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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
Pamela Fernanda de Andrade
LEPROSÁRIO SÃO ROQUE:
DA MODERNIDADE À EXCLUSÃO
(1926 - 1980)
CURITIBA
2012
Pamela Fernanda de Andrade
LEPROSÁRIO SÃO ROQUE:
DA MODERNIDADE À EXCLUSÃO
(1926 - 1980)
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção de grau licenciatura em História, da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná. Orientadora: Vera Irene Jurkevics
CURITIBA
2012
DEDICATORIA
Dedico essa pesquisa a todas as pessoas que após contraírem a hanseníase
se viram do outro lado da fronteira, como disse Antônio Magalhães Martins “era a
fronteira dos solitários, onde jamais chegaram os gestos, as vozes e as palavras
amigas” 1. Portanto dedico aos que passaram pelo Leprosário São Roque é sentiram
na pele o sofrimento de estar do outro lado da fronteira.
1 MARTINS, Antônio Magalhães. Do outro lado da fronteira. São Paulo.Edições Paulina, 1964.p, 03.
AGRADECIMENTOS
Como afirmou Raul Seixas em sua música Prelúdio “Um sonho que se sonho
só é só um sonho, um sonho que se sonha junto é realidade”. Por esse motivo
quero agradecer a todas as pessoas que sonharam esse sonho comigo de modo
que ele se tornou realidade com a conclusão dessa pesquisa.
Primeiramente agradeço a minha família e ao meu noivo Diego Carneiro que
tanto me apoiaram durante a vida acadêmica, foi por meio de suas palavras de
elogio, criticas e incentivos me fizeram chegar até onde cheguei. Agradeço a Deus
pela minha vida, a minha orientadora Vera Irene Jurkevics pela dedicação, paciência
e orientação que me deu durante esse percurso e aos professores do curso de
história da Universidade Tuiuti do Paraná que foram fundamentais na minha
formação.
Agradeço também aos meus grandes amigos Nielcio da Silva e Talise
Gasparetto que me ajudaram durante o período da graduação. E os demais amigos
que me ajudaram a concluir esse trabalho seja com os incentivos, sugestões e
documentos que foram essenciais para a pesquisa.
Por fim agradeço muito aos ex-internos e amigos Isabel de Andrade e
Sebastião Pamplona que abriram suas feridas e memórias para a pesquisa e foram
fundamentais para que ela se tornasse realidade.
Obrigada a todos.
ÍNDICE DE FIGURAS FIGURA 1 ............................................................................................................................................ 32
FIGURA 2 ............................................................................................................................................ 38
FIGURA 3 ............................................................................................................................................ 40
FIGURA 4 ............................................................................................................................................ 41
FIGURA 5 ............................................................................................................................................ 43
FIGURA 6 ............................................................................................................................................ 44
FIGURA 7 ............................................................................................................................................ 45
FIGURA 8 ............................................................................................................................................ 53
FIGURA 9 ............................................................................................................................................ 57
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 11
1. HISTÓRIA DA LEPRA E DA SAÚDE PÚBLICA NO OCIDENTE . ............................ 16
1.1 HISTÓRIAS DA LEPRA NO OCIDENTE. ......................................................................... 16
1.2. AVANÇOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS NA ÁREA DA SAÚDE: A BUSCA
PELO TRATAMENTO E A CURA DA LEPRA. ...................................................................... 21
1.3 SAÚDE PÚBLICA NO INÍCIO DO BRASIL REPÚBLICA E O CONTROLE DA
LEPRA E DOS LEPROSOS POR MEIO DOS MECANISMOS DE ISOLAMENTO. . 24
2. LEPROSÁRIO SÃO ROQUE. ................................................................................................ 34
2.1 CONTEXTO DA FUNDAÇÃO DO LEPROSÁRIO SÃO ROQUE. ............................ 34
2.2 ALTERAÇÕES NO TRATAMENTO DOS INTERNOS DO LEPROSÁRIO SÃO
ROQUE............................................................................................................................................... 46
2.3 FIM DO PROCESSO DE EXCLUSÃO E A DECADÊNCIA INSTITUCIONAL. .... 65
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 69
FONTES ............................................................................................................................................. 72
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ......................................................................................... 73
11
INTRODUÇÃO
A lepra foi uma doença que afligiu a humanidade desde as primeiras
civilizações orientais. Desde os tempos bíblicos sua denominação foi associada ao
estado de impureza, e seus portadores, foram considerados pessoas impuras2, o
que acarretou uma séria discriminação para esses doentes, fato que não se
extinguiu até dias atuais, além de ter assumido novas características. Essa
enfermidade resistiu ao tempo, difundida por todos os povos, e que chegou nas
Américas juntamente com os primeiros colonizadores europeus.
Essa moléstia continua a amedrontar a sociedade ainda em sua
contemporaneidade, tida como contagiosa e de extrema periculosidade neste início
do século XXI. Em tempos anteriores devido a doença ser infecto-contagiosa,
causando inclusive, sérias deformações nos pacientes, amedrontava, provocando
repulsa dos enfermos. As deformações ocorriam em função da precariedade do
tratamento, desfigurando e afetando diretamente a recuperação e a cura.
Todos esses fatores acarretaram a discriminação que se desenvolveu em
torno dessa enfermidade, e influenciou diretamente a política sanitária destinada ao
seu tratamento, que consistia principalmente em seu isolamento, em geral nos
alojamentos afastados dos centros urbanos.
Enquanto a moléstia da lepra diminuía no continente europeu, os primeiros
vestígios da temida doença apareciam na África e na América Latina, pois os
colonos espanhóis e portugueses a trouxeram em sua bagagem. 3
No Brasil se tem registros da preocupação com a doença desde 1696, com
o pedido de Artur de Sá e Meneses, então Governador e Capitão Geral do Rio de
Janeiro, solicitando ao rei de Portugal a construção de um hospital para tratar os
doentes de lepra, mas foi necessário meio século para que o primeiro fosse
construído. Em 1741, se iniciou o combate da lepra por meio dos alojamentos
edificados nas periferias de alguns estados brasileiros. No início do século XX, o
Brasil passou a adotar medidas mais eficazes no tratamento da doença,
2 A Bíblia Sagrada. Antigo Testamento: Levítico 13: 1-59. 3 Brasil, Ministério da Saúde. Sec. Nac. de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nac. de Dermatologia Sanitária. Controle da Hanseniase: Rio de Janeiro: DNTS/ Nutes, 1989. P.16.
12
apresentadas no primeiro Congresso Internacional de Leprologia, realizado, em
1897, na cidade de Berlim. 4
Durante os anos de 1910 e 1920, a preocupação com o descaso no
tratamento da doença tornou-se discussão constante na área da saúde brasileira, e
a medida mais defendida foi o isolamento. Nesse cenário de discussões e denuncias
de descasos se destacaram as iniciativas de Emilio Ribas, Oswaldo Cruz e Alfredo
da Matta. Essas discussões resultaram na iniciativa do isolamento compulsório
iniciado como tratamento em diversas regiões do país. O Departamento Nacional de
Saúde criou então a inspetoria de profilaxia da lepra e doenças venéreas, o que
resultou na construção de leprosários em diferentes estados, como uma medida
para controlar a doença.5
No ano de 1924, decorrente das descobertas e reflexões sobre a
periculosidade da doença, adotou-se a medida de internação compulsória dos
diagnosticados com a doença. Essa medida tinha por objetivo salvaguardar a
coletividade sadia da população evitando qualquer contato com os doentes.
Curitiba no início do século XX, a exemplo de outras cidades, estava passando
por um significativo aumento populacional. Porém, esse aumento não foi
acompanhado de uma urbanização eficaz devido à falta de recursos financeiros.
Nesse período, o Governo Estadual estava sob o comando de Caetano Munhoz da
Rocha (1920-1928), que enfrentou graves problemas epidemiológicos, que
aumentaram consideravelmente a taxa de mortalidade no Estado. Decorrente disso,
a política sanitária foi considera como algo de primeira necessidade da época6.
Dentre as endemias que assolaram a Curitiba do início do século XX, uma das
mais graves e assustadoras foi a “lepra”, que ameaçava constantemente a saúde da
sociedade curitibana. Por esse motivo a construção de hospitais de reclusão para
esses pacientes se tornou algo urgente a ser providenciado.
