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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS VALQUÍRIA DA SILVA MOISÉS Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way: uma leitura semiótica São Paulo 2014

Valquiria da SilvaMoises

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From jeitinho brasileiro to the Brazilian little way: a semiotics reading

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    VALQURIA DA SILVA MOISS

    Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way: uma leitura semitica

    So Paulo

    2014

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way:

    uma leitura semitica

    Valquria da Silva Moiss

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de-La-Taille

    So Paulo 2014

  • NOME: MOISS, Valquria da Silva Ttulo: Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way: uma leitura semitica Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras. Aprovada em:___ /___ /2014 Banca Examinadora Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de-La-Taille Instituio: Universidade de So Paulo (USP) Julgamento: Assinatura:

    Profa. Dra. Walkyria Maria Monte Mr Instituio: Universidade de So Paulo (USP) Julgamento: Assinatura:

    Profa. Dra. Daniela Aparecida Vendramini Zanella Instituio: Universidade de Sorocaba (UNISO) Julgamento: Assinatura:

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu pai, Zadir, e ao meu marido, Mauro (ambos in memorian), pela

    inspirao e motivao.

    minha me, Maria da Glria, pelo suporte incondicional, desde sempre.

    Aos meus filhos, Gabriel e Rafael, pela presena, incentivo e apoio

    constantes.

    minha irm, Maria do Socorro, ao meu cunhado, Aroldo, aos meus

    sobrinhos, Aroldo e Catarina, por me acompanharem em mais essa jornada.

    minha orientadora, Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de-La-Taille, pelo

    acolhimento, pela confiana, dedicao e orientao. Pela compreenso do jeito e

    por respeitar o meu jeito.

    Aos professores do Departamento de Lingustica e Semitica e do

    Departamento de Letras Modernas, em especial Prof. Dra. Walkyria Monte Mr.

    amiga e professora Maria Cristina Perez Vilas, pela dedicao e pacincia

    com todos os meus jeitos e, algumas vezes, minha falta de jeito.

    Aos meus professores da UNISO, Beatriz Gama Rodrigues, Luiz Fernando

    Gomes, Paulo Edson Alves Filho, Daniela Zanella, Roberto Abdelnur Camargo pela

    dedicao e empenho em suas atividades docentes, fonte de inspirao.

    Aos meus familiares, pelo incentivo, e em especial Estela e Mariluce, ao

    Jlio e Ivete.

    Aos amigos de outros tempos, Ana Lcia, Paulo, Marli, Wilson, Marisa,

    Roberto, Danilo, Joo Luiz, Isaltino. Joo Daniel, Clarice, Juarez, Marili, Nancy,

    Fernanda, Flora. Diva, Ben, Fran, Yscara, ngela, Eliana, Flora Regina. Regina,

    Cristina, Marisa.

    Aos amigos de novos tempos, Paulinha, Joo, Danile, Viviane, Daniella.

    Aos amigos gelogos que perduram, em especial ao Renato, Mrcio, Vitor,

    Rivaldo, Mohamad, Mariana, Raquel, Nilvana e tambm Virginia.

    Aos meus amigos de jornada uspiana Adriano, Sara, Ilca e Ivair.

    CAPES, pela concesso de minha bolsa de estudos.

  • O jeitinho brasileiro desconsidera algumas normas, mas tambm cria condies para o desenvolvimento de novas potencialidades humanas, de novas habilidades.

    Fernanda Borges

  • RESUMO

    MOISS, V. S. Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way: uma leitura semitica. So Paulo: Universidade de So Paulo, Dissertao de mestrado, 2014, 191 p.

    Este trabalho o resultado de pesquisa sobre o fenmeno sociocultural

    conhecido como jeitinho brasileiro. A anlise foi realizada sob a perspectiva da

    semitica discursiva francesa, desenvolvida por A. J. Greimas, tendo por objetivo a

    busca dos efeitos de sentido que o vocbulo e seus parassinnimos pudessem

    apresentar. O ponto de partida foi a representao grfica mostrada por Barbosa

    (2006), que ilustra o continuum entre o favor e a corrupo, entre os quais o jeito

    est posicionado, percebido como positivo, quando se aproxima do favor, e

    negativo, quando prximo da corrupo. Segundo a autora, a passagem de uma

    categoria para outra deve-se ao contexto e a relao existente entre as pessoas de

    uma determinada situao. O tema do jeitinho brasileiro requereu um estudo sobre

    cidadania, na sociedade contempornea, no tocante hierarquia e igualdade.

    Tambm abrangeu a problemtica da sociedade lquido-moderna, apresentada por

    Z. Bauman, e o dilema da escolha entre o indivduo e o cidado. Para alcanar o

    objetivo de estudar o campo semntico e discursivo do vocbulo jeitinho e de seus

    parassinnimos, a minha escolha incidiu sobre o estudo de textos que ilustram

    diferentes situaes de ocorrncia e os efeitos de sentido que cada exemplo

    propicia. Os textos que compuseram o corpus da pesquisa, e nos quais pude

    identificar as variaes do jeitinho, permitiram expanso do eixo apresentado por

    Barbosa (2006). Dessa forma, propus uma gradao mais detalhada para a gama

    semntica do jeitinho brasileiro, a partir da colocao de cada caso estudado em

    um ponto aproximado, entre o favor e a corrupo. Solidariedade, sobrevivncia,

    habilidade, criatividade, flexibilidade, improvisao, charme, simpatia, malandragem,

    prevaricao, hipocrisia, flexibilidade moral foram algumas das possibilidades

    presentes nos textos analisados.

    Palavras-chave: jeitinho, jeitinho brasileiro, Brazilian way, cidadania, semitica

    discursiva francesa.

  • ABSTRACT

    MOISS, V.S. From jeitinho brasileiro to the Brazilian little way: a semiotics reading. So Paulo: Universidade de So Paulo, Dissertao de mestrado, 2014, 191 p.

    This essay is the result of a research about the sociocultural phenomenon

    known as jeitinho brasileiro. The analysis was taken under the perspective of

    French discourse semiotics, developed by A. J. Greimas, having as objective the

    search for the meaning effects the word jeitinho and its parasynonyms could

    present. Its revisits Barbosa (2006) and her graphic representation that illustrates a

    continuum between favor and corruption, along which the jeito takes place,

    perceived as positive when close to favor or negative when close to corruption.

    According to the author, the shift from one category to another (favor to corruption

    and vice-versa) depends on the context and the relationship among the participants

    of a given situation. The theme jeitinho brasileiro also demanded studies about

    citizenship in contemporary society, focusing on hierarchy and equality. It has

    comprehended the problematical of the liquid modern society introduced by Z.

    Bauman and the dilemma in choosing to focus the individual or the citizen. To reach

    the objective of studying the semantic and discourse field of the word jeitinho and

    its parasynonyms, my choice lay on the study of texts which illustrate different

    occurrences and the meaning effects each example allows for. The corpus provided

    us an expansion of the axis proposed by Barbosa (2006), by means of the variety of

    examples and usages identified. Thus, I propose a more detailed gradation to the

    semantic range of the jeitinho brasileiro, by placing each study on an area between

    favor and corruption, according to the semantic field implied by each study.

    Solidarity, survival, roguery, prevaricao, hypocrisy, moral flexibility were some of

    the possibilities presented in the texts analyzed.

    Keywords: jeitinho, jeitinho brasileiro, Brazilian way, citizenship, French

    discourse semiotics.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................ 9

    O jeitinho: pessoal ou impessoal; resistncia, criatividade ou burla? ............. 9

    Objetivos e justificativa .......................................................................................... 37

    Mtodo e corpus ...................................................................................................... 40

    1. O QUE O JEITINHO....................................................................................... 47

    1.1 Introduo ao Estudo Lexical ........................................................................ 47

    1.2 O jeito ............................................................................................................. 49

    1.3 Do jeito ao jeitinho .................................................................................... 63

    1.4 Do Jeitinho ao Jeitinho Brasileiro ........................................................... 67

    1.5 Habilidade ......................................................................................................... 73

    1.6 Improviso .......................................................................................................... 75

    1.7 Flexibilidade ...................................................................................................... 78

    1.8 Criatividade ....................................................................................................... 81

    1.9 Favor.................................................................................................................. 85

    1.10 Corrupo ........................................................................................................ 88

    1.11 Flexibilidade moral .......................................................................................... 94

    1.12 Quanto jeito!!! .................................................................................................. 96

    2. JEITO, JEITINHO, JEITINHO BRASILEIRO, BRAZILIAN (LITTLE) WAY .......... 98

    2.1 Antonico, me faz um favor... .......................................................................... 100

    2.2 Soldados brasileiros durante a campanha dos Apeninos na Segunda

    Guerra Mundial: o jeitinho, a criatividade e a sobrevivncia ........................ 106

    2.3 Na linha de produo: um caso de criatividade e jeitinho brasileiro......... 110

    2.4 Moa deitada na grama: simpatia, charme e jeitinho .............................. 116

  • 2.5 A flexibilidade moral em A carteira, de Machado de Assis ........................ 126

    2.6 Abrigo de vagabundos: jeitinho, arranjo, prevaricao ou solidariedade e

    sobrevivncia? ...................................................................................................... 137

    2.7 Jeitinho Brasileiro em uma cano: hipocrisia e corrupo... No tem jeito?

    ................................................................................................................................ 144

    2.8 Leitura do jeitinho brasileiro por estrangeiros ............................................ 152

    2.9 Afinal, como se diz jeitinho brasileiro em ingls? ................................... 161

    2.9.1 Ability ..................................................................................................... 164

    2.9.2 Little way ................................................................................................ 164

    2.9.3 Knack ..................................................................................................... 165

    2.9.4 Twist ...................................................................................................... 166

    2.9.5 Fix .......................................................................................................... 166

    2.9.6 Ingenious fix ........................................................................................... 167

    2.9.7 Way ........................................................................................................ 168

    2.9.8 Brazilian Way ......................................................................................... 168

    2.9.9 Clever Dodge ......................................................................................... 170

    2.9.10 Pull String .............................................................................................. 171

    2.9.11 Cut through red tape .............................................................................. 172

    2.9.12 Work (sth) out; Have to; Help (sb) out; Get out of; Find a way round.... 173

    2.9.13 Brazilian jeitinho ..................................................................................... 174

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 175

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 181

    ANEXOS ................................................................................................................. 188

  • 9

    INTRODUO

    O jeitinho: pessoal ou impessoal; resistncia, criatividade ou burla?

