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1
VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES:
UMA PROPOSTA DE BRASIL
por
Tarciso Gomes do Rego
(Aluno do curso de Mestrado em Letras Neolatinas)
Rio de Janeiro
2010
2
VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES:
UMA PROPOSTA DE BRASIL
Tarciso Gomes do Rego
Dissertação de mestrad o. Programa de Pós-Graduaçãoem Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas. Área: Estudos Literários Neolatinos. Opção: Literaturas Hispânicas.
Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus
UFRJ / Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, agosto de 2010
3
FICHA CATALOGRÁFICA
REGO, Tarciso Gomes do.
VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA
PROPOSTA DE BRASIL/Tarciso Gomes do Rego. Rio de Janeiro,
2010. Xx fls.
Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, Estudos Literários, opção Literaturas
Hispânicas). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2010.
Orientador: Victor Manuel Ramos Lemus
1 – Mario Vargas Llosa. 2 – Euclides da Cunha. 3 – Canudos. 4 –
Literatura peruana. 5 – Literatura Brasileira. 6 – Narrativa. 7 –
Literatura Latino-Americana. 8 – Modernidade.
4
Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil
Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
da UFRJ, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, Área de Estudos Literários, opção Literaturas Hispânicas.
Aprovada por:
Presidente, Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus
Prof. Doutor Júlio Dalloz – UFRJ
Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins – UFRJ
Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ, Suplente
Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
5
A todos os Severinos desta imensa terra que, de uma
forma ou de outra, trabalharam e continuam trabalhando para
torná-la menos Severina.
Aos Severinos que originaram a minha vida. Meu avô,
João Severino do Rego, um típico Severino dentre os muitos que,
com as mãos calejadas pela enxada e o rosto queimado pelo sol
do Nordeste, trabalharam a terra para sobreviver, apesar do
latifúndio. Meu pai, Manuel Severino do Rego, um migrante na
cidade grande, outro Severino dentre os muitos que, com as mãos
sujas de graxa e o macacão tomado pela ferrugem, ajudaram a
construir a estrutura do Brasil industrial. Devo a ele minhas
primeiras noções de História do Brasil e o início de minha
consciência política e social.
A minha mãe, Geralda, a ela devo minhas primeiras
noções de literatura quando, na segunda infância, pôs-me em
contato com o cordel, transportando-me ao mundo da fantasia e
da imaginação através das inúmeras histórias que me contava e
cantava, dentre as quais, o inesquecível “pavão misterioso”.
A minha avó, uma Maria, nome de luta, de força e de fé.
Suas inúmeras histórias do nordeste também ajudaram a povoar
a imaginação da minha infância.
A Benvinda Maria, minha esposa e companheira, também
uma Maria, de muita luta, força e fé. Ela esteve sempre presente
com sua compreensão e seu estímulo, principalmente naquelas
horas em que a vontade de não seguir em frente na realização
deste sonho parecia me dominar.
A Tatiana, Juliana e Mariana, minhas filhas, que deram e
continuam dando a mim um aprendizado constante no
conhecimento do mundo. O carinho e o apoio dados por elas
também foram fundamentais para a concretização do meu sonho.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus, agradeço o forte incentivo à
participação neste curso, desde a Especialização, além da leitura detalhada e constante
deste trabalho, a orientação segura, as muitas sugestões e, acima de tudo, a grande
compreensão a mim dedicada no decorrer da confecção desta dissertação.
Ao Professor Doutor Júlio Dalloz, agradeço o apoio, iniciado também na
Especialização, bem como os inúmeros conhecimentos referentes à literatura hispano-
americana obtidos por mim a partir de suas exposições e indicações.
Ao Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, agradeço o enriquecimento e o
amadurecimento conseguidos a partir de suas aulas e da leitura da bibliografia por ele
sugerida para a realização das mesmas, pois foram vitais para a culminância deste
projeto.
Ao Professor Doutor Ary Pimentel, um agradecimento especial pelo incentivo,
também desde a Especialização, bem como pelas sugestões oferecidas para esta
pesquisa, pela vasta bibliografia apresentada e pelo crescimento obtido nos constantes
debates fomentados ao longo de suas aulas.
Às Professoras Doutoras Maria Lizete dos Santos e Maria Aurora Consuelo
Alfaro Lagorio, agradeço as primeiras observações a respeito deste texto, todas de suma
importância para que eu pudesse desenvolvê-lo de forma organizada.
À Professora Bella Karacuchansky Josef, agradeço os muitos comentários sobre
literatura hispano-americana, com ênfase para Vargas Llosa, dados importantes para que
eu pudesse me aprofundar neste trabalho.
Ao Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno, um agradecimento especial
pela ampliação de meus conhecimentos a respeito das relações entre os poetas e as
cidades, fator para mim essencial no aprofundamento da construção deste texto.
7
À Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, agradeço a descoberta da
força do poder retratada nas obras de ficção, tema fundamental para o amadurecimento
nas minhas reflexões sobre esta dissertação.
À Professora Doutora Cláudia Luna Ferreira da Silva, agradeço a ampliação dos
meus conhecimentos sobre a literatura dos viajantes e exilados da América Latina.
A todos os meus companheiros de jornada, alguns que comigo estão desde a
Especialização e outros que só recentemente chegaram, não importa, a todos meus
sinceros agradecimentos por ter tido a oportunidade de compartilhar com eles os
momentos mais marcantes na consecução deste objetivo.
8
SINOPSE
Análise de La guerra del fin del mundo de Mario
Vargas Llosa, como palimpsesto de Os sertões de
Euclides da Cunha, de modo a delimitar as
semelhanças e as diferenças entre história e ficção
num projeto de construção, não só do Brasil, mas,
de acordo com o escritor peruano, também da
América Latina.
9
RESUMO
REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.
Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A presente dissertação tem o objetivo de mostrar como a interpretação feita por
Mario Vargas Llosa sobre a guerra de Canudos pode nos trazer novas contribuições no
que diz respeito ao papel da literatura como instrumento de análise do processo
histórico. Neste caso, haverá uma ligação com a obra Os Sertões de Euclides da Cunha,
visto ter o escritor brasileiro pretendido fazer uma abordagem objetiva do fato citado,
com o intuito de criar uma proposta de construção do Brasil num momento em que a
jovem República buscava auto-afirmação. Este trabalho mostra que, consoante com as
perspectivas abertas pelos estudos da nova história e consolidado pela pós-modernidade,
Vargas Llosa trouxe novos encaminhamentos para a compreensão deste episódio, tendo
em vista a multiplicidade de representações criadas por ele com o intuito de apresentar o
texto literário como repositório da subjetividade de uma época. Será destacado o fato de
o romancista peruano ter sido um dos expoentes do chamado “boom” do romance
latino-americano, momento em que os escritores desse grupo apresentavam uma
literatura cujos postulados deveriam estar aliados a uma proposta revolucionária no
aspecto político, econômico e social. Será enfatizada a idéia de, no caso de La Guerra
del fin del Mundo, Vargas Llosa pretender questionar as chamadas verdades imutáveis e
eternas, ressaltando que tudo é discurso e representação, o que conduzirá à conclusão de
que, tal qual Euclides da Cunha, o escritor peruano também apresenta uma proposta de,
neste caso, reconstrução do Brasil, estendendo-a, porém, para toda a América Latina.
Palavras-chave: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,
Literatura Brasileira, A narrativa, Literatura Latino-Americana, Pós-modernidade.
10
ABSTRACT
REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.
Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
This thesis aims to show how the interpretation made by Mario Vargas Llosa
about the war of Canudos can bring in new contributions regarding the role of literature
as a tool for analysis of historical process. In this case, there will be a link with the work
Os Sertões made by the Brazilian writer Euclides da Cunha, intended to make an
objective approach to the fact mentioned, in order to create a proposal to build Brazil at
a time when the newly created republic sought self-assertion. This work shows that,
depending on the prospects opened up by new studies of history and consolidated by
post-modernity, Vargas Llosa has brought new directions to understand this episode, in
view of the multiplicity of representations created by him with the intention of
presenting the text as a repository of literary subjectivity of an era. It will be highlighted
the fact that the Peruvian novelist was one of the exponents of the so-called boom of
Latin America novel, when the writers of this group had a literature whose principles
should be combined with a revolutionary proposal in the political, economic and social
aspects. It will be emphasized the idea that, in the case of La guerra del fin del mundo,
Vargas Llosa wants to question the so called immutable and eternal truths, pointing out
that everything is discourse and representation, leading to the conclusion that, like
Euclides da Cunha, the peruvian writer also presents a proposal that, in this case, is a
reconstruction of Brazil, extending it for all Latin America.
Key words: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Peruvian Literature,
Brazilian Literature, narrative, Latin American Literature, Post-Modernity.
11
RESUMEN
REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.
Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Esta tesis tiene como objetivo mostrar que la interpretación hecha por Mario
Vargas Llosa sobre la guerra de Canudos nos puede traer nuevas aportaciones con
respecto a la función de la literatura como una herramienta para el análisis del proceso
histórico. En este caso, habrá un vínculo con la obra Os Sertões del escritor brasileño
Euclides da Cunha, pues es visible su intención de hacer un enfoque objetivo del hecho
mencionado, a fin de crear una propuesta para la construcción de Brasil en un momento
en que la República, muy joven todavía, buscaba su autoafirmación. Este trabajo
demuestra que, en función de las perspectivas abiertas por los nuevos estudios de la
historia y consolidado por la post-modernidad, Vargas Llosa ha traído nuevas
orientaciones para entender este episodio, en vista de la multiplicidad de las
representaciones creadas por él con la intención de presentar el texto como un
repositorio de la subjetividad literaria de una época. Se pondrá de relieve el hecho de
que el novelista peruano fue uno de los máximos exponentes del así denominado
“boom” de la novela latinoamericana, cuando los escritores de este grupo hacían una
literatura cuyos postulados tendrían que combinarse con una propuesta revolucionaria
en las esferas política, económica y social. Se enfatizará la idea de que, en el caso de La
Guerra del Fin del Mundo, Vargas Llosa pretende cuestionar las llamadas verdades
inmutables y eternas, afirmando que todo es discurso y representación, lo que lleva a la
conclusión de que, como Euclides da Cunha, el escritor peruano también se presenta
una propuesta de, en este caso, reconstrucción de Brasil, que se aplicará también para
América Latina como un todo.
Palavras-llave: Mario Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,
Literatura Brasileña, narrativa, Literatura Latinoamericana, la post-modernidad.
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SUMÁRIO
01. Introdução ........................................................................................................ 14
02. Capítulo 1: Euclides e o Brasil do início da República ................................... 23
02.01. Os intelectuais e a Republica ................................................................ 24
02.02. Euclides e o conflito de Canudos ......................................................... 29
03. Capítulo 2: Vargas Llosa e o romance na América Latina .............................. 37
03.01. A trajetória intelectual de Vargas Llosa ............................................... 38
03.02. Vargas Llosa e a construção da narrativa ............................................ 45
04. Capítulo 3: Vargas Llosa, leitor de Euclides .................................................. 51
04.01. Discussão do Novo Romance Histórico .............................................. 52
04.02. Os personagens em Euclides e em Vargas Llosa ................................ 65
05. Capítulo 4: Vargas Llosa, Euclides e o Brasil de hoje .................................... 76
05.01. A literatura do pós-modernismo ......................................................... 77
05.02. A materialização das propostas burguesas ......................................... 86
05.03. A proposta de Vargas Llosa e a de Euclides ...................................... 92
06. Conclusão ......................................................................................................... 98
07. Bibliografia ...................................................................................................... 107
08. Anexos ............................................................................................................ 111
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HINO NACIONAL
Precisamos descobrir o Brasil
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos,
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétrico, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
Os Amazonas inenarráveis... os incríveis João Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?1
Carlos Drummond de Andrade
1 ANDRADE, C.D. Poesia completa, p. 51
14
01. INTRODUÇÃO
OS SERTÕES
Marcado pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Ó solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca,
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar
Sertanejo é forte,
Supera miséria sem fim
Sertanejo, homem forte,
Dizia o poeta assim.
Foi no século passado,
No interior da Bahia
Um homem revoltado com a sorte
Do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão,
Espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia
Os jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal2
Edeor de Paula
No último quarto do século XIX, começou a engatinhar no Brasil um processo
de industrialização. A guerra civil americana ocorrida na década de 60 estimulou aqui a
cultura do algodão, abrindo caminho para a indústria têxtil, setor que, gradativamente,
tornar-se-ia muito importante durante boa parte do século XX. A decadência do trabalho
escravo gerou uma sobra de capital que passaria a ser aplicado nesse nascente setor
industrial. Junto a esse quadro, acrescente-se o crescimento da cafeicultura no oeste
paulista e a chegada dos imigrantes, fatores que ajudaram a provocar grandes
transformações na estrutura sócio-econômica do país, pois faria surgir uma mão de obra
2 PAULA, E. Samba enredo do GRES Em Cima da Hora/1976.
15
assalariada e, de acordo com Florestan Fernandes, o “fazendeiro do café”.3 Ainda
segundo o sociólogo, esse elemento, com o tempo, começou a se afastar do protótipo do
senhor rural tradicional, adquirindo uma mentalidade burguesa, o que seria fundamental
para fazer aumentar, posteriormente, o número de indústrias neste país.4 Esse quadro
produziu, pouco a pouco, mudanças significativas no pensamento político das classes
médias urbanas, as quais, influenciadas pelas notícias do forte progresso científico e
material ocorrido na Europa, passaram a guiar o pensamento para novas formas de
governo, supostamente mais condizentes com a Modernidade. Deste modo, muitos
setores intelectuais e também da elite agroexportadora iniciaram, progressivamente, a
retirada de seu apoio ao regime monárquico. Junte-se a isso o aumento do prestígio
conseguido pelos militares após a Guerra do Paraguai, e estes, cada vez mais, numa
maioria crescente, influenciados pelo pensamento positivista, viriam tornar-se
defensores de um governo republicano centralizado.
Na última década desse século então, depois de um período de muitas
convulsões, esses grupos conseguiram promover a tão ansiada mudança de regime. A
Monarquia decadente dava seus últimos suspiros, abrindo caminho para o início da
República, cujo nascimento fora estimulado pela já citada visão positivista presente nas
forças armadas e em grande parte dos intelectuais brasileiros da época, dentre eles, a
figura emblemática de Euclides da Cunha. Na verdade, havia sido um início muito
difícil, já que a jovem República provinha de um processo de formação muito
deficiente, carregando consigo séculos de abandono e de exploração, capazes de
continuar trazendo desdobramentos posteriores. O surgimento da figura de Antônio
Conselheiro, o crescimento de Canudos e a atitude desafiadora desse povoado rústico
em relação ao novo governo atiçaram negativamente a imaginação da burguesia
emergente do Rio de Janeiro, a então capital do Brasil. Exaltaram também os ânimos de
boa parte do país, o que significa restringir-se ao litoral, não apenas no Sul e no Sudeste,
mas, de certa forma, no Nordeste também. A presença de Euclides na região
conflagrada e a posterior publicação de sua obra Os sertões, expondo à nação a tragédia
de Canudos, mostrou ao país oficial, o Brasil do litoral, que o Brasil do sertão também
existia.
Quase 80 anos depois, encontramos Vargas Llosa, escritor peruano, no sertão da
Bahia, tentando recompor a epopéia de Euclides, reconstruindo pedra por pedra, tijolo
3 FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil, p. 103.
4 Ibid., p. 103.
16
por tijolo, madeira por madeira, taipa por taipa, o arraial de Canudos, corporificando
Antônio Conselheiro e todos os personagens envolvidos naquele episódio marcante para
a história do Brasil. A presença desse escritor, um dos maiores representantes do
chamado “boom” do romance latino-americano, trouxe uma nova contribuição para o
debate suscitado por Euclides quando da publicação de seu livro. Afinal, Vargas Llosa,
cujos romances anteriores traçavam um painel da sociedade peruana ao longo do século
XX, sempre se mostrara de acordo com a idéia da literatura participativa evidenciada
por outros escritores latino-americanos, como Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Gabriel
García Márquez, Julio Cortazar, dentre outros. Seus textos pareciam ratificar a intenção
de denunciar a miséria, a opressão e a exploração, ou seja, tudo que mostrasse o absurdo
da herança colonial ainda presente na América Latina. Pareciam ir mais além, já que, no
auge da guerra fria, enxergavam-se, em seus escritos, propostas quase sempre afinadas
com as profundas transformações sociais, econômicas e políticas necessitadas por esse
continente.5
Além dos traços políticos e sociais, outro fator marcante na literatura de Vargas
Llosa refere-se aos aspectos inovadores na construção do romance. A leitura de suas
primeiras obras, como La ciudad y los perros, La casa verde e Conversación en la
catedral põe o leitor diante de um formato gestado desde as primeiras décadas do século
XX e que atingiria aqui, na América Latina, com os autores do “boom” já expostos no
parágrafo anterior, um alto grau de elaboração. A ficção criada pelo escritor peruano
assume essa herança, fazendo sobressair a subjetividade exacerbada de personagens que
não passavam de peças da engrenagem da máquina capitalista. Destacava-se, neste caso,
a figura do inadaptado à sociedade burguesa, o “perdedor”, enfim. Técnicas modernas
de apresentação da narrativa foram utilizadas, causando estranheza a princípio para,
depois, tornarem-se práticas correntes. O fluxo de consciência, os diversos planos
narrativos, os vários pontos de vista com um grande número de narradores, o
esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de recursos foi largamente
empregado por ele nestes romances iniciais, assumindo posturas narrativas
amadurecidas ao longo desse século. Afinal, elas provocavam o leitor, faziam-no pensar
na montagem e na construção do texto, aguçando-lhe os sentidos. E Conversación en la
catedral parece ser o ápice da utilização desses métodos. Ao escrever La guerra del fin
del mundo, entretanto, percebemos um abandono desses recursos aplicados por Vargas
5 RAMA, A. El “boom” en perspectiva. In: Más allá del boom: literatura y mercado, p.79.
17
Llosa, já que a estrutura desse romance é muito mais conservadora do que tudo que ele
havia feito até então.
Na verdade, esta transformação na escrita desse escritor serve exatamente como
metáfora para as mudanças também ocorridas em sua visão política, o que pode ser
notado claramente em La guerra del fin del mundo. Quando da publicação desse livro
nos anos 80, em plena era Reagan-Thatcher, muitos países da América Latina estavam
numa fase de transição entre ditaduras de fundo fascista e uma democratização de cunho
neo-liberalizante. Eram repúblicas em crise permanente, já que não conseguiam resolver
seus problemas seculares. Havia uma falta de perspectiva muito grande, pois não se
tinha idéia de como mudar tal estado de coisas. Se a chamada literatura do “boom”, de
certo modo, trazia como componente algumas propostas com o intuito de provocar
alterações de cunho social, La guerra del fin del mundo, de forma alguma se alinha com
tal ideário, uma vez que, neste romance, Vargas Llosa parece assumir uma postura
crítica em relação aos chamados “fanatismos de todo tipo”6, incluindo, neste caso, o que
ele pretende denunciar como “cegueira dos movimentos ditos de esquerda ou que, pelo
menos, encampavam ideais de tal tipo”7. Teria ele se rendido completamente à retórica
da “nova ordem mundial” encabeçada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher? Estaria
ele acreditando que assumir a “modernidade” trazida pelo aprofundamento do processo
de globalização seria a melhor saída para as repúblicas latino-americanas?
Uma leitura atenta do romance aprofunda essa convicção. Não se pode esquecer
que Vargas Llosa volta ao início do Brasil republicano e, retomando Euclides, coloca o
leitor diante do momento do nascimento da jovem nação. Cada personagem que vai se
concretizando se assemelha, de certo modo, não apenas a observadores distantes, mas a
cientistas ou, estreitando a metáfora, a médicos presentes no parto daquela “criança
doente”. E cada um parece ter o remédio adequado para curar-lhe os males. Deste
modo, a presença, logo no início da narrativa, de um personagem importante para o
romance, Epaminondas Gonçalves, diretor do “Jornal de Notícias”, veículo mais
importante de divulgação das idéias republicanas na cidade de Salvador, é bem
exemplar, pois ele assume uma postura política nada diferente do que viria a ser posto
em prática no Brasil ao longo do século XX, quando o chamado quarto poder passou a
exercer uma influência muito forte na condução dos caminhos políticos do país.
6 MENTON, S. La nueva novela histórica, p. 69.
7 VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 308.
18
O Barão de Canabrava, outro personagem fundamental, seria a antítese de
Epaminondas. Metaforizando o período monárquico, estaria buscando uma saída
honrosa, uma vez que poderia abandonar tranqüilamente o cenário, desde que alguns
privilégios, seus e de sua classe, fossem mantidos. O Brasil, naquele momento, surgia
com um ideário em tudo semelhante ao que seria fixado mais tarde pelo austríaco Stefan
Zweig em seu livro lançado em 194l, intitulado Brasil: nação do futuro, precisando,
então, libertar-se de uma série de práticas que ainda o atavam ao século XIX. Urgia
trazer a modernidade, urgia concretizar os ideais de uma república que havia cantado
“liberdade, abre as asas sobre nós” e que havia cunhado na bandeira nacional o lema
positivista “Ordem e Progresso”. Mas como fazer para efetivar as promessas de uma
república que realmente merecesse esse nome?
Em meio a todo esse processo, surgiu e cresceu o arraial de Canudos,
provocando um grande questionamento. Afinal, o Brasil do litoral não conseguia
entender como nem por que poderia ter surgido uma comunidade de fanáticos em pleno
sertão. A intelectualidade republicana não conseguia entender como nem por que
funcionaria uma comunidade destituída de todas as benesses da civilização moderna.
Vargas Llosa, então, tenta encontrar respostas para isso, começando por apresentar os
dois lados mais importantes da questão. E se Antônio Mendes Maciel, O Conselheiro,
era visto como um fanático por todos aqueles que julgavam ser a república o remédio
necessário para modernizar o Brasil, incluindo Euclides da Cunha, em La guerra del fin
del mundo, esse personagem é objeto de uma análise muito mais ampla, muito mais
complexa, embora a imagem do fanatismo não tenha sido descartada em nenhum
momento. Já o coronel Moreira César não é poupado nem por Euclides e muito menos
por Vargas Llosa, pois ambos atribuem o desastre de sua expedição à “cegueira
fanática” desse personagem.
E se Moreira César e O Conselheiro saíram do mundo real para personificar o
fanatismo execrado por Vargas Llosa, cumpre lembrar, também, dois outros
personagens, criados, desta vez, pelo escritor, os quais também metaforizam tal idéia. O
primeiro é Galileo Gall, o escocês, militante anarquista, com a vida inteiramente
dedicada à causa revolucionária, numa atitude em tudo muito semelhante à de um
missionário cristão. O outro fanático é um rastreador da região, Rufino, homem rude,
que leva seu desejo de vingança contra sua esposa, Jurema, e Galileo, presumíveis
amantes, de uma maneira extrema. Assumindo uma abstração da moral burguesa, ele
quer matar o escocês de qualquer jeito, não sem antes ter-lhe atingido o rosto, já que,
19
como é apontada no romance, somente a morte do sedutor não seria suficiente para
desagravar a honra manchada de um sertanejo. O fanatismo cego acabaria por destruir
os dois.
É lógico que a figura de Antônio Conselheiro é de suma importância para o
desenvolvimento de La guerra del fin del mundo. Sua capacidade de liderança e seu
carisma são expostos de maneira contundente neste romance, levando o leitor a perceber
por que motivos era capaz de aglutinar tanta gente em torno de uma causa. Suas idéias
pareciam contrapor-se à lógica e à racionalidade do pensamento positivista então
preconizado pela intelectualidade brasileira. Mas lá estava ele, destituído de tudo, numa
postura considerada exemplar por aqueles que o viam, num ascetismo considerado
comovente por aqueles que o seguiam, sendo, por isso mesmo, capaz de convencer
quem dele se aproximava. Seu estilo de vida era coerente com suas exortações, daí a
massa de seguidores que conseguira arrebanhar. Criou na comunidade de Belo Monte,
ou de Canudos, para os republicanos, um ideal de moral atrelado ao bem, à bondade, à
solidariedade e a compreensão, numa concretização da ética cristã. Acrescente-se a isso
a religiosidade mística, uma idéia constante em grande parte do povo brasileiro,
principalmente quando se pensa nos bairros pobres das grandes cidades ou nas vastas
regiões do interior. Tais valores, impulsionados pelas palavras do pregador, brotaram e
se desenvolveram com bastante força em Belo Monte, sendo o fermento que manteria a
população local unida e disposta a resistir até o fim.
Vargas Llosa acredita que esse combustível fomentou o crescimento e a
resistência de Canudos. Parece também, segundo o escritor, que, não de forma fanática
e extremada, como ocorreu nesse episódio, atitudes e pregações como as do Conselheiro
seriam capazes também de melhorar o país, já que este estaria necessitado de um banho
de ética, fundamental para estimular e produzir um espírito de bondade, de
solidariedade e de compreensão. Tais valores estariam consoantes com o Brasil da pós-
modernidade e da globalização. Afinal, percebe-se, nas três últimas décadas, o
crescimento impressionante do que se poderia chamar de fundamentalismo cristão,
presente nas igrejas pentecostais, que surgem em todos os lugares, principalmente nas
periferias. Na verdade, essa prática sectária apenas preencheu o espaço deixado pela
Igreja Católica, cujo conservadorismo predominante até os anos 60 parecia ter recuado
bastante. E se, até aquele momento, a Igreja no Brasil e na América Latina alinhava-se
com a direita política, patrocinando eventos como a “Marcha da família com Deus pela
liberdade”, pregando contra o “perigo vermelho”, o surgimento da chamada “Teologia
20
da Libertação” levou muitos setores católicos para práticas políticas mais à esquerda.
Estimulou-se então outra opção para a discussão do legado cristão, reforçando a
conscientização do povo na luta por seus direitos e no incentivo deste a uma vida
comunitária.
O catolicismo dominante, entretanto, começou a perder espaço para diversas
seitas protestantes, cuja pregação de uma ética individual parecia muito mais alinhada
às práticas políticas que sobressaíram a partir do predomínio do neoliberalismo. É
preciso relembrar que tais seitas têm, quase sempre, origem nos Estados Unidos, e que,
nesse país surgiu também, posteriormente, numa reação católica, uma variante desse
pentecostalismo, que tanto sucesso faz hoje em muitos pontos da América Latina. Trata-
se do movimento carismático católico, de fundo completamente conservador, pois
valoriza o individualismo burguês, opondo-se de forma integral ao comunitarismo
preconizado pela já citada “Teologia da Libertação”, cujos mentores e praticantes foram
acusados de envolvimento político constante e de tentarem fazer uma ligação entre
Cristianismo e Marxismo. É lógico que o crescimento descontrolado das grandes
cidades, inchadas a partir da migração em massa, proporcionou a perda de referencial de
muitos de seus habitantes, os quais, desamparados pelo movimento acelerado e
constante da grande máquina do sistema capitalista, passaram a enxergar nessas práticas
religiosas uma provável saída para seus dilemas, não apenas existenciais, mas
financeiros também.
A esquerda tradicional começou a desconfiar dele, pois passou a enxergar em
seus escritos a presença do espírito burguês, já que Vargas Llosa parecia abandonar a
proposta de uma mudança de cunho político e social tão presente em seus livros iniciais,
mostrando uma rendição total à ideologia neoliberal resultante da chamada nova ordem
mundial. Ele parecia acreditar, também, que só a aceitação desses valores éticos já
mencionados seria a única forma possível para produzir uma grande transformação na
sociedade brasileira e, conseqüentemente, latino-americana. La guerra del fin del
mundo explicita tal idéia, ratificando-a como a verdadeira força de Canudos. Por que
não serviria para o Brasil também? Ou será que não deveríamos aprofundar a discussão
e pensar numa outra proposta?
Deste modo, pretendemos, no capítulo inicial, desenvolver nosso estudo a partir
da análise do relacionamento entre Euclides da Cunha e a intelectualidade brasileira no
início da República. Procuraremos mostrar que aquele foi um momento bastante
conturbado no qual se destacava o aspecto emocional, principalmente se considerarmos
21
a postura daqueles que Nicolau Sevcenko chamou de os “mosqueteiros intelectuais”.8
De acordo com o crítico, esses homens de letras buscavam uma participação efetiva nos
rumos do país, o qual, segundo eles, tinha, naquele momento, uma oportunidade única
de ascender ao progresso tão desejado por todos, além de se firmar de um modo mais
contundente no cenário mundial. Euclides da Cunha estava nesse grupo e pretendeu,
ainda segundo Sevcenko, desenvolver “o exercício intelectual como atitude política”, já
que acreditava fazer parte de um grupo de “Escritores-cidadãos”9.
No capítulo seguinte, observaremos a leitura de Os sertões feita por Vargas
Llosa. Para que tal ocorresse, analisaremos a trajetória intelectual desse escritor,
mostrando sua intensa participação, desde a juventude, nos destinos políticos e sociais
do Peru. Focalizaremos a importância da leitura de Sartre como base de seu
entendimento no compromisso com a sociedade e os acontecimentos vivenciados por
ele. Ressaltaremos a subseqüente releitura de Camus como de suma importância para as
mudanças que ocorreriam em seu pensamento posterior. Destacaremos, também, o quão
fundamental foi para seu desenvolvimento, no que se refere ao aspecto literário, o
conhecimento da literatura francesa, com destaque para Flaubert, além da descoberta de
diversos escritores norte-americanos, William Faulkner à frente, todos de singular
importância para a construção do romance moderno. Por outro lado, acompanharemos
sua inserção nos grupos de esquerda, muito presentes no meio universitário ao longo da
ditadura de Odría no Peru, seu desencanto com tais movimentos, até sua mudança de
pensamento ocorrida a partir de meados dos anos 70, culminando com sua candidatura à
presidência no final da década de 80, como líder e grande representante das idéias
neoliberais que, naquele momento, pareciam dominar, não apenas o Peru, mas toda a
América Latina.
Na seqüência, procuraremos mostrar como Vargas Llosa leu Euclides da Cunha,
levando o estudo para o âmbito da discussão a respeito do “Novo Romance Histórico”.
Frisaremos o fato de que o escritor peruano, como outros autores latino-americanos,
todos frutos do “boom”, punham sua literatura como instrumento de análise dos
aspectos sociais, históricos, culturais econômicos e políticos da América Latina como
um todo. Cada um, evidentemente, voltava-se para seu país, seu povo, sua região, sua
cultura, enfim. Mas havia uma ponte estabelecendo uma completa ligação entre eles.
