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Projeto História, São Paulo, n.33, p. 247-269, dez. 2006 247 ALTHUSSER: IDEOLOGIA E APARELHOS DE ESTADO – VELHAS E NOVAS QUESTÕES Ester Vaisman* 5HVXPR 2 SUHVHQWH DUWLJR WHP FRPR REMHWLYR principal explicitar a tematização de Althusser sobre o fenômeno da ideologia ao longo de suas principais obras. Desse modo, o leitor terá a oportunidade de visualizar concretamente a utilização do critério espistemológico na determinação do fenômeno ideológico, bem como a aproximação teórica que o referido autor realiza com o problema do inconsciente, sobretudo no Ensaio sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado. 3DODYUDVFKDYH Althusser; ideologia; Estado; epistemologia. Abstract The main objective of the present article is to explicit Althusser’s thematization about the ideological phenomenon, throughout his most important works. In such a way, the reader will be able to concretely visualize the utilization of the epistemological criterium to determine the ideological phenomenon, as well as the theoretical approximation that the author accomplishes with the uncon- scious issue, mostly in the Essay about the Ideological State Apparatuses. Keywords State; Althusser; ideology; epistemology.

Vaisman 2006

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Vaisman 2006

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  • Projeto Histria, So Paulo, n.33, p. 247-269, dez. 2006 247

    ALTHUSSER: IDEOLOGIA E APARELHOS DE ESTADO VELHAS E NOVAS QUESTES

    Ester Vaisman*

    5HVXPR

    2SUHVHQWHDUWLJRWHPFRPRREMHWLYRprincipal explicitar a tematizao de Althusser sobre o fenmeno da ideologia ao longo de suas principais obras. Desse modo, o leitor ter a oportunidade de visualizar concretamente a utilizao do critrio espistemolgico na determinao do fenmeno ideolgico, bem como a aproximao terica que o referido autor realiza com o problema do inconsciente, sobretudo no Ensaio sobre os Aparelhos Ideolgicos de Estado.

    3DODYUDVFKDYH

    Althusser; ideologia; Estado; epistemologia.

    AbstractThe main objective of the present article is to explicit Althussers thematization about the ideological phenomenon, throughout his most important works. In such a way, the reader will be able to concretely visualize the utilization of the epistemological criterium to determine the ideological phenomenon, as well as the theoretical approximation that the author accomplishes with the uncon-scious issue, mostly in the Essay about the Ideological State Apparatuses.

    KeywordsState; Althusser; ideology; epistemology.

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    Louis Althusser foi, nas dcadas de 60 e 70 do sculo passado, um dos responsveis talvez o mais radical pela incluso, no campo marxista, de uma teortica que parecia resolutiva para os impasses e dilemas que dominaram os debates travados quela poca, principalmente em relao polmica epistemolgica em torno da obra de Marx, que, DSHVDUGHVXDVRVWLFDomRDSDUHQWH UHGXQGRXHPVpULDVGLVWRUo}HVQD LQWHUSUHWDomRGHquestes centrais da obra marxiana.

    Sinteticamente, a polmica epistemolgica centrou-se na disputa sobre o estatuto FLHQWtFRGRGLVFXUVRPDU[LDQRQDcerteza unssonaGHTXHDEDVHGDUHH[mRPDU[LDQDRXDUHVROXomRGHVXDVGLFXOGDGHVHVWDYDHPDOJXPFDQWHLURGRVXEVROROyJLFRJQRVLRepistmico.1 $GHVJXUDomRGHVVH WLSRGHDERUGDJHPHSLVWHPRORJL]DQWH LPSOLFRXSHVDGR{QXV

    para o pensamento de Marx,

    >@GHVLJQDGDPHQWHSRUTXHDREUDPDU[LDQDpDQHJDomRH[SOtFLWDGDTXHOHSDUkPHWURQDLGHQWLFDomRGDFLHQWLFLGDGHWHQGRVXDSUySULDDUTXLWHW{QLFDUHH[LYDSRUFRQVR-nncia, natureza completamente distinta daquela suposta pelo epistemologismo. Don-de, querer legitimar por meio de fundamento gnosio-epistmico as elaboraes marxianas desrespeitar frontalmente seu carter, e entorpecer o novo patamar de ra-cionalidade que sua posio facultou compreender e tematizar, em proveito da apreen-so do multiverso objetivo e subjetivo da mundaneidade humana.2

    $JXUDGH$OWKXVVHUQRPDUFRGDGpFDGDGHHSULQFtSLRGRVDQRVGRVpFXOR;;DSUHVHQWDYDVH

    >@DRVROKRVGHPXLWRVFRPRXPVDOYDGRUVXSUHPRGRPDU[LVPR(OHWHQWDOHYDUDbom termo um empreendimento difcil, uma verdadeira aposta que equivale a colocar o marxismo no centro da racionalidade contempornea ao preo de seu desligamento GDSUi[LVGDGLDOpWLFDKHJHOLDQDDPGHVXSODQWDUDYXOJDWDVWDOLQLVWDHPXVRIXQGDGDnum economicismo mecnico.3

    Para realizao dessa empreitada, ao mesmo tempo ambiciosa e polmica, o autor pagou alto preo, como veremos com maior detalhe, na medida em que implicou o

    >@DIDVWDPHQWRGRUHIHUHQWHTXHDGTXLUHDIRUPDGHXPFRUWHHSLVWHPROyJLFRVH-gundo o modelo da ruptura de Bachelard. Esse corte efetua a diviso entre ideologia, de uma parte, e cincia de outra, encarnada pelo materialismo histrico. Todas as cincias devem, portanto, ser questionadas a partir do que fundamenta a racionalidade FLHQWtFDDORVRDGRPDWHULDOLVPRGLDOpWLFRDPGHVHOLEHUWDUHPGHVHXVUHVtGXRVideolgicos.4

    Althusser, indubitavelmente foroso reconhecer , apesar de ter concebido uma soluo de contornos altamente problemticos, responsvel por um esforo que visava instalar o marxismo

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    >@QRFHUQHGDFLrQFLD5HVSRQGHjQHFHVVLGDGHGHVDLUGHXPPDU[LVPRRFLDOSyVstalinista, portador de uma herana funesta, ancorado no dogma. Althusser permitia FRPSOH[LFDU RPDU[LVPR FUX]DU D VXD DYHQWXUD FRP DV FLrQFLDV VRFLDLV HP SOHQRdesenvolvimento, e colher todos os frutos, dando-se como discurso dos discursos a pr-SULDWHRULDGDVSUiWLFDVWHyULFDV5HVVXFLWDUXPPDU[LVPRFLHQWtFRGHVHPEDUDoDGRGDVHVFyULDVGRVUHJLPHVTXHVHYDOHPGHOHWDOpRGHVDRHVWLPXODQWHTXH/RXLV$OWKXVVHUapresenta a uma gerao militante, temperada nos combates anticolonialistas.5

    0DVDJUDQGHLQXrQFLDTXHH[HUFHXFRUUHVSRQGHWDPEpP

    >@DXPPRPHQWRGRSHQVDPHQWRHPTXHRSujeito se volatiza no horizonte terico, o programa estruturalista j havia logrado reduzir o sujeito, destron-lo, cliv-lo, torn-lo LQVLJQLFDQWHH$OWKXVVHUVLWXD0DU[DRODGRGDTXHOHVTXHDSDUWLUGDVFLrQFLDVVRFLDLVoperam e ampliam essa descentrao do homem sob todas as suas formas: No que se refere estritamente teoria pode-se e deve-se falar abertamente de um anti-humanismo WHyULFRGH0DU[$QRomRGHKRPHPSHUGHWRGDDVXDVLJQLomRHODpUHPHWLGDDRsta-tusGHPLWRORVyFRGHFDWHJRULDLGHROyJLFDFRQWHPSRUkQHDGDDVFHQVmRGDEXUJXHVLDcomo classe dominante.6

    'HIDWR$OWKXVVHUDUPDTXHIRLFRPQDOLGDGHVLGHROyJLFDVSUHFLVDVTXHDOR-VRDEXUJXHVDDSRGHURXVHGDQRomRMXUtGLFRLGHROyJLFDGHsujeito para dela fazer uma FDWHJRULDORVyFDQ~PHURXP7 Ao passo que a noo de sujeito no tem nenhum sentido para o materialismo dialtico, que pura e simplesmente a rejeita, como rejeita (por exemplo) a questo da existncia de Deus.8(QDOPHQWHDUUHPDWDDORVRDPDU[LVWDGHYHURPSHUFRPDFDWHJRULDLGHDOLVWDGH6XMHLWRFRPR2ULJHP9 2OyVRIRIUDQFrVFRQVLGHUDRFDUiWHUGHVDQWURSRPRU]DGRUGDDWLYLGDGHFLHQWtFDSDUD

    XVDUXPDH[SUHVVmRFXQKDGDSRU/XNiFVPDVpDtTXHUHVLGHRSUREOHPDLGHQWLFDHVVHDVSHFWRQHFHVViULRD WRGDDSURSULDomRFLHQWtFDGD UHDOLGDGHFRPDDQXODomRGDSUiWLFDGRKRPHPQDFRQVWUXomRHWUDQVIRUPDomRGHVLHGRSUySULRPXQGRVRFLDOLGHQWLFDQGRDSHMRUD-tivamente ao pragmatismo.