    Quebrar um galho. Uma mo lava a outra. Quem no chora no mama.

    Na vida s no h remdio para a morte. Chorar as pitangas. Que vantagem

    Maria leva. Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. Hoje ele, mas amanh pode ser

    eu. No nego nada a ningum, ajudo a quem posso. Todo mundo faz, no vou

    ficar de fora. Quem usa esperto, quem no usa otrio. Mexer os pauzinhos.

    A gente se vira. Isso apenas uma formalidade. Vamos fazer um rolo. De uma

    boa conversa ningum escapa.

    Quem j no ouviu falar ou at fez uso de dizeres como estes? Todas essas

    expresses nos remetem ao que popularmente conhecido como jeitinho

    brasileiro.

    Assim, a pesquisa sobre o jeitinho brasileiro decorre do anseio por discutir

    questes relacionadas aos valores e tica em nossa sociedade. Por que

    especificamente o jeitinho?

    O jeitinho, tal como visto a partir dessas frases, sempre me causou certo

    desconforto, e porque negar, at algum preconceito. Ele considerado uma das

    formas representativas do modo de ser do brasileiro e no exterior , muitas vezes,

    associado a uma forma nada lisonjeira de nos identificar. Nunca julguei que essa

    representao fosse apropriada, no s a mim, como a tantos outros brasileiros que

    tm seu comportamento pautado por normas, e no por ignor-las. Enfim,

    compreendia o jeitinho como algo unicamente negativo.

    Concebia cidadania como um sistema de leis e regras universais que vale

    para todos em todo e qualquer espao social. Quando presenciava fatos rotineiros

    nos quais apenas o interesse pessoal era levado em conta, em detrimento do direito

    de todas as outras pessoas, a sensao de ter meus direitos deixados margem por

    aqueles que julgavam serem capazes de se sobrepor, como se estivessem em um

    mundo em que a eles tudo fosse permitido, causava-me indignao. Seria como se

    fosse o mundo da casa1, em que as pessoas desse universo tudo pudessem.

    1 Roberto DaMatta (1986) retrata assim o mundo da casa: ... na casa podemos ter de tudo, como se

    ali o espao fosse marcado por um supremo reconhecimento pessoal: uma espcie

  • 10

    Como educadora e professora de lngua inglesa, sempre preocupei-me com a

    formao de alunos que desenvolvessem o senso crtico, com condies para refletir

    e discutir questes, fossem elas poltico-sociais, culturais ou de outra ordem, que

    fizessem parte do seu dia-a-dia; que fossem usurios competentes da lngua

    materna e da lngua de comunicao mundial, em uma era globalizada e

    multicultural. Dessa forma, meu projeto educacional esboou-se com o objetivo de

    colaborar na formao de indivduos para o exerccio de uma cidadania plena e do

    mundo.

    Entretanto, a preocupao com a formao integral do cidado por meio da

    educao e a discusso sobre a cidadania e seu exerccio no est restrita apenas

    ao ambiente educacional, um anseio de toda sociedade.

    Procurar respostas para a pergunta como a escola favorece o exerccio da

    cidadania? foi o incio do meu percurso na pesquisa.

    Primeiramente, procurei responder questo o que cidadania?.

    Cidadania2 provm do latim, civita, relativo cidade, e conferida a um indivduo, a

    palavra serve para classific-lo na esfera pblica.

    Com o intuito de enriquecer o debate, e estabelecer um dilogo entre

    diferentes autores brasileiros sobre o tema, apresento algumas definies de

    cidadania.

    Para o escritor e historiador Jaime Pinsky,

    Ser cidado ter direito vida, liberdade, propriedade, igualdade perante a lei: , em resumo, ter direitos civis. tambm participar no destino da sociedade, votar e ser votado, ter direitos polticos, [e] direitos sociais, aqueles que garantem a participao do indivduo na riqueza coletiva: o direito educao, ao trabalho, ao salrio justo, sade e uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena ter direitos civis, polticos e sociais (PINSKY, 2008, p. 9).

    J para o jurista Dalmo Dallari:

    A cidadania expressa um conjunto de direitos que d pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo do seu povo.

    de supercidadania que contrasta terrivelmente com a ausncia total de reconhecimento que existe na rua. (p. 28) 2 Cidadania, segundo Houaiss, a condio de pessoa que, como membro de um Estado, se acha

    no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida poltica. Cidado o indivduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e polticos por este garantidos e desempenha os deveres que, nesta condio, lhe so atribudos.

  • 11

    Quem no tem cidadania est marginalizado ou excludo da vida social e da tomada de decises, ficando numa posio de inferioridade dentro do grupo social (DALLARI, 1998, p.14).

    A sociloga e educadora Maria Victria Benevides assim discorre sobre o

    tema:

    O cidado, alm de ser algum que exerce direitos, cumpre deveres ou goza de liberdades em relao ao Estado, tambm titular, ainda que parcialmente, de uma funo ou poder pblico. Isso significa que a antiga e persistente distino entre a esfera do Estado e a da Sociedade Civil esbate-se, perdendo a tradicional nitidez. Alm disso, essa possibilidade de participao direta no exerccio do poder poltico confirma a soberania popular como elemento essencial da democracia. Refora, ademais, a importncia de se somarem direitos polticos aos direitos sociais pois os direitos polticos favorecem a organizao para a reclamao dos direitos sociais. Como lembra Marilena Chau, a cidadania se define pelos princpios da democracia, significando necessariamente conquista e consolidao social e poltica. A cidadania exige instituies, mediaes e comportamentos prprios, constituindo-se na criao de espaos sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definio de instituies permanentes para a expresso poltica, como partidos, legislao e rgos do poder pblico. Distingue-se, portanto, a cidadania passiva aquela que outorgada pelo Estado, com a ideia moral do favor e da tutela da cidadania ativa, aquela que institui o cidado como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaos de participao poltica (BENEVIDES, 1994, p. 9).

    A cientista social Maria de Lourdes Manzini Covre, aps discutir diversas

    definies de cidadania, em diferentes regimes, sistemas polticos, classes sociais e

    contextos histricos, apresenta, como sntese, o que se segue:

    A cidadania o prprio direito vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construdo coletivamente, no s em termos do atendimento s necessidades bsicas, mas de acesso a todos os nveis de existncia, incluindo o mais abrangente, o papel do(s) homem(s) no Universo (COVRE, 2002, p. 11).

    Assim, a partir do quadro apresentado, analiso as definies, comparando-as

    entre si, buscando resposta para a pergunta o que cidadania.

    Entre os autores citados, todos parecem considerar a cidadania como

    sinnimo de participao. Ela construda, conquistada, a partir da capacidade de

    organizao, participao e interveno social.

    Em que pesem as diferenas filosficas de cada autor, no mbito dos

    direitos que a cidadania se constitui. Ou seja, cidado aquele que exerce direitos,

  • 12

    mas principalmente aquele que conquista, amplia, cria novos direitos, a partir do

    direito bsico, que so os Direitos Humanos.

    Contudo, alm de direitos, cidadania envolve tambm deveres. H uma

    reciprocidade entre eles. Conforme afirma Pinsky (1998):

    Exigir direitos parte da cidadania, mas respeitar os contratos sociais sua contrapartida. Talvez por fazermos a nossa parte ou no termos a conscincia de pertencer a um coletivo que somos to condescendentes com irregularidades que acabam prejudicando todos. E o fato de mantermos a maioria da populao sem os direitos bsicos de cidadania nos impede de construir a Nao-cidad que arrotamos desejar (PINSKY, 1998, p. 19).

    O autor, acima, sinaliza um dos maiores problemas que permeia a sociedade

    brasileira, e que, de certa forma, dificulta a participao do sujeito para conquista da

    cidadania: a ausncia dos direitos bsicos. Sem direitos, o indivduo busca soluo

    para seus problemas como pode, da forma que d. D um jeito...

    Na procura dos motivos que dificultam o acesso da maioria da populao aos

    direitos bsicos, julguei importante fazer uma reflexo acerca de uma prtica da

    Histria do Brasil. Entre as heranas deixadas pelos colonizadores portugueses est

    o patrimonialismo. poca do Imprio era difcil para os indivduos que ocupavam

    posies pblicas fazerem distino entre o pblico e o privado, pois foram formados

    em um ambiente no qual tal diferenciao no se fazia presente, conforme cita

    Holanda (1995), em seu livro Razes do Brasil: A escolha dos homens que iro

    exercer funes pblicas faz-se de acordo com a confiana que merecem os

    candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades prprias

    (HOLANDA, 1995, p. 145).

    fato que a nossa sociedade est historicamente calcada nos interesses do

    indivduo em detrimento do coletivo, o privado se sobrepe ao pblico, e isso traz

    reflexo para a sociedade atual. Zanella (2008), em um artigo sobre educao e

    cidadania, discute o patrimonialismo histrico na cultura brasileira:

    Como resultado dessa herana, vemos obliterado o reconhecimento e conscincia do direito cidadania. Bom retrato dessas caractersticas so os costumes e frases que, incorporadas ao nosso cotidiano, apresentam-se como faceta do patrimonialismo que marca nossa cultura: o jeitinho, a noo de que o melhor levar vantagem em tudo, certo?, as formas de resolver conflitos pautadas no bordo voc sabe com quem est falando? (ZANELLA, 2008, p.87).

  • 13

    Enquanto a autora descreve os resultados do comportamento do brasileiro,

    em relao ao interesse coletivo, oriundo do patrimonialismo, Carvalho aponta suas

    causas em dois momentos histricos diferentes. No primeiro:

    Diante dessa realidade, as elites ilustradas, agentes da modernizao, de cima para baixo, se mostraram muito mais eficientes em cooptar setores dominantes do que em atrair a populao para dentro do sistema. A maioria da populao, excluda do voto, em 1881, viu, sim, a cara do Estado, e neste sentido, que se pode chamar de fraco, passou a condio de sdita. No episdio da guerra, possvel mesmo que o Estado, ou pelo menos os smbolos nacionais que ele administrava, tenham exercido alguma atrao. Mas, pelo resto, a cara do Estado que a populao viu era pouco atraente, como no servio da Guarda, na exigncia de registro civil, no recenseamento. Em alguns casos, penso sobretudo no recrutamento, ela era repulsiva. As leis reformadoras e os novos deveres cvicos introduziam na vida cotidiana mudanas cujo sentido no era compreendido. Nesse sentido que foi usada a expresso de cidados em negativo. Havia um potencial de participao que no encontrava canais de expresso dentro do arcabouo institucional e que, tambm, no tinha condies de articular arcabouo alternativo. O brasileiro foi forado a tomar conhecimento do Estado e das decises polticas, mas de maneira a no desenvolver lealdade em relao s instituies (CARVALHO, 1996, p. 356).

