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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga.pdf

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  • Jean~Pierre Vemant, historiador, nasceu em Toulouse em 1914. Iniciou estudos em filosofia em 1937 e, em 1948, passou a dedicar-se antropologia da Grcia antiga. Foi diretor de es-tudos na cole des Hautes tudes a partir de 1958, e criou em 1964 o Centre de Recherches Compares sur les Socits An-dennes. De 1975 a 1984, ocupou, no College de Franee, a cadeira de estudos comparados de religies antigas. doutor honoris causa das universidades de Chicago, Bristol, Brno, Npoles e Oxford e professor honorrio no College de France. Entre suas obras, destacam-se Les origines de la pense grecque, Mythe et pense chez les Grecs, L'individu, la mort, ['amour e L'Univers, les dieux, les hommes.

    MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    Jean-Pierre Vernant

    Traduo JOANA ANGLICA D' AVILA MELO

    ~ wmfmartinsfontes

    SO PAULO 2009

  • Esta obra foi pubJicadll origirwJmente em frllncs com o ttulo MYTHE ET REUGION EN GRECE ANCIENNE

    por ditions du SeuiJ, Paris. Copyright ditions du Seui!, 1990,

    Coleo "Lu l.ibrairie du XXI' sil'c/e", dirigida por Maurice Olcnder, para a versiW franct:Sll e Il introduo.

    Copyright Macmillan Publ/shing Company, 1987. Na verso inglesa, este texto foi publicado com o titulo "'Greek Religion"' no 6" volume de The Encyc/opedia of ReJigion, Mirem EJiade (Ed.),

    Nova Yorke l.ondres, Macmillan, 1987, pp. 99-118. Copyrighl 2006, Editora WMF Mnrtins Fontes Lida.,

    So Paulo, para a pn:sente edio.

    1~ edio 2006 2~ tiragem 2009

    Transliterao do grego Juvenal Savian Filho

    Acompanhamento editorial Mnria Fernanda Alvares Preparao do original Mnria Fernanda Alvares

    Revises grficas Sandra Garcia Cortes

    Solange Mnrtins Dinarle ZorZilnelli da Silva

    Produo grfica Geraldo Alves

    Paginao/Fotolltos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CP) (Ornara Brasileira do Uvro, sp, Brasil)

    Vemant, Jean-Plerre, 1914-Mito c religio na Grcia antiga / Jean-Pierre Vemant; tra-

    duo Joana Anglica D' Avila Melo. - So Paulo: WMF Mar-tins Fontes, 2006.

    Ttulo original: Mythe et religion en Gree andenne. Bibliografia. ISBN 85-60156-04-6

    1. Ikuses gregos 2. Grda - Religio 3. Mitologia grega I. Titulo.

  • o misticismo grego.......................................... 69 Os mistrios de Elusis ................................. 71 Dioniso, o estranho estrangeiro ................... 75 O orfismo. Em busca da unidade perdida... 81 Fugir do mundo ............................................. 85

    Bibliografia 89

    INTRODUO

    Tentar num breve ensaio fazer um quadro da re-ligio grega no seria uma aposta perdida de ante-mo? Assim que pegamos na pena para escrever, surgem muitas dificuldades e muitas objees nos assaltam, mal a tinta secou. Teremos o direito, at mesmo, de falar de religio, no sentido em que a entendemos? No "retomo do religioso" com o qual hoje todos se espantam, para comemor -lo ou para deplor-lo, o politesmo dos gregos no tem vez. Porque se trata de uma religio morta, claro, mas tambm porque nada poderia oferecer expectativa daqueles que buscam realimentar-se numa comu-nidade de crentes, num enquadramento religioso da vida coletiva, numa f ntima. Do paganismo ao mun-do contemporneo, modificaram -se o prprio esta-tuto da religio, seu papel, suas funes, tanto quan-to seu lugar dentro do indivduo e do grupo. A. -J.

  • 2 MITO E REUGlO NA GRCIA ANTIGA

    Festugiere - teremos oportunidade de voltar mais longamente a isso - exclua da religio helnica todo o campo da mitologia, sem o qual, contudo, teramos grande dificuldade em conceber os deuses gregos. Segundo ele, somente o culto, nessa religio, per-tence ao mbito religioso. O culto, ou melhor, aqui-lo que, como bom monotesta, ele acredita poder projetar de sua prpria conscincia crist sobre os ritos dos antigos. Outros estudiosos levam mais lon-ge essa excluso. Da piedade antiga suprimem tudo o que lhes parece estranho a um esprito religioso definido por referncia ao nosso. Assim, ao falar do orfismo, Comparetti afirmava em 1910 ser esta a ni-ca religio que, dentro do paganismo, merece tal nome: "todo o resto, salvo os mistrios, no passa de mito e culto". Todo o resto? exceo de uma corrente sectria inteiramente marginal em sua as-pirao a fugir deste mundo para unir-se ao divino, a religiosidade dos gregos se reduziria a ser apenas mito, ou seja, do ponto de vista desse autor, fabula-o potica e culto, isto , ainda segundo ele, con-junto de observncias rituais sempre mais ou me-nos aparentadas com as prticas mgicas das quais se originam.

    O historiador da religio grega, portanto, deve navegar entre dois escolhos. Precisa abster-se de "cristianizar" a religio que ele estuda, interpretan-do o pensamento, as condutas, os sentimentos do grego exercendo sua piedade no ,contexto de uma

    ,

    INTRODUO 3

    religio cvica tendo por modelo o crente de hoje, que assegura sua salvao pessoal, nesta vida e na outra, no seio de uma Igreja que a nica habilitada a conferir-lhe os sacramentos que fazem dele um fiel. Porm, assinalar a distncia, e mesmo as oposies, entre os politesmos das cidades gregas e os mono-tesmos das grandes religies do Livro no deve levar a desqualificar os primeiros, a suprimi -los do plano religioso para releg-los a outro domnio, vin-culando-os, como fizeram os defensores da escola antropolgica inglesa na esteira de J. G. Frazer e J. E. Harrison, a um fundo de "crenas primitivas" e de prticas" mgico-religiosas". As religies antigas no so nem menos ricas espiritualmente nem menos complexas e organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas so outras. Os fenmenos religiosos tm formas e orientaes mltiplas. A tarefa do histo-riador identificar o que a religiosidade dos gregos pode ter de especfico, em seus contrastes e suas ana-10gias com os outros grandes sistemas, politestas e monotestas, que regulamentam as relaes dos ho-mens com o alm.

    Se no houvesse analogias, no poderamos falar, a propsito dos gregos, de piedade e de im-piedade, de pureza e de mcula, de temor e de res-peito diante dos deuses, de cerimnias e de festas em homenagem a ehis, de sacrificio, de oferenda, de pre-ce, de ao de graas. Mas as diferenas saltam aos olhos; so to fundamentais que at os atos cultuais

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    cuja constncia parece ser a mais estabelecida e que, de uma religio para outra, so designados por um s e mesmo termo, como o sacrifcio, apresentam em seus procedimentos, em suas finalidades, em seu al-cance teolgico, divergncias to radicais que pos-svel falar em relao a elas tanto de permanncia quanto de mutao e de ruptura.

    Todo panteo, como o dos gregos, supe deuses mltiplos; cada um tem suas funes prprias, seus domnios reservados, seus modos particulares de ao, seus tipos especficos de poder. Esses deuses que, em suas relaes mtuas, compem uma so-ciedade do alm hierarquizada, na qual as compe-tncias e os privilgios so alvo de uma repartio bastante estrita, limitam-se necessariamente uns aos outros, ao mesmo tempo que se completam. Tal como a unicidade, o divino, no politesmo, no implica, como para ns, a onipotncia, a oniscincia, a infi-nidade' o absoluto.

    Esses deuses mltiplos esto no mundo e dele fazem parte. No o criaram por um ato que, no caso do deus nico, marca a completa transcendncia deste em relao a uma obra cuja existncia deriva e depende inteiramente dele. Os deuses nasceram do mundo. A gerao daqueles aos quais os gregos prestam um culto, os olimpianos, veio luz ao mes-mo tempo que o universo, diferenciando-se e orde-nando-se, assumia sua forma definitiva de cosmos organizado. Esse processo de gnese operou-se a par-

    INTRODUO 5

    tir de Potncias primordiais, como Vazio (Chos) e Terra (Gala), das quais saram, ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, o mundo, tal como os hu-manos que habitam uma parte dele podem contem-pl-lo, e os deuses, que a ele presidem invisveis em sua morada celeste.

    H, portanto, algo de divino no mundo e algo de mundano nas divindades. Assim, o culto no pode visar a um ser radicalmente extramundano, cuja for-ma de existncia no tenha relao com nada que seja de ordem natural, no universo fsico, na vida hu-mana, na existncia social. Ao contrrio, o culto pode dirigir-se a certos astros como a Lua, aurora, luz do Sol, noite, a uma fonte, um rio, uma rvore, ao cume de uma montanha e igualmente a um senti-mento, uma paixo (Aids, ros), uma noo moral ou social (Dke, Eynoma). No que se trate sempre de deuses propriamente ditos, mas todos, no regis-tro que lhes prprio, manifestam o divino do mes-mo modo que a imagem cultuaI, tomando presente a divindade em seu templo, pode legitimamente ser objeto da devoo dos fiis.

    Em sua presena num cosmos repleto de deuses, o homem grego no separa, como se fossem dois domnios opostos, o natural e o sobrenatural. Estes permanecem intrinsecamente ligados um ao outro. Diante de certos aspectos do mundo, experimenta o mesmo sentimento de sagrado que no comrcio com

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    os deuses, por ocasio das cerimnias que estabe-lecem o contato com eles.

    No que se trate de uma religio da natureza e que os deuses gregos sejam personificaes de for-as ou de fenmenos naturais. Eles no so nada disso. O raio, a tempestade, os altos cumes no so Zeus, mas de Zeus. Um Zeus muito alm deles, visto que os engloba no seio de uma Potncia que se es-tende a realidades, no mais fsicas mas psicolgicas, ticas ou institucionais. O que faz de uma Potncia uma divindade o fato de que, sob sua autoridade, ela rene uma pluralidade de "efeitos", para ns completamente dspares, mas que o grego relaciona entre si porque v neles a expresso de um mesmo poder exercendo-se nos mais diversos domnios. Se o raio ou as alturas so de Zeus, que o deus se ma-nifesta no conjunto do universo por tudo o que traz a marca de uma eminente superioridade, de uma supremacia. Zeus no fora natural; ele rei, de-tentor e senhor da soberania em todos os aspectos que ela pode revestir.

    Um deus nico, perfeito, transcendente, inco-mensurvel para o esprito limitado dos humanos, como alcan-lo pelo pensamento? Nas malhas de que rede o entendimento poderia abranger o infini-to? Deus no cognoscvel; pode-se apenas reco-nhec-lo, saber que ele , no absoluto de seu ser. Para preencher a intransponvel distncia entre Deus e o resto do mundo, necessria a interveno de in-

    INTRODUO 7

    termedirios, de mediadores. Para fazer-se conhecer s suas criaturas, foi preciso que Deus decidisse re-velar-se a algumas dentre elas. Numa religio mo-notesta, a f normalmente faz referncia a alguma forma de revelao: de sada, a crena enraza -se na esfera do sobrenatural. O politesmo grego no re-pousa sobre uma revelao; no h nada que funda-mente, a partir do divino e por ele, sua inescapvel verdade; a adeso baseia -se no uso: os costumes hu-manos ancestrais, os nmoi. Tanto quanto a lngua, o modo de vida, as maneiras mesa, a vestimenta, o sustento, o estilo de comportamento nos mbitos privado e pblico, o culto no precisa de outra jus-tificao alm de sua prpria existncia: desde que passou a ser praticado, provou ser necessrio. Ele ex-prime o modo pelo qual os gregos regulamentaram, desde sempre, suas relaes com o alm. Afastar-se disso significaria j no ser completamente si mes-mo, como ocorreria a algum que esquecesse de seu idioma.