Foi nesse contexto histórico-social que no ano de 1926, obedecendo à
política sanitária de Munhoz da Rocha, foi inaugurado o Leprosário São Roque,
localizado na região metropolitana de Curitiba. O Leprosário se destacou no cenário
4C , Geraldo Barroso de. Reis Papas e “Leprosos”, Belo Horizonte, Pelicano, 2004. P. 21 5 Op. Cit., Ministério da Saúde. Sec. Nac. de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nac. de Dermatologia Sanitária. Controle da Hanseniase: Rio de Janeiro: DNTS/ Nutes, 1989. P. 16. 6 BUENO, Fernanda Godoy. Caetano Munhoz da Rocha e as Políticas de Saúde pelo Paraná (1920-1928). Monografia. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba. 2003. P. 24-25.
13
médico do período por ser considerado um hospital modelar em comparação com
outros do mesmo período, para o tratamento dessa doença.
Essa pesquisa objetivou analisar em que condições viviam os leprosos, em
Curitiba, no decorrer da primeira metade do século XX, e qual o papel que o
leprosário São Roque desempenhou no tratamento desta moléstia desde a sua
inauguração no ano de 1926, até os primeiros anos da década de 1980, em que o
internamento compulsório dos pacientes no Leprosário não foi mais tida como uma
prática necessária.
Para alcançar os objetivos propostos procurou-se descrever brevemente o
estigma que os leprosos sofreram no decorrer do tempo, desde a descoberta da
doença no século VI a.C até meados do século XX. Depois foi preciso contextualizar
a sociedade paranaense no decorrer daquele século, para que fosse possível
Identificar as necessidades que a sociedade paranaense tinha para a construção do
Leprosário São Roque e analisar o porquê do Leprosário ter sido considerado
símbolo de “modernidade” para o tratamento da lepra, e como isso influenciou no
tratamento de seus pacientes desde o seu início em 1926, até os primeiros anos da
década de 1980.
Durante a trajetória de análise na tentativa de responder a todos os objetivos
que foram propostos, utilizou-se como referenciais teóricos alguns conceitos
apresentados por Michael de Focault em sua obra Vigiar e Punir, principalmente os
que tratam da disciplina como forma de controle dos corpos para que se tornassem
funcionais e dóceis, disciplina esta que tentou ser exercida por meio de uma
localização funcional em que além de separar os internos, ainda era responsável por
dar uma funcionalidade à instituição. O Hospital São Roque foi projetado para ser
uma localização funcional pois tentou tratar os pacientes e vigiar seus corpos. 7O
hospital era um espaço que não se destinava apenas a vigiar os pacientes, mas
também lhes proporcionar tratamento. A instituição durante o período pesquisado
sempre tentou garantir a vigilância dos internos e para isso precisava contar com
uma estrutura panoptica.
Para compreender a dinâmica do internamento e como os pacientes eram
tratados durante o período de isolamento, o Leprosário foi analisado dentro do
conceito de instituição total definido por Erving Goffman em sua obra Manicômios,
7 FOCAULT, Michel. Disciplina in: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010
14
prisões e conventos, em que o hospital pode ser entendido como uma instituição
com características de fechamento devido às condições internas do ambiente e que
tentou dar um direcionamento forçando uma ruptura do paciente com o mundo
exterior à instituição. Tal fenômeno tinha a possibilidade de ocorrer se uma vez que
os internos tivesse “uma morte civil”, pois assim poderia perder todos os seus
direitos e autonomias, não tinham o direito de sair e, nem de receber visitas sem
permissão e monitoramento, e, em alguns casos, até mesmo para casar
necessitavam de uma permissão especial do diretor do hospital.8
A obediência às regras deveria se dar devido a “mortalização do eu” do
interno, pois isso deveria fazer com que a grande maioria se sentisse parte
integrante da instituição, dessa maneira a disciplina poderia ser exercida mais
facilmente pelo grupo da equipe dirigente, que no Hospital São Roque era formado
pela Congregação das Irmãs Franciscanas de São José. 9
A realização da pesquisa contou com a análise de reportagens de jornais
comerciais, desde a inauguração da instituição até os anos finais do isolamento, e
até mesmo de reportagens que ultrapassaram esse recorte temporal, mas que
trouxeram informações sobre o seu funcionamento em anos anteriores. Também
foram pesquisados relatórios de governos do Estado do Paraná principalmente o do
ano de 1926, que trouxe muitas informações sobre o funcionamento e objetivo do
hospital, e mensagens do governador paranaense apresentadas ao Congresso
Legislativo do Estado. Outra fonte muito rica em informações foram as entrevistas de
dois ex-internos que relatam suas vidas e sofrimentos durante o período de
isolamento compulsório.
A monografia se divide em dois capítulos, sendo que o primeiro tratou da
história da lepra no ocidente, descrevendo brevemente como a moléstia
acompanhou a história até o século XX. Depois se esboçou dados acerca dos
avanços científicos e tecnológicos que promoveram mudanças, tanto no
entendimento, quanto na maneira de tratar a enfermidade e seus portadores.
O segundo capitulo procurou apresentar o Leprosário São Roque, sua história,
seu funcionamento, e o tratamento realizado com os doentes e como ele se
modificou com o decorrer do tempo sob a influência dos avanços científicos e
medicinais. Além de apresentar como os doentes e seus familiares foram tratados 8 “ Eu não tenho lepra. Eu tenho o mal de Hansen”. Gazeta do povo. Doente: 09 de abril de 1984. 9 GOFFMAN, Erving. As características das instituições totais, a fase de internado e estrutura social. In: Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo, Perspectiva S.A, 2008.p. 16
15
pela sociedade sadia, e como ficaram os que foram abandonados ou não quiseram
sair da instituição.
16
1. HISTÓRIA DA LEPRA E DA SAÚDE PÚBLICA NO OCIDENTE .
1.1 HISTÓRIAS DA LEPRA NO OCIDENTE.
A lepra ou hanseníase é uma doença infecciosa causada por um bacilo
denominado de Mycobacterium leprae. A doença se manifesta na pele e nos nervos
periféricos, apresentando formas de evoluções clínicas benignas, com curas
espontâneas, e formas malignas, que são as formas consideradas graves, pois
comprometem as estruturas e os órgãos dos doentes, podendo causar deformações
corporais. 10
A doença se divide em quatro formas, de acordo com a evolução do quadro
clínico do doente, no início ela é denominada de indeterminada. Nessa fase a
doença evolui em direção a um dos pólos, conforme o estado de imunidade
específica do portador. Se o doente tiver um bom mecanismo de defesa, a
hanseníase passará a ser da forma tuberculóide que acomete alguns nervos
superficiais, não é contagiosa e pode ocorrer a cura espontânea. Porém, se o
paciente não tiver resistência à doença passará ao polo oposto, na forma
Virchowiana em que os bacilos multiplicam-se acometendo toda a pele e alguns
órgãos internos, causando deformações corporais. 11
A hanseníase só é transmitida na forma multibacilar, com o bacilo sendo
expelido principalmente pelas vias aéreas superiores, nas secreções ocasionadas
por tosses ou espirros. Por mais que o Mycrobacterium leprae seja de alta
infecciosidade, seu período de incubação é longo, demorando anos para que a
doença se manifeste no organismo do infectado. A hanseníase não apresenta uma
característica letal, o doente pode ficar deformado e multilado para o resto da vida,
morrendo com a hanseníase e não da hanseníase.12
Os seres humanos possuem uma resistência natural e alta à doença, todavia
essa resistência pode ser prejudicada de acordo com o ambiente no qual o portador
esteja inserido. Um ambiente insalubre, apresentando habitações ruins, péssimas
10 BRASIL, Ministério da Saúde. Sec. Nac. de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Hanseníase como problema de saúde pública In: Controle da Hanseníase: RJ: DNTS/ Nutes, 1989, p.13. 11 BARROSO DE C , Geraldo. Reis Papas e “Leprosos”, Belo Horizonte: Pelicano, 2004, 27-28. 12 Id.ibid., p. 5.
17
condições de higiene, e uma alimentação pobre favorecem a baixa resistência à
doença. 13
A origem dessa doença é incerta, os primeiros relatos acerca de sintomas
que caracterizam a lepra apareceram no Oriente, e foram as primeiras grandes
civilizações orientais, como China, Índia e Babilônia que descreverem os quadros
clínicos da doença e os primeiros modos de tratamento. Porém, a maior dúvida que
permaneceu foi de como a doença se propagou pelo território ao longo do Ocidente.