    Conforme aponta o autor, no sculo XIX, no Brasil, os principais pontos de

    contato entre o cidado e o Estado foram a Guarda Nacional, o servio militar, o

    servio de jri, o recenseamento, o registro civil, alm da poltica de votar e ser

    votado. Assim, a centralidade do Estado no indicava seu carter pblico e

    universalista, pois ele era muito mais eficiente em cooptar setores dominantes do

    que em atrair a populao para dentro do sistema (p. 356). Dessa forma, h a

    predominncia de uma cultura poltica sdita, ou como afirma Carvalho de uma

    cidadania construda de cima para baixo3.

    3 Jos Murilo de Carvalho afirma a importncia de alguns movimentos que atuavam de baixo para

    cima e que no podem deixar de ser chamados de cidadania, mesmo que em negativo: Em todos esses movimentos, e em outros ainda maiores que se deram aps a queda do Imprio, como a guerra de Canudos de 1897 e a revolta da Vacina de 1904, no se pode dizer que houve arbtrio da parte do governo, pelo menos at que a revolta se estabelecesse. Tratava-se de iniciativas que todos os Estados iam tomando medida que burocratizavam e secularizavam os servios pblicos retirando-os das mos da Igreja e dos grandes proprietrios. Algumas dessas iniciativas, como a do registro civil, como observa Noiriel, eram condio para a garantia judicial de vrios direitos civis e mesmo de direitos polticos. Mas eram ao mesmo tempo mudanas que interferiam no cotidiano dos cidados, alteravam comportamentos tradicionais, aumentavam o controle do governo e despertavam insegurana. Elas estendiam as malhas do governo e tiravam as pessoas de seu mundo privado, colocando-as dentro do campo da cidadania civil. Representavam a criao de cidadania de cima para baixo. As reaes a elas no podem, no entanto, ser consideradas simplesmente como recusa de cidadania. Elas eram sem dvida recusa de uma regulao vinda de cima, sem consulta e sem respeito por costumes e valores adicionais. Se verdade que as revoltas no propunham alternativa, que se limitavam recusa, tambm verdade que traziam implcita a ideia de um pacto no escrito,

  • 14

    No segundo momento, Carvalho discorre:

    A cronologia e a lgica da sequncia descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em perodo de supresso dos direitos polticos e de reduo dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos polticos, de maneira tambm bizarra. A maior expanso do direito do voto deu-se em outro perodo ditatorial, em que rgos de representao poltica foram transformados em pea decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje, muitos direitos civis, a base da sequncia de Marshall, continuam inacessveis maioria da populao. A pirmide dos direitos foi colocada de cabea para baixo (CARVALHO, 2010, p. 219).

    Segundo Carvalho (2010), ocorreu uma extrema centralizao e valorizao

    do Executivo como um dos resultados de longos e repetidos perodos ditatoriais. Isto

    favoreceu a criao da imagem do Estado todo poderoso, paternalista, distribuidor

    de empregos e favores, passando o Executivo a ser visto como o ramo do poder do

    qual vale a pena se aproximar. Segundo Carvalho (1996), os cidados buscam o

    Estado para o atendimento de interesses privados (CARVALHO, 1996, p. 339).

    Souza (2008) tambm apresenta exemplo de lei que, atualmente, na vida

    cotidiana, se no compreendida, encontra resistncia por parte da populao: a Lei

    Seca4. Promulgada em 2008, e modificada em 2011, para torn-la mais rgida, at

    recentemente algumas pessoas procuravam formas de burl-la. Uma delas seria a

    comunicao atravs de aplicativos para telefones celulares que permitiriam a

    divulgao de informao sobre a localizao de blitze da polcia para flagrar os

    infratores.

    Partindo do exemplo dado, pergunto: Por que uma lei cai em descrdito?

    Quando se estabelece rigor no cumprimento da lei, abre-se precedente para a

    corrupo burocrtica. No mesmo site5 em que se pesquisa sobre a lei seca, e no

    qual se discorre sobre seu contedo, j existem links que possibilitam o acesso aos

    modelos de formulrios para se recorrer das multas referentes s infraes da

    mesma lei. Ainda, no que se refere ao no cumprimento da lei, em todo seu rigor,

    preexistente, segundo o qual o governo no tinha o direito de interferir no cotidiano das pessoas e desrespeitar suas tradies. Dizendo no, os rebeldes estavam de alguma maneira afumando direitos, estavam fazendo poltica para garantir direitos tradicionais (CARVALHO, 1996, p. 354). 4 Lei seca: Lei n 11.705 do Cdigo de Trnsito Brasileiro, de 19 de junho de 2008, e modificada em

    16 de novembro de 2011. Com esta nova legislao, o motorista que for flagrado com nvel de lcool acima do permitido (0,1 mg/l de sangue) ter que pagar uma multa, ter o carro apreendido e ainda perde a habilitao. A pior consequncia para quem estiver embriagado (nveis acima de 0,3 mg/l): o motorista corre o risco de ser preso, e a deteno de 6 meses a 1 ano. 5 Disponvel em: . Acesso em 14 mai. 2014.

    http://www.brasilescola.com/quimica/lei-seca.htm
  • 15

    igual e indistintamente, para todos os seus cidados, tal fato pode gerar

    desconfiana em relao ao poder pblico.

    A propsito da temtica da cidadania, o jeitinho pode nos conduzir a uma

    discusso sobre a igualdade na sociedade brasileira. A autora do livro O jeitinho

    brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros6, Lvia Barbosa (2006), j, a

    partir do ttulo aborda uma questo primordial para a discusso: o que ser mais

    igual? Por que mais igual? Assim a autora discorre sobre o que afirma ser a tese da

    igualdade:

    O que afirmo nesta tese que em primeiro lugar o jeitinho um mecanismo que transforma indivduos em pessoas, escorando-se em um discurso de igualdade entre os seres humanos e na capacidade de eles se colocarem no lugar dos outros. Em segundo lugar, afirmo que a concepo brasileira de igualdade o atributo do individualismo mais enfatizado simbolicamente pela sociedade brasileira. E, em terceiro lugar, afirmo que a concepo brasileira de igualdade de igualdade substantiva, predominantemente, em relao a outros tipos como, por exemplo, igualdade de oportunidade (BARBOSA, 2006, p. XVI).

    Essa temtica da igualdade traz tona o domnio da burocracia, por ser nesta

    rea onde mais se v proliferar o expediente do dar um jeito. A organizao

    burocrtica brasileira pauta-se pela rigidez e formalismo, e procura prever todas as

    situaes possveis. Praticamente cada situao da vida do cidado requer algum

    procedimento burocrtico. So tantas exigncias e provas em contrrio... E o Estado

    se coloca na posio de quem desconfia. A recproca tambm verdadeira: o

    cidado se v cercado de exigncias que so, muitas vezes, difceis de cumprir. Ele

    se sente acuado, sem nenhum respaldo, e se v obrigado a lanar mo dos mais

    variados subterfgios.

    ento que o cidado recorre busca de solues que deixam para trs

    questes valorizadas pela burocracia como a impessoalidade, a racionalidade e o

    anonimato. Portanto, ignora-se a igualdade apregoada pela cidadania, e busca-se,

    por exemplo, atravs do despachante o profissional do jeitinho resolver

    6 Subttulo com clara meno obra de George Orwell, A revoluo dos bichos, de 1945. No livro,

    alguns animais, a propsito do sonho de viverem em uma sociedade mais igualitria e justa, e de se livrarem do jugo humano, estabelecem alguns mandamentos para reger sua sociedade, entre eles, todos os animais so iguais. Porm, os porcos, ao assumirem o poder, estabelecem um regime mais opressor e cruel que o dos homens, e o mandamento passa a ser: Todos os animais so iguais mas alguns so mais iguais que os outros. Lvia Barbosa parece fazer um convite reflexo sobre a condio de desigualdade de direitos que permeia a sociedade brasileira.

  • 16

    situaes. Outro recurso utilizado nessas circunstncias so as relaes pessoais:

    recorrer a algum amigo que tenha influncia, ou ao amigo de um amigo. Ainda pode-

    se fazer uso de certas categorias emocionais como o charme, a simpatia, a maneira

    de falar, tentando, por meio dessa interao, angariar solidariedade para a causa em

    questo.

    Talvez esse seja o limiar entre o domnio do pessoal e do impessoal, da

    pessoa e do indivduo. Talvez, nesse ponto, a discusso sobre a igualdade no seja

    mais necessria.

    O antroplogo Roberto DaMatta, estudioso do jeitinho e seus

    desdobramentos, assim escreveu, sobre o que ele nomeou como dilema brasileiro:

    O dilema brasileiro residia numa trgica oscilao entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivduo e situaes onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relaes pessoais. Haveria assim, nessa colocao, um verdadeiro combate entre as leis que devem valer para todos e relaes que evidentemente s podem funcionar para quem as tem. O resultado um sistema social dividido e at mesmo equilibrado entre duas unidades sociais bsicas: o indivduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relaes sociais que conduz ao polo tradicional do sistema). Entre os dois, o corao dos brasileiros balana. E no meio dos dois, a malandragem, o jeitinho e o famoso e antiptico sabe com quem est falando? seriam modos de enfrentar essas contradies e paradoxos de modo tipicamente brasileiro. Ou seja: fazendo uma mediao tambm pessoal entre a lei, a situao onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela implicadas, de tal sorte que nada se modifique, apenas ficando a lei um pouco desmoralizada mas, como ela insensvel e no gente como ns, todo mundo fica, como se diz, numa boa, e a vida retorna ao seu normal... (DAMATTA, 1986, p. 97-98).

    Compreendido dessa forma, o jeitinho um mecanismo que transforma

    indivduos em pessoas, uma vez que quem o usa se destaca, se separa dos demais

    membros da sociedade para se tornar uma pessoa com tratamento diferenciado,

    deixando de se submeter s leis universalizantes e impessoais s quais todos os

    cidados esto submetidos.