    Entre o religioso e o social, o domstico e o cvi-co, portanto, no h oposio nem corte ntido, as-sim como entre sobrenatural e natural, divino e mun-dano. A religio grega no constitui um setor par-te, fechado em seus limites e superpondo-se vida familiar, profissional, poltica ou de lazer, sem con-fundir-se com ela. Se cabvel falar, quanto Gr-cia arcaica e clssica, de "religio cvica", porque ali o religioso est includo no social e, reciproca-

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    mente, o social, em todos os seus nveis e na diver-sidade dos seus aspectos, penetrado de ponta a ponta pelo religioso.

    Da uma dupla conseqncia. Nesse tipo de re-ligio, o individuo no ocupa, como tal, um lugar central. No participa do culto por razes puramen-te pessoais, como criatura singular voltada para a sal-vao de sua alma. Exerce nele o papel que seu esta-tuto social lhe atribui: magistrado, cidado, membro de uma fratria, de uma tribo ou de um demo, pai de famlia, matrona, jovem - rapaz ou moa - nos diversos aspectos de sua entrada na vida adulta. Religio que consagra uma ordem coletiva e que integra nesta, no lugar que convm, suas diferen-tes componentes, mas que deixa fora de seu campo as preocupaes relativas acada individuo, even-tual imortalidade deste, ao seu destino alm da mor-te. Nem mesmo os mistrios, como os de Elusis, nos quais os iniciados compartilham a promessa de uma sorte melhor no Hades, tm a ver com a alma: ne-les no h nada que evoque uma reflexo sobre a natureza dela ou a aplicao de tcnicas espirituais para sua purificao. Como observa Louis Gernet" o pensamento dos mistrios permanece suficien-temente confinado para que nele se perpetue, sem grande mudana, a concepo homrica de uma

    1. "L'anthropologie de la religion grecque" (1955), em Anthropolo-gie de Ia Crece antique, Paris, 1968, p. 12.

    INTRODUO 9

    psykh, fantasma do vivo, sombra inconsistente re-legada sob a terra.

    O fiel, portanto, no estabelece com a divinda-de uma relao de pessoa para pessoa. Um deus transcendente, precisamente por estar fora do mun-do, fora de alcance deste mundo, pode encontrar no foro ntimo de cada devoto, em sua alma, se ela ti-ver sido preparada religiosamente para tal, o lugar privilegiado de um contato e de uma comunho. Os deuses gregos no so pessoas mas Potncias. O culto os honra em razo da extrema superioridade do estatuto deles. Embora pertenam ao mesmo mundo que os humanos e, de certa forma, tenham a mesma origem, eles constituem uma raa que, ig-norando todas as deficincias que marcam as criatu-ras mortais com o selo da negatividade - fraqueza, fadiga, sofrimento, doena, morte -, encarna no o absoluto ou o infinito mas a plenitude dos valores que importam na existncia nesta terra: beleza, fora, juventude constante, permanente irrupo da vida.

    Segunda conseqncia. Dizer que o poltico est impregnado de religioso reconhecer, ao mesmo tempo, que o prprio religioso est ligado ao pol-tico. Toda magistratura tem um carter sagrado, mas todo sacerdcio tem algo de autoridade pblica. Se os deuses so da cidade, e se no existe cidade sem divindades polades que velam, interna e externa-mente, por sua salvao, a assemblia do povo que comanda a economia das hier, das coisas sagradas,

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    dos assuntos dos deuses, assim como os dos ho-mens. Ela fixa os calendrios religiosos, eclita leis sa-gradas, decide sobre a organizao das festas, sobre o regulamento dos santurios, sobre os sacrifcios a fazer, sobre os deuses novos a acolher e sobre as honras que lhes so devidas. Uma vez que no h cidade sem deuses, os deuses cvicos, em contrapar-tida, precisam de cidades que os reconheam, que os adotem e os faam seus. De certo modo eles neces-sitam, como escreve MareeI Detienne', tomar-se ci-dados para serem plenamente deuses.

    Nesta introduo, quisemos prevenir o leitor contra a tentao bastante natural de assimilar o mundo religioso dos antigos gregos quele que hoje nos familiar. Mas, ao privilegiar os traos diferen-ciais' no podamos evitar o risco de forar um pou-co o quadro. Nenhuma religio simples, homog-nea, unvoca. Mesmo nos sculos VI e V antes da nossa era, quando o culto cvico, tal como o evoca-mos, dominava toda a vida religiosa das cidades, no deixavam de existir ao lado dele, em suas franjas, correntes mais ou menos marginais de orientao diferente. preciso ir mais longe. A prpria reli-gio cvica, embora modele os comportamentos re-ligiosos, s pode garantir plenamente seu domnio reservando um lugar, em seu seio, para os cultos de

    2. La Vie quotidienne des dieux grecs (com G. Sissa), Paris, 1989, p. 172; cf. tambm pp. 218-30.

    INTRODUO 11

    mistrios cujas aspiraes e atitudes lhe so parcial-mente estranhas, e integrando a si mesma, para en-glob -la, uma experincia religiosa como o dionisis-mo, cujo esprito , sob tantos pontos de vista, con-trrio ao seu.

    Religio cvica, dionisismo, mistrios, orfismo: sobre as relaes entre eles durante o perodo de que trata nosso estudo, sobre a influncia, o alcance, a significao de cada um, o debate no est encerra-do. Historiadores da religio grega que pertencem, como Walter Burkert, a outras escolas de pensamen-to que no aquela qual eu me vinculo defendem pontos de vista diferentes dos meus. E, entre os es-tudiosos mais prximos de mim, a concordncia so-bre o essencial no deixa de apresentar, quanto a cer-tos pontos, algumas nuanas ou divergncias.

    A forma de ensaio que escolhi no me convida-va a evocar essas discusses entre especialistas nem a me lanar numa controvrsia erudita. Minha am-bio limitava -se a propor, para compreender a reli-gio grega, uma chave de leitura. Meu mestre Louis Gemet deu grande obra, sempre atual, que consa-grou ao mesmo assunto o ttulo de Le Gnie grec dans la religion3 [O gnio grego na religio]. Neste peque-no volume, quis tomar sensvel ao leitor aquilo a que chamaria de bom grado o estilo religioso grego.

    3. L. Gernet e A. Boulanger, Le Gnie grec dans la religion, 1932. Ree-ditado em 1970.

  • MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES

    A religio grega arcaica e clssica apresenta, en-tre os sculos VIII e IV antes da era crist, vrios tra-os caractersticos que necessrio lembrar. Assim como outros cultos politestas, estranha a toda for-ma de revelao: no conheceu nem profeta nem messias. Mergulha suas razes numa tradio que engloba a seu lado, intimamente mesclados a ela, todos os outros elementos constitutivos da civiliza-o helnica, tudo aquilo que d Grcia das cida-des-Estado sua fisionomia prpria, desde a lngua, a gestualidade, as maneiras de viver, de sentir, de pensar, at os sistemas de valores e as regras da vida coletiva. Essa tradio religiosa no uniforme nem estritamente determinada; no tem nenhum carter dogmtico. Sem casta sacerdotal, sem clero especia-lizado, sem Igreja, a religio grega no conhece livro sagrado no qual a verdade estivesse definitivamente

  • =

    14 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    depositada num texto. Ela no implica nenhum cre-do que imponha aos fiis um conjunto coerente de crenas relativas ao alm.

    Se de fato assim, sobre o que repousam e como se exprimem as convices ntimas dos gregos em matria religiosa? Como no se situam num plano doutrinaI, suas certezas no acarretam para o devo-to a obrigao, sob pena de impiedade, de aderir in-tegral e literalmente a um corpo de verdades defini-das; para quem cumpre os ritos, basta dar crdito a um vasto repertrio de narrativas conhecidas desde a infncia, em verses suficientemente diversas e em variantes numerosas o bastante para deixar, a cada um, uma ampla margem de interpretao. dentro desse quadro e sob essa forma que ganham corpo as crenas em relao aos deuses e que se produz, quanto natureza, ao papel e s exigncias deles, um consenso de opinies suficientemente seguras. Re-jeitar esse fundo de crenas comuns seria, da mes-ma maneira que deixar de falar grego e deixar de vi-ver ao modo grego, deixar de ser si mesmo. Mas nem por isso ignoram que existem outras lnguas, outras religies alm da sua, e sempre podem, sem cair na incredulidade, tomar em relao sua pr-pria religio distncia suficiente para elaborar a res-peito dela uma livre reflexo crtica. Os gregos no se privaram disso.

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 15

    A voz dos poetas

    Como se conserva e se transmite, na Grcia, essa massa de "saberes" tradicionais, veiculados por cer-tas narrativas, sobre a sociedade do alm, as famlias dos deuses, a genealogia de cada um, suas aventuras, seus conflitos ou acordos, seus poderes respectivos, seu domnio e seu modo de ao, suas prerrogativas, as honras que lhes so devidas? No que concerne linguagem, essencialmente de duas maneiras. Pri-meiro, mediante uma tradio puramente oral exer-cida boca a boca, em cada lar, sobretudo atravs das mulheres: contos de amas-de-leite, fbulas de ve-lhas avs, para falar como Plato, e cujo contedo as crianas assimilam desde o bero. Essas narrati-vas, esses mythoi, tanto mais familiares quanto fo-ram escutados ao mesmo tempo que se aprendia a falar, contribuem para moldar o quadro mental em que os gregos so muito naturalmente levados a ima-ginar o divino, a situ-lo, a pens-lo.

    Em seguida, pela voz dos poetas que o mundo dos deuses, em sua distncia e sua estranheza, apresentado aos humanos, em narrativas que pem em cena as potncias do alm revestindo-as de uma forma familiar, acessvel inteligncia. Ouve-se o canto dos poetas, apoiado pela msica de um instru-mento' j no em particular, num quadro ntimo, mas em pblico, durante os banquetes, as festas oficiais, os grandes concursos e os jogos. A atividade liter-

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    ria, que prolonga e modifica, pelo recurso escrita, uma tradio antiqssima de poesia oral, ocupa um lugar central na vida social e espiritual da Grcia, No se trata, para os ouvintes, de um simples diver-timento pessoal, de um luxo reservado a uma elite erudita, mas de uma verdadeira instituio que ser-ve de memria social, de instrumento de conserva-o e comunicao do saber, cujo papel decisivo. na poesia e pela poesia que se exprimem e se fixam, revestindo uma forma verbal fcil de memorizar, os traos fundamentais que, acima dos particularismos de cada cidade, fundamentam para o conjunto da Hlade uma cultura comum - especialmente no que concerne s representaes religiosas, quer se trate dos deuses propriamente ditos, quer dos demnios, dos heris ou dos mortos. Se no existissem todas as obras da poesia pica, lrica, dramtica, poder-se-ia falar de cultos gregos no plural, mas no de uma re-ligio grega. Sob esse aspecto, Homero e Hesodo exerceram um papel privilegiado, Suas narrativas so-bre os seres divinos adquiriram um valor quase ca-nnico; funcionaram como modelos de referncia para os autores que vieram depois, assim como para o pblico que as ouviu ou leu.