Muitos povos foram acusados de disseminar a enfermidade da lepra, sendo
que os fenícios foram mais responsabilizados devido as suas viagens como
mercadores e as colônias que fundaram. Essa crença foi tão bem aceita que durante
um longo período ficou conhecida como “mal fenício ”. 14
Durante muito tempo acreditou-se que a lepra foi levada para a Europa
durante as cruzadas, mas com as descobertas arqueológicas se constatou a
existência da enfermidade desde os primeiros milênios da Era Cristã. 15
A sociedade medieval européia ocidental se destacou por sua forte
religiosidade católica, tendo a Igreja Católica como instituição fundamental da
sociedade que ditava as regras de convívio moral e religioso, além de ter domínio
sobre as explicações científicas. Desse modo, as explicações de doença e saúde
para o homem medievo, estavam diretamente ligadas à ideia de pecado, punição e
cura defendida pela crença do cristianismo. 16
Com uma sociedade em que o poder de decisão e explicação se
concentrava na Igreja, e em seus representantes sua cultura era baseada na
tradição católica, com explicações e decisões voltadas para o seus sistemas de
crenças e não para os conhecimentos científicos que fossem contrários a religião.
As doenças e seus tratamentos não escapavam dessa realidade, por esse motivo o
tratamento com o doente leproso nesse período foi baseado mais em ideias
religiosas que propriamente terapêuticas e medicinais.
Grande parte da representação acerca da lepra e do leproso ocorreu devido
a maneira pela qual a doença foi abordada na Bíblia Sagrada, que pouco a tratou
como uma enfermidade, mas a enfatizando como castigo, punição às pessoas que 13 RICHARDS, Jefrey. Sexo, Desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 153. 14 BARROSO DE C Op. cit., p. 17. 15 Id.ibid., p.19. 16 MONTEIRO, Yara Nogueira. Doença e pecado no imaginário cristão: um estudo sobre a lepra na Idade Média. In: Estudos da religião. 1999,p. 01.
18
cometeram algum tipo de pecado que as tornaram, naquela visão, impuras e,
portanto merecedoras de serem vitimadas com a lepra, conforma evidencia a
passagem do Levítico,
O leproso portador dessa enfermidade terá suas vestes rasgadas, e sua cabeça raspada; cobrirá o bigode e clamará: impuro, impuro. Enquanto durar a sua enfermidade, ficará impuro e, estando impuro, habitará só: a sua habitação será fora do povoado. 17
O portador da lepra durante o período medieval foi considerado, em geral,
como um indivíduo estranho ao seu grupo social, responsável por colocar sua
comunidade no caminho do pecado, sendo assim não poderia mais permanecer
como parte da sociedade “normal” e, portanto, deveria ficar segregado dela até o fim
de sua vida. Os doentes eram colocados em um lugar afastado da parcela sadia da
população, para que não a corrompesse, era uma tentativa de retornar com a
normalidade daquela comunidade.
Visto desta forma, o leproso era um pecador, o que o desqualificava de ser
um cidadão cristão com os mesmos direitos civis e religiosos que os demais. Assim,
não podia participar das atividades que a sociedade pura e sadia estava incluida.
Qualquer um podia ser denunciado como sendo portador da lepra, o que seria
investigado o que, especialmente, no início era feito pelos próprios religiosos. Com o
crescimento das vilas e cidades, esse procedimento ficou inviável e a Igreja
designou que os magistrados locais deveriam assumi-la. Só mais tarde a tarefa
destinou-se aos médicos.18
Essas investigações buscaram indícios da doença no suspeito, para isso
buscaram sinais baseados nas descrições de Gui de Chauliac, cirurgião famoso, que
escreveu uma obra de referência da medicina medieval, a Cirurgia Magna. Médico
de três papas, descrevia com precisão as doenças e por isso os médicos se
baseavam nele para as investigações. 19
Gui de Chauliac descreveu os sinais que um leproso tinha:
um arredondamento dos olhos ; perda de cabelo; particularmente das sobrancelhas e pestanas; aparecimento de machas e pústulas na cabeça; dilatação das narinas; engrossamento dos lábios; uma aspereza de voz; hálito fétido e um horrível odor corporal; e o olhar fixo e malicioso do sátiro20 .
17 BÍBLIA. A.T. Levitico. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília. Cortez, 1969. Cap. 1, vers. 1-59. 18 RICHARDS, op. Cit,p. 153. 19 BARROSO DE C, Op. Cit, p. 44. 20 RICHARDS,op.cit. p. 154.
19
Esses sinais descritos também foram apresentados em outras doenças,
além da lepra. Sendo assim, era comum haver diagnósticos errados, e
consequentemente esses doentes eram excluídos do convívio social.
A representação criada em torno dessa enfermidade desenvolveu na
sociedade medieval um terror em relação aos leprosos, que eram associados aos
demais grupos marginais, igualmente responsabilizados de causarem mal por onde
passavam, como os judeus, os feiticeiros e as bruxas.
De acordo com Yara Monteiro, em decorrência desse medo e para que a
população sadia pudesse manter distância dos doentes algumas medidas de caráter
preventivo e de “tratamento” foram decididas durante dois Concílios; o primeiro foi o
Concílio de Latrão III (1179), em que a Igreja Católica determinou a segregação dos
leprosos, afirmando que os doentes não podiam participar dos mesmos espaços e
cerimônias religiosas que os cristãos que não foram acometidos pela lepra.21
Após o concílio realizado na França meridional no ano de 1368, determinou-
se que assim como os hereges, os judeus e as prostitutas, os leprosos deveriam
usar vestes diferenciadas dos demais cidadãos sadios e um guizo, “para que,
quando um leproso se aproximasse, a população sadia pudesse se afastar evitando
contato”.22 Dessa forma, roupas e guiso se tornaram a marca da exclusão social
dos leprosos, porém, o maior símbolo de segregação era a cerimônia de
confinamento. Assim que um indivíduo era declarado leproso obrigatoriamente
deveria passar por essa cerimônia antes que fosse confinando em um leprosário. A
cerimônia, denominada de Separatio Leprosorum, se iniciava com o leproso sendo
levado em um cortejo fúnebre pelos familiares, amigos e vizinhos, coberto com os
trajes que passaria a utilizar e calçado para que não contaminasse o solo até a
igreja.
Em seguida, o padre realizava a missa fúnebre, exaltava o leproso
afirmando que a lepra era a oportunidade do doente pagar seus pecados durante a
vida terrena, e que devido a isso não passava pelo purgatório após sua morte física.
Depois o leproso era colocado dentro de um túmulo aberto no cemitério da cidade,
jogavam um pouco de terra em sua cabeça e seus pés terra, simbolizando o seu
enterro. Durante esse ritual o padre recitava as regras de exclusão do leproso em
que dizia: 21 MONTEIRO, Yara Nogueira. Doença e pecado no imaginário cristão: Um estudo sobre a lepra na Idade Média. In: Estudos da religião. 1999. 22 Id.bid. p. 157.
20
Eu, o proíbo, para sempre, de entrar na igreja, no mosteiro, no mercado, no moinho, nas casas, nas tavernas e na praça do mercado; eu o proíbo de sair de casa sem as vestimentas próprias de leproso. Eu o proíbo de lavar suas mãos ou qualquer outra coisa nas fontes e córregos, eu lhe proíbo de falar com as pessoas, mas, se alguém lhe dirigir a palavra, você se colocará em posição contra o vento; eu lhe proíbo de andar por caminhos estreitos , para evitar, ao cruzar com pessoas sadias , que se aproxime muito delas; eu o proíbo de tocar em crianças ou de dar qualquer coisa a elas; eu o proíbo de comer ou beber com outras pessoas, a menos que sejam também leprosos.23
Após a cerimônia que simbolizava a morte civil do indivíduo, ele devia se
manter recluso em um leprosário, não podendo mais ter um emprego, entrar nas
cidades, devia viver de esmolas e doações, pois não tinha mais direito sobre
qualquer propriedade ou herança, não era mais admitido em hospitais comuns, ou
seja, perdia todos os seus direitos civis. Durante o período medieval a lepra estava
associada à punição divina, somente a Igreja detinha o poder de indicar os caminhos
para que o doente alcançasse o perdão divino e fosse curado, por isso os primeiros
leprosários foram criados pela Igreja Católica, ou por algum nobre cristão.