    A dificuldade que o brasileiro tem em lidar com a hierarquia tambm fator

    determinante para a distino entre indivduo e pessoa. A esperana em receber

    uma mo amiga ou de que algum interceda por ns, fortalece e alimenta um

    sistema em que prevalecem as aes das pessoas, que no foram orientadas para

    seguir a lei, mas sim fazer uso de uma rede de relaes. Retomando DaMatta

  • 17

    (1986), eis como o autor retrata a questo da igualdade e hierarquia, indivduo e

    pessoa na sociedade brasileira:

    No sistema social brasileiro, ento, a lei universalizante e igualitria utilizada frequentemente para servir como um elemento fundamental de sujeio e diferenciao poltica e social. Em outras palavras, as leis s se aplicam aos indivduos e nunca s pessoas; ou, melhor ainda, receber a letra fria e dura da lei tornar-se imediatamente um indivduo. Poder personalizar a lei sinal de que se uma pessoa. [...] Fazer leis , no Brasil, uma atividade que tanto serve para atualizar ideais democrticos quanto para impedir a organizao e a reivindicao de certas camadas da populao. [...] o sistema das leis que serve para todos e sobre o qual todos esto de acordo transforma-se num instrumento de aprisionamento da massa que deve seguir a lei, sabendo que existem pessoas bem relacionadas que nunca as obedecem. [...] Por termos leis geralmente drsticas e impossveis de serem rigorosamente acatadas, acabamos por no cumprir a lei. E, assim sendo, utilizamos o clssico jeitinho que nada mais que uma variante cordial do Voc sabe com quem est falando? e outras formas mais autoritrias que facilitam e permitem pular a lei ou nela abrir uma honrosa exceo que a confirma socialmente. Mas o uso do jeitinho e do Voc sabe com quem est falando? acaba por engendrar um fenmeno muito conhecido e generalizado entre ns: a total desconfiana nas regras e decretos universalizantes (DAMATTA, 1986, p.184).

    Conforme o que discorre DaMatta, possvel que um crculo vicioso seja

    formado, reafirmando o estado de coisas: confia-se na lei como o instrumento para

    mudar o mundo, inventam-se muitas leis e elas perdem sua eficcia, o que torna as

    relaes pessoais cada vez mais fortes, e assim por diante...

    Se difcil para o brasileiro conviver com a hierarquia, o excesso de

    formalismo na conduo da coisa pblica tambm mais uma das dificuldades que

    tenta suplantar.

    Guerreiro Ramos (1966), socilogo e poltico brasileiro, em seu livro sobre a

    administrao pblica brasileira, tambm associa o jeitinho ao excesso de

    formalismo. Eis algumas consideraes que o autor apresenta:

    O genuno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do contedo das normas, cdigos e leis. exatamente o formalismo que acarreta a prtica do jeito. Em si mesmo, o formalismo , como temos demonstrado, modalidade de estratgia. uma estratgia primria. O jeito uma estratgia de segundo grau, isto , suscitada pelo formalismo. [...] O jeito , no Brasil, processo nativo, criollo, de contornar uma dificuldade a despeito da lei e at mesmo contra ela (RAMOS, 1966, p. 380).

    J o economista, diplomata e poltico brasileiro, Roberto Campos, em seu

    livro A tcnica e o riso (1966), escreve sobre a sociologia do jeito, e relata que tinha

  • 18

    curiosidade em pesquisar as razes sociolgicas do fenmeno. Considera que duas

    podem ser as razes pelas quais ocorreu a instituio do jeitinho na sociedade

    brasileira e no nas de origem anglo-sax: uma delas que na Inglaterra, a

    burguesia mercantil estabeleceu normas jurdicas de validade mais universal; e outra

    seriam as diferentes atitudes entre latinos e anglo-saxes referentes lei e ao fato

    social. Para os saxes a lei uma cristalizao de costumes, pois codifica o

    costume corrente; uma lei raramente inexequvel, enquanto que as constituies

    latinas so normativas e regulamentares.

    Em suma, como decorrncia do percurso da pesquisa, as leituras levaram-me

    a outras inquietaes e questes:

    O jeitinho no nos proporciona condies de alcanar a cidadania? O

    usurio do jeitinho, de alguma forma, pode ser considerado menos cidado? Ou

    ainda, dando eco ao questionamento de Zanella (2008), aprendemos a ser

    cidados ou somos cidados quando aprendemos? (ZANELLA, 2008, p. 88)

    Mesmo ainda sem resposta s perguntas, foi importante observar que para

    diferentes autores (PINSKY, 2008; DALLARI, 1998; BENEVIDES, 1994; COVRE,

    2002, CARVALHO, 2010), a cidadania no Brasil ainda est em processo de

    gestao, e de alguma forma, os ideais da Revoluo Francesa a liberdade, a

    igualdade e a fraternidade que so os pilares da democracia moderna, aqui, ainda

    se encontram incipientes e distantes. a presena desses ideais que garante a

    existncia de cidados ativos, participantes.

    A discusso sobre o fenmeno da cidadania ainda um campo cheio de

    tenses e conflitos. Jos Murilo de Carvalho (2010) aponta essa problemtica

    quando afirma que

    Uma cidadania plena, que combine liberdade, participao e igualdade para todos, um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingvel. Mas ele tem servido de parmetro para julgamento da qualidade da cidadania em cada pas e em cada momento histrico. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, polticos e sociais. O cidado pleno seria aquele que fosse titular dos trs direitos (CARVALHO, 2010, p. 9).

    Partindo-se do princpio que para ser considerado um cidado pleno o

    indivduo deve gozar dos seus direitos civis, polticos e sociais, o no acesso a

    algum desses direitos no permite que o indivduo seja considerado cidado?

  • 19

    Como falar em cidado do mundo (IANNI, 2003, p. 107) se, quando se

    analisa a perspectiva do que considerado cidado pleno, no se pode constatar a

    observncia desses direitos para a grande parte da sociedade brasileira? O cidado

    do mundo estaria inserido nesse sistema em escala global, com o respeito s leis,

    segundo a relao tempo e espao (onde estou, o espao que ocupo, a cultura na

    qual estou inserido, etc.)?

    Como pode ser observado, o tema cidado do mundo traz consigo um dilema,

    pois para ser um cidado do mundo, o indivduo tem de ter alcanado primeiramente

    a cidadania plena. A cidadania do mundo ainda um esboo, est sendo criada, e

    a Declarao Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 1948,

    permanece como uma declarao de intenes, de ideais, a despeito da sua

    importncia social, poltica, econmica e cultural (IANNI, 2003, p.111).

    Ainda, segundo Ianni (2003),

    Os dilemas da cidadania, do cidado do mundo, no se limitam aos aspectos polticos, ou jurdico-polticos; envolvem tambm os sociais, econmicos e culturais. medida que caminha, o processo democrtico necessariamente compreende todos os nveis da vida social, da esfera pblica. Codificam-se democraticamente as relaes, os processos e as estruturas que constituem e movimentam a sociedade em nveis nacional e mundial (IANNI, 2003, p.113).

    Isto posto, como decorrncia do percurso da pesquisa, a resposta primeira

    pergunta proposta salientar que a sala de aula mais um espao de reflexo

    sobre a cidadania, e que pode contribuir como espao de participao. A escola no

    concede a cidadania, nem o professor dispe dessa prerrogativa. Na sala de aula

    possvel ter acesso ao conhecimento; ela se constitui como espao de reflexo e

    discusso de questes sociais, que podem incentivar uma leitura crtica da

    realidade. Essa vivncia pode contribuir para que tais questes extrapolem os muros

    da escola, alcanando outros contextos, uma vez que a cidadania no pode ficar a

    encerrada, apenas como conhecimento.

    Assim, mesmo sabendo das limitaes do trabalho docente na sala de aula,

    tambm nesse espao que pretendo contribuir como educadora e cidad, que se

    constroem cotidianamente, inclusive com a elaborao deste trabalho.

    Entretanto, importante ressaltar uma nova realidade vivida e enfrentada

    pelas diferentes salas de aula, de diferentes escolas brasileiras, e que pode ter

  • 20

    alterado a configurao do que ser cidado: a mudana de foco dos jovens.

    Bauman (2013) afirma que essa mudana de foco dos jovens pode ser definida

    como uma mudana da relevncia para a vida. Segundo o socilogo,

    A forma de vida em que a gerao jovem de hoje nasceu, de modo que no conhece nenhuma outra, uma sociedade de consumidores e uma cultura agorista inquieta e em perptua mudana que promove o culto da novidade e da contingncia aleatria. Numa sociedade e numa cultura assim, ns sofremos com o suprimento excessivo de todas as coisas, tanto os objetos de desejo quanto os de conhecimento, e com a assombrosa velocidade dos novos objetos que chegam e que vo (BAUMAN, 2013, p. 24).

    A efemeridade com que a sociedade tem encarado as coisas da vida, em que

    nada permanente, parece temerria para o desenvolvimento de qualquer tipo de

    aprendizagem. H excesso de informao, e esse excesso e a velocidade com que

    ocorre tornam difcil criar linhas de raciocnio e desenvolver narrativas. As ideias

    ficam fragmentadas, desconectadas.

    Com toda a disponibilidade de tecnologias e vivendo, segundo Bauman

    (2007), em uma sociedade lquido-moderna, em que as condies sob as quais

    agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessrio para

    a consolidao, em hbitos e rotinas, das formas de agir (BAUMAN, 2007, p. 07),

    fica difcil que todas as etapas necessrias para o aprendizado se concretizem. ,

    provavelmente, quando teremos a abertura de espaos para que se criem

    fragilidades. Acrescenta o autor que a cultura lquido-moderna no se sente mais

    uma cultura da aprendizagem da acumulao, como as culturas registradas nos

    relatos dos historiadores e etngrafos. Em vez disso, parece uma cultura do

    desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento (BAUMAN, 2013, p.36).

    Nota-se, ainda, uma crise de autoridade, tanto na escola, quanto na

    sociedade, e tambm no nvel das relaes pessoais. O desafio s autoridades,

    ordem imposta, torna-nos impotentes perante vrias situaes, e isso reflete na sala

    de aula, principalmente.