    Sem dvida os outros poetas no tiveram uma influncia comparvel. Mas, enquanto a cidade per-maneceu viva, a atividade potica continuou a exercer esse papel de espelho que devolvia ao grupo huma-no sua prpria imagem, permitindo-lhe apreender-se

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 17

    em sua dependncia em relao ao sagrado, defi-nir-se ante os Imortais, compreender-se naquilo que assegura a uma comunidade de seres perecveis sua coeso, sua durao, sua permanncia atravs do flu-xo das geraes sucessivas.

    Por conseguinte, um problema se apresenta ao historiador das religies. Se a poesia se encarrega de tal forma do conjunto das afirmaes que um grego se cr fundamentado a sustentar sobre os seres divi-nos, sobre as relaes deles com as criaturas mortais, se a cada poeta cabe expor, s vezes modificando-as um pouco, as lendas divinas e hericas cuja soma constitui a enciclopdia dos conhecimentos de que o grego dispe em relao ao alm, conviria consi-derar essas narrativas poticas, esses relatos dra-matizados documentos de ordem religiosa, ou atri-buir-hes apenas um valor puramente literrio? Em suma, os mitos e a mitologia, nas formas que a civi-lizao grega lhes deu, devem ser vinculados ao do-mnio da religio ou ao da literatura?

    Para os eruditos do Renascimento, assim como ainda para a grande maioria dos estudiosos do s-culo XIX, a resposta evidente, Aos olhos deles, a re-ligio grega antes de tudo aquele tesouro, mltiplo e abundante, de narrativas lendrias que os autores gregos - seguidos pelos latinos - nos transmitiram, e nas quais o esprito do paganismo permaneceu su-ficientemente vivo para oferecer ao leitor de hoje,

  • 18 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    num mundo cristo, o meio de acesso mais seguro compreenso do que foi o politesmo dos antigos.

    Alis, ao adotarem esse ponto de vista, os mo-dernos contentavam -se em seguir os passos dos an-tigos' em tomar o caminho que estes haviam traado. J no sculo VI a,c', Tegenes de Reggio e Hecateu inauguram a postura intelectual que se perpetua de-pois deles: os mitos tradicionais j no so apenas retomados, desenvolvidos, modificados; eles consti-tuem o objeto de um exame racional; submetem-se as narrativas, particularmente as de Homero, a uma reflexo crtica, ou ento aplica-se a elas um mtodo de exegese alegrica. No sculo V se inicia um traba-lho que desde ento sistematicamente continuado e essencialmente toma duas direes, Primeiro, a co-leta e a recenso de todas as tradies lendrias orais, prprias de uma cidade ou de um santurio; tal a tarefa dos cronistas que, maneira dos atidgrafos no caso de Atenas, pretendem fixar por escrito a his-tria de uma aglomerao urbana e de um povo, desde as origens mais longinquas, remontando aos tempos fabulosos em que os deuses, misturados aos homens, intervinham diretamente nos assuntos des-tes para fundar cidades e gerar as linhagens das pri-meiras dinastias reinantes, Assim possvel, a partir da poca helenstica, a compilao realizada por eru-ditos que resultar na redao de verdadeiros reper-trios mitolgicos: Biblioteca do Pseudo-Apolodoro, Fbulas e astronmicas de Higino, livro IV das Histrias

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 19

    de Diodoro, Metamorfoses de Antoninus Liberalis, co-letnea dos Mitgrafos do Vaticano.

    Em segundo lugar, e paralelamente a esse esfor-o que visa a apresentar, em forma de compndio e segundo uma ordem sistemtica, o fundo comum das lendas gregas, vemos manifestarem-se, sensveis j entre os poetas, certas hesitaes e inquietaes quanto ao crdito a atribuir, nessas narrativas, a epi-sdios escandalosos que parecem incompatveis com a eminente dignidade do divino. Mas com o desen-volvimento da histria e da filosofia que a interroga-o ganha toda a sua amplitude e que, por conse-guinte, a crtica atinge o mito em geraL Confrontada investigao do historiador e ao raciocnio do fi-1sofo' a fbula v ser-lhe recusada, dada sua con-dio de fbula, qualquer competncia para falar do divino de modo vlido e autntico, Assim, ao mesmo tempo que se dedicam com o mximo cuidado a re-pertoriar e a fixar seu patrimnio lendrio, os gregos so levados a question-lo, de maneira s vezes ra-dical, apresentando com clareza o problema da ver-dade - ou da falsidade - do mito. Nesse plano, as solues so diversas: desde a rejeio, a denegao pura e simples, at as mltiplas formas de interpre-tao que permitem" salvar" o mito substituindo a leitura banal por uma hermenutica erudita que re-vela, sob a trama da narrao, um ensinamento se-creto anlogo, por trs do disfarce da fbula, s verda-des fundamentais cujo conhecimento, privilgio do

  • I

    20 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    sbio, abre a nica via de acesso ao divino, Mas, quer recolham preciosamente seus mitos, quer os inter-pretem, critiquem-nos ou rejeitem-nos em nome de outro tipo de saber, mais verdico, os antigos conti-nuam a reconhecer neles o papel intelectual que lhes era comumente atribudo, na Grcia das cidades-Es-tado, como instrumento de informao sobre o mun-do do alm,

    Uma viso monotesta

    Contudo, entre os historiadores da primeira me-tade do sculo XX, desenha-se uma orientao nova: muitos, em sua investigao sobre a religio grega, tomam distncia em relao a tradies lendrias que eles se recusam a considerar como um documen-to de ordem propriamente religiosa, com valor de testemunho pertinente sobre o estado real das cren-as e sobre os sentimentos dos fiis. Para esses estu-diosos, na organizao do culto, no calendrio das festas sagradas, nas liturgias celebradas para cada deus em seu santurio, que reside a religio. Diante dessas prticas rituais, que formam o autntico terre-no frtil onde se enrazam os comportamentos reli-giosos' o mito aparece como excrescncia literria, como pura fabulao. Fantasia sempre mais ou me-nos gratuita dos poetas, ele s pode ter relaes longinquas com a convico ntima do crente, en-

    ~ ~

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 21

    volvido na concretude das cerimnias cultuais, na s-rie de atos cotidianos que, colocando-o diretamente em contato com o sagrado, fazem dele um homem piedoso,

    No captulo "Grcia" da Histoire gnrale des re-ligions [Histria geral das religies], publicada em 1944, A-J. Festugiere adverte o leitor nestes termos: "Poetas e escultores, obedecendo s prprias exign-cias de sua arte, inclinam -se inegavelmente a repre-sentar uma sociedade de deuses muito caracteri-zados: forma, atributos, genealogia, histria, tudo nitidamente definido; mas o culto e o sentimento popular revelam outras tendncias," Assim, v-se cir-cunscrito' de sada, o campo do religioso: "Para com-preender a verdadeira religio grega, esquecendo por-tanto a mitologia dos poetas e da arte, dirijamo-nos ao culto e aos cultos mais antigos."!

    A que respondem esse parti pris exclusivo em favor do culto e essa prevalncia atribuda, no culto,

    . ao mais arcaico? A dois tipos de razes, bem distin-tas, As primeiras so de ordem geral e ligam -se fi-10sofia pessoal do estudioso, idia que ele faz da religio. As segundas respondem a exigncias mais tcnicas: o progresso dos estudos clssicos, parti-cularmente o desenvolvimento da arqueologia e da

    1. Histoire gnrale des religions, sob a direo de M. Corce e R. Mortier, Paris, 1944. O estudo de A.-J. Festugire, intitulado "La Grce. La religion", faz parte do tomo 11: Grece-Rome, pp. 27-197.

  • 22 MITO E REUGIO NA GRCIA ANTIGA

    epigrafia, abriu queles que pesquisam o mundo an-tigo, ao lado do campo mitolgico, novos domnios de investigao que levaram a questionar, s vezes para modific-lo bem profundamente, o quadro que apenas a tradio literria oferecia da religio grega.

    Como se apresentam hoje esses dois pontos? Em relao ao primeiro, vrias observaes podem ser feitas. A rejeio da mitologia repousa sobre um preconceito antiintelectualista em matria religio-sa. Por trs da diversidade das religies, assim como para alm da pluralidade dos deuses do politesmo, postula-se um elemento comum que formaria o n-cleo primitivo e universal de toda experincia reli-giosa. Ele no pode ser encontrado, claro, nas cons-trues sempre mltiplas e variveis que o esprito elaborou para tentar imaginar o divino; ento, si-tuado fora da inteligncia, no sentimento de terror sagrado que o homem experimenta cada vez que lhe imposta, em sua irrecusvel estranheza, a evidn-cia do sobrenatural. Os gregos tm uma palavra para designar essa reao afetiva, imediata e irracional, ante a presena do sagrado: thmbos, o temor reve-rencial. Essa seria a base sobre a qual se apoiariam os cultos mais antigos, as ~iversas formas assumidas pelo rito para corresponder, a partir da mesma ori-gem, pluralidade das circunstncias e das neces-sidades humanas.

    Analogamente, por trs da variedade dos nomes, das imagens, das funes prprias de cada divinda-

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 23

    de, supe-se que o rito aciona a mesma experincia do "divino" em gerai, como potncia supra -humana (to kretton). Esse divino indeterminado, em grego t thefon ou t daimnion, subjacente aos deuses espe-cficos, diversifica-se em funo dos desejos ou dos temores aos quais o culto deve responder. Nesse te-cido comum do divino, os poetas, por sua vez, recor-taro figuras singulares; e as animaro imaginando uma srie de aventuras dramticas para cada uma, ao sabor daquilo que A.-I. Festugiere no hesita em denominar "romance divino". Em contraposio, para todo ato cultuai, no h outro deus seno aque-le que invocado; uma vez que a pessoa se dirige a ele, "nele se concentra toda a fora divina, s ele considerado. Em teoria, certamente no se trata de um deus nico, j que existem outros e a pessoa sabe disso. Na prtica, porm, no estado de alma atual do fiel, o deus invocado suplanta os outros na-quele momento"'.

    A recusa a levar em conta o mito revela assim seu segredo: ela desemboca justamente naquilo que, mais ou menos conscientemente, se pretendia pro-var no incio; apagando as diferenas e as oposies que, num panteo, distinguem os deuses uns dos outros, suprime-se ao mesmo tempo toda verdadei-ra distncia entre os politesmos, do tipo grego, e o monotesmo cristo, que, ento, passa por modelo.