    Dissertando Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histrico, Balibar, um dos autores de Ler O Capital, imputa a Marx a formulao do

    >@SUySULRFRQFHLWRGDGHSHQGrQFLDGDVIRUPDVGHLQGLYLGXDOLGDGHFRPUHODomRjHV-trutura do processo ou modo de produo. Ele acentuou, na prpria terminologia, esse fato epistemolgico, que na anlise da combinao no tratamos de homens con-cretos, mas apenas de homens na medida em que desempenham certas funes deter-minadas na estrutura: portadoresGHIRUoDGHWUDEDOKR>@2VKRPHQVVyDSDUHFHPQDteoria sob a forma de suportes das relaes implicadas na estrutura, e as formas de sua individualidade como efeitos determinados da estrutura.10

    Por via de conseqncia, a leitura de O Capital foi realizada sob a gide da pers-pectiva do anti-humanismo terico, pois, numa anlise desse tipo, ou seja, guiada pela

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    descentrao do homem, o sujeito impossvel de ser encontrado; nesse sentido, o que vai caracterizar o decurso histrico ser, supostamente, um processo sem sujeito.$VVLPRFRQWH[WRORVyFRGDpSRFDPDUFDGDPHQWHDQWLKXPDQLVWDHVWiSUHVHQWH

    QDUHH[mRDOWKXVVHULDQDGHWDOIRUPDTXHPHVPR0DU[pDSUHVHQWDGRFRPRWHQGRUHD-lizado ele prprio este feito, por meio da ruptura

    >@VHJXQGRRWHPDIDPRVRGRFRUWHFRPTXHpFKDPDGRGHVHXVHUURVGHMXYHQWX-GH>@WRUQDQGRDVVLPQHFHVViULDKRMHQRVHLRGRPDU[LVPRXPDQRYDDWLYLGDGHWHy-ULFDFRPRPGHFRQVWLWXLUFRQFUHWDPHQWHRTXH0DU[WLQKDDSHQDVSRVWRFRPRSHGUDVDQJXODUHV2UDHVVHVHUURVGHMXYHQWXGHVmRSUHFLVDPHQWHVLWXDGRVSRU$OWKXVVHUQRTXHchama de perodo humanista de Marx, dominado por um humanismo racionalista li-beral mais prximo de Kant e de Fichte do que de Hegel e depois por um humanismo comunitrio inspirado em Feuerbach.11

    Nesse sentido, seria o prprio Marx, segundo Althusser, que teria efetivado uma rejei-o radical de todas as formas de humanismo, ou seja, de acordo com sua interpretao,

    >@DYHUGDGHLUDUHYROXomRWHyULFDGH0DU[FRQVLVWLUiGHVGHORJRHPURPSHUFRPtodo humanismo, tanto abstrato quanto concreto, visando produzir a tambm um descen-tramento da perspectiva: trata-se, com efeito, de renunciar a fundar a histria, de que forma for, sobre uma essncia do homem, isto , de recusar que o homem seja o sujeito da histria.12

    $EUHVHGHVVHPRGRXPDLQVXSHUiYHOVVXUDHQWUHRVGRLVSyORVFRQVWLWXWLYRVGRVHUsocial: de um lado, as formas sociais da individualidade, ou seja, os indivduos enquan-to meros suportes das estruturas e, de outro, a subjetividade individual ou as posies subjetivas face ao social, constituda no interior do paradigma psicanaltico.

    Em outras palavras, nesse tipo de abordagem, indivduo e sociedade aparecem como GXDVHQWLFDo}HVRQWRORJLFDPHQWHDXW{QRPDVSDUDXVDUXPDH[SUHVVmRGH/XNiFVHde fato, se falso pensar que haja uma substncia da individualidade humana fora do HVSDoRHGRWHPSRTXHDVFLUFXQVWkQFLDVGDYLGDSRGHPPXGDUDSHQDVVXSHUFLDOPHQWH igualmente errneo e estranho ao pensamento de Marx conceber o indivduo como sim-ples produto das circunstncias de seu entorno social, como normalmente ventilado SHODVDQiOLVHVPDLVJURVVHLUDVHVXSHUFLDLV

    A leitura sintomal

    Althusser, no seu projeto de retomada da obra marxiana, notadamente de O Capital, acabou por introduzir um procedimento analtico considerado como uma leitura rigorosa dos escritos econmicos marxianos. Em verdade, ele perpetrou uma verdadeira autono-mizao do discurso de Marx, cuja obra passou a ser abordada, digamos, por uma nova WHRULDGR/HULJQRUDGDVHJXQGRROyVRIRIUDQFrVSHORPDU[LVPRYXOJDUGHWDOKHVWD-

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    OLQLVWD$HVVDQRYDWHRULDGR/HU$OWKXVVHUGHQRPLQDOHLWXUDVLQWRPDOTXDOLFDWLYRtomado diretamente da psicanlise, em especial, a lacaniana.13

    Segundo Althusser, esse procedimento teria sido empregado pelo prprio Marx quan-do da leitura por ele realizada de Smith e Ricardo:

    7UDWDVHGHXPDOHLWXUDG~SOLFH>@1XPDprimeira leitura, Marx l o discurso de seu SUHGHFHVVRU 6PLWK SRU H[HPSOR DWUDYpV GH VHX SUySULR GLVFXUVR >@ p DSHQDV XPresumo das concordncias e das discordncias, o balano daquilo que Smith descobriu HGDTXLORHPTXHHOHIDOKRX>@4XDQWRjVIDOWDVHPVLHVVDOHLWXUDQmRQRVGiDVXDUD-]mRGDGRTXHVXDYHULFDomRDVDQXODDFRQWLQXLGDGHGRGLVFXUVRGH0DU[pTXHPRV-tra no discurso de Smith invisveis (para Smith) lacunas, sob a continuidade aparente GRGLVFXUVR>@(QWUHWDQWRH[LVWHHP0DU[uma segunda leitura e totalmente diversa, VHPSDUDOHORFRPHVVDSULPHLUD(VWDTXHVyVHVXVWHQWDFRPDGXSODHFRQMXQWDYHUL-cao das presenas e das ausncias, das vistas e dos equvocos, torna-se culpada de um equvoco singular: ela no v que a existncia combinada das vises e dos equvocos num autor suscita um problema: o de sua combinao. Ela no enxerga esse problema, SUHFLVDPHQWHSRUTXHHVVHSUREOHPDVypYLVtYHO HQTXDQWR LQYLVtYHO >@XPD UHODomRTXHGHQHDQHFHVVLGDGHGRFDPSRREVFXURGRLQYLVtYHOFRPRXPHIHLWRQHFHVViULRGDestrutura do campo visvel.14

    $OHLWXUDVLQWRPDOSURFHGLPHQWRTXHLGHQWLFDVHPPDLVOHLWXUDORVyFDHOHLWXUDepistemolgica WHULDDFDSDFLGDGHGHLGHQWLFDUHUHFROKHUDTXLORTXHQmRpYLVtYHOGHreconhecer a lacuna, a ausncia e o silncio do discurso do outro, mas, alm disso,

    A partir dessa restaurao de um enunciado portador de vazios, e da formulao de sua questo a partir da resposta, possvel trazer a lume as razes que explicam a cegueira da economia clssica sobre o que ela, entretanto, v, portanto do seu no-ver interior ao seu ver. Em outros termos, vir superfcie que o mecanismo pelo qual Marx v o que a economia clssica no v idntico tambm, em princpio pelo menos, ao mecanismo SHORTXDOHVWDPRVSUHVWHVDUHHWLUHVVDRSHUDomRGDYLVmRGHXPQmRYLVWRGRYLVWRDRler um texto de Marx que em si uma leitura do texto da economia poltica.15

    Esta teoria do ler, esse puro ato de leitura que se restringe estrutura intratextual do discurso, autonomizada de seu referente, isto , a realidade capitalista, apresenta-se como inscrita no interior dos mais altos padres de um rigorosismo lingstico, tem tambm seus alicerces fundados na anlise freudiana, tendo em vista que, para o autor francs,

    >@GHSRLVGH)UHXGpTXHFRPHoDPRVDVXVSHLWDUGRTXHquer dizer o escutar, e, por-tanto, o falar (e o calar); e que o quer-dizer do falar e do escutar revela, sob a ino-cncia do falar e do escutar, a profundidade de uma fala inteiramente diversa, a fala do inconsciente.16

    Trata-se, pois, de um mtodo de leitura que

    >@jPDQHLUDGDDQiOLVHIUHXGLDQDFRQVLGHUDTXHDUHDOLGDGHPDLVHVVHQFLDOpDPDLVescondida, no se situando nem na ausncia do discurso, nem no explcito deste, mas

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    no entremeio de sua latncia, necessitando, portanto, de uma escuta ou leitura particular DPGHRUHYHODUDVLPHVPR6HRHUURJURVVHLURLPSOLFDRYHUDYLVWDGHSHQGHGDVcondies estruturais, das condies de existncia do dizer, do campo de possibilidades do dizer e do no dizer.17