    A respeito da crise de autoridade, segundo Goergen (2007),

    As pessoas sentem-se rfs de parmetros de comportamento. Os mais jovens, vivendo o esprito da poca, so contrrios a qualquer tipo de autoridade. Os adultos sentem-se inseguros, desautorizados, sem saber o que dizer aos jovens. Sero corriqueiros o assombro e a desorientao das pessoas diante do futuro da sociedade se prosseguirem as prticas que

  • 21

    afrontam qualquer sentido de bem comum, de justia social. Por vezes, as pessoas parecem cansadas de lutar por uma sociedade melhor diante das dimenses assustadoras da barbrie; preferem desistir, encerrar-se na sua privacidade, abandonar o poltico, desestimuladas pela sensao de impotncia perante as interminveis sries de abusos que se sucedem diante de seus olhos. Embora seja compreensvel, essa atitude encerra o grande risco de deixar o campo livre para que as contravenes sejam toleradas como uma rotina inevitvel, contra a qual no h o que fazer. Penso que a luta em defesa de uma sociedade livre e justa no pode ser abandonada e acredito que educao cabe um papel importante nessa tarefa (GOERGEN, 2007, p. 744).

    Neste cenrio de incertezas, em que vivemos uma nova tica e moral, tal

    discusso sobre a temtica proposta pelo autor se faz importante na formao para

    a cidadania. A preocupao com a justia social e a luta por uma sociedade livre

    cabem educao, inclusive para que os abusos e contravenes, citados por

    Goergen (2007), no venham a ocorrer, nem passem a ser tolerados...

    Na sociedade contempornea, se pensarmos que vivemos a emergncia de

    uma sociedade lquido-moderna, consumista, e em crise de identidade e de

    autoridade, em que tudo o que estabelecido logo se desfaz; uma sociedade em

    que o privado se sobrepe ao pblico (GOERGEN, 2007, p. 744), seria correto

    atribuir ao jeitinho o papel de vilo na composio da sociedade brasileira e de seu

    povo?

    Assim como de uma boa conversa ningum escapa, tambm no pude

    deixar de me submeter necessidade de examinar o jeitinho para alm da

    conotao negativa. Por que a gente se vira, quebra um galho, faz uma

    gambiarra no podem expressar um jeitinho criativo, que caracteriza a habilidade

    de improvisao atribuda ao povo brasileiro? Podem esses diferentes jeitinhos

    coexistir sob a gide da tica7?

    A leitura de textos de pesquisadores de diversas reas das Cincias

    Humanas8, que com diferentes abordagens apresentam a histria da formao e

    desenvolvimento do povo brasileiro, propiciaram-me as condies de ampliar a viso

    que tinha sobre o assunto: Srgio Buarque de Holanda (1995), Gilberto Freyre

    7Em Houaiss, tica : 1. parte da filosofia responsvel pela investigao dos princpios que motivam,

    distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essncia das normas, valores, prescries e exortaes presentes em qualquer realidade social. 2. conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivduo, de um grupo social ou de uma sociedade. 8Antropologia, Sociologia, Histria, Cincias Polticas e Sociais, Filosofia.

  • 22

    (1995), Antonio Candido (1970), Raymundo Faoro (1976), Roberto Schwarz (1997).

    Em relao ao discurso fundador, sobre a formao do pas e a construo da

    identidade nacional, Eni P. Orlandi (2003, 2008) foi uma das referncias, juntamente

    com Marilena Chau (2000). Alguns estudos particulares, como a Fenomenologia do

    brasileiro, do filsofo Vlem Flusser (1998), ou Brasil para principiantes, de Peter

    Kelleman (1964), apresentaram contribuies relativas ao olhar estrangeiro sobre o

    brasileiro. Quanto ao tema de estudo desta pesquisa - jeitinho brasileiro - as

    principais fontes investigadas foram Roberto DaMatta (1983, 1986, 2004), Lvia

    Barbosa (2006), Alberto Carlos Almeida (2007), Loureno Stelio Rega (2000),

    Fernanda Borges (2006), Venceslau Alves de Souza (2008), entre outros.

    Um novo panorama foi-se configurando conforme a pesquisa sobre o tema

    avanava. O sentimento de preconceito foi-se dissipando, abrindo espao para uma

    viso mais ampla do que ser brasileiro.

    O brasileiro o resultado da miscigenao do branco, negro e ndio de

    Gilberto Freyre. aquele que desenvolve um racismo brasileira, o preconceito de

    ter preconceito, nas palavras de Florestan Fernandes9. o homem cordial, hoje to

    criticado, de Srgio Buarque de Holanda, com sua afabilidade, candura e singeleza,

    hospitalidade, generosidade, expresses de um carter emotivo. o povo do pas

    da Copa de 2014 e das filas interminveis nos hospitais da rede pblica. Dos que

    vivem atrs de fortalezas e dos que esto expostos violncia urbana. So homens

    e mulheres do frevo, do samba, da bossa-nova, da Tropiclia, dos Mutantes, dos

    festivais, da MPB, dos sertanejos, do forr, do funk. Do brega e do chique. Dos que

    agregam e dos diferenciados. o povo que no carnaval subverte a ordem,

    transveste-se do que quiser. Do Brasil do ame-o ou deixe-o e do abaixo a

    ditadura! Daquele que aceita que tudo acabe em pizza, dos caras-pintadas e de

    ambos. aquele que defende os animais de maus-tratos e que pratica o trfico de

    animais silvestres. aquele que reclama dos efeitos das enchentes, mas lana lixo

    nos crregos e bueiros. o povo do sincretismo religioso. Aquele que pessimista e

    no v perspectiva para o futuro do pas, e o que sempre enxerga grandes

    possibilidades frente. Faz parte daqueles que fazem campanhas pela

    responsabilidade ao volante, e dos tantos outros que se recusam ao teste do

    9 In Roberto DaMatta (2004, p. 25).

  • 23

    bafmetro. Da feijoada, da comida baiana, do acaraj, da cozinha mineira, do po de

    queijo, do frango caipira, da mistura do arroz com feijo, do churrasco e da

    caipirinha. Dos que do um jeitinho. Enfim, o brasileiro pode ser tudo o que se diz

    dele.

    Roberto DaMatta (1986), quando busca esclarecer como se constri uma

    identidade nacional, pondera entre outras coisas, o que faz com que um indivduo

    seja brasileiro ou americano. Aps somar os traos apresentados, pode-se dizer

    quem o brasileiro , em contraste com o americano. Dessa forma o autor apresenta

    sua descoberta:

    certo que inventei um brasileiro e um americano que o acompanhava por contraste linhas atrs, mas quem me garante que aquilo que disse convincente para definir um brasileiro foi a prpria sociedade brasileira. Ou seja: quando eu defini o brasileiro como sendo amante do futebol, da msica popular, do carnaval, da comida misturada, dos amigos e dos parentes, dos santos e dos orixs etc., usei uma frmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser humano realizar-se concretamente como brasileiro a sua disponibilidade de ser assim (DAMATTA, 1986, p.18).

    O contraste apresentado por DaMatta tambm abordado por Caetano

    Veloso em Americanos10, msica de sua autoria, na qual se ouve: ...Para os

    americanos branco branco, preto preto/ (e a mulata no a tal) ... Tal aluso

    corrobora com a ideia de que uma das diferenas bsicas entre brasileiros e

    americanos relativa mistura. Entre ns brasileiros h a valorizao da mulata,

    das nossas tantas Gabrielas, do cheiro do cravo e da cor da canela. L elas nem

    existem ou so alvo do mais explcito preconceito.

    No que o preconceito aqui tambm no exista. Existe e velado, s

    escondidas. Segundo o ilustrssimo professor Florestan Fernandes, a democracia

    racial no Brasil um mito social, criado pela maioria, tendo em vista interesses

    sociais e valores morais. Vrias so as formas de preconceito racial: o americano

    explcito, aberto e sistemtico; o brasileiro, dissimulado e assistemtico. Assim

    explica o socilogo:

    Surgiu no Brasil uma espcie de preconceito reativo: o preconceito contra o preconceito de ter preconceito. Ao que parece, entendia-se que ter preconceito seria degradante e o esforo maior passou a ser o de combater

    10

    Disponvel em: . Acesso: 17 nov. 2012.

  • 24

    a ideia de que existiria preconceito no Brasil, sem se fazer nada no sentido de melhorar a situao do negro e de acabar com as misrias inerentes ao seu destino humano na sociedade brasileira (FERNANDES et al. 2005-2006, p. 173-174).

    Como assinala o professor, a preocupao nunca foi resolver a questo. Para

    que se alcanasse a apregoada democracia racial, negros e mulatos precisariam

    confundir-se com o branco num mundo de igualdade de oportunidades para todos,

    independentemente da cor da pele e da extrao social (Ibidem, p. 174-175).

    E por que no Brasil a mulata desfruta de sucesso? De acordo com o socilogo

    Oracy Nogueira (Ibidem, p.178), entre os tipos de preconceito, o do americano de

    origem, de ascendncia e sangue, que segregacionista e racista, enquanto que o

    brasileiro de marca, com ideologia assimilacionista e miscigenacionista, interessam

    os seus traos, vale a aparncia fsica, e pode ser contrabalanado com

    caractersticas como elegncia, talento, polidez, instruo. No caso da mulata, em

    geral, o que conta so seus atributos fsicos.

    Portanto, a comparao entre os modelos de preconceito de americanos e

    brasileiros deixa a falsa impresso de que no Brasil no h discriminao racial.

    O professor Joo Baptista Borges Pereira, respondendo pergunta: Existe

    preconceito racial no Brasil?, discorre sobre o assunto:

    O preconceito racial apenas uma modalidade de preconceito. Em sentido amplo, encontrado em todas as sociedades humanas. O preconceito ex-presso do que em antropologia se denomina etnocentrismo. Em seguida, explica que etnocentrismo a tendncia, ao que tudo indica universal, que leva indivduos, grupos e povos supervalorizao de suas prprias expresses de vida, conduzindo-as, consequentemente, a subestimar as caractersticas de outros indivduos, grupos e povos. Atrs do preconceito est a imagem estereotipada do outro, do estranho, a exaltar qualidade, a enxergar defeitos (Ibidem, p. 175).

    A anlise da definio dada pelo professor Pereira, sugere um

    questionamento: o jeitinho, tal como visto pela estrangeiro, no seria tambm

    uma forma de preconceito?

    Como falar do Brasil, do jeitinho, de esteretipo, e no falar de futebol?