    2. Ibid., p. 50.

  • 24 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    Esse nivelamento dos universos religiosos, que se tenta fundir no mesmo molde, no pode satisfazer o historiador. A primeira preocupao deste no deve ser, em vez disso, distinguir os traos especficos que do a cada grande religio sua fisionomia prpria e que fazem dela, em sua unicidade, um sistema ple-namente original? Alm do temor reverencial e do sentimento difuso do divino, a religio grega apre-senta-se como uma vasta construo simblica, com-plexa e coerente, que abre para o pensamento como para o sentimento seu espao em todos os nveis e em todos os seus aspectos, inclusive o culto, O mito faz sua parte nesse conjunto da mesma maneira que as prticas rituais e os modos de figurao do divino: mito, rito, representao figurada, tais so as trs for-mas de expresso - verbal, gestual, por imagem -atravs das quais a experincia religiosa dos gregos se manifesta, cada uma constituindo uma linguagem especfica que, at em sua associao s outras duas, responde a necessidades particulares e assume uma funo autnoma,

    A decifrao do mito

    De resto, os trabalhos de Georges Dumzil e Claude Lvi-Strauss sobre o mito levaram a formu-lar de modo totalmente diferente os problemas da mitologia grega: como ler esses textos, que alcance

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 25

    intelectual reconhecer-lhes, que estatuto eles assu-mem na vida religiosa? Acabou-se o tempo em que se podia falar do mito como se se tratasse da fanta-sia individual de um poeta, de uma fabulao roma-nesca, livre e gratuita, At mesmo nas variaes s quais se presta, um mito obedece a limitaes co-letivas bastante estritas, Um autor como Calmaco, quando, na poca helenstica, retoma um tema len-drio para apresentar dele uma nova verso, no est livre para modificar vontade os elementos desse tema e para recompor-lhe o roteiro a seu bel-prazer, Ele se inscreve numa tradio; quer se amolde a ela com exatido, quer se afaste em algum ponto, sus-tentado por ela, apia-se nela e deve referir-se a ela, pelo menos implicitamente, se quiser que sua nar-rativa seja entendida pelo pblico. Louis Gernet j o assinalou: mesmo quando parece inventar tudo, o narrador trabalha respeitando a linha de uma "ima-ginao lendria" que tem seu modo de funciona-mento' suas necessidades internas, sua coerncia, Mesmo sem saber, o autor deve submeter-se s regras desse jogo de associaes, de oposies, de homolo-gias que a srie de verses anteriores desencadeou e que constituem o arcabouo conceitual comum s narrativas desse tipo. Cada narrativa, para ganhar sentido, deve ser ligada e confrontada s outras, por-que, juntas, compem um mesmo espao semntico cuja configurao particular como que a marca ca-racterstica da tradio lendria grega,

  • 26 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    esse espao mental, estruturado e ordenado, que a anlise de um mito na totalidade de suas ver-ses ou de um corpus de mitos diversos, centrados em torno de um mesmo tema, deve permitir explorar,

    A decifrao do mito, portanto, opera seguindo outros caminhos e responde a outras finalidades que no as do estudo literrio. Visa a destrinar, na pr-pria composio da fbula, a arquitetura conceitual envolvida nesta, os grandes quadros de classificao implicados, as escolhas operadas na decupagem e na codificao do real, a rede de relaes que a nar-rativa institui, por seus procedimentos narrativos, entre os diversos elementos que ela faz intervir na corrente do enredo. Em suma, o mitlogo procura re-constituir o que Dumzil denomina uma "ideologia", entendida como uma concepo e uma apreciao das grandes foras que, em suas relaes mtuas, em seu justo equilbrio, dominam o mundo - o natural e o sobrenatural-, os homens, a sociedade, fazen-do-os ser o que devem ser.

    Nesse sentido, o mito, sem se confundir com o ritual nem se subordinar a ele, tampouco se lhe ope tanto quanto j se disse, Em sua forma verbal, o mito mais explcito que o rito, mais didtico, mais apto e inclinado a "teorizar", Dessa forma, traz em si o germe daquele" saber" cuja herana a filosofia re-colher para fazer dele seu objeto prprio, transpon-do-o para outro registro de lngua e de pensamento: ela formular seus enunciados utilizando vocabulrio

    MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 27

    e conceitos desvinculados de qualquer referncia aos deuses da religio comum, O culto menos desinte-ressado, mais envolvido com consideraes de ordem utilitria. Mas nem por isso menos simblico, Uma cerimnia ritual desenrola -se segundo um roteiro cujos episdios -so to estritamente ordenados, to cheios de significao quanto as seqncias de uma narrativa, Cada detalhe dessa encenao, atravs da qual o fiel, em circunstncias definidas, busca repre-sentar sua relao com este ou aquele deus, com-porta uma dimenso e um desgnio intelectuais: im-plica certa idia do deus, das condies de sua abor-dagem, dos efeitos que os diversos participantes, em funo de seu papel e de seu estatuto, podem espe-rar dessa inter-relao simblica com a divindade,

    Assumem o mesmo carter os modos de figura-o, Conquanto tenham dado, na poca clssica, um lugar privilegiado grande esttua antropomorfa do deus, os gregos conheceram todas as formas de re-presentao do divino: smbolos no-icnicos, fos-sem eles objetos naturais, como uma rvore ou uma pedra bruta, fossem produtos confeccionados pela mo humana: poste, pilar, cetro; figuras icnicas di-versas: pequeno dolo mal desbastado, no qual a for-ma do corpo, dissimulada pelas roupas, nem sequer visvel; figuras monstruosas nas quais o bestial se mescla ao humano; simples mscara em que o divi-no evocado por um rosto encovado, de olhos fas-cinantes; esttua plenamente humana, Nem todas

  • --

    28 MiTO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    essas figuras so equivalentes nem convm indiferen-temente a todos os deuses ou a todos os aspectos de um mesmo deus. Cada uma tem sua prpria manei-ra de traduzir certos aspectos do divino, de "presen-tificar" o alm, de inscrever e de localizar o sagrado no espao deste mundo: um pilar ou um poste cra-vados no solo no tm nem a mesma funo nem o mesmo valor simblico de um dolo ritualmente des-locado de um lugar a outro, de uma imagem encer-rada num depsito secreto, com as pernas acorren-tadas para no poder fugir, de uma grande esttua cultuaI instalada definitivamente num templo para mostrar a presena permanente do deus em sua casa. Cada forma de representao implica, para a divin-dade figurada, um modo particular de manifestar-se aos humanos e de exercer, atravs de suas imagens, o tipo de poder sobrenatural cujo controle ela possui.

    Se, de acordo com modalidades diversas, mito, figurao e ritual operam todos no mesmo registro de pensamento simblico, compreende-se que eles possam associar-se para fazer de cada religio um conjunto ou, retomando as palavras de Georges Du-mzil: "Conceitos, imagens e aes articulam-se e formam por suas ligaes uma espcie de rede na qual, de direito, toda a matria da experincia huma-na deve se prender e se distribuir."3

    3. L'Hritage indo-europen Rome, Paris, 1949, p. 64.

    o MUNDO DOS DEUSES

    Se mito, ritual e figurao constituem essa" rede" de que fala Dumzil, ainda preciso, como ele o fez, localizar nela as malhas e delimitar as configuraes desenhadas por seu entrelaamento. Tal deve ser a tarefa do historiador.

    No caso grego, essa tarefa revela-se muito mais difcil do que no das outras religies indo-europias, nas quais o esquema das trs funes - soberania, guerra, fecundidade - se manteve no essencial. Ser-vindo de arcabouo e como que de elemento de sus-tentao para todo o edifcio, essa estrutura, nos ca-sos em que est claramente atestada, confere ao con-junto da construo uma unidade de que a religio grega parece bem desprovida.

    De fato, ela apresenta uma complexidade de or-ganizao que exclui o recurso a um cdigo de leitu-ra nico para todo o sistema. Sem dvida, um deus

  • 30 MITO E REUGLO NA GRCIA ANTIGA

    grego define-se pelo conjunto de relaes que o unem e o opem s outras divindades do panteo, mas as estruturas teolgicas assim evidenciadas so dema-siado mltiplas e sobretudo de ordem demasiado diversa para poderem integrar-se no mesmo esque-ma dominante. Segundo as cidades, os santurios, os momentos, cada deus entra numa rede variada de combinaes com os outros. Esses reagrupamentos de deuses no obedecem a um modelo nico, que tenha valor privilegiado; eles se ordenam numa plu-ralidade de configuraes que no se superpem exatamente, mas sim compem um quadro de v-rias entradas, de eixos mltiplos, cuja leitura varia em funo do ponto de partida considerado e da pers-pectiva adotada.

    Zeus, pai e rei

    Tomemos o exemplo de Zeus, exemplo que, para ns, tanto mais instrutivo quanto o nome desse deus revela claramente sua origem: nele se l a mes-ma raiz indo-europia, com o significado de "brilhar", que est no latim dies-deus e no vdico dyeus. Como o Dyaus pita indiano ou como o Jpiter romano, Zeus pater, Zeus pai, prolonga diretamente o grande deus indo-europeu do cu. Contudo, entre o estatuto des-se Zeus grego e o dos seus correspondentes na ndia e em Roma, o afastamento to manifesto, a distn-

    o MUNDO DOS DEUSES 31

    cia to marcada, que se impe a constatao, at na comparao entre os deuses de cujo parentesco se tem mais certeza, de um desaparecimento quase completo da tradio indo-europia no sistema re-ligioso grego.

    Zeus no figura em nenhum grupamento trifun-cional anlogo trade pr-capitolina Jpiter-Mar-te-Quirino, na qual a soberania (Jpiter) se articula opondo-se ao guerreira (Marte) e s funes de fecundidade e prosperidade (Quirino). Ele tampouco se associa, como faz Mitra com Varuna, a uma Potn-cia que traduz, na soberania, ao lado dos aspectos regulares e jurdicos, os valores de violncia e de ma-gia. Ourans, o escuro cu noturno, que s vezes al-guns foram tentados a aproximar de Varuna, faz du-pla no mito com Gaza, a Terra, e no com Zeus.

    Como soberano, Zeus encarna, diante da tota-lidade dos outros deuses, a maior fora, o poder su-premo: Zeus de um lado, todos os olimpianos reu-nidos do outro, ainda Zeus que prevalece. Diante de Cronos e dos deuses Tits em liga contra ele para disputar o trono, Zeus representa a justia, a exata repartio das honrarias e das funes, o respeito aos privilgios de que cada um pode se prevalecer, a preocupao com aquilo que devido mesmo aos mais fracos. Nele e por ele, em sua realeza, a potn-cia e a ordem, a violncia e o direito, reconciliados, conjugam-se. Todos os reis vm de Zeus, dir Heso-do, no sculo VIla. c., no para opor o monarca ao

  • 32 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    guerreiro e ao campons, mas para afirmar que en-tre os homens no existe verdadeiro rei que no se d por tarefa fazer triunfar a justia pacificamente. De Zeus vm os reis, ecoar Calmaco quatro sculos mais tarde; mas o estabelecimento desse parentesco dos reis e da realeza com Zeus no se inscreve num quadro trifuncional; ele vem coroar uma srie de enunciados similares, ligando a cada vez uma cate-goria particular de homens divindade que a patro-cina: os ferreiros a Hefesto, os soldados a Ares, os caadores a rtemis, os cantores acompanhados da lira a Febo (Apolo), assim como os reis ao deus-rej!o

    Quando Zeus entra na composio de uma tra-de, como faz com Posidon e Hades, para delimitar nveis ou domnios csmicos, mediante partilha: o cu cabe a Zeus, o mar a Posidon, o mundo subter-rneo a Hades; e a superfcie do solo aos trs, em co-mum. Quando ele se associa em dupla a uma deusa, a dade assim formada traduz aspectos diferentes do deus soberano, segundo a divindade feminina que o complementa. Conjugado a G, ou Gaia, a Terra-Me, Zeus figura o princpio celeste, masculino e gerador, cuja chuva fecundante criar, nas profundezas do solo, os jovens rebentos da vegetao. Acoplado a Hera, ele patrocina, sob a forma do casamento regu-lar, produtor de uma descendncia legtima, a insti-tuio que, "civilizando" a unio entre o homem e a

    1. Calmaco, Hinos, I, "A Zeus", v. 76-9.

    ~ ~

    O MUNDO DOS DEUSES 33

    mulher, serve de fundamento a toda a organizao social e cujo modelo exemplar fornecido pelo casal formado pelo rei e pela rainha. Associado a Mtis, sua primeira esposa, que ele devora para assimil-Ia inteira, Zeus rei identifica -se com a inteligncia ar-dilosa' a astcia tortuosa de que necessita para con-quistar e conservar o poder, para assegurar a pereni-dade de seu reinado e proteger seu trono das ciladas, das surpresas, das armadilhas que o futuro ameaaria reservar-lhe se ele nem sempre estivesse preparado para adivinhar o imprevisto e desviar antecipada-mente os perigos deste. Ao casar-se em segundas npcias com Tmis, Zeus fixa para sempre a ordem das estaes na natureza, o equilbrio dos grupos hu-manos na cidade (Hrai) e o curso inelutvel dos Destinos individuais (Morai). Ele se faz lei csmica, harmonia social e Destino.

