica ao vocĂĄbulo.

Prevalecia tambĂ©m a tendĂȘncia de fonetização, atĂ© de nomes prĂłprios. Shangava ortografia arrasante, parece cidade demolida da sua arquitetura usual de lem a fĂșria foneticista, iam mutilando o que encontravam pela frente. O idioma so

ma invasĂŁo de gafanhotos. Pelaram tudo. Bahia, a pedido, ficou com o h, que se us tempos de TomĂ© de Sousa. Cingapura e Cuaral, com c, davam a aparĂȘnciades castradas.No velho baĂș da lĂ­ngua portuguesa, enriquecido com palavras autĂȘnticas da pular, de raĂ­zes no folclore nacional, encontram-se hoje, em alarmante mis

lavras de arranjos postiços, fabricadas com mau gosto, como estórias, bifeste

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ontecĂȘncias e outras bobagens.

CEM PALAVRAS

m anexo à tese da Subgramática, figurava um “selecionado” de cem palavras de sasileiro. Enumero algumas delas:

Mironga, uma das palavras mais bonitas do idioma. “Mironga de moça branespĂ©cie de charme indecifrado, com algumas misturas de malĂ­cia e encanto;Puçanga, Mandinga, Banho de cheiro;Pacoema (marĂ©s de pacoema);Canarana (“teu corpo alongado de canarana”, de R. B.);Jongo, Batuque, Bate-coco, Boi Catira, Bumba-meu-boi;Grupo do cata-piolho, África, Elefante;Lobisomem, o Berra-boi, CasarĂŁo mal-assombrado, a rua de trĂĄs;LĂ©gua, que sugere a distĂąncia rural, LatifĂșndio, Taipa, Tapera;PĂąntano, Sapo, Lama, Alagadiço, Febre, MalĂĄria, SilĂȘncio, Macumba;Sombra (“Estou com os olhos entupidos de escuro”, de R. B.);TĂąmara (“O teu corpo de tĂąmara macia”, de R. B.);Fundo do Mato, Selva, MistĂ©rio, Rei Congo, TatĂĄ de Carunga;Fazer querzinho, Doizinho de experimentar corpo, Estarzinho;

Mussangulå; revela uma posição de espírito que condensa problemas pessnuma acomodação surrealista. E um estado de aceitação, de instinto obssubconsciente, mågico, pré-lógico. Renuncia compreender claramente as coEspécie de preguiça filosófica, de moldura brasileira: estou de mussangulpalavra entrou para o idioma, significando uma defesa de espírito, que não quenquadrar em preceitos. Portanto, contra tudo o que é coerente, silogísgeométrico, cartesiano.

BIBLIOTEQUINHA ANTROPOFÁGICA

ntro das realidades brasileiras, o plano da Bibliotequinha foi se enriquecendo coregação de novas teses e ensaios. Resolveu-se que o primeiro volume da série ia

acunaĂ­ma, incorporado Ă  Antropofagia pelo sentido grandioso da obra. TambĂ©m Crato foi incluĂ­do nessa relação. Outro volume seria o Sambaqui ou restos de coznstituĂ­do do “Manifesto” de Oswald de Andrade, “MoquĂ©ns” e “Pontas de flechavaldo Costa; seleção de artigos publicado na Revista de Antropofagia (prim

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ntição) e na pågina semanal do Diårio de São Paulo (Eneida, Pedro Nava, Aachado, Jaime Adour da Cùmara, Luís da Cùmara Cascudo, Geraldo Ferraz, Nebajara, Clovis de Gusmão, Murilo Mendes, Joaquim Inojosa).

LIVRO DO NENÊ ANTROPOFÁGICO

nstaria de uma coleção de cantigas de ninar (repertĂłrio de Elsie Huston), embalode e cata-piolhos, seguidos de um estudo sobre a formação da inteligĂȘncia do asos de assombração, o Sapo-Boi, Bicho do Fundo).Estava, tambĂ©m, em organização o volume sobre a Escola Brasileira, com uma revs programas de ensino, sob critĂ©rio essencialmente utilitĂĄrio (supressĂŁo de csnecessĂĄrias na vida prĂĄtica); livros de Festas e folguedos; compilação resumidrraçÔes sobre festas e folguedos existentes no Brasil; capĂ­tulos sobre danças regiom as caracterĂ­sticas de alguns tipos rurais; qualidades tĂ­picas do andar do neecĂąnica dos movimentos e “passista” de frevo: certas figuraçÔes, enxertadaprevisto nessa dança, exigem uma enorme agilidade, com um corpo de mola. Basena tĂ©cnica da Capoeira. Os passos de rua, arrastados ou os gingamentos, para d

para trĂĄs, de pernas arqueadas, fazem-se na ponta dos pĂ©s. Por isso, um estudiossunto observou, com razĂŁo, que o “passista” de frevo Ă© mais propriamentegitĂ­grado que um plantĂ­grado.

BERRO

riam, também, feitas algumas consideraçÔes sobre o berro, como um sistemedidas de superfície de Antropofagia. Os limites de uma determinada årea se fixa

m pontos, onde pudessem ser ouvidas as Ășltimas ressonĂąncias do berro. Nem todalavras tĂȘm o mesmo raio de penetração ao ar livre. Diferem pela maior ou mensidade de vibração de sons. O berrador oficial que, para medir uma ĂĄrea, silab

m penetrante voz alta, a palavra murucutu teria naturalmente um alcance menorm uma palavra oxítona em a ou em i: Taperebå. Ouricuri. O contorno da åreedição seria determinado pelos pontos alcançados pelo berro.

ÍNDOLE PACÍFICA DO GENTIO

tro estudo versaria sobre a Ă­ndole pacĂ­fica do gentio. Em apoio dessa tese hĂĄ

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poimento singular de um dos nossos indigenistas. Conta ele o seguinte:O chefe de uma tribo, por atributos sobrenaturais, tinha poderes sobera

arcadamente legítimos dentro de uma determinada årea (por exemplo, a situada eis rios confluentes). No momento, porém, que o grupo ficava desgostoso com o cor uma conduta tirùnica ou por não haver cumprido o que prometeu) os componeclã não iam tramar uma revolução ou sublevação para usurparem o poder. Nada d

da a tribo, simplesmente, se deslocava para outro lugar, fora dos limites de

isdição, e deixava o chefe sozinho.

LIBIDO BRASILEIRA

tra tese seria sobre a libido brasileira (histĂłrias do sexo cifrado). Constaria detudo fundamentado sobre o boto, uma espĂ©cie de dom JoĂŁo da AmazĂŽnia. Por ondssa, deixa um clima de suposiçÔes.— Quem foi?— Foi o boto.Imunizou o artigo 266, do CĂłdigo Penal. HĂĄ, tambĂ©m, ĂĄrvores com atributos mĂĄg

oça teve um filho sem conhecer homem. Curandeiro, na lua nova, fica espiando a noite. Colhe ervas de distorcer quebranto. Prepara puçangas para seduçÔes femina amuletos com força de sortilĂ©gios (olho de boto, esporĂŁo de alencĂł). Ficam aqĂŒestradas pela bruxaria.

QUADRO RURAL BRASILEIRO

nge, no interior, sente-se o drama silencioso do homem. O horizonte traça os limseu mundo. O espaço físico estira-se ante os seus olhos cansados. As distùnc

atem.Passam os tempos lentos. A fisionomia rural continua a mesma, com terras de b

ndimento. A saĂșva tomou conta das lavouras. PopulaçÔes resignadas se acomom plano de deixa-estar. Caboclo, subnutrido e apĂĄtico, senta-se Ă  porta do ranchonversa com a mulher. Pesa o silĂȘncio nos tiçÔes apagados.Ergueram uma cruz na entrada da vila, para espantar o diabo. LĂĄ adiante, um m

m uma casinha no colo. De tarde, o sol se derrete nas vidraças. Voltam de longergueiros, recolhendo as estradas.

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 ĂREA POÉTICA DA ANTROPOFAGIA

gumas das mencionadas teses, tratadas nas suas vinculaçÔes regionais, para alanhecimentos sobre o Brasil, foram se agrupando dentro de um plano. EsboçarammbĂ©m dentro da mesma linha, alguns ensaios avulsos que delineavam, em fosordenadas, a ĂĄrea poĂ©tica da Antropofagia. Alcançamos, afirmĂĄvamos, um estadegração das nossas coisas, com uma consciĂȘncia de maturidade. Somos um Brasi

s medidas, de contornos fortes, com alma compósita, sem demarcaçÔes étnicas,m largo quadro de solecismos sociais. Um Brasil de dramas obscuros coa-sereditariedade:

Mulher de sexo soltofoi morar na rua de trĂĄs

Temos uma geografia do mal-assombrado, de mandinga e mato, com puçang

nhos de cheiro. De noite, na fazenda, ouvem-se as queixas do monjolo: bate-pilĂŁoMove-se, em silĂȘncio, o mundo dos fantasmas. Berra-boi espanta o lobisomcorrem vultos atrĂĄs das sacristias. Nas ĂĄreas rurais, em noites de lua cheia, apareagens, neblineiros de assombração. A ĂĄrvore do enforcado secou. Cachorro mam dono, uiva sozinho, nas bandas do cemitĂ©rio. Diabo derreteu os dentes. Em sĂĄbbruxa, mula-sem-cabeça sobe a serra, ver o Brasil como vai.O drama da escravatura espalhou no PaĂ­s um sabor amargo. Negro chegou em l

marrados em coleiras de ferro. Catou mineração para el-Rei. Trabalhou de sol a sol

vouras. Apalpou o Brasil com as mãos. Assistiu, sem saber, aos diferentes ciclossa História. Em nossos quadros sociais fez papel de sombra. Nos armazéncravos, era escolhido pelo toque da bunda. (Negro de bunda fina era mais caro.)

Trazia em baixo-relevoinscriçÔes de chicote no lombo (R. B.)