Nesse contexto, o leproso foi associado à personificação do mal, alguém
impuro que despertava medo e repulsa na população sadia. Todavia, a Igreja
também os representava como “os escolhidos por Deus”, sendo a lepra um presente
divino, que possibilitava o enfermo pagar seus pecados durante a sua existência
terrena, e depois de sua morte iria diretamente para o paraíso, com seus pecados
perdoados. Além disso, “existia a crença de que a lepra era uma maneira de
despertar a caridade cristã, fazendo com que os benfeitores garantissem boas ações
e com elas a esperança do paraíso”. 24
As crenças, representações e o tratamento com os leprosos realizados
durante o período medieval persistiu nos primeiros tempos da Idade Moderna,
quando surgiram os primeiros médicos, contrários à ideia da lepra enquanto pecado
e impureza, ou causas divinas e sobrenaturais. Era a fase embrionária de um
entendimento e de um tratamento de caráter mais cientifico, com o início da
aplicação de sangrias e dietas especiais25, medidas que os médicos acreditavam ser
eficazes para se combater e erradicar a doença.
23 BARROSO DE C,op. Cit. p. 129 24 RICHARDS, op. cit. p. 160 - 161. 25 Barroso, esclarece que acreditava-se, naquela época que alguns alimentos ajudavam na cura a lepra, como carne de carneiro,ouriço e demais animais de sangue frio, além de besouros, larvas de madeira podre e carne de cobra. No entanto, julgavam que a carne de porco poderia estar associada à manifestação da doença, recomendando que seu consumo fosse suprimido.
21
Durante o século XV, os casos de lepra nos países europeus entraram em
declínio, mas mesmo assim ela foi introduzida nas Américas por meio dos
colonizadores espanhóis e portugueses. 26 Os primeiros relatos da doença em solo
brasileiro datam de 1696, quando o governador do Rio de Janeiro Artur de Sá e
Meneses solicitou à coroa portuguesa a construção de um leprosário.
Até o século XVIII, o tratamento dos leprosos no Brasil consistiu nos
internamentos dos doentes em abrigos e leprosários, construídos principalmente nas
cidades que apresentavam a maior concentração de leprosos. Mas, assim como nos
países europeus, aqui também foram tomadas algumas medidas que visavam sua
cura, como experimentos com soro de cavalos, picadas de cascavel, pois
acreditava-se que seu veneno poderia expulsar a lepra do sangue do doente.
Segundo Barroso de C, entre as muitas crendices em torno desta doença, muitos
diziam que se um leproso transmitisse a doença a sete pessoas sadias ele seria
curado.
Naturalmente não houve nenhuma confirmação nesse sentido ou mesmo
qualquer sucesso nas terapias desenvolvidas até a descoberta de medicamentos
que se mostraram eficazes no tratamento e na cura da doença nas décadas finais
do século XX.
1.2. AVANÇOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS NA ÁREA DA SAÚDE: A BUSCA PELO TRATAMENTO E A CURA DA LEPRA.
A partir do século XVII, a ciência moderna começou a ganhar espaço e
prestígio por meio de avanços tecnológicos e científicos que influenciaram nas
diversas áreas do conhecimento humano. Durante o século XIX, nas principais
potências europeias como França, Alemanha e Inglaterra os avanços científicos
possibilitaram que as fábricas e máquinas invadissem o cotidiano das sociedades,
que vislumbraram com esperança a solução de problemas que afligiam a
humanidade. A ciência era representada como a libertação dos limites impostos pela
natureza e pelas visões religiosas de períodos anteriores. De acordo com Cabas,
A Modernidade introduziu uma subversão radical no estatuto da ciência. O saber científico transformou-se numa ferramenta capaz de moldar a realidade humana e o domínio da natureza tornou-se efetivo. Com isso, um velho sonho largamente acalentado cobrou asas. Assim, a eliminação de
26 HANSENÌASE, representações sobre a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995, p.12.
22
doenças, a erradicação da loucura, a supressão do envelhecimento e o triunfo sobre a morte pareceram ao alcance da mão27.
O desenvolvimento científico que possibilitou uma nova representação do
mundo impulsionada pela ciência, teve início nas universidades européias com o
pensamento voltado a uma ciência teórica e prática, que foi útil para a área da
biologia e da saúde. Principalmente para a área da saúde que se desenvolveu
consideravelmente com o aperfeiçoamento do microscópio, que no século XIX,
recebeu lentes mais precisas, proporcionando uma confiabilidade maior nas
descobertas e nas experiências. O microscópio se tornou um instrumento
indispensável para a medicina, peça fundamental para a compreensão dos
processos e evoluções das doenças. 28
A relação complementar entre ciência e saúde se personificou na figura de
Louis Pasteur, formado em física e química que teve uma grande contribuição à área
da medicina, com suas descobertas na área da microbiologia durante o século XIX.
Pasteur e Robert Koch foram os precursores da descoberta da relação entre o meio
e a doença, abriu-se assim um novo caminho para a investigação das formas de
transmissão e tratamentos das doenças. 29 A importância das descobertas de
Pasteur para os avanços na área da saúde e da medicina influenciaram na
modificação das ideias a cerca da importância das pesquisas e experimentos
médicos.
Essa mudança de mentalidade acerca da ciência prática e a saúde foram
importantes e proporcionaram grandes descobertas medicinais e científicas nas
últimas décadas do século XIX, como a cura para a raiva, a descoberta da anestesia
que possibilitou grandes avanços na área da cirurgia, descobertas de antibióticos e
vacinas para o combate de doenças e infecções que preocupavam a sociedade. 30
Após a Segunda Guerra Mundial uma grande variedade de medicamentos e
técnicas médicas foram descobertas como a insulina e a penicilina, reforçando a
ideia de que a medicina experimental tinha o poder de desenvolver a cura de todos
os tipos de doenças. Porém, as inovações não se restringiram apenas aos
medicamentos e técnicas, uma nova área da saúde obteve atenção dos médicos e
27 BRAGA, Marcos ,et,al. Breve história da ciência moderna: a belle-époque da ciência (séc. XIX). Rio de Janeiro. Zahar, 2011, p 11- 12. 28 BRAGA, op.cit. p 143. 29 VOITECHEN, Fabio. Epidemias, pandemias e profilaxia. A saúde pública em Curitiba na primeira república. Monografia. Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2010, p. 144. 30 BYNUM, William. História da medicina. Porto Alegre: l & M, 2011, p. 124.
23
cientistas, os hospitais também foram repensados nas áreas estruturais e de
atendimento visando uma melhoria no tratamento dos enfermos. Durante os séculos
XIX e XX, as exigências médicas e cirúrgicas passaram a determinar a estrutura e a
organização dos hospitais, desde o formato dos pavilhões até a exigência de que
eles deveriam estar equipados com laboratórios e instrumentos de análises clínicas
como o raio X. Era uma tentativa de desvincular a estrutura e o funcionamento dos
hospitais das questões religiosas.
Tal desenvolvimento não ficou restrito apenas aos países europeus, a
América também vivenciou as influências das mudanças ocorridas na Europa. O
Brasil se iniciou no campo da ciência apenas após a instalação da corte portuguesa
no país, em 1808. Meses depois, foram criadas no Rio de Janeiro e na Bahia, as
primeiras Escolas de Medicina que ao longo do século XIX, tornaram-se referência
em pesquisas na área da medicina tropical. 31
Nesse contexto, as descobertas científicas influenciaram e modificaram
profundamente o campo da saúde e da medicina , pois resultou na descoberta de
doenças, meios de transmissão e tratamento de enfermidades que durantes séculos
assustaram a sociedade, como a varíola, cólera, a tuberculose e, sobretudo a lepra.
Até metade do século XIX, a medicina não havia tido um grande avanço em
relação a lepra, acreditava-se que era uma doença hereditária, pois os casos da
doença ocorriam com maior frequência entre os membros de uma mesma família.