Vargas Llosa, inclusive, foi além, buscando em outros países, como o Brasil, por
8SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 78.
9 Ibid., p. 106.
22
exemplo, que é o caso de La guerra del fin del mundo, embasamento para sua proposta
de mudança político-social nesta parte do continente. Estabeleceremos, então,
comparação entre o tratamento dado ao tema e aos personagens em Euclides da Cunha e
em Vargas Llosa, acentuando a diferença de objetivo entre os dois, pois se o primeiro
achava que se estava atendo aos fatos históricos, o segundo assumiu claramente a
proposta de estar criando um texto ficcional.
Finalmente, estudaremos a importância deste romance para o Brasil de hoje,
procurando tecer um ponto de contato entre sua estrutura, sua temática e a literatura que
surgiu como resultado das mudanças ocorridas no mundo ao longo dos anos 60 e 70.
Deste modo, mostraremos que Vargas Llosa conseguiu concretizar nele todo arcabouço
adquirido em sua formação intelectual no que se refere aos aspectos sociais políticos e
literários. Será, então, estabelecida uma comparação entre as propostas preconizadas por
Euclides para o Brasil no início da República e o que o escritor peruano tinha em mente
para a América Latina a partir do último quarto do século passado. O mergulho dado
por Vargas Llosa na história não seria em vão, pois, segundo acreditava, os
acontecimentos de Canudos estariam dando a ele o combustível necessário para que
pudesse pregar a materialização das propostas burguesas, que lhe eram tão caras
naquele instante.
23
02. CAPÍTULO 1
EUCLIDES E O BRASIL DO
INÍCIO DA REPÚBLICA
AS CATAS
(fragmento)
Que outros adorem vastas capitais
Aonde, deslumbrantes,
Da Indústria e da Ciência as triunfais
Vozes, se erguem em mágico concerto;
Eu, não; eu prefiro antes
As Catas desoladas do deserto,
– Cheias de sombra, de silêncio e paz...
[...]
Não invejo, porém, os que se vão
Buscando, mar em fora,
De outras terras a esplêndida visão...
Fazem-me mal as multidões ruidosas
E eu procuro, nesta hora,
Cidades que se ocultam majestosas
Na tristeza solene do sertão.10
Euclides da Cunha
10
CUNHA, E. Ondas, p. 76.
24
02.01. OS INTELECTUAIS E A REPÚBLICA
D. QUIXOTE
Assim à aldeia torna o da triste figura
Ao tardo caminhar do Rocinante lento;
No arcabouço dobrado um grande desalento,
No entristecido olhar uns laivos de loucura.
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,
Do ideal e da fé, tudo isto num momento,
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre risos boçais do bacharel e do cura.
Mas certo, ó D.Quixote, ainda foi clemente,
Contigo a sorte ao pôr no teu cérebro oco,
O brilho da ilusão do espírito doente;
Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões e não se ficar louco.11
Euclides da Cunha
O início da República trouxe muitas esperanças à incipiente burguesia brasileira,
levando essa parcela da população, guiada pela visão positivista dominante na época, a
preconizar um ideal de progresso, capaz de, por si só, produzir as mudanças necessárias
para modernizar o país. É possível afirmar seguramente que, neste caso, a elite
intelectual, pelo menos uma boa parte dela, havia participado da criação do novo regime
e assumia o projeto de construção de uma nova nação. Esses intelectuais, oriundos da
luta pelas causas abolicionista e republicana e de formação liberal, absorveram o
desenvolvimento da vanguarda científica na área do conhecimento responsável pelo
desenvolvimento material do continente europeu. O darwinismo, a revolução sanitária
produzida pela microbiologia e as pesquisas no campo da física e da química aplicada
haviam sido os germes da segunda revolução industrial, provocando um crescimento
material jamais visto até então no velho continente. Eles passaram a se julgar
responsáveis pelo encaminhamento na construção da república, acreditando que o
modelo europeizante seria responsável pela elevação cultural e material da população.
Havia, no entanto, outro aspecto a ser considerado: o surgimento dos estados
modernos havia provocado um forte nacionalismo, capaz de produzir, a curto prazo,
uma crescente disputa hegemônica. O desenvolvimento das Ciências Humanas,
11
CUNHA, E. Ondas, p. 72.
25
financiadas pelos Estados com o intuito de legitimar raça, história, língua, religião,
tradições, dentre outros estudos, seria mais um combustível a ser acrescentado a essa
visão nacionalista estimulada pela mentalidade burguesa, gerando a inclusão de teses
racistas capazes de justificar, não apenas a supremacia do “mundo civilizado” sobre os
“bárbaros”, mas também de uma nação sobre as demais.12
O resultado de todo esse
processo deixou presente na memória da humanidade a tragédia provocada pelo grande
paradoxo montado ao longo do século XIX: as conquistas científicas e materiais em
contraposição às injustiças, às desigualdades e aos sofrimentos produzidos pela busca
dessas conquistas. O ápice seria a mortandade provocada pelas duas grandes guerras
que ocorreriam no século vindouro.
Não era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse tolerância com as
formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a luta contra a “caturrice”, a
“doença”, o “atraso” e a “preguiça” era também uma luta contra as trevas e a
“ignorância”; tratava-se da definitiva implantação do progresso e da civilização.13
Evidentemente que o foco desses intelectuais, bastante influenciados pelas idéias
provenientes da Europa, provocou uma série de atitudes capazes de manter imobilizadas
as estruturas sociais herdadas do regime monárquico. Destaque-se, neste caso, o
menosprezo à cultura popular e a intolerância diante de qualquer manifestação de
religiosidade fora dos padrões aceitáveis pelo Estado.14
Cite-se como exemplo a
perseguição aos praticantes das religiões de origem africana, aos capoeiristas e aos
tocadores de violão. O carnaval era aceito, desde que seguisse o estilo da Belle Époque.
Havia, evidentemente, uma panela de pressão sempre pronta a explodir, com maior ou
menor intensidade, a qualquer momento, dependendo da situação, uma vez que as
classes populares, acrescidas agora dos ex-escravos, ansiavam por ascensão econômica
e participação democrática, o que lhes era tolhido.15
Nesse quadro de miséria social, a
polícia reprimia de forma violenta e indiscriminada qualquer tentativa esboçada pela
massa da população pobre de tentar fazer-se ouvir. Essa repressão se tornava ainda
mais aguda quando, instigada pela imprensa, era direcionada para bêbados, supostos
vadios e loucos presumíveis.16
12
BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 74. 13
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 33. 14
Ibid., p. 32. 15
Ibid., p. 53-54. 16
Ibid., p. 59.
26
A consciência da presença de ter um Estado sem possuir necessariamente uma
Nação evidenciava-se cada vez mais. Isso causava uma preocupação muito forte nessas
elites intelectuais, as quais, conscientes do poder das potências européias e de suas
respectivas ações imperialistas na África e na Ásia, temiam uma invasão estrangeira ou,
pelo menos, a perda da autonomia de uma parte do nosso território17
. Era necessário,
então, segundo o pensamento dominante nessa elite intelectual, um alinhamento com o
mundo do progresso, o que implicava assumir posturas excludentes em relação à grande
massa da população, formada em sua maioria por negros, morenos e mulatos. Deste
modo, era fundamental uma europeização de nossa cultura e de nosso comportamento,
com a conseqüente negação de tudo aquilo que remetesse a uma origem popular.
As reformas de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro no início do século
XX, eram nada mais nada menos do que uma das concretizações mais importantes desse
ideário. A destruição dos cortiços e a expulsão dos pobres e deserdados para os
subúrbios faziam parte da assepsia utilizada pelas reformas promovidas por uma
burguesia, que buscava a todo custo dar um toque cosmopolita ao Distrito Federal.
Afinal, como poderia ser capital da jovem República uma cidade que, em muitos
aspectos, assemelhava-se a um aglomerado qualquer presente em diversos pontos do
continente africano ou asiático? A burguesia sentia-se envergonhada com a imagem
constante daquela ralé grosseira e mal-educada. Um “choque de ordem” era necessário
para impor normas ao coração do Brasil, afastando ou eliminando o “entulho humano”,
que insistia em se fazer presente na vida diária. Tudo isso sob os aplausos de boa parte
da nata intelectual, dentre os quais Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, que se reunia na
Confeitaria Colombo para extravasar a veia parnasiana diante dos holofotes da
sociedade burguesa18
.
Havia, entretanto, alguns intelectuais que não se deixavam levar pelo
artificialismo dominante naquele ambiente. Dentre eles, estava Euclides da Cunha. Sua
formação militar e seu autodidatismo moldaram-lhe o arcabouço cultural e embasaram-
lhe o comportamento. O enciclopedismo difundido pelo Positivismo de Benjamim
Constant, seu professor na Escola Militar, havia imprimido marcas profundas naquele
jovem, cujos atos marcados por um desprendimento, muitas vezes considerado
exagerado e até ingênuo, ao contrário da grande maioria, já o levara, ainda de forma
prematura, no auge de seu ardor republicano, ao confronto direto com o regime
17
Ibid., p. 140. 18
DIMAS, Antônio. Três exemplos em espiral. In Discurso, ciência e controvérsia em E. Cunha, p. 84.
27
monárquico. A posterior queda da Monarquia o reconduziria ao exército, mas seu
espírito inquieto jamais o deixaria tornar-se um burocrata, preso a regras e disciplinas
não consoantes com seu caráter. Ele também estava consciente do perigo representado
por nosso imenso vazio territorial diante da gula imperial das potências do velho
continente. Deste modo, ele acreditava que era de extrema importância conhecer o país
e acelerar a colonização do interior. Para isto seria necessária a construção imediata de
uma rede interna de comunicação viária, com o intuito de facilitar o deslocamento da
população e das riquezas provenientes dessas regiões, proposta que se coadunava com a
do Marechal Cândido Mariano Rondon, o qual, após ter sido nomeado chefe do Distrito
Telegráfico de Mato Grosso, havia começado um trabalho de construção de linhas
telegráficas com a finalidade de estabelecer algum tipo de comunicação entre o litoral e
o grande e inexplorado território que se estendia ao longo do oeste e do norte do Brasil.
A República deveria, de maneira urgente, concentrar seus esforços na integração do
país.
Inicialmente, Euclides compactuava com a postura daquele grupo intelectual
dominante, principalmente no que se referia ao apoio incondicional ao nascente regime
republicano. Deslumbrado com o desenvolvido espetacular da Ciência e maravilhado
com o que ele chamava de “esplendor da revolução vitoriosa”19
, ele acreditava piamente
que a força do progresso científico e material desbravaria os caminhos da jovem
república, conduzindo-a para o mesmo nível das nações européias.20
Desde modo, o
escritor aceitava propostas de fundo racista, as quais viam aspectos extremamente
positivos na chegada dos imigrantes, pois eles seriam fundamentais nessa caminhada
para um futuro de transformações, cujo fim seria conseguir atingir o mesmo patamar
dos países europeus.
Seus artigos contra o tratamento desumano dado aos prisioneiros na revolta da
armada provocaram seu afastamento progressivo do exército, distanciando-o aos poucos
do governo de Floriano e de todos aqueles que apoiavam o regime ditatorial conduzido
pelos militares. O desencanto do escritor com aquele governo havia começado a
engatinhar. Suas inquietações afloravam a olhos vistos, levando-o a um trabalho de
campo poucas vezes concretizado por outros intelectuais. Começara a se apartar daquele
ambiente, cuja mediocridade deixava-o desesperado. Segundo Sevcenko “o destino que
se pode legar a um mosqueteiro é não incumbi-lo de nenhuma missão. Sua vida toda
19
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 123. 20
Ibid., p. 123.
28
perde sentido; sua condição existencial se dilui.” 21
Como podia a jovem república estar
valorizando espertalhões de todo tipo, deixando no limbo algumas das melhores cabeças
pensantes do país? Euclides da Cunha acreditava firmemente no modelo platônico, o
qual preconizara um governo dos sábios.22
Para ele, investir na educação e em tudo
aquilo que pudesse trazer para a sociedade as conquistas da civilização deveria ser o
norte do governo republicano. Mas nada disso ocorria, e as contradições provocadas
pelo jogo de interesses continuavam, numa constância e firmeza, para ele, exasperantes.
“A ver navios! Nem outra coisa faço nesta adorável República, loureira de espírito curto
que me deixa sistematicamente de lado..”23
Começou a percorrer o Brasil, num misto de
engenheiro e jornalista, e, por isso mesmo, vendo, desbravando, trabalhando, criando,
mas, principalmente, escrevendo, pois o poder da palavra escrita havia-se tornado um
dos recursos mais importantes naqueles tempos em que o progresso se fazia presente.
O engajamento de Euclides o levaria a montar Rocinante, passos lentos e tardos,
como o que havia conduzido o cavaleiro da triste figura. Afinal, só assim se poderia
trilhar aquele Brasil gigantesco, mas com uma estrutura social e econômica perversa e
excludente, sem falar nos sistemas viário e de comunicação, nenhum deles condizente
com as necessidades que o país tinha para entrar na chamada modernidade. E como ele
não apreciava “as multidões ruidosas”, começou a procurar, naquela hora, os locais, “as
cidades, que se ocultavam majestosas, na tristeza solene do sertão”.24
Deste modo, ele
assumiu o projeto de conhecer o país, desprezando a idealização européia tão valorizada
pela maior parte dos intelectuais brasileiros naquele momento crucial de nossa história.
Suas convicções, inúmeras vezes, caíram por terra, conflitando com seus valores e
prejudicando, quase sempre, sua vida pessoal. Ele, no entanto, manteve seu projeto,
brandindo uma lança precária e protegendo-se com um escudo assustadoramente frágil,
mas investindo contra um inimigo que se mantinha inabalável. Urgia não perder as
ilusões. Urgia combater. Importava mesmo, segundo Euclides, concretizar mudanças
que pudessem conduzir o país aos trilhos do progresso, fazê-lo chegar à chamada
modernidade.
21
Ibid., p. 93. 22
PLATÃO, A república. Livro VII 23
CUNHA, E. Cartas a Oliveira Lima. Apud SEVCENKO, N. p. 92. 24
CUNHA, E. Ondas, p. 77.
29
02.02. EUCLIDES E O CONFLITO DE CANUDOS
PÁGINA VAZIA
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,
Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.
E quando, com fidalga gentileza,
Cedeste-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludiu-vos, não previstes
Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?25
Euclides da Cunha
O conflito de Canudos, entretanto, provocou o temor do ressurgimento da
Monarquia, e a idéia de um retrocesso iminente começou a povoar o imaginário social.
Deste modo, era imprescindível combater as forças do “atraso” e do “obscurantismo”.
Depois do fracasso da primeira força militar, uma segunda, bem maior, foi enviada para
esmagar os “revoltosos”. A derrota fragorosa dessa expedição acendeu a luz vermelha
nas hostes governistas. O Exército, instigado pela imprensa, enviou, do Rio de Janeiro,
aquela que seria a terceira expedição. Comandada pelo Coronel Moreira César, militar
acostumado a sufocar revoltas, tornara-se famoso pela brutalidade contra os adversários,
pois, quando governara Santa Catarina, havia debelado a ferro e fogo a Revolução
Federalista de 1894. Moreira César era o grande ídolo dos chamados jacobinos, grupo
formado principalmente por jovens, dentre os quais muitos militares. Esse movimento
atingiu seu apogeu em meados do governo de Floriano Peixoto, tendo como grande
momento impulsionador a “Revolta da Armada” ocorrida em 1893, perdurando até
1897. Pode-se afirmar que a inspiração maior do “espírito jacobino” era o
“florianismo”, pois sua saída da presidência em 1894, substituído por Prudente de
Morais, um civil, havia legado uma série de inquietações no Exército, com muitos
25
CUNHA, E. Ondas, p. 84.
30
pregando um governo “forte”, como o que havia sido liderado pelo “saudoso” Marechal
de Ferro.
A derrota e a humilhação sofrida pela tropa comandada por esse oficial, possível
sucessor de Floriano para os jacobinos, causaram uma surpresa muito grande em todo o
território brasileiro. A comoção nacional foi bastante intensa e, instigada pela imprensa
republicana, ocasionou vários motins e revoltas no Rio de Janeiro e na cidade de São
Paulo. Euclides também sentiu o revés e, como os outros jornalistas, escreveu
furiosamente contra aqueles “bárbaros”, chegando a comparar o processo de construção
do regime republicano com os desdobramentos ocorridos na França após a revolução.
Canudos seria a nossa Vendéia, e era necessário eliminá-la. A quarta expedição seria
deslocada numa mobilização jamais vista em todo o país. Depois de uma luta árdua e
sangrenta, o exército conseguiu, finalmente, invadir e destruir a “urbs monstruosa”, a
“civitas sinistra do erro”,26
denominações dadas por Euclides a Belo Monte, a
comunidade fundada por Antônio Conselheiro. Era uma opinião compartilhada pelas
elites dominantes, como bem expressa uma carta do Coronel José Américo Camelo S.
Velho, um dos maiores latifundiários do Nordeste, ao Barão de Jeremoabo, regozijando-
se a respeito do massacre perpetrado pelo exército.
O tal monstro Vilanova fugiu encontrado na Formosa. Tranquilino monstro
malvado pegado sangrado e queimado. Houve para mais de duzentos degolados de dois
para três dias seguindo assim, e assim tem seguido. Muitas mulheres e crianças em
Monte Santo, seguindo para Bahia para dar maior dispêndio ao Estado!! Que devia era
tudo ser degolado, mas assim não quer o tal marechal, que diz retirar todas as forças
deixando o sertão contaminado com mais de 2 a 3 mil jagunços; [...] Considero que
agora vamos em perigo porque eles se reunirão em grupos para roubar. Já escrevi duas
vezes ao tal ministro em vista do Oscar mandar-me dizer que oficiava ao tal marechal
para ele dar-me força para desalojar a jagunçada de Massacará até Buracos.27
Euclides, no entanto, ao acompanhar o exército como repórter do jornal O
Estado de São Paulo, começou a perder os conceitos elitistas, discriminatórios e racistas
previamente adquiridos, pois, ao constatar de perto a vida dos sertanejos e ver seus
problemas, conseguiu entender suas angústias e carências. Ele percebeu que Canudos
apenas aglutinava os anseios de um povo não disposto a se submeter a uma república,
cuja miopia a tornava incapaz de perceber o total abandono vivido pelos habitantes
daquela imensa região. A explosão era inevitável; e ocorreu. As feridas se abriram,
provocando o conflito entre o Brasil do litoral e o Brasil do sertão. Naquele momento,
26
CUNHA, E. Os sertões, p. 291 27
VELHO, J.A.C. in. Canudos, carta para o barão, p. 221.
31
aquele Brasil das cidades, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador à frente, buscaria,
usando todos os meios a seu dispor, subjugar o Brasil do interior.
Na verdade, os moradores daquela região haviam sido excluídos do Brasil de
esperanças, haviam sido descartados da expectativa alimentada por parte da elite
intelectual e oferecido à classe média emergente dos já citados centros urbanos. Houve
um encontro entre duas culturas muito diferentes entre si. Mas esse encontro, em vez de
provocar união, causou um afastamento brutal e traumático. O sertanejo não quis abrir
mão de seus valores e reagiu à aproximação daquela cultura alheia a seu “modus
vivendi”, a qual procurava se apossar dele sorrateiramente. A presença de Antônio
Conselheiro e sua pregação viriam a calhar naquela região “estranha”, pois o chamado
progresso, tão entusiasticamente apresentado no Rio de Janeiro e em algumas capitais,
estava apartado do homem do sertão. Afinal, o novo regime em nada havia alterado a
estrutura fundiária do país, deixando aflorar o paradoxo de uma república liberal e
discricionária, já que a oligarquia, como ocorrera no regime anterior, continuava a ditar
as regras políticas, sociais e econômicas.
Quando da publicação de Os sertões, era pública e notória a proposta de
Euclides da Cunha de traçar um “painel real” daqueles acontecimentos que estavam
mexendo com o Brasil naquele momento. Sua presença como jornalista no lugar onde
as ações se desenrolavam já dá o tom da pretensão desse escritor: ser legítimo
representante da imprensa numa nova sociedade que surgia naquele Brasil de então e,
como tal, ser fiel aos fatos. A linguagem jornalística representava na época o ápice da
modernidade, numa sociedade que começava a se urbanizar aceleradamente, impondo
um padrão cosmopolita à população. Sua formação positivista conduzia-o para uma
trilha, a qual, para ele, conteria todos os elementos de uma mudança que tanto havia
preconizado. Neste caso, a jovem República deveria impor suas diretrizes, eliminando
tudo aquilo que simbolizasse o “atraso” e o “obscurantismo”.
Evidentemente, considerando a ótica atual, a linguagem euclidiana está
carregada de preconceitos, imperceptíveis, entretanto, no início do século XX. Naquele
momento, era mais importante a valorização de uma idéia cujo lema exaltava a “ordem
e o progresso”. E Euclides acreditava fielmente nisso. Por outro lado, sua ida para
Salvador e sua estada por um mês nessa cidade começaram a produzir no escritor uma
transformação muito grande em relação à realidade presenciada por ele, principalmente
quando passou a ter contato com os feridos que voltavam da frente de batalha. Era a
imagem da derrota e do desencanto. A visão de vários escritos feitos por soldados na
32
região de Contendas, todos criticando ou menosprezando aquela campanha, causaria
nele, também, um impacto muito forte. O escritor chegaria a afirmar que aqueles
“graffitti” eram “palimpsestos ultrajantes” feitos por “mercenários inconscientes,
autores de um crime que em Canudos se cometem”28
. Seu deslocamento para
Queimadas, sua visão dos aspectos geográficos locais e a imagem projetada pelos
habitantes daquelas paragens aprofundaram esse choque, o qual se tornaria muito mais
agudo a partir do momento em que conseguiu visualizar Canudos e presenciar a terrível
carnificina que se desenrolava em seu entorno.
Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e
crianças. Fazia mister, porém, que se não revelassem perigosos.
[...]
A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente.
Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era
a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira César,
queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se
degolar. A repressão tinha dois pólos – o incêndio e a faca.
[...]
Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.
A História não iria até ali.
[...]
A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu,
inteiriça. Desforrava-se afinal.
Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem
altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de
protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...29
A História, no entanto, estava lá, fixando os acontecimentos naquela “página
sem brilhos”. Embora não o percebesse, Euclides estava levando ao resto do país uma
imagem que ficaria para a posteridade. O massacre estava sendo denunciado, e sua
motivação, questionada. De certo modo, ele estava mostrando que, na construção de
uma nação existe a idéia da identidade nacional, através, não apenas da língua, mas
também de toda uma assimilação cultural. Tal pode ser percebido na terceira parte da
obra, chamada por Euclides de “A Luta”, quando este narra o embate encarniçado entre
o exército e os jagunços de Antônio Conselheiro. A chegada dos soldados à região do
conflito havia provocado neles um misto de torpor e apreensão, e a derrota das
expedições anteriores em muito contribuía para esse quadro. Afinal, eles pareciam estar
invadindo um país estrangeiro, longínquo, uma região desconhecido para eles. Eram
viajantes estrangeiros na caatinga – terra estranha – lugar onde o inferno era absoluto,
28
CUNHA, Os sertões, pp. 685-686. 29
Ibid., pp. 732-736.
33
pois não havia alternativa. Eles eram apenas o braço executor do Estado, legítimos
representantes da República, a qual não reconhecia os habitantes de Belo Monte, e seus
moradores, sentindo-se completamente desterritorializados, também não a reconheciam.
Esta, em sua cegueira congênita, havia entendido que aquele povo fazia parte de uma
outra nação.
Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra.
O vaqueiro encouraçado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca
o campião junto aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral,
que não o conhecem.
Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta
Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do
interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba
deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos.
Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e
pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa.
Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica;
criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. 30
Na primeira parte de Os sertões, Euclides, demonstrando um profundo
conhecimento geológico, destacou a influência do meio no comportamento das pessoas
daquela região, conforme citação no capítulo IV, “As secas. Hipóteses sobre a sua
gênese, As caatingas”31
. Na segunda, através de um estudo antropológico, ressaltou a
questão do mestiço, do caboclo, como fundamental para a construção do modo de ser do
jagunço. Era uma visão bastante carregada dos preconceitos dominantes naquele final
do século XIX. Afinal, a mestiçagem seria responsável também pela religiosidade
mística e indefinida do caboclo.
Não seria difícil caracterizá-la como uma mestiçagem de crenças. Estão ali,
francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio
aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização. Este
último é um caso notável de atavismo, na História.32
Mas ele teve a felicidade de perceber a integração daquele homem a um meio
inteiramente adverso. A descrição do sertanejo agigantou a presença desse elemento aos
olhos da sociedade brasileira de então, pondo por terra aquela visão preconceituosa a
qual atribuía os males do país ao predomínio de uma sub-raça, oriunda de uma
mestiçagem descontrolada. Afinal, Euclides, a partir de suas observações, estava
afirmando, peremptoriamente, que aquele homem era, “acima de tudo, um forte”, pois
“não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.” E acrescenta
30
Ibid., p. 677. 31
Ibid., p. 109. 32
Ibid., p. 238.
34
que esse homem “é desgracioso, desengonçado, torto”, resultando num “Hércules-
Quasímodo”, neologismo que, por si só, reforça a antítese de um ser que concentrava
em si “a fealdade típica dos fracos”. Mas “colado ao dorso do cavalo”, o sertanejo
conseguiria realizar, segundo o escritor, “a criação bizarra de um centauro bronco”
capaz de surgir rapidamente, concretizando a imagem de um homem cuja “compleição
robusta ostentava-se, naquele momento, em toda a plenitude33
.
Uma leitura atenciosa do livro nos leva a perceber a visão euclidiana a respeito
do poder da palavra escrita como motor de progresso e transformação. Ele acreditava
que a história deveria servir como consciência crítica do presente, mas a sua análise
poderia ser usada também para transformar o futuro de um povo ou de uma região,
como era o caso de Canudos. E melhor ainda, de todo o imenso Sertão. Deste modo,
somente a chegada do conhecimento e das conquistas da civilização moderna a esses
lugares poderia libertar o sertanejo de sua ignorância e de seu atraso. Questionou,
também, algo diferente naquele momento, o uso desmedido e arbitrário da força militar
para destruir um povoado nos confins do sertão. Sua obra provocou discussões acirradas
na época, visto a pretensão da crítica em querer enquadrar todo trabalho escrito dentro
de um parâmetro. Reportagem, ensaio sociológico, o que seria afinal aquele livro tão
peculiar adentrando nossas Letras tão vertiginosamente?
Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um
objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos
sertões. Havia um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos
à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o
nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.
[...]
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao
esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu
no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados.34
Euclides, um intelectual bastante atuante, preconizava a construção da Nação,
consoante com o modelo republicano, daí ter procurado enfatizar sempre a importância
de um projeto educacional para poder impulsionar o País e, conseqüentemente,
modificar suas estruturas por completo. No caso de Canudos, o escritor diria
posteriormente, numa reflexão amarga, porém consciente, que “a República não deveria
33
Ibid., p. 207. 34
Ibid., pp. 682-778.
35
ter enviado soldados, e sim mestres-escolas”35
. Ele acreditava mesmo que tudo se
resolveria com a inserção do Brasil nos moldes europeus, embasados, evidentemente,
nos padrões cientificistas, recheados com a então dominante ideologia positivista. Sua
percepção da realidade de Canudos havia-lhe produzido uma profunda desilusão com o
regime ao qual havia dedicado sua vida desde os arroubos da juventude. “Não era essa a
República dos nossos sonhos”36
, confessaria mais tarde.
A partir da realidade presenciada, entendeu que havia uma grande distorção, pois
aquele Brasil tão defendido por ele desconhecia o que se poderia chamar de “um outro
Brasil”. Urgia então denunciar a invasão de Canudos como um crime e mostrar que tudo
aquilo havia sido uma carnificina inútil, uma vez que a única modernidade apresentada
pela república naquele fim de mundo se materializava apenas nos modernos fuzis e na
famosa “matadeira”. Por que, em vez disso, a República não havia levado àquelas
pessoas a educação acompanhada das benesses científicas tão em voga naquele
momento? Esta é a modernidade de Euclides: mostrar claramente que o Brasil oficial
precisava descobrir o Brasil do abandono, que o Brasil da jovem República precisava
transformar, de maneira urgente, o Brasil do atraso e da miséria.
Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no
centro do adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas sujas concentrava a sua força
diabólica, feita de fé e de patifaria, alimentada pela superstição e pela rapinagem!
Cinco horas da madrugada, hoje. Num sobressalto, acordo, ouvindo um
clamor de clarins e um rufo acelerado de caixas de guerra. Corro à janela, que defronta
o palácio do governo.
Uma escura massa de gente, na escuridão da ante-manhã, está agrupada na rua.
Calam-se os clarins e as caixas de guerra. Há um curto silêncio. E, logo, dos
instrumentos de hipercinesia, rompe, alto e vibrante, o hino nacional. É uma banda
militar, que toca à alvorada, em frente do palácio, para celebrar ainda uma vez a grande
nova, transmitida ontem à nossa ansiedade pelo telégrafo.
Todos os galos da vizinhança acordam, ajuntando o estridor de seu canto ao
estridor das trompas da banda. Longe, um pedaço do céu, tocado de rosa e pérola,
anuncia o dia.
Como é bom despertar assim, em pleno júbilo, já com o coração livre daqueles
sustos dos dias passados, – quando a gente abrindo os jornais, sentia o coração pressago,
cheio de medo, temendo o horror de novas catástrofes, de novos morticínios, de novas
derrotas!
Enfim, assaltada e vencida a furna lôbrega, onde a ignorância, ao mando da
ambição, se alapardava perversa! Enfim, desmantelada a cidadela-igreja, onde o Bom
Jesus facínora, como um cura Santa Cruz de nova espécie, oficiava, tendo sobre o
espesso burel a coronha da pistola assassina!... 37
35
ABREU, Regina. O enigma da permanência. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, nº47, p.
23. 36
Ibid., p. 23. 37
BILAC, O. Vossa insolência, pp. 412-413.
36
A crônica de Olavo Bilac exaltando a vitória do governo expressa o pensamento
dos intelectuais da época, que viam Canudos com horror. Segundo Walnice Nogueira
Galvão, as matérias jornalísticas que trataram do conflito podem ser classificadas em:
representação galhofeira, representação sensacionalista, representação ponderada, mas
todas contra Canudos38
. Euclides também chegou a fazer parte desse grupo. Sua
pretensão era ser fiel aos fatos; agir como o historiador; mostrar a verdade. Foi muito
mais além, pois de suas páginas emergiu um painel de nossa terra e de nossa gente,
construindo uma epopéia até então ausente em nossas Letras. Só que ele queria ver uma
coisa, mas conseguiu enxergar outra. E dessa realidade vista, criada e projetada por esse
grande escritor, Vargas Llosa criará sua realidade, transformando-a e transfigurando-a.