Raça domingueira, caminha em ritmo diferente, com pernas elåsticas.

ngamentos do corpo arrastado, inventou o seu passo de dança. Depois coçou o piaz mĂșsica. Adoçou, desse jeito, a alma do Brasil.Temos regiĂ”es de terra longe, com ĂĄreas de magicismo. Sesmarias sem dono, o

ve o indígena, no seu estado de natureza. Os seus deuses moram na floresta. Convzinho com as årvores.Tudo isso tem fundas raízes na terra, de sabor próprio e sem misturas. Teerentes regiÔes de idade social, com mundos mågicos e obscuros. Dispomoatéria-prima inesgotåvel, para extraçÔes de ingredientes poéticos. Um Brasil chei

rnura, com embalos de rede e cata-piolhos: essa Nega FulĂŽ. Um Brasil que se divs ruas com o bumba-meu-boi; Brasil do Ascenso Ferreira: hora de trabalhar? Perna

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Alguns problemas regionais resolvem-se às vezes com soluçÔes de milagre. asião, bateram as febres no Cearå. Começou a morrer gente. Padre Cícero, enandou soltar foguetes para espantar os micróbios. O curioso é que tudo deu certo.

 A DEBANDADA

tavam os trabalhos, nessa altura, dentro de um esquema de preparação do Congre ia se realizar em Vitória, jå com data marcada, quando surgiram alguns imprevie vieram perturbar o seu ritmo. Desprevenidamente, a libido entrou de mansinhraíso antropofågico. Ocorreu um changé des dames geral. Um tomou a mulhetro. Oswaldo desapareceu. Foi viver o seu novo romance numa beira de praia,ediaçÔes de Santos. A reação emocional se processou em série, com v

sajustamentos de ùmbito doméstico.Com a emoção dos acontecimentos, ninguém pensou mais no Congresso em Vitórbliotequinha ficou em nada. E a Antropofagia dos grandes planos, com uma forçameaçava desabar estruturas clåssicas, ficou nisso... provavelmente anotada ituårios de uma época.

Depois de uma debandada geral, resolvi também deixar São Paulo. Reuni o qussuía e traduzi tudo em dólares, ainda na base de oito mil e cem, pouco ante

aque da Bolsa de New York, em outubro de 1929, e fui para o exterior.Viajei dois anos, sem parar. SaĂ­ pelo porto de Santos, num cargueiro japonĂȘs, e eBrasil por GuajarĂĄ-Mirim, depois de haver descido (nove dias em lombo de mul

ngas bolivianas.Em Paris, encontrei-me com PlĂ­nio Salgado. Recapitulamos cordialmente algussagens de SĂŁo Paulo. Contou-me que, em Roma, havia estado com Mussolini. O e assinalara, numa dialĂ©tica totalitĂĄria, o seu ponto de vista que “o intelectual jove estar a serviço do seu paĂ­s”.

Mas essas idĂ©ias, no plano polĂ­tico, nĂŁo me interessavam. Nem tampouco as da osta, na Ăłrbita vermelha. Eu acabava de fazer uma viagem no Transiberiano (11 trem) e nĂŁo fiquei nada estusiasmado com o que havia visto na velha RĂșssia. M

séria e um rigoroso controle policial em tudo. Em duas outras viagens, nessa meta, em 1934 e 1938, a situação jå era um pouco diferente. Mas isso é capítulo à pa

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ta

Os capítulos “Sub-Religião no Brasil” e “Subgramática”, que fazem parte deste ligeiro ensaio, foram publicados jcuido do A., na primeira parte do livro Samburá.

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MAGICISMO DO UNIVERSO AMAZ NICO NUM POEMA

m 1921, fazia eu, em Belém, o quarto ano de Direito, depois de escalar em ouculdades do meu ciclo universitårio. A cidade era agradåvel, com sua casaria debullas beiras do grande rio. Sobrados, de tipo colonial, revestidos de azulejos, estiravao longe das avenidas Nazaré e São JerÎnimo, dentro de amplas åreas ajardina

mbravam os velhos tempos de aristocracia reinol.Para os lados do porto, estendia-se a fieira de armazĂ©ns, de construção cĂșbica,

m movimento ruidoso de cargas e descargas. As velas coloridas do Ver-o-peso, tovelo do rio, desenhavam paisagens espetaculares.À noite, no terraço do Grande Hotel, debaixo de copadas mangueiras, reuniam-s

upos habituais. O círculo de conhecidos ia-se alargando. Emendava-se, às vezes, tras rodas, que se iam formando nas largas calçadas do hotel. Discutia-se de ttravam em comentårios fatos correntes. Agitavam-se opiniÔes, notadamente no ca

erĂĄrio. Em geral, os modos de ver, nesses assuntos, arrematavam-se em blagues. ssas conversas, de calor comunicativo, ficava sempre um resĂ­duo de bom senso,

sinalava o pesado artificialismo em coisas que se publicavam.Publicava-se uma poesia chorona e sem graça, com alguns reflexos líricoelectualismo, sem direção, tinha efeitos estéreis. Um jornal local inseria nas unas um longo ensaio sobre o Preciosismo. Que tínhamos nós a ver com o famtel de Rambouillet, jå bastante ridicularizado no seu tempo?Essa anarquia literåria, em mistura com figurinos antiquados, dava luga

mentĂĄrios satĂ­ricos do grupo. Acentuava-se, cada vez mais, a necessidade detorno aos valores nativos. Fazia-se o inventĂĄrio folclĂłrico das coisas do Amazonas,

m Ăąnimo de renovação. Passavam-se em revista os contos da onça, histĂłrias do “auda”, casos de assombração. Descobriram-se, no fundo de cada lenda, aspectoisprudĂȘncia indĂ­gena, sobre a caça parida, a Ă©poca das desovas etc. Para dar idĂ©reza do acapu, por exemplo, diziam que a ĂĄrvore, cem anos depois de cortada, sela primeira vez, uma ferroadinha na casca. EntĂŁo exclamou:— Ai que me cortaram!Dessas conversas errĂĄticas, em reuniĂ”es que nĂŁo tinham outro objetivo que o sim

azer de estar-junto, fui sedimentando conhecimentos fragmentĂĄrios sobre a Amaz

rendi, também, em minhas viagens de canoa, a sentir intensamente esse ambi

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de casos do fabulĂĄrio indĂ­gena se misturam com episĂłdios da vida cotidianagicismo anda de mĂŁos dadas com fenĂŽmenos da natureza.

 ANTÔNIO BRANDÃO DE AMORIM

s domingos, quase sempre, ia à casa de meu amigo Alberto Andrade Queiroz, quoporcionava publicaçÔes modernistas, recebidas da Europa, notadamente asovimento Ultraísta, da Espanha.Uma ocasião, mostrou-me trabalhos avulsos de AntÎnio Brandão de Amorim (126), de um forte sabor indígena. Foi uma revelação. Eu não havia lido nada licioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha às vezes uma grandiosidade bíblicaNo seu mundo as årvores falavam. O sol andava de um lugar para outro. Os filho

ovĂŁo levavam, de vez em quando, o verĂŁo para o outro lado do rio.Os nheengatus colhidos, genuinamente, nas malocas do alto Urariquera eram de ternecedora simplicidade. Nos diĂĄlogos afetivos, usavam o diminutivo dos vetarzinho, dormezinho, esperazinho etc. Certas histĂłrias, sobre temas merammanos, eram tratadas com um desusado tempero lĂ­rico. Por exemplo: “A mendeu os olhos pra ele.” “A luz da lua dançava nos seus olhos.” A mĂŁe disse pra fĂŁo olhes tĂŁo de doer nos olhos dele.” Essas leituras me conduziram a um novo estado de sensibilidade. Alar

stintivamente a visĂŁo que formava das coisas. Abeirei-me das falas rurais, de

liciosa formação sintåtica. Na sua inocente naturalidade encontravam-se, certamrmens de poesia pura, descongestionada de acessórios ornamentais. mpreender, aos poucos, que cada idéia devia ter o seu encadeamento rítmico, ajus

m versos livres; não com uma montagem silåbica artificial, em prejuízo do assético.

LENDA DA COBRA GRANDE

m um dos casos que me contaram, nas minhas andanças pelo Baixo Amazoarecia, por ocasiĂŁo da lua cheia, a Cobra Grande, que vinha cobrar o resgate de oça. O gĂȘnio mau da regiĂŁo, como o Minotauro dos gregos, amedrontava toda a gm a exigĂȘncia desse tributo.Um dia, pelos caminhos da intuição, e ainda sob a influĂȘncia dos nheengatu

morim, pensei em fixar esse mito num episĂłdio poemĂĄtico, tendo, como pano de fugrande caudal de ĂĄgua doce e a floresta. Mas, em vez de um Teseu destemido, frentar o monstro, comecei a procurar, nas lendas amazĂŽnicas, um gĂȘnio bom

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sse, por coincidĂȘncia, enamorado da donzela raptada pela Cobra Grande.Cobra Norato, com a sua substĂąncia humana, pareceu-me que se ajusrfeitamente na figura do herĂłi do poema. Faltava achar a moça. Resolvi o assunto rde, ao me lembrar da velhinha de Valha-me-Deus (ilha do Tucum, no liaranhense), que me contou uma histĂłria obscura da filha da rainha Luzia. A sua firĂĄtica e fugidia amoldava-se apropriadamente Ă s tramas do “romance”.

COBRA NORATO

nhavei uma sĂ©rie de notas, com alguns ingredientes poĂ©ticos, na preparaçãnĂĄrios, que tambĂ©m tomavam parte nos episĂłdios do poema.Mas um poema, em geral, nĂŁo começa a ser escrito com o verso da primeira lsce, quase sempre, de uma ideiazinha central como de um nĂșcleo magnĂ©tico. Desenvolve-se, em formas naturais, pelos prĂłprios enlaces do assunto. A impressĂŁ

da vegetal amazĂŽnica formou uma das primeiras sementes do poema:

 Aqui Ă© a escola das ĂĄrvoresEstĂŁo estudando geometria.