No entanto, o médico Gerhard Henrik Armauer Hansen discordava da
hereditariedade da moléstia, e iniciou pesquisas que procuraram desvendar outras
informações sobre a doença. Depois de realizar muitos estudos e experimentos
descobriu que a transmissão da lepra não era devido a genética, mas sim causada
por um bacilo, denominado Mycobacterium leprae. No início, de acordo com Barroso
de C, sua teoria sofreu resistência e foi desacreditada pela grande maioria da
comunidade medica do período.
Depois de conseguir provar sua descoberta e descartar a teoria da
hereditariedade da lepra, o Dr. Gerhard Hansen abriu um novo caminho para as
pesquisas de combate a enfermidade. Mas havia muito mais experimentos a serem
feitos para que fosse descoberta como a hanseniase se desenvolvia e para que se
chegasse a um tratamento eficaz ou até mesmo a cura, evitando o aparecimento de
novos casos. Não se tinha até aquele momento a certeza de que a doença era
31 BRAGA,. Op. cit p. 162.
24
transmissível, e o tratamento permanecia o mesmo desde o período medieval, o
leproso permanecia confinado em um leprosário, à margem de qualquer convívio
social.
Novas descobertas acerca da doença foram feitas durante os últimos anos
do século XIX, e apresentadas na Conferência Internacional da Lepra, realizada em
Berlim, em 1897. Nesse encontro, especialistas apresentaram o resultado de suas
pesquisas e discutiram quais as melhores formas de acompanhar o tratamento, mas
no final, o isolamento foi mantido. Sem uma perspectiva efetiva de cura, concluíram
que o leprosário ainda era a melhor opção. Assim, se na Idade Média, a exclusão
era resultado de crenças religiosas, em pleno final do século XIX, ela foi mantida, em
nome da medicina e da ciência32
A ciência só conseguiu desenvolver um medicamento eficaz no tratamento
da lepra durante o século XX, com o óleo de Chalmoogra, porém, depois de um
período, essa substância se mostrou ineficiente no combate à doença e precisou ser
substituído, o que só ocorreu em 1940, com o primeiro medicamento quimioterápico,
a Sulfona. Apesar da euforia inicial, logo ocorreu o aparecimento de agentes
resistentes a ela, e duas décadas depois também foi considerada ineficaz, sendo
substituída, em 1970, por um tratamento poliquimioterápico composto por Sulfona,
clofazimina e repampicina. 33 A doença que, até meados do século XX, era incurável
havia encontrado a cura.
1.3 SAÚDE PÚBLICA NO INÍCIO DO BRASIL REPÚBLICA E O CONTROLE DA LEPRA E DOS LEPROSOS POR MEIO DOS MECANISMOS DE IS OLAMENTO.
Durante o final do século XIX e início do XX, os países europeus
considerados precursores do Estado Moderno eram precisamente a Inglaterra,
França e Alemanha, pois possuiam projetos de modernidade, representados por
meio de ações políticas e ideológicas que serviram de modelo para outros países
que almejavam chegar ao patamar de desenvolvimento dessas nações.
32 Id. Ibid,p. 13. 33 DUCATTI, Ivan. Quando o Estado assume o isolamento compulsório de portadores de hanseníase:uma forma de dominação política na Era Vargas. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. São Paulo ANPUH/SP-USP. 2008, p. 1.
25
De acordo com Zigmunt Bauman, esta modernidade, presente nos Estados
Modernos surgiu com a constatação de que a ordem não era algo natural, mas uma
construção humana que deveria ser legitimada e aceita pela sociedade, e
direcionada por um soberano, sendo que a principal tarefa era a busca incessante
da ordem. Com isso Bauman afirma que a era moderna nasceu como um período de
guerra contra a ambivalência e o caos que contou com o auxílio das descobertas
científicas e tecnológicas. Essas ferramentas auxiliaram na administração e na
resolução dos problemas causados pela desordem que se acreditava existir no
mundo todo.
Bauman afirma que a existência moderna só foi sustentada e produzida
porque contou com a administração e o planejamento feito por agentes capazes,
que possuíam conhecimentos e habilidades para lidar com as tecnologias ao seu
favor.
A modernidade, portanto, foi um tempo em que se refletiu e buscou-se
obsessivamente a ordem, tentando exterminar ou excluir todos os elementos
considerados como fomentadores do caos e da desordem. O que não era admitido
naquele projeto da ordem, tinha seus direitos anulados, ou seja, a sua incorporação
no mundo moderno era negado. Esse projeto da modernidade era aplicado em todas
as áreas da sociedade, desde a economia até saúde pública. 34
As políticas dos países considerados como detentores do projeto da
modernidade, direcionavam seu progresso na ideia e nos mecanismos da ordem
social. Esses estados assim como suas políticas serviram de moldes para os demais
que estavam em desenvolvimento, e buscavam chegar ao patamar das nações
modernas, como o Brasil que almejava alcançar esse status e, por isso, adotando
novos moldes políticos. A recém imposta República procurou romper com práticas
do Período Monárquico modificando o direcionamento de diversas políticas públicas.
Entre as áreas que eram referências se destacava a saúde pública, pois o país
estava em desenvolvimento econômico, e “necessitava de mão obra sadia. Por esse
motivo cuidar da saúde pública, principalmente da população mais pobre, era um
fator fundamental”.35 A nova política destinada à saúde pública se baseou nas
políticas alemãs, francesas e inglesas, esses países desenvolveram modelos de 34 BAUMAN, Zygmun, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999, p. 9-25. 35 CASTRO, Elizabeth Amorim de. O Leprosário São Roque e a Modernidade: Uma abordagem da Hanseníase na perspectiva da relação Espaço-Tempo. Dissertação de Mestrado, Setor de Ciências da Terra, da Universidade Federal do Paraná, 2005, p. 20.
26
gestão pública destinados à área da saúde, que se baseavam em descobertas
cientificas, objetivando um maior controle da sociedade por parte do Estado. Era a
maneira de buscar a extinção dos ambientes mal higienizados dos maus hábitos de
da população e eliminar as doenças que causavam desconfortos e desordenavam
as sociedades. Essas medidas refletiam a crença de que o Estado estava levando a
ordem à sociedade.
A grande influência alemã foi a constituição de um aparato de controle da
população, desde a taxa de natalidade, mortalidade e das doenças que assolavam a
população, além da subordinação da prática médica ao Estado. A política francesa
contribuiu com suas experiências de controle do Estado sob os espaços urbanos, e
a investigação da influência dos fatores sociais na saúde da população. Já a
Inglaterra deu o exemplo de que a saúde pública gratuita para a população pobre,
era uma maneira de diminuir o surgimento e a propagação das epidemias. Foi uma
ação destinada ao controle da população pobre, além da tentativa de torná-los aptos
ao trabalho e menos perigosos às classes mais elitizadas. 36
O Brasil durante o período da República Velha incorporou os ideais do
projeto da modernidade, em busca da constituição da ordem em sua sociedade.
Seguindo esse ideal investiu na urbanização e na industrialização, buscou organizar
o crescimento das cidades, tentando impor ordem e controle das moradias mais
pobres, retirando-as dos centros das cidades como ocorreu no Rio de Janeiro e em
Curitiba.
Reurbanizar confunde-se nesse momento com higienizar, e para isso requeria não só a renovação estética, alargando ruas, ajardinando praças, cuidando de fachadas, requeria, principalmente, limpar a cidade e expulsar para longe do espaço, que se pretendia purificado, toda a forma de existência miserável e fétida que se amontoava como lixo nos velhos casarões.37
As moradias mais pobres se encontravam em péssimas condições de
higiene, o que facilitava a proliferação de doenças.
Toda aquela atenção do regime republicano em torno da saúde pública do
país ocorreu porque a sua situação sanitária não era muito boa naquele período. O
território brasileiro foi assolado por várias doenças infecciosas e epidemias como
tifo, tuberculose, febre amarela e lepra. O Brasil causava medo aos demais países e
36 VOITECHEN, Op. Cit. p. 137. 37 BONI.apud. Castro.p. 48.
27
muitos navios estrangeiros não aportavam nos portos brasileiros. A propaganda que
era feita do país por alguns intelectuais brasileiros e estrangeiros representava o
território brasileiro como sendo um imenso hospital , e a única maneira que existia
de modificar aquela situação era a aplicação de medidas profiláticas e médicas.