    A leitura althusseriana de Marx, denominada sintomal, onde o no dito devora a assero na expresso de Giannotti gera, no mnimo, uma situao paradoxal:

    >@ R OHLWRU GHYHUi LQWHUSUHWDU WRGR R FRUSR GRPDU[LVPR FRP RV ROKRV YROWDGRVWmRVRPHQWHSDUDDVHQWUHOLQKDVUHGX]LQGRDLPSRUWkQFLDGHWRGRRYRFDEXOiULR-ORVyFR HPSUHJDGR SRU0DU[ FRPR VH VXD SUiWLFD WHyULFD IRVVH LQIHULRU jV VXDVdescobertas.18

    Assim, a leitura althusseriana de Marx, toda ela moldada por vetores tericos ab-VROXWDPHQWHHVWUDQKRVjSURSRVLWXUDWHyULFDGROyVRIRDOHPmRLQFOXVLYHRVGH0LFKHOFoucault, cujo prefcio Histoire de la Folie referido pelo autor em relao s con-dies de possibilidade do visvel e do invisvel19 , ao invs de procurar expor a trama FDWHJRULDOGRWH[WRH[DPLQDGR[RXVHQRXQLYHUVRREOLWHUDQWHGRvisvel e do invisvel do enunciado, como se tal procedimento pudesse ser de algum modo atribudo ao prprio Marx, quando da anlise realizada por ele dos economistas clssicos. Como conseqncia, RTXHFRXSHUGLGRIRLDGHYLGDLGHQWLFDomRGRVSURFHGLPHQWRVFLHQWtFRVPDU[LDQRV

    evidente que o trabalho de decifrao de um texto se debrua sobre um dado dis-curso. E, enquanto tal, ele possui uma forma prpria de objetividade ou consistncia,

    >@RXVHMDDHIHWLYLGDGHGHXPDHQWLFDomRSHFXOLDUFXMDLGHQWLGDGHpUHVXOWDQWHGDVtQWHVHGHVXDVLPDQHQWHVHP~OWLSODVGHWHUPLQDo}HVLGHDLVTXHRFRQJXUDPQDTXDOL-dade de um corpo de argumentos estvel e inconfundvel, que independe para ser dis-curso precisamente este, e no qualquer outro discurso dos olhares, mais ou menos destros, pelos quais os analistas se aproximam dele e o abordam.20

    Certamente, uma formulao desse teor absolutamente estranha ao procedimento de Althusser e de seus colaboradores quando da redao de Ler O Capital, pois, como vimos, esto impossibilitados, em funo do vis epistemologizante, mas no s por isso, de encarar o texto enquanto formao idealQDVXDH[LVWrQFLDDXWRVLJQLFDWLYD

    Em suma, ao contrrio da impropriedade gnosio-epistmica que caracteriza a lei-WXUDDOWKXVVHULDQDGH0DU[WXGRRTXHDSDUHFHHVHPRYHQD UHH[mRPDU[LDQDpDsubstncia e a lgica do prprio objeto, reproduzido em sua gnese e necessidade, his-toricamente engendradas e desenvolvidas.21

    Dito isso, o que basta, pois, no h razes, neste momento, para desenvolver em amplitude e maior profundidade essa e outras questes vindas baila pela avalanche althusseriana, mesmo porque no disso que aqui se trata.

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    Cincia versus ideologia

    Nos seus Elementos de Autocrtica, redigido em junho de 1972, o autor chega, em determinado momento, a se referir autocriticamente noo de corte epistemolgico, denominando-a erro teoricista,22 acrescentando que

    >@DSHVDUGHWRGDVDVPLQKDVSUHFDXo}HVHXRFRQFHELHGHQLQRVWHUPRVUDFLRQDOLVWDVda cincia e da no cincia. No abertamente nos termos clssicos da oposio entre a verdade e o erroDTXHODGRFDUWHVLDQLVPRUHWRPDQGRXPDSRVLomR[DGDGHVGHDVorigens, desde o platonismo). No nos termos de uma oposio entre o conhecimento e a ignornciaDTXHODGD)LORVRDGDV/X]HV0DVRXVRGL]HURSLRUQRVWHUPRVGHuma oposio entre A Cincia e A Ideologia.23

    2XVHMDGHDFRUGRFRP$OWKXVVHURDVSHFWRIXQGDPHQWDOGRVHXHUURIRLWHUUH-duzido a ruptura do marxismo com a ideologia burguesa simplesmente ao corte, isto , reduzido a oposio entre marxismo e ideologia burguesa ao antagonismo da cincia e da ideologia.24(PXPDGHVXDV~OWLPDVREUDVROyVRIRIUDQFrVDFDEDSRUDSRQWDUFRPRseu erro fundamental a tematizao da oposio marxismo versus ideologia burguesa como simples fato terico, fato esse, segundo ele, observvel nas obras de Marx a partir de 1845.252DXWRUFRQWLQXDUHDUPDQGRDLGpLDGRFRUWHPDVODPHQWDRIDWRGHWHUatribudo a ele uma interpretao de cunho racionalista/especulativo, opondo verdade a erro sob as formas da oposio especulativa da cincia e da ideologia em geral, cujo antagonismo do marxismo e da ideologia tornava-se um caso particular.26 2DXWRUDTXLLQHYLWDYHOPHQWHUHPHWHQRVjOHLWXUDTXH]HUDDQRVDQWHVTXDQGRGD

    redao de Pour Marx, onde passara a utilizar a noo de ruptura epistemolgica, tomada de emprstimo a Bachelard e a transformando, at certo ponto, numa noo ainda mais radical: a de corte.

    Ao utilizar o modelo bachelardiano, Althusser, alm de radicaliz-lo, generaliza-o, elevando, portanto, a noo de corte ao status de conceito geral, transpondo-o para toda a histria das cincias, e, em especial, para a trajetria de Marx, a qual teria atingido RQtYHOSURSULDPHQWHFLHQWtFRDRVH OLYUDUDWUDYpVGRUHIHULGRFRUWHGRVUHVTXtFLRVORVyFRV H LGHROyJLFRVSUHVHQWHVQRV VHXVSULPHLURV WUDEDOKRV FDUDFWHUtVWLFRVGH VXDpretendida fase juvenil. Esse corte fundamental teria sido possibilitado justamente pelo deslocamento analtico, realizado por Marx para o terreno prprio da epistemologia s custas do rompimento com a ideologia. Segundo as palavras do autor francs:

    6DEHPRVTXHVyH[LVWHFLrQFLDSXUDQDFRQGLomRGHSXULFiODVHPFHVVDU>@(VVDSXULFDomRHVVDOLEHUDomRDSHQDVVmRDGTXLULGDVDRSUHoRGHXPDLQFHVVDQWHOXWDFRQ-tra a prpria ideologia, isto , contra o idealismo, luta que a Teoria (o materialismo dialtico) pode esclarecer sobre suas razes e objetivos, e guiar o mundo como nenhum outro mtodo.27

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    'HVVHPRGRKiWRGRXPFLHQWLFLVPRTXHSHUSDVVDDDERUGDJHPDOWKXVVHULDQDGH0DU[SRLVRPDWHULDOLVPRGLDOpWLFRD7HRULDpRIXQGDPHQWRGDFLHQWLFLGDGHGRmaterialismo histrico, que deve ser preservado de toda a impregnao ideolgica que de forma incessante a assedia.

    Em Elementos de Autocrtica, alm do mais, Althusser efetua um movimento de GHVORFDPHQWR GD TXHVWmR FHQWUDO SDUD D HVIHUD HVSHFtFD GR UDFLRQDOLVPRHVSHFXOD-WLYR DR DUPDU D FRQWUDSRVLomR HQWUH LGHRORJLD VLQ{QLPRGH HUUR H D FLrQFLDPDU[LVWDTXHSRUGHQLomRpRlocus do verdadeiro.

    Tudo indica, portanto, que um dos aspectos contestveis da tematizao althusseria-QDVREUHLGHRORJLDUHVLGHQDLGHQWLFDomRHQWUHORVRDHHSLVWHPRORJLD9HMDPRVVLQWH-WLFDPHQWHFRPRWDOLGHQWLFDomRpGHWHUPLQDGDSHORSUySULRDXWRU(PLer o Capital, o SHQVDGRUIUDQFrVVXVWHQWDTXHDTXHVWmRHSLVWHPROyJLFDpRSUySULRREMHWRGDORVRDmarxista.28 Em /rQLQHD)LORVRD, a propsito do mesmo tema, diz, de forma enfti-FD$UPDUTXHQmRVHSDVVDQDGDHPORVRDpGL]HUTXHDORVRDno leva a parte alguma, pois no vai para lado nenhum.29$VVLPDORVRDQmRWHULDSURSULDPHQWHXPobjeto, mas simplesmente uma funo no campo da prtica terica, a de traar uma li-nha de demarcao no interior do domnio terico, entre idias consideradas verdadeiras HLGpLDVFRQVLGHUDGDVIDOVDVHQWUHRFLHQWtFRHRLGHROyJLFR30 Nesse sentido, a tarefa da ORVRDVHUHVWULQJHDRHVWDEHOHFLPHQWRGRVIXQGDPHQWRVHGRVOLPLWHVGRFRQKHFLPHQWRno campo exclusivamente epistemolgico, tendo como tarefa essencial a rejeio dos FRQFHLWRV LGHROyJLFRVTXHGH IRUPDEDVWDQWH IUHTHQWH VmR WRPDGRVFRPRFLHQWtFRVTrata-se, portanto, de defender a cincia da intromisso ideolgica.