A massa poĂ©tica, ainda em estado nebuloso, adquiriu um impulso atĂ© formar o vmposição telĂșrica, de “ter que obedecer o rio”, trouxe um sentido dramĂĄtico, coro das ĂĄrvores:

 Ai ai. NĂłs somos escravas do rio,

Com o eco se repetindo em lonjuras escuras: ... escravas do rio. Agregarampois, outras imagens, na mesma armação acĂșstica, em apoio Ă s notas do fturno. Fui eliminando o bagaço verbal, de modo a resguardar a ressonĂąncia silĂĄbica simplicidade. O poema foi-se desenvolvendo com algumas variantes ornamentais

 A noite chega mansinho. Estrelas conversam em voz baixa. SilĂȘncios imensos se respondem.

Numa desordem de idĂ©ias fui dando forma Ă s impressĂ”es colhidas em freqĂŒegens de canoa, rio-abaixo, rio-acima, procurando apresentar a floresta no seu seĂșrico:

Gritos avulsos sacodem a massa vegetal. A selva inteira se agita. Sapos soletram as leis da floresta, commensagens cifradas. Iparapezinho resvala na vasa mole. Num fundo, longĂ­nquo, nuvens negras se amontoamcomo montanhas dependuradas. Sapo sozinho chama chuva. TrovĂŁozinho roncou: jĂĄ vou. Um raio corta um

pedaço do horizonte. Rolam trovÔes assustados, numa briga de relùmpagos. Árvores tinham medo que o céucaísse.

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Alinhavei desordenadamente alguns versos, na tentativa de apresentar aspectoiverso amazĂŽnico, na sua profundidade. Nesse mundo imenso de ĂĄgua e mato, o de vozes indecifradas, aparece o herĂłi do poema: Cobra Norato, no seu estadsessĂŁo afetiva, semi-sexual, Ă  procura da filha da rainha Luzia.

De todos os lados me chamam. Onde vais Cobra Norato?Tenho aqui trĂȘs arvorezinhas jovens Ă  tua espera. â€” NĂŁo posso. Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

Mas essa aventura nĂŁo Ă© fĂĄcil. O nosso herĂłi terĂĄ que vencer um ciclo exaustivovas: terĂĄ que passar por sete mulheres brancas, de ventres despovoados; terĂĄtregar a sombra pro Bicho do Fundo; terĂĄ que fazer mirongas na lua nova.Norato passa em meio de troncos encalhados. — Árvores de galhos idiotas

piam. Águas defuntas estão esperando a hora de apodrecer. A selva profunda eståsÎnia. Raízes desdentadas mastigam lodo. Jacarés brincam em comichão na lama

iante, os rios vĂŁo carregando as queixas do caminho:

 Ai, que eu era um rio solteiro. Vinha bebendo o meu caminhomas o mato me entupiu. Agora estou com o Ăștero doendo, ai ai!

Sapos com dor de garganta estudam em voz alta. Riozinho vai para escola. TÔes de geografia. A floresta trabalha. Cipós tecem intrigas no alto dos galhos. Árvomadres passaram a noite tecendo folhas em segredo. Vento-ventinho assoprozer cócegas nos ramos. Desmanchou escrituras indecifradas.Um berro atravessa a floresta. Vai abrindo caminho, entre årvores assustadas. Ma

nge, riozinhos soltos, sem filiação certa, vĂŁo de muda, nadando nadando. Ensmungando mato-adentro. Um socĂł-boi sozinho bebe o silĂȘncio. Uma inhambsusta. SilĂȘncio se machucou. Ecoa no fundo, sem resposta, o grito cansado de umxi. Gaivotas medem o cĂ©u. O cĂ©u parece uma geometria em ponto grande.

ssarão, sozinho, risca a paisagem bojuda.Norato, exausto, gasta as suas forças nessa penosa travessia. Afunda-se depois nresta, de hålito podre. Vento mudou de lugar.

 â€” Vou ficar com os olhos entupidos de escuros.

Perdido num mundo visguento, ele encontra um companheiro, o Tatu-de-Bunda-Se conhece todos os mistérios do mato. Compadre Tatu ajuda Norato a vencer a pe

ncana de provas. Prepara puçangas contra mau-olhado. Cascas de tinhorãotorcer quebranto. Mas nada disso deu certo, para encontrar a filha da rainha L

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nte uma jurumenha, que lhe morde o sangue devagarzinho:

 â€” Ai. Onde andarĂĄ?Eu quero somentever os seus olhos molhados de verde.Enxergar, nem que seja de longe,seu corpo alongado de canarona,com a ternurinha do seu olhar

Desanimado, Norato estira-se num paturĂĄ. Parece que a noite parou. Sente-seĂȘncio a pulsação da terra.

 Agora,quero um rio emprestado pra tomar banho.Quero dormir trĂȘs dias e trĂȘs noites,com o sono do Acutipuru.

A lua nasceu com olheiras. O silĂȘncio dĂłi dentro do mato. Encolhe-se a luz do dmbra vai comendo devagarzinho os horizontes inchados. Os panoramas se afundaite encalhou com um carregamento de estrelas.

PARTE FOLCLÓRICA

ra descanso das pesadas impressĂ”es da selva, em seus vĂĄrios aspectos, o posenvolveu uma parte com temas folclĂłricos. Norato e seu Compadre esgueirarar caminhos escondidos. Andaram. Andaram. Entraram numa zona de vivĂȘncia humm gentes de alma simples, onde monjolo Ă© mĂșsica. No casĂŁo das farinhadas grananinha VintĂ©m conta os seus “causos”. Correm, de mĂŁo em mĂŁo, n’outra festatĂ©s de tafiĂĄ, com o “chorado” do TajĂĄ-TinhorĂŁo.Mais adiante, uma pajelança. PajĂ©, num canto do rancho, assobia fininho. Ass

sobia, chamando o mato. De repente, adquire um toque de mediunidade. A

ntra” no corpo do PajĂ©. EntĂŁo começa a dançar como um felino. Depois começaĂĄlogo, com a habilidade de um ventrĂ­loquo, de consultas sobre enfermidadesentes (inchaço no ventre, sezĂ”es, espinhela caĂ­da). Seguem-se encarnaçÔes de oroanas, atĂ© encontrar o feitiço causador da doença.PajĂ© pede mais diamba. Fuma e tonteia. Entra, aos poucos, em um estado de tratĂŁo, contrata o mato para fazer mĂĄgica. A floresta ventrĂ­loqua brinca de cid

ovem-se espantalhos monstros. Árvores encapuzadas, soltam fantasmas. As distùdesfiam na neblina. Jaquiranabóia apita. Parece o apito de um navio.

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O RAPTO DE MOÇA

ve-se um apito longĂ­nquo atrĂĄs da selva. Norato diz pro Bunda-Seca:— LĂĄ vem vindo um navio...— Aquilo nĂŁo Ă© navio, compadre.— Mas as velas, a bujarrona, o casco de prata?— É a visagem da Cobra Grande que vem, em noites de lua cheia, buscar uma m

e ainda não conheceu homem. Parece que ouço um soluço se quebrando na noite, bitada de estrelas.— Coitadinha da moça. Se eu pudesse ia assistir ao casamento.— Casamento da Cobra Grande chama desgraça. Só se a gente arranjar manding

funto.— UĂ©, entĂŁo vamos. Lobisomem estĂĄ hoje de festa no cemitĂ©rio.— Abre-te Vento, que eu te dou um vintĂ©m queimado. Tenho que passar depretes que a lua se afunde no mato.

— EntĂŁo passa, meu neto.— Quero chegar na Serra Longe. PererĂȘ PererĂȘ PererĂȘ.— PajĂ©-Pato. Arreda o mato mais pro fundo, que eu preciso passar. Levo um an

m pente de ouro de presente pra noiva da Cobra Grande.— Que Ă© mais que tu levas?— Levo cachaça.— EntĂŁo deixa um pouco. Pode passar.Canta um pitiro-pitiro na beira do mato. SilĂȘncio nĂŁo respondeu. Matim-ta-Pereira

egando.— Bom cĂȘ deixar um pedaço de fumo pro Curupira.— Vamos pra adiante, que jĂĄ Ă© tarde.— Me dĂȘ trĂȘs fĂŽlegos de descanso, que o ar entupiu.— EntĂŁo esperazinho um pouco pra eu assoprar na barriga.Norato desce depois no buraco do Espia, para ver, de longe, a moça.— Ai que eu tremi de susto. Parou a respiração. Sabe, desta vez, quem Ă© noiv

bra Grande? É a própria filha da rainha Luzia.— Então corra com ela depressa. Não perca tempo, Compadre.— Ai. Quatro Ventos me ajudem. Quero forças pra fugir. Sapo-boi faça barulho. C

ande vem-que-vem-vindo pra me pegar. — Serra do Ronca role abaixo. Tapminho atrĂĄs de mim. — TamaquarĂ©, meu cunhado. Cobra Grande vem-que-vem. Citando o meu rasto. Entregue o meu pixĂȘ na casa do PajĂ©-Pato. Torça o campressa, que a BoiĂșna vem lĂĄ atrĂĄs, como uma trovoada de pedra. Vem amassaato. Arvorezinhas rolaram de raiz para cima. PajĂ©-Pato ensinou caminho errado:

— Cobra Norato com uma moça? Foi pra BelĂ©m. Foi se casar. Cobra Grande estu

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eito pra Belém. Arrasou muros e paredes. Entrou no cano da Sé e ficou com a cabaixo dos pés de Nossa Senhora.

REMATE

agora, Compadre? Digo-lhe adeus, que vou me embora. Vou lå para as terras ade o mato se amontoa; onde correm rios de åguas claras, no meio dos molunocure minha madrinha Maleita. Diga que eu vou me casar; que vou vestir minha nm um vestidinho de flor. Peça uma rede bordada, com ervas de espalhar cheiroso epetinho-titinho, de penas de irapuru.