Para que essas ações fossem possíveis junto à população, o governo fez um
trabalho que procurou anular a figura e a importância dos curandeiros e
benzedeiros, e introduziu a figura do médico na sociedade.
As primeiras medidas profiláticas tomadas pelo governo foram o
afastamento dos locais propícios para a proliferação de doenças como os cemitérios
fora dos centros urbanos, além da criação de instituições com a função de controlar
as epidemias na tentativa de estabelecer a ordem e o progresso da nação.
A política sanitária contou com a instituição da policia médica, que foi
direcionada principalmente para a população mais pobre, pois a elite brasileira, de
um modo geral, naquele período, defendia a ideia de que os pobre não gostavam da
limpeza, não tinha hábitos de higiene, nem gostavam de andar cheirosos , bem
arrumados e limpos. 38 Era necessário ensiná-los os bons hábitos, através de uma
pedagogia sanitária, nas escolas foram ensinadas praticas de higiene, para que
esses reproduzissem novos hábitos dentro do ambiente familiar.
Um personagem surgido durante aquele período que auxiliou nessa tarefa
foi o Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato, que a partir de suas histórias ensinava
às crianças a forma mais higiênica de se comportar.
As regras de saneamento e normatização da sociedade foram criadas pelos
médicos do período, sempre apoiados nos discursos e nas descobertas cientificas,
sua importância foi crescendo junto a população, e o que os médicos determinavam
deveria ser cumprido como lei. Porém, nem todos recebiam essas regras e a
introdução dos médicos no ambiente familiar sem oferecer resistência, algumas
medidas impostas pelo governo foram combatidas com ardor pela população. Um
dos casos mais famosos foi a Revolta da Vacina ocorrida em 1904, “em que a
população pobre se mostrou contrária à vacinação obrigatória, causando tumultos e
um grande desconforto ao governo”. 39
38 MIRANDA, Carlos Alberto Cunha de. In: Da polícia médica a cidade higiênica. Disponivel em : http://WWW.ufpe.br. Acessado em 25 de agosto de 2012. p. 03-05. 39 VOITECHEN, Fabio. Op. Cit. p. 148.
28
A polícia sanitária também teve como função educar a população pobre,
para que ela não se transformasse em hospedeiro de doenças. Além disso, era
função dessa polícia fazer com que as regras e normas impostas pelo governo
fossem cumpridas por todos os integrantes da população. Se houvesse resistência
ou se alguém descumprisse as regras, a polícia sanitária era autorizada a utilizar a
força como forma de coerção, pois devia-se garantir a instauração da ordem de
qualquer forma.
Durante as primeiras décadas do Período Republicano a ciência associada
às práticas de medicina e higiene procuravam garantir a eliminação das moléstias
que assolavam o país. A lepra assim como a tifo, tuberculose, varíola e outras
doenças, eram algumas das responsáveis por levarem o caos e anormalidade à
sociedade. Por esse motivo a lepra e seus doentes não eram admitidos como parte
integrante daquela sociedade devendo, portanto, ser afastados e colocados à
margem dela.
O período entre os anos de 1912 e 1920, a história da hanseníase no Brasil,
passou a ter um maior reconhecimento por parte das autoridades sanitárias. Essa
atenção ocorreu em grande parte devido às constantes denúncias de descaso em
relação ao combate e o tratamento da doença e de seus portadores, essas
denúncias foram feitas, principalmente, por cientistas e sanitaristas respeitados
dentro e fora do país como Emílio Ribas, Oswaldo Cruz e Alfredo Matta. 40
Seguindo a política de saúde pública do Brasil republicano, o tratamento da
lepra deveria seguir alguns moldes igual aos das demais moléstias. O higienismo
era a palavra de ordem em relação ao combate das doenças, e segundo Elizabeth
de Castro “esse combate seguia três passos importantes o da notificação dos casos,
do isolamento compulsório dos doentes e a vigilância dos casos suspeitos.” 41
Os casos de hanseníase deviam seguir o mesmo caminho, porém, a partir
do ano de 1904, o combate e o tratamento da moléstia ganhou um decreto
oficializando o modo como a doença e os doentes deveriam ser tratados, deixou-se
evidente que as medidas de tratamento e tentativa de erradicação da doença no
Brasil estavam seguindo os moldes internacionais, que por sua vez mantinham o
isolamento compulsório que era adotado desde o período medieval. Porém, desde o
40 BRASIL, Ministério da Saúde. Sec. Nac. de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Hanseníase como problema de saúde pública In: Controle da Hanseníase: RJ: DNTS/ Nutes, 1989. p 13. 41 VOITECHEN ,Op. cit. p. 47.
29
século XIX, aquele isolamento ganhou um caráter estritamente cientifico e não mais
religioso.
O isolamento ocorria no tratamento de diversas moléstias como a
tuberculose, ele era baseado nos preceitos da ciência moderna que defendia o
isolamento como uma maneira de salvaguardar a coletividade sadia. Os hospitais de
isolamento se caracterizavam por serem localizações funcionais, ou seja, eram
lugares determinados que não tinham só o intuito de vigiar, mas também de dar uma
funcionalidade ao espaço, característica dos hospitais, presídios e internatos que
apresentam uma vigilância e uma funcionalidade. 42
Os hospitais de isolamento , assim como os leprosários eram instrumentos
da modernidade, pois ajudavam a retirar os corpos indesejáveis que não eram
admitidos na sociedade moderna, isolando-os e ocupando seu tempo enquanto os
indivíduos estavam no período de exclusão. No caso dos leprosários a
funcionalidade que era dada aos internos tinha uma característica muito importante
para o funcionamento da instituição, pois naquele período a lepra ainda era uma
doença de extrema periculosidade. Não se conhecia até aquele momento uma cura
para doença , fazendo com que a população criasse um medo e repulsa por esses
doentes. Não era uma tarefa fácil achar mão de obra sadia para trabalhar nos
hospitais de isolamento, as tarefas de cuidado com a instituição, jardinagem,
agricultura, consertos entre outras ficava a cargo dos internos, desse modo os
leprosários eram denominados como autossustentáveis. 43
Por mais que o tratamento dos leprosos ocorresse por meio do isolamento
compulsório nos leprosários, o país não contava naquele período com uma
quantidade de instituições necessária para a demanda de doentes que existiam. Era
necessário que o governo providenciasse novos leprosários, que não fossem novos
apenas na questão estrutural, mas que possibilitassem um tratamento eficaz para os
doentes. Desse modo, no período da República Velha foram construídos mais 11
hospitais de isolamento compulsório destinado ao tratamento de leprosos.
Esses novos hospitais foram pensados e construídos baseados em
estruturas que seguiram os conceitos de modernidade do período, desde a escolha
do espaço destinado a construção dos edifícios até a sua forma de funcionamento.
Todos os Estados em que tais instituições de isolamento foram construídas, naquele 42 FOCAULT, Michel. Disciplina In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010 43 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012.
30
período, deveriam seguir os mesmos padrões impostos pelo Departamento Nacional
de Saúde Pública e a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas,
conforme indica Elizabeth de Castro.44
Os leprosários, nesse contexto, eram localizações funcionais, pois vigiavam
os doentes e salvaguardavam a coletividade sadia, mas como a lepra era uma
doença que apresenta um quadro clínico de desenvolvimento lento, demorando
anos para causar alguma deformação física, esses leprosários deveriam ser locais
produtivos . Ou seja, deviam ser espaços amplos que não tivessem apenas a função
de acomodar os leprosos, mas também deveriam oferecer tarefas diferenciadas,
para que os doentes não ficassem ociosos e estivessem sempre aptos ao trabalho.
Oswaldo Cruz defendeu essa funcionalidade dos leprosários, já que o isolamento
era a única forma de tratamento da doença:
O caracter, essencialmente chronico do mal [lepra], impede que se tome, em relação a ella, as medidas de isolamento num hospital geral de isolamento. O leproso póde, durante muitos annos, dedicar-se ao trabalho; por isso, sua sequestração da sociedade deve ser feita, não num hospital, mas em estabelecimentos adequados, “colonias de leprosos”, onde, ao lado do indispensável tratamento, encontrem os lazaros elementos necessários para aplicação de sua actividade, ainda muito aproveitavel. Estas colonias, que constituirão verdadeiras aldeias, terão todos os elementos de conforto necessários, de accôrdo com os habitos das differentes classes sociaes45.