    Ideolgico, da perspectiva althusseriana, , pois, todo enunciado que, em termos SXUDPHQWHHSLVWHPROyJLFRVVHFRQJXUDGHPRGRRSRVWRjTXHODTXHVHULDDIXQomRWHy-ULFDRXIXQomRGHFRQKHFLPHQWR2XVHMDLGHRORJLDVHFRQIXQGHHVHLGHQWLFDFRPWRGRenunciado que ultrapassa o plano estritamente epistemolgico.

    Em Marxismo e HumanismoWH[WRGH$OWKXVVHUDUPDTXH>@ XPD LGHRORJLD p XP VLVWHPD SRVVXLQGR D VXD OyJLFD H R VHX ULJRU SUySULRV GHrepresentaes (imagens, mitos, idias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma H[LVWrQFLDHGHXPSDSHOKLVWyULFRVQRVHLRGHXPDVRFLHGDGHGDGD>@DLGHRORJLDFRPRsistema de representaes se distingue da cincia visto que a sua funo prtico-social tem preeminncia sobre a funo terica (ou funo de conhecimento).31

    Alm disso, a ideologia faz, pois, organicamente parte, como tal, de toda uma tota-lidade social.32$VVLPHPWRGDVRFLHGDGHDLGHRORJLDWHULDXPSDSHOHVSHFtFRDGHVHP-penhar; a sua funo prtico-social, cujo terreno o da experincia, que, para Althusser, QmRSRGHVHUFRQIXQGLGRGHPDQHLUDDOJXPDFRPRWHUUHQRGRFRQKHFLPHQWRFLHQWtFR

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    onde se d a prtica terica. Dessa forma, ideologia oposta cincia ou, no mximo, a sua pr-histria, embora possa constituir, do ponto de vista epistemolgico, uma pro-blemtica terica para a cincia que parte do abstrato para produzir um conhecimento (concreto).33 Assim, embora a ideologia possa se constituir numa problemtica terica SDUDDSUiWLFDFLHQWtFDKiXPDdescontinuidade entre elas que qualitativa, terica e histrica, a qual podemos designar, com Bachelard, pelo termo corte epistemolgico.34 Essa descontinuidade envolve uma srie de caractersticas que se opem em ambos os FDVRVDLGHRORJLDpFRQVLGHUDGDQRPi[LPRFRPRXPDSUiWLFDSUpFLHQWtFD

    Ainda no mesmo livro, Althusser tematiza a ideologia como um conjunto de relaes que ocultam ou representam mal as relaes reais, embora ao mesmo tempo designem XPDUHODomRYLYLGDSRUWDQWRUHDO2DXWRUDUPD

    Na ideologia os homens expressam, com efeito, no as suas relaes nas suas condies de existncia, o que supe, ao mesmo tempo, relao real e relao vivida, imaginria >@1D LGHRORJLD D UHODomR UHDO HVWi LQHYLWDYHOPHQWH LQYHUWLGDQD UHODomR LPDJLQi-ria: relao que exprime mais uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionria), mesmo um esperana ou nostalgia que no descreve uma realidade.35

    Dessa maneira, segundo a mesma trilha, na ideologia, os homens expressam a manei-ra com imaginam as suas relaes reais, e, de forma alguma, a ideologia teria condies de exprimir realmente essas relaes, j que se trata de uma relao imaginria2TXHest em jogo, portanto, nessa determinao, a introduo da ideologia no interior de uma teoria do imaginrio, que tornar a aparecer quando do ensaio sobre os aparelhos ideolgicos de Estado.

    Ademais, a formulao althusseriana referida acima, de que na ideologia, a relao est, inevitavelmente invertida na relao imaginria, explicita a concepo

    >@GHTXHDLGHRORJLDpSURIXQGDPHQWHLQFRQVFLHQWHTXHHODpXPVLVWHPDGHUHSUH-sentaes que na maioria das vezes so imagens e conceitos que nada tm a ver com a conscincia, mas antes de tudo como estruturas que elas se impem imensa maioria dos homens sem passar para a sua conscincia.36

    Assim, a concepo de ideologia enquanto representao imaginria da realidade tem como conseqncia, novamente, a oposio entre cincia e ideologia, pois a ideolo-gia expressa a maneira pela qual os indivduos vivenciam uma situao, no a maneira SHODTXDOHOHVDFRQKHFHPGHVLJQDWLYRSUySULRjSUiWLFDFLHQWtFD7DORSRVLomRpFRQ-UPDGDDWUDYpVGHXPDRXWUDIXQomRDWULEXtGDDOWKXVVHULDQDPHQWHjLGHRORJLDHPTXDO-quer sociedade que se manifeste assegura a coeso social de seus membros, regulando o vnculo que os une s respectivas tarefas. A ideologia seria, nesse contexto, uma espcie de cimento da sociedade ( la Durkheim), pois induziria os membros de uma determinada

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    sociedade a aceitarem sem maiores resistncias as tarefas que lhes so atribudas pela diviso social do trabalho, na medida em que fornece as normas e as regras de conduta LQGLVSHQViYHLVDRIXQFLRQDPHQWRGDVHQJUHQDJHQVVRFLDLV2XVHMD$LGHRORJLDFRPRsistema de representao de massa, indispensvel a toda sociedade para formar os ho-mens, transform-los e p-los em condies de responder s exigncias de suas condies de existncia.37

    Portanto, para que a ideologia possa desempenhar essa funo de ajustamento, ela deve encobrir e dissimular o sistema de diviso de classes e a explorao de uma classe pela outra. E tudo se arredonda na tematizao de Althusser com a idia de que a ideolo-gia deformante devido opacidade da determinao (exercida) pela estrutura da so-ciedade e, por outro lado, pela existncia da diviso em classes.382XVHMDRDXWRUDUPDa intransparncia, a opacidade necessria por meio da qual a estrutura social dividida em classes aparece diante dos indivduos.

    Em suma, tendo em vista o decurso analtico percorrido at aqui, temos, em primeiro lugar, que

    >@DLGHRORJLDpXPVLVWHPDGHUHSUHVHQWDo}HVTXHHPWRGDVDVVRFLHGDGHVDVVHJXUDDUHODomRGRVLQGLYtGXRVFRPDVWDUHIDV[DGDVSHODHVWUXWXUDGRWRGRVRFLDOHVWHVLVWHPDno , pois, um sistema de conhecimento. Pelo contrrio, o sistema de iluses necess-rias aos sujeitos histricos; em segundo lugar, em uma sociedade classista, a ideologia recebe uma funo suplementar: manter os indivduos nas posies determinadas pela dominao de classe; e, em terceiro, o princpio de subverso dessa dominao pertence DRRSRVWRGDLGHRORJLDLVWRpDFLrQFLD>@8PDYH]TXHDLGHRORJLDQmRIRLHQWHQGLGDfundamentalmente como o lugar da luta, ela termina por ocupar o lugar determinado na WUDGLomRORVyFDROXJDUGR2XWURGD&LrQFLD39

    )D]VHHQWmRQHFHVViULRDRQDOGHVVHLWHPUHWRPDURTXHIRLUHIHULGRORJRGHLQtFLRa autocrtica de Althusser em relao problemtica do corte. Em que medida essa QRYDFRORFDomRGRSUREOHPDPRGLFRXRLWLQHUiULRWHyULFRDQWHULRUFRPUHODomRjDQiOLVHGDLGHRORJLD"3DUHFHTXHVHPRGLFDo}HVRFRUUHUDPHODVQmRDOWHUDUDPVXEVWDQFLDOPHQ-te o quadro anterior, caracterizado, como vimos, por uma total oposio entre cincia e ideologia.