Quero estarzinho com elanuma casa de morar,com porta azul piquininha

pintada a lĂĄpis de cor.Quero sentir a quenturado seu corpo de vai-e-vem.Querzinho de ficar juntoquando a gente quer bem bem,

No caminho, vå convidando gente pro Caxiri-grande. Haverå festas e festas, durte luas, sete sóis. Traga a Joaninha Vintém, o Pajé-Pato, o Boi Queixume. Não esqPortinari, Maria Pitanga, o João Ternura. Quero povo de Belém, de Porto Alegre

o Paulo.— EntĂŁo, atĂ© breve, Compadre. Fico-lhe esperando atrĂĄs das terras do Sem Fim.

NOTA ADICIONAL

m fins de 1921, com a minha transferĂȘncia para o Rio, no plano de terminar o

adĂȘmico, meti na mala o poema, do jeito que estava, e por muito tempo nĂŁo ais nele. Somente anos mais tarde (1927), em SĂŁo Paulo, com o acolhimento carinTarsila e Oswald de Andrade, recopiei-o. Fiz alguns retoques. Adicionei imag

vas. Suprimi versos que jĂĄ nĂŁo me agradavam mais. O poema “andou de mĂŁoĂŁo”, numa espĂ©cie de “cadeia datilogrĂĄfica”, antes de imprimir-se — confopoimento de SĂ©rgio Buarque de Holanda, num artigo publicado em O Jornal, em ag1951, sob o tĂ­tulo “Bopp e o DragĂŁo”.“A publicação do livro”, acrescentou ele, “fez-se bem mais tarde (1931), por inicia

amigos e Ă  revelia do poeta.” 

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Esses contos, lendas, “causos”, com maneiras de dizer próprias, foram mais tunidos no volume 154, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, an56.

OUTRA NOTA ADICIONAL

tros poemas, desse mesmo período amazînico, como “Mãe-Febre”, “Charco”, “Cidlvagem”, foram publicados provavelmente no Almanaque de O Globo, de Porto Ale

as, deles, o autor nĂŁo guardou nenhuma cĂłpia. Apareceram, porĂ©m, traduzidoensĂĄrio francĂȘs Cahiers du Sud, em junho de 1944. Recentemente,* figuraram ntologia, de publicação patrocinada pela Unesco: La Poesie brĂ©silienne contemporai

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ta

necessårio lembrar que a edição original de Vida e morte da Antropofagia data de 1977, sendo, ainda, a compilatos publicados entre 1965-66. (N. da E.)

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INVENT RIO DA ANTROPOFAGIA

chefa do movimento foi Tarsila. Oswald ia na vanguarda, irreverente, naqecismo social de SĂŁo Paulo. Foi elemento de resistĂȘncia e agressĂŁo. PĂŽntropofagia” no cartaz, com uma tĂ©cnica de valorização.Tarsila, na sua simplicidade, semeava idĂ©ias. Queria um retorno ao Brasil, Ă 

rnura primitiva. A flecha antropofĂĄgica indicava uma nova direção.— Vamos descer Ă  nossa prĂ©-histĂłria. Trazer alguma coisa desse fundo ime

ĂĄvico. Catar os anais totĂȘmicos. Remexer raĂ­zes da raça, com um pensamentcanĂĄlise. Desse reencontro com as nossas coisas, num clima criador, poderengir uma nova estrutura de idĂ©ias. SolidĂĄrios com as origens. Fazer um Brasil Ă  nmelhança, de encadeamentos profundos.Repete-se o homem da caverna. Vamos reunir uma geração. Fazer o nosso “Concial”. A mocidade estĂĄ desencantada, perdendo tempo com esnobismos cultucou a alma no cartesianismo. Para que Roma? Temos mistĂ©rio em casa. A tĂĄvida. Vozes nos acompanham de longe. Arte nĂŁo precisa de explicação.

O “nosso” Brasil começa lĂĄ adiante. Terra do sem-lhe-achar-fim, com ĂĄreas paraboclo vai acompanhando a linha de mato. Ficam para trĂĄs cidadezinhas descalças,centro de gravidade, acocoradas nas abas dos morros. CasarĂ”es do velho S

aire, com escravos enterrados nas paredes. As portas emperradas mugem.Em sábados de bruxa, à noite, o “berra boi”, com a encomendação das almas. “C

m Deus Padre...” Param moendas na ĂĄrea rural. O verĂŁo bebe o rio. Murcham as lavouras cansassa o cansaço, escorchando a terra, numa cumplicidade de sangues e incĂȘndios

nganças se sucedem nas tocaias. A Idade MĂ©dia continua.Num povoado adiante, negro coroa-se de rei, Ă  porta da igreja. Desfila o “bu

eu-boi”, como um balĂ© de rua, adoçando um pouco a alma do Brasil.Todo esse cozido geogrĂĄfico, com dramas do sertĂŁo e heranças de mau-olhado, adentro das fronteiras antropofĂĄgicas. A floresta, em toda a sua brutalidade, ger

undos mågicos. Árvores que emprenham moças. Cobra Grande vai se casar.Os que iniciaram o movimento preocuparam-se em chamar a atenção para um Berente, num privilégio de descobrir coisas. Fixar meridianos para um novo Diålogo

andezas. Roça de homens que se orgulhavam de engolir o seu semelhante! (Qua

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sa de honroso para a nossa pré-história.)A Arca antropofågica encalhou em São Paulo, com esse material a bordo. Urubu foas åguas jå tinham baixado. Não voltou mais. Houve imprevistos na descida

anos de reação e renovação ficaram num deixa-estar ou acomodaram-se em variasmopolitas. A experiĂȘncia brasileira do grupo perdeu o seu significado inicial.

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IPERUNGAUA

Nos tempos de antigamente... (principiava assim o Genesis dos nossos Ă­ndiosstia o sol e a Cobra Grande. Quando a Cobra Grande se acordou, sentiu que esrida.” Esses versos instalam-se com uma formidĂĄvel unidade no pensamento antropofĂĄl permanente, imemorial, ultrabĂ­blico, chocando as coisas. Sol macho: ponto de patudo, cravando-se, com uma força telĂșrica, dentro da teogonia tupi.

Cobra Grande teve uma filha. Tão delicada e sozinha que fazia pena. Então procuarranjar um noivo para a moça.Note-se o índio como é simples. Dispensa investigaçÔes de paternidade.

eocupou-se em explicar como apareceu o moço naqueles ambientes do Iperungu mais atenção à festa do casamento. Sarau zoológico onde cabe todo o fabuasileiro.

 Veio o Jabuti pra tomar parte na festa. Veio o Sapo-Cururu. Compadre CameliĂŁo veio tambĂ©m. A Onça nĂŁo pĂŽporque tinha emprestado os sapatos.

Essa narração indígena tem mais ternura que os versículos da Bíblia, relativoste Dias da Criação. Revela um sentimento generoso de Vida, a Vida coincidatamente com o Homem. Zoofonias colaborando para o momento nupcial.

Mas...Quando a festa se acabou, a moça ficou com vergonha de dormir com o noivo, porque naquele tempo aindhavia Noite. Então resolveram mandar buscar a Noite, que estava escondida no fundo do mato, dentro

caroço de tucumã.

Sente-se neste relato, de uma inocente simplicidade, maior vibração que nas pågBíblia.

O Homem daqui tinha uma concepção religiosa, vivendo em carne própria. Paraprincípio, só existia o sol. Sol que cozinhava a terra jovem, ainda encantada e br

que abria caminhos para os rios soltos passarem.

A Noite, aqui, foi feita especialmente para o amor. Na hora em que os sexos grita

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moça ficou com vergonha de dormir com o noivo. Então, a Cobra Grande, conheces segredos, mandou buscar, de longe, a Noite, metida dentro de um caroço.

Esta pågina é de um alto relevo psicológico. Mostra o Homem umbigado à Tovimentando a idéia religiosa dentro da sua Geografia. Dentro da totalidade qdeia.Pelos livros mosaicos, logo após a instalação do Paraíso, apareceu a idéia do pec

m clĂĄusulas de proibição.Mal tinha o Homem, em sua natural inexperiĂȘncia, começado a saborear o

oibido, apareceu um Anjo, de espada em punho, com ordem de despejo, acovardinquilinos do ParaĂ­so.Entre nĂłs nĂŁo hĂĄ disso. O Homem nĂŁo desaderiu Ă  Terra. Seu pensamento religconstruĂ­do com material humano. Dentro da linha biolĂłgica. Sem o sentiment

rror. Sem cĂłdigos de obediĂȘncia. Musculou a idĂ©ia da origem com a impaciĂȘnciaxos.

Quando os bichos, que foram buscar a Noite, abriram o fruto do tucumĂŁ, nĂŁo hniçÔes, nem amedrontamentos. O caso foi simples. Teve uma reacomodação natur— Que barulhinho serĂĄ esse dentro do caroço?— Diz que Ă© a Noite. NĂłs vamos levando a Noite de presente para a filha da C

ande.— Ah, mas eu nĂŁo acredito.— QuĂĄ, quĂĄ, quĂĄ, respondeu o Sapo. Isso Ă© histĂłria...Foi quando resolveram abrir o caroço. EntĂŁo a Noite estourou que escureceu t

nhocão deu um pulo, foi fazer casa no fundo do mato. Matim-Ta-Pereira fugiu: Matin-Tatå. As florestas encheram-se de ruídos, atufadas de sombras, estalatando, num bramido de vozes estranguladas.Nessa noite gråvida, de grandes alaridos, estå toda a inquietação florestal do índ

ato penetrando no sangue. Gritando no sangue.Passa o Caapora, sacudindo as årvores. Fecham-se os horizontes beiçudos. Um pe

Noite entrou na barriga do Sapo.O Ă­ndio compreendeu a floresta. Espiava no escuro. Viu na lição das raĂ­zes a vis mĂșsculos. EntĂŁo solidarizou os instintos e armou-se para ser forte. Sentiu a vida legĂ­tima expressĂŁo biolĂłgica.A educação da selva, todas as forças anĂŽnimas da selva, foram preparand

nsibilidade do antropĂłfago. Sem os prejuĂ­zos do monoteĂ­smo.(Publicado em 1928, em SĂŁo Paulo e M

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 â€œBRASIL, CHOCA O TEU OVO...” 

descida antropofĂĄgica veio determinar uma estrutura nova do pensamento de olenta e agressiva, mas necessĂĄria.NĂŁo podĂ­amos pretender um reajustamento com o que jĂĄ existia.