Mantendo-a, porém, pois é possível reconhecer muito de Os sertões em La guerra del
fin del mundo.
38
GALVÃO, W. N. No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais da 4ª expedição.
37
03. CAPÍTULO 2
VARGAS LLOSA E O ROMANCE
NA AMERICA LATINA
A pesar de su orientación decididamente marxista, Vargas Llosa no es
un militante político. “Después de la injusticia”, dice, “lo que más detesto es el
dogmatismo”. Además, agrega, en el Perú, donde seis millones de personas – el
50% de la población – no votan, la “política” es una caricatura. Sin embargo, lo
angustiaba la posibilidad de tener que someterse a los intereses minoritarios de
una prensa o una radio que podría servir sin mala conciencia. Lo que importaba
era poder escribir, y para ese propósito le convenía perfectamente París, aunque
como a todos los exiliados, lo obsesionaba el problema del lenguaje. Lo
perseguía a diario, dice, el temor de perder el contacto con el español. Pero en su
caso el peligro no llegó a ser nunca inminente. Leía y trabajaba en español, y en
cierta forma, dice, el exilio, la sensación de ser un extranjero en una sociedad
lingüísticamente hermética, hasta intensificaba, “apasionaba” su relación con su
idioma materno. 39
Luis Harss
39
HARSS, L. Los nuestros, pp. 426-427
38
03.01. A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE VARGAS LLOSA
Sou um autor, em primeiro lugar, por minha livre intenção de escrever. Mas
imediatamente segue-se que eu me torno um homem que outros homens consideram um
escritor, isto é, que tem de responder a uma certa demanda e que foi investido de uma
certa função social. Seja qual for o jogo que ele queira jogar, deve jogá-lo com base na
representação que outros fazem dele. Pode querer modificar o caráter que se atribui ao
homem de letras (ou intelectual) numa dada sociedade; mas para mudá-lo tem antes de
introduzir-se nela. Depois, o público intervém, com seus costumes, sua visão de mundo
e sua concepção da sociedade e da literatura no interior da sociedade. O público cerca o
escritor, encurrala-o, e suas exigências imperiosas ou dissimuladas, suas recusas e suas
fugas são os fatos concretos em cuja base uma obra pode ser construída.40
Jean Paul Sartre
A discussão a respeito do papel do intelectual na construção da sociedade
cresceu ao longo do século XX, gerando várias concepções e provocando as mais
diversas reações. Segundo Gramsci em Cadernos do cárcere, escrito nas prisões de
Mussolini entre 1926 e 1937, “todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer:
mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”41
.
Deste modo, ele passou a acentuar o papel daquele que, em sua opinião, seria o
intelectual verdadeiramente transformador, chamado por ele de orgânico, em virtude de
seu envolvimento nas modificações dentro do cotidiano de uma sociedade democrática,
contrastando, ainda segundo ele, com um tipo muito comum de intelectual, como
professores, clérigos e administradores, devido à postura de mantenedores da ordem
tradicional sustentada por esses indivíduos. Esta definição contrapõe-se, também, a
Julien Benda, o qual, em A traição dos intelectuais, afirma que os verdadeiros
intelectuais “são aqueles cuja atividade não é essencialmente a busca de objetivos
práticos, ou seja, todos os que procuram sua satisfação no exercício de uma arte ou
ciência ou da especulação metafísica, em suma, na posse da vantagem não materiais, daí
de certo modo dizerem: „Meu reino não é deste mundo‟”. Isso gerou uma atribuição
quase que religiosa ou, pelo menos, clerical a essa classe de homens, aos quais
acrescentaria Edward Said: “constituiriam a consciência da humanidade”, frisando ainda
que eles “deveriam correr o risco de serem queimados na fogueira, crucificados ou
condenados ao ostracismo”42
. Conforme visto em nossa análise, Euclides da Cunha
seria um misto do intelectual orgânico definido por Gramsci com o intelectual clérigo
40
SARTRE, J.P. Que é a literatura?. In: SAID, E.. Representaçõe do intelectual, p. 79. 41
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, v.2. In: SAID, E. Representações do intelectual, p. 19. 42
BENDA, J. La trahisons des clercs. In: SAID, E. Representações do intelectual, p . 21.
39
apresentado por Benda. Poderíamos dizer o mesmo em relação a Mario Vargas Llosa,
em virtude de seu envolvimento nos acontecimentos políticos e sociais de seu país?
A iniciação do escritor peruano ocorreu no final dos anos 40 e início dos 50
quando, entre 1948 e 1956, Manuel Odría, um dos ministros de José Luis Bustamante,
governo eleito constitucionalmente, liderou um golpe militar, estabelecendo uma
ditadura. Apoiado pelo grande capital e pelas oligarquias, Odría utilizou a justificativa
de que a anarquia estava tomando conta do país. A recusa do presidente de pôr o APRA,
partido político muito popular, na ilegalidade, foi a gota d‟água para que os golpistas
agissem. Começou, então, uma violenta perseguição aos apristas e a quem quer que se
colocasse contra o regime, como os comunistas, por exemplo43
. Naquele momento,
Vargas Llosa, ao adentrar o espaço da universidade, estabeleceu contato com os
diversos grupos políticos de esquerda que buscavam um enfrentamento com o regime
ditatorial. Sua entrada no mundo das letras o levaria a buscar novas opções, já que,
segundo ele, o ambiente literário limenho daquele tempo era bastante pobre. Passou a
abominar o vocábulo “telúrico”, o qual, julgava ele, havia-se tornado símbolo do
provincianismo, do conformismo e do subdesenvolvimento no campo da literatura44
. A
leitura de romancistas norte-americanos como Erskine Caldwell, Steinbeck, Dos Passos,
Hemingway e Waldo Frank o levaria a novos caminhos, aprofundados com a leitura de
William Faulkner45
, autor fundamental, pois, com ele, o escritor peruano descobriria “a
maleabilidade da forma narrativa e as maravilhas que é possível conseguir em uma obra
de ficção utilizada com a destreza desse romancista”46
.
A descoberta de Sartre e de sua tese sobre o compromisso social seria outro
momento fundamental para as inquietações daquele jovem idealista oriundo da
burguesia, que começava a penetrar num mundo de indefinições ideológicas e
confrontos acirrados produzidos pela militância política no mundo universitário. As
leituras de Sartre e de Les Temps Modernes tornaram-no menos dogmático que os
demais, levando-o, uma vez ou outra, a tecer algumas críticas sartrianas ao marxismo,
estabelecendo confronto com os demais companheiros47
. O “sartrezinho valente” inicia,
simultaneamente, seu envolvimento no campo da literatura, trabalhando com o
professor Raúl Porras Barrenechea de 1954 até sua primeira ida para Paris em 1958.
43
VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 296. 44
Ibid.. p. 339. 45
Ibid.. p. 281. 46
Ibid.. p. 338. 47
Ibid., p. 245.
40
Sua tarefa inicial consistia em ler as crônicas da conquista e fazer fichas sobre os mitos
e as lendas do Peru, o que lhe deixaria lembranças apaixonantes a respeito dessas
antigas fantasias e daqueles reinos utópicos com todo o seu manancial de cidades
encantadas e continentes desaparecidos48
. A primeira publicação de um de seus contos,
Os chefes, que posteriormente daria título a seu primeiro livro, prefigurava boa parte do
que ele faria depois como romancista: usar uma experiência pessoal como ponto de
partida para a fantasia; empregar uma forma que finge ser realista mediante detalhes
geográficos e urbanos precisos; uma objetividade obtida através de diálogos e
descrições feitas a partir de um ponto de vista impessoal, apagando os traços de autoria,
e, finalmente, uma atitude crítica em relação a determinada problemática, que é o
contexto ou horizonte do entrecho.
A continuação do envolvimento político, social e literário de Vargas Llosa
ocorreu com o início de seu trabalho na imprensa escrita, tendo tido um aprofundamento
a partir do convite para trabalhar na rádio Panamericana49
. Com o tempo, apaixonou-se
por esse meio de comunicação de massa tão importante naquela década, pois assim
poderia melhor interagir com o público, num trabalho que ele considerava vital. Seus
boletins noticiosos para a rádio ajudavam-no a aprofundar sua participação intelectual
no cotidiano da sociedade peruana. Nessa época, tomou a decisão de ser escritor, mas,
como era impossível sobreviver exercendo tal atividade, resolveu dedicar-se ao
jornalismo e ao ensino. Afinal, “ensinar literatura era compatível com escrever”50
. A
função de assistente da cadeira de literatura peruana na Universidade de San Marcos o
introduziria no mundo acadêmico, levando-o a buscar um doutorado naquela instituição.
A vitória num concurso de contos da La Revue Française em 1957 o conduziria para o
objetivo tão tenazmente desejado, ir a Paris, a capital do país mítico, terra natal de
escritores, como Sartre, que ele tanto apreciava.
Sua admiração por Bustamante, um dos grandes líderes da Democracia Cristã,
havia sido mantida, mesmo em sua época de militância no Cahuide, nome com o qual o
Partido Comunista tentava burlar a ditadura para poder ressuscitar51
. Com o tempo, a
participação nesse movimento passou a ser inútil e tediosa, visto considerá-la
inconstante e cheia de propostas pueris.52
Por outro lado, o sentimento de honra e o
48
Ibid., p. 252. 49
Ibid., p. 386. 50
Ibid., pp. 389-390. 51
Ibid., p. 286. 52
Ibid., pp. 248-249.
41
culto religioso à lei expressos pelo ex-presidente deposto, tão ridicularizado pelos
seguidores da APRA, atraíam o escritor, levando-o a inscrever-se em seu partido assim
que começou o processo de redemocratização. Cedo ele começaria a se questionar a
respeito do que estaria fazendo ali no meio daquelas pessoas, extremamente
respeitáveis, mas muito distantes do sartriano anticlerical, esquerdista, ainda não
completamente “curado” das noções de marxismo adquiridas nos anos de militância
universitária. Seu entusiasmo político era bem maior que sua coerência ideológica, o
que não o impedia de sentir-se mal inúmeras vezes como, por exemplo, quando da
leitura da chamada doutrina social da Igreja expressa através da Rerum novarum,
famosa encíclica de Leão XIII.53
Afinal, os democratas cristãos sempre a citavam como
prova do compromisso dessa instituição com a justiça social e de sua determinação de
realizar uma reforma econômica capaz de ajudar os pobres. O paternalismo explícito e
as vagas críticas aos excessos do capital deixavam-no perplexo. O advento da revolução
cubana tornaria o jovem escritor, como ocorreria com tantos intelectuais naquele
momento, apaixonado por sua causa. A defesa extremamente tímida da Democracia
Cristã em relação às mudanças que começavam a ocorrer naquele país levaria Vargas
Llosa a afastar-se desse partido, levando-o a buscar novos rumos em sua participação
política54
.
Os intelectuais tiveram tanta responsabilidade quanto os militares pelo que
ocorreu no Peru durante aqueles anos, principalmente nos primeiros sete – de 1968 a
1975, os do general Velasco –, em que se adotaram todas as soluções equivocadas para
os grandes problemas nacionais, agravando-os e precipitando o Peru numa ruína a que
Alan García viria dar a última volta no parafuso. Eles aplaudiram a destruição pela força
do sistema democrático, que, por defeituoso e ineficiente que fosse, permitia o
pluralismo político, a crítica, a vida sindical e o exercício da liberdade”55
.
O escritor também não esconde seu apreço pelo grande precursor do pensamento
de esquerda no Peru: José Carlos Mariátegui (1894-1930), considerando seus artigos e
ensaios de divulgação do marxismo, de análise da realidade peruana, de comentários
políticos e até de crítica literária, como exemplos de acuidade intelectual. Com efeito, a
originalidade dos escritos de Mariátegui criou um séquito de seguidores, uma vez que
toda a esquerda peruana, dos mais diversos matizes, passou a se denominar
“mariateguista”56
. Não obstante, Vargas Llosa atribui um papel bastante negativo aos
53
Ibid.. p. 298. 54
Ibid.. p. 298. 55
Ibid.. p. 306. 56
Ibid.. p. 306.
42
intelectuais peruanos com os desdobramentos dos fatos ocorridos desde o final dos anos
60 até meados dos 70, quando o general Velasco Alvarado, então comandante geral do
exército, em 3 de outubro de 1968, liderou a junta militar que derrubou o presidente
Fernando Belaúnde Terry. Alvarado formou um gabinete composto por ministros
militares, estabelecendo um governo que, ao contrário do que ocorria no resto do
continente, entrou para a história da América Latina por ser a primeira ditadura militar a
promover uma considerável reforma agrária, tendo decretado a divisão das terras dos
latifúndios improdutivos em cooperativas administradas pelos camponeses.
O governo do general começaria, depois de alguns anos, a perder fôlego, uma
vez que os interesses econômicos internacionais não lhe dariam trégua. As contradições
do regime começaram a aflorar, pois atacava o capital estrangeiro, mas não conseguia
deter sua penetração na economia, promovia uma reforma agrária, mas não dava a
devida estrutura aos camponeses, apresentava um discurso nacionalista, mas calava a
imprensa e suspendia eleições e partidos políticos. Setores militares conservadores
acabaram pondo fim àquele regime em 1975. Medidas promovidas por Alvarado, como
confisco e coletivização de terras, nacionalização e estatização de empresas, supressão
da liberdade de imprensa e expropriação de todos os canais de televisão, de muitos
jornais e de grande número de estações de rádio foram consideradas por Vargas Llosa
um golpe muito forte contra a democracia peruana. Ele conclui, afirmando que alguns
intelectuais, ao apoiarem aquela ditadura militar, agiam ingenuamente, enquanto outros
faziam-no por simples acomodação, ou por mero oportunismo.57
Vargas Llosa, a partir da realidade peruana, passou a defender a tese de que tudo
aquilo, sem nenhuma exceção, não passava de uma amostra do que ocorria na parte
latino-americana do continente. Para ele, as ditaduras crônicas e todo o seu séquito de
opressões e corrupções haviam criado o mito de que os intelectuais representariam “uma
reserva moral”58
, uma esperança na condução de mudanças capazes de produzir
transformações significativas nesta região. Seria uma aproximação da imagem projetada
pelos membros dessa classe com a idéia de clerezia tão cara a Julien Benda. Entretanto,
o escritor considera que era praticamente impossível um intelectual sobreviver num país
como o seu sem “render homenagem à ideologia socialista e demonstrar em seus atos
públicos – seus escritos e sua atuação cívica –, que fazia parte da esquerda”59
. Segundo
57
Ibid.. p. 309. 58
Ibid.. P. 312. 59
COSTA, Adriane Vidal, Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, p. 7.
43
ele, aflorava o “intelectual barato”60
, uma vez que tal situação diminuía sobremaneira a
atitude dessas pessoas, levando-as a um comportamento interesseiro e mesquinho,
conforme visto a partir de suas observações.
Seria também de singular importância para ele a leitura de Albert Camus. A
princípio, o escritor admirava a postura de Sartre, para o qual a única literatura digna
desse nome deveria ser “engajada”. Afinal, o escritor francês fazia esforços intelectuais
e morais para, “não sendo um deles, jamais parecer que era contra eles”61
, e, em
nenhum momento, abriria mão da convicção de que o Socialismo seria a única solução
viável para todos os problemas sociais e a única saída para os problemas humanos.
Sartre encarnaria, para Vargas Llosa, o intelectual progressista de esquerda dos anos 50
e 60 do século passado. Afinal, como não admirar a postura de um homem que tinha a
coragem de apoiar a União Soviética, a China e Cuba, mas era suficientemente
independente a ponto de simpatizar com o trotskismo e jamais se inscrever no Partido
Comunista? A decepção com Sartre ocorreria em 1964, segundo o escritor peruano,
quando ele leu uma reportagem no Le Monde, na qual o filósofo dizia que, “diante de
uma criança que morre de fome, La nausée não valeria nada”62
. Vargas Llosa afirmou
ter ficado atônito, pois considerou tal afirmativa uma tremenda contradição, uma vez
que negava tudo o que o filósofo dissera anteriormente a respeito da Literatura,
influenciando-lhe o modo de pensar e de escrever. “Significava, então, que escrever
romances ou poemas era coisa inútil, ou pior, imoral, enquanto houvesse injustiças
sociais?” Parecia que sim, pois, na mesma reportagem, Sartre “aconselhava aos
escritores dos novos países africanos que renunciassem a escrever no momento e se
dedicassem muito mais ao ensino e outras tarefas urgentes, a fim de construir um país
onde mais tarde a literatura fosse possível.”63
Era como se ele estivesse retomando
Platão em A República, quando este afirmou que uma cidade organizada e governada
apenas por sábios dispensaria o trabalho dos poetas64
.
O choque foi tão grande que Vargas Llosa, desiludido, mesmo não negando a
importância do filósofo francês em sua vida literária e em sua trajetória intelectual,
rompeu com um pensamento que passara a julgar incoerente. A releitura de L’homme
revolté de Camus na década de 70, que ele, anteriormente, não havia compreendido
60
Ibid., p. 309. 61
COSTA, Adriane Vidal, Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, p. 7. 62
Ibid., p. 5. 63
VARGAS LLOSA, M. Contra viento y marea, p. 321. 64
PLATÃO. A república. Livro X.
44
muito bem, levou-o a descobrir a visão desse escritor a respeito da política, da história e
da cultura contemporânea. Camus condenava todo tipo de totalitarismo, terrorismo,
ditadura, fanatismo ou qualquer manifestação que se aproximasse dessa idéia. Havia
para ele uma “moral dos limites”, pois a “política seria somente um dos componentes da
experiência humana, e que esta era mais ampla que aquela, e que, se a política se
convertesse na atividade central à qual todas as outras se subordinassem, a conseqüência
seria o „aviltamento do indivíduo‟, que poderia, conseqüentemente, levá-lo ao fanatismo
político”65
. O que mais impressionaria Vargas Llosa nessa visão construída por Camus
seria o horror a qualquer tipo de dogma, já que, para ele, toda teoria que se julgasse
absoluta, como o Cristianismo ou o Marxismo, por exemplo, mais cedo ou mais tarde,
teria de mentir ou até mesmo justificar algum crime. Tais opiniões coincidiam com a
sua, e ele preferiu a lição política de Camus.
65
COSTA, Adriane Vidal. Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, pp. 8-9.
45
03.02. VARGAS LLOSA E A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA
Una ficción lograda encarna la subjetividad de una época y por eso las novelas,
aunque cotejadas con la historia, mientan, nos comunican unas verdades huidizas y
evanescentes que escapan siempre a los descriptores científicos de la realidad. Sólo la
literatura dispone de las técnicas y poderes para destilar ese delicado elixir de la vida: la
verdad escondida en el corazón de las mentiras humanas. Porque en los engaños de la
literatura no hay ningún engaño. No debería haberlo, por lo menos, salvo para los
ingenuos que creen que la literatura debe ser objetivamente fiel a la vida y tan
dependiente de la realidad como la historia. Y no hay engaño porque, cuando abrimos
un libro de ficción, acomodamos nuestro ánimo para asistir a una representación en la
que sabemos muy bien que nuestras lágrimas o nuestros bostezos dependerán
exclusivamente de la buena o mala brujería del narrador para hacernos vivir como
verdades sus mentiras y no de su capacidad para reproducir fidedignamente lo vivido.66
Mario Vargas Llosa
Na primeira metade do século XIX, a prosa de ficção se estabeleceu como
elemento de representação da classe burguesa, a qual havia conquistado o direito de se
ver retratada de forma épica. Surgiu, então, legítimo representante da literatura
romântica, o herói burguês, positivo, ponta de lança do progresso numa luta aberta
contra os resquícios do antigo regime, o qual, de uma forma ou de outra, insistia em se
perpetuar. Essa tendência progressista acabou provocando contradições, já que o
romance, pronto para ressaltar o desenvolvimento e a vitória da burguesia, acabou, de
certo modo, denunciando, também, a crueldade das transformações sociais no momento
da acumulação capitalista. Afinal, o herói romântico costumava se revestir de uma
pureza que não condizia com a realidade da sociedade burguesa.
De uma parte, o Romantismo combate o capitalismo em nome de formas
sociais ultrapassadas; doutra, ele se coloca, muitas vezes de forma inconsciente, no
interior do capitalismo: trata-se de um combate idealista, animado por uma ideologia
subjetivista, contra o capitalismo como algo concluso, como “destino”. Neste combate,
o Romantismo reduz as contradições capitalistas que pretendia aprofundar, produzindo
um falso dilema entre um subjetivismo vazio e um objetivismo inflado. O Romantismo
realça, unilateralmente e por vezes inflexionando-se reacionariamente, o fator de
degradação humana no capitalismo. Os escritores importantes deste período alcançam o
grande estilo realista superando as tendências românticas, lutando para compreender a
totalidade da sua época no bojo das suas contradições. Mas as suas relações com o
Romantismo são sempre ambíguas: de um lado, eles superam verdadeiramente as
tendências românticas e integram elementos românticos na sua representação como
momentos ultrapassados; doutro, seu combate contra a prosa da vida contém
necessariamente elementos românticos não-superados.67
66
VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 27. 67
LUKÁCS, M. Sociologia da literatura, p. 184.
46
Então, num crescendo, na esteira das grandes transformações produzidas pela
burguesia ao longo do século XIX, a literatura a partir de meados desse, passou a ser
vista como elemento de conscientização do homem, tendo como grande objetivo o fim
da sociedade burguesa e a construção de outra, sem exploradores nem explorados.
Resultante das diversas filosofias de cunho materialista e cientificista, o romance
realista/naturalista abriu caminho rapidamente, num momento em que o declínio
ideológico da burguesia se tornara evidente. Os heróis românticos, personagens
individualizados vivendo peripécias de todo tipo, começaram a desaparecer, sendo
substituídos por homens médios, vivenciando situações corriqueiras, cotidianas,
representados numa prosa em que a visão analítico-descritiva se sobrepunha ao aspecto
narrativo.
Segundo Mikhail Bakhtine, a figura do herói entrou em crise na segunda metade
do século XIX, com os romances de Dostoievski. Ele acrescenta que “o herói só
interessava a esse escritor russo como ponto de vista particular sobre o mundo e sobre
ele próprio, como a posição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da
realidade circundante e de sua própria pessoa”68
. Deste modo, a subjetividade
exacerbada, herança da visão niilista crescente desde o final do século XIX, passou a
dominar a estrutura dos romances já no primeiro quarto do século XX, enfatizando as
situações absurdas vivenciadas por personagens que não passavam de peças da grande
engrenagem da máquina capitalista. Destacou-se, neste caso, a figura do herói
problemático, em luta para adaptar-se à sociedade burguesa, tornando-se, na maioria das
vezes, um perdedor. Para Lukács, esse tipo de herói seria resultante de um “romance
burguês cada vez mais dominado pelo falso dilema do subjetivismo esvaziado de
qualquer conteúdo e da objetividade artificialmente inflada”69
. Essas perspectivas
seriam associadas a técnicas modernas de apresentação da narrativa, causando
estranheza a princípio para, depois, tornarem-se práticas correntes. O fluxo de
consciência, os diversos planos narrativos, os inúmeros pontos de vista com incontáveis
narradores, o esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de recursos
passaria a ser largamente utilizado por diversos autores ao longo desse século.
O romance latino-americano não ficou alheio a essas mudanças. As vanguardas
européias ajudaram, não só na formação de uma consciência crítica, mas também na
68
BAKHTINE, M. La poétique de Dostoievski, in: Silva, V.M.A., p. 276. 69
LUKÁCS, G. Sociologia da literatura, p. 185.
47
busca de novas formas de composição.70
Aquele complexo de inferioridade que sempre
havia caracterizado o intelectual latino-americano diante dos europeus começava a
desaparecer. Importava, então, para os autores deste continente, voltar-se para sua
gente, discutir suas dificuldades, expor seus anseios e, de certo modo, retratar a luta
empreendida por seu povo com o intuito de produzir uma mudança estrutural em sua
forma de vida. Tais autores começaram, então, a expor as chagas abertas por um longo
processo de colonização imposto a essa região. É neste contexto que surgiram diversos
escritores, criando aquilo que, ao longo dos anos 60 e 70, seria chamado de “boom” do
romance latino-americano.71
Para alguns, o “boom” assumia uma ótica esquerdizante justamente no auge da
guerra fria, quando o continente estava sendo dominado por ditaduras fascistas, ou
sofrendo golpes militares de direita com forte apoio dos Estados Unidos. É evidente
que a imagem projetada pela revolução cubana estimulava essa proposta de uso da
literatura com intenção política, uma vez que esse tipo de romance seria provavelmente
a única voz a se destacar naquele momento de censura e opressão.72
A prosa de ficção
deveria tornar-se um dos principais canais de conscientização, numa tentativa de
ampliar o pensamento de esquerda entre jovens estudantes e, de certa forma, angariar
simpatias no meio da classe média ascendente. Por outro lado, muitos acreditavam que
o “boom” era apenas o resultado de uma expansão de mercado oriunda da diminuição
do analfabetismo em toda essa região.73
Essa teoria valida a idéia da classe média
emergente, visto acreditar que o romance estaria valorizando o aspecto narrativo e
factual, procurando esvaziar, portanto, a proposta ideológica citada no início deste
parágrafo.
O “boom”, de certa forma, foi tudo isso e muito mais. Na verdade, aquele grupo
de escritores surgiu com uma forte consciência da existência da cultura de massas,
especialmente do cinema e do rádio. Afinal, haviam crescido numa época em que a
grande explosão populacional havia provocado o crescimento desmesurado dos grandes
centros urbanos, principalmente em suas periferias. Assimilaram, como todos, naquele
momento em que as massas semi-alfabetizadas eram jogadas dentro do torvelinho
provocado pela industrialização da sociedade capitalista, a imensa gama de
manifestações artísticas ou pseudo-artísticas geradas por essa explosão, como as
70
FRANCO, J. La cultura moderna en América Latina, pp. 193-198. 71
Ibid., p. 225. 72
Ibid., p. 261. 73
RAMA, A. El “boom” en perspectiva. in: Más allá del boom, p. 91.
48
histórias policiais e de aventuras, a fotonovela, a música, o cinema popular, a
radionovela e, posteriormente, a telenovela. Neste caso, passou a ocorrer a valorização,
não do talento, mas da imagem, criando a idéia de que o mais importante era tornar-se
uma celebridade. Segundo Jean Franco, a fama não seria mais conquistada pelo autor,
mas pela estrela.74
Na verdade, havia um preço a ser pago por essa massificação imposta
à população. A América Latina, mais uma vez, sofria um processo de colonização, e
aquela sociedade predominantemente agrária estava sendo transportada a fórceps para o
mundo industrializado. Tal processo projetou influências na construção daquela ficção
que estava surgindo, uma vez que ela refletiria o resultado da já mencionada introdução
da cultura de massas, feita de uma forma tão violenta que produziu, ainda de acordo
com Jean Franco, uma narrativa que “trataria de abarcar, simultaneamente, o
maravilhoso da cultura oral, a criatividade individual do autor e a gravação da imagem
imutável da super-estrela”.75
Demonstrando, então, uma consciência muito forte da importância da indústria
cultural, surgiu no cenário da América Latina a ficção de Vargas Llosa, o qual, em seu
trabalho na Rádio Panamericana já havia feito roteiros para novelas de rádio. Muito
contribuíram para o desenvolvimento da técnica narrativa do escritor as entrevistas
semanais que conduzia para o suplemento dominical do jornal El Comercio, embora as
considerasse, na maioria dos casos, decepcionantes. Conforme mencionado, o contato
com a obra de Faulkner deixara-o deslumbrado, levando-o a uma busca constante das
diversas técnicas do romance, como a questão do ponto de vista, a organização do
tempo e a função do narrador. Os escritores peruanos, em geral, menosprezavam tais
questionamentos, considerando-os meramente “formalismos” ou “formalismos
estrangeirizantes, europeístas”76
. E novamente emergia o vocábulo “telúrico”, que
“significava escrever uma literatura com raízes nas entranhas da terra, na paisagem
natural, e costumbrista, e preferencialmente andina, e denunciar o mandonismo e o
feudalismo da montanha77
”. É preciso destacar, neste caso, que a literatura de mercado
continuava mantendo, de certo modo, a mesma estrutura que tanto sucesso fazia desde a
época do Romantismo. No entanto, a leitura de diversos autores americanos, dando
destaque para Faulkner, havia sido fundamental para produzir o embasamento
74
FRANCO, J. Memoria, narración y repetición: la narrativa hispanoamericana en la época de la
cultura de massas. In: Más allá del boom: literatura y mercado, p. 122. 75
Ibid., p. 114. 76
VARGAS LLOSA, M. Peixe na agua, p. 339. 77
Ibid., p. 339.
49
necessário para que o escritor peruano pudesse construir seu arcabouço literário,
levando-o a se destacar, posteriormente, na literatura da América Latina.
A farta utilização dessas diversas técnicas do romance moderno passaria, então,
a ser uma constante em Vargas Llosa, deixando patente uma contradição, já que o
modelo preconizado por ele remetia a Flaubert, um perfeccionista da técnica narrativa
no auge do Realismo. No entanto, não lhe interessava também o hermetismo de uma
anti-narrativa tão em voga no romance pós-vanguarda ao longo do século XX, cuja
leitura seria desvendada apenas por uma minoria de iniciados altamente qualificados.
Ele desejava, na verdade, ser lido por aquele público resultante da cultura de massas,
aspiração um tanto paradoxal se considerarmos a sua raiz flaubertiana, cheia de
purismo, e o seu profundo conhecimento das diversas nuances da narrativa moderna.78
É
possível afirmar, então, que Vargas Llosa, ao conter a maior parte dessas características
citadas neste capítulo, tornara-se um legítimo representante do “boom” do romance
latino-americano com todas as implicações decorrentes dessa idéia.
A publicação de romances como La ciudad y los perros, La casa verde e
Conversación en la catedral, marcariam um ciclo na obra desse escritor, tornando-o um
dos mais eminentes autores daquele momento singular nas letras do continente. É
necessário pensar, entretanto, no contexto de uma luta crescente a partir da ascensão das
massas, as quais eram cooptadas, na maioria das vezes, por populismos de todo tipo. A
guerra fria produziria, também, frutos espúrios ao longo da América Latina, criando um
clima de perseguições, prisões arbitrárias, torturas, exílios e desaparecimentos
constantes daqueles que eram considerados, direta ou indiretamente, inimigos dos
regimes fascistas que surgiam aqui e ali. Deste modo, a narrativa de Vargas Llosa
parecia assumir uma postura muito clara de confronto em relação a esse estado de
coisas, uma vez que a análise da sociedade peruana presente em seus romances iniciais
remetia à idéia de ficção como recriação da realidade e, mais ainda, como elemento de
transformação social. A herança de Sartre pulsava nos escritos do escritor peruano.