    Os aparelhos ideolgicos de Estado

    Aparentemente, h, no ensaio sobre os Aparelhos ideolgicos de Estado, datado de 1970, um esforo por parte de Althusser em desenvolver uma teoria da superestrutu-ra livre da problemtica epistemolgica, constituindo um roteiro de pesquisa voltado problemtica do Estado e do poltico. Assim que nesse texto o fenmeno ideolgico referido imediatamente ao processo de reproduo das condies de produo, pois, a

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    condio ltima da produo a reproduo das condies de produo. Disso resulta que toda formao social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder pro-duzir deve reproduzir as condies de sua produo. Ela deve, portanto reproduzir: 1) as foras produtivas e 2) as relaes de produo.40

    Por essa via, a reproduo da fora de trabalho no requer apenas a reproduo de VXDTXDOLFDomRPDVVREUHWXGR

    >@XPDUHSURGXomRGHVXDVXEPLVVmRjVQRUPDVGDRUGHPYLJHQWHLVWRpXPDUHSUR-duo da submisso dos operrios ideologia dominante por parte dos operrios e uma reproduo da capacidade de perfeito domnio da ideologia dominante por parte dos agentes da explorao e da represso, de modo a que eles assegurem tambm pela palavra o predomnio da classe dominante.41

    Althusser procura, assim, vincular de modo indissolvel o fenmeno da reproduo instncia ideolgico-poltica, deixando num obscuro segundo plano os mecanismos de ordem econmica que concorrem para a efetivao do movimento reprodutivo das rela-es sociais vigentes.$LQGDVHJXQGRHOHWDPEpPRFDVRHVSHFtFRGD

    >@UHSURGXomRGDIRUoDGHWUDEDOKRHYLGHQFLDFRPRFRQGLomRsine quae non, no so-PHQWHDUHSURGXomRGHVXDTXDOLFDomRPDVWDPEpPDUHSURGXomRGDVXDVXEPLVVmRj LGHRORJLDGRPLQDQWHRXGDSUiWLFDGHVWD LGHRORJLDGHYHQGRFDU FODURTXHQmREDVWDGL]HUQmRVRPHQWHPDVWDPEpPSRLVDUHSURGXomRGDTXDOLFDomRGDIRUoDGHtrabalho se assegura em e sob as formas de submisso ideolgica.42

    A anlise que Althusser desenvolve nesse ensaio sobre o fenmeno ideolgico perspectivada, assim, pelo ponto de vista da reproduo, pois a partir da reproduo que possvel e necessrio pensar o que caracteriza o essencial da existncia e natureza da superestrutura.43

    A funo primordial da superestrutura em tal abordagem seria, pois, a de assegurar, atravs de mecanismos prprios sua natureza, a reproduo das relaes sociais vigentes.

    As relaes entre base e superestrutura so pensadas pelo autor a partir da metfora WRSRJUiFDGRHGLItFLRRQGHDDXWRQRPLDUHODWLYDGDVXSHUHVWUXWXUDHVWDULDGDGDSHODprpria determinao da base. justamente essa autonomia que permite ao autor conce-ber os aparelhos ideolgicos de Estado, tendo por funo a reproduo do sistema em seu conjunto. Vale dizer, o fenmeno da reproduo pensado em termos exclusivamente ideolgicos.

    No intento de constituir a teoria dos aparelhos de Estado, Althusser se prope re-visar a teoria descritiva do Estado, isto , aquela dos clssicos do marxismo, e nesse sentido que estabelece a distino entre poder de Estado e aparelho de Estado.44

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    Segundo Althusser, ainda, para que a teoria do Estado avance efetivamente

    >@ p LQGLVSHQViYHO WHU HP FRQWD QmR VRPHQWH D GLVWLQomR HQWUHpoder de Estado e aparelho de Estado, mas tambm outra realidade que se manifesta junto ao aparelho repressivo do Estado, mas que no se confunde com ele. Chamaremos esta realidade pelo seu conceito: os aparelhos ideolgicos de Estado.45

    2OyVRIRIUDQFrVGLIHUHQFLDHQWmRRVDSDUHOKRVUHSUHVVLYRVGH(VWDGRTXHRSHUDPatravs da violncia para garantir a dominao de classe, dos aparelhos ideolgicos de Estado, que garantem essa dominao de outro modo, pois funcionam atravs da ideo-logia.46

    A existncia material da ideologia se faz sentir atravs dos aparelhos ideolgicos de Estado, que constituem algumas instituies concretas, atravs das quais se manifesta um conjunto de prticas e rituais que nelas se situa. Para Althusser, ento, a ideologia no seria apenas um simples conjunto de discursos ou um sistema de representaes imagi-nrias, mas a ideologia dominante um poder organizado num conjunto de instituies. Portanto, o carter dos aparelhos ideolgicos de Estado no determinado apenas pelo seu lugar jurdico na sociedade, mas pelo seu funcionamento enquanto prtica.

    Temos que, modernamente, entre os vrios aparelhos existentes igreja, famlia, sindicatos, partidos aquele que assumiu posio dominante o aparelho ideolgico escolar, pois a escola que

    >@VHHQFDUUHJDGDVFULDQoDVGHWRGDVDVFODVVHVVRFLDLVGHVGHRPDWHUQDOHGHVGHRmaternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criana mais vulnervel, espremida entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Es-tado escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (o francs, o clculo, a histria natural, as cincias, a literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado SXURPRUDOHGXFDomRFtYLFDORVRD47

    'HSRLVGH WHUFRQJXUDGRRPRGRSHORTXDOVHHVWUXWXUDHIXQFLRQDRDSDUHOKRideolgico de Estado escolar, Althusser desenvolve longa argumentao acerca da ne-cessidade de formulao de uma teoria da ideologia em geral. 'HIDWRDHPSUHLWDGDp MXVWLFDGDSHODDUJXPHQWDomRGHTXH0DU[QmR WHULDSUR-

    priamente formulado uma teoria das ideologias, pois, em A Ideologia Alem, a anlise desenvolvida no marxista.48 Por via de conseqncia, seria necessrio preencher essa lacuna, o que depende em grande parte de uma teoria da ideologia em geral.49 A primei-ra determinao da teoria da ideologia em geral que a ideologia no tem histria e, acrescenta, sabemos que essa frmula aparece com todas as letras numa passagem de A Ideologia Alem.50

    Ressaltem-se dois aspectos: primeiro, no momento imediatamente anterior, Althus-VHUDUPDHQIDWLFDPHQWHTXHA Ideologia Alem no pode ser tomada como base para

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    uma teoria geral da ideologia, na medida em que ela no marxista, no entanto, a mes-PDREUDVHWRUQDDJRUDEDVHGHDSRLRSDUDXPDDUPDomRSHUHPSWyULDDLGHRORJLDQmRWHPKLVWyULD2XHPRXWUDVSDODYUDVVHRUHIHULGROLYURQRVHXFRQMXQWRQmRSRGHVHUlevado em considerao, que razo o tornaria base para uma caracterizao to decisiva da ideologia em geral? Althusser no oferece resposta para essa questo. 1RHQWDQWRYHMDPRVHPTXHFRQWH[WR0DU[WHULDIHLWRDVXSRVWDDUPDomR&RQWUD-

    pondo-se ao ponto de partida das formulaes de carter especulativo, que caracterizam a SURSRVLWXUDQHRKHJHOLDQD0DU[HQXQFLDRVHXSUySULRSRQWRGHSDUWLGDDUPDQGRTXH

    >@QmRVHSDUWHGDTXLORTXHRVKRPHQVGL]HPLPDJLQDPRXUHSUHVHQWPHWDPSRXFRdos homens pensados, imaginados e representados para, a partir da, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de YLGD UHDO H[S}HVH WDPEpPR GHVHQYROYLPHQWR GRV UHH[RV LGHROyJLFRV H GRV HFRVGHVVHSURFHVVRGHYLGD >@$PRUDO D UHOLJLmR DPHWDItVLFDHTXDOTXHURXWUD LGHR-logia, assim como as formas de conscincia que a elas correspondem, perdem toda a aparncia de autonomia. No tem histria, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produo material e seu intercmbio material, transformam tambm com essa realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. No a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia.51

    2UHFXUVRDHVVDORQJDFLWDomRpQHFHVViULRSDUDHYLGHQFLDUDLPSURSULHGDGHGRSUR-cedimento de Althusser, ao segmentar e pinar, sem mais, uma pequena frase de um PRPHQWRGDDQiOLVHGH0DU[RQGHpUHVVDOWDGRTXHDVIRUPDVLGHROyJLFDVDTXLLGHQWL-FDGDVjVIRUPDVGHFRQVFLrQFLDTXHDUPDPDVXSUHPDFLDHDDXWRQRPLDGDVLGpLDVGLDQWHdo processo de vida material , no tem uma histria prpria, autnoma ou independente em relao atividade material dos homens2XVHMDDPRUDODUHOLJLmRDPHWDItVLFDHqualquer outra ideologia no tm histria, no sentido de que no possuem uma histori-cidade prpria ou imanente, pois fazem parte da histria humana global da produo da vida e das formas de conscincia que a ela correspondem.