ArmistĂ­cios no sentido das conveniĂȘncias do maior NĂșmero. NĂŁo. Foi preciso saircaserna. Tomar posse da Ă©poca. Meio a força. A pau. Fraturar o pensamento v

fiar polpas moles no espeto. Dentro de uma clareira florestal. Entre alaridos e camo nos dias de festa grande. ANTROPOFAGICAMENTE.

Quem nĂŁo estĂĄ com o penacho da tribo nĂŁo tem garantias. O nosso “Dia do JmbĂ©m chegou. Cunhambebe estĂĄ pesando as almas. De uma a uma. Pau na cabeç.........................................................................NĂłs vamos Ă© tomar pulso da terra; consultar a floresta. Enfrentar problemas qu

nfundem em medida; ajustå-los em outras proporçÔes. Material de fora tem vist

aduana..........................................................................Estamos recrutando fatores postos à margem. Forças escondidas. Mal apalpadas.

nda nĂŁo couberam no sistema mĂ©trico ocidental. Índio. Raça-alicerce. A que estĂĄntato com a terra. Subjacente. Mas determinando as linhas do edifĂ­cio.

(Publicado em 1928, em M

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 AMBIENTE LITER RIO EM 1922

Minha transferĂȘncia para o Rio exigiu uma sĂ©rie de reajustamentos. O ambienteerente. O ritmo de vida se encadeava em preocupaçÔes de utilidade imediatantrĂĄrio de ser como em BelĂ©m, cheia de emoçÔes, ante a presença do grande resta, que escondiam profundidades, a vida no Rio dispersava-se num jogoeresse frĂ­volos. Procurei acomodar-me em adaptaçÔes lentas, num ambiente mistuconfuso. De começo, fui morar na Lapa. Era uma onda humana, ruidosa e insone,

agitava nas suas ruelas, em marĂ©s noturnas. Mas logo depois mudei-me para na mais tranqĂŒila.

 AGITAÇÃO LITERÁRIA

ia, Ă s vezes, a livrarias da rua do Ouvidor, para me informar discretamenteovimento Modernista, que lançou os intelectuais em novas posiçÔes. De vezando, aparecia na casa do Álvaro Moreyra, onde em geral se comentava, nsibilidade irĂŽnica, a efervescĂȘncia modernista. A casa de AnĂ­bal Machado era ocleo de debates, para sacudir o mofo das velharias literĂĄrias.Mas a livraria Garnier era, sobretudo, o foco de vibração modernista, onde G

anha pontificava. A sua inteligĂȘncia, modelada em centros culturais estrangeirostada de uma dialĂ©tica eficaz. Sem nenhuma dĂșvida, foi ele, com uma avideestĂ­gio, de par com justas doses de vaidade pessoal, que abriu roteiro

nsformaçÔes de idéias antiquadas, que ainda predominavam nas letras e nas aacou o Parnasianismo, que estava em pleno fastígio, com adeptos por todo o BrasiGraça vinha mostrando que essa escola estava fora do seu tempo. Era retardatå

zia. O verso, trabalhando com exatidão métrica (a rima obrigatória, o hemistíquave de ouro), era meramente ornamental. A montagem habilidosa dos vocåbulosnstrução do poema, apresentava somente um valor extrínseco.Os parnasianos tinham gostos pelas exterioridades pomposas. Deleitavam-se

mas enfåticos (mårmore pentélico etc.). Consagravam-se a um descritiv

animado, de cultura clĂĄssica, sem cor, com a frieza de estruturas formais, para logitação de modelos helĂȘnicos. JĂĄ era tempo de se substituĂ­rem os templos greg

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mexer o Brasil, nos seus enlaces profundos, para evitar uma estagnaçãonsibilidade dos poetas jovens.Toda essa agitação, em debates orais ou na imprensa, teve o mérito de acord

asil do seu estado de marasmo nas letras. Desencadeou uma reação contra o sto nas artes, contra o retoricismo que tinha fundas raízes na nossa vida cultural.

FASE DE FORMAÇÃO MODERNISTA

sse Movimento, de ruidosa confusĂŁo, resguardei-me numa posição tranqĂŒila mar parte em nada (embora algumas vezes apareça ainda citado, erroneamente, c

m dos participantes da Semana). Minha contribuição, nesse sentido, foi quase mbém, nem senti que as idéias de maior vibração, nesse momento, tivessem exer

m mim, qualquer influĂȘncia. O que, a esse respeito, se poderia denominar de “fas

rmação modernista” vinha já com raízes amazînicas.

DESAJUSTAMENTOS

ssado o ciclo acadĂȘmico no Rio, e deixando de lado qualquer preocupação litercontrei-me numa fase insegura de transição para a vida prĂĄtica. Amigos de influĂȘlĂ­tica se ofereceram para arranjar um cargo de promotor pĂșblico, numa cidadezinh

nas (Turvo).Vacilei na resposta. Comecei a pensar o que seria a minha experiĂȘncia em fucial desse gĂȘnero. Resolvi nĂŁo aceitar. Preferi nĂŁo contrariar as razĂ”es Ă­ntimntinuando a me ajudar em ocupaçÔes de livre escolha, como ensaios em peqnalismo, fora do gĂȘnero literĂĄrio; tambĂ©m reportagens avulsas que combinava

mérico Facó, articulado ao grupo diretor de O Globo. Participei, por exemplomeira caravana do Automóvel Clube, composta de uns vinte carros, até São Paulominhos quase inexistentes, incumbido de fazer a cobertura para esse vespertino.Depois de algum tempo no Rio, comecei a sentir pequenos desajustamentos co

mbiente. Gastavam-se horas em conversas de café. O espírito se ressequia num volo de coisas, sem alcance pråtico. Era difícil conciliar interesses pessoais, naqgrenagenzinha cotidiana.

GRAÇA ARANHA

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m dia, obtive uns depoimentos avulsos sobre a vida numa região andina. Eu hmbém lido uns livros sobre Santa Cruz de la Sierra. O nome soava bem. Comeariciar a idéia de uma viagem ao Oeste, além das fronteiras, serra acima.Propus, então, a Facó, fazer umas reportagens sobre essa região: populaåticas, desalentadas, incrustadas ao meio åspero, como mineralóides. Procuraria tormaçÔes mais estudadas, sobre as diferentes culturas pré-incaicas (Tiuanaco em soberbos testemunhos arqueológicos, de uma civilização que perdeu o rumo.

FacĂł ouvia e nĂŁo dizia nada. Mostrei que a reportagem que propunha era deeresse jornalĂ­stico razoĂĄvel. Poderia, tambĂ©m, fazer um balanço das forças anobravam o paĂ­s, ainda de estrutura feudal. O homem do altiplano, destemperdecifrĂĄvel...FacĂł quebrou a conversa. Tocou o meu ombro e pĂŽs o assunto em outra posição.— Olhe — disse-me ele. — O Graça Aranha estĂĄ planejando, para breve, uma viario das Mortes, na confluĂȘncia do rio das Garças, regiĂŁo de garimpos, que

eiramente sob o domĂ­nio do Morsbeck. Vai colher elementos para uma novela. V

deria ser, para ele, uma Ăłtima companhia. É uma zona selvagem, de enorme atrade o jogo da aventura Ă© ganho pelos mais hĂĄbeis. AlĂ©m disso, haveria um meresse na viagem, cada um com objetivos diferentes.Alguns dias mais tarde, almoçåvamos FacĂł, Graça Aranha e eu, num restaurantestia no primeiro andar da Tabacaria Londres. A conversa durou algumas hoexaminou-se o projeto da viagem, em seus detalhes prĂĄticos. Essa zona do Araga um centro de convergĂȘncia de arrivistas, Ă  procura de fortuna fĂĄcil. Uma populovediça, sem raĂ­zes prĂłprias, se agitava nesse fundo geogrĂĄfico, onde se es

rmando um vasto nucleamento de choupanas.Facó mandou vir mais vinho. A conversa espichava-se num plano de imaginação,

composição de cenårios de novela: lavagens de cascalho à beira do rio; escasseulheres; casos de brigas, tiroteios. Depois a rancharia, sem luz à noite. Boimando as madrugadas.Rematamos a conversa da seguinte forma: eu iria primeiro a São Paulo,

peraria Graça, em data aprazada, para darmos início à excursão.Combinamos endereços. Dois dias depois, tomei o trem e fui para a Paulicéia.

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SÃO PAULO

 VERDE-AMARELISMO

De chegada a São Paulo, tomei contato com velhos conhecidos. Em poucos diaculo de minhas relaçÔes se foi alargando. Uma noite, fui levado à pensão da ruatÎnio, onde costumavam reunir-se os admiradores de Plínio Salgado.Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia compareciam, de vez em quando, às reun

pensão. Mantinham, sobretudo, uma curiosidade amorosa pelas coisas da Amaztusiasmavam-se com narrativas de folclore, que constituíam a årea poética do Ve

marelismo.Mas, o ponto central das conversas era invariavelmente o Brasil, no seu estad

Ă©rcia, com populaçÔes resignadas no interior. O paĂ­s estava Ă  espera de soluçÔes,ssem novos rumos aos seus destinos. Com o vinho AlvaralhĂŁo, que sempre havimentĂĄrios se animavam. Adquiriam, Ă s vezes, um sentido polĂȘmico, dando, assimmento emocional nos debates. Remexiam-se dados histĂłricos para explicar

ciais e suas implicaçÔes.Renovava-se o nosso Diålogo das grandezas. Trazia-se à tona alguns heróis avuvos das cronologias. Bandeirantes esquecidos, que poderiam ser exaltados

psĂłdias.Uma vez, numa das leituras em voz alta, de um conto de AntĂŽnio BrandĂŁo de Am

es “descobriram” a Anta.— NĂłs somos gente-anta (IandĂȘ tapira-mira).A Anta era elemento genuinamente brasileiro que o grupo verde-amarelista procu

otar como sĂ­mbolo do seu Movimento. Constituiu, mais tarde, tema de um Manifm um conteĂșdo de idĂ©ias que se prendiam Ă s tendĂȘncias de um movimento pole PlĂ­nio tinha em elaboração.