O lançamento de La guerra del fin del mundo no começo dos anos 80 criou uma
expectativa muito grande no meio da crítica e dos leitores aqui no Brasil. Afinal, como
aquele estrangeiro tinha a pretensão de escrever alguma coisa a respeito da realidade
brasileira? Como tinha ele a presunção de refazer o trabalho de um dos maiores ícones
da nossa literatura? Acrescente-se a isso as mudanças em seu pensamento político e
78
RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Madurez de Vargas Llosa, in: Asedios a Vargas Llosa, p.39
50
social, as quais, evidentemente, haviam-lhe trazido um sem número de
desentendimentos. Vargas Llosa, ao se propor escrever a respeito dos acontecimentos
de Canudos, fez uma ampla pesquisa, incluindo um trabalho de campo. Seu purismo
jamais o deixaria escrever de forma desleixada e com pouco conhecimento a respeito de
qualquer assunto. Deste modo, a quebra da linearidade histórica pela pós-modernidade
seria uma constante no palimpsesto produzido pelo escritor peruano, uma vez que pôde
pôr em prática todo um arcabouço resultante das mudanças percebidas por ele na
sociedade latino-americana ao longo dos anos 40 e 50.79
A cultura de massas trazida
pelo rádio e pelo cinema havia tido uma influência profunda em seu trabalho, e La
guerra del fin del mundo era conseqüência disso.
79
RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Una escritura revolucionaria, in: Narradores de esta América, p. 34.
51
04. CAPÍTULO 3
VARGAS LLOSA,
LEITOR DE EUCLIDES
Por creer que la realidad es como pretenden las ficciones, Alonso
Quijano y Emma Bovary sufren terribles quebrantos. ¿Los condenamos por
ello? No, sus historias nos conmueven y nos admiran: su empeño imposible de
vivir la ficción nos parece personificar una actitud idealista que honra a la
especie. Porque querer ser distinto de lo que se es ha sido la aspiración humana
por excelencia. De ella resultó lo mejor y lo peor que registra la historia. De ella
han nacido también las ficciones. 80
MarioVargas Llosa
80
VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 22.
52
04.01. DISCUSSÃO DO NOVO ROMANCE HISTÓRICO
La recomposición del pasado que opera la literatura es casi siempre falaz. La
verdad literaria es una y otra la verdad histórica. Pero, aunque esté repleta de mentiras –
o, más bien, por ello mismo – la literatura cuenta la historia que la historia que escriben
los historiadores no sabe ni puede contar.
Porque los fraudes, embaucos y exageraciones de la literatura narrativa sirven
para expresar verdades profundas e inquietantes que sólo de esta manera sesgada ven la
luz.81
Mario Vargas Llosa
A leitura de Os sertões como base para a escrita do romance La guerra del fin
del mundo é o primeiro elemento fundamental para conceituar o texto de Vargas Llosa
na perspectiva do Novo Romance Histórico. Para o escritor peruano, o vínculo com a
realidade sempre encabeçara sua lista de preocupações no ato da escrita, como pode ser
observado a partir da leitura de alguns de seus primeiros romances, como os já
mencionados La ciudad y los perros, La casa verde e Conversación en la catedral, por
exemplo. No entanto, ele sempre afirmou também que, apesar desse vínculo, todos os
romances, sem exceção, afastavam-se da verdade, pois o seu grande objetivo seria
mentir de forma consciente com o intuito de criar sua própria realidade.
Logicamente, ao se propor escrever a respeito de Canudos, o escritor peruano
executou uma ampla pesquisa, indo além do já narrado por Euclides em Os sertões. Na
verdade, ele procedeu exatamente como o escritor brasileiro fizera 80 anos atrás, uma
viagem ao local, fato que mudaria significativamente a imagem do escritor brasileiro a
respeito do que estava ocorrendo naquela região destituída das benesses da civilização.
A técnica apurada de Vargas Llosa e sua visão perfeccionista, predicativos muito
semelhantes aos de Euclides, não lhe permitiriam construir uma narrativa sem muito
apuro e com pouca base temática. Importa mesmo entender que seu trabalho segue uma
proposta de objetividade, mesclando-a, entretanto, com as mudanças desenvolvidas pelo
romance moderno ao longo do século XX, incluindo, conforme já citado, influências
provenientes, não apenas do cinema, mas também dos aspectos resultantes da chamada
cultura de massas.
Pero la lógica de los elegidos del Buen Jesús no era la de esta tierra. La guerra
que ellos libraban era sólo en apariencia la del mundo exterior, la de uniformados contra
andrajosos, la del litoral contra el interior, la del nuevo Brasil contra el Brasil
tradicional. Todos los yagunzos eran conscientes de ser sólo fantoches de una guerra
81
VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 26.
53
profunda, intemporal y eterna, la del bien y del mal, que se venía librando desde el
principio del tiempo. 82
Luiz Costa Lima, em Terra ignota: a construção de Os sertões, afirmou que “a
ciência detinha a autoridade central nesse livro, enquanto a literatura seria apenas um
elemento embelezador ou ressaltante de verdades cientificamente dispostas, elemento
este que, marginal, não tornaria Os sertões uma obra literária”.83
Neste caso, a difícil
classificação dessa obra dentro de determinados parâmetros estabelecidos pela crítica,
vem sendo uma constante, apesar da objetividade científica buscada por Euclides, o qual
pretendia agir como um historiador. De suas páginas, entretanto, emergem um painel de
nossa terra e de nossa gente, construindo uma epopéia até então ausente em nossas
Letras. E é dessa realidade vista, criada e projetada por Euclides que Vargas Llosa
criará sua realidade, transformando-a e transfigurando-a; mantendo-a, porém, pois é
possível reconhecer muito de Os sertões em La guerra del fin del mundo. Segundo
Seymour Menton, “un ejemplo extremo de intertextualidad es el palimpsesto, o la re-
escritura de otro texto”84
. Deste modo, é possível afirmar que o palimpsesto como
reprodução mimética da história domina a estrutura do romance, acentuando sua base
histórica.
Os três dias de luta terminaram. Estou salvo, isto é o que importa. Descreverei
agora, e em toda oportunidade, os detalhes do grande acontecimento, ou seja, o que
pude dele observar... A manhã do dia 18 de junho surgiu sobre nós e nos encontrou
ensopados de chuva, entorpecidos e tremendo de frio... Você muitas vezes me censurou
por fumar, quando eu estava em casa no ano passado, mas devo dizer-lhe que, se eu não
tivesse um bom estoque de tabaco nessa noite, poderia ter morrido.85
Na descrição da batalha de Waterloo feita por William Wheeler, soldado da 51ª
Infantaria Britânica, numa dentre as várias cartas enviadas a sua esposa, Jim Sharpe
ressalta uma reviravolta em relação à história tradicional, “que era encarada, desde os
tempos clássicos como um feito dos grandes”, relatando as inúmeras guerras presentes
na história da humanidade, esquecendo-se, entretanto, do “ponto de vista do soldado
raso”.86
Ele destaca, então, que uma das características mais importantes dos novos
historiadores era a preocupação que estes passaram a demonstrar com o homem do
82
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, séptimo capítulo, p. 120. 83
LIMA, L.C. Terra ignota, p. 206. 84
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 85
WHEELER, W. The letters of prívate Wheeler 1809-1828, Ed. B.H. Liddel Hart, Londres, 1951, pp.
168-172. In: A escrita da história, p. 39. 86
SHARPE, J. A história vista de baixo. In: A escrita da história, pp. 39-40.
54
povo, evidenciando, pela primeira vez, “a história vista de baixo”, numa inversão da
visão dominada pela história tradicional, cujo objetivo primordial havia sido até então
“mostrar os feitos dos grandes homens, estadistas, generais, destinando ao resto da
humanidade um papel secundário no drama da história”.87
O Novo Romance Histórico,
ao contrário do tradicional, também assume essa postura, pondo em segundo plano a
proposta de Walter Scott, o qual reforçava a figura do herói.88
Em La guerra del fin del
mundo, personagens populares, como o Leão de Natuba, Maria Quadrado, os irmãos
Vilanova, o Anão, o padre Joaquim, Jurema e Rufino, entre outros, povoam a narrativa,
o que é extremamente importante para exemplificar essa idéia. Desde modo, salta aos
olhos do leitor a vida de cada uma dessas pessoas, com seus sonhos, suas paixões, suas
frustrações, sua luta pela sobrevivência, seus dramas, suas tragédias, o cotidiano delas,
enfim.
El Enano se le prendió, tratando de atajarla, pero cuando ella salió del foso, la
siguió gateando. Bajó hasta las rocas y zarzas donde había visto a Pajeú y se acuclilló.
Pese a la polvareda, divisó en las faldas de los cerros del frente un hervidero de
hormigas oscuras, y pensó que más soldados bajaban hacia el río, pero pronto
comprendió que no bajaban sino subían, que huían de Canudos. Sí, no había duda,
salían del río, corrían, trataban de ganar las cumbres y vio, en la otra margen,a grupos
de hombres que disparaban y correteaban a soldados aislados que surgían de entre las
casuchas, tratando de ganar la orilla. Sí, los soldados se estaban escapando y eran los
yagunzos quienes ahora los perseguían. “Vienen para acá”, gimoteó el Enano y a ella se
le heló el cuerpo al advertir que, por observar los cerros del frente, no se había dado
cuenta que la guerra tenía lugar también a sus pies, a ambas orillas del Vassa Barris. De
ahí venía el bullicio con el que creyó soñar. 89
Além desses personagens mencionados, outros, reais, totalmente históricos,
também preencherão os espaços do romance, reforçando a idéia da importância de se
dar vez e voz aos excluídos. Pajeú, João Abade, Vilanova e João Grande, por exemplo,
além de Beatinho, o mais importante auxiliar do Conselheiro, tiveram existência
comprovada. Em vez de bandidos, facínoras ou, no mínimo, seres exóticos, segundo
apresentação feita por Euclides em Os sertões, em La guerra del fin del mundo, no
entanto, adquirem uma dimensão épica e altamente dramática. A construção de cada
um deles reveste-se de elementos comparáveis aos grandes heróis trágicos e, na medida
em que cresce o assédio a Belo Monte, o papel desses seres na defesa da “Tróia de
Taipa” realça-se de uma grandiosidade épica em tudo semelhante aos protagonistas das
epopéias clássicas.
87
BURKE, P. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro, in: A escrita da história, p. 12. 88
LUKACS, G, Le roman historique, p. 48. 89
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, séptimo capítulo, p. 335.
55
“Las cosas no son como las vemos, sino como las recordamos”, escreveu Valle-
Inclán, citado por Vargas Llosa, em La verdad de las mentiras.90
Le Goff ressalta que o
historiador não deveria ser basicamente “um investigador da verdade do passado, mas
um profético intérprete do passado, condicionado pelas suas opiniões políticas, pela fé
religiosa, características étnicas e, finalmente, mas não em exclusivo, pela situação
social”.91
Ele acrescenta ainda que “todas as evocações poéticas, míticas, utópicas, ou,
de qualquer modo, fantásticas do passado entram na historiografia”.92
Ao longo do
romance, inúmeras vezes, o eixo narrativo se espalha em vertentes que valorizam as
crenças populares e as histórias contadas pelos cantadores nas feiras e festas dos
lugarejos ou nos circos itinerantes que percorriam aquelas pequenas cidades do sertão, o
que remete a um medievalismo bastante presente na cultura daquela região.
É bem marcante, neste caso, a história de João Satã, cuja alcunha surgira a partir
de sua vingança contra os policiais que haviam assassinado seus pais adotivos. Tornara-
se extremamente violento e perigoso e virara lenda viva, de forma que qualquer tipo de
crime passara a ser atribuído a ele. Evidentemente, a polícia o perseguia de forma
implacável. O encontro com o Conselheiro mudaria sua vida completamente, pois João
Satã, agora batizado como João Abade, transformara-se num dos mais fiéis servidores
do pregador. A história de Roberto do diabo contada pelos cantadores e repentistas,
destacando, neste caso, o anão, deixava-o bastante comovido, pois as peripécias vividas
pelo personagem mítico eram as mesmas vivenciadas por ele. Só lhe restava aguardar a
sua hora e a sua vez, pois a salvação, com certeza, viria.
Es una viejecita sin pelos, menuda como una niña, que lo mira a través de sus
legañas:
– ¿Quieres saber de João Abade? – balbucea su boca sin dientes.
– Quiero – asiente el Coronel Macedo –. ¿Lo viste morir?
La viejecita niega y hace chasquear la lengua, como si chupara algo.
– ¿Se escapó entonces?
La viejecita vuelve a negar, cercada por los ojos de las prisioneras.
– Lo subieron al cielo unos arcángeles – dice, chasqueando la lengua –. Yo los
vi.93
En ese momento Mackandal agitó su muñon que no habían podido atar, en un
gesto conminatorio que no por menguado era menos terrible, aullando conjuros
desconocidos y echando violentamente el torso hacia adelante. Sus ataduras cayeron, y
90
VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentira, p.25. 91
LE GOFF, J. História e memoria, p. 49. 92
Ibid., p. 50. 93
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, sexto capítulo, p.570.
56
el cuerpo negro se espigo en el aire, volando por sobre las cabezas, antes de hundirse en
las ondas negras de la masa de esclavos. Un solo grito llenó la plaza.
– Mackandal sauvé.94
A conclusão de La guerra del fin del mundo nos mostra, então, que a recriação
da realidade por Vargas Llosa apresenta uma visão diferente da proposta por Euclides
da Cunha. E como qualquer obra de ficção deve encarnar a subjetividade de um povo, o
escritor peruano põe em relevo o seu arcabouço de descobertas capazes de evidenciar os
mitos e as histórias contadas pela população. O diálogo entre o oficial e a velha
prisioneira no final do romance ilustra muito bem tal idéia. Quando questionada a
respeito de que fim teria levado João Abade, sua resposta, como a da população negra
do Haiti diante da execução de Mackandal em El reino de este mundo, contraria a lógica
cartesiana do pensamento racional. Alejo Carpentier, numa descrição bastante
expressiva, mostra a cena mitificada pelo imaginário popular. Da mesma forma, Vargas
Llosa destaca a resposta dada pela moradora local ao oficial, pois o que valia mesmo era
ressaltar que, não só Antônio Conselheiro, mas todos aqueles que viram seu exemplo de
vida, ouviram suas pregações, seguiram-no incansavelmente pelo sertão e por ele
lutaram heroicamente, não haviam morrido, como o ”estado oficial” afirmava. Aqueles
personagens e aqueles acontecimentos ficariam gravados no imaginário das pessoas
daquela região e continuariam entranhados nelas, preenchendo suas vidas para sempre.
Vargas Llosa entende mesmo que “una ficción lograda encarna la subjetividad
de una época” e, por isso mesmo, “las novelas, aunque, cotejadas con la historia,
mientan, nos comunican unas verdades huidizas y evanescentes que escapan siempre a
los descriptores científicos de la realidad”.95
Tal afirmação está de acordo com Le Goff,
segundo o qual, “o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um
futuro que é parte integrante e significativa da história”.96
Ao contrário do que ocorre
em Os sertões, com a pretensa objetividade de Euclides, Vargas Llosa assume, de forma
consciente, a postura desse historiador, o qual acrescentou que “a história na medida em
que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida
em que o seu sentido se mantém confuso, misturado...”.97
É o que sucede em La guerra
del fin del mundo quando da criação de personagens fictícios, como o Barão de
Cañabrava, Galileo Gall, Rufino, Jurema e Epaminondas Gonçalves. A visão
94
CARPENTIER, A. El reino de este mundo, p. 51. 95
VARGAS LLOSA, M, La verdad de las mentiras, p. 27. 96
LE GOFF, J. História e memoria, p. 24. 97
Ibid., p. 21.
57
diferenciada que cada um desses personagens tem dos acontecimentos servirá para
comprovar que, ainda segundo Le Goff, “a história é, na verdade, o reino do inexato”.98
– El partido Republicano Progresista no quiere ayudar ni tener el menor
contacto con gentes que se rebelan contra la ley – silabeó Epaminondas Gonçalves.
– El Honorable Diputado Epaminondas Gonçalves, entonces – dijo Galileo
Gall –. ¿Por qué a través mío?
– El Honorable Diputado Epaminondas Gonçalves no puede ayudar a
revoltosos – silabeó el Director del Jornal de Notícias – Ni nadie que esté vinculado,
de cerca o de lejos, a él. El Honorable Diputado está dando una batalla desigual por los
ideales republicanos y democráticos en este enclave autocrático, de enemigos
poderosos, y no puede correr semejante riesgo. – Sonrió y Gall vio que tenía una
dentadura blanca, voraz –. Usted vino a ofrecerse. No se me hubiera ocurrido nunca, si
no hubiera sido por esa extraña visita suya, anteayer. Fue la que me dio la idea. La que
me hizo pensar: “Si es tan loco para convocar un mitin público en favor de los
revoltosos, lo será también para llevarles unos fusiles”. – Dejó de sonreir y habló con
severidad –: En estos casos, la franqueza es lo mejor. Usted es la única persona que, si
es descubierta o capturada, en ningún caso podría comprometernos a mí y a mis
amigos políticos.99
A presença do personagem Epaminondas Gonçalves, proprietário do Jornal de
Notícias é bastante significativa, pois passamos a conhecê-lo logo no início da narrativa
quando Galileo Gall dirige-se a seu jornal para publicar uma moção de solidariedade
aos revoltosos de Canudos. Mais uma criação de Vargas Llosa, esse republicano
extremado procura se aproveitar do idealismo do escocês para provocar uma
intervenção militar na Bahia. Ele consegue convencer Galileo a levar alguns fuzis para
os homens do Conselheiro e, logo após, contrata alguns pistoleiros para matá-lo. O
corpo de um suposto estrangeiro ao lado de fuzis ingleses seria suficiente para provar
que os jagunços de Antônio Conselheiro estavam recebendo ajuda externa, mais
precisamente, da monarquia inglesa. A forma como Epaminondas manipula as notícias
divulgadas por seu jornal mostra a força da imprensa, cujo poder é capaz de criar
situações e de manejá-las a seu bel-prazer. Na verdade, esse personagem representa uma
forma de exercício de poder que começava a se fazer presente naquele Brasil do início
da República. Segundo Sevcenko, era “a nova grande força que havia absorvido quase
toda a atividade intelectual naquele período, pois estava crescendo emparelhado com o
processo de mercantilização na cidade”.100
O escritor peruano destaca, então, o 4º poder,
cuja voz tinha força suficiente para penetrar em “territórios até então intocados e
zelosamente defendidos”.101
98
Ibid., p. 21. 99
Ibid., Libro Uno, cuarto capítulo, p. 78. 100
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 99. 101
Ibid., p. 99.
58
No, nunca comprendería. Era tan vano tratar de razonar con él, como con
Moreira César o con Gall. El Barón tuvo un estremecimiento; era como se el mundo
hubiera perdido la razón y sólo creencias ciegas, irracionales, gobernaran la vida.
[…]
Veía tanta angustia en la cara del escocés que, súbitamente, sintió compasión
por él. Pensó: “Todo lo que anhela es ira morir como un perro entre gentes que no lo
entienden y a las que no entiende. Cree que va a morir como un héroe y en realidad
va a morir como lo que teme: como un idiota”. El mundo entero le pareció víctima de
un malentendido sin remedio. 102
O caso do Barão de Cañabrava, monarquista convicto, é bastante pertinente, uma
vez que as ações desse personagem se aproximam, de certo modo, da imagem projetada
pelo imperador D. Pedro II, o qual exercia seu poder moderador entre as diversas
disputas e intrigas montadas por Liberais e Conservadores. Sua descrição e seus atos
chegam a inspirar simpatia ao leitor, já que ele se mostra um homem compreensivo e
bonachão, em nenhum momento parecendo-se com um latifundiário ou um típico
coronel do Nordeste. Cogita-se que Vargas Llosa, em sua criação, deve ter-se inspirado
em Cícero Dantas Martins, Barão de Jeremoabo, provavelmente o maior proprietário de
terras da Bahia naquela época, 61 fazendas ao todo, com a maioria tendo se originado
nas antigas sesmarias. Devido a sua atuação política desde a monarquia, tornara-se um
dos mais ativos e combativos homens públicos daquele estado, tendo chegado ao cargo
de Senador. Foi também industrial, atividade que o levaria a implantar, com sucesso, a
primeira usina de açúcar na região nordestina, que seria a quinta em todo o país.103
Vargas Llosa destaca, então, no Barão de Cañabrava, a habilidade em manter um
relacionamento afetuoso e cordial, não só com todos os seus empregados, mas também
com os demais moradores da região. Tal imagem, segundo o narrador, vinha de longe e
se acentuara quando, bem antes da assinatura da Lei Áurea, ele já havia libertado todos
os seus escravos, tendo todos, no entanto, permanecido fiéis a ele. Além do mais, o
barão era um homem afeito ao progresso e procurava se adaptar às mudanças trazidas
pela modernidade. Na verdade, a figura do barão simboliza a visão de Vargas Llosa a
respeito de pessoas que, sem idealizações exacerbadas, sem extremismos, teriam
capacidade suficiente para, através do diálogo, conduzir o processo de solução dos
diversos problemas sociais e econômicos presentes, não apenas no Brasil, mas em toda
a América Latina.
102
Ibid., Libro Tres, cuarto capítulo, pp. 255-260. 103
SAMPAIO, C.N. Canudos: cartas para o barão, pp. 18-25.
59
¿Se burlaban de él? Balbuceó, se le trabó la lengua, luchó contra la sensación
de impotencia que lo ganaba al darse cuenta que las cosas que decía no eran
exactamente las que quería decir, las que ellos hubieran podido entender. Lo
desmoralizaba, sobre todo, advertir en la indecisa luz de las antorchas que los yagunzos
cambiaban miradas y gestos significativos y que se sonreían piadosamente,
mostrándoles sus bocas donde faltaban o sobraban dientes. […] Quedó con las manos
estiradas y sintió los ojos cargados de lágrimas. ¿Qué hacía aquí? ¿Cómo había llegado
a meterse en esta trampa, de la que no iba a salir creyendo que así ponía un granito de
arena en la gran empresa de desbarbarizar el mundo? Alguien le aconsejaba que no
tuviera miedo: eran sólo masones, protestantes, sirvientes del Anticristo, y el Consejero
y el Buen Jesús valían más. 104
Na cena descrita acima, vemos o desespero de Galileo Gall, o escocês anarquista
que empreendera uma caminhada quixotesca pelos sertões da Bahia para colocar-se ao
lado das fileiras de Antônio Conselheiro. O crescimento de Canudos e sua luta de
resistência contra o governo central haviam atiçado sua imaginação. Afinal, ele já estava
acostumado a participar de diversos movimentos contra o poder do estado burguês no
continente europeu e, agora, naquele país estranho e distante, fora surpreendido por
aquela revolta, cuja determinação havia criado uma cidade libertária, mas extremamente
funcional, pois havia sido construída com a força, a fé e o sangue do povo.
Ressalte-se que, em 1919, o escritor escocês Robert Cunninghame Graham
escreveu A Brazilian Mystic: Being the Life and Miracles of Antonio Conselheiro, o
qual seria uma tradução livre e abreviada de Os Sertões. Segundo o crítico americano
Peter Elmore, “a Brazilian Mystic não somente resume Os sertões, mas o reduz: a
diferença entre Os Sertões e A Brazilian Mystic limita-se à biografia de Antônio
Conselheiro”105
. Elmore quer ressaltar apenas “o atavismo cultural numa sociedade
periférica”. O mais interessante, porém, neste caso, para estabelecer uma ligação entre
tal fato e a narrativa de Vargas Llosa, é a citação do crítico: “Livre-pensador e cético, o
escocês Cunninghame Graham – alguma coisa mais do que sua nacionalidade pode
partilhar com outro escocês, aquele Galileo Gall de La Guerra del Fin del Mundo – não
queria escrever a vida de um santo, tampouco ver no seu protagonista um caso
clínico.”106
Deste modo, seria fundamental enfatizar a associação do escocês anarquista,
Galileo Gall, personagem de destaque na narrativa de Vargas Llosa, ao “livre-pensador
e cético, Cunninghame Graham.
Na verdade, as idéias revolucionárias deste personagem aliadas a seu
comportamento são o espelho perfeito para que Vargas Llosa explicite seu pensamento
104
Ibid., Libro Tres, según capítulo, p. 184. 105
ELMORE, P. Renan, Euclides, Cunninghame Grahm, Borges: a chave gnóstica. In: BERNUCCI,
L.M. (org).: Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha, p. 106. 106
Ibid., p. 106.
60
a respeito de militantes revolucionários, cujas atitudes, consideradas pelo escritor como
infantis, despropositadas e utópicas, remetiam-no a seus antigos companheiros do
Cahuide.107
O idealismo do escocês levava-o a empunhar a bandeira da causa anarquista
e a lutar tenazmente para concretizá-la, independente do conhecimento ou não das
motivações dos condutores dessa luta e da enormidade dos problemas que pudessem
surgir a todo instante para a consecução de sua proposta. No caso de Canudos,
acontecimentos imprevistos acabaram desviando o escocês do seu objetivo primordial:
chegar ao arraial para cerrar fileira ao lado do Conselheiro e de seus seguidores. Seu
inesperado envolvimento amoroso com Jurema, esposa de Rufino, um rastreador da
região incumbido de conduzi-lo a Canudos, e a perseguição implacável que este
sertanejo empreenderia contra ele, não permitiram que Galileo pudesse ir além da
solidariedade aos defensores de Belo Monte, conseguindo inserir-se de forma concreta
na luta dos conselheiristas.
– ¿Se da cuenta? – dijo el periodista miope, respirando como si acabara de
realizar um esfuerzo enorme –. Canudos no es una historia, sino un árbol de historias. 108
Segundo Stanley Fish, a respeito da pós-modernidade: “Tu saberás que a
verdade não é o que parece ser e essa verdade te libertará”.109
Essa postura é
evidentemente assumida por Vargas Llosa na construção do romance. Acrescente-se a
observação de Seymour Menton a respeito do conceito bakhtiniano de dialogismo, de
que inúmeras obras consideradas representantes do Novo Romance Histórico “projetam
duas ou mais representações dos acontecimentos e dos personagens”, ressaltando uma
multiplicidade de “visões do mundo”.110
Tal assertiva apenas corrobora a afirmação de
Bakhtin a respeito de quem fala no romance, pois, segundo o crítico, “O plurilingüismo
penetra no romance, por assim dizer, em pessoa, e se materializa nele nas figuras das
pessoas que falam, ou, então, servindo como um fundo ao diálogo, determina a
ressonância especial do discurso direto do romance”111
. Ocorre exatamente deste modo
em La guerra del fin del mundo, quando diversos personagens assumem o foco
narrativo, tendo este sido dividido basicamente em duas linhas mestras: a visão dos
republicanos e a dos sertanejos. Duas delas, entretanto, ambas referentes a dois
107
VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 286. 108
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, cuarto capítulo, p. 464. 109
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo, p. 30. 110
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 111
BAKHTIN, M. A pessoa que fala no romance. In.: Questões de literatura e de estética, p. 134.
61
personagens fundamentais, chamam bastante a nossa atenção: a do Barão de Cañabrava,
personagem já citado, e a do jornalista míope. O longo diálogo entre os dois ao longo do
quarto capítulo explicita a construção polifônica proposta por Vargas Llosa ao longo do
romance. 112
– Se están olvidando de Canudos – dijo el periodista miope, con voz que
parecía eco –. Los últimos recuerdos de lo sucedido se evaporarán con el éter y la
música de los próximos Carnavales, en el Teatro Politeama.
– ¿Canudos? – murmuró el Barón –. Epaminondas hace bien en querer que no
se hable de esa historia. Olvidémosla, es lo mejor. Es un episodio desgraciado, turbio,
confuso. No sirve. La historia debe ser instructiva, ejemplar. En esa guerra nadie se
cubrió de gloria. Y nadie entiende lo que pasó. Las gentes han decidido bajar una
cortina. Es sabio, es saludable.
– No permitiré que se olviden – dijo el periodista, mirándolo con la dudosa
fijeza de su mirada –. Es una promesa que me he hecho.
(…)
– ¿Cómo? – dijo, porque sí, para llenar el vacío.
– De la única manera que se conservan las cosas – oyó gruñir al visitante –.
Escribiéndolas. – También me acuerdo de eso – asintió el Barón –. Usted quería ser
poeta, dramaturgo. ¿Va a escribir esa historia de Canudos que no vio? 113
De acordo com Peter Burke, “Nós nos deslocamos do ideal da Voz da História
para aquele da heteroglossia, definida como „vozes variadas e opostas‟.”114
Deste modo,
a fragmentação se apresenta de forma constante ao longo da narrativa, expondo os
diversos pontos de vista dos diferentes personagens que povoam o texto. No trecho
abaixo, o jornal do deputado Epaminondas Gonçalves expõe de modo claro e direto o
papel exercido por aquela supracitada forma de poder já completamente consolidado no
continente europeu e que despontava com muita força em nosso país. Era a força da
impressa, não apenas expressando, mas também conduzindo a visão do Brasil do litoral,
do Brasil das capitais, do Brasil da burguesia emergente, do Brasil dos “civilizados”,
enfim.115
Segundo Zygmut Bauman em Modernidade e ambivalência, o estado moderno
havia começado a construir uma sociedade racionalmente planejada, era o que ele
chamava de “Estado Jardineiro”, no qual as ervas daninhas deveriam ser destruídas para
que as plantas úteis pudessem sobreviver. Deste modo, o quarto poder clamava a favor
da aniquilação daqueles “estranhos” que impediam a construção da sociedade
moderna.116
112
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 113
VARGAS LLOSA, La guerra del fin del mundo, Libro Cuarto, primer capítulo, p. 365. 114
BURKE, Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro, in: A escrita da história, p.15. 115
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 100. 116
BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalencia, p. 29.