    Pai dos deuses e dos homens, como j o designa a Ilada - no porque tenha gerado ou criado todos os seres, mas porque exerce sobre cada um deles uma autoridade to absoluta quanto a do chefe de famlia sobre sua gente -, Zeus divide com Apolo a qualificao de Patrs, o antepassado; ao lado de Ate-na Apatria, assegura como Frtrios a integrao dos indivduos nos diversos grupos que compem a co-munidade cvica; nas cidades da Jnia, faz de todos os cidados autnticos irmos, celebrando, no seio de suas respectivas fratrias como numa mesma fa-mlia' a festa das Apatrias, isto , daqueles que se re-

  • 34 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    conhecem filhos de um mesmo pai. Em Atenas, reu-nido a Atena Polis, Zeus Polies, patrono da cida-de. Senhor e fiador da vida poltica, ele faz dupla com a deusa cuja funo, como potncia tutelar de Ate-nas, mais precisa e, poderamos dizer, mais locali-zada. Atena vela sobre sua aglomerao, como ci-dade especfica, naquilo que a distingue dos outros Estados gregos. A deusa "favorece" Atenas conce-dendo-lhe, de preferncia a qualquer outra, o duplo privilgio da concrdia interna e da vitria externa.

    Celeste, detentor judicioso do poder supremo, fundador da ordem, fiador da justia, senhor do ca-samento' pai e antepassado, patrono da cidade, o quadro da realeza de Zeus comporta ainda outras di-menses. Sua autoridade tanto poltica quanto do-mstica. Em estreita conivncia com Hstia, Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa - no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraza a morada familiar - quanto sobre a Lareira comum da cidade, no seio da aglomerao, na Hesta Koin onde velam os magistrados prtanes. Zeus Herkefos, Zeus da clausura, fecha o territrio do domnio onde se exerce a justo ttulo o poder do che-fe de famlia; Zeus Klrios, loteador, delimita e fixa as fronteiras desse domnio, deixando a Apolo Aigies e a Hermes o cuidado de proteger as portas e contro-lar os acessos. Zeus Hiksios, Zeus Xnios, recebe o suplicante e o hspede, d-lhes acesso casa que lhes estranha e assegura a salvaguarda deles aco-

    O MUNDO DOS DEUSES 35

    lhendo-os no altar domstico sem com isso assimi-l-los inteiramente aos membros da famlia. Zeus Ctsio, Zeus da posse, vela como guardio das rique-zas sobre os bens do dono da casa. Como olimpiano e celeste, Zeus opunha-se a Hades; contudo, como Ctsio, no fundo do celeiro que ele estabelece seu altar, para tomar ali o aspecto de uma serpente, ani-mal ctoniano por excelncia. Desse modo, o sobera-no pode integrar a si a parte ctoniana do universo da qual normalmente as Potncias subterrneas se en-carregam, mas que ele mesmo pode vir a expressar por uma espcie de tenso, de polaridade interna, ou mesmo de desdobramento. Ao Zeus celeste, sediado no alto do ter brilhante, corresponde em contrapon-to um Zeus Chthnios, Katachthnios, Meilchios, um Zeus de baixo, escuro e subterrneo, presente nas profundezas da terra onde faz amadurecerem, per-to dos mortos, ora as riquezas, ora as vinganas pres-tes a vir luz, se ele o consentir, sob a conduo de Hermes ctoniano.

    O cu, a terra - de um outra Zeus se faz trao-de-unio por meio da chuva (Zeus mbrios, Hytios, Ikmafos, chuvoso, mido), dos ventos (Zeus Orios, Eunemos, ventoso, de bons ventos), do raio (Zeus Astrapafos, Brontafos, Keranios, fulminante, trovejan-te). Entre o alto e o baixo, ele assegura a comunicao de outro modo ainda: pelos sinais e pelos orculos que transmitem aos mortais nesta terra as mensa-gens que os deuses celestes lhes enviam. O orculo

  • 36 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    de Dodona, o mais antigo que os gregos dizem ter existido entre eles, era um orculo de Zeus. Ele ha-via estabelecido seu santurio no lugar onde brota-ra um grande carvalho que lhe pertencia e que se elevava em linha reta para o cu, como uma coluna erguida at o ponto mais alto. O sussurro das folhas que a ramagem dessa rvore sagrada fazia ouvir aci-ma da cabea dos consulentes, no ar, fornecia-lhes as respostas s perguntas que eles vinham fazer ao soberano do cu. Alis, quando pronuncia seus or-cuIas no santurio de Delfos, Apolo no fala tanto por si mesmo quanto em nome do seu pai, a quem permanece associado e como que submetido em sua funo oracular. Apolo profeta, mas profeta de Zeus; faz apenas dar uma voz vontade do olimpiano, aos seus decretos, a fim de que, no umbigo do mundo, a palavra do Rei e do Pai ressoe aos ouvidos de quem a souber escutar. Os diferentes qualificativos de Zeus, por mais amplo que seja seu leque, no so incom-patveis. Situam-se num mesmo campo cujas ml-tiplas dimenses eles sublinham. Tomados em seu conjunto, desenham os contornos da soberania di-vina tal como os gregos a concebiam; balizam suas fronteiras, cercam seus domnios constitutivos; mar-cam os aspectos variados que a Potncia do deus-rei pode revestir, as modalidades diversas do seu exerc-cio, em ligao menos ou mais estreita, segundo os casos, com outras divindades.

    O MUNDO DOS DEUSES 37

    Mortais e imortais

    O mesmo no se d com o Zeus cretense, o Kre-tagnes, Diktafos ou Idafos, o deus-menino cujas In-fncias eram associadas aos Curetes, s suas danas e aos seus ritos orgisticos, ao fragor do choque en-tre suas armas. Desse Zeus, cujo nascimento era si-tuado em Creta, contava-se tambm a morte e mos-trava-se seu tmulo na ilha. Mas o Zeus grego, em-bora apresente muitas facetas, no pode ter nada em comum com um deus que morre. No Hino que con-sagra ao deus "sempre grande, sempre rei", Calma-co rejeita firmemente, como estranha ao seu deus, a tradio dessas narrativas. O verdadeiro Zeus no nasceu em Creta, como contam os cretenses, esses mentirosos. "Eles chegaram at a construir-te um tmulo, oh Rei; mas no, tu no morreste jamais; tu s pela eternidade."

    Aos olhos dos gregos, a imortalidade, que traa entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, um trao demasiadamente fundamental do divino para que o senhor do Olimpo possa ser assimilado de al-gum modo a uma daquelas divindades orientais que morrem e renascem. O arcabouo do sistema reli-gioso indo-europeu ao qual remete o nome de Zeus pode at ter desabado, no decorrer do segundo mi-lnio, entre os homens que, falantes de um dialeto grego, vieram em ondas sucessivas instalar-se em ter-ras da Hlade e cuja presena atestada at em Cre-

  • 38 MITO E REUGlO NA GRCIA ANTIGA

    ta, em Cnossos, j no fim do sculo XV a.c. Os con-tatos, as misturas, o intercmbio foram numerosos e contnuos; emprstimos foram tomados ao fundo religioso egeu e minoano, assim como acontece, medida que progride a expanso grega no Mediter-rneo, em relao aos cultos orientais e tracofrgios. Contudo, inegvel que, entre os sculos XIV e XII, os deuses reverenciados pelos aqueus - e cujos nomes figuram nas tabuinhas em escrita linear B de Cnossos e de Pylos - so em sua maioria os mesmos que encontramos no panteo grego clssico e que os helenos, em seu conjunto, reconhecero como seus: Zeus, Posidon, Enilio (Ares), Paiawon (Pe = Apo-lo), Dioniso, Hera, Atena, rtemis, as Duas Rainhas (Wanasso), ou seja, Demter e Cor. O mundo reli-gioso dos invasores indo-europeus da Grcia pode at ter se modificado e aberto a influncias estran-geiras; assimilando-as, ele manteve sua especificida-de e, com seus deuses prprios, seus traos distinti-vos. Dessa religio micnica da poca de Homero, durante os sculos obscuros que se seguem queda ou ao declnio dos reinos aqueus aps o sculo XII, a continuidade no marcada apenas pela manu-teno do nome dos deuses e dos locais de culto. A comunidade de certas festas celebradas pelos jnios numa e noutra margens do Mediterrneo prova que elas j deviam acontecer no sculo XI, quando se ini-da a primeira onda de colonizao de que Atenas, nico stio miceniano a permanecer intacto, teria sido

    o MUNDO DOS DEUSES 39

    o ponto de partida, e que instalou grupos de emi-grados no litoral da sia Menor para ali fundar cida-des gregas.

    Essa permanncia, contudo, no deve iludir. As-sim como o mundo dos poemas homricos no o dos reis micenianos cujas proezas o aedo, com uma defasagem de quatro sculos, pretende evocar, o uni-verso religioso de Homero no dos tempos passa-dos. De uns a outros, uma srie de mudanas e de inovaes introduziu, por trs das aparentes conti-nuidades' uma verdadeira ruptura que o texto da epopia apaga mas cuja amplitude as pesquisas ar-queolgicas, aps a leitura das tabuinhas micenia-nas, nos permitem medir.

  • A RELIGIO CVICA

    Entre os sculos XI e VIII, no perodo em que se implantam mudanas tcnicas, econmicas e demo-grficas que conduzem "revoluo estrutural" de que fala o arquelogo ingls A. Snodgrass e da qual se originou a cidade-Estado, o prprio sistema re-ligioso profundamente reorganizado em estreita conexo com as formas novas de vida social repre-sentadas pela cidade, a pls. No quadro de uma re-ligio que, doravante, essencialmente cvica, cren-as e cultos, remodelados, satisfazem uma exigncia dupla e complementar. Primeiro, respondem ao par-ticularismo de cada grupo humano que, como Cida-de ligada a um territrio definido, se coloca sob o pa-trocnio de deuses que lhe so prprios e que lhe conferem sua fisionomia religiosa singular. De fato, toda cidade tem sua ou suas divindades polades cuja funo cimentar o corpo dos cidados para fazer

  • 42 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    dele uma comunidade autntica, unir num todo ni-co o conjunto do espao cvico, com seu centro urba-no e sua chra, sua zona rural, velar, enfim, pela in-tegridade do Estado - homens e territrio - diante das outras cidades. Mas, em segundo lugar, trata -se tambm, pelo desenvolvimento de uma literatura pica desligada de qualquer raiz local, pela edifica-o de grandes santurios comuns, pela instituio dos Jogos e das pane grias pan-helnicas, de ins-taurar ou de fortalecer no plano religioso tradies lendrias, ciclos de festas e um panteo igualmente reconhecidos por toda a Hlade.