    Enquanto elaboro este texto vivemos s vsperas da Copa do Mundo da FIFA

    de 2014. Notcias que do eco a todo tipo de esteretipo sobre o pas pululam em

    todas as mdias. Vale ressaltar que, apesar da relevncia do tema, este no o foco

    do trabalho, portanto, ser brevemente abordado. O Brasil visto e conhecido como

  • 25

    o pas do futebol, imagem adquirida aps a conquista do primeiro ttulo mundial na

    Sucia, em 1958, e confirmada aps a sucesso de ttulos obtidos em 1962, 1970,

    1994, 2002. E existe um enorme desejo e torcida pela conquista do

    hexacampeonato em 2014, com a realizao da Copa em solo brasileiro. H

    discusses sobre como o fenmeno futebol tratado, chamado por alguns, ao lado

    da religio, de pio do povo. Waldenir Caldas, socilogo e professor, autor do

    artigo O futebol no pas do futebol, conta que o brasilianista Robert M. Levine,

    historiador americano, era partidrio da concepo do futebol como pio do povo,

    que serviria de instrumento para classe dominante manipular as massas como

    forma de sublimar a misria e as desventuras da pobreza atravs do sucesso

    meterico da conquista de um campeonato domstico ou internacional (LEVINE,

    apud CALDAS, 1986). O prprio Caldas discorda dessa posio. Para ele, todo

    fenmeno social de grande ressonncia popular (no Brasil, o carnaval e o futebol)

    possui importncia social e poltica incontestvel. [...] Transform-las sempre em

    pio do povo, em algo alienante, corresponde a ter uma viso unilateral e

    maniquesta dos processos sociais (CALDAS, 1986). A questo o uso poltico-

    ideolgico que o Estado faz dessas manifestaes, sejam elas de cunho esportivo,

    artstico ou de outra ordem.

    No presente momento, apesar de o discurso dos governos federal, estaduais

    e municipais reafirmarem a importncia da realizao da Copa aqui e agora,

    algumas manifestaes populares apontam para uma situao diferente. Uma parte

    do povo com outras preocupaes, ameaando colocar em risco a realizao do

    evento, questionando tudo que foi feito, como foi feito, e cobrando outras

    prioridades.

    Contudo, quando se ouve o hino oficial11 da Copa de autoria de Alexandre

    Pires entre outros interpretado por gringos, em sua maioria (Santana, Wyclef

    Jean, Avicii e Alexandre Pires), fazer meno a Dar um jeito (We will find a way)12,

    11

    One Love, One Rhythm The 2014 FIFA World Cup Official Album apresenta We Are One (Ole Ola) como a cano oficial da Copa do Mundo FIFA 2014 e Dar Um Jeito (We Will Find a Way) como o hino oficial da Copa do Mundo FIFA 2014. Dar um jeito (We Will Find a Way) foi composta por Alexandre Pires, Arash Pournouri, Rami Yacoub, Carl Falk, Tim Berling, Arnon Woolfson, Diogo Vianna e Wyclef Jean. Disponvel em . Acesso em: 15 jun. 2014. 12

    Disponvel em: . Acesso em: 25 mai. 2014.

    http://www.vagalume.com.br/santana/dar-um-jeito-we-will-find-a-way-feat-wyclef-jean-alexandre-pires-avicii.html#ixzz32ZZk4wIzhttp://www.vagalume.com.br/santana/dar-um-jeito-we-will-find-a-way-feat-wyclef-jean-alexandre-pires-avicii.html#ixzz32ZZk4wIz
  • 26

    traduzido como Ns vamos achar uma soluo, surge a pergunta: Vamos achar uma

    soluo para o qu?

    Apesar de ser um hino de alcance mundial, as duas primeiras estrofes fazem

    meno luta pela sobrevivncia e no h como deixar de identificar a aluso

    desses primeiros versos situao vivida pela maioria do povo brasileiro. A cano,

    no trecho que se refere s agruras, est em ingls, sem verso para o portugus.

    Entretanto, a letra apresenta uma soluo: se voc tem fome, mas sente o calor e a

    vibrao, tem fora de vontade e f, acredita no seu sonho, acredita na sua estrela,

    voc vai alcanar o sucesso e a fama. interessante ressaltar que este trecho, de

    exaltao do sucesso, cantado na lngua ptria.

    O sujeito da cano convidado a crer que alcanar sucesso e fama depende

    unicamente de sua atuao No entanto, Bauman discorre que o processo de

    individualizao uma fatalidade, e no uma escolha; e a autossuficincia, uma

    iluso. E acrescenta:

    Que homens e mulheres no tenham nada a que culpar por suas frustaes e problemas no precisa agora significar, no mais que no passado, que possam se proteger contra a frustrao utilizando suas prprias estratgias, ou que escapem de seus problemas puxando-se, como o Baro de Munchausen, pelas prprias botas. E, no entanto, se ficam doentes, supe-se que foi porque no foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos, se ficam desempregados, foi porque no aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque so, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se no esto seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, porque no so suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto expresso e da impresso que causam. Isto , em todo caso, o que lhes dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. Como Beck adequada e pungentemente diz, a maneira como se vive torna-se uma soluo biogrfica das contradies sistmicas. Riscos e contradies continuam a ser socialmente produzidos; so apenas o dever e a necessidade de enfrent-los que esto sendo individualizados (BAUMAN, 2001, p. 43).

    Bauman parece alertar para o fato de que as solues biogrficas dos

    sujeitos, ou ditas de outro modo, solues individualizadas, reduzem a complexidade

    do espao social onde as contradies da existncia individual so coletivamente

    produzidas (BAUMAN, 2001, p. 48).

    O futebol como fator de incluso e ascenso social parece fazer parte dessa

    soluo biogrfica para a vida de alguns brasileiros, como ilustra o funk, de MC

  • 27

    Guim, Pas do futebol13. Nele, repete-se a mesma frmula do hino da Copa: o

    menino da favela, que chama a ateno para o lugar em que chegou, que andava

    descalo, jogando futebol, no campo de barro e poeira, e hoje ganha o asfalto, de

    nave do ano, talento, arte de cho, ouro de favela, ontem foi choro, hoje

    tesouro, que venceu a desnutrio e hoje vai dominar o mundo. o futebol

    apresentado como forma de concretizar o sonho, de ter reconhecimento: por onde a

    gente passa show, olha onde a gente chegou.

    No hino da Copa h uma referncia were wavin all our rags que em

    verses livres est sendo traduzido como estamos balanando nossos lenos.

    Ser que so lenos que as pessoas esto balanando? Porque no contexto de

    quem no tem o que comer, rags seria mais apropriadamente traduzido como

    trapos! Teriam a mesma conotao, trapos, lenos e bandeiras? As propostas de

    hino e msica oficial para o evento no estariam abusando do uso de preconceitos

    ou reforando esteretipos?

    Ainda a propsito do futebol, com a proximidade da Copa do Mundo, o

    jeitinho ganha contornos especiais devido associao do modo de ser do

    brasileiro com o futebol-arte praticado pela seleo canarinho. Paolo Demuru,

    doutor em Semitica pela Universit de Bologna e pela Universidade de So Paulo,

    em artigo intitulado Batalha do jeitinho De como o Brasil e Itlia levam a campo a

    arte de se safar publicado no caderno Ilustrssima do jornal Folha de So Paulo,

    em 25 de maio de 2014, discorre sobre o fato de Brasil e Itlia apresentarem duas

    filosofias futebolsticas e existenciais, ao mesmo tempo opostas e convergentes. O

    autor explica porque o estilo de jogo adotado pela Itlia nos anos cinquenta, o

    catenaccio cadeadao, ou uma forte tranca era justificado pelo tipo fsico,

    associado aos preceitos da ndole e s virtudes da especificidade cultural, o que,

    no caso dos jogadores italianos, significava apostar tudo na manha e na esperteza.

    Segundo o autor, graas s narraes de um certo jornalista esportivo,

    o catenaccio se firmou, na segunda metade do sculo 20, como a mais perfeita traduo do jeitinho italiano: a tal arte di arrangiarsi, a arte de se virar, um estilo de vida enraizado na lgica do sem frescura e direto no ponto, emblema, para muitos, da capacidade inata dos italianos de obter

    13

    Disponvel em: . Acesso em: 26 mai. 2014.

  • 28

    sempre o melhor resultado possvel diante das intempries, (sic) dos eventos e das runas da histria (DEMURU, 2014).

    O autor ainda relembra a final da Copa de 1970, na cidade do Mxico, em que

    Brasil e Itlia se enfrentam e o Brasil sai vencedor pelo placar de 4x1, derrota

    atribuda ao fato de a seleo italiana ter renegado o catenaccio. A vitria brasileira

    associada ao futebol-arte, tpico, como todos sabem e contam, do modo de ser

    brasileiro. Ambos, o catenaccio e o futebol-arte, so utilizados para visualizar as

    formas de vida que se apresentam como similares, tendo a astcia como ponto forte,

    na arte de arrangiarsi e na arte da malandragem. A diferena na forma de astcia,

    diz o autor, que a italiana racional e focada no intelecto, e a brasileira

    instintiva e centrada no corpo. Demuru pontua ainda que Pier Paolo Pasolini teria

    estabelecido uma formulao dizendo que os italianos jogam (e vivem) em prosa e

    os brasileiros jogam (e vivem) em poesia.

    O nosso jeitinho pode ser at associado poesia, mas as razes de se

    recorrer a ele, na maioria das vezes, nada tm de potico.

    O jeitinho uma forma de alcanar um objetivo, que em algum momento, e

    por motivos alheios vontade dos sujeitos, foi-lhes negado, seja ele o recurso para

    a soluo de uma questo burocrtica ou uma dificuldade de outra ordem.

    E o cotidiano que alimenta as diferentes situaes de uso do jeitinho. Por

    cotidiano entende-se no apenas o que faz parte do dia-a-dia como tambm,

    segundo Houaiss, o que banal. Ora, se uma situao da qual se depende para

    soluo dos problemas pode ser considerada banal, s resta ao sujeito recorrer a

    toda, qualquer ou mnima possibilidade de resoluo, mesmo que para isso utilize de

    subterfgios, ou do jeitinho. De acordo com DaMatta (1986),

    o jeito um modo e um estilo de realizar. Mas que modo esse? lgico que ele indica algo importante. , sobretudo, um modo simptico, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal; nos casos ou no caso de permitir juntar um problema pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorncia das leis por falta de divulgao, confuso legal, ambiguidade do texto da lei, m vontade do agente da norma ou do usurio, injustia da prpria lei, feita para uma dada situao, mas aplicada universalmente etc.) com um problema impessoal. Em geral, o jeito um modo pacfico e at legtimo de resolver tais problemas, provocando essa juno inteiramente casustica da lei com a pessoa que a est utilizando. O processo simples e at mesmo tocante (DAMATTA, 1986, p. 101).