62
II
Un Brasil Unido, Una Nación Fuerte
JORNAL DE NOTÍCIAS
(Propietario Epaminondas Gonçalves)
Bahia, 3 de Enero de 1897
La Derrota de la Expedición del Mayor Febronio de Brito
en el Sertón de Canudos
Nuevos Desarrollos
EL PARTIDO REPUBLICANO PROGRESISTA ACUSA AL GOBERNADOR Y AL
PARTIDO AUTONOMISTA DE BAHÍA DE CONSPIRAR CONTRA LA REPÚBLICA
PARA RESTAURAR EL ORDEN IMPERIAL OBSOLETO
El cadáver del “agente inglés”
Comisión de Republicanos viaja a Río para pedir intervención del Ejército Federal
contra fanáticos subversivos
TELEGRAMA DE PATRIOTAS BAHIANOS AL CORONEL MOREIRA CÉSAR:
“¡SALVE A LA REPÚBLICA!” 117
Outro exemplo de destaque em relação a essa fragmentação proposta por Peter
Burke refere-se à já mencionada participação de Galileo Gall, nas idealizações criadas
por Vargas Llosa. O militante revolucionário, principalmente ao longo da primeira parte
do romance, expressa seu ponto de vista através de algumas cartas que enviava para o
jornal anarquista L’Étincelle de la Révolte de Lyon. Elas demonstram seu entusiasmo
por uma revolução inesperada, que estaria sendo gestada naquele lugar estranho e
distante.
Ya sabéis, por mi carta anterior, que la Iglesia condena al Consejero y a
Canudos y que los yagunzos le han arrebatado las tierras a un Barón. Pregunté al de la
cicatriz si los pobres del Brasil estaban mejor cuando la monarquía. Me repuso en el
acto que sí, pues era la monarquía la que había abolido la esclavitud. Y me explicó que
el diablo, a través de los masones y los protestantes, derrocó al Emperador Pedro II para
restaurarla. Como lo oís: el Consejero ha inculcado a sus hombres que los republicanos
son esclavistas. (Una manera sutil de enseñar la verdad, ¿no es cierto?, pues la
explotación del hombre por los dueños del dinero, base del sistema republicano, no es
menos esclavitud que la feudal.) 118
117
VARGAS LLOSA, M, La guerra del fin del mundo, Libro Dos, según capítulo, p. 139. 118
Ibid., Libro Uno, quinto capítulo, p. 94.
63
Entretanto, com o desenrolar da seqüência textual, toda vez que o foco narrativo
se volta para o escocês, é visível o crescimento de sua angústia diante da consciência a
respeito de uma situação que se tornara totalmente incompreensível para ele, visto não
conseguir entender o ponto de vista dos jagunços com os quais fizera contato. E pior
ainda: ser incapaz de conseguir a compreensão deles. Ao longo do romance, também, o
foco narrativo se volta muitas vezes para vários seguidores de Antônio Conselheiro e,
na medida em que os acontecimentos vão atingindo o seu ápice, esse foco penetra no
arraial e começa a destacar a visão dos habitantes de Canudos, culminando com a
resistência heróica e desesperada desses personagens diante do cerco que se fechava
sobre eles.
La furia del estruendo que remece al Santuario, lo obliga a cerrar los ojos, a
encogerse, a alzar las manos ante lo que parece una avalancha de piedras. Ciego, oye el
ruido, los gritos, las carreras, se pregunta si ha muerto y si es su alma la que tiembla.
Por fin, oye a João Abade: “Cayó el campanario de San Antonio”. Abre los ojos. El
Santuario se ha llenado de polvo y todos han cambiado de lugar. Se abre camino hacia
el camastro, sabiendo lo que le espera. Divisa entre la polvareda la mano quieta sobre
la cabeza del León de Natuba, arrodillado en la misma postura. Y ve al Padre Joaquim,
con la oreja pegada al pecho flaco. Luego de un momento, el párroco se incorpora,
desencajado:
– Ha rendido su alma a Dios – balbucea y la frase es para los presentes más
estruendosa que el estrépito de afuera. 119
Peter Burke afirma que “a história da vida cotidiana passou a ser considerada,
por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais
deve ser relacionado”.120
Tal ocorre nesse romance, numa conseqüência direta de um
recurso também largamente valorizado pelos escritores do chamado Novo Romance
Histórico. Na verdade, conforme já visto ao longo dessa análise, a visão do cotidiano
caminha lado a lado com essa fragmentação largamente explorada por Vargas Llosa.
Dentre elas, a mais importante de todas se evidenciará ao longo do quarto capítulo,
quando o foco narrativo se volta para o jornalista míope.
Y sin embargo ninguno se sorprendió cuando João Abade anunció que iban a
atacar mañana. Sabía todo. Cañonearían Canudos toda la noche, para ablandar las
defensas, y a las cinco de la madrugada comenzaría el asalto de las tropas. Sabía por
qué sitios. Hablaban tranquilos, se repartían los lugares, tú espéralos aquí, hay que
cerrar la calle allá, levantaremos barreras acá, mejor yo me muevo de aquí por si
mandan perros de este lado. ¿Podía el Barón imaginar lo que él sentía, escuchando eso?
[…]
119
Ibid., Libro Cuatro, quinto capítulo, pp. 516-517. 120
BURKE, P. A nova história, seu pasado, seu futuro. In.: BURKE,P. A escrita da história, p. 23.
64
– Ahora sé que en ese momento sólo nueve cañones disparaban contra Canudos
y que nunca dispararían más de dieciséis al mismo tiempo – dijo el periodista miope –.
Pero esa noche parecían mil, parecían como si todas las estrellas del cielo se hubieran
puesto a bombardearnos.121
A narração deste personagem a respeito do cerco a Canudos põe em relevo o
aspecto polifônico do romance. A visão de dentro da vila sitiada pelas forças militares
aumentará sobremaneira a dramaticidade do desfecho iminente, contrastando com a
visão euclidiana, cujo desejo de objetividade histórica poderia ter esvaziado essa
imagem. Tal não ocorre, entretanto, uma vez que, conforme já mencionado, a percepção
do escritor brasileiro levou sua análise dos acontecimentos bem acima do esperado por
ele. Ressalte-se aqui apenas o papel da ficção que, devido a sua proposta de liberdade,
pode ir muito além da suposta isenção pregada por aqueles que querem dar
preponderância ao fato histórico.
121
Ibid., pp. 428-429.
65
04.02. OS PERSONAGENS EM EUCLIDES E EM VARGAS LLOSA
DODECASSÍLABOS
Estala na mudez universal das coisas
estrídulo tropel de cascos sobre pedras
e naquela assonância ilhada no silêncio
o cataclismo irrompe arrebatadamente.
O doer das folhas urticantes
corta a região maninha das caatingas
fazendo vacilar a marcha dos exércitos
sob uma irradiação de golpes e de tiros.
Por fim tudo se esgota e a situação não muda,
lembrando um bracejar imenso, de tortura,
em longo apelo triste, que parece um choro.
Num prodigalizar inútil de bravura
desaparecem sob as formações calcáreas
as linhas essenciais do crime e da loucura.122
Augusto de Campos e Euclides
da Cunha (parceria póstuma)
Outro aspecto fundamental na obra de Vargas Llosa no que se refere à
comparação entre a História e a Literatura reporta-se à transformação de alguns
personagens históricos em seres fictícios. É evidente que o romancista, ao utilizar Os
sertões como ponto de partida, procurou apresentar uma base documental sólida e
consistente, tendo criado, conforme já salientado, um palimpsesto típico e, por isso
mesmo, fundamental para a sua colocação como uma espécie de modelo do Novo
Romance Histórico. É possível afirmar que, neste caso, o distanciamento no tempo
trouxe para o escritor peruano um conhecimento muito mais completo a respeito das
ações e decisões das pessoas que participaram daquele conflito. Isso provocou uma série
de alterações capazes de ressaltar a visão subjetiva, porém muito mais ampla, de Vargas
Llosa na construção desses personagens, contrastando com a pretensão de objetividade
assumida por Euclides.
El hombre era alto tan flaco que parecía siempre de perfil. Su piel era oscura,
sus huesos prominentes y sus ojos ardían con fuego perpetuo. Calzaba sandalias de
pastor y la túnica morada que le caía sobre el cuerpo recordaba el hábito de esos
misioneros que, de cuando en cuando, visitaban los pueblos del sertón bautizando
muchedumbres de niños y casando a las parejas amancebadas. Era imposible saber su
edad, su procedencia, su historia, pero algo había en su facha tranquila, en sus
costumbres frugales, en su impertubable seriedad que, aun antes de que diera consejos,
atraía a las gentes.123
122
CAMPOS, A e CUNHA, E. Jornal de poesia. In. www.revista.agulha.nom.br/euclid.html.última
consulta em 23 de julho de 2010. 123
VARGAS LLOSA, M. Libro Uno, primer capítulo, p. 15.
66
…E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros,
barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um
hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apóia o passo
tardo dos peregrinos...
[...]
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta
condensava o obscurantismo de três raças.
E cresceu tanto que se projetou na História...124
Como nos grandes épicos hollywoodianos, a descrição de Antônio Conselheiro
surge diante do leitor, num crescendo, tendo como pano de fundo o cenário do sertão
nordestino. Esse aspecto descritivo será uma constante ao longo do romance, expondo o
domínio de uma técnica a qual poderíamos chamar de cinematográfica. Após a leitura
do texto de Euclides, entretanto, cumpre chamar a atenção para o fato de as estratégias
serem muito parecidas. A leitura das duas obras, no entanto, apresenta mudanças
bastante significativas. Salta aos olhos, neste caso, a inversão feita por Vargas Llosa em
relação à narrativa euclidiana, pois, se este se havia preocupado inicialmente com os
aspectos naturais da região e com a gênese da formação do sertanejo, segundo um
determinismo mesológico, numa longa análise geográfica e social, para somente depois
apresentar o elemento humano, o escritor peruano, de imediato, põe o homem na frente
da paisagem. E não se trata de um homem qualquer, mas de Antônio Vicente Mendes
Maciel, conhecido como “o Conselheiro”.
O aprofundamento dessas leituras leva o leitor a outra constatação: Euclides da
Cunha mostra a figura do Conselheiro na segunda parte de Os sertões, “O homem”,
somente depois de um exame minucioso a respeito da constituição do homem brasileiro.
Ele enfatiza a ação do meio na fase inicial da formação das raças e, ao voltar-se para o
Nordeste, apresenta a provável origem do jagunço. Chega finalmente ao criador de
Canudos, exibindo-o como um documento vivo do atavismo, “um gnóstico bronco”125
.
Era, ainda segundo Euclides, “um grande homem pelo avesso”126
, representante natural
do meio em que nascera. Tal descrição criaria uma imagem bastante negativa deste
personagem, não exatamente como a de Vargas Llosa, que destaca o forte carisma
exercido pelo pregador sobre o povo daquela região. Outro aspecto a ser ressaltado
refere-se ao fato de, em Os sertões, Euclides ter feito um mergulho na vida pregressa do
personagem, detalhando seus problemas familiares, seus primeiros reveses, chegando
124
CUNHA, E. Os sertões, pp. 266-268. 125
Ibid., p. 254. 126
Ibid., p. 255.
67
até a sua “queda”. Euclides, em sua lógica, quer mostrar “como se faz um monstro”127
.
As peregrinações e os martírios ajudariam a alimentar a lenda que o “projetaria na
história”. Vargas Llosa, por outro lado, enfatiza o tom misterioso do personagem,
acentuando-lhe o aspecto romanesco, pois “era impossível saber sua idade, sua
procedência e sua história”. E em vez da “face escaveirada”, acompanhada do “olhar
fulgurante e monstruoso”, temos um homem com “aspecto tranqüilo e costumes
frugais”, o qual, “mesmo antes de dar conselhos, era capaz de atrair a todos”. Euclides,
coerente com sua formação, trouxe ao leitor uma imagem negativa de Antônio
Conselheiro. Vargas Llosa, por outro lado, deu-lhe outra apresentação, mostrando a
importância do seu carisma, mas destacou, como veremos posteriormente, o aspecto
fanático do pregador. Importa ressaltar, porém, que a controvérsia em torno deste
personagem é fundamental para a projeção de sua imagem, a qual, segundo o poeta
popular Ivanildo Vila Nova, teria, conforme destaca o Anexo 1 deste trabalho, página
111, sua figura resgatada pela história.
Em relação às diversas pessoas que seguiram o pregador para fundar Canudos e
trabalhar para o crescimento da comunidade, ocorre uma inversão. Euclides muito
pouco fala a respeito desses personagens e, quando a eles se refere, ressalta neles, de
forma constante, o aspecto facinoroso ou, no mínimo, grotesco. O escritor peruano,
porém, chama a atenção para a angústia de cada seguidor do Conselheiro e, deste modo,
seus dramas são expressos, também, com bastante intensidade. Ao contrário do
ignorado por Euclides, o momento da conversão de cada um deles, e seus possíveis
motivos, será exposto detalhadamente, destacando as qualidades que surgirão neles a
partir daquele momento tão significativo em suas vidas. Deste modo, Vargas Llosa
enfatiza dois fatores importantes no relacionamento entre Antônio Conselheiro e os
moradores de Canudos: a força da imagem projetada pelo pregador, resultante de sua
maneira de agir e de ser, acrescida ao poder de sua capacidade de indução, resultante de
sua oratória. Esses dois aspectos seriam fundamentais para o convencimento daquelas
consciências e para suas respectivas transformações, culminando com a conseqüente
aglutinação de todos à vida comunitária daquela cidade.
La primera vez que vio al Consejero, el Beatito tenía catorce años y había
sufrido, pocas semanas antes, una terrible decepción. El padre Moraes, de la misión
lazarista, le echó un baño de agua helada al decirle que no podía ser sacerdote, pues era
hijo natural. Lo consoló, explicándole que igual se podía servir a Dios sin recibir las
órdenes, y le prometió hacer gestiones con un convento capuchino, donde talvez lo
127
Ibid., pp. 266-268.
68
recibirían como hermano lego. El Beatito lloró esa noche con sollozos tan sentidos, que
el Tuerto, encolerizado, lo molió a golpes por primera vez después de muchos años.
[…]
Después de observarlo unos segundos, sin pestanear, el Consejero asintió y una
sonrisa cruzó brevemente su cara que, diría cientos de veces al Beatito en los años
venideros, fue su consagración. El Consejero señaló un pequeño espacio de tierra libre,
a su lado, que parecía reservado para él entre el amontonamiento de cuerpos. El
muchacho se acurrucó allí, entendiendo, sin que hicieran falta sus palabras, que el
Consejero lo consideraba digno de partir con él por los caminos del mundo, a combatir
contra el Demonio. Los perros trasnochadores, los vecinos madrugadores de Pombal
oyeron mucho rato todavía el llanto del Beatito sin sospechar que sollozos eran de
felicidad. 128
No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato
espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio
sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando,
insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e
transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as
novidades existentes.129
A descrição do Beatinho, provavelmente o mais importante auxiliar do
Conselheiro, acompanhada de sua adesão à causa do pregador, é apenas a primeira
dentre outras que surgirão ao longo de La guerra del fin del mundo. Quase todas
baseadas em personagens extraídos do mundo real, as descrições vão-se sucedendo e,
em cada uma delas, as motivações para cada conversão são analisadas detalhadamente
por Vargas Llosa, sempre focalizando o aspecto pessoal daqueles seres sofridos, sem
deixar, porém, de fazer uma análise das implicações sociais geradoras do drama vivido
por cada um deles nos diversos episódios. O contraste estabelecido entre as duas
descrições acima é bastante evidente, pois Vargas Llosa humaniza o personagem,
enquanto Euclides o ridiculariza. Essa imagem será uma constante ao longo das duas
obras, pois o escritor peruano procura sempre sensibilizar o leitor com o drama
individual daquelas pessoas que haviam largado suas vidas para seguir as prédicas do
conselheiro. E no momento em que a narrativa se encaminha para o desfecho, o escritor
peruano acentua-lhes o tom épico e heróico. Já o escritor brasileiro, embora deixe
entrever também a epopéia dos defensores da cidade, procura citar apenas o que ele,
como repórter da época, acompanhante da tropa e republicano exaltado, sem ter estado
dentro de Canudos durante o cerco, pôde observar. Ressalte-se que, quando descreve os
diversos personagens do grupo de Antônio Conselheiro, Euclides evidencia-lhes o
aspecto selvagem, bárbaro e até cruel, mostrando-os como bandidos perigosos. Vargas
128
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, primer capítulo, p. 23. 129
CUNHA, E. Os sertões, p.313.
69
Llosa, por outro lado, acentua a humanização dessas pessoas conseguida através do
arrependimento, da conversão e de uma vida dedicada aos padrões cristãos pregados
pelo Conselheiro na comunidade.
El Brasil del Sur ha entendido ya que la República es irreversible. Se lo hemos
echo entender. Pero aquí, en Bahia, queda mucho aristócrata que no se resigna. Sobre
todo desde la muerte del Mariscal; con un civil sin ideales en el gobierno creen que se
puede dar marcha atrás. No se resignarán hasta sufrir un buen escarmiento. Y ésta es la
ocasión, señores. 130
Ora de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era
quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande debelador de revoltas.
O fetichismo político exigia manipansos de farda.
Escolheram-no para novo ídolo.
[...]
Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse naquele
homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante,
ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinham os traços característicos nem
de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo. 131
Da mesma forma que Vargas Llosa descreve os personagens mais marcantes que
habitavam Canudos, também o faz com todos os demais, incluindo, neste caso, militares
das mais diversas patentes, que povoam a narrativa. Euclides, neste caso, como pôde
acompanhar de perto o deslocamento da tropa e como via a história a partir do ângulo
daqueles que pretendiam conduzi-la, teve condições de fazer descrições bastante
detalhadas desses personagens. Sobressai, neste caso, a figura do coronel Moreira
César, o qual, naquele momento, dispunha de muito prestígio dentro do Exército
Brasileiro. A descrição que Vargas Llosa faz deste militar, tão minuciosa quanto a de
Euclides, põe em relevo a crítica que esse autor faz aos extratos urbanos e à burguesia
emergente, as quais passaram a exaltar os militares, vendo-os como salvadores da
pátria. Neste caso, os governos civis seriam sempre incapazes de exercer o poder a
contento, deixando-se dominar por corruptos de vários matizes, além de serem presas
fáceis para agitadores e revolucionários de diversos tipos.
Ressalte-se que a imagem desse personagem construída por Euclides ao longo de
sua obra em nada difere da de Vargas Llosa, pois é possível perceber, nos dois casos,
que Moreira César representava um tipo de liderança militar muito comum nos países
da América Latina desde a separação de suas matrizes ibéricas, tendo-se acentuado no
130
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, tercer capítulo, p. 184. 131
CUNHA, E. Os sertões, pp. 420-423.
70
Brasil a partir da Proclamação da República, criando o chamado “jacobinismo de
caserna”. Tal liderança conduziria os diversos países do continente a uma série de
golpes militares ao longo do século XX, deixando aflorar ditaduras de cunho fascista.
As elites burguesas apreciavam a idéia de que somente o poder exercido com mão de
ferro conseguiria trazer o progresso e criar uma sociedade moderna, além de reduzir
consideravelmente a possibilidade de movimentos reivindicatórios ou que pudessem
produzir qualquer tipo de contestação. Euclides denuncia, já naquela época, a fraqueza
da sociedade civil, sempre ansiosa por um “manipanso de farda”, e a excessiva
intromissão dos militares na política nacional. Vargas Llosa faz o mesmo tipo de
denúncia, acentuando o autoritarismo e o fanatismo do coronel, de modo a mostrar que
suas atitudes, além de não conseguirem produzir as mudanças necessárias à sociedade,
seriam, também, sua perdição naquela campanha.
Rufino tenía en la mano una suerte de puñal de madera. Lo vio soltar a Jurema,
empujarla, agazaparse para embestir:
– Qué clase de bicho eres, Gall – lo oyó decir –. Hablas mucho de los pobres,
pero traicionas al amigo y ofendes la casa donde te dan hospitalidad.
Lo calló, lanzándose contra él, ciego de furia. Habían comenzado a
desrtrozarse y Jurema los miraba, estupidizada de angustia y fatiga.132
“Ya le pusiste la mano en la cara, Rufino”, piensa Jurema. “¿Qué has ganado
con eso, Rufino? ¿De que te sirve la venganza? Si has muerto, si me has dejado sola en
el mundo, Rufino?” No llora, no se mueve, no aparta los ojos de los hombres inmóviles.
Esa mano sobre la cabeza de Rufino le recuerda que, en Queimadas, cuando para
desgracia de todos Dios hizo que viniera a ofrecer trabajo a su marido, el forastero
palpó una vez la cabeza de Rufino y leyó sus secretos, como el brujo Porfirio los leía en
las hojas de café y doña Casilda en una vasija llena de agua.133
Os episódios acima remetem a dois personagens criados por Vargas Llosa com o
intuito de instaurar o tom novelesco da narrativa. Segundo Seymour Menton, na
pregação do escritor peruano contra qualquer tipo de extremismo, Rufino, esposo de
Jurema, seria o quarto fanático, depois de Antônio Conselheiro, Coronel Moreira César
e Galileo Gall. Diferente dos outros, porém, que lutavam pelas causas que conduziam o
eixo dos acontecimentos nacionais presentes na região de Canudos, o rastreador tem
uma causa que se poderia dizer restrita, exclusivamente pessoal. Ele se sente
pressionado por seus próximos a limpar sua honra tanto matando a sua esposa Jurema –
porque foi violada por Gall – como esbofeteando a este antes de matá-lo ou no mesmo
132
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, sexto capítulo, p. 305. 133
Ibid., Libro Tres, sexto capítulo, p. 315.
71
ato e matá-lo.134
A voz de seu amigo Caifás não parava de repercutir em sua mente “La
muerte no basta, no lava la afrenta. La mano o el chicote en la cara, en cambio, si.
Porque la cara es tan sagrada como la madre o la mujer.”135
A quebra do código
matrimonial vigente, não apenas naquela região, mas em toda a América Latina,
conduzia seu desejo cego de vingança. E Rufino não ficaria em paz enquanto não
encontrasse o escocês e reparasse, de forma violenta, o dano que este lhe causara.
A presença de Jurema, ex criada da esposa do Barão de Cañabrava, dá o tom
diferente proposto pelo autor. Tudo ocorre involuntariamente quando essa mulher,
esposa de Rufino, ao ajudar Galileo Gall a escapar do atentado provocado por
Epaminondas para, após a morte do revolucionário, imputar-lhe a pecha de monarquista,
acaba tendo um relacionamento sexual com o escocês. Segundo Renata Wasserman, “é
uma mulher que torna possível a narração em La guerra del fin del mundo, quando por
amor faz com que a testemunha dos últimos dias da cidade, o jornalista míope sem
óculos, consiga „ver‟ o que depois nos conta dos acontecimentos.”136
Depois de ter
mudado a trajetória de Galileo, Jurema, em meio ao caos e à destruição, faz amor com o
jornalista míope, contribuindo de maneira significativa para a mudança vivenciada por
esse personagem.
Ao contrário de Euclides, que utiliza a guerra como motivação para sua obra,
esvaziando a figura feminina e desconsiderando qualquer aspecto sentimental, Vargas
Llosa envereda por esse caminho. Afinal, Jurema não apenas seria preponderante na
transformação da vida do jornalista míope, mas também na de Pajeú, visto na Bahia
como um bandido muito perigoso, agora um dos líderes mais importantes dentre os
defensores de Canudos. O jagunço, apaixonado por ela, havia-se tornado um homem
mais compreensivo e, de certo modo, bem menos violento. Afinal, ele chegara até a
aceitar o fato de que Jurema houvesse escolhido o jornalista míope, não ele. O encontro
dela com Galileo provocaria também profundas alterações na trajetória do militante
revolucionário, cuja postura era tão ascética e misógina, a ponto de julgar que o sexo
poderia diminuir consideravelmente o fervor revolucionário. As atitudes de Jurema ao
longo dos Livros Três e Quatro se contrapõem ao “fanatismo exacerbado” de Rufino e
de Galileo. Sua fala, questionando o fato de o marido, agora morto, ter posto a mão na
cara do escocês, é bem representativa. Afinal, “o que ele havia ganhado com isso?”
134
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 74. 135
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, según capítulo, p. 197. 136
WASSERMAN, R. Mapeando os sertões: congruências. In.: BERNUCCI, L.M. (org.) Discurso,
Ciência e Controvèrsia em Euclides da Cunha, p. 179.
72
– ¡Prejuicioso! !Insensato! !Vanidoso! !Terco! – gritó, ahogándose –. No soy tu
enemigo, tus enemigos son los que tocan esas cornetas ¿No las oyes? Eso es más
importante que mi semen, que el coño de tu mujer, donde has puesto tu honor, como un
burgués imbécil.
[…]
– No moriré por las miserias que hay en mí, Rufino. – rugía Gall –. Mi vida
vale más que un poco de semen, infeliz. 137
A cena acima descreve o desespero de Galileo ao tentar fugir da perseguição de
Rufino. O anarquista, que havia lutado na Comuna de Paris em 1871, acreditava que sua
experiência revolucionária no continente europeu seria suficiente para inseri-lo na luta
de Antônio Conselheiro e de seus seguidores. Esse personagem foi criado por Vargas
Llosa para, conforme já mencionado no capítulo anterior, criticar o que ele considerava
uma postura cega e, às vezes, pueril de muitos extremistas de esquerda. As atitudes de
Galileo remetem ao escritor peruano suas experiências de juventude com seus antigos
companheiros do Cahuide. De acordo com Vargas Llosa, o fanatismo do escocês
afastava-o da realidade, em vários aspectos. É o que ocorre na cena descrita acima,
quando o escocês tenta, de forma racional, dialogar com o rastreador, procurando fazê-
lo abandonar um código de honra que lhe havia sido inculcado de modo permanente ao
longo de sua vida. Vargas Llosa enfatiza que a “cegueira revolucionária” de Galileo
toldara-lhe a compreensão. Em vez de morrer lutando contra a opressão do Estado
burguês, em vez de morrer lutando para transformar a sociedade, o militante
anticlerical, ao qual a ironia do escritor atribuíra uma postura nada diferente da de um
missionário cristão ou de um monge de alguma dessas ordens mendicantes, morreria
ingloriamente por causa de um código de honra burguês assimilado pelo sertanejo. Ele
havia sucumbido diante de uma suposta armadilha do destino, acentuando o tom
melodramático da narrativa.
– Muchos se han arruinado ya, allá en el interior – dijo –. Yo he perdido dos
haciendas. Esta guerra civil va a hundir y matar a muchísima gente. Si nosotros
seguimos destruyéndonos, ¿cuál será el resultado? Lo perderemos todo. Aumentará el
éxodo hacia el Sur y hacia el Marañón. ¿En qué quedará convertida Bahía? Hay que
hacer las paces, Epaminondas. Olvídese de las estridencias jacobinas, deje de atacar a
los pobres portugueses, de pedir la nacionalización de los comercios y sea práctico. El
jacobinismo murió con Moreira César. Asuma la Gobernación y defendamos juntos, en
esta hecatombe, el orden civil. Evitemos que la República se convierta aquí, como en
tantos países latino-americanos, en un grotesco aquelarre donde todo es caos,
cuartelazo, corrupción, demagogia…138
137
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, sexto capítulo, pp. 303-305.. 138
Ibid., Libro Tres, séptimo capítulo, p. 357.
73
Outro personagem criado por Vargas Llosa, de importância vital para o
desenvolvimento da narrativa, é o já comentado Barão de Cañabrava. Segundo Seymour
Mentón, “el Barón llega a ser el coprotagonista de la novela, opacado sólo por el
periodista miope, y a veces el portavoz ideológico de Vargas Llosa.”139
A postura
“camaleônica” do barão, no bom sentido, ainda segundo Mentón,140
é fundamental para
que o escritor peruano possa expor sua condenação ao fanatismo, já que, de acordo com
Vargas Llosa, esse tipo de comportamento seria o único responsável por todos os
fatores que haviam precipitado a região de Canudos em direção à dor e à destruição. A
flexibilidade desse personagem o leva à busca de adaptação a todas as situações,
contrapondo-se à já mencionada cegueira dos fanáticos. Ele racionaliza, procurando a
reconciliação com inimigos cujas idéias e interesses eram inconciliáveis com os seus.
Ele tenta fazê-los enxergar que o radicalismo, a mesquinharia e o egoísmo seriam a
perdição de todos. De certa forma, existe uma menção à instabilidade das instituições
democráticas, uma realidade vivida por Vargas Llosa no Peru, mas também presente nos
demais países da América Latina. Para o escritor, o barão estaria dando uma lição de
diálogo e tolerância.
– ¿De qué se ríe ahora? – dijo el Barón de Cañabrava.
– Es demasiado ruin para poder contárselo – balbuceó el periodista miope.
Permaneció ensimismado y, de pronto, alzó la cara y exclamó: – Canudos ha cambiado
mis ideas sobre la historia, sobre el Brasil, sobre los hombres. Pero, principalmente,
sobre mí.
– Por el tono en que lo dice, no ha sido para mejor – murmuró el Barón.
– Así es – susurró el periodista –. Gracias a Canudos tengo un concepto muy
pobre de mí mismo.141
Outro aspecto fundamental para a compreensão do texto ocorre quando Vargas
Llosa não apenas reescreve o manuscrito, mas também seu próprio autor. O
comportamento idealista do jornalista míope em relação a sua profissão e à vida como
um todo dará um tom bastante peculiar a esse personagem. Acrescente-se a isso sua
dificuldade de adaptação à realidade cotidiana e teremos alguém cujo procedimento se
destaca por atitudes, na maioria das vezes, inusitadas. Espelhado em Euclides da
Cunha, o homem da cidade, o republicano convicto, ele também se desencantará com a
selvageria perpetrada pelo exército naquela guerra, a qual acabaria identificando como
completamente inútil e sem nenhum sentido.
139
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 75. 140
Ibid., p. 71. 141
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 429.