CARTA

m dia, pela manhĂŁ, recebi na minha pensĂŁo, Ă  rua Almirante Jaceguai, uma cart

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aça Aranha, com data de 29 de setembro de 1926. Em trĂȘs pĂĄginas manuscritas,odernista me informava que a viagem planejada a GoiĂĄs nĂŁo poderia ser realizvido ao movimento revolucionĂĄrio que irrompera na regiĂŁo. Os transportes estaeiramente entregues Ă s autoridades militares. O acesso era difĂ­cil. NĂŁo havia tĂ­cia de Morsbeck. Ele mesmo, Graça, tinha recebido conselhos de altas autoridra desistir desse projeto.A notĂ­cia constituiu para mim uma verdadeira ducha fria. Todo um esquema

enturas, num cenário agitado, em plena selva, foi abaixo, num desmoronamencioso. Eu teria, agora, que reformular o plano anterior de Santa Cruz de la Sias já com a sensibilidade destemperada do antigo entusiasmo. Reli outra vez a cm post-scriptum, Graça me dizia: “Em todo o caso, o rio dos garimpos já me deu

amante: o da sua amizade.” Nesse mesmo dia, depois de algumas providĂȘncias necessĂĄrias (mochilas, ga

rmica etc.), dirigi-me ao centro da cidade, com a idĂ©ia de comprar uma passagemm para CorumbĂĄ. De Puerto Juarez, na fronteira boliviana, adjacĂȘncias do pantan

gem teria que ser continuada, atĂ© certo ponto, em lombo de boi, com todas as conveniĂȘncias. Era o que havia.Nessas cogitaçÔes, descia eu vagarosamente a rua SĂŁo Bento, quando, numa trave dava para a rua LĂ­bero BadarĂł, ocorreu-me fazer uma rĂĄpida visita ao pessoasociação Paulista de Boas Estradas, pois, meses atrĂĄs, por ocasiĂŁo da caravantomĂłvel Clube, do Rio, fazendo a cobertura para O Globo, havia mantido com celente camaradagem.

 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE BOAS ESTRADAS

me avistarem na sala de espera, Derrom e AmĂ©rico Neto, que dirigiam essa entide deram um acolhimento cordialĂ­ssimo. Perguntaram o que Ă© que eu, dessa vez, eszendo em SĂŁo Paulo. Contei, em traços sumĂĄrios, os meus planos.— Mas o que vai vocĂȘ fazer nessa... La Sierra — indagou Derrom, engen

nadense, o homem-dínamo da Associação. — Se era um simples desejo de gens, por que, então, não viajar no carro “Bandeirante”, da Associação, em missãopaganda de boas estradas no nosso País?Não foi preciso pensar muito. Percebi a significação prática do raide. Dia seguinte

adrugada, em vez de tomar um trem da Noroeste, saĂ­mos, um mecĂąnico e eu, rum, num Studebaker.Pegamos caminhos de carretas, intransitĂĄveis em Ă©poca de chuva. Treerrompidos se sucediam. Arranjavam-se juntas de bois para arrancar o carro

oleiros.

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Depois de alguns dias, chegamos a Curitiba, passando o Tibagi pelas estradaeia de Guarapuava. Na capital paranaense, fiz visitas às autoridades locais. ProuniÔes e almoços. Dei entrevistas sobre as peripécias da viagem. Escrevi artigos paprensa local e também para jornais de São Paulo. Ao regressar, tendo Américo Nebrado a perna num acidente, Derrom pediu-me que tomasse conta do mensquanto durasse aquele impedimento.A tarefa era fascinante. Tudo fåcil. Ambiente de trabalho sumamente agradåvel.

empo, identifiquei-me com tarefas gerais da Associação. Não pensei mais em viaglívia. Constituímos, Derrom, Neto e eu, uma espécie de junta cordial, para diseresses da entidade, que se estendiam por uma rede de mais de sete mil sócios.

SUPERINTENDÊNCIA

engenheiro Derrom, homem de visão e com um grande carinho pelo Brasil, tinhaograma ambicioso a realizar, em doses progressivas: sair do ùmbito regional, ojetar, pelo resto do Brasil, as diretrizes båsicas de um programa rodoviårio, quemas técnicos facilmente realizåveis. Eu propus, então, transformarmos a revist

m semanårio ilustrado, de formato tablóide, e com paginação esmerada e moderia uma penetração e atração maior que um mensårio, pesado e caro.Um dia, Derrom chamou-me na sua sala. Confidenciou-me que havia sido convira dirigir a fåbrica de cimento Perus, nas imediaçÔes da capital e, por consegu

ria que afastar-se, em breve, dos encargos administrativos da Associação. Iria indicretoria, o meu nome para substituĂ­-lo na SuperintendĂȘncia.Relutei, sinceramente, a princĂ­pio. Mas decidi aceitar ao ver que contava com o aegral de AmĂ©rico Neto e outros elementos de tradição da casa.

 AGÊNCIA BRASILEIRA

mĂ©rico FacĂł tinha realizado, no Rio, o seu velho projeto de estender pelo PaĂ­s uma divulgação de notĂ­cias sob o nome de AgĂȘncia Brasileira. Telefonou-me, um dia,

ia a SĂŁo Paulo, acompanhado de Jaime Adour da CĂąmara, para estabelecer cursal da mesma. Disse esperar contar, nesse perĂ­odo inicial de instalação, conha colaboração em horas que me sobrassem.A AgĂȘncia desenvolveu-se aos poucos, atĂ© criar as primeiras raĂ­zes na imprulista. O fornecimento de matĂ©ria jornalĂ­stica exigia um cuidado especial. Procurav

randar as arestas de problemas polĂ­ticos, que se refletiam no noticiĂĄrio, de moender o interesse comum dos jornais.

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novos caminhos para as suas idĂ©ias. Na sua mocidade rebelde, de assinandĂȘncia xenĂłfoba, apercebeu-se, aos poucos, das fontes ainda puras da nacionalidssada a fase da Semana de Arte Moderna, concebeu as teorias antropofĂĄgicas,itaram os meios cultos de SĂŁo Paulo. Seguiu-se depois de novas reformulaçÔes naerĂĄria, um perĂ­odo esquerdizante, de sentido social, envolvido confusamente em teotskistas, mas sem articulaçÔes nos movimentos de massa. A Ășltima fase, em pclĂ­nio, jĂĄ com doença na vista, acomodou suas idĂ©ias numa Ăłrbita filosĂłfica. Refug

nos livros, notadamente nas obras de Bachofen. A enfermidade e as desconfiam a morte limitaram sensivelmente as suas atividades.

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MANIFESTO ANTROP FAGO*

SĂł a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

 _______ 

Única lei do mundo. ExpressĂŁo mascarada de todos os individualismos, de todoetivismos. De todas as religiĂ”es. De todos os tratados de paz.

 _______ 

Tupi or not tupi that is the question. _______ 

Contra todas as catequeses. E contra a mĂŁe dos Gracos.

 _______ 

SĂł me interessa o que nĂŁo Ă© meu. Lei do homem. Lei do antropĂłfago.

 _______ 

Estamos fatigados de todos os maridos catĂłlicos suspeitosos postos em drama. Fabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

 _______ 

O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeåvel entre o mundo interioundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informarå.

 _______ 

Filhos do sol, mĂŁe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com topocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No pabra grande.

 _______ 

Foi porque nunca tivemos gramåticas, nem coleçÔes de velhos vegetais. E n

ubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mĂșndi do Brasil.

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Uma consciĂȘncia participante, uma rĂ­tmica religiosa.

 _______ 

Contra todos os importadores de consciĂȘncia enlatada. A existĂȘncia palpĂĄvel da a mentalidade prĂ©-lĂłgica para o sr. LĂ©vy-Bruhl estudar.

 _______ 

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificaçãdas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequa pobre declaração dos direitos do homem.

 _______ 

A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

 _______ 

Filiação. O contato com o Brasil CaraĂ­ba. OĂč Villegaignon print terre. Montaignmem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, Ă  Revollchevista, Ă  Revolução Surrealista e ao bĂĄrbaro tecnizado de Keyserling. Caminham

 _______ 

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonùmbulo. Fizemos Cscer na Bahia. Ou em Belém do Parå.

 _______ 

Mas nunca admitimos o nascimento da lĂłgica entre nĂłs.

 _______ 

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissã-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita låbia. Fez-s

mprĂ©stimo. Gravou-se o açĂșcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e

ouxe a lĂĄbia. _______ 

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessivacina antropofågica. Para o equilíbrio contra as religiÔes de meridiano.

quisiçÔes exteriores.

 _______ 

SĂł podemos atender ao mundo orecular.

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 _______ 

TĂ­nhamos a justiça codificação da vingança. A ciĂȘncia codificação da Mtropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

 _______ 

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stopnsamento que é dinùmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injusssicas. Das injustiças romùnticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

 _______ 

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

 _______ 

O instinto CaraĂ­ba.

 _______ 

Morte e vida das hipĂłteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos peu. SubsistĂȘncia. Conhecimento. Antropofagia.

 _______ 

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

 _______ 

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senadopério. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimertugueses.

 _______ 

JĂĄ tĂ­nhamos o comunismo. JĂĄ tĂ­nhamos a lĂ­ngua surrealista. A idade de ouro.

Catiti CatitiImara NotiĂĄNotiĂĄ ImaraIpeju.**

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A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos orais, dos bens dignårios. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxíligumas formas gramaticais.

