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Vazio. Aplauda-se. A acuidade de certas palavras deve ser louvada. Não se trata só de semântica, de congruência entre símbolo e referente. Há algo nas palavras que as transcende e só encontra existência no cogitar de cada sujeito. Na relação íntima e inevitável entre homem e verbo. Falo da representação imediata que o indivíduo faz de um signo, ao esbarrá-lo. E não só. Também a sensação causada por uma palavra em um homem. Nesses três aspectos, obtive perfeito desempenho. No início, era um copo. Sempre nos remete a um espaço encerrado sem preenchimento. O copo de vidro em cima da mesa de madeira compunha a primeira etapa da acuidade com maestria, mas era pouco. Logo passei para um imenso salão de festas sem festa. O vento preenchia-o, reforçando a falta de preenchimento. Mas era pouco. Então, refleti. Erro clássico na biografia de nossa espécie a reflexão fez-me homem do verbo. De um verbo só. A monarquia do verbo. Enquanto se esvaziava a primeira característica da acuidade, enchiam-se as duas últimas. A vida é vazia. O vazio remetia- me à vida e fazia-me lembrar da falta de sentido. Os restaurantes cheios eram-me vazios. As pessoas que enchiam minha casa eram o vento de meu salão de festas. Eu representava o vazio – quando essa palavra me encontrava – como uma sucessão aleatória de eventos de minha rotina, que processava, naqueles ínfimos segundos que nosso cérebro dedica a compor o sentido das frases, como sendo vida. Mas o adjetivo nunca combinou com um substantivo tão abstrato e etéreo quanto a vida.

Vazio

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Vazio. Aplauda-se. A acuidade de certas palavras deve ser louvada. No se trata s de semntica, de congruncia entre smbolo e referente. H algo nas palavras que as transcende e s encontra existncia no cogitar de cada sujeito. Na relao ntima e inevitvel entre homem e verbo. Falo da representao imediata que o indivduo faz de um signo, ao esbarr-lo. E no s. Tambm a sensao causada por uma palavra em um homem. Nesses trs aspectos, obtive perfeito desempenho. No incio, era um copo. Sempre nos remete a um espao encerrado sem preenchimento. O copo de vidro em cima da mesa de madeira compunha a primeira etapa da acuidade com maestria, mas era pouco. Logo passei para um imenso salo de festas sem festa. O vento preenchia-o, reforando a falta de preenchimento. Mas era pouco. Ento, refleti. Erro clssico na biografia de nossa espcie a reflexo fez-me homem do verbo. De um verbo s. A monarquia do verbo. Enquanto se esvaziava a primeira caracterstica da acuidade, enchiam-se as duas ltimas. A vida vazia. O vazio remetia-me vida e fazia-me lembrar da falta de sentido. Os restaurantes cheios eram-me vazios. As pessoas que enchiam minha casa eram o vento de meu salo de festas. Eu representava o vazio quando essa palavra me encontrava como uma sucesso aleatria de eventos de minha rotina, que processava, naqueles nfimos segundos que nosso crebro dedica a compor o sentido das frases, como sendo vida. Mas o adjetivo nunca combinou com um substantivo to abstrato e etreo quanto a vida. Foi quando despertei para a existncia de meu corpo. O que foi o despertador, desconheo, embora conjecture. Talvez a sexualidade, a atulhar cada fresta de minha interpretao da psicologia humana. Talvez, Descartes, a conseguir, em suas meditaes iniciais, salvar somente o esprito, condenando o extenso corpo ao inferno da falta de realidade objetiva das coisas. De qualquer forma, passou a ser esta minha representao do vazio. perfeito. A carcaa que carrego nesse mundo vazia. Uma representao concreta, substancial, corprea. Vejo o corpo vazio com maior clareza que o antigo copo vazio. Orgulho-me de ter alcanado o supremo entendimento de um smbolo de minha lngua. H, contudo, um problema.

Vazio. Tornou-se to corporal que sempre que o esbarro, derruba-me. Fsica e espiritualmente. 14/02/2011