    Conquanto no queiramos fazer o balano das inovaes religiosas trazidas pela poca arcaica, de-vemos pelo menos assinalar as mais importantes. Primeiro, o aparecimento do templo como constru-o independente do habitat humano, palcio real ou casa particular. Com seu recinto a delimitar uma rea sagrada (tmenos), com seu altar exterior, o tem-plo constitui desde ento um edifcio separado do espao profano. O deus vem residir permanente-mente no lugar por intermdio de sua grande es-ttua cultuai antropomorfa ali instalada para ficar. Contrariamente aos altares domsticos, aos santu-rios privados, essa" casa do deus" coisa pblica, bem comum a todos os cidados. Consagrado di-vindade, o templo pode pertencer somente mesma cidade que o erigiu em local preciso a fim de marcar e confirmar sua posse legtima sobre um territrio:

    A RELIGIO CMCA 43

    no centro urbano, acrpole ou gora; s portas dos muros que circundam a aglomerao ou em sua pe-riferia prxima; na zona do agrs e das eschatai, das terras selvagens e dos confins, que separa cada cida-de grega dos seus vizinhos. A edificao de uma rede de santurios urbanos, sub- e extra-urbanos, bali-zando o espao com lugares sagrados, fixando, do centro at a periferia, o percurso de procisses ri-tuais' mobilizando em data fixa, na ida e na volta, toda a populao ou parte dela, visa a modelar a su-perfcie do solo segundo uma ordem religiosa. Pela mediao de seus deuses polades instalados nos respectivos templos, a comunidade estabelece entre homens e territrio uma espcie de simbiose, como se os cidados fossem filhos de uma terra da qual teriam surgido originariamente sob a forma de au-tctones e que, por essa ligao ntima com aqueles que a habitam, se v ela mesma promovida ao nvel de "terra de cidade". Assim se explica a aspereza dos conflitos que, entre os sculos VIII eVI, opuseram ci-dades vizinhas na disputa pela apropriao dos lo-cais de culto fronteirios, s vezes comuns aos dois Estados. A ocupao do santurio e sua vinculao cultual ao centro urbano tm valor de posse legtimo. Ao fundar seus templos, a plis, para garantir uma solidez inabalvel sua base territorial, implanta ra-zes at no mundo divino.

  • 44 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    Sobre os deuses e os heris

    Outra novidade, cuja significao em parte anloga, marcar profundamente o sistema religio-so. Durante o sculo VIII, desenvolve-se rapidamen-te o costume de reaproveitar construes micenianas, funerrias em sua maioria, que estavam em desuso havia sculos. Reformadas, elas servem de locais de culto para homenagens fnebres prestadas a perso-nagens lendrios, quase sempre sem relao com esses edifcios, mas invocados por linhagens, gen nobilirios ou grupos de frteres. Esses ancestrais mticos, que, como os heris da epopia de que tra-zem o nome, pertencem a um passado longnquo, a um tempo diferente do presente, vo constituir des-de ento uma categoria de Potncias sobrenaturais distintas tanto dos theo, dos deuses propriamente ditos, quanto dos mortos comuns. Mais do que o culto dos deuses, mesmo os polades, o culto dos he-ris tem um valor ao mesmo tempo cvico e territo-rial; est associado a um local preciso, um tmulo com a presena subterrnea do defunto, cujos restos foram s vezes buscados em regies distantes para serem reconduzidos ao seu lugar. Tmulos e cultos hericos, atravs do prestgio do personagem ho-menageado, exercem para uma comunidade o pa-pel de smbolo glorioso e de talism, cuja localizao s vezes mantida secreta porque de sua salvaguar-da depende a salvao do Estado. Instalados no co-

    A RELIGIO CIvrCA 45

    rao da cidade, em plena gora, eles corporificam a lembrana do fundador mais ou menos lendrio, heri arcageta e, no caso de uma colnia, ecista, ou patrocinam as diversas componentes do corpo cvi-co: tribos, fratrias e demos. Disseminados por diver-sos pontos do territrio, consagram as afinidades particulares unindo os membros de setores rurais e de aldeias, de kmai. Em todos os casos, sua funo reunir um grupo em torno de um culto cuja exclu-sividade ele detm e que aparece estritamente im-plantado num ponto preciso do solo.

    A difuso do culto herico no responde ape-nas s novas necessidades sociais que surgem com a cidade. A adorao dos heris tem uma significao propriamente religiosa. Por seu duplo distanciamen-to, de um lado em relao ao culto divino, obrigat-rio para todos e de carter permanente, e de outro em relao aos ritos funerrios, reservados ao crculo estreito dos parentes e de durao limitada, a insti-tuio herica repercute no equilbrio geral do siste-ma cultuaI. Entre os deuses, que so os beneficirios do culto, e os homens, que so seus servos, existe para os gregos uma oposio radical. Os primeiros so estranhos ao falecimento, que define a condio de existncia dos segundos. Os deuses so os ath-natoi, os Imortais; os homens, os brtoi, os perec-veis, fadados s doenas, velhice e morte. As-sim, as homenagens fnebres prestadas aos falecidos

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    situam -se num plano diferente daquele dos sacrif-cios e da devoo exigidos pelos deuses como sua parte de honra, o privilgio que lhes reservado. AB fitas que ornam o tmulo, as oferendas de bolos aos mortos, as libaes de gua, de leite, de melou de vinho devem ser renovadas no terceiro, no nono e no trigsimo dia aps o cerimonial das exquias, e mais tarde a cada ano, durante a festa dos gensia, dos antepassados, no ms Boedromion (setembro); porm, mais do que um ato de venerao diante de Potncias superiores, elas aparecem como o prolon-gamento temporrio do cerimonial dos funerais e das prticas de luto: trata -se, ao abrir para o defun-to as portas do Hades, de faz-lo desaparecer para sempre deste mundo, onde ele j no tem seu lugar. Contudo, graas aos diversos procedimentos de co-memorao (desde a estela, com epitfio e figura do morto, at os presentes depositados sobre a tumba), esse vazio, esse no-ser do morto, pode revestir a forma de uma presena na memria dos sobrevi-ventes. Sem dvida, uma presena ambgua, para-doxal, como pode ser a de um ausente, relegado ao reino das sombras, e cujo ser, doravante, se reduz to-talmente a esse estatuto social de morto que o ritual funerrio o fez adquirir mas que tambm est fada-do a desaparecer, tragado pelo esquecimento, me-dida que se renova o ciclo das geraes.

    A RELIGIO C!vICA 47

    Os semideuses

    o caso dos heris totalmente diverso. certo que eles pertencem espcie dos homens e, como tais, conheceram os sofrimentos e a morte. Mas, por toda uma srie de traos, distinguem -se, at na mor-te, da multido dos defuntos comuns. Viveram numa poca que constitui, para os gregos, o "antigo tem-po" j acabado e no qual os homens eram diferentes daquilo que so hoje: maiores, mais fortes, mais be-los. Quando se parte em busca da ossada de um he-ri, possvel reconhec-la pelo seu tamanho gigan-tesco. Essa a raa de homens, agora extinta, cujas proezas so cantadas pela poesia pica. Celebrados pelos aedos, os nomes dos heris, contrariamente aos dos outros mortos, que se fundem sob a terra na massa indistinta e esquecida dos nnymnoi, dos "sem-nome", permanecem vivos para sempre, ra-diantes de glria, na memria de todos os gregos. A raa dos heris forma o passado lendrio da Grcia das cidades, as razes s quais se ligam as famlias, os grupos, as comunidades dos helenos. Mesmo sen-do homens, sob vrios pontos de vista esses ances-trais aparecem mais prximos dos deuses, menos se-parados do divino do que a humanidade atual. N es-se tempo passado, os deuses ainda se misturavam de bom grado aos mortais, convidavam -se para a casa destes, comiam s suas mesas em refeies comuns, insinuavam-se at mesmo s suas camas para unir-se

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    a eles e, no cruzamento das duas raas, a perecvel e a imortal, gerar belos filhos. Os personagens hericos cujos nomes sobreviveram e cujo culto era celebra-do em seus tmulos apresentam-se muito freqen-temente como o fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos. Como diz Hesodo, eles formam" a raa divina dos heris que so denominados semideuses (hemitheo) " . Se o nascimento s vezes lhes atribui uma ascendn-cia semidivina, a morte tambm os coloca acima da condio humana. Em vez de descerem s tre-vas do Hades, eles so, graas ao divino, "arreba-tados", transportados, alguns ainda vivos, a maioria aps a morte, para um lugar especial, afastado, para as ilhas dos Bem-Aventurados, onde continuam a gozar, em permanente felicidade, de uma vida com-parvel dos deuses.

    Sem preencher a intransponvel distncia que separa os humanos dos deuses, o estatuto herico, desse modo, parece abrir a perspectiva da promoo de um mortal a um estatuto, se no divino, pelo me-nos prximo do divino. Mas, durante todo o perodo clssico, essa possibilidade permanece rigorosamen-te confinada num estreito setor. Ela contrariada, para no dizer repelida, pelo prprio sistema reli-gioso. De fato, a piedade, como a sabedoria, ordena no pretender igualar-se a um deus. Os preceitos de Delfos: "Sabe quem tu s", "Conhece-te a ti mesmo" no tm outro sentido. O homem deve aceitar seus

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    limites. Portanto, afora as grandes figuras lendrias como Aquiles, Teseu, Orestes ou Hracles, a heroici-zao se restringir aos primeiros fundadores de co-lnias ou a personagens que adquiriram, aos olhos de uma cidade, um valor simblico exemplar, como Lisandro em Samos ou Timoleonte em Siracusa. Os casos de heroicizao que conhecemos na poca clssica so extremamente raros. Jamais concernem a um personagem ainda vivo, mas a um morto que aparece, tardiamente, como portador de um nmen, de uma temvel potncia sacra, ou por suas parti-cularidades fsicas extraordinrias - tamanho, fora, beleza -, ou pelas prprias circunstncias de sua morte, se ele tiver sido fulminado por um raio ou de-saparecido sem deixar vestgios, ou ainda pelos ma-1efcios atribudos ao seu fantasma, a quem se mos-tra ento necessrio apaziguar. Um nico exemplo: em pleno sculo V, o pugilista deomedes de Asti-palia, dotado de uma fora excepcional, mata seu adversrio durante o combate; privado do prmio por deciso dos juzes, volta para casa enlouquecido de furor. Numa escola, agarra -se ao pilar que sus-tenta o teto; este desaba sobre as crianas. Persegui-do pela multido, que quer apedrej-lo, esconde-se no santurio de Atena, dentro de uma arca cuja tam-pa ele fecha sobre si. Finalmente, conseguem arrom-b-la. A arca est vazia. Nada de Cleomedes, nem vivo nem morto. Consultada, a Ptia recomenda ins-tituir um culto herico em homenagem a esse pugi-

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    lista, colocado acima do comum por sua fora, sua fria, seus malefcios, sua morte: preciso sacrifi-car-se a ele" como j no sendo um mortal". Mas o orculo assinala sua reserva ao proclamar ao mes-mo tempo, como relata Pausnias, que Cleomedes "o ltimo heri".

    No nos enganemos. No importa que os he-ris constituam, atravs das honrarias que lhes so prestadas, uma categoria de seres sobre-humanos: seu papel, seu poder, os domnios nos quais eles in-tervm no interferem com os dos deuses. Eles se si-tuam em outro plano e jamais exercem, da terra para o cu, um papel de intermedirios. Os heris no fazem as vezes de intercessores. So Potncias" in-dgenas" ligadas quele ponto do solo onde tm sua morada subterrnea; sua eficcia adere tumba e ossada de cada um. Existem heris annimos, desig-nados apenas pelo nome do lugar onde foi estabe-lecido seu tmulo; o caso do heri de Maratona. Esse carter local paralelo a uma rigorosa especia-lizao. Muitos heris no tm outra realidade alm da estrita funo qual se destinam e que os define inteiramente. Em Olmpia, na curva da pista, havia uma tumba sobre a qual os concorrentes ofereciam sacrifcios: a do heri Taraxipo, o Espanta -Cavalos. De igual modo, encontram-se heris mdicos, guar-da-portes, cozinheiros, enxota-moscas, um heri da refeio, da fava, do aafro, um heri para misturar a gua e o vinho ou para moer o gro.