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Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantiercĂ­cio da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.

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Só não hå determinismo onde hå mistério. Mas que temos nós com isso?

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Contra as histórias do homem, que começam no cabo Finisterra. O mundo não dato rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

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A fixação do progresso por meio de catålogos e aparelhos de televisão. aquinaria. E os transfusores de sangue.

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Contra as sublimaçÔes antagÎnicas. Trazidas nas caravelas.

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Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de tropófago, o visconde de Cairu: — É mentira muitas vezes repetida.

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Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

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Se Deus Ă© a consciĂȘncia do Universo Incriado, Guaraci Ă© a mĂŁe dos viventes. JacĂŁe dos vegetais.

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Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que ncia da distribuição. E um sistema social-planetårio.

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As migraçÔes. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contnservatórios e o tédio especulativo.

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De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

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O pater familias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorùncia real das coisas + imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

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É preciso partir de um profundo ateĂ­smo para se chegar Ă  idĂ©ia de Deus. MraĂ­ba nĂŁo precisava. Porque tinha Guaraci.

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O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que tes com isso?

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Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade

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Contra o Ă­ndio de tocheiro. O Ă­ndio filho de Maria, afilhado de Catarina de MĂ©dinro de d. AntĂŽnio de Mariz.

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A alegria Ă© a prova dos nove.

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No matriarcado de Pindorama.

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Contra a MemĂłria fonte do costume. A experiĂȘncia pessoal renovada.

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Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas prblicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sireditar nos instrumentos e nas estrelas.

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Contra Goethe, a mĂŁe dos Gracos, e a Corte de d. JoĂŁo VI.

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A alegria Ă© a prova dos nove.

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A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura — ilustrada pela contradrmanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitatropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformĂĄ-lo em totem. A humentura. A terrena finalidade. PorĂ©m, sĂł as puras elites conseguiram realiz

tropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os mentificados por Freud, males catequistas. O que se dĂĄ nĂŁo Ă© uma sublimação do insxual. É a escala termomĂ©trica do instinto antropofĂĄgico. De carnal, ele se torna elcria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciĂȘncia. Desvia-se e transfereegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de cateca inveja, a usura, a calĂșnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cult

stianizados, Ă© contra ela que estamos agindo. AntropĂłfagos.

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Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema triarca João Ramalho fundador de São Paulo.

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A nossa independĂȘncia ainda nĂŁo foi proclamada. Frase tĂ­pica de d. JoĂŁo VI: —ho, pĂ”e essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamnastia. É preciso expulsar o espĂ­rito bragantino, as ordenaçÔes e o rapĂ© de Marinte.

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Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realim complexos, sem loucura, sem prostituiçÔes e sem penitenciĂĄrias do matriarcadndorama.

Oswald de AndradeEm PiratiningaAno 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.

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tas

Publicado no primeiro nĂșmero da Revista de Antropofagia, SĂŁo Paulo, em maio de 1928.©Andrade, Oswanifesto AntropĂłfago.” In: A utopia antropofĂĄgica. 3ÂȘ ed. SĂŁo Paulo: Globo, 2001. p. 47-52.“Lua Nova, Ăł Lua Nova, assopra em fulano lembranças de mim.” In: O selvagem, de Couto MagalhĂŁes.

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TUPY OR NOT TUPY, AINDA A QUESTÃO*M ARIA AMÉLIA MELLO

fastado da assim chamada vida literĂĄria e dispensando as “honras naturais do oful Bopp viu-se envolvido por dois acontecimentos importantes para a poesia brasilO primeiro, mais ligado aos acontecimentos poĂ©ticos da dĂ©cada de 1920 e

arcaram bastante nossos rumos, Ă© a comemoração dos 50 anos da Revistatropofagia, cujo nĂșmero 1 saiu em maio de 1928. O segundo, embora mais afe

z em si um carĂĄter igualmente histĂłrico, pois Ă s vĂ©speras dos 80 anos o autobra Norato, companheiro de Oswald de Andrade e de tantos outros nomes importaMovimento Modernista, comenta que estĂĄ “um pouco abatido devido a uma infe

nal que me prendeu à cama” e disposto a esclarecer alguns pontos de noomentos modernistas. Ainda no ano passado, lançou Vida e morte da Antropofro de testemunho e depoimento sobre o assunto.Lamentando o corre-corre da vida de hoje, “acabou-se o tempo dos cafezinhos entos de encontro”, prefere ficar em casa, “vendo uma coisinha ou outra”. Seu nom

rias vezes lembrado para a Academia Brasileira de Letras, mas ele faz questĂŁclarecer: “Eu entendo a Academia como um dos grandes centros culturais do nho muitos amigos lĂĄ, mas posso afirmar com sinceridade que eu nunca, em tegum, tive a idĂ©ia de me candidatar Ă  ABL. É uma simples questĂŁo de temperament

Nascido em Santa Maria, Rio Grande do Sul, com menos de um ano Bopp foi lera TupanciretĂŁ, cidade da fronteira gaĂșcha. Cedo descobriu que “havia muita cra se ver no mundo” e aos 16 anos, resolveu sair de casa. E assim ficou, cscreveu o crĂ­tico MĂĄrio da Silva Brito: “nĂŽmade e andarilho desde jovem, nunca se de ele estĂĄ...” Da fronteira, seguiu a cavalo atĂ© o Paraguai. Depois Mato Grosso euco mais velho, jĂĄ na Faculdade de Direito, viajou de Porto Alegre a Recife. De BRio de Janeiro. Por estes caminhos, exerceu as mais diferentes e surpreende

ofissĂ”es: de jornalista a pintor de paredes; de professor primĂĄrio a secretĂĄrinselho Federal do ComĂ©rcio Exterior e, finalmente, diplomata. Desde 1osentado como embaixador, vive no Rio com sua mulher, lendo, descansasistindo novela. “Eu que nĂŁo gostava de ver novela, fui conquistado pelo ‘O Astro’,um trabalho muito bem feito.” De vez em quando, vai ao “Sabadoyle”, reuniĂŁo

migos e escritores na casa de PlĂ­nio Doyle. “SĂł vou porque Ă© uma reuniĂŁo inform

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hos amigos. LĂĄ fala-se de tudo, atĂ© de poesia”, comentou rindo.Bopp participou do Movimento AntropofĂĄgico e, ao lado de Oswald de Andwaldo Costa, AntĂŽnio de AlcĂąntara Machado, lançou a Revista de Antropofagia. ra poĂ©tica relativamente pequena, Ă© autor de um dos mais belos e significaemas da lĂ­ngua portuguesa — “Cobra Norato”. OpiniĂŁo de Carlos Drummonddrade: “... Ă© possivelmente o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros, esc

m qualquer tempo.” No dizer de Manuel Bandeira: “... uma visão de um mundo pal

como que ainda em gestação.” â€œEsbocei o poema em 1921, quando estava na AmazĂŽnia. Algum tempo depois, ra SĂŁo Paulo e levei os originais dentro da mala. Somente em 1927, quandoolhido por Oswald e Tarsila Ă© que pensei em retocar um ou outro verso. O podou de mĂŁo em mĂŁo, ainda datilografado, entre os companheiros. E, em 1931,ciativa destes amigos, publicava-se Cobra Norato.” As viagens pela AmazĂŽnia marcaram a vida de Raul Bopp. “Pode-se, inclusive, divi

nha poesia em duas fases: a pré-amazÎnica e a pós. Lå se ouviam casos e est

bre os mistĂ©rios da regiĂŁo, falavam da cobra grande, temiam as doenças e a imensmato. Isto tudo ficou em mim. Recebi tambĂ©m a influĂȘncia de Antonio BrandĂŁ

morim, que usava muito os diminutivos dos verbos, recurso que eu incorporei e usbra. Lembro-me de frases como esta: ‘fulano brinca de marido com a mulhertros.’ SĂŁo os ditos populares, o folclore. Isto Ă© a minha alma, a alma dos meus livroMas os seus prĂłprios casos, uns vividos a muitos quilĂŽmetros de distĂąncia de nonteiras, sĂŁo igualmente curiosos. No mar de MĂĄrmara, tentou entrevistar Trotsky, abou nĂŁo o recebendo, alegando sua posição de asilado polĂ­tico na Turquia. No Ja

arentemente sem explicaçÔes lĂłgicas, foi convidado para um jantar que, entresentes, estava uma das figuras mais importantes da nação — Toyama, chefe da DragĂŁo Negro. Fez questĂŁo de pisar no deserto de Gobi, pois “ali estava a verdada, autĂȘntica, resignada e esquecida”. Mas, de todas estas voltas, “a maior volt

undo que dei foi na Amazînia”, escreveu certa vez.Data da Semana de Arte Moderna, em 1922, Bopp estava no Rio e, assim, rticipou pessoalmente dos acontecimentos audaciosos no Teatro Municipal de ulo.“Eu estava de longe, vendo tudo o que havia. Era como se observasse de binócul

nha colaboração no Movimento Modernista foi apenas de divulgação, jĂĄ balhava, nessa Ă©poca, na AgĂȘncia Brasileira. Mandava pequenas citaçÔes

odernistas para os jornais. Eram trechos que causavam impacto no pĂșblico.” O Movimento Modernista produziu vĂĄrias revistas entre as quais Klaxon (SP, 19

tética (RJ, 1924), A Revista (BH, 1925), Novíssima (SP, 1926), Verde (Catagua27), Festa (RJ, 1927).Foi no ano de 1928, data crucial na nossa história literåria, que as propo

boçadas em 1924 por Oswald de Andrade, no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, esp

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primeiro sinal de alerta no sentido da radicalização, vingaram. No estudo introdura edição fac-sĂ­mile, Ă s vĂ©speras do crack do 1929 e da crise do cafĂ©, foram publicras como: Retrato do Brasil, de Paulo Prado, MacunaĂ­ma, de MĂĄrio de Andrade, MarerĂȘ, de Cassiano Ricardo, A Bagaceira, de JosĂ© AmĂ©rico de Almeida. Naquele perebulição — polĂ­tica e literĂĄria — Oswald de Andrade lançava o Manifesto AntropĂłe, entre outras postulaçÔes, lutava “Contra a MemĂłria fonte do costume. A experiĂȘssoal e renovada”.