  • 29

    Assim, podemos observar que o jeitinho brasileiro est disperso em nosso

    dia-a-dia em inmeras situaes. Aparece como um paliativo, em situao na qual

    os modelos de resoluo falham, a lei se impe de forma que tira a dignidade das

    pessoas, e o jeitinho surge como uma terceira via. Ou quando um insight, uma

    ideia, s vezes banal, resolve uma situao que evita problemas ou dispndios

    maiores, de energia, monetrios e desgastes emocionais. Mas tambm est

    presente quando arranjos obscuros so feitos em gabinetes, empresas, escritrios, e

    inclusive nas relaes interpessoais.

    Ser que o jeitinho define o brasileiro?

    Quando se fala da construo da identidade brasileira, h certa recorrncia de

    alguns esteretipos. o que ocorre com o jeitinho. A partir da aceitao e

    compartilhamento por parte da sociedade de certos conceitos sobre si prpria,

    teremos a sua adeso pelo efeito da repetio, que inerente ao clich ou

    esteretipo14, e a sua consolidao se d a cada ocorrncia de uso. Ferreira (2003)

    esclarece que o jeitinho est impregnado na/da memria do brasileiro, como marca

    registrada constitutiva da identidade, e assim explica o jeitinho brasileiro e o efeito

    de sentido que ele produz:

    Com o jeitinho, o grau de adeso parece ser maior, h mesmo uma simptica tolerncia e uma aceitao consentida para com esse modo de ser que identifica e distingue o brasileiro. Uma leitura que pode ser feita do clich a de que ele funciona como um mecanismo compensatrio para o brasileiro, frente a tanta adversidade (FERREIRA, 2003, p.77).

    O que se fala do brasileiro e o que ele fala de si constri um lugar de discurso.

    Essas vozes produzem os sentidos que so incorporados e assimilados. Assim,

    quando o brasileiro chamado a falar de si, assume a posio de enunciador e se

    confere uma posio que legitima o seu dizer. De acordo com Dominique

    Maingueneau, em relao noo de ethos, ele se outorga no discurso uma

    posio institucional e marca sua relao com um saber (AMOSSY, 2008, p. 16).

    14

    Esteretipo, segundo Houaiss (2009), esse prprio padro, geralmente formado de ideias preconcebidas e alimentadas pela falta de conhecimento real sobre o assunto em questo; ideia ou convico classificatria preconcebida sobre algum ou algo, resultante de expectativa, hbitos de julgamento ou falsas generalizaes; aquilo que falta de originalidade; banalidade, lugar-comum, modelo, padro bsico.

  • 30

    Amossy (2008) salienta o papel essencial que o esteretipo desempenha no

    estabelecimento do ethos:

    A ideia prvia que se faz do locutor e a imagem de si que ele constri em seu discurso no so totalmente singulares. Para serem reconhecidas pelo auditrio, para parecerem legtimas, preciso que sejam assumidas como doxa, isto , que se indexem em representaes partilhadas. preciso que sejam relacionadas a modelos culturais pregnantes, mesmo se se tratar de modelos contestatrios. A estereotipagem, lembremos, a operao que consiste em pensar o real por meio de uma representao cultural preexistente, um esquema coletivo cristalino. Assim, a comunidade avalia e percebe o indivduo segundo um modelo pr-construdo da categoria por ela difundida e no interior da qual ela o classifica. Se se tratar de uma personalidade conhecida, ele ser percebido por meio da imagem pblica forjada pelas mdias (AMOSSY, 2008, p.125-126).

    Roland Barthes, ao retomar os componentes da antiga retrica, define o ethos

    como os traos de carter que o orador deve mostrar ao auditrio (pouco

    importando sua sinceridade) para causar boa impresso: o seu jeito [...]. O orador

    enuncia uma informao e ao mesmo tempo diz: sou isto, no sou aquilo

    (BARTHES, 1970, p. 315 apud AMOSSY, 2008, p.10)

    No que se refere ao jeitinho, sua adoo remete construo de certa

    imagem de si de seu protagonista, seja para estrangeiros ou para outros brasileiros,

    e participa fortemente do estabelecimento do que socialmente compartilhado como

    ethos do povo brasileiro, em uma enunciao enunciada, ou seja, nas marcas da

    enunciao deixadas no enunciado. Com sua adoo, instaura-se um mecanismo

    social de produo de sentido caracterizado na evidncia e na sistematizao de

    seu uso e de sua aceitao, que o dotam de um grau de credibilidade, o que, por

    sua vez, refora a imagem difundida do modo de ser do brasileiro15.

    Segundo Brulio Tavares, em um artigo na revista Lngua Portuguesa, em

    que aborda as qualidades e os defeitos de ser brasileiro,

    As crticas que nos fazem so sempre parecidas, todas sobre coisas que a gente j sabe e, em certa medida, so verdadeiras: o brasileiro acomodado, no se mobiliza socialmente para protestar, excessivamente informal e despreza os instrumentos de controle (leis, Constituio, regulamentos, etc.) (TAVARES, 2013, p. 20).

    15

    Evidentemente, ao falar do brasileiro refiro-me to somente imagem estereotpica amplamente difundida como representativa dos membros do povo brasileiro; no estou de forma alguma assumindo tal esteretipo como representao fidedigna da ndole ou ideologia de todas as pessoas de carne e osso dessa nacionalidade. Feita essa ressalva, passo a empregar brasileiro sem aspas, nesse sentido, por simples economia visual.

  • 31

    Quando o autor pontua que as crticas que se fazem aos brasileiros so, em

    certa medida, verdadeiras, h um reconhecimento de que os defeitos apresentados

    podem contribuir para reforar o esteretipo, por exemplo, do brasileiro acomodado,

    que v a situao difcil, mas deixa como est pra ver como que fica, e informal,

    s vezes at demais, nas relaes sociais, com dificuldades para saber respeitar o

    espao das outras pessoas.

    Na mesma revista, o articulista Pereira Junior discorre sobre o uso da

    expresso jeitinho brasileiro em texto postado pela colunista Samantha Pearson,

    do blog Beyond Brics do jornal britnico Financial Times. No texto, a jornalista trata o

    jeitinho no como trao cultural, mas como improviso com cara de trapaa, trivial

    em qualquer pas. Apresenta, inclusive, uma verso inglesa expresso: little

    way. Segundo Pereira Junior, o jornal classifica jeitinho como o nocivo hbito de

    driblar regras e convenes de forma criativa (e at ilegal), com o que o brasileiro

    resolve de problemas prosaicos at a poltica monetria (PEREIRA JUNIOR, 2013,

    p. 19).

    Samantha Pearson, no mesmo artigo, chama o ministro da Fazenda do Brasil,

    Guido Mantega de profissional do jeitinho, em razo das manobras contbeis que o

    governo realizou para que o pas cumprisse a meta fiscal de 2012.

    Questes econmicas parte, a forma como o jornal classifica o jeitinho,

    no leva em conta toda a variao, todas as nuances que o vocbulo carrega em si.

    Porm, no podemos dizer que esse esteretipo no nos cabe, pois o jeitinho foi

    criado e assumido por basicamente um e cada brasileiro.

    Roberto DaMatta uniu-se ao canal de televiso Futura, tradicional na

    produo de programas educativos, para a criao de uma srie chamada O bom

    jeitinho brasileiro. Na apresentao inicial do projeto, o antroplogo resume o

    jeitinho como uma maneira de contornar a lei. Afirma que os programas mostraro

    o outro lado do jeitinho brasileiro: conhecer pessoas que apesar de suas

    dificuldades, no se entregam, e que veem no jeitinho a forma de super-las.

    Ora, se existe o bom jeitinho brasileiro, que o outro lado do jeitinho, h

    tambm o mau. E, portanto, no h que enxerg-lo como preconceito. Quanto

    escolha em relao ao esteretipo, Walter Lippmann, em seu clssico Public

    Opinion, de 1922, afirma:

  • 32

    Na maioria das vezes no vemos primeiro e depois definimos, ns definimos primeiro e depois vemos. Na grande confuso que grassa no mundo exterior, escolhemos o que nossa cultura j definiu para ns, e tendemos a perceber o que selecionamos na forma estereotipada para ns pela nossa cultura

    16 (LIPPMANN, 1922, traduo nossa).

    O excerto faz referncia a uma tendncia de que nossas escolhas recaiam

    sobre o que estereotipado, ou seja, sobre aquilo que ainda no conhecemos. o

    que podemos constatar na leitura que a articulista do FT faz do jeitinho. Diz

    respeito a uma leitura corrente dos estrangeiros sobre os brasileiros.

    Monte Mr (2008), em artigo que investiga a relao suplementar entre

    identidade e alteridade, compreendendo o modo como o brasileiro se representa

    para si mesmo, representado pelo estrangeiro e como a imagem do estrangeiro

    construda e difundida para o outro (MONTE MR, 2008, p.161), ressalta que, a

    leitura de notcias brasileiras impressas no estrangeiro, quando menos atenta, pode

    ser tangenciada por esteretipos descomprometidos, conforme se observa em

    olhares de uns pases para outros, de culturas para outras, de regies para outras

    (p.170). Para a autora, aquelas notcias so fonte de reflexo sobre a relao entre

    identidade e alteridade. Nesse sentido, a autora apresenta as contribuies de Hall

    (2000), que faz uso da concepo lacaniana sobre espelhamento, quando se refere

    identidade:

    Um sujeito no v a sua prpria imagem por inteiro, logo poder ver-se ou imaginar-se por inteiro no espelho do olhar do outro. Dessa maneira, embora o sujeito seja, por natureza, cindido, dividido, inacabado, incompleto, ele assume a sua identidade como se ela estivesse completa, acabada, unificada, conforme o olhar alheio lhe informa, ou conforme a sua imagem se formou (uma fantasia que se constituiu e cristalizou) no espelho do olhar alheio. possvel expandir essa noo de espelhamento aos dois sujeitos dessa relao dialtica. Aquele que se v em posio favorvel pode ter a sua imagem espelhada e confirmada pelo olhar de quem lhe confere superioridade; da mesma maneira, o outro que se acredita em desvantagem pode estar reafirmando a sua identidade no espelho dos olhos do outro (HALL, 2000, apud MONTE MR, 2008, p. 171-172).