74
E se a pena de Euclides nos mostrou as vicissitudes da terra e a visão da
desgraça sofrida pelos jagunços, que iam sendo massacrados pelo exército, o foco
narrativo direcionado no ponto culminante do romance para o jornalista míope nos dá
uma imagem não percebida por Euclides em Os sertões. Ao contrário do escritor, esse
personagem, que o representa, conseguiu penetrar em Canudos, ver de perto e sentir o
drama daquelas pessoas até então esquecidas pelo poder público e, neste caso,
violentadas por um estado discricionário e destruidor. Na verdade, tal qual Euclides, ele
também não havia visto muita coisa, pois, conforme diz ao barão num longo diálogo ao
longo do Livro Quatro: “se me rompieron los anteojos el día que deshicieron al Séptimo
Regimiento. Estuve allí cuatro meses viendo sombras, bultos, fantasmas.” Diante da
objeção do barão, ele acrescentou: “Aunque no las vi, sentí, oí, palpé, olí las cosas que
pasaron. Y, el resto, lo adiviné.”142
A miopia do jornalista, quase cegueira nestes momentos finais, foi inspirada na
“miopia” de Euclides, pois seu embasamento positivista e seu ardor republicano
haviam-lhe ofuscado a compreensão dos fatos. Vargas Llosa quer ressaltar que todos,
sem exceção, têm uma visão bastante limitada e parcial dos acontecimentos. Todos
enxergam somente até onde a “miopia” lhes permite. E se Euclides, mesmo de fora,
conseguiu perceber o massacre que ocorria dentro de Canudos, o jornalista míope, de
dentro, mesmo sem os óculos, que ele havia perdido, conseguiu perceber muito mais.
Da mesma forma que as imagens projetadas numa tela de cinema, a tragédia daquele
povo excluído salta a nossos olhos, numa visão dantesca e apocalíptica, mas
inesquecível.
Hubo outro silencio, largo, interrumpido por um zumbar de moscardones.
– En Canudos no hubo heridos – dijo el periodista – Los llamados
sobrevivientes, esas mujeres y niños que el Comité Patriótico de su amigo Lelis
Piedades ha repartido por el Brasil, no estaban en Canudos, sino en localidades de la
vecindad. Del cerco sólo escaparon siete personas.
– ¿También sabe eso? – levantó la vista el Barón.
– Yo era uno de los siete – dijo el periodista miope. Y, como queriendo evitar
una pregunta, añadió de prisa: – La estadística que les preocupaba a los yagunzos era
otra. Cuántos morirían de bala y cuántos de cuchillo. 143
O fato de Vargas Llosa ter ficcionalizado Euclides, transformando-o no
jornalista míope, o grande protagonista do romance, provocou um aprofundamento do
142
Ibid., Libro Cuatro, primer capítulo, p. 364. 143
Ibid., Libro Cuatro, según capítulo, p. 392.
75
que poderia ser chamado de visão euclidiana, uma vez que o jornalista, mesmo
distinguindo apenas contornos, mesmo sem ter visto quase nada, conseguiu enxergar
muito além. Seu relato a partir de sua experiência na cidadela acossada é de singular
importância para a grandiosidade da imagem épica que salta aos olhos do leitor, o qual
pode se sentir tão aterrorizado quando os defensores de Belo Monte. Afinal, ele vivera
o cotidiano do apocalipse que se abatera sobre a “Tróia de Taipa”. O jornalista míope
havia-se integrado a Belo Monte.
76
05. CAPÍTULO 4
VARGAS LLOSA, EUCLIDES
E O BRASIL DE HOJE
NOTÍCIAS DO BRASIL
(OS PÁSSAROS TRAZEM)
Uma notícia tá chegando lá do Maranhão
não deu no rádio, no jornal ou na televisão
veio no vento que soprava lá no litoral
de Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa-nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
e lá do norte foi descendo pro Brasil central
chegou em Minas, já bateu bem lá no sul
Aqui vive um povo que merece mais respeito, sabe?
e belo é o povo como é belo todo amor
aqui vive um povo que é mar e que é rio
e seu destino é um dia se juntar
O canto mais belo será sempre mais sincero, sabe?
e tudo quanto é belo será sempre de espantar
aqui vive um povo que cultiva a qualidade
ser mais sábio que quem o quer governar
A novidade é que o Brasil não é só litoral
é muito mais, é muito mais que qualquer zona sul
tem gente boa espalhada por esse Brasil
que vai fazer desse lugar um bom país
Uma notícia tá chegando lá do interior
não deu no rádio, no jornal ou na televisão
ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
não vai fazer desse lugar um bom país144
Milton Nascimento & Fernando Brant
144
NASCIMENTO, M. e BRANT, F. Notícias do Brasil. In: Caçador de mim.
77
05.01. A LITERATURA DO PÓS-MODERNISMO
Para Camus, el revolucionario es el que pone el hombre al servicio de las ideas,
la voluntad de sacrificar el hombre que vive por el hombre venga, ¿Qué es la moral de
una técnica regida por la política, que prefiere la justicia a la vida y que está en el
derecho de mentir y matar de acuerdo con el ideal. El rebelde puede mentir y matar,
pero sabe que no tiene derecho a hacerlo, y que ello pone en peligro su causa, admite
que mañana tiene privilegios en el presente, con el fin justifica los medios y las causas
de la política que sea la consecuencia de una causa superior: la moral.145
Mario Vargas Llosa
Uma nova representação da realidade ressalta aos olhos do leitor, pois Vargas
Llosa, afinado com toda uma série de mudanças produzidas ao longo do século XX e
procurando agregar-se a novas posturas ideológicas ocorridas entre os anos 60 e 70,
desconfia da suposta verdade única preconizada por Euclides, cujo credo positivista,
conforme salientado, dominava o ideário defendido pelo escritor brasileiro. No caso do
peruano, representante do “boom do romance latino-americano”, era perceptível a ótica
de esquerda, justamente no auge da guerra fria, quando o continente estava sendo
dominado por ditaduras de direita, respaldadas econômica e militarmente pelos norte-
americanos. O processo que havia conduzido as mudanças que culminaram na
revolução cubana estimulava essa proposta de uso da literatura como instrumento de
transformação política e social, uma vez que a expressão advinda dos romances seria
provavelmente a única voz a se destacar naquele momento de censura e opressão. A
prosa de ficção seria então, principalmente se considerarmos o ideário marxista
evidenciado na época, um dos principais canais de conscientização da sociedade. Deste
modo, o romance deveria conter em seu bojo o objetivo declarado de ampliar o
pensamento de esquerda entre jovens estudantes e, de certa forma, angariar simpatias no
meio da classe média ascendente.
Os rumos tomados pelo regime cubano, entretanto, mudariam bastante a postura
de Vargas Llosa em relação à chamada proposta revolucionária de provocar uma
mudança social através da literatura, e o escritor começou a remar, segundo ele, contra
“o vento e a maré”. Associe-se a isso toda uma série de acontecimentos com
desdobramentos contínuos desde o final dos anos 60, principalmente a partir do
momento em que os jovens manifestantes que haviam provocado as jornadas de maio de
68 em Paris tinham sido abandonados pela “esquerda tradicional”, no caso, o Partido
145
VARGAS LLOSA, M. Contra viento y marea, pp. 334-335.
78
Comunista Francês.146
A primavera de Praga, também ocorrida naquele ano, poria a nu,
de forma brutal, a postura ditatorial da máquina soviética. Os desmandos ocorridos no
regime maoísta, principalmente durante a Revolução Cultural, além de inúmeras outras
contradições dos diversos movimentos revolucionários que brotavam em todas as partes
fizeram o escritor peruano repensar seu caminho. O caso Padilha, poeta cubano preso
pelo regime em 1971, seria então, para ele, a gota d‟água em sua esperança de uma via
democrática, não apenas em Cuba, mas na prática adotada por todos aqueles que,
segundo Vargas Llosa, pregavam a chamada utopia socialista.
Que pensar então de uma literatura com uma proposta fechada e dogmática? Ela
deveria também, segundo o escritor, adaptar-se aos diversos acontecimentos produzidos
pelo processo de globalização acelerado a partir dos anos 60. Novos movimentos
sociais, como o feminismo, a luta contra o preconceito racial, a defesa dos imigrantes e
a busca pelos direitos dos homossexuais, tudo isso associado à expansão da educação
superior, serviriam também de combustível para as já citadas jornadas de maio. Uma
Nova Esquerda surgiria no final dos anos 70 com o intuito de confrontar a postura
monolítica da chamada esquerda tradicional. Acrescente-se a isso o processo de
globalização crescente ocorrido nas últimas décadas do século XX, impulsionando uma
série de mudanças nos relacionamentos entre os diversos países, com conseqüentes
alterações também nas relações individuais. Segundo James Petras e Henry Veltmeyer,
este fenômeno poderia ser descrito como “a ampliação e o aprofundamento dos fluxos
internacionais de comércio, capital, tecnologia e informação”. Eles acrescentam que,
pensando na definição da palavra como prescrição, “ela supõe a liberalização dos
mercados nacional e mundial de acordo com a crença de que o livre fluxo de comércio,
capital e informação poderá produzir o melhor resultado para o crescimento e o bem
estar da humanidade.”147
Evidentemente, neste caso, o mundo como “aldeia global”
acabaria recebendo a difusão de valores e práticas culturais associadas a esse
desenvolvimento.
Vargas Llosa vivenciou esses acontecimentos e, como tal, estava atento às
mudanças provocadas por eles. Deste modo, acreditou que a prosa de ficção deveria
também refletir esse avanço das múltiplas facetas expostas pela globalização. Por que
crer em verdades absolutas se o auge da modernidade havia sido marcado com a idéia
de que tudo que era sólido já se havia desmanchado no ar? Havia um descompasso
146
MOTA, C. G. Os bondes da história, In. Revista Cult, nº 126. 147
PETRAS, J e VESTMEYER, H. La globalización desenmascarada, p. 11.
79
entre o que se pregava e o que se fazia. Urgia modificar tudo na esteira do pensamento
pós-moderno, segundo o qual, conforme afirma Linda Hutcheon, uma das coisas para a
qual devemos estar sempre “abertos para escutar” seria aquilo que ela chama de “ex-
cêntrico”. Ela acrescenta que “o pós-modernismo questiona sistemas centralizados,
totalizados, hierarquizados e fechados: questiona, mas não destrói.”148
Essa postura é
supostamente assumida por Vargas Llosa, pelo menos ele assim o crê, na construção de
La Guerra del Fin del Mundo.
Esse romance surgiu na virada dos anos 70, num momento em que o escritor,
segundo a esquerda, passou a ser visto como um neo-conservador, já que se havia
afastado de uma literatura cujos postulados deveriam estar aliados à já citada proposta
política revolucionária. Vargas Llosa, entretanto, parecia pretender, conforme já
salientado, questionar as chamadas “verdades eternas e imutáveis”, em todos os
sentidos. Discordando de qualquer pensamento monolítico e contrariando todos os
dogmas, ele, na verdade, queria ressaltar que tudo não passava de discurso e
representação. Era então necessária uma dessacralização, principalmente no que se
referia à consciência a respeito dos inúmeros pontos de vista presentes na narrativa.
La diversidad humana coexistía en Canudos sin violencia, en medio de una
solidaridad fraterna y un clima de exaltación que los elegidos no habían conocido. Se
sentían verdaderamente ricos de ser pobres, hijos de Dios, privilegiados, como se los
decía cada tarde el hombre del manto lleno de agujeros. En el amor hacia él, por lo
demás, cesaban las diferencias que podían separarlos: cuando se trataba del Consejero
esas mujeres y hombres que habían sido cientos y comenzaban a ser miles se volvían un
solo ser sumiso y reverente, dispuesto a darlo todo por quien había sido capaz de llegar
hasta su postración, su hambre y sus piojos para infundirles esperanzas y
enorgullecerlos de su destino. Pese a la multiplicación de habitantes la vida no era
caótica. 149
O milagre do funcionamento daquela comunidade estarrecia Euclides e todos os
outros, que não conseguiam compreender a “mágica” capaz de manter uma “comunhão”
perfeita. Vargas Llosa, dentro dos postulados do novo romance histórico, recorre à
ficção para buscar a compreensão do fato. A história “vista de baixo” o leva a entender
a harmonia dominante naquele local, vista como resultado da acolhida recebida pelos
sertanejos. Deste modo, é bem relevante a imagem de Canudos presente no Anexo 3
deste trabalho, página 113, mostrando o desenho de uma cidade, talvez utópica, como
148
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo, p. 65. 149
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, sexto capítulo, p. 99.
80
descreve Zé Antônio, o poeta popular, mas em tudo diferente da já mencionada “urbs
mostruosa”, conforme citação de Euclides .
O caminho percorrido pelo escritor peruano foi facilitado pelo amadurecimento
de conceitos da pós-modernidade, como a dessacralização, que ocorre na medida em
que cada personagem vai emergindo diante dos olhos do leitor. Seymour Menton
destaca, neste caso, o envolvimento de um grande número deles, geralmente em papel
de destaque no romance, em situações consideradas inverossímeis, como a conversão
religiosa de tantos ladrões e assassinos.150
É o caso de Pajeú, Pedrão, João Satã e Maria
Quadrado. Essa personagem, a filicida de Salvador, peregrinava pelo sertão, fugindo de
si mesma, numa tentativa de expiação de seu pecado terrível. Buscava, na verdade, um
novo rumo para sua vida, tendo encontrado na pregação do Conselheiro e na vida
comunitária de Canudos a paz que ela tanto buscara. Sua postura ascética e sua imagem,
despojada de toda e qualquer ligação que lembrasse um mínimo de vaidade, tornara-a
um ser exótico e, por isso mesmo, lendário. “Tenía veinte años, pero había padecido
tanto que parecía viejísima.” Vargas Llosa acrescenta ainda que ela “vestía dos polleras
con una cinta, una blusa azul”, criando uma imagem que impressionava, pois “su
cabeza, de mechones mal tijereteados y cráneo pelado, recordaba las de los locos del
hospital de Salvador. Se había rapado ella misma después de ser violada por cuarta
vez”151
Tornou-se, como tantos, uma seguidora do Conselheiro, e seu completo
envolvimento em Canudos aprofundara sua postura mítica. Tornara-se sacerdotisa de
Belo Monte, uma espécie de Beatinho do sexo feminino, pois, além de comandar o coro
das beatas, dava assistência espiritual a todos que a buscavam, incluindo o personagem
descrito abaixo.
Nació con las piernas muy cortas y la cabeza enorme, de modo que los vecinos
de Natuba pensaron que sería mejor para él y para sus padres que el Buen Jesús se lo
llevara pronto ya que, de sobrevivir, sería tullido y tarado. Sólo lo primero resultó
cierto. Porque, aunque el hijo menor del amansador de potros Celestino Pardinas nunca
pudo andar a la manera de los otros hombres, tuvo una inteligencia penetrante, una
mente ávida de saberlo todo y capaz, cuando un conocimiento había entrado a esa
cabezota que hacía reír a las gentes, de conservarlo para siempre. […] en vez de andar
en dos pies como los humanos lo hiciera a cuatro patas y su cabeza creciera de tal
manera que parecía milagro que su cuerpecillo menudo pudiera sostenerla. Pero lo que
dio pie para que los vecinos de Natuba comenzaran a murmurar que no había sido
engendrado por el amansador de potros sino por el Diablo, fue que aprendiera a leer y
escribir sin que Nadie se lo enseñara. 152
150
MENTON, S. La nueva novela histórica, p. 96. 151
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, tercer capítulo, p. 52. 152
Ibid., Libro Uno, sexto capítulo, p. 106.
81
Chama também a atenção do leitor, dentre os moradores de Belo Monte, o Leão
de Natuba, um homem fisicamente deformado, quase um monstro, extremamente
inteligente, e que se tornara uma espécie de escrivão oficial da comunidade. Esse
personagem, a quem Vargas Llosa deixa entrever uma profunda sensibilidade, num
contraste com a forte desumanização projetada por sua imagem física, reveste-se de um
crescimento extraordinário na medida em que o romance caminha para o seu desenlace.
Discriminado e ridicularizado pela vizinhança, provocara vergonha em seus próprios
pais. Insultado, cuspido e apedrejado por todos desde a infância, teve sua vida
modificada no dia em que o Conselheiro o salvou de morrer queimado por ter sido
acusado de bruxaria pelo pai de uma jovem, que morrera, segundo ele, por culpa
daquele “monstro”. Encontraria também, em Canudos, a paz que nunca tivera e, melhor
ainda, o prestigio que nunca ousara pensar ter algum dia em sua pobre vida. Era o único
seguidor alfabetizado do Conselheiro e, por isso mesmo, muito respeitado por todos.
Seu corpo contorcido ajuda a torná-lo memorável, transformando-o numa figura
emblemática, a qual todos queriam tocar, como se sua deformação pudesse produzir,
neles, algum tipo de milagre. Com o passar do tempo, porém, as ruas haviam-se tornado
demasiadamente perigosas para ele, amedrontando-o, pois “Las gentes se precipitaban a
tocarle el lomo, creyendo que les traería suerte, y se lo arranchaban como un
muñeco”.153
Sua imagem repulsiva, mas misteriosa e, talvez por isso mesmo,
carismática, passou a se revestir de uma importância ainda maior devido a missão que
ele havia assumido, redigir um “Novo Evangelho” fundamentado nas pregações do
Conselheiro e nos acontecimentos cotidianos vivenciados no arraial. Mas os escritos do
Leão de Natuba perderam-se, juntamente com ele, num dos incêndios provocados pelos
constantes bombardeios.
A visão dessacralizante prossegue com outro personagem, cuja força cresce ao
longo da narrativa. Trata-se do padre Joaquim, um homem muito fraco e bastante
covarde, pois, quando preso por Moreira César, chorou e implorou por sua vida,
chegando a dar várias indicações a respeito da localização de Canudos e de como era o
dia-a-dia no arraial. Naquele momento, ele não se julgava um mártir, como os demais,
e, na verdade, sentia um grande mal-estar e muita inveja dos moradores de Canudos por
causa da fé e da serenidade de espírito mostrada por aquelas pessoas, pois contrastava
com algo que ele nunca tivera.154
No final da narrativa, vamos encontrá-lo convertido à
153
Ibid., Libro Tres, quinto capítulo, p. 276. 154
Ibid., Libro Tres, quinto capítulo, pp. 262-266.
82
causa de Belo Monte, lutando heroicamente pela defesa da cidade e morrendo ao lado
dos jagunços. O barão referiu-se a ele, estupefato, como “aquele padrezinho cheio de
filhos” e se surpreende, indagando se “aquele bêbado e praticante dos sete pecados
capitais estaria realmente em Canudos”. Ele não consegue acreditar. Mas o jornalista
míope lhe replica, afirmando que aquilo seria “um bom indício do poder de persuasão
do Conselheiro”, acrescentando ainda que, “além de transformar os ladrões e assassinos
em santos, fora capaz de catequizar os padres corrompidos e simoníacos do sertão”.155
E assim, ao longo da narrativa, diversos outros personagens se destacam devido
às varas inversões de papéis estereotipados ou, poderíamos dizer também, à quebra de
diversos paradigmas, como ocorre com Antonio Vilanova, um hábil comerciante, o
qual, por haver-se transformado num fiel devotado à causa de Canudos, tornara-se um
dos homens de confiança do Conselheiro, uma espécie de secretário de administração.
Nos momentos de crise, continuava arriscando sua vida para prover a cidade de todo o
necessário e, quando o cerco final se avizinhava, numa imagem épica, cerrou fileiras
com os jagunços na defesa de Belo Monte. O barão de Cañabrava também não
acreditava nessa história e, mais uma vez, questionou o jornalista míope a respeito
daquele comerciante, “Un ser metalizado y calculador como pocos. Los conocí mucho a
él y al hermano. Fueron proveedores de Calumbí. ¿También se volvió santo?”156
Seu
pragmatismo burguês havia sido colocado à disposição daquele povo, sem que, em
nenhum momento, ele tentasse tirar alguma vantagem disso, pois a vivência em
Canudos levara-o a adquirir uma postura de quem não se importava com as mudanças
que a vida comunitária trouxera para sua vida.
¿Cómo sería sucia, impura, esa aguadija que mana sin tregua desde hace ¿seis,
siete, diez día? de ese cuerpo lacerado? “Es su esencia lo que corre por ahí, es parte de
su alma, algo que está dejándonos.” Lo intuyó en el acto, desde el primer momento.
Había algo misterioso y sagrado en esos cuescos súbitos, tamizados, prolongados, en
esas acometidas que parecían no terminar nunca, acompañadas siempre de la emisión de
esa aguadija. Lo adivinó: “Son óbolos, no excremento”. […] Con dichosa inspiración,
se adelantó, estiró la mano entre las beatas, mojó sus dedos en la aguadija y se los llevo
a la boca, salmodiando: “¿Es así como quieres que comulgue tu siervo, Padre? ¿No es
esto para mí rocío?”. Todas las beatas del Coro Sagrado comulgaron también, como
él.157
O texto acima retrata a agonia final do Conselheiro durante o cerco que se
fechava cada vez mais sobre a cidade. O sofrimento dele era também a angústia dos
seguidores mais íntimos, que compartiam o dia-a-dia com o pregador. As condições
155
Ibid..Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 424. 156
Ibid..Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 430. 157
Ibid.. Libro Cuarto, quinto capítulo, p. 512.
83
precárias trariam ao velho homem uma diarréia suficiente para levá-lo ao fim. Beatinho
interpretou tudo aquilo como uma mensagem do Divino Espírito Santo, o qual, naquela
hora de provação, havia transformado os excrementos daquele “homem santificado”
numa espécie de hóstia. A cena, quase no desenlace do romance, remete o leitor a mais
um momento importante nesse tom dessacralizante conduzido por Vargas Llosa ao
longo da narrativa. Trata-se da visão bakhtiniana, cujo aspecto carnavalesco se destaca
sobremaneira a partir da idéia do aviltamento de tudo o que fosse considerado sério ou
dogmático. O crítico russo, partindo de observações feitas ao analisar a inversão da
realidade ocorrida durante o período do carnaval, acentuou que o uso generalizado de
blasfêmias e profanações de todo tipo, presentes desde a Idade Média, seria uma forma
de contestação social, que se tornaria evidente em inúmeros textos literários, como em
Gargântua e Pantagruel de Rabelais.158
É evidente que um texto produzido no último
quarto do século passado teria tudo para se aproximar desse postulado, expondo-o como
um de seus pontos culminantes. Deste modo, a ênfase dada ao realismo grotesco,
presente na causada pela defecação seria um dos momentos cruciais. A dessacralização
conduzida pelo escritor peruano não pouparia ninguém, nem mesmo o homem cujo
carisma havia arrebanhado multidões na construção e na defesa daquela cidade.
Destaca-se também, de forma quase inverossímil, a inversão feita pelo escritor
na postura do já analisado Barão de Cañabrava, o poderoso latifundiário, cujas atitudes,
conforme já ressaltado, são contrárias às de um típico coronel do Nordeste. Graças a sua
luta constante contra o fanatismo, Vargas Llosa transforma-o, segundo Seymour
Menton, em co-protagonista do romance, ficando abaixo apenas do jornalista míope.159
Sua habilidade o coloca em oposição a todos os demais fanáticos da narrativa, pois, do
mesmo modo que não se deixa abater diante da arrogância de Moreira César, demonstra
serenidade e compaixão para receber o militar em sua casa quando este esteve doente.
Ainda segundo Menton, a posição deste personagem na obra é reforçada, “por mais
paradoxal que seja, quando ele viola Sebastiana, criada lésbica devota de sua esposa
Estela, na presença desta” e que a interpretação positiva desse episódio “se reforça ainda
mais, considerando que ele já havia aceitado a relação supostamente lésbica entre sua
esposa e a criada”.160
Parece, no entanto, uma afirmativa um tanto despropositada, uma
vez que a ação do barão estaria apenas reafirmando uma prática comum e constante na
158
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. pp. 122-123. 159
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 93. 160
Ibid., pp. 78-80.
84
formação patriarcal brasileira desde o início da colonização deste país, quando o senhor
de engenho detinha um poder muito grande, sexual inclusive, sobre as escravas. Vargas
Llosa, porém, apresenta a cena como uma espécie de ato libertador, não apenas para o
barão, mas também para sua esposa. Estaria ele levando sua guerra contra o fanatismo
até as últimas conseqüências? Ou tal atitude seria apenas mais uma expressão da
chamada “pós-modernidade”?
– ¿Te amarramos o aguantas como bravo?
– Como bravo, su señoría – dice el soldado Queluz, palidiciendo.
– Como bravo que se tira a los cornetas – aclara alguien y hay otra salva de
risas. – Media vuelta, entonces, y cógete las bolas – ordena el Teniente Pires
Ferreira.
Le da los primeros azotes con fuerza, viéndolo trastabillar cuando la varilla
enrojece su espalda; […] Con el último varazo, el soldado cae de rodillas, pero se
incorpora ahí mismo y se vuelve hacia el Teniente, tambaleándose:
– Muchas gracias, su señoría – murmura, con la cara hecha agua y los ojos
inyectados.161
De acordo com Jacques Le Goff, “os fatos são por vezes menos sagrados do que
se pensa, pois, se fatos bem estabelecidos não podem ser negados, o fato não é em
história a base essencial da objetividade.”162
Deste modo, nada escapa à pena
dessacralizante de Vargas Llosa, como a morte de Pajeú, jagunço perigosíssimo,
efetuada pelo soldado Queluz, um homossexual no meio da tropa. Este, de
ridicularizado, passa a herói. O que ninguém sabia é que havia sido um heroísmo por
acaso, pois ele estava dormindo no seu posto e fora surpreendido com a invasão do
acampamento. Além do mais, seu descuido havia permitido que os jagunços
conseguissem penetrar no local, causando, inclusive, a morte de um soldado. Sua única
opção naquele momento seria apenas lutar, nada mais que isso. O escritor simplesmente
não se deixou levar pela facilidade de criar mais um clichê. Já em imagens anteriores, o
comportamento desse personagem trazia um quê de contestação pela própria questão
homossexual, tema, ainda hoje, considerado tabu nos meios militares. No deslocamento
da tropa, após ser punido com 30 chibatadas, por assédio, suportou o castigo como um
verdadeiro “macho”, fazendo com que sua imagem crescesse entre os companheiros.
Segundo Menton, o que dá mais força a este episódio é a ambigüidade, remetendo o
acontecimento à filosofia do “Tema del traidor y del héroe” de Jorge Luís Borges. 163
161
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, pp. 384-385. 162
LE GOFF, J. História e memoria, p. 31. 163
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 86.
85
– Desde que pude sacarme de encima a los impertinentes y a los curiosos, He
estado yendo al Gabinete de Lectura de la Academia Histórica – dijo el miope –. A
revisar los periódicos, todas las noticias de Canudos. [...] He leído todo lo que se
escribió, lo que escribí. Es algo… difícil de expresar. Demasiado irreal, ¿ve usted?
Parece una conspiración de la que todo el mundo participara, un malentendido
generalizado, total.
[…]
– Hordas de fanáticos, sanguinarios abyectos, caníbales del sertón, degenerados
de la raza, monstruos despreciables, escoria humana, infames lunáticos, filicidas,
tarados del alma – recitó el visitante, deteniéndose en cada sílaba –. Algunos de esos
adjetivos eran míos. No sólo los escribí, los creía también.164
A dessacralização promovida por Vargas Llosa atinge seu ponto máximo na
figura do jornalista míope. Um ícone da literatura brasileira estava sendo exposto, para
muitos, de forma até desrespeitosa. Na verdade, o escritor peruano está resgatando um
momento de crescimento do personagem e, se pensarmos que se trata de um
palimpsesto de Euclides da Cunha, esse instante de reflexão entre o jornalista e o barão
significaria exatamente os momentos vividos pelo escritor brasileiro nos anos
posteriores à guerra de Canudos, quando ele pôde repensar suas teorias a respeito dos
fatos que haviam gerado aqueles acontecimentos trágicos. Ele também havia escrito
contra os “fanáticos de Canudos”, havia vociferado contra o Conselheiro e contra os
seus seguidores, havia clamado contra a nossa “Vendéia”. Ou seja, ele havia ajudado a
criar o clima necessário para que a burguesia dos grandes centros urbanos preparasse o
massacre de Canudos. A imprensa havia mostrado toda a sua força, todo o seu poder, e
ele havia participado ativamente dessa monstruosidade.
164
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, pp. 364-365.
86
05.02. A MATERIALIZAÇÃO DAS PROPOSTAS BURGUESAS
Para sair da pobreza, as políticas redistributivas não são adequadas. As
melhores são aquelas que, como implicam inevitável desigualdade entre os que
produzem mais ou menos, carecem do encanto intelectual e ético que sempre rodeou o
socialismo e sofreram uma condenação por estimular o espírito do lucro. Mas as
economias igualitárias baseadas na solidariedade jamais tiraram um país da pobreza;
sempre o empobreceram mais. E, muitas vezes, limitaram ou retiraram as liberdades, já
que o igualitarismo exige um planejamento rígido, que começa sendo econômico e
depois se estende para o resto da vida. Disso resultam, para quem governa, ineficiência,
corrupção e privilégios que contradizem a própria noção de igualdade. Os raros casos
de deslanche econômico no Terceiro Mundo seguiram, todos, a receita do mercado.165
Mario Vargas Llosa
Um dos momentos mais importantes do envolvimento intelectual de Vargas
Llosa ocorreria, então, com sua participação no “Movimiento Libertad”, criado no final
de setembro de 1987 nos chamados “Encontros pela Liberdade”. Era um movimento
que procurava aglutinar todo aquele que, de acordo com Vargas Llosa, estivesse
comprometido com “um programa realista para acabar com os privilégios, os benefícios
com títulos públicos, o protecionismo, os monopólios, a supremacia do Estado, um
programa que, finalmente, abriria o Peru para o mundo e criaria uma sociedade em que
todos tivessem acesso ao mercado e vivessem protegidos pela lei”.166
O “Movimiento
Libertad” procurou atrair para seus quadros pessoas que nunca haviam feito política
anteriormente, nem pretendiam fazê-lo no futuro. Eram engenheiros, arquitetos,
advogados, médicos, empresários, economistas, com o intuito de formar um plano de
governo, ainda segundo ele, decente e eficaz. Outro trabalho do movimento seria dar
vez, voz e visibilidade aos intelectuais que, no passado, haviam defendido teses liberais,
em contraposição aos socialistas e populistas. Eles poderiam ajudar o “Movimiento
Libertad” em sua luta contra o paternalismo e o protecionismo, que estariam dominando
o país.167
Tal como o Peru, Cingapura era uma sociedade multirracial – brancos,
chineses, malaios e hindus –, de línguas, tradições, costumes e religiões diferentes. Só
que ao mesmo tempo eles tinham um território diminuto, onde mal cabia a população, e
padeciam de um calor asfixiante e de chuvas torrenciais. Tinham uma boa situação
geográfica, mas careciam de recursos naturais. Ou seja, eram vítimas de todos os fatores
considerados os piores obstáculos para o desenvolvimento. E, não obstante haviam se
165
VARGAS LLOSA, M. Peixe na agua, pp. 218-219. 166
Ibid.. p. 158. 167
Ibid.. p. 158.