Dividida em duas fases, ou como chamaram seus fundadores, “duas dentiçÔesvista lançou dez nĂșmeros atĂ© fevereiro de 1929, ao preço de 500 rĂ©is o exemplar.“O nome surgiu por acaso. Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar um ge freqĂŒentava o solar a um restaurante lĂĄ pelas bandas de Santa Ana. Especialidas! Quando, entre aplausos, chegou a comida, Oswald levantou-se e começou a faogio da rĂŁ, uma blague, para explicar a teoria da evolução das espĂ©cies. Taerveio: ‘Somos quase antropĂłfagos.’ E, entre outras tiradas, Oswald proclamou: ‘Tnot tupy, that’s the question.’ Tarsila pintou, logo depois, um quadro e o batizou d

tropófago. A partir daí, Oswald propîs desencadear um movimento de renuinamente brasileiro”, explicou Bopp.Na fase inicial, o movimento tinha sobretudo um caráter de burla, de blague. “

Ă”es de desrespeito aos canastrĂ”es das Letras. Fazia inventĂĄrio da massa falida de esia bobalhona e sem significado”, continua Bopp. Mas ainda nessa primeira fareceram os poemas “No meio do caminho”, de Carlos Drummond, e “Noturno daLapa”, de Manuel Bandeira. E veio a “segunda dentição”, devido a divergĂȘncias

ntos de vista, em março de 1929. SaĂ­ram 16 nĂșmeros no jornal DiĂĄrio de SĂŁo Pa

m o apoio de Rubens do Amaral. Conforme escreveu o bibliĂłfilo PlĂ­nio Doyle: “A reresentava nessa fase vĂĄrias curiosidades — denominava-se ‘segunda dentiçãogĂŁo do Clube de Antropofagia, passando depois a ser ĂłrgĂŁo da Antropofagia BrasLetras; seu diretor tinha o tĂ­tulo de ‘açougueiro’.” Mas a irreverĂȘncia nĂŁo parava por aĂ­. “Os dentes sĂŁo mais afiados” e as crĂ­ticas, ertas. Com seus nomes, ou utilizando-se de pseudĂŽnimos gaiatos, assinavam nottigos que feriam os bons andamentos das manifestaçÔes literĂĄrias de ennhambebinho, Guilherme Torre de Marfim, Freuderico, Marxilar, Piripipi, JacĂł Pum cĂł Pim Pim (o prĂłprio Bopp), Seminarista Voador, entre tantos outros. É tambĂ©m nse que ganha “dinamicidade comunicativa” e a “linguagem simultĂąnea e descons noticiĂĄrios foi explorada ao mĂĄximo”, “um contrajornal dentro do jornal”, escregusto de Campos.O ponto de reuniĂŁo era a rua Piracicaba, casa de Oswald e Tarsila. “LĂĄ os pocontravam sempre um papo, uma companhia. JĂĄ na rua Lopes Chaves, onde

ĂĄrio de Andrade, o clima era mais sisudo, o ar mais solitĂĄrio”, comentou Bopp.“Oswald era dispersivo em suas idĂ©ias. Figura polĂȘmica, contraditĂłria, capa

mprar uma discussĂŁo pelo simples prazer de polemizar. Era um tipo mais aberto

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årio, não. Quando se deu a Antropofagia, ano de lançamento de Macunaíma, havianto comum em suas idéias, planos ferozmente nacionalistas. Oswald insistiu para

ĂĄrio integrasse o movimento, mas parece que o autor de PaulicĂ©ia desvairada prentinuar fazendo sua literatura sozinho. Desentendimentos, talvez, de palavras. nca foram inimigos. Afastaram-se apenas.” Devido a este “feroz nacionalismo”, alguns escritores apontaram uma espĂ©ci

hauvinismo intelectual”, comparando o grupo de Oswald Ă s postulaçÔes teĂłrica

rde-Amarelo. A realidade era outra, e colaboradores da Revista de Antropobalhavam para restabelecer uma linha mais radical, reativar o movimento de 1bre os modernistas, escreviam: “Empalhados como pĂĄssaros de museu, vivem as estantes acadĂȘmicas, purgando o remorso da Semana de Arte Moderna.”guida, vinha um conselho antropĂłfago: “A rapaziada deve se prevenir contstificação. Deve reagir a pau.” â€œA minha participação”, explicou Bopp, “foi mais no sentido de divulgação da revestabelecer contatos, solicitar matĂ©rias, colaboraçÔes, realizar um trabalho editor

vista era uma espĂ©cie de cartĂŁo de visita para todo o intelectual do Brasil. Era sa nova, moderna, radical, ousada, diferente do que se publicava na Ă©poca. Nblico era muito restrito e contĂĄvamos ainda com problemas de distribuição. Fazquinha’, pagĂĄvamos a impressĂŁo da revista e os exemplares seguiam pelo correioafora. Mas ela nĂŁo teve uma grande repercussĂŁo na imprensa, apenas as notinhaaxe.” Para a “terceira dentição”, programou-se o I Congresso Mundial de Antropofagia,

ria realizado em VitĂłria. Era idĂ©ia do grupo organizar uma “bibliotequ

tropofĂĄgica”, reunindo material, teses e ensaios sobre o assunto. Resolveu-se qmeiro volume da sĂ©rie ia ser MacunaĂ­ma, e tambĂ©m Cobra Norato foi incluĂ­do nação. A data do Congresso ficou marcada para 11 de outubro, Ășltimo dia de Amre. A 12 de outubro de 1492, como se sabe, o europeu desembarcou no novo mundA irreverĂȘncia acirrava-se na revista. Escreviam com todas as letras tudo onsavam. De Graça Aranha: “O acadĂȘmico carioca Ă© um homem confuso e sem espja inteligĂȘncia inutilmente se esforça em atrapalhar todas as noçÔes conhecidas, tnoçÔes copiadas.” De MĂĄrio de Andrade: “O nosso Miss SĂŁo Paulo traduzido

asculino.” De Tasso da Silveira, integrante da revista Festa: “Vanguarda que mam mil precauçÔes para nĂŁo estragar os sapatos.” De Menotti del Picchia: de “Le Mel Piccollo” a “a Tosca do nosso analfabetismo literĂĄrio”.Por estes caminhos malcriados e insubmissos, atacavam intelectuais estabelec

as as “piadas” jĂĄ estavam indo longe demais. Desagradavam a todos. AtĂ© que ninta-feira, a 14 de abril de 1929, em seu quinto nĂșmero, entre uma ironia e outgina antropofĂĄgica do DiĂĄrio de SĂŁo Paulo publicou, em destaque, uma citaçãvo Testamento: “Em verdade, se fizerdes o que vos digo, no Dia do JuĂ­zo estmigo no ParaĂ­so.” A citação levava o seguinte tĂ­tulo: SUBORNO. Rubens do Amaral pe

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calma. Pediu para acabar definitivamente com a pĂĄgina. Cresciam as devoluçÔenais, em protesto contra as “irreverĂȘncias antropofĂĄgicas”. Embora com sua sentmorte decretada, a pĂĄgina saiu atĂ© o nĂșmero 15, datado de 1Âș de agosto do me

o.NĂŁo bastassem a irreverĂȘncia e as tiradas sarcĂĄsticas do grupo — “sentiu-semeiro sintoma de afrouxamento de interesse pelos temas que seriam estudados pngresso de VitĂłria” — “a libido entrou, de mansinho, no paraĂ­so antropofĂĄgico”. E

nclui: “ApĂłs o changĂ© des dames geral, os amigos da Antropofagia foram-se afastawald desapareceu. Foi viver seu novo romance numa beira de praia em Santos.” Apesar das revelaçÔes de bastidores e do encerramento do grupo como movimvo, as idĂ©ias postuladas e veiculadas na revista continuam despertando interesse vos estudos. OpiniĂŁo do crĂ­tico Benedito Nunes: “Toda vez que vem Ă  tona, o cadOswald de Andrade assusta.” Para Augusto de Campos, “o grande pecado de Os

rece mesmo o de ter escrito em portuguĂȘs. Tivesse ele escrito em inglĂȘs ou franem sabe atĂ© em espanhol, e a sua Antropofagia jĂĄ teria sido entronada na constel

idĂ©ias de pensadores tĂŁo originais e inortodoxos como McLuhan, John Cage, etros”.A Antropofagia “salvou o sentido do modernismo”, afirmou certa vez o prĂłprio OsAndrade.

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ta

ublicado no suplemento Livro: Guia semanal de idĂ©ias e publicaçÔes, Jornal do Brasil, nÂș 86, 25 de maio de 1978.

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Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.

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 Vida e morte da Antropofagia:

bre o livrohttp://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=23936

bre o autorttp://www.record.com.br/autor_sobre.asp?id_autor=3253

ros do autorttp://www.record.com.br/autor_livros.asp?id_autor=3253

gina do livro no Skoobttp://www.skoob.com.br/livro/173016

gina da Wikipédia sobre o autorttp://pt.wikipedia.org/wiki/Raul_Bopp

gina da Wikipédia sobre o Modernismo no Brasilttp://pt.wikipedia.org/wiki/Modernismo_no_Brasil

bre a Revista de Antropofagiattp://www.brasiliana.usp.br/node/438

ualização completa de todos os exemplares da Revista de Antropofagiahttp://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/65/earch?query=&view=listing&rpp=40&sort_by=c.title&order=ASC

mpilação dos artigos feitos pelo EstadĂŁo em 1942, para comemorar o 20Âș aniversĂĄrio da Semana dderna

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=175420&id_secao=11

ba mais sobre a Semana de Arte Modernahttp://www.infoescola.com/artes/semana-de-arte-moderna/