    A RELIGIO eMCA 51

    Se a cidade pde reunir numa mesma categoria cultual as figuras bem individualizadas dos heris de antanho cuja biografia lendria a epopia havia fixa-do, dos contemporneos notveis, dos defuntos an-nimos dos quais s restava o monumento funerrio, das espcies de demnios funcionais, que, dentro de seus tmulos, eles manifestavam os mesmos con-luios com as potncias subterrneas, compartilha-vam o mesmo carter de localizao territorial e po-diam ser igualmente utilizados como smbolos pol-ticos. Institudo pela cidade nascente, ligado ao terri-trio desta, que ele protege, aos grupos de cidados, que ele patrocina, o culto dos heris no desembo-car, na poca helenstica, na divinizao de per-sonagens humanos nem no estabelecimento de um culto dos soberanos: esses fenmenos se ligam a uma mentalidade religiosa diferente. Solidrio ci-dade, o culto herico declinar junto com ela.

    Seu advento, contudo, no ter sido sem conse-qncias. Por sua novidade, o culto herico levou a um esforo de definio e de categorizao mais es-tritas das diversas potncias sobrenaturais. Hesodo, no sculo VII, foi o primeiro a distinguir de modo claro e ntido, como notar Plutarco, as diferentes classes de seres divinos repartidos entre quatro gru-pos: deuses, demnios, heris, mortos. Retomada pe-los pitagricos e por Plato, essa nomenclatura das divindades s quais os homens devem venerao aparece com bastante freqncia, no sculo IV, para

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    figurar nas perguntas que os consulentes dirigem ao orculo de Dodona. Numa das inscries ali encon-tradas, certo Euandros e sua mulher interrogam o orculo para saber" a qual dos deuses, ou dos heris, ou dos demnios" eles devem sacrificar-se e dirigir suas preces.

    DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFCIO

    Para orientar-se em sua prtica cultuai, portanto, o fiel deve levar em conta a ordem hierrquica que preside sociedade do alm. No topo, os theo, os deuses, grandes e pequenos, que formam a raa dos Bem-Aventurados Imortais. Agrupados sob a auto-ridade de Zeus, eles so os olimpianos. Portanto, di-vindades celestes, em princpio, embora alguns de-les, como Posidon e Demter, comportem aspectos ctonianos. Existe, claro, um deus do mundo subter-rneo' Hades, mas ele precisamente o nico a no ter nem templo nem culto. Os deuses so tornados presentes neste mundo em espaos que lhes perten-cem: primeiro, os templos onde residem, mas tam-bm os locais e os objetos que lhes so consagrados e que, especificados como hier, sagrados, podem ser alvo de interdies: bosque (/50S), bosquete, fonte, cimo de um monte, terreno delimitado por uma cer-

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    ca OU por marcos (tmenos), encruzilhada, rvore, pe-dra, obelisco. O templo, morada reservada ao deus como seu domiclio, no serve de local de culto onde os fiis se reuniriam para celebrar os ritos. o altar exterior, o boms, bloco de alvenaria quadrangular, que preenche essa funo: em torno dele e sobre ele cumpre-se o rito central da religio grega cuja an-lise se impe em primeiro lugar, a saber, o sacrif-cio, a thysia. Normalmente, trata-se de um sacrifcio cruento de tipo alimentar: um animal domstico, enfeitado, coroado, ornado de fitas, levado em cor-tejo ao som das flautas at o altar, aspergido com gua lustrai e com um punhado de gros de cevada que tambm so lanados sobre o solo, o altar e os participantes, tambm eles portadores de coroas. A cabea da vtima ento levantada; cortam-lhe a gar-ganta com um golpe de mchaira, uma espada curta dissimulada sob os gros no kaneoyn, o cesto ritual. O sangue que jorra sobre o altar recolhido num re-cipiente. O animal aberto; extraem -se suas vsceras, especialmente o fgado, que so examinadas para que se saiba se os deuses aprovam o sacrifcio. Nes-se caso, a vtima logo retalhada. Os ossos longos, inteiramente descarnados, so postos sobre o altar. Envoltos em gordura, so consumidos pelas chamas com aromatizantes e, sob a forma de fumaa per-fumada, elevam -se para o cu, em direo aos deu-ses. Alguns pedaos internos, os splgchna, enfiados em espetos, so grelhados sobre o altar, no mesmo

    l

    DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlcIO 55

    fogo que envia divindade a parte que lhe cabe, es-tabelecendo assim o contato entre a Potncia sagra-da destinatria do sacrifcio e os executantes do rito, aos quais essas carnes grelhadas esto reservadas. O resto da carne, fervido em caldeires e depois cor-tado em pores iguais, s vezes consumido no lo-cal, s vezes levado para casa pelos participantes, e outras distribudo fora, no mbito de uma comuni-dade menos ou mais ampla. Certas partes de honra, como a lngua ou o couro, cabem ao sacerdote que presidiu cerimnia, mesmo que sua presena no seja indispensvel. Em princpio, todo cidado, se no tiver nenhuma mcula, est plenamente quali-ficado para proceder ao sacrifcio. Tal o modelo cor-rente, cujo alcance religioso ser necessrio definir, distinguindo suas implicaes teolgicas. Mas al-guns esclarecimentos so desde j indispensveis para nuanar esse quadro.

    Certas divindades e certos rituais, como o de Apolo Genetor em Delfos e o de Zeus Hypatos na tica, exigem, em vez do sacrifcio cruento, oblaes vegetais: frutos, ramos, sementes, mingau (pelans), bolos, aspergidos com gua, leite, melou azeite, ex-cluindo-se o sangue e mesmo o vinho. H casos em que oferendas desse tipo, quase sempre consumidas no fogo, mas s vezes simplesmente depositadas so-bre o altar sem serem queimadas (pyra), assumem um carter de ntida oposio prtica corrente. Con-siderados como sacrifcios "puros", contrariamente

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    queles que implicam a execuo de um ser vivo, ser-viro de modelo a correntes sectrias. rficos e pi-tagricos os invocaro para pregar, em seu modo de vida, um comportamento ritual e uma atitude pe-rante o divino que, rejeitando como mpio o sacri-fcio cruento, iro distinguir-se do culto oficial e pa-recero estranhos religio cvica.

    Por outro lado, o prprio sacrifcio cruento com-porta duas formas diferentes, conforme se dirija a deuses celestes e olimpianos ou a deuses ctonianos e infernais. A lngua j os distingue; os gregos em-pregam, para os primeiros, o termo thyefn e, para os segundos, enagizefn ou sphattefn.

    A thysa, como vimos, tem por centro um altar elevado, o boms. O sacrifcio ctoniano no compor-ta altar, a no ser um altar baixo, eschra, com um ori-fcio para que o sangue escoe para dentro da terra. celebrado normalmente noite, sobre uma cova (bthros) que abre o caminho para o mundo infernal. O animal imolado, j no com a cabea puxada para o alto, mas aba~ada em direo terra que o sangue vai inundar. Uma vez degolada, a vtima j no alvo de nenhuma manipulao ritual: ofere-cida em holocausto, inteiramente queimada sem que os celebrantes sejam autorizados a toc-la e so-bretudo a comer dela. Nesse tipo de rito, em que a oferenda aniquilada para ser entregue em sua to-talidade ao alm, trata-se menos de estabelecer com a divindade um intercmbio regular, dentro da con-

    DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlcIO 57

    fiana recproca, que de afastar foras sinistras, de pacificar uma Potncia temvel cuja abordagem, para no ser nefasta, exige defesa e precauo. Ritual de averso, poderamos dizer, mais que de aproxima-o, de contato. compreensvel que seu uso seja essencialmente reservado ao culto das divindades ctonianas e infernais, aos ritos expiatrios, aos sa-crifcios oferecidos aos heris e aos mortos, no fun-do de seus tmulos.

    Repasto de festa

    . No sacrifcio olimpiano, a orientao voltada para as divindades celestes no marcada somente pela luz do dia, pela presena do altar, pelo sangue que jorra para o alto por ocasio da degola. Um trao fun-damental desse ritual ser ele, indissociavelmente, uma oferenda para os deuses e um repasto de fes-ta para os homens. O ponto culminante da ao sem dvida o instante, pontuado pelo grito ritual, o ololygms, em que a vida abandona o animal e pas-sa para o alm, para a companhia dos deuses; mas isso no impede que todas as partes dele, cuidado-samente recolhidas e tratadas, sejam destinadas aos homens, que as consomem juntos. A prpria imola-o se produz numa atmosfera de cerimnia fausto-sa e alegre. Toda a encenao ritual, desde a procis-so em que o animal, em grande pompa, conduzi-

  • 58 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    do livremente, sem amarras, at a dissimulao do cutelo dentro do cesto e o estremecimento pelo qual a vtima, aspergida, supostamente concorda com a imolao, tudo visa a apagar os vestgios da violn-cia e da execuo para colocar em primeiro plano o aspecto de solenidade pacfica e de festa jubilosa. Acrescentemos que, na economia da thysia, os pro-cedimentos de retalhamento da vtima, de cozimen-to dos pedaos, grelhados ou fervidos, de sua repar-tio determinada em fatias iguais, de seu consumo no local ou fora dele (apophor) no so menos im-portantes que as operaes rituais de abate. Essa funo alimentar do rito exprime-se num vocabu-1rio em que sacrifcio e aougue no se distinguem. O termo hierein, que designa um animal como v-tima sacrificial, qualifica -o tambm como animal de corte, pr9prio para o consumo. Como os gregos s comem carne por ocasio dos sacrifcios e conforme as regras sacrificiais, a thysia , simultaneamente, um cerimonial religioso em que uma piedosa oferenda, com freqncia acompanhada de orao, ende-reada aos deuses; uma cozinha ritualizada segun-do as normas alimentares que os deuses exigem dos humanos; e um ato de comunho social que, pelo consumo das partes de uma mesma vtima, refora os vnculos que devem unir os cidados e torn -los iguais entre si.