Essa funcionalidade era defendida por que durante o Período Monárquico o
Brasil já contava com instituições de isolamento destinadas ao acolhimento dos
leprosos. Porém, essas localidades no passado tinham um caráter de apenas
separar e abrigar os acometidos pela lepra para que esses doentes não
representassem perigo a população sadia. 46
Esse novo modo de pensar a funcionalidade e o tratamento dos doentes
associado às principais descobertas cientificas teve como precursor o Leprosário de
Santo Ângelo, fundado no Estado de São Paulo. Ele era considerado uma instituição
modelo, projetado para suprir as seguintes necessidades que existiam:
O Leprosário, concebido como uma colônia seria um lugar onde pudessem viver sem enfrentar a discriminação da sociedade, e com a possibilidade de uma vida semelhante a das pessoas sadias. Ou seja, essas instituições teriam dupla função, ao mesmo tempo em que preservariam a população
44 CASTRO, Op. cit., p. 51. 45 OSWALDO CRUZ, ap. CASTRO. p.48 46 Id.Ibid., p. 46.
31
sadia, trariam dignidade e respeito ao doente obrigado à segregação, proporcionando dentro de seus muros uma vida completa.47
Os leprosários procuraram criar um ambiente em que as principais
atividades encontradas fora do isolamento se fizessem presentes desde atividades
de trabalho até práticas de lazer e educação. Era uma tentativa de fazer com que o
doente se integrasse aquele mundo do isolamento, para que com isso ele não
criasse uma necessidade do mundo exterior, além de muitos médicos defenderem
como uma terapia para os enfermos. Por esse motivo, a maioria dos leprosários
criados a partir da política de saúde pública da República Velha contava com
atividades de lazer como futebol, bandas de música, bailes, cinemas, rádios e
ensino escolar da primeira até a quarta série, que era destinado somente as
crianças. 4849
Em 1920, ocorreu a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, e
institui-se a Inspetoria de Profilaxia da lepra e doenças venéreas. Esses
departamentos regulavam de acordo com as descobertas científicas e médicas
ocorridas naquele período qual seria a maneira mais eficaz de tratar e tentar conter
a expansão da lepra. Tendo esses paramentos como base se institui naquele
período a necessidade da criação de leprosários em todos os Estados endêmicos,
pois o isolamento compulsório era a única maneira oficial e não oficial de tratar e
tentar barrar a expansão da doença que estava presente em praticamente todos os
Estados brasileiros durante aquele período.50 Porém, havia Estados em que a
situação era mais crítica como apresentado na tabela abaixo:
47 Id.Ibid., p. 59. 48 BOTELHO, Alberto. Pelo Paraná Maior Botelho Film . 1928. 1 DVD. Filme documentário produzido na década de 1920, lançado em 1928, o filme traz diversas cenas do cotidiano e as principais construções sanitárias do Estado do Paraná, inauguradas durante os anos de 1926 a 1928. Entre essas construções se encontrava o Leprosário São Roque. 49 Sebastião Pamplona. Entrevista cedida à Pamela F. Andrade. Piraquara , 19 de Maio .2012. 50 BRASIL, Ministério da Saúde. Sec. Nac. de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Hanseníase como problema de saúde pública In: Controle da Hanseníase: RJ: DNTS/ Nutes, 1989. Página 17.
32
TABELA 1.
COMPARAÇÃO ENTRE POPULAÇÃO, NÚMERO DE DOENTES E TAXA DE PREVALÊNCIA DA LEPRA NOS 7 ESTADOS DO BRASIL COM MAIOR INCIDÊNCIA DA DOENÇA (1923)
Estados População Total
Doentes de Lepra
Taxa de Prevalência
1/10.000 hab. São Paulo 4. 973.128 3. 128 6.29 Pará 1.076.700 1.452 13. 48 Minas Gerais 6.226.910 602 0,97 Distrito Federal 1.259.702 456 3,62 Maranhão 931.754 450 4, 83 Paraná 746. 134 285 3,82 Amazonas 378.852 272 7, 18
Fonte: CASTRO, 2005, p.134.
De acordo com essa tabela, o estado do Paraná estava entre os sete
estados com o maior índice de portadores da lepra. O lazareto São Roque que se
encontrava localizado no bairro das Mercês, havia sido inaugurado na metade da
década de 1890, e nas primeiras décadas do século XX, já não tinha uma estrutura
capaz de atender os doentes, pois era uma construção pequena e com padrões
rústicos para as exigências sanitárias e médicas do período.
FONTE: CASTRO, op. cit. p. 5. Curitiba, 1 fotografia p&b.
Figura 1
33
Como pode ser constatado a partir da fotografia do Lazareto São Roque, ele
era um espaço pequeno com capacidade de atendimento de no máximo 20 doentes,
não era um espaço adequado para o Estado do Paraná, que estava entre os de
maior incidência da doença e necessitava portanto de um hospital de isolamento que
fosse capaz de atender à crescente demanda e contasse com um tratamento
baseado nas exigências médicas e científicas. Era um problema que o governo do
estado do Paraná deveria resolver, e somente o fez no ano de 1926, sob o governo
de Caetano Munhoz da Rocha.
34
2. LEPROSÁRIO SÃO ROQUE.
2.1 CONTEXTO DA FUNDAÇÃO DO LEPROSÁRIO SÃO ROQUE.
Durante o início da década de 1850, o Estado do Paraná alcançou um
importante desenvolvimento econômico devido ao período denominado de Paraná-
ervateiro e campeiro. Esse florescimento econômico foi o grande responsável por
fazer com que as principais cidades paranaenses conseguissem iniciar um
processo de desenvolvimento, além do que foi o responsável por traçar o perfil
econômico do estado por aproximadamente sete décadas. Após a emancipação
política do Paraná teve início um período de crescimento demográfico, em grande
parte devido às ondas migratórias vindas da Europa central, o resultando que, no
início do século XX, a capital do atingiu cerca de 80.000 habitantes .51
Mas enquanto a população de Curitiba e do interior do estado aumentavam,
a sua situação econômica entrava em declínio devido à queda da exportação de
mate, levando ao fim do Paraná- ervateiro, e a situação piorou, pois a atividade
pecuária, de pouca qualidade, estava estagnada. Com todos esses fatores
econômicos desfavoráveis o estado do Paraná adentrou a um quadro de crise
econômica, a única esfera que mantinha um aproveitamento financeiro era a
indústria madeireira, porém ela não conseguiria manter todas as despesas do
estado por um longo tempo. 52
O período gloriosos e rico do Paraná-ervateiro foi de extrema importância
para o início da urbanização de Curitiba que teve como objetivo acomodar a nova
elite burguesa proveniente da industria ervateira, mas também criar mecanismos
que colocassem a cidade no caminho do progresso, para que esses objetivos
fossem cumpridos o governo pavimentou algumas ruas, pensou em novos projetos
de saneamento e iluminação pública. A cidade começou a substituir os casarios
precários que estavam no seu centro por solares, casarões e espaços destinados à
elite. 53
Todavia não era apenas no quadro econômico que a situação paranaense
apresentava dificuldades. A questão da saúde pública gerava desconforto na
51 GODINO CABAS, Antonio, Et. al. O Paraná, o século, o asilo. Curitiba. Criar Ediçoes, 2004.p.29. 52 Id.bid. Página 35 53 MULLER, Liliana, LARACA, Vera Regina Beltrão Marques. A construção do novo Paraná: Uma analise do discurso higienista (1853- 1930). 2010. UFPR.p. 3
35
população e em seus governantes, problema esse que ganhou visibilidade devido ao
crescimento populacional e as transformações que ocorriam no centro da capital do
estado. Por mais que até o ano de 1916, os presidentes da província exaltassem
que a situação sanitária era boa, a dificuldade de eliminar a insalubridade era
constantemente presente nos discursos como mostra a mensagem de governo
direcionada ao Congresso Legislativo do Estado do Paraná no ano de 1917.