87
transformado numa das sociedades mais modernas e avançadas da Ásia, com altíssimo
nível de vida, o maior e mais eficiente porto do mundo e indústrias de alta tecnologia.168
Tudo isso desembocaria em sua candidatura à presidência da república com uma
proposta que seguia estritamente a onda neoliberal incentivada por Ronald Reagan e
Margareth Thatcher. A viagem feita por ele à Ásia, detendo-se no Japão, na Coréia do
Sul, em Cingapura e em Taiwan levou-o a refletir a respeito do, segundo sua conclusão,
espantoso desenvolvimento desses países. O texto acima cita Cingapura, cujo exemplo
lhe havia chamado bastante a atenção, pois aquele pequeno país, graças à liberdade
econômica, ao mercado e à internacionalização, em menos de 30 anos havia-se
transformado numa meca financeira, com um sistema bancário altamente eficiente. Ele
admite que o regime sempre fora autoritário e repressivo, o que ele afirmava não
pretender imitar. “Mas por que o Peru não poderia levar a cabo um desenvolvimento
semelhante, dentro da democracia?”169
Taiwan, então, deixara-o bastante admirado,
pois, no momento de sua visita, a renda per capita do Peru havia descido a cerca de
metade do que era nos anos 50, enquanto a de Taiwan havia aumentado mais de sete
vezes, depois de ter crescido a um ritmo médio de 8,5% ao ano entre 1981 e 1989. O
crescimento econômico devera-se a uma multiplicação de empresas de médio e pequeno
porte de altíssimo nível tecnológico, exportando produtos de alta competitividade. Para
ele, era o modelo mais conveniente para o Peru.170
Mais cedo do que imaginava, Vargas Llosa descobriria em meio à campanha que
o processo eleitoral era mais sujo do que ele imaginava. Sua pregação de um
capitalismo supostamente puro começou a contrariar até mesmo diversos setores do
meio empresarial, visto estarem eles acostumados à proteção do estado, capaz de
socorrê-los nos momentos de dificuldades. Segundo o escritor, “uma economia
deformada por práticas mercantilistas deforma o próprio empresário, no qual gera uma
mentalidade passiva e dependente da posição estatal, uma psicologia insegura e um
medo pânico da competição”.171
Surpreso, então, ele descobre que alguns empresários
jamais aceitariam suas propostas, chegando até a ouvir afirmações atribuídas a alguns
desses elementos, dentre os mais conservadores, que os comunistas eram preferíveis a
ele.172
Além do mais, passou a ter consciência de que a aliança estabelecida por seu
168
Ibid., p. 262. 169
Ibid., p. 263. 170
Ibid., p. 265. 171
Ibid., p. 260. 172
Ibid., p. 260.
88
partido tinha uma ligação muito precária e a adesão de todos os dirigentes às idéias, à
moral e às propostas que ele fazia estava subordinada a meros interesses políticos.
Um acontecimento, porém, deixara-o bastante animado: a vitória de Fernando
Collor de Mello nas eleições brasileiras. Afinal, o brasileiro havia vencido com um
programa liberal radical semelhante ao seu, em oposição “às idéias mercantilistas,
estatizantes e intervencionistas do líder sindical Lula da Silva”.173
Ao visitar o Brasil e
ser recepcionado pelo novo presidente, Vargas Llosa pôde encontrar-se com um velho
amigo, José Guilherme Merquior, ensaísta e filósofo liberal, discípulo de Raymond
Aron e Isaiah Berlin. Segundo ele, Merquior, com quem estudara na Sorbonne, “era um
dos pensadores que com maior rigor e consistência defendera as teses de mercado e da
soberania individual na América Latina quando a maré coletivista e estatizante parecia
monopolizar a cultura do continente”.174
Vargas Llosa lamenta o fato de Merquior já se
encontrar bastante doente, o que, segundo o escritor, contribuiria para eliminar um dos
quadros mais importantes daquele momento para a concretização de uma sociedade
liberal. O escritor peruano, talvez não percebendo as contradições da dinâmica política e
social, lamenta também o fato de que “aquele presidente jovem e enérgico, que parecia
tão bem preparado para levar a cabo a revolução liberal em seu país, não a fizesse,
senão de maneira muito fragmentária e contraditória, e, pior ainda, amparando a
corrupção, com o decorrente resultado calamitoso”175
O crescimento inesperado da candidatura de Fujimori o deixaria perplexo. A
suposta pureza de princípios neoliberais pregada por ele e pela Frente Democrática
parecia não convencer a população, principalmente a dos bairros mais pobres. Seu
nome havia sido associado aos políticos tradicionais, de quem tanto tentara desvincular-
se e, pior ainda, aos “blanquitos”,176
eternos exploradores das classes menos
favorecidas. Além do mais, o povo, farto de tudo que pudesse ser associado à política
tradicional, deixara-se seduzir pelas propostas de Fujimori, o qual, além de simbolizar o
amálgama de raças dominante no país, aproveitava o crescimento das seitas
neopentecostais nas periferias e ainda conseguira passar uma imagem completamente
apolítica.177
Subitamente, ele se veria também no meio de uma guerra religiosa em
pleno final do século XX. E, mais surpreendente ainda, recebendo apoio da cúpula da
173
Ibid., pp. 413-414. 174
Ibid., p. 157. 175
Ibid., pp. 414-415. 176
Ibid., p. 494. 177
Ibid., p. 484.
89
Igreja Católica peruana. Vargas Llosa observa inclusive, ironicamente, que o arcebispo
de Lima, ao ser questionado a respeito do agnosticismo do escritor, apresentou uma
interpretação teológica muito estranha, afirmando que “um agnóstico não era um
homem sem Deus, mas alguém em busca de Deus, um homem que não crê, mas que
gostaria de crer, um ser tomado por uma agônica busca unamoniana, ao final da qual
talvez se encontre a volta à fé.178
O crescimento de Fujimori seria inevitável, levando-o à vitória. Vargas Llosa
atribui tal fato a inúmeros fatores, dentre os quais, a já citada associação de sua
candidatura às elites peruanas e aos chamados políticos tradicionais. Ele crê, porém, que
a “guerra suja” estimulada pela APRA do presidente Alan Garcia e por parte da
esquerda seria fundamental para sua derrocada. Sua divergência com Cuba e com tudo o
que representava qualquer proposta revolucionária, associada à sua conversão ao
neoliberalismo eram atitudes que a esquerda jamais perdoaria. Ele acha, entretanto, que
as armas mais importantes utilizadas por seus adversários foram seu “antimilitarismo” e
seu “antinacionalismo”. Uma de suas frases preferidas, que ele afirma continuar
subscrevendo, diz ser o nacionalismo uma das “aberrações humanas que mais sangue
fizeram correr na história”.179
A candidatura de Fujimori passaria como um rolo
compressor por cima da sua, causando a derrota do projeto idealizado pelo
“Movimiento Libertad”. O sonho de Vargas Llosa de poder intervir na realidade de seu
país e modificá-la concretamente desvanecera-se, mas não suas convicções.
Viendo bajar los ojos tímidamente al Presidente de la República, el general
Román salió por unos segundos del gelatinosos extravío mental para decirse que, a
diferencia de él, ese hombrecito desarmado que escribía versos y parecía tan poquita
cosa en este mundo de machos con pistolas y metralletas, sabía muy bien lo que quería
y lo que hacía, pues no perdía un instante la serenidad. En el curso de esa noche, la más
larga de su medio siglo de vida, el general Román descubrió que, en el vacío y desorden
que lo ocurrido con el Jefe causaba, aquel ser secundario, al que todos habían creído
siempre un amanuense, una figurilla decorativa del régimen, empezaba a adquirir
sorprendente autoridad.180
Que dizer, então, da literatura produzida por ele? No caso do texto acima,
descreve-se um dos momentos mais importantes do livro La fiesta del chivo, escrito 10
anos depois de sua candidatura à presidência do Peru. A cena retrata o diálogo entre
Joaquín Balaguer, presidente fantoche da República Dominicana, e o general Román a
respeito do vazio de poder que se havia instalado no país naquele instante. O ditador
178
Ibid., p. 482. 179
Ibid., pp. 417-418. 180
VARGAS LLOSA, M. La fiesta del chivo, pp. 419-420.
90
Leônidas Trujillo, que durante 31 anos havia corrompido e coberto de sangue o país,
tinha sido alvejado dentro de seu carro, enquanto seguia para a capital, Santo Domingo,
a qual, na época, fora rebatizada para Ciudad Trujillo. Esse homem, que se proclamara
“Pai da Pátria Nova”, “Benfeitor da Pátria”, e que tentara exigir do clero que lhe
concedesse o título de “Benfeitor da Igreja”, conduzira, durante todo esse tempo, um
regime responsável pela morte de mais de 20 mil pessoas. Naquela noite de 30 de maio
de 1961, aquele ditador, causador de tanta violência, tivera um fim não menos violento.
Seu filho, Ramfis Trujillo, assumiria o comando do país, promovendo uma vingança
sanguinária contra os supostos responsáveis pela morte de seu pai, incluindo, neste caso,
os parentes dessas pessoas. Muitos foram barbaramente torturados e vários se
suicidaram. É neste momento que se destaca a personalidade de Balaguer, em cuja
descrição Vargas Llosa o apresenta como o paradigma do liberal. Sua atitude serena
naquele momento de confronto o transforma em co-protagonista da narrativa, tal qual
ocorrera com o Barão de Cañabrava, cujo sucesso se deve a sua já citada postura
“camaleônica”.
Da mesma forma que o Barão, em quatro momentos importantes do texto,
enfrenta de maneira calma, mas bastante firme, os fanáticos da narrativa (Moreira
César, Galileo Gall, Rufino e o representante do conselheiro, Pajeú), Balaguer faz o
mesmo com todos os generais que queriam se apossar do comando da República
Dominicana. Sua habilidade de negociador ajuda a salvar sua própria vida da sanha
vingativa dos parentes de Trujillo, principalmente do sanguinário Ramfis, que almejava
tornar-se sucessor do pai. Melhor que isso, Balaguer consegue, aos poucos, afastar
todos os próceres daquela ditadura sanguinária, acabando por, em 1966, exatamente
cinco anos depois, tornar-se presidente da República. O país havia sido colocando no
rumo da “democracia”, pelo menos segundo os padrões liberais de Balaguer, de acordo
com o modelo pregado pelos norte-americanos.
De maneira muito parecida, o Barão de Cañabrava consegue pôr um fim às
disputas políticas do Estado da Bahia, para que todos pudessem se fortalecer contra o
inimigo comum. Conforme já foi citado no quarto capítulo, ele pede encarecidamente a
Epaminondas, o diretor do maior jornal republicano daquela região, que se esquecesse
de suas “estridências jacobinas”, pois elas só aprofundariam as divergências entre os
grupos políticos locais. O Barão conclama o jornalista a ajudá-lo a evitar que a
“República Brasileira se transformasse, como em tantos países da América Latina,
91
numa baderna, cheia de quarteladas, muita corrupção e bastante demagogia”.181
Era
realmente uma postura “camaleônica”, no melhor sentido, porém, já que exercida com o
intuito de provocar um diálogo constante, capaz de conduzir ao progresso e de produzir
o bem comum.
Cuando un Estado democrático es gobernado o controlado por la clase
capitalista o, más probablemente, operado de acuerdo con sus intereses, la democracia
es vista como un “bien en si mismo”. Empero, cuando proporciona una plataforma para
transformar las relaciones sociales y los derechos de propiedad, la tendencia es
apreciarla como un “lujo”, y, de acuerdo con esta visión, es permutable, y puede ser
reemplazada por un sistema autoritario que, bajo determinadas circunstancias, sea un
mejor instrumento para proteger las relaciones y requisitos de la propiedad.182
Em La fiesta del chivo, no entanto, Vargas Llosa não dá continuidade à história
de Balaguer, porque, conforme o título do livro, seu objetivo maior seria analisar a
figura emblemática de Rafael Trujillo, “el chivo”, e a projeção do poder desse homem
truculento na vida dos cidadãos da República Dominicana. O ponto culminante seria a
morte do ditador e os desdobramentos causados por essa ação. O escritor peruano
enfatiza, então, a importância do trabalho de Balaguer, ao costurar, com muita
habilidade, a desmontagem do regime e a passagem para outro, que se poderia chamar
de mais civilizado. Um de seus principais argumentos para convencer, principalmente o
sanguinário Ramfis, além dos demais parentes e todos os mandatários da ditadura, seria
o possível desembarque dos marines na ilha, já que os Estados Unidos não viam mais
com bons olhos aquela repressão brutal promovida pela ditadura. Essa possível invasão
acarretaria, segundo ele, o fim do país. Deste modo, ele conseguiu assumir, com apoio
dos norte-americanos, o controle do país, iniciando um governo semi-ditatorial, o qual
só terminaria 12 anos depois.183
É preciso ressaltar que Balaguer, o grande liberal, havia
passado muitos anos, mais precisamente de 1932 a 1961, exercendo cargos muito
importantes dentro daquele governo despótico, corrupto e assassino. É necessário
relembrar também que a ditadura de Trujillo havia sido colocada pelos Estados Unidos
e mantida econômica e militarmente durante muito tempo por esse país. Como fica a
consciência de Vargas Llosa em relação aos modelos de liberal e de liberalismo
propostos por ele?
181
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, séptimo capítulo, p. 357. 182
PETRAS, J. e VELTMEYER, H. Democracia y Capitalismo: una relación incómoda, in: La
globalización desenmascarada, p. 140. 183
JORNAL DO BRASIL, Hoje na história: 30 de maio de 1961. Ditador Trujillo é assassinado.
92
05.03. A PROPOSTA DE EUCLIDES E A DE VARGAS LLOSA
Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de
advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária.184
Euclides da Cunha
– ¿Canudos? – murmuró el Barón –. Epaminondas hace bien en querer que no
se hable de esa historia. Olvidémosla, es lo mejor. Es un episodio desgraciado, turbio,
confuso. No sirve. La historia debe ser instructiva, ejemplar. En esa guerra nadie se
cubrió de gloria. Y nadie entiende lo que pasó. Las gentes han decidido bajar una
cortina. Es sabio, es saludable.
– No permitiré que se olviden – dijo el periodista, mirándolo con la dudosa
fijeza de su mirada –. Es una promesa que me he hecho.
[…]
– ¿Cómo? – dijo, porque sí, para llenar el vacío.
– De la única manera que se conservan las cosas – oyó gruñir al visitante –.
Escribiéndolas185
Mario Vargas Llosa
Segundo o crítico Lourival Holanda, Canudos seria “o espaço de uma etnofania:
um ethnos, um povo ali se deixa ver pela primeira vez”.186
Ele reafirma o termo a partir
da junção dos radicais gregos (ethnos + phanos) para significar a fusão dos diversos
“brasis”. O vocábulo estaria representando a idéia de “brasileiros vindos de vários
quadrantes, mas completamente ignorantes da existência real desses “outros”
justapostos em Canudos”187
. Tal assertiva aponta para a proposta de Euclides em Os
sertões: a criação da nação a partir desses diversos brasis. Tal só ocorreria, entretanto,
caso os brasis justapostos se descobrissem uns aos outros e passassem a se conhecer. Já
foi citado que o livro resultou de sua cobertura jornalística à Guerra de Canudos. O
escritor assistiu à luta durante três semanas, de 16 de setembro a 3 de outubro, quando
se retirou devido à precariedade de sua saúde naquele instante.188
Deste modo, ele não
chegou a presenciar o massacre dos prisioneiros, nem o holocausto sofrido pela cidade,
incendiada com tochas de querosene e destruída a dinamite. Estas cenas estiveram
184
CUNHA, E. Carta a Francisco Escobar. In. GALVÃO, W.N. e GALLOTTI. O (org.)
Correspondência de Euclides da Cunha. p. 139. 185
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, p. 365. 186
HOLANDA, L, Os Sertões: o nascimento de uma nação. In: BERNUCCI, L.M. (org.) Discurso,
ciência e controvérsia em Euclides da Cunha, p. 137. 187
Ibid., p. 137. 188
REVISTA CARTACAPITAL, 26 de dezembro de 2001, p. 36.
93
ausentes em suas reportagens para o jornal Estado de São Paulo e aparecem de forma
bem sucinta em Os Sertões.
Naquele momento, Euclides, como todos os outros repórteres, omitiu-se em
relação às diversas atrocidades perpetradas pelo exército brasileiro. Afinal, aquele
estava sendo o primeiro evento dessa monta a ter cobertura feita por correspondentes de
guerra. Só que todos deveriam submeter-se à censura militar. O caso de Euclides
apresenta um dado importante: ele tivera sua formação feita dentro da caserna e tornara-
se tenente reformado desde 1896, quando deixou a carreira militar para trabalhar como
engenheiro no Estado de São Paulo. Além do mais, durante a cobertura do conflito, ele
estava adido ao Estado-Maior do Ministério da Guerra.189
A publicação de Os Sertões
ocorreria cinco anos depois e, por causa desse intervalo, Euclides pôde reconhecer suas
falhas e omissões na cobertura daquele embate. Havia, neste caso, um distanciamento,
pequeno que fosse, mas suficiente para fazê-lo refletir e, posteriormente, lançar o livro
que poderia ser chamado de “Bíblia de nossa nacionalidade”.
Euclides traçou paralelos entre os dois lados do conflito, mergulhados no
mesmo fanatismo: entre o soldado e o jagunço, entre o litoral e o sertão, entre a
República e Canudos. Os soldados saudavam a memória do marechal Floriano Peixoto,
cujo retrato traziam no peito, com o mesmo entusiasmo doentio com que os jagunços
bradavam pelo Bom Jeus. O coronel Moreira César, comandante da terceira expedição,
é tido como desequilibrado. Tanto quanto o Conselheiro. Ambos refletiriam a
“instabilidade” dos primórdios da República.190
Euclides havia conseguido perceber que a idéia de uma conspiração monarquista
apoiada por países estrangeiros era pura falácia, pois a motivação dos seguidores do
Conselheiro era, basicamente, mística e religiosa. Sua visão preconceituosa a respeito da
questão racial também havia caído por terra, já que os fundamentos da guerra não
seriam mais explicados como resultantes de um choque entre a mestiçagem do litoral e a
do sertão. O sertanejo foi alavancado à condição de herói, como se fosse um cavaleiro
medieval, tendo sido chamado de “rocha viva da nacionalidade”191
, o elemento básico
para a construção do homem tipicamente brasileiro.
A atuação de Euclides em seu trabalho incansável de construtor de uma
sociedade para aquele Brasil do início da República foi concretizado então na
elaboração de Os sertões. Conforme análise já feita inicialmente, ele seguiu os
189
Ibid., p. 36. 190
VENTURA, Roberto. O combate à República para salvar a alma. In: REVISTA CARTACAPITAL,
26 de dezembro de 2001. 191
CUNHA, E. Os sertões, p. 761.
94
postulados do determinismo científico, daí a estruturação do livro em três partes, como
pode ser ilustrado no Anexo 8, na página 118. “A terra”, na qual ele descreve o
ambiente físico e a importância desse elemento, não apenas para a formação do
sertanejo, mas também para a eclosão do conflito e seu posterior desenvolvimento, é a
primeira. A segunda, nomeada “O homem”, na qual ele teoriza a respeito da
mestiçagem na gênese e no comportamento do sertanejo, detendo-se em Antônio
Conselheiro, apresentando-o como produto de um meio físico e social responsável por
sua insanidade. A terceira, “A luta”, subdividida em cinco outras (”Travessia do
cambaio”, “Expedição Moreira César, “Quarta expedição”, “Nova fase da luta” e
“Últimos dias”) na qual ele, de forma épica, narra o desenvolvimento do conflito,
procurando detalhar as diversas fases da guerra.
Vargas Llosa, por outro lado, busca outro caminho. De acordo com análises já
feitas a respeito de sua assimilação das várias mudanças produzidas pela narrativa ao
longo do século XX, acrescentando, neste caso, as inúmeras perspectivas abertas pela
Nova História e, posteriormente, pelo Novo Romance Histórico, La guerra del fin del
mundo abriu um novo leque de possibilidades para a compreensão do episódio narrado
por Euclides. O romance se estrutura em quatro partes maiores, todas subdivididas em
vários capítulos. A primeira já ressalta o tom novelesco da narrativa, compondo-a com a
apresentação de Antônio Conselheiro, completamente inserido no cenário, e da maior
parte dos personagens, dando destaque para Galileo Gall, Epaminondas e os principais
seguidores do líder dos sertanejos. A segunda, como ilustra o Anexo 4, na página 114,
bem minúscula, apresenta apenas três capítulos, os quais demonstram a inquietação das
elites baianas provocada pela derrota do major Febrônio de Brito e a conseqüente
continuação do crescimento de Canudos. A terceira focaliza a preparação da expedição
comandada por Moreira César e a surpreendente derrota daquele que aglutinava as
esperanças das elites de todo o país. Nesse momento do romance, o tom novelesco
atinge seu ponto culminante com a perseguição encarniçada empreendida por Rufino a
Galileo e a luta mortal entre os desafetos. Na última, vemos o desenlace da narrativa a
partir da formação da quarta expedição, o cerco a Canudos, o assalto final e a destruição
da cidade. Sobressai nesse trecho do livro o longo diálogo entre o Barão de Cañabrava e
o jornalista míope, entremeado com as diversas cenas nas quais se delineiam a luta
épica dos moradores da cidade sitiada, pondo em destaque as façanhas dos principais
seguidores de Antônio Conselheiro.
95
La condena del fanatismo en la novela, cuya importancia no ha sido
suficientemente señalado por la mayoría de los críticos, se complementa con el elogio
de la flexibilidad, del cambio, de la objetividad y de la relatividad, elogio que va
acompañado de la subversión de ciertos estereotipos.192
Seymour Menton enfatiza o fato de os críticos não identificarem a condenação
ao fanatismo como o eixo estruturante de La guerra del fin del mundo. Ele acrescenta
que muitos colocam a questão, como Raymond Souza, que chega a “reconhecer uma
relação entre o romance e os guerrilheiros do Sendero Luminoso”, ou Ángel Rama, que
“discute a ideologia do romance, sem, porém, aludir à realidade peruana. Outros, como
Cornejo Polar e Jorge Rufinelli, “reconhecem a importância do fanatismo, mas criticam
o conteúdo anti-revolucionário da narrativa”. Já Raymond Williams identificaria “o
fanatismo como um dos fatores que motivam os personagens, mesmo não sendo o
principal”. Ocorre que todos esvaziam a relevância atribuída ao Barão de Cañabrava,
não dando muita importância à evolução positiva desse personagem.193
Chama a
atenção também a organização do livro em quatro partes principais, numa associação
direta aos quatro fanáticos: Antônio Conselheiro, Coronel Moreira César, Galileo Gall e
Rufino. Para Vargas Llosa, cada um deles se considerava dono de verdades absolutas,
capazes de criar dogmas, os quais deveriam ser executados ou, dependendo do caso,
seguidos cegamente por seus membros.
Pienso muchísimo en ti y en lo que te ha sucedido. Me solidarizo totalmente
con tu libro y me gustaría compartir contigo este asalto sobre el racionalismo, la razón y
la libertad. Los escritores deberíamos unirnos en este momento muy crítico para la
libertad de creación. Creíamos que se había ganado esta guerra hace mucho tiempo pero
no fue así. En el pasado fueron la Inquisición católica, el fascismo, el estalinismo; ahora
se trata del fundamentalismo musulmán y probablemente habrá otros. Las fuerzas del
fanatismo siempre estarán allí. El espíritu de la libertad siempre será amenazado por la
irracionalidad y la intolerancia, que están aparentemente arraigadas en la profundidad
del corazón humano.194
Não haveria, então, nenhum tipo de diferença na postura de alguém que, como
Antônio Conselheiro, pregasse uma verdade de fundo místico e religioso, e o coronel
Moreira César, que julgava lutar em nome de uma suposta razão republicana, a qual
deveria, caso fosse necessário, impor-se através da violência. O fanatismo do primeiro
seria comparável ao de movimentos inspirados por fundamentalismos religiosos. A
carta acima, escrita por Vargas Llosa e publicada no New York Times Book Review em
192
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, pp. 70-71. 193
Ibid.. p. 71. 194
VARGAS LLOSA, M. apud MENTON, S., p. 69.
96
12 de março de 1989, como uma resposta à condenação à morte do escritor Salman
Rushdie pelo Aiatolá Khomeini, por causa de sua novela Versos Satânicos, mostra,
segundo Menton, uma referência explícita à temática de La guerra del fin del mundo,
quando do lançamento deste romance em 1981.195
O carisma de Antônio Conselheiro
continuaria mais presente do que nunca, manifestando-se de forma dominadora e
intolerante. Quanto ao coronel, a história da América Latina está cheia de quarteladas
provocadas, na maioria das vezes, pelo vazio de poder decorrente da desorganização da
sociedade civil, cujas elites costumavam enxergar os militares como âncoras da
estabilidade e propulsores do progresso.
Não existiria, também, nenhuma divergência entre o código de honra sustentado
por Rufino e a cegueira revolucionária pregada por Galileo Gall. O primeiro encerra em
si todas as características do macho latino, violento e prepotente, alçando a bandeira da
“vendetta” sempre que uma questão de honra se apresentava. No caso do anarquista
escocês, já analisamos o ponto de vista de Vargas Llosa no que se refere às inúmeras
implicações decorrentes da atuação da esquerda, principalmente em relação à América
Latina. Segundo o escritor peruano, tais militantes seriam, por ingenuidade, mas, na
maioria das vezes, por fanatismo, incapazes de compreender as necessidades reais da
população pela qual julgavam estar lutando. Pior ainda, não conseguiam entender a
linguagem dessas pessoas. Deste modo, Rufino e Galileo representariam aqueles que, de
forma alucinada, seriam capazes de matar ou morrer para defender seus preceitos
inquebrantáveis.
– La seguridad de La gente, su apetito de fantasía, de ilusión – dijo el Barón –.
Había que explicar de alguna manera esa cosa inconcebible: que bandas de campesinos
y de vagabundos derrotaran a tres expediciones del Ejército, que resistieran meses a las
Fuerzas Armadas del país. La conspiración era una necesidad: por eso la inventaron y la
creyeron.196
O barão, de forma serena, enfrenta a todos, e, como porta-voz ideológico de
Vargas Llosa, acaba, apesar do quase exclusivo domínio da já citada polifonia,
conduzindo o fio narrativo no momento da conclusão do romance. Por ser um
monarquista, entendemos que seu comportamento, de certo modo, assemelha-se à
tradicional imagem projetada pelo imperador D. Pedro II, quando, através do Poder
Moderador, pairava acima das intrigas e dos questionamentos presentes na política
195
Ibid.. p. 69. 196
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 422.
97
cotidiana do Segundo Reinado. Muitos historiadores, inclusive, consideram que a
presença desse poder havia sido fundamental para a estabilidade e a não fragmentação
do país durante o regime monárquico. Mas a Monarquia havia terminado, e homens
como o Barão de Cañabrava estavam sendo colocados no ostracismo. No quadro criado
pelo escritor peruano, urgia encontrar pessoas que se projetassem dentro da sociedade
republicana capazes de unir o país através do diálogo, do entendimento, de tudo aquilo
que pudesse elevar o ser humano a uma condição de civilizado. Deste modo, deveriam
ser combatidos todos os arroubos religiosos, políticos, pessoais, revolucionários,
quaisquer que fossem, pois eles apenas seriam capazes de produzir dor e destruição.
Que fazer, então, a partir dos episódios de Canudos? A princípio, as duas obras
convergem, pois pretendem evitar o esquecimento do massacre e da tragédia. Euclides,
como bem ressalta o Anexo 2 destas reflexões, página 112, pretendeu vingar o sertão,
registrando para a posteridade a hediondez de cenas que fixariam “os pobres sertanejos
assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária”, como bem ilustra o Anexo 7, na
página 117. Euclides continua presente em Vargas Llosa, agora na figura do jornalista
míope, o qual havia feito uma promessa a si mesmo: a de que “não permitiria que
esquecessem Canudos". E prosseguiu reafirmando que o faria “da única maneira que se
conservam as coisas, ou seja, escrevendo-as”. A força da palavra escrita está presente
nos dois momentos. Em Euclides, porém, tem como objetivo unificar os diversos brasis,
apresentando-os uns aos outros, com o propósito de criar um país realmente uno. Em
Vargas Llosa, temos como objetivo principal a construção, não de um Brasil, mas de
uma América Latina de cunho neoliberal, livre do que ele chamaria de fanatismo e
intolerância.
98
06. CONCLUSÃO
A MATADEIRA
(OU NO BALANÇO DA JUSTIÇA)
Vê
A matadeira vem chegando
No alto da favela
No balanço da justiça.
Do seu criador
A matadeira vem chegando
No alto da favela
No balanço da justiça
Salitre pólvora enxofre chumbo
O banquete da Terra
O Teatro do céu
Diz aí quem vem lá
O velho soldado
O que traz no seu peito
A Vida e a Morte
O que traz na cabeça
A matadeira
E o que veio falar
Fogo197
Lirinha
Segundo Zygmunt Bauman em Modernidade e ambivalência, o maior problema
da modernidade residiria numa “obsessiva marcha adiante não porque se queira mais,
mas porque nunca se consegue o bastante”.198
O autor questiona essa marcha obsessiva,
resultante do avanço perpetrado pela urbanização acelerada devido ao avanço
extraordinário da industrialização. É um fenômeno da modernidade, cujo início, ainda
de acordo com Bauman nesse livro, seria “uma questão discutível”199
. Cumpre
observar, no entanto, que, ao longo do século XIX, esse processo veio-se acelerando e,
neste caso, o sociólogo polonês cita Walter Benjamin, segundo o qual haveria uma
“tormenta impelindo os caminhantes de forma irresistível para o futuro ao qual dão as
costas, enquanto uma pilha de detritos diante deles cresce até os céus”. Ainda de acordo
com o sociólogo, Benjamin concluíra essa opinião, acrescentando que “a essa tormenta
197
LIRINHA, A matadeira. In: CORDEL DO FOGO ENCANTADO. 198
BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 18. 199
Ibid., p. 11.
99
chamamos progresso”200
. Já é por demais conhecido o resultado do incremento da
sociedade capitalista, embasado pelo forte desenvolvimento das ciências associado ao
crescimento material. Se considerarmos a visão nacionalista estimulada pela ideologia
burguesa dominante, teremos um quadro em que “a pilha de detritos” da modernidade
teria se acumulado de forma incontrolável.