    Pea central do culto e elemento cuja presena indispensvel em todos os nveis da vida coletiva, na

    DOS HOMENS AOS DEUSES; O SACRlFiao 59

    famlia e no Estado, o sacrifcio ilustra a estreita im-bricao entre o religioso e o social na Grcia das ci-dades. Sua funo no arrancar o sacrificante e os participantes, pelo tempo que durar o rito, aos seus grupos familiares e cvicos, s suas atividades cor-riqueiras, ao mundo humano que o deles, mas, ao contrrio, instal-los nessas situaes, no local e nas formas exigidas, integr-los cidade e existncia deste mundo segundo a ordem do mundo qual os deuses presidem. Religio "intramundana", no sen-tido de MaxWeber, religio "poltica", na acepo grega do termo. Nela, o sagrado e o profano no for-mam duas categorias radicalmente contrrias, exclu-dentes uma da outra. Entre o sagrado inteiramente proibido e o sagrado plenamente utilizvel, encon-tra-se uma multiplicidade de formas e de graus. Alm das realidades que so dedicadas a um deus, reser-vadas ao seu uso, h algo de sagrado nos objetos, nos seres vivos, nos fenmenos da natureza, assim como nos atos corriqueiros da vida privada - uma refeio, uma partida em viagem, a acolhida a um hspede - e naqueles, mais solenes, da vida pblica. Todo pai de famlia assume em sua residncia fun-es religiosas para as quais est qualificado sem preparao especial. Qualquer dono de casa puro, se no tiver cometido um erro que o deixe maculado. Nesse sentido, a pureza no tem de ser adquirida ou obtida; ela constitui o estado normal do cidado. Na cidade, no existe separao entre sacerdcio e ma-

  • 60 MITO E REUGIO NA GRCIA ANTIGA

    gistratura. H sacerdcios que so atribudos por di-reito e ocupados como magistraturas, e todo magis-trado, em suas funes, reveste-se de um carter sagrado. Todo poder poltico, para ser exercido, toda deciso comum, para ser vlida, exigem a prtica de um sacrifcio. Na guerra ou na paz, antes de travar batalha ou na abertura de uma assemblia, ou ainda na posse dos magistrados, a execuo de um sacrif-cio no menos necessria que durante as grandes festas religiosas do calendrio sacro. Como lembra com justeza Marcel Detienne em La Cuisine du sa-criftce en pays grec [A cozinha do sacrifcio em ter-ra grega]: "At uma poca tardia, uma cidade como Atenas conserva em exerccio um arconte rei do qual uma das maiores atribuies a administrao de todos os sacrifcios institudos pelos antepassados, do c5mjunto dos gestos rituais que garantem o fun-cionamento harmonioso da sociedade."1

    Se a thysia se revela to indispensvel para as-segurar s prticas sociais sua validade, que o fogo sacrificial, ao fazer subir para o cu a fumaa dos per-fumes, da gordura e dos ossos, cozinhando ao mes-mo tempo a parte dos homens, abre entre os deuses e os participantes do rito uma via de comunicao. Ao imolar uma vtima, ao queimar-lhe os ossos, ao comer a carne dela segundo as regras rituais, o ho-

    1. Volume coletivo, sob a direo de M. Detienne e J.-P. Vernant, Paris, 1979,p. 10.

    DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFlc/O 61

    mem grego institui e mantm com a divindade um contato sem o qual sua existncia, abandonada a si mesma, desmoronaria, vazia de sentido. Esse conta-to no uma comunho: no se come o deus, mes-mo sob forma simblica, para identificar-se com ele e participar de sua fora. Consome-se uma vtima animal, um bicho domstico, e come-se dele uma parte diferente da que oferecida aos deuses. O vnculo que o sacrifcio grego estabelece sublinha e confirma, na prpria comunicao, a extrema distn-cia que separa mortais e imortais.

    Os ardis de Prometeu

    Quanto a isso, os mitos de fundao do sacrifcio so muito precisos. Esclarecem plenamente as sig-nificaes teolgicas do ritual. O Tit Prometeu, filho de Jpeto, quem teria institudo o primeiro sacrif-cio, fixando assim para sempre o modelo ao qual os humanos se adaptam para honrar os deuses. O epi-sdio se passa num tempo em que deuses e homens ainda no estavam separados: viviam juntos, feste-jando s mesmas mesas, compartilhando a mesma felicidade, longe de todos os males. Os humanos desconheciam ento a necessidade do trabalho, as doenas, a velhice, as fadigas, a morte e a espcie das mulheres. Tendo Zeus sido promovido a rei do cu e procedido, entre deuses, a uma justa repartio

  • 62 MITO E REUGIO NA GRCIA ANTIGA

    das honrarias e das funes, chegou o momento de fazer o mesmo entre homens e deuses e de delimi-tar exatamente o tipo de vida prprio a cada uma das duas raas. Prometeu encarregado da operao. Diante de deuses e homens reunidos, ele traz, abate e retalha um enorme boi. De todos os pedaos cor-tados, faz duas partes. A fronteira que deve separar deuses e homens segue, portanto, a linha de partilha entre aquilo que, no animal imolado, cabe a uns e a outros. O sacrifcio aparece assim como o ato que consagrou, efetuando-a pela primeira vez, a segre-gao dos estatutos divino e humano. Mas Prome-teu, em rebelio contra o rei dos deuses, quer enga-n-lo em proveito dos homens. Cada uma das duas partes preparadas pelo Tit um ardil, uma armadi-lha. A primeira, sob a camuflagem de um pouco de gordura apetitosa, s contm os ossos descamados; a segunda esconde, sob o couro e o estmago, de as-pecto repulsivo, tudo o que h de comestvel no ani-mal. O seu ao seu dono: cabe a Zeus, em nome dos deuses, escolher primeiro. Ele, porm, compreende a armadilha e finge cair nela para melhor requintar sua vingana. Ento, escolhe a poro externamen-te tentadora, a que dissimula, sob uma fina camada de gordura, os ossos incomveis. Essa a razo pela qual, nos altares odorferos do sacrifcio, os homens queimam para os deuses os ossos brancos da vitima cujas carnes vo partilhar. Guardam para si a poro que Zeus no reteve: a da vianda. Prometeu imagi-

    b

    DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFiCIO 63

    nava que, destinando-a aos humanos, reservava-lhes a melhor parte. Porm, por mais esperto que fosse, no desconfiava de que estava dando a eles um pre-sente envenenado. Ao comerem a carne, os huma-nos assinam sua sentena de morte. Dominados pela lei do ventre, doravante iro comportar-se como to-dos os animais que povoam a terra, as ondas ou o ar. Se eles se comprazem em devorar a carne de um bi-cho a quem a vida abandonou, se tm uma imperio-sa necessidade de alimento, que sua fome jamais mitigada, sempre renascente, a marca de uma cria-tura cujas foras pouco a pouco se desgastam e se esgotam, uma criatura condenada fadiga, ao enve-lhecimento e morte. Contentando-se com a fuma-a dos ossos, vivendo de odores e de perfumes, os deuses demonstram pertencer a uma raa cuja natu-reza inteiramente diferente da dos homens. Eles so os Imortais, sempre vivos, eternamente jovens, cujo ser no comporta nada de perecvel, e que no tm nenhum contato com o domnio do corruptvel.

    Mas Zeus, em sua clera, no limita sua vingan-a a isso. Antes mesmo de se produzir, de terra e gua, a primeira mulher, Pandora, que introduzir no meio dos homens todas as misrias que eles no co-nheciam antes - o nascimento por procriao, as fadigas, o trabalho rduo, as doenas, a velhice e a morte -, ele decide, para fazer com que o Tit pague sua parcialidade em favor dos humanos, no mais conceder-lhes o gozo do fogo celeste, do qual eles

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    64 MITO E REUGIO NA GRCIA ANTIGA

    dispunham at ento. Privados do fogo, os homens devero devorar a carne crua, como fazem os ani-mais? Prometeu furta ento, na umbela de uma f-rula, uma centelha, uma semente de fogo que ele traz para a terra. Na falta do corisco do raio, os homens passam a dispor de um fogo tcnico, mais frgil e mortal, que preciso conservar, preservar e nutrir ali-mentando-o incessantemente para que no se apa-gue. Ao cozinhar o alimento, esse fogo secundrio, derivado, artificial em relao ao fogo celeste, distin-gue os homens dos bichos e os instala na vida civili-zada. Os humanos tornam-se ento os nicos, entre todos os animais, a compartilhar com os deuses a posse do fogo. Assim, ele que os une ao divino ele-vando-se dos altares onde est aceso em direo ao cu. Mas esse fogo, celeste por sua origem e por sua destinao, tambm, por seu ardor devorante, pe-recvel como as outras criaturas vivas submetidas necessidade de comer. A fronteira entre deuses e homens simultaneamente atravessada pelo fogo sacrificial que os une uns aos outros e sublinhada pelo contraste entre o fogo celeste, nas mos de Zeus, e aquele que o furto de Prometeu ps disposio dos homens. Por outro lado, a funo do fogo sacri-ficial consiste em distinguir, na vtima, a parte dos deuses, totalmente consumida, e a dos humanos, ape-nas cozida o suficiente para no ser devorada crua. Essa relao ambgua entre os homens e os deuses no sacrifcio alimentar acompanhada de uma rela-

    DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlc/O 65

    o tambm equvoca dos homens com os animais. Para viver, uns e outros precisam comer, quer seu ali-menta se componha de vegetais ou de carne. Assim, so todos igualmente perecveis. Mas os homens so os nicos que comem carne cozida, segundo certas regras e depois de oferecerem aos deuses, para hon-r-los' a vida do animal que lhes dedicada com os ossos. Se os gros de cevada, espalhados sobre a ca-bea da vtima e sobre o altar, so associados ao sa-crifcio cruento, porque os cereais, alimento espe-cificamente humano, que implica o trabalho agrico-la, representam aos olhos dos gregos o modelo das plantas cultivadas que simbolizam, em contraste com uma existncia selvagem, a vida civilizada. Tripla-mente cozidos (por uma coco interna que a lavra favorece, pela ao do sol e pela mo do homem, que com eles faz po), os cereais so anlogos s vtimas sacrificiais, animais domsticos cujas carnes devem ser ritualmente assadas ou fervidas antes de serem comidas.

    No mito prometico, o sacrifcio aparece como o resultado da rebelio do Tit contra Zeus no mo-mento em que homens e deuses devem separar-se e fixar sua respectiva sorte. A moral dessa narrativa que no se pode esperar ludibriar o esprito do so-berano dos deuses. Prometeu tentou isso; e o preo do seu fracasso deve ser pago pelos homens. Portan-to sacrificar, comemorando a aventura do Tit, fun-dador do rito, aceitar sua lio. reconhecer que,

  • 66 MITO E RELIGIO NA GRCIA ANTIGA

    atravs da realizao do sacrifcio e de tudo o que ele acarretou para o homem - o fogo prometico, a ne-cessidade do trabalho, a mulher e o casamento para ter filhos, os sofrimentos, a velhice e a morte -, Zeus situou os homens no lugar onde eles devem man-ter-se: entre os animais e os deuses. Sacrificando, o homem se submete vontade de Zeus, que fez dos mortais e dos Imortais duas raas distintas e separa-das. A comunicao com o divino se institui durante um cerimonial de festa, de uma refeio destinada a lembrar que a antiga comensalidade acabou: deu-ses e homens j no vivem juntos, j no comem s mesmas mesas. No possvel sacrificar conforme o modelo que Prometeu estabeleceu e ao mesmo tem-po pretender, seja de que maneira for, igualar-se aos deuses. No prprio rito que visa a reunir os deuses e os homens, o sacrifcio consagra a distncia intrans-ponvel que doravante os separa.

    Entre animais e deuses

    Pela observncia de regras alimentares, o rito es-tabelece o homem no estatuto que lhe prprio: a uma justa distncia da selvageria dos animais, que devoram uns aos outros inteiramente crus, e da imu-tvel felicidade dos deuses, que ignoram a fome, a fadiga e a morte, porque alimentados de perfume e de ambrosia. Esse cuidado de delimitao precisa, de

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    repartio exata, une estreitamente o sacrifcio, no ritual e no mito, agricultura cerealfera e ao casa-mento, ambos definidores, em comum com o sacri-fcio, da posio especfica do homem civilizado. As-sim como, para sobreviver, precisa consumir a carne cozida de um animal domstico sacrificado segun-do as regras, ele tambm necessita alimentar-se do sitos, da farinha cozida de plantas domsticas regu-1armente cultivadas, e, para sobreviver a si mesmo, gerar um filho pela unio com uma mulher que o ca-samento arrancou do estado selvagem para domes-tic-la, fixando-a ao lar conjugal. No sacrifcio gre-go, em razo dessa mesma exigncia de equilbrio, o sacrificante, a vtima e o deus, embora associados no rito, nunca so normalmente confundidos, mas mantidos a uma boa distncia, nem perto demais nem longe demais. O fato de essa poderosa teologia, solidria a um sistema social em sua maneira de es-tabelecer barreiras entre o hom