    Assim, quando Marx, em A Ideologia Alem, nega s idias uma historicidade au-tnoma que para Althusser, como veremos, possui sentido negativo, o que ele quer RSRVLWLYRQmRVLJQLFDTXHDVLGpLDVHUDPSURFODPDGDVSHOROyVRIRDOHPmRFRPRdependentes mecnicas, passveis, assim, de serem deduzidas esquematicamente da es-fera econmica o que Althusser denomina de positivismo mas o que ele registra justamente a unidade do processo histrico como j ressaltamos linhas acima no obstante contraditoriedades e desigualdades internas.'RQGHHPVHJXQGROXJDUDDUPDomRGH$OWKXVVHUVHPRVWUDUWRWDOPHQWHLPSURFH-

    dente, levando-se em considerao a letra do texto marxiano.Althusser prossegue na sua leitura de A Ideologia Alem,52LGHQWLFDQGRDFRQFHS-

    o de ideologia de Marx

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    >@FRPRSXUDLOXVmRSXURVRQKRRXVHMDQDGD>@$LGHRORJLDpSRUWDQWRSHQVDGDcomo uma construo imaginria cujo estatuto exatamente o mesmo estatuto terico GRVRQKRQRVDXWRUHVDQWHULRUHVD)UHXG>@$LGHRORJLDpHQWmRSDUD0DU[XPbrico-lageLPDJLQiULRSXURVRQKRYD]LRHYmR>@53

    Contrapondo-se quilo que entende ser a tematizao marxiana de ideologia, Althus-ser procura defender, assim, uma tese radicalmente diferente da tese positivista-histori-cista da Ideologia Alem.54

    Por essa linha de apreenso, o fato de a ideologia em geral no ter histria, no com-preende sentido negativo, ao contrrio,

    >@HVWHVHQWLGRpSRVLWLYRVHFRQVLGHUDUPRVTXHDLGHRORJLDWHPXPDHVWUXWXUDHXPfuncionamento tais que fazem dela uma realidade no-histrica, isto , omni-histrica, no sentido que esta estrutura e este funcionamento se apresentam na mesma forma imutvel em toda histria.55

    A referncia terica que Althusser utiliza para determinar a imutabilidade da ideo-logia, enquanto realidade no-histrica, longe de se inspirar numa possvel concepo negativa dessa no-historicidade em Marx, em verdade est diretamente relacionada proposio de Freud de que o inconsciente eterno, isto , no tem histria.56

    Segundo Doray, Althusser tentou,

    >@DWUDYpVGRV$,(ID]HUXPDDUWLFXODomRHPJUDQGHHVWLORHQWUHDWHRULDPDU[LVWDGDVformaes do Estado e o que a psicanlise, lacaniana em particular, pode esclarecer a propsito do que designado nesse texto como aHVWUXWXUDGD LGHRORJLD>@ ,P-plicitamente, e quase explicitamente, L. Althusser indicava uma identidade entre a estrutura formal da ideologia e a do inconsciente.57

    eRTXHGHIDWRSRGHPRVREVHUYDUQDVHJXLQWHDUPDomRGH$OWKXVVHU

    6HHWHUQRVLJQLFDQmRDWUDQVFHQGrQFLDDWRGDKLVWyULDWHPSRUDOPDVRPQLSUHVHQoDtrans-histrica e portanto imutabilidade em sua forma em toda extenso da histria, eu retomarei palavra por palavra a expresso de Freud e direi: a ideologia eterna, como o LQFRQVFLHQWH(DFUHVFHQWDUHLTXHHVWDDSUR[LPDomRPHSDUHFHWHRULFDPHQWHMXVWLFDGDpelo fato de que a eternidade do inconsciente no deixa de ter relao com a eternidade da ideologia em geral. Eis porque me considero autorizado, ao menos presuntivamente, a propor uma teoria da ideologia em geral, no mesmo sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente em geral.58

    Essa aproximao terica entre ideologia em geral e inconsciente pelo suposto de que ambos apresentam a mesma forma geral no deixa de ser problemtica, se ela implicar, entre outras conseqncias, na absoro de um pelo outro, vale dizer, da ideo-logia pelo inconsciente. De fato, o modelo utilizado por Althusser para a constituio da Teoria da Ideologia em Geral aquele fornecido pela concepo freudiana de incons-

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    FLHQWH2XVHMDWXGRLQGLFDTXHDRVHDSURSULDUGDVFRQWULEXLo}HVGH)UHXG$OWKXVVHUpde fazer avanos na construo de sua Teoria da Ideologia em Geral.59

    Assim, a tematizao da ideologia em Althusser revela-se bastante distante das for-mulaes prprias a Marx, aproximando-se, desse modo, a itinerrios analticos que nada tm a ver com os textos marxianos propriamente ditos.

    Na seqncia, Althusser passa formulao de uma srie de teses que traduzem seus principais posicionamentos a respeito do tema geral do ensaio.1DSULPHLUDGDVWHVHVHQXQFLDGDVUHWRPDXPDGHQLomRGHLGHRORJLDMiGHVHQYROYLGD

    HPWH[WRVDQWHULRUHVVyTXHDJRUDHODJDQKDXPFRQWRUQRGHQLGRDSDUWLUGDDSUR[LPD-o explcita entre ideologia e inconsciente. Assim, a ideologia representa a relao ima-ginria dos indivduos com suas condies reais de existncia ou, em outras palavras, os homens representam-se de forma imaginria suas condies reais de existncia.60 2DXWRUVXVWHQWDUPHPHQWHTXH

    >@QmRVmRDVVXDVFRQGLo}HVUHDLVGHH[LVWrQFLDVHXPXQGRUHDOTXHRVKRPHQVVHrepresentam na ideologia, o que nela representado , antes de mais nada, a sua relao com as condies reais de existncia. essa relao que est no centro de toda represen-WDomRLGHROyJLFDHSRUWDQWRLPDJLQiULDGRPXQGRUHDO>@pDnatureza imaginria desta relao que sustenta toda a deformao imaginria observvel em toda ideologia.61

    na insistncia em acentuar que na ideologia no esto representados os homens no interior de suas relaes reais, mas a sua relao imaginria com as condies nas quais vivem, que se expressa a aproximao entre inconsciente e ideologia, pois, justamen-te, a deformao da representao imaginria dos indivduos seu efeito maior.

    Segundo essa linha de raciocnio, o carter imaginrio das relaes que os indivduos mantm com as sua condies de existncia um fenmeno insupervel da existncia so-cial, pois e Althusser o diz com todas as letras a representao dos indivduos de sua relao (individual) com as relaes sociais que governam suas condies de existncia e sua vida coletiva e individual, necessariamente imaginria.62 'HVVHPRGRpFDWHJRULFDPHQWHDUPDGDDQHFHVVLGDGHGRLPDJLQiULRHQTXDQWRHOR

    mediador entre os indivduos e sua vida social. Agora, quanto natureza desse imagin-ULR$OWKXVVHUWHUPLQDDH[SRVLomRGHVVHLWHPDUPDQGRTXHQmRLUiPDLVORQJHGHL[DQ-do essa indagao sem nenhuma resposta.

    Na seqncia, enuncia a segunda tese: A ideologia tem uma existncia material, ou seja, as idias, as representaes, etc. no tm uma existncia ideal, espiritual, mas material.63 7UDWDVHGHXPDWHVHSUHVXQWLYDVHJXQGRRSUySULRDXWRUDOJRTXHHOHDUPDPDV

    QmRSURYDDVVHPHOKDQGRVHDXPDUWLItFLRWHyULFRTXHFRQVWUyLSDUDSRGHUMXVWLFDUVXD

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    teoria sobre a materialidade dos aparelhos ideolgicos. exatamente o que enuncia na forma de uma terceira tese: uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua pr-tica ou prticas. Esta existncia material.64 Em suma, a prpria relao imaginria que os indivduos possuem com suas condies de existncia cuja origem Althusser no nos esclarece, j que, segundo ele, essas idias no provm dessas condies de existncia apresenta ela prpria uma existncia material.

    Sem ter mostrado o por que dessa relao imaginria, Althusser passa a descrever o como, isto , descreve o que se passa com os indivduos que vivem na ideologia.

    A ideologia tem uma existncia material e no ideal, na medida em que se manifesta em um aparelho ideolgico material que, por seu turno, prescreve prticas materiais re-guladas por um ritual material, prticas que existem nos atos materiais de um sujeito.65

    De acordo com o autor, as idias desaparecem enquanto tais, pois agora elas apa-UHFHPLQVFULWDVQRVDWRVGDVSUiWLFDVUHJXODGDVSRUULWXDLVGHQLGRVHPXOWLPDLQVWkQFLDpor um aparelho ideolgico.

    Por conseqncia, no intuito de formular uma teoria geral da ideologia superando o pretenso positivismo-historicista de Marx, Althusser acaba negando a existncia ideal GDVLGpLDVDUPDQGR~QLFDHH[FOXVLYDPHQWHDVXDGLPHQVmRPDWHULDODWUDYpVGHVXDinsero nas prticas regidas pelos aparelhos ideolgicos de Estado. Com isso perde de vista uma das mais importantes aquisies de Marx que a relao entre subjetividade HREMHWLYLGDGHTXHVHHQODoDPQDSUiWLFD2XVHMD0DU[UHFRQKHFHDH[LVWrQFLDLGHDOGDVLGpLDVPDVQmRHQTXDQWRHQWLFDo}HVVHSDUDGDVGDVFRQGLo}HVHIHWLYDVDSDUWLUGDVTXDLVelas so produzidas, ou seja, a atividade humana sensvel e em funo desta. Em outras palavras, Althusser perde de vista que as idias so o momento ideal da prtica humana.

    Sempre concebendo o aparelho ideolgico de Estado como o locus por excelncia da prtica, Althusser, alm de negar a possibilidade de existncia de prticas para alm desses aparelhos, tambm constri um novo artifcio terico com receio de no cair no que poderia ser entendido como um vis idealista: a existncia ideal, ou seja, prpria ou HVSHFtFDGDV LGpLDV&RPRUHVXOWDGR WHPVHTXHD LGHRORJLDpSURGX]LGDDSDUWLUGRVaparelhos ideolgicos de Estado, deixando, assim, de ser reconhecida, ao menos, como forma expressiva das condies contraditrias da existncia social efetiva.