    Ainda segundo a autora, o raciocnio de Hall sobre o espelhamento poderia

    ser utilizado como uma imagem invertida para compreender a viso dos jornalistas

    estrangeiros acerca dos brasileiros. Segundo Hall (2000), por ser um processo em

    16

    For the most part we do not first see, and then define, we define first and then see. In the great blooming, buzzing confusion of the outer world we pick out what our culture has already defined for us, and we tend to perceive that which we have picked out in the form stereotyped for us by our culture.

  • 33

    andamento, o termo mais apropriado seria identificao e no identidade, uma vez

    que a identidade surge de uma falta de inteireza que preenchida a partir do

    nosso exterior pelas formas pelas quais imaginamos ser vistos por outros (HALL,

    2000, p. 39 apud MONTE MR, op. cit., 172). O cenrio brasileiro descrito pelos

    jornais estrangeiros, como afirma Monte Mr, pode no ser a nica representao

    do pas, bem como de seu povo. Contudo, a imagem frequentemente projetada no

    espelho do outro pode levar crena de que o reflexo do objeto o prprio objeto

    (MONTE MR, op. cit., p.172).

    Particularmente, em relao ao jeitinho, Barbosa assim retrata a questo

    associada identidade:

    Ao jeitinho brasileiro, contraponho a falta de jogo de cintura do anglo-saxo, a rigidez do alemo, a sovinice do francs etc. [...] Quando nos referimos ao jeitinho brasileiro como um elemento de identificao social, no significa dizer que acreditamos que ele simbolize a totalidade da sociedade brasileira em todas as suas expresses, nem que expresse o comportamento tpico do brasileiro e, muito menos, que essa forma da ao social possua uma essncia exclusivamente nossa. Significa, apenas, que em determinados contextos ele sintetiza um conjunto de relaes e procedimentos que os brasileiros percebem como sendo deles. [...] Ao seu redor, constri-se uma srie de discursos, uns para neg-lo, outros para afirm-lo, expressando um conjunto de valores significativos dentro de determinados contextos e domnios e que atualizam partes e momentos da sociedade brasileira (BARBOSA, 2006, p. 165-166).

    Afinal, possvel afirmar que o jeitinho um dos elementos que compem a

    identidade nacional em determinados contextos e domnios da sociedade brasileira,

    sem contudo, como afirma Barbosa, expressar nosso comportamento tpico ou

    nossa essncia.

    Sobrepondo-se ideia de esteretipo e da identidade, o jeitinho a nossa

    forma de lidar com certas situaes, de buscar solues. Segundo DaMatta,

    O jeito um estilo de navegao social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptrios e autoritrios no pode!. Assim, entre o pode e o no pode, escolhemos, de modo chocante e antilgico, mas singularmente brasileiro, a juno do pode com o no pode. Pois bem, essa juno que produz todos os tipos de jeitinhos e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social (DAMATTA, 1986, p. 100-101).

    Voltemos a Lvia Barbosa. Inspirada pelo modo de investigao iniciado por

    Roberto DaMatta, a pesquisadora retoma uma antropologia crtica voltada para o

  • 34

    estudo dos estilos de fazer e lidar com as vicissitudes do cotidiano brasileiro. Aborda

    o estudo de ideologias e as representaes simblicas que efetivamente motivam e

    orientam a vida brasileira diria aqui e agora.

    Na investigao do cotidiano, o jeitinho um tema por excelncia. E

    Barbosa assim o define:

    O jeitinho sempre uma forma especial de se resolver algum problema ou situao difcil ou proibida; ou uma soluo criativa para alguma emergncia, seja sob a forma de burla a alguma regra ou norma preestabelecida, seja sob a forma de conciliao, esperteza ou habilidade. Portanto, para que uma determinada situao seja considerada jeito, necessita-se de um acontecimento imprevisto e adverso aos objetivos do indivduo. Para resolv-la, necessrio uma maneira especial, isto , eficiente e rpida, para tratar do problema. No serve qualquer estratgia. A que for adotada tem de produzir os resultados desejados a curtssimo prazo. E mais, a no ser estas qualificaes, nenhuma outra se faz necessria para caracterizar o jeito. No importa que a soluo seja definitiva ou no, ideal ou provisria, legal ou ilegal (BARBOSA, 2006, p. 41).

    A autora acrescenta que no h uma uniformidade em relao ao que

    jeito: o que e o que no jeito variam bastante (p. 41). Varia desde situaes

    nas quais visto como um favor, a outras em que se confunde com a corrupo. Tal

    gama de possibilidades acarretar na variao do entendimento do discurso do

    jeitinho como positivo ou negativo.

    Essa variao na compreenso do que jeito foi sistematizada por Barbosa

    (2006), em um eixo horizontal, no qual a disposio das trs categorias ficou assim

    representada:

    (+) (+) / (-) (-)

    __________________________________________________________

    favor jeito corrupo

    A disposio do fato em um determinado ponto do eixo no exata. Isto

    porque sua localizao no eixo depende da situao e das relaes das pessoas

    envolvidas. Enfim, as nuances do jeitinho iro variar, inclusive, em decorrncia do

  • 35

    discurso adotado pelas pessoas envolvidas. As categorias localizadas nas

    extremidades, apresentam certas caractersticas que as tornam, s vezes, passveis

    de serem identificadas. Mas nem sempre...

    O favor, frequentemente, implica em reciprocidade. Quem recebe o favor

    fica em posio de devedor. No que no haja reciprocidade entre quem d e quem

    recebe o jeito, mas ela pode ser de outro tipo: qualquer pessoa pode receber a

    retribuio de um jeitinho, fazendo valer a mxima de que hoje sou eu, mas

    amanh pode ser voc, ento, uma mo lava a outra. J a diferenciao entre

    corrupo e jeitinho, por vezes, no clara. As pessoas tendem a associar a

    corrupo a um ganho material. Se o ato envolver uma cerveja, um cafezinho ou

    apenas um bom papo, passa por jeitinho. Se uma quantia vultosa de dinheiro

    estiver em questo, raramente escapa do matiz da corrupo. Todos os aspectos de

    cada nuance, presentes no eixo, ou seja, a abordagem que ser dada a cada

    situao, depender basicamente da postura das pessoas em relao ao jeito, do

    discurso por elas assumido: um discurso positivo ou negativo (BARBOSA, 2006).

    O discurso positivo um discurso de aprovao, resultado das experincias

    do dia a dia das pessoas. Aceita uma amplitude de uso bem vasta, pois visto como

    resposta criativa a uma situao de emergncia, como forma de agilizar

    procedimentos, ou porque j o aceitam como elemento universal disposio das

    pessoas, e acham certo e conveniente. O jeitinho encarado como um paliativo

    at que haja uma soluo mais eficiente ou definitiva. Normalmente, este discurso

    no associado corrupo. o jeitinho das relaes pessoais. Exalta as

    caractersticas atribudas ao povo brasileiro como simpatia, alegria, esperteza e, por

    vezes, adquire um tom ufanista. O jeito ainda pode ser um fator que humaniza as

    relaes, superando a rigidez, a impessoalidade, levando em conta a condio

    humana acima de tudo (BARBOSA, 2006).

    O discurso negativo, defende a autora, comumente, estabelece como

    parmetro o Brasil e os pases ditos desenvolvidos. Situaes do cotidiano,

    permeadas pela violncia urbana, o desemprego, a precariedade da sade pblica,

    so recorrentes na fala coloquial de quem adota este discurso. Fala apoiada no

    saudosismo, e que no ultrapassa a superficialidade das discusses sobre a

    complexidade dos problemas socioeconmicos do pas. Talvez, a partir deste tipo de

  • 36

    discurso haja a veiculao de um desejo, por parte de alguns grupos, do retorno da

    ditadura militar. Segundo Barbosa (2006), o discurso terico negativo sobre o

    jeitinho tambm um discurso de denncia. E acrescenta:

    Denncia de nossas instituies sociais e polticas carentes de credibilidade e de nossa herana ibrica. Denncia de nossos homens pblicos, da corrupo e da impunidade. No discurso erudito, isso no vem de hoje. O formalismo de nossas leis, a pouca seriedade de nossos dirigentes, a situao catastrfica de nosso povo no so fenmenos recentes. Chegaram com Cabral e aqui ficaram pelas mos dos portugueses. Nos pases onde ocorreu uma colonizao de origem anglo-sax, as coisas so vistas de forma diferente. As leis, as regras, so percebidas como mais de acordo com a prtica social e o povo mais ordeiro e disciplinado. A ideia predominante aqui de que nada funciona, as coisas no so srias e que o casusmo a tnica de todos os setores da sociedade (BARBOSA, 2006, p.74-75).

    Em suma, o jeitinho apresenta-se, assim, numa grande multiplicidade de

    formas, sejam no mbito da resoluo de problemas, das relaes pessoais, em

    situaes sociais concretas, e mesmo frente a regras, normas ou leis. Todas as

    flexibilizaes do sujeito para conseguir o objetivo almejado, resultam em um

    jeitinho compreendido ora como algo positivo, criativo, ora como algo negativo, no

    limiar da ilegalidade. Muitas vezes a distino entre a caracterizao do jeito

    depender do tipo de discurso assumido por quem o aprova, o louva, o valoriza ou

    por quem o rejeita e desaprova.

    A questo que envolve toda essa gama de possibilidades quanto tipificao

    do jeitinho, alm da ambiguidade que permeia o fato de estar associado

    identidade do povo brasileiro, abordada por Barbosa (2006) da seguinte forma:

    ... o jeitinho no s um mecanismo de ajuste realidade institucional brasileira, mas tambm um elemento de identidade social positiva e negativa. Ele percebido e reconhecido como nos definindo como pas e como povo. Portanto longe de ser algo escuso, embaraoso, o jeitinho reconhecido, admitido, louvado e condenado (BARBOSA, 2006, p. 32).

    Portanto, mesmo reconhecido, louvado ou condenado, difcil distinguir

    quando o jeitinho visto como favor ou corrup