Os casos mais extremos e bem documentados de “engenharia social” global na
história moderna (aqueles presididos por Hitler e Stalin, não obstante as atrocidades
resultantes, não foram nem explosões de barbarismo ainda não plenamente extinto pela
nova ordem racional da civilização, nem o preço pago por utopias alheias ao espírito da
modernidade. Ao contrário, foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia
de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda
parte a mais eminente marca da era moderna. [...] A visão nazista de uma sociedade
harmoniosa, ordeira, sem desvios extraía sua legitimidade e atração dessas visões e
crenças já firmemente arraigadas na mente do público ao longo do século e meio de
história pós-iluminista, repleta de propaganda cientificista e exibição visual da
assombrosa potência da tecnologia moderna.201
Neste cenário de crescimento do sistema capitalista, pode-se acrescentar então a
importância do acompanhamento da ciência moderna e sua tentativa de controle da
natureza. Essa busca constante da perfeição conduziria não apenas ao desejo de dominar
as forças naturais, pois produziria também a idéia de moldar os seres humanos,
deixando afluir, conforme já salientado, teses racistas capazes de justificar a supremacia
dos “civilizados” sobre os “bárbaros”. A perseguição deliberada às “ervas daninhas” foi
colocada em prática de um modo nunca visto até então, deixando evidente que a criação
do “estado jardineiro” trouxera em seu bojo o triunfo do mundo racional, com este
“apresentando uma força missionária, empenhado em submeter as populações
dominadas de modo a transformá-las numa sociedade ordeira, afinada com os preceitos
da razão.”202
O que eles não pensavam, ou pelo menos não levavam em consideração,
seriam os inúmeros resíduos deixados ao longo do caminho. As minorias deveriam ser
controladas ou eliminadas, colocando no mesmo barco tudo que, segundo os parâmetros
do “estado jardineiro”, fugisse do normal, desde loucos e aleijados, até os considerados
anti-sociais, como vagabundos e criminosos, passando por, dependendo da ocasião,
índios, negros, ciganos, homossexuais, árabes ou judeus. Urgia “limpar” tudo, urgia
eliminar os “indesejáveis”, urgia podar as “ervas daninhas”.
200
Ibid., p. 18. 201
BAUMAN, Z. A prática do estado jardineiro, p. 38 202
Ibid., p. 29.
100
Como vimos ao longo do primeiro capítulo, o surgimento da República trouxera
consigo os ideais desse estado dominado pela razão, e a intelectualidade burguesa,
ansiosa pela assimilação dos moldes europeus, havia incluído, dentre os seus objetivos
primordiais, algo que se poderia chamar de engenharia social. Vimos, também, que,
neste caso, o surgimento de Canudos havia escancarado, inesperadamente, uma chaga
viva da nação. Pudemos analisar, então, a presença de Euclides da Cunha, fundamental
para o início de uma compreensão até então inexistente em nossa cultura, a descoberta
daquele Brasil ignorado pela República, a qual estaria sendo cooptada pela estrutura
social e econômica herdada do regime monárquico. Euclides, a princípio, defendera,
como os demais, o “estado jardineiro” e queria, como tal, podar as “ervas daninhas”.
Sua sensibilidade, no entanto, levou-o a perceber também os destroços deixados pela
ação “civilizatória” desse Estado. E não foram poucos, pois eles continuam presentes,
levando-nos a acreditar que os acontecimentos de Canudos deixaram marcas profundas
em nossa sociedade.
Como pensar, por exemplo, na intensa favelização, que insistiu em acompanhar
nosso crescimento econômico e social ao longo do século passado? Na verdade, esse
processo teve seu início desde fins do século XIX, acelerando-se após a abolição da
escravidão, quando muitos ex-escravos dirigiram-se para a então capital federal com o
intuito de se fixar em lugares sem nenhuma infra-estrutura. Acrescente-se a esse fato o
crescimento desmesurado do Rio de Janeiro, e temos um quadro social trágico, que
perduraria durante o século XX, aumentando a partir dos anos 50 devido a grande leva
de nordestinos que se deslocaram em busca do “eldorado” presente na região Sudeste.
Segundo o livro Um século de favela, o preconceito em torno dessas comunidades e de
seus moradores seria e continuaria sendo uma constante. Pudemos constatar então que o
primeiro censo organizado pela prefeitura da cidade, feito somente em 1948, conteria a
afirmação de que: “Os pretos e pardos prevaleciam nas favelas por serem
hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências
sociais modernas”.203
Nessa imagem carregada de preconceito, o estado racional estava
assumindo publicamente a sua incapacidade na resolução de um problema que se
alastrava, gerando o caldo de violência que viria explodir décadas depois. Na verdade,
toda vez que o chamado poder público agiu na tentativa de “solucionar o problema”,
deu ênfase a planos urbanísticos que apenas pretendiam “embelezar” o local. Em vez da
203
ZALUAR, A e ALVITO, M (org.) Um século de favela, p.13.
101
integração social para melhorar a qualidade de vida dos moradores, a maquiagem para
esconder os detritos.
É preciso relembrar, também, que a palavra “favela”, ironicamente, é uma
herança da Guerra de Canudos, pois foi trazida por cerca de dez mil soldados os quais,
por não terem mais recebido o soldo, haviam-se estabelecido em barracos provisórios
no Morro da Providência, aguardando a promessa feita pelo Governo de que eles
ganhariam casas na então capital federal. Esperaram durante muito tempo que o exército
ou uma autoridade qualquer os acolhesse ou, pelo menos, desse-lhes alguma satisfação.
Tal não ocorreu, e a permanência dessas pessoas naquele local gerou uma comunidade,
cujo “modelo” se espalharia posteriormente por toda a cidade. Ela seria logo batizada de
Morro da Favela. A referência remete a Canudos, que crescera perto de uma elevação
com esse mesmo nome, visto conter, de forma abundante, uma planta com igual
denominação e bastante comum na região da caatinga. Da mesma forma que os
jagunços, contra os quais eles haviam utilizado fuzis, baionetas e a poderosa
“matadeira”, os ex-soldados, agora desarmados e reintegrados à população civil,
também receberiam seu quinhão: o abandono da República, que não tinha a menor
consideração em relação a tudo que cheirasse a povo ou a qualquer coisa que a essa
idéia remetesse. Na verdade, permitir informalmente que eles construíssem em lugares
sem nenhum valor de mercado seria a única recompensa que Ela lhes daria pelo
“relevante serviço” prestado à pátria.
Também Euclides nos legou um livro, „Os sertões‟, que pode ser um ensaio,
pode ser uma peça da história, talvez seja um trabalho jornalístico, tem a forma de um
romance. Tem poesia? Acho que tem. Sempre que o releio, me pergunto: o que ele é?
Muito antes das vanguardas e do modernismo, Sarmiento e Euclides
anunciaram uma verdade devastadora: ninguém pode retratar o mundo. Podemos rondar
em torno dele, puxar-lhe as barbas de velho, acariciá-lo, desafiá-lo – para que, enfim,
acorde. Disso decorrem fragmentos extraordinários, ainda assim, homem algum
consegue pintar.
Os sertões é um livro sobre a crueldade e simboliza um enfrentamento. Ele só o
escreveu porque esteve cara a cara com a loucura de Canudos. O que importa é que a
Literatura é indiferente a relógios e a fórmulas. Na verdade, eles a asfixiam e matam.
Euclides via o Brasil dividido entre a civilização e a barbárie. Seria fácil se
soubéssemos dizer de que lado cada uma delas está. Não sabemos. Na verdade, nós a
carregamos dentro de nós. Toda ficção sempre se desloca, toda literatura se esquiva e
fere, ou literatura, de fato, não é. Escritores corajosos sabem disso. Não importa se
dizem isso, ou não. 204
O texto acima expressa o resultado do trabalho de Euclides naquele momento
em que a República engatinhava, buscando afirmação. Expressa, também, um misto de
204
CASTELLO, J. Sarmiento desaparecido, Prosa & Verso, O Globo, 29 de maio de 2010.
102
espanto e reconhecimento. Espanto pela modernidade de um escritor que, muito antes
das vanguardas, marcara uma virada em nossa literatura com um trabalho, cuja estrutura
era tão indefinida, que ninguém ousava classificar. José Castelo retoma também
comparações já feitas entre nosso escritor e o argentino Sarmiento, principalmente no
que se refere à primeira tentativa de compreensão do paradoxo deixado nesse continente
pelos colonizadores: a dicotomia entre civilização e barbárie. Importa mesmo enfatizar,
como muito bem ressalta o crítico, que Euclides havia estado “cara a cara com a loucura
de Canudos”. Afinal, de suas páginas saem a mais contundente denúncia contra o
extermínio de uma comunidade, organizado por um estado que portava modernos fuzis
e dirigia a poderosa matadeira contra um povo que apenas queria viver em paz.
A descrição feita por Euclides da chegada dos prisioneiros, ressaltada no Anexo
5, página 115, desta dissertação, chamaria a atenção para o ato de crueldade que estava
sendo perpetrado pela República, pois guerra, segundo o escritor, não houve, já que ela
“pressupõe o embate franco de dois exércitos regulares em campo aberto de batalha,
com artilharias e divisões similares, estudadas técnicas de ação e definidas estratégias
militares de ataque, recuo e confrontação”.205
A imagem dessas pessoas, no entanto,
deixaria espantados, inclusive, muitos militares envolvidos no combate. Já foi citada a
afirmação do escritor de que os soldados se “sentiam fora do Brasil”. Se pensarmos que
os invasores, num todo, tinham a mesma cara dos defensores de Canudos, é estranha
essa sensação de estar num território estrangeiro.
Infelizmente, a situação continua, pois, não raras vezes, é muito comum a cena
em que, parafraseando Caetano Veloso, vemos “a fila de soldados, quase todos pretos,
batendo em malandros e em ladrões pretos, ou em outros, quase brancos, mas tratados
como pretos”. E como ocorreu em Canudos, quando a República dizimou os habitantes
da comunidade por terem tido a petulância de defender o seu espaço, o “estado
jardineiro” continuou ouvindo o clamor da burguesia a qual, através da mídia, de modo
constante, continua pregando a invasão das favelas e, não raras vezes, a colocação do
Exército na rua, pois só assim poderia ser contida a violência que tanto abala a cidade.
E, continuando a paráfrase, percebemos que “o Haiti continua aqui”. Deste modo, é
preciso mostrar sempre “aos pretos, ou aos quase pretos, ou aos brancos e aos quase
brancos, mas pobres”, os quais, neste caso, também “haviam virado pretos”, pois é
assim que “pretos, pobres e mulatos devem ser tratados”. Afinal, “pobres são como
205
FONSECA, A. O pêndulo de Euclides, p. 183.
103
podres”.206
Daí a necessidade de podar as “ervas daninhas”, tal qual ocorrera no final do
século XIX, continua, muitas vezes, sendo colocada na ordem do dia. E se, em vez de
“mestres-escolas”, como sugeriu Euclides, a matadeira foi o sinal da modernidade
civilizatória em Canudos, hoje o “caveirão” atua como ponta de lança na invasão das
diversas comunidades cariocas, cuja população apresenta uma baixa perspectiva de vida
em todos os sentidos. Enfim, sem saúde, educação ou quaisquer benesses do poder
público, esses moradores foram, e continuam sendo, vítimas do “apartheid social”
criado pela República brasileira ao longo desses mais de cem anos.
Este resíduo da Modernidade pode ser expresso também através das inúmeras
mudanças promovidas pelo Estado com o intuito de caminhar para um progresso direto
e inevitável. Como vemos no Anexo 9, página 119, Canudos persiste, apesar de ter tido
seu local original alagado nos primeiros dias de março de 1969. Naquele momento,
seguindo um projeto executado em plena ditadura militar, as águas do rio Vaza Barris
foram represadas, formando o açude de Cocorobó, o qual cobriria o núcleo da antiga
Canudos. Por que eliminar um local no qual ocorrera talvez a mais forte manifestação
contra o poder do Estado aqui no Brasil? Mas Canudos sobrevive, mesmo tendo seus
arredores cercados agora pelo lixo e abandono, num outro resíduo da modernidade,
como observamos no Anexo 10, página 120. Segundo reportagem da revista
CartaCapital, “metade das caatingas se foi, substituída, quase sempre, pelo Cenchrus
ciliares, mais conhecido como Capim Buffel.”207
Essa vegetação foi transformada em
pastagem e, com o tempo, começou a ser tomada pelo plástico e pelo lixo resultantes
dos crescentes aglomerados urbanos. Mais uma vez, depois da matadeira, a
modernidade estava presente no sertão.
– O Soldado Velho possui a verdade da experiência e o Soldado Jovem, a
verdade da ficção. Nunca são idênticas, contudo, embora sejam de ordem diversa, às
vezes podem não ser contraditórias – diz Pichón.
– Certo – responde Soldi. – Mas a primeira pretende ser mais verdade do que a
segunda.
[...]
– Não o nego – diz. – Mas, a segunda, por que ela gosta tanto de se vender nas
casas de tolerância?208
O diálogo acima, presente em Juan José Saer, discute a questão da
verossimilhança pregada pela História, expondo a divergência entre a verdade da
206
VELOSO, C e GIL, G. Haiti. In.: Fina Estampa 2, 1995. 207
REVISTA CARTACAPITAL, 26 de dezembro de 2001, p. 27. 208
SAER, J.J. A pesquisa, p. 112.
104
experiência e a verdade da ficção. De certo modo, reflete o processo de construção de
Vargas Llosa em La Guerra del Fin del Mundo, evidenciando a sobreposição do fictício
em relação ao histórico, numa concretização natural como resultante do processo das
mudanças no campo intelectual citadas neste trabalho. Se Euclides se ancorava no
histórico, acreditando piamente, pelo menos a princípio, numa suposta verdade objetiva,
Vargas Llosa demonstrou que essa verdade tem que conjugar história, mito e
imaginação. Canudos era uma árvore de histórias, conforme dissera o jornalista míope
num dos momentos cruciais do romance. Essa conclusão, em suas devidas proporções,
também foi visualizada por Euclides; no entanto, em virtude do clima reinante na
intelectualidade da época, apresentou uma série de limitações. Em resumo, a miopia
intelectual e ideológica não lhe permitira, pelo menos inicialmente, enxergar o drama de
Canudos por inteiro.
Euclides trazia consigo um projeto de construção do Brasil, acreditando que tal
projeto levaria o país à modernidade. Entretanto, ele percebeu os conflitos latentes no
processo de constituição da nação, conseguindo entender as contradições daquelas
propostas, o que o fez chegar a essa tão sonhada modernidade bem antes de seu tão
querido país. Vargas Llosa, por outro lado, ampliou seu projeto, direcionando-o para a
América Latina. Na verdade, o escritor peruano aproveitou um momento em que essa
parte do continente procurava avidamente encontrar sua identidade e,
conseqüentemente, descobrir o seu lugar na América como um todo. O papel periférico
dessa região, ressaltado após as guerras de independência, transformara-a em fantoche,
mero joguete das grandes potências. O clima da Guerra Fria, em meados do século XX,
agudizava essa percepção. Cabia então à intelectualidade participar ativamente desse
processo.
A publicação de La guerra del fin del mundo em 1981 veio a calhar,
considerando o clima sócio-político-cultural reinante naquele momento. A narrativa
levou o leitor a um novo mergulho na realidade transformada em ficção por Vargas
Llosa, o qual sempre pretendera, conforme já afirmara em relação a Cien años de
soledad de Gabriel García Márquez, escrever o “romance total”. Se considerarmos que
sua narração dos eventos englobou diversos episódios, desde os antecedentes do
conflito, os detalhes de sua duração e a conclusão dos acontecimentos, ele certamente
conseguiu, pois os fatos que geraram Canudos e seu trágico desenlace não haviam sido
exclusividade do Brasil, mas uma constante em diversos pontos e em inúmeros
momentos da América Latina.
105
La guerra del fin del mundo trouxe em seu bojo um projeto de reconstrução para
este continente. Afinal, neste romance, Vargas Llosa quis ressaltar o fracasso das idéias
“extremadas”, destacando que elas em nada haviam contribuído para impulsionar os
diversos países latino-americanos, visto ele não acreditar que tais propostas
conseguissem efetivar uma integração entre o “eu” e o “outro”. Os diversos sectarismos,
de direita ou de esquerda, segundo sua opinião, não haviam conseguido mudar as
estruturas nem levar os habitantes dessa região a uma vida mais digna. Seu projeto
coadunava-se com os novos estudos culturais propostos a partir dos anos 70, tendo sido
fruto daquela série de acontecimentos que modificaram a sociedade mundial no pós-
guerra. Combinava, também, com um projeto neo-liberal o qual o escritor peruano
julgava ser o modelo impulsionador para a América Latina. Alguns de seus livros
mostram ditaduras sanguinárias, como Conversación en la catedral e La fiesta del
chivo, estabelecendo críticas contundentes a regimes discricionários. No entanto, ele
passa ao largo do fato de que tais regimes sempre ancoraram sua durabilidade no forte
apoio da “democracia” norte-americana. Segundo Petras, a ditadura seria inerente ao
capitalismo, pois nos Estados Unidos a democracia funcionaria, única e exclusivamente,
por estar submetida à ditadura do mercado. E não houve, até agora, nada que
conseguisse acuar tal poder.209
Todas as vezes que o estado norte-americano se viu
ameaçado, como na época do MaCartismo, por exemplo, o estado policial, de cunho
fascista, agiu com toda sua força.
Los cariños, el arrullo, el consuelo, el olor de esa mujer que había matado a su
hijo cuando él, adolescente, comenzaba a trabajar en un diario y que era ahora
sacerdotisa de Canudos, se parecían al opio y al éter, eran algo suave y letárgico, una
grata ausencia, y se preguntó si alguna vez, de niño, esa madre a la que él no había
conocido lo acarició así y le hizo sentir invulnerabilidad e indiferencia ante los peligros
del mundo. Por su mente desfilaron las aulas y patios del Colegio de los Padres
Salesianos donde, gracias a sus estornudos, había sido, como sin duda el Enano, como
sin duda el monstruo lector que estaba allí hazmerreír y víctima, blanco de burlas. Por
los accesos de estornudos y por su escasa vista había sido apartado de los deportes,
juegos fuertes, excursiones, tratado como inválido. Por eso se había vuelto tímido, por
esa maldita nariz ingobernable había tenido que usa pañuelos grandes como sábanas, y
por culpa de ella y de sus ojos obtusos no había tenido enamorada, novia, ni esposa y
había vivido con esa permanente sensación de ridículo que no le permitió declarar su
amor a las muchachas a las que amó, ni enviarles los versos que les escribía y que
luego cobardemente rompía. Por culpa de esa nariz y esa miopía sólo había tenido entre
los brazos a las putas de Bahía, conocido esos amores mercantiles, rápidos, sucios, que
dos veces pagó con purgaciones y curas con sondas que lo hacían aullar. Él también
era monstruo, tullido, inválido, anormal. No era accidente que estuviese donde
habíanvenido a congregarse los tullidos, los desgraciados, los anormales, los sufridos
del mundo. Era inevitable pues era uno de ellos.210
209
PETRAS, J. e VELTMEYER, H. Democracia y capitalismo: una relación incómoda, p. 140. 210
VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, cuarto parágrafo, p. 483.
106
Euclides da Cunha, mesmo mostrando o abandono e a espantosa miséria daquela
região, mesmo ressaltando a luta titânica dos sertanejos, que pareciam renascer das
cinzas eternamente, mesmo denunciando os crimes cometidos pelo exército em
Canudos, não havia “ultrapassado a fronteira” nem passado para o “outro lado”. Ele,
como homem do seu tempo, insistia sempre na tese de que somente um “banho de
civilização” poderia salvar “aquela gente”. A ficção, entretanto, fizera o jornalista
míope viver a experiência de ser “um deles”. Ele havia sido acolhido por Maria
Quadrado, a infanticida, agora sacerdotisa de Canudos. Sentira a miséria e a angústia
dentro de si mesmo e vira o apocalipse se abater sobre a cidade. Euclides, inicialmente,
não havia conseguido perceber de maneira muito clara o andamento dos fatos, uma vez
que seu idealismo levava-o a acreditar no poder exercido pela República. De certo
modo, ele, como intelectual, também havia sido visto, muitas vezes, como um estranho
dentro da sociedade brasileira do início do século XX. Já citamos que Luís Costa Lima
o apresenta como um grande romântico, daí a ligação estabelecida por Vargas Llosa
entre o escritor brasileiro e um personagem considerado idealista pelo autor peruano.
O jornalista míope, no entanto, havia entendido que Antônio Conselheiro e a
cidade de Canudos tinham dignificado todos os moradores daquela comunidade e se
eternizariam, como bem mostra o Anexo 6, na página 116. E a pena de Vargas Llosa,
cujo foco narrativo está direcionado no momento mais importante do livro pela ótica
desse personagem, leva-nos a perceber que todos em Canudos, sem exceção, eram
vencedores e, mais importante ainda, ele, o jornalista míope, havia experimentado isso
também. É fundamental mesmo, nisso tudo, compreender a grandiosidade de Euclides,
míope apenas por causa dos poucos meios de que dispunha para tentar fixar o que ele
julgaria ser a verdade objetiva. Como não enxergar então a modernidade presente nas
opiniões de um escritor que, na primeira década do século XIX, num país como o
Brasil, distante ainda da consciência adquirida pelos protagonistas das lutas sociais
travadas no continente europeu, teve a capacidade de entender que “a exploração
capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da
máquina”?211
Ele teve sensibilidade suficiente para perceber a incoerência do “Estado
Jardineiro” para assim poder denunciar o crime cometido por aquela “sociedade pulha e
sanguinária”.
211
CUNHA, E. Contrastes e confrontos. In: MATOS, M. Migalhas de Euclides da Cunha, p. 395.
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111
ANEXO I
LA HISTORIA HARÁ SU HOMENAJE A LA
FIGURA DE ANTONIO, EL CONSEJERO.
En un profundo desierto sin ninguna fuente Quienes vivían a su lado siempre quisieron
surgió un régimen igualitario. cambiar en real la fantasía.
Allá, un justo ya sexagenario El reino de los cielos no les prometía,
hizo erguir la ciudad de Belomonte , pero un reino en la tierra, más feliz.
para entonces discernir un horizonte, Al final, solo el pueblo del país
Sin malicia, sin delincuencia y sin dinero, puede dar su retrato verdadero
sin burdel, ningún impuesto, ni carcelero. de este líder, auténtico mensajero,
Mas fue asesinado y visto como un salvaje. ya que alguien ha distorsionado su imagen.
Pero la Historia hará su homenaje Pero la Historia hará su homenaje
a la figura de Antonio, el Consejero. a la figura de Antonio, el Consejero.212
212
VILA NOVA, Ivanildo. Interpoética.
112
ANEXO II
O HOMEM QUE VINGOU O SERTÃO.
Testemunhei in loco as ações militares em Belo Monte. Constatei a ferocidade
dos combates. Vi o desespero dos soldados e dos comandantes diante da bravura e da
resistência dos sertanejos. Estes defendiam suas famílias, suas terras, suas casas, suas
igrejas. Em geral, só reagiam quando atacados. Entretanto, tomados de ódio e
ansiedade, os militares perpetraram diversas atrocidades contra os camponeses: homens
e mulheres, velhos e crianças. Lançaram bombas de dinamite e incendiaram a cidadela,
destruindo-a totalmente. Mataram a sangue-frio, humilharam os sobreviventes,
traficaram órfãos. Entre tais crimes avulta a infame degola, a terrível gravata vermelha,
aplicada aos prisioneiros que se entregaram e, ainda assim, foram executados friamente.
Cidadãos, não houve a Guerra de Canudos!
O que houve foi o ataque brutal de um exército regular contra um povo
destemido, entocado em sua cidadela, sem preparo nem vocação militar, mas cioso de
seu sagrado direito de defesa, ainda que movido unicamente pela fé e pela honra. Eles
pereceram, mas os soldados não triunfaram.
Encerrou-se, no vasto teatro do sertão, uma tragédia: o terrível massacre do
Arraial do Belo Monte!213
213
FONSECA, A. Testemunho de Euclides. In: O pêndulo de Euclides, pp.182-184.
113
ANEXO III
CANUDOS ANTES DA GUERRA
214
(...)
Naquela terra eles plantam
Mandioca, milho e feijão
Criam carneiros e bodes
Que agüentam o sol do sertão
Trabalhando, a comunidade
Reparte em igualdade
A safra do mutirão
(...) 215
No faltaba que comer. Había granos, legumbres, carnes, y, como el Vassa
Barris tenía agua, se podía sembrar. Los que llegaban traían provisiones y de otros
pueblos solían mandarles aves, conejos, cerdos, cereales, chivos.216
… las gentes no venían a Canudos atraídas por la codicia o la idea de
prosperidad material. La comunidad vivía entregada a ocupaciones espirituales:
oraciones, entierros, ayunos, procesiones, la construcción del Templo del Buen Jesús y,
sobre todo, los consejos del atardecer que podían prolongarse hasta tarde en la noche y
durante los cuales todo se interrumpía en Canudos.217
214
Reprodução do arraial de Canudos feita por anônimo. 215
Zé Antônio, O guerreiro de Belo Monte contra a prudente matadeira. Imprenta, Aracaju, 1992. p.26. 216
VARGAS LLOSA, M. Libro Uno, quarto capítulo, p. 62. 217
Ibid. p. 64.
114
ANEXO IV
21 DE NOVEMBRO DE 1896
Pintura de Trípoli Gaudenzi
Não pareciam guerreiros
Símbolos da paz portavam
A bandeira do Divino
E ao som de Kyries marchavam,
Levando uma grande cruz,
De longe se anunciavam.218
Zé Guilherme
Un extraño grito de guerra – !Viva el Consejero!, ¡Viva el Buen Jesús! –
conmovió a los elegidos, que, azuzados por el júbilo, apresuraron el paso. […] Ni la
cruz ni la bandera, en las varias horas de lucha y confusión, dejaron de estar erecta la
una y danzante la otra, en medio de una isla de cruzados que, aunque acribillada,
subsistió, compacta, fiel, en torno a esos emblemas en los que, más tarde, todos verían
el secreto de la victoria. Porque ni Pedrão, ni João Grande, ni la Madre de los Hombres,
que llevaba la urna con la cara del Hijo, murieron en la refriega. 219
218
www.portfolium.com.br 219
Ibid., Libro Uno, quinto capítulo, pp.82-83.
115
ANEXO V
O HAITI É AQUI.
220
Por fim os próprios prisioneiros que chegavam e eram, no fim de tantos meses
de guerra, os primeiros que apareciam. Notou-se apenas, sem que se explicasse a
singularidade, que entre eles não surgia um único homem feito. Os vencidos,
varonilmente ladeados de escoltas, eram fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao
colo crianças engelhadas como fetos, seguidas dos filhos maiores, de seis a dez anos.
Passaram pelo arraial entre compactas alas de curiosos, em que se apertavam fardas de
todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste.
As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam
olhares insaciáveis, entraram pelo largo, mal conduzindo pelo braço os filhos
pequeninos, arrastados.
Eram como animais raros num divertimento de feira.221
220
REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, N° 16. 221
CUNHA, E. Os sertões, p. 679.
116
ANEXO VI
ANTÔNIO CONSELHEIRO VIVE.
222
Mediante a sua instrução Desta forma na Bahia
Naquela sociedade Crescia a comunidade
Reinava paz e união E ao mesmo tempo crescia
Dentro do grau de igualdade Uma bonita cidade,
Com a palavra de Deus, Já Antônio Conselheiro
Ele conduzia os seus, Sonhava com o luzeiro
Era um movimento humano Da aurora de nova vida,
De feição socialista, Era qual outro Moisés,
Pois não era monarquista Conduzindo seus fiéis
!Nem era republicano. Para a terra prometida.223
222
REVISTA CARTA CAPITAL nº 171, 26/12/2001. 223
EUCLYDIANA 100 + PATATIVA DO ASSARÉ
117
ANEXO VII
CORAÇÃO DAS TREVAS NO SERTÃO BRASILEIRO
O HORROR!!! O HORROR!!!
CADÁVERES NAS RUÍNAS DE CANUDOS
224
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao
esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu
no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais
rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos
fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas
cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma
perspectiva maior, a vertigem.
Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em
que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,
abraçadas aos filhos pequeninos?...
[...]
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas,
5200, cuidadosamente contadas.225
224
BARROS, Flávio. Imagens de fotos da Guerra de Canudos. 225
CUNHA, E. Os sertões, p. 778-779.
118
ANEXO VIII
226
E o sertão é um Vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora;
o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem
a intermitência das chuvas – o espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.227
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. [...]
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a
fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso,
aparenta a translação de membros desarticulados. [...]
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. [...] Basta o
aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias
adormecidas. 228
Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a expedição iria despender
três meses para travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E
no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História,
os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs
famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil
homens!229
226
FOLHA ILUSTRADA. In: FOLHA DE S.PAULO, Domingo, 02/05/2010. 227
CUNHA, E. Os sertões, p. 135. 228
Ibid., pp. 207-208. 229
Ibid., p. 622.
119
ANEXO IX
O SERTÃO VAI VIRAR MAR
Representação do fundador do povoado, a estátua de Antônio Conselheiro parece
observar do mirante o açude de Cocorobó (à esquerda) e a nova Canudos (à direita).230
SOBRADINHO
O Homem chega e já desfaz a Natureza
Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia
Que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão231
230
FOLHA ILUSTRADA, in: FOLHA DE S.PAULO, Domingo, 02/05/2010. 231
Sá e Guarabyra, Sobradinho.
120
ANEXO X
O RESÍDUO DA PÓS-MODERNIDADE
O SERTÃO VAI VIRAR PLÁSTICO. E PASTO.
NÃO VIROU MAR. Em Queimadas, Cansanção, Monte
Santo, Canudos... a caatinga dá lugar ao plástico e ao lixo.232
METADE DA CAATINGA JÁ SE FOI
CC: Qual o problema nisto?
EM: A caatinga é uma vegetação natural com muitas funções. Ela protege e
preserva o solo. [...] Além de um bem produtivo, é um bem cultural do Brasil. O
sertanejo tem uma visão sacralizada da natureza, para ele é uma manifestação
privilegiada de Deus.
CC: O que já se perdeu?
EM: A perda é em todo o Nordeste, mas nessa região já se perdeu 50% das
caatingas. É urgente criar unidades de conservação das caatingas, não há um único
Parque Nacional.233
232
OS SERTÕES 100 ANOS DEPOIS. In.: REVISTA CARTA CAPITAL, nº 171, 26/12 2001. p. 27. 233
Ibid., Entrevista do agrônomo Eduardo de Miranda. p. 30.
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