    Resta agora determinar o carter dos agentes que atuam no interior dos rituais e prticas regidos pelos aparelhos ideolgicos de Estado. A esse respeito, Althusser, VHPSUHVHYDOHQGRGHH[HPSOLFDo}HVWRPDGDVGDSUiWLFDUHOLJLRVDDUPDTXH

    >@ R VXMHLWRSRUWDQWR DWXD HQTXDQWR DJHQWHGR VHJXLQWH VLVWHPD HQXQFLDGRHPVXDordem de determinao real): a ideologia existente em um aparelho ideolgico mate-rial, que prescreve prticas materiais reguladas por um ritual material, prticas estas

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    que existem nos atos materiais de um sujeito, que age conscientemente segundo sua crena.66

    De sorte que os sujeitos s vm a existir no interior dos aparelhos, cujos rituais pres-crevem suas prticas e a materialidade destas nada tem a ver com a atividade material pro-priamente dita, qual seja, a desenvolvida na produo das condies de existncia, mas, exclusivamente, com o carter dito material dos rituais inscritos nos aparelhos. Assim, no se tem apenas uma autonomia relativa da instncia superestrutural, que retroage VREUHDEDVHPDWHULDOSDUDXWLOL]DUDPHWiIRUDWRSRJUiFDGRHGLItFLRPDVHPYHUGDGHVHHVWiGLDQWHGHXPDFRQJXUDomRTXHWHQGHDFULDUPDWUL]DUHGHWHUPLQDUWRGDDSUiWLFDpossvel. Vale dizer, no h alternativa, todas as prticas so determinadas, em ltima instncia, pelos aparelhos ideolgicos de Estado.

    assim que Althusser, uma vez mais, enuncia duas teses simultneas:

    1) S h prtica atravs de e sob uma ideologia e 2) S h ideologia pelo sujeito e para o VXMHLWR>@RXVHMDDLGHRORJLDH[LVWHSDUDVXMHLWRVFRQFUHWRVHHVWDGHVWLQDomRGDLGHR-logia s possvel pelo sujeito: pela categoria de sujeito e de seu funcionamento.67

    A categoria sujeito, ao mesmo tempo que condio de possibilidade da existncia da ideologia, no constitutiva de toda ideologia, uma vez que toda ideologia tem por IXQomRpRTXHDGHQHFRQVWLWXLULQGLYtGXRVFRQFUHWRVHPVXMHLWRV.68 Trata-se, portan-to, de um jogo de dupla constituio, reciprocidade que garante o funcionamento de toda ideologia.

    Com o objetivo de apontar o status que a ideologia adquire nesse ensaio, chamo aten-omRSDUDDVHJXLQWHDUPDomRRKRPHPpSRUQDWXUH]DXPDQLPDOLGHROyJLFR69 Isso remete, uma vez mais, para o carter trans-histrico da ideologia, no entanto, aqui o autor vai mais longe, pois inscreve a ideologia no interior da prpria natureza humana. Vale di-zer, a ideologia demarca necessariamente o horizonte primordial de toda representao e de toda prtica, enquanto relao imaginria e, portanto, deformante dos indivduos com as suas condies de existncia. Donde a impossibilidade de pensar o homem liberto da condio ideolgica, do mesmo modo que, supostamente, impensvel o homem sem o inconsciente. Em outras palavras, mais do que razovel admitir em Althusser o seguinte paralelismo: a ideologia funciona para a sociedade do mesmo modo que o inconsciente para o indivduo, embora esse modo de colocar as coisas seja, de certo modo, velado pelo autor ao, simplesmente, deix-lo de lado.

    Prosseguindo na caracterizao da constituio dos indivduos concretos em su-jeitos, o autor situa um ritual caracterstico do aparelho ideolgico, o reconhecimento, cuja existncia poderia ser percebida num simples cumprimento cotidiano, onde voc e eu j somos sempre sujeitos e que, enquanto tais, praticamos ininterruptamente os rituais

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    do reconhecimento ideolgico, que nos garantem que somos de fato sujeitos concretos, individuais, inconfundveis e (obviamente) insubstituveis.70

    Ser um sujeito concreto s possvel no plano do reconhecimento ideolgico, ou seja, no interior das prticas e rituais dos aparelhos ideolgicos de Estado, nos quais so produ-zidas as relaes imaginrias desses indivduos com suas condies de existncia. No se do, pois, sujeitos concretos para alm da vivncia desses rituais. H, alm disso, atravs do reconhecimento ideolgico, o predomnio do imaginrio na existncia cotidiana.

    Nesse mesmo ensaio, Althusser desenvolve uma tese que traduz, a nosso ver, a linha fundamental de desenvolvimento de sua obra em relao ideologia: Toda ideologia interpela os indivduos concretos enquanto sujeitos concretos, atravs do funcionamento da categoria de sujeito.71$VVLPFRPRYLPRVDSHQDVQDSDUWHQDOGRUHIHULGRHQVDLRpque a questo do sujeito emerge enquanto categoria, por meio da qual a ideologia es-WUXWXUDGDHWHPJDUDQWLGRRVHXIXQFLRQDPHQWR2XQDVSDODYUDVGRSUySULRDXWRUVyKiLGHRORJLDSHORVXMHLWRHSDUDRVVXMHLWRV2XVHMDLGHRORJLDH[LVWHSDUDVXMHLWRVFRQFUHWRVe esta destinao da ideologia s possvel pelo sujeito: isto , pela categoria do sujeito e de seu funcionamento.72

    Alm disso, a prpria funo da ideologia constituir indivduos concretos em su-jeitos. Essa funo da ideologia deve ser entendida, no entanto, a partir do que ela , ou seja, segundo Althusser, constituidora de sujeitos, e isto no deixa de ser ao contrrio, as duas dimenses esto interligadas uma relao imaginria dos indivduos com suas condies reais de existncia.73$OWKXVVHUWDQWRQDGHQLomRGRTXH ideologia quanto na delimitao de sua funo, ao introduzir a noo de imaginrio e de constituio dos sujeitos se aproxima nitidamente das formulaes da psicanlise de Lacan, segundo a qual a fase-do-espelho desempenha uma papel decisivo como matriz e esboo na cons-tituio do eu.74

    A constituio dos indivduos em sujeitos deriva, assim, do suposto mecanismo de interpelao caracterstico de toda ideologia, que propicia a transformao atravs das relaes imaginrias do indivduo com as suas condies de existncia tambm imagi-nria do indivduo em sujeito. Em suma, essa transformao que se d, no nvel do ima-ginrio, dada pelo mecanismo interpelativo de toda ideologia, que nas prticas e rituais dos aparelhos ideolgicos de Estado possibilita o reconhecimento (fase-de-espelho) do LQGLYtGXRHQTXDQWRVXMHLWRQDFRQWH[WRHVSHFtFRGDTXHODLGHRORJLD2UDHQWmRDinterpelao teria, alm da funo de transformar imaginariamente o

    indivduo em sujeito, tambm a funo de conduzir sua auto-sujeio ao sistema do-minante e por essa via, assegurar a reproduo social em seu conjunto.75 Portanto, ser um sujeito um efeito da sujeio ideologia, um efeito da permanente insero dos

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    indivduos e suas aes em rituais e prticas conduzidas pelos aparelhos ideolgicos de Estado, na medida em que o reconhecimento de ser um sujeito um reconhecimento de carter ideolgico, segundo Althusser, imposto pela prpria ideologia.

    Nesse sentido, como acabamos de ver, a constituio do sujeito deriva da sujeio do indivduo concreto ao esquema ideolgico dominante. (PRXWUR OXJDUPDV VREUH DPHVPD TXHVWmR R OyVRIR IUDQFrV UHFRQKHFH TXH R

    indivduo pode ser agente de uma prtica, mas s o ser na condio de se revestir da forma sujeito.76

    Mas, o aspecto a ser ressaltado que no ensaio sobre os AIE, apesar de aparncia em VHQWLGRRSRVWR$OWKXVVHUQmRVHOLEHURXLQWHLUDPHQWH>@GDLGHQWLFDomRHQWUHLGHROR-gia e deformao (toda deformao tem um contedo verdadeiro sob a forma falsa), nem da oposio ideologia-verdade que lhe correlativa.77

    A esse respeito, Althusser declara que, estando todos os indivduos como que sub-mersos na realidade da ideologia, em sendo essa realidade inescapvel e insuprimvel, verdadeira condio eterna que engolfa a todos, preciso situar-se fora da ideologia, isto pQRFRQKHFLPHQWRFLHQWtFRSDUDSRGHUGL]HUHVWRXQDLGHRORJLDFDVRH[FHSFLRQDORX(caso mais geral) estava na ideologia.78 2DXWRUUHDUPDDVVLPDTXLORTXHVH WRUQRXDPDUFDUHJLVWUDGDGHVXDREUDD

    contraposio cincia versus ideologia, alm de que atribui ao cientista a posio privi-OHJLDGDSDUDUHYHODUDYHUGDGHRFXOWDVRERYpXPLVWLFDGRUGDVPHQWLUDVFROHWLYDV79 7DPEpPDRDQDOLVDUFRPHVSHFLDODWHQomRDFRQJXUDomRLGHROyJLFDIDPLOLDUGH-

    signada como patolgica, o autor observa as fases de concepo, nascimento e desen-volvimento da criana, concluindo pela existncia de uma presso e predeterminao ideolgica.80

    Em suma, seguindo o decurso analtico do autor at esse ponto do texto, pode-se efetuar a seguinte sntese:

    A ideologia, em virtude de sua anterioridade em relao aos indivduos concretos, HODSUpFRQJXUDHSUpIRUPDRVVXMHLWRVLQFOXVLYHQDHVIHUDGDYRQWDGHHGRVVHQWLPHQ-WRVHODVHSURGX]QXPXQLYHUVRLPDJLQiULRRQGHRVLQGLYtGXRVSDVVDPDVHLGHQWLFDUenquanto sujeitos, por meio do reconhecimento interpelativo; h uma interiorizao desse tecido imaginrio que possui a capacidade de permanecer invisvel, irreconhecvel pelos LQGLYtGXRVFRPXQVHGDGDDVXDXrQFLDHVSRQWkQHDHVFDSDDRFRQWUROHGHWRGRVFRPexceo, claro, dos cientistas.

    Por ltimo, na medida em que a estrutura formal da ideologia sempre idntica, Al-WKXVVHUWRPDFRPRH[HPSORRIXQFLRQDPHQWRGDLGHRORJLDUHOLJLRVDFULVWmHYHULFDTXHtambm ela se dirige aos indivduos para transform-los em sujeitos.81

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    A partir da anlise realizada, o autor constata que: a estrutura de toda ideologia, ao interpelar os indivduos enquanto sujeitos em nome de um Sujeito nico e absoluto especular, isto , funciona como um espelho, e duplamente especular: esse desobramento especular constitutivo da ideologia e assegura o seu funcionamento.82

    Note-se aqui o que j foi sublinhado anteriormente: o indivduo se transforma em sujeito atravs da sujeio ideologia, isto , o sujeito se constitui imaginariamente espe-lhando-se no outro. Mas o autor vai literalmente mais alm, pois esse outro, a partir do H[HPSORSDUDGLJPiWLFRGDLGHRORJLDUHOLJLRVDWUDQVPXWDVHQR2XWUReRTXHVHSRGHFRQVWDWDUQDVHJXLQWHDUPDomR

    Toda ideologia tem um centro, lugar nico ocupado pelo Sujeito Absoluto, que interpe-ODjVXDYROWDDLQQLGDGHGHLQGLYtGXRVFRPRVXMHLWRVQXPDGXSODUHODomRHVSHFXODUque submete os sujeitos ao Sujeito, dando-lhes no Sujeito, onde qualquer sujeito pode contemplar sua prpria imagem (presente e futura).83

    Embora Althusser considere o aparelho ideolgico escolar como o mais importante de todos, tendo substitudo, inclusive, o par igreja-famlia, o exemplo escolhido por ele SDUDH[HPSOLFDUDHVWUXWXUDGHIXQFLRQDPHQWRGHWRGDLGHRORJLDpDLGHRORJLDUHOLJLRVDcrist.3DUDQDOL]DUEXVFDUHLQDVSDODYUDVGH'RVVHDTXLORTXHGRQRVVRSRQWRGHYLVWD

    caracteriza sinteticamente a propositura de Althusser a respeito da ideologia:

    Althusser eleva a instncia ideolgica ao estgio de verdadeira funo, desfrutando de uma autonomia relativa que no permite mais sua incluso, de maneira mecnica, no TXHDVXEHQWHQGH0DVHVVHGLVWDQFLDPHQWRGD LGHRORJLDpUHIRUoDGRSHODKLSHUWURDdesta ltima, a qual assume a forma de uma estrutura transhistrica, a que Althusser UHFRUUHSDUDFRQVWUXLUDWHRULD$HFiFLDGRLGHROyJLFRUHGXQGDSRLVQDFULDomRSHODVprticas induzidas, de sujeitos em situao de enfeudao absoluta em face do lugar que OKHVpDWULEXtGRRVWUDQVIRUPDHPREMHWRVPLVWLFDGRVGHIRUoDVRFXOWDVUHSUHVHQWDGDVpor um novo sujeito da histria: a ideologia.84

    Recebido em agosto/2006; aprovado em setembro/2006.

    Notas

    3URIHVVRUD'RXWRUDGR'HSDUWDPHQWRGH)LORVRDGD8)0*(PDLOHPMFKDVLQ#XROFRPEU

    1&+$6,1-0DU[(VWDWXWR2QWROyJLFRH5HVROXomR0HWRGROyJLFD ,QPensando com Marx. So Paulo, Ensaio, 1995, p. 337.

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    2 Ibid., p. 338.3'266()Histria do Estruturalismo. So Paulo, Ensaio, v. I, 1993, p. 329.4 Ibid.5 Ibid.6 Ibid., p.342.7$/7866(5/5HVSRVWDD-RKQ/HZLV,QPosies 1. Rio de Janeiro, Edies Graal, p. 67.8 Id., p 68.9 Ibid.10 BALIBAR, E. Sobre os Conceitos Fundamentais do Materialismo Histrico. In: Ler O Capital. Rio 'H-DQHLUR=DKDUY,,SS

    11 FERRY, L. e RENAUT, L. O Pensamento 68. So Paulo, Ensaio, 1988, p. 46.12 Ibid., p. 47.13'266(RSFLWS

    14 ALTHUSSER, L. Ler O Capital5LRGH-DQHLUR=DKDUSSY,15 Ibid., p. 2216 Ibid., p. 1417'266(RSFLWS

    18*,$11277,-$&RQWUD$OWKXVVHU ,Q([HUFtFLRVGH)LORVRD. So Paulo, Brasiliense/ Cebrap, 1975, p. 87.19 ALTUSSER, Ler O Capital, op. cit. p. 25.20 CHASIN, op. cit. p.336.21 Ibid., p. 520.22 ALTUSSER, L. Elementos de Auto-Crtica. In: Posies 1. Rio de Janeiro, Graal, 1978, p. 91. 23 Ibid.24 Ibid., p. 95.25 Ibid., p. 79-80.26 Ibid.27 ALTUSSER, L. Pour Marx. Paris, Franois Maspero, 1973, p.171.28 Id. Ler O Capital, op. cit., p. 13.29 Id. /HQLQHD)LORVRD. Lisboa, Estampa, 1970, p. 52.30 Ibid., p.60.31 Id. Marxismo e Humanismo. In: Anlise Crtica da Teoria Marxista, op. cit, p. 204.32 Ibid., p. 205.33 Ibid., p. 167.

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    34 Ibid., p. 145.35 Ibid., p.207.36/9$5(6*$Poltica e Subjetividade: A Construo da Categoria Processo sem Sujeito em Louis Althusser'LVVHUWDomRGH0HVWUDGRHP)LORVRD)DFXOGDGHGH)LORVRDH&LrQFLDV+XPDQDVGD8)0*1996, pp. 34-35.37 ALTHUSSER, Pour Marx, op. cit., p. 242. 38 Id. Thorie, Pratique Thorique et formation thorique. Ideologie et Lutte Idologique. Cahiers Marxis-tes-Leninistes, 1966, pp. 30-31.39 RANCIRE, J. Sobre a Teoria da Ideologia In: Lecturas de Althusser. Buenos Aires, Galerma, 1970, pp. 328 e 330.40 ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideolgicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, pp. 53-54.41 Ibid., p. 58.42 Ibid., p. 59.43 Ibid., p. 62.44 Ibid., p. 73.45 Ibid., p. 67.46 Ibid., p. 69.47 Ibid., p. 79.48 Ibid., p. 82.49 Ibid.50 Ibid., p. 83.510$5;.H(1*(/6)A Ideologia Alem. So Paulo, Grijalbo, 1977, p. 37.52 Ibid. 53 ALTHUSSER, Aparelhos Ideolgicos de Estado, op. cit., p. 83.54 Ibid., p. 84.55 Ibid. 56 Ibid.57'25$

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    64 Ibid., p. 89.65 Ibid., p. 92.66 Ibid.67 Ibid., p. 93.68 Ibid.69 Ibid., p. 94.70 Ibid., p. 95.71 Ibid., p. 96.72 Ibid., p. 93.73 Ibid.74 LACLAU, E. Poltica e Ideologia na Teoria Marxista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 106.75 Ibid., p.107, nota 32.76 ALTHUSSER, Aparelhos Ideolgicos de Estado, op. cit. p. 67.77 ALBUQUERQUE, J. A. G. Introduo Crtica. In: Aparelhos Ideolgicos de Estado, op. cit. p. 40.78 ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideolgicos de Estado, op. cit., p. 97.790e6=526,)LORVRD,GHRORJLDH&LrQFLD6RFLDO. So Paulo, Ensaio, 1993, p. 507.80 ALTHUSSER, Aparelhos Ideolgicos de Estado, op. cit. p. 99.81 Ibid., p. 100.82 Ibid., p. 102.83 Ibid. 84'266()RSFLWS