“ Si há serviço publico que mais deva preoccupar a atenção dos governanates é, sem duvida o da hygiene. Em que pese á salubridadee amenidade do nosso clima, devemos-nos acautelar contra as moléstias endêmicas e epidêmicas. Para isso é necessário, como vem exigindo o illustre gestor do serviço sanitário, que ponhamos em prática uma verdadeira hygiene preventiva.”54
A situação sanitária deficiente do estado se agravou com a epidemia de tifo
que pegou toda a sociedade curitibana de surpresa, e como o governo não contava
com um plano eficaz de prevenção , tratamento e combate a epidemia vitimou
muitos paraenses entre 1916 e 1917. 55 Porém, pior que a tifo foi a gripe espanhola
ocorrida no ano de 1918, que acometeu mais da metade da população da capital
paranaense e fez com que o governo instituísse medidas extrema tais como o
fechamento de locais públicos principalmente os cinema, cultos religiosos e a
interrupção dos bondes. Era uma tentativa de parar o contágio da gripe, que de ter
deixado um grande saldo de mortos ainda maior, evidenciou que a saúde pública
paranaense necessita de uma atenção maior por parte das autoridades públicas. 56
As primeiras duas décadas do século XX, não apresentaram um contexto
muito favorável para o Paraná, de um lado, a crise econômica, de outro, as
moléstias que afetaram profundamente a população. Contudo, no ano de 1920, teve
início o mandato de Caetano Munhoz da Rocha, para presidente de província. Era
necessário que o novo governo formasse um plano de gestão que rompesse com o
passado em crise e colocasse o estado no caminho do progresso, por isso se deu
grande importância para a medicina sanitária, pois se acreditava que por meio dela,
se poderia livrar a população dos males da raça, que eram as doenças e a
54 PARANÁ. Governo. 1917 (AFFONSO ALVES DE CAMARGO). Mensagem ao Congresso Legislativo do Estado do Paraná, em 01 de fevereiro de 1917. Curityba: Typographia do Diario Official, 1917. 55 PARANÁ. Governo. 1918 (AFFONSO ALVES DE CAMARGO). Mensagem ao Congresso Legislativo do Estado do Paraná, em 01 de fevereiro de 1918. Curityba: Typographia do Diario Official, 1918. 56 CABAS. Op.cit. página 35.
36
precariedade dos hábitos de higiene da grande maioria da população que os
tornavam improdutivos para o trabalho..
Para garantir que a população paranaense seguisse no rumo do
desenvolvimento esperado e idealizado pelo governo de Caetano M. da Rocha , a
vigilância foi a principal arma utilizada, pois de acordo com Focault era necessário
vigiar os corpos da sociedade como um todo para garantir sua disciplina e exercer o
poder do governo sobre ela , mas principalmente vigiar os corpos que tiraram a
normalidade da sociedade. 57Essa vigilância no estado do Paraná durante a década
de 1920, era principalmente papel dos clínicos designados pelo inspetor sanitário da
província, e ela não se restringia apenas à capital, mas ao Paraná como um todo.
A vigilância fazia parte do projeto sanitarista da província, e se deu de forma
mais imponente para as moléstias que mais amedrontavam a população, fosse pela
ferocidade que atingia os pacientes, o desconhecimento da cura, mas
principalmente pelo temor com o contagio.
Um exemplo foi o ocorrido em Paranaguá que se viu amedrontada com o
caso da peste bubônica, nos primeiros anos da década de 1920 , esse temor fez
com que ocorresse uma emigração de alguns moradores da cidade costeira para
Curitiba. Para que essa população não contaminasse a população sadia da capital,
a vigilância foi utilizada, todos que embarcaram na estação ferroviária de Paranaguá
foram desinfetados e permaneceram sob observação do estado e, quando ocorria a
confirmação de um doente infectado, ele era isolado no Hospital de Isolamento das
Mercês. 58
Para que a vigilância fosse colocada em prática e o combate às moléstias e a
falta de higienização no estado fossem concretizadas, era necessário tomar outras
medidas como a construção de hospitais de isolamento, desinfetórios, melhorar o
saneamento das cidades e criar projetos de prevenção nas escolas. 59
Uma das necessidades que se tinha em caráter de urgência era a construção
de um novo hospital de isolamento destinado ao tratamento dos leprosos, e que
tivesse capacidade de retirar da sociedade uma das doenças que mais
amedrontavam a sociedade do período60. Essa moléstia estava presente no estado
57 FOCAULT, Op. Cit. p 139 58 CABAS, Op. Cit. p. 33 59 BUENO, Fernanda Godoy. Caetano Munhoz da Rocha e as Políticas de Saúde pelo Paraná (1920-1928). Monografia. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba. 2003. p 19. 60 Ibid. p.20
37
e a secretaria de profilaxia não conseguia combatê-la com os poucos recursos que
possuía como apontado numa reportagem do período.
Mal terrível que vae attingindo uma cifra desoladora nas estatísticas da mortalidade em todo o mundo, a morphéa necessita de um combate serio e persistente não só para livrar os infelizes atacados dessa moléstia, mas também para impedir que se alastre o morbus que tantas victimas vae causando. É por isso que os governos bem orientados, reconhecendo a gravidade e a extenção do mal estão com sua attenção volvida para esse magno problema social.61
Durante os primeiros anos do governo de Munhoz da Rocha, o projeto do
novo Leprosário São roque já existia, e apresentava todas as características de uma
instituição total, pois de acordo com Erving Goffman toda instituição social tem um
caráter de fechamento, pois ela conquista uma parcela de tempo de seu participante
e lhe da algo em troca62, nesse caso o leprosário conquistava todo o tempo do seu
interno, devido ao isolamento do tratamento, em troca disso lhe dava diversas
atividades como banda de música, esportes , cinema, dentre outros trabalhos e
atividades de lazer. Além de ser um local destinado a cuidar de pessoas que eram
incapazes de cuidar de si mesmas, e que se apresentam de forma não intencional
como uma ameaça a comunidade. Um indivíduo que contraia a lepra se tornava
naquele período uma ameaça de forma não intencional para o restante da
sociedade, pois não existia cura para a doença.
O individuo ao ser contagiado com a lepra se tornava um “corpo não dócil”
para a sociedade, pois não poderia ser aperfeiçoado nem transformado pelo poder
coercitivo, perdendo assim sua funcionalidade para a sociedade sadia. Segundo
Focault para que esses doentes se tornassem corpos dóceis era necessário exercer
a disciplina sob eles. Por esse motivo deveriam estar sob o domínio da sociedade
que deveria controlá-los. Por esse motivo a construção do novo Leprosário era um
fator importante, pois ele era a maneira de separar esses corpos indesejáveis ,
impondo-lhes medidas coercitivas e disciplinares sob seus corpos, a fim de obter
seu controle. 63
Algumas características de fechamento dessas instituições era simbolizada
pelo bloqueio do individuo com o mundo exterior e, para que isso fosse feito sua
61 INAUGURAÇÃO DO LEPROSARIO SÃO ROQUE. O Estado do Paraná, 20 de outubro de 1926, p. 1. 62 GOFFMAN, Erving. As características das instituições totais, a fase de internado e estrutura social. In: Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo, Perspectiva S.A, 2008.p. 16 63 FOCAULT, Op. Cit. p.135-137
38
estrutura física deveria ser constituída de muros altos, portas fechadas, arames
farpados, fossos, águas ao redor, florestas ou pântanos, que desempenham a
função de impossibilitar a saída do interno.64
A localização do novo Leprosário São Roque tinha essa característica de
fechamento como pode ser perceptível na fotografia de 1926:
FONTE : BUENO,op.cit.p 39, 1 fotografia p&b.
Conforme a fotografia da estrutura do Leprosário nota-se que ele era
localizado em um espaço quase que totalmente isolado, seu bloqueio com o mundo
exterior era devido a dificuldade de acesso ao hospital de isolamento, só se chegava
ali de trem, sem contar que a vegetação que o circundava servia como um “muro
verde” o que reforçava naturalmente o bloqueio.
O Leprosário São Roque teve um projeto que se baseava num modelo
médico científico, ou seja, ele foi projetado e construído como uma instituição
modular, seguindo todas as exigências modernas em relação ao tratamento dos
leprosos para o período, essa modulariedade foi exaltada pelo principal jornal da
época, “Edificado na Villa de Deodoro, o Leprosário São Roque é um
64 Id.bid. p. 16
FIGURA 2
39
estabelecimento modelar sob todos os pontos, de extraordinárias proporções
dispondo de todos os requisitos indispensáveis para bem corresponder aos seus
uteis fins”.65
Apesar de toda a exaltação em torno da modernidade do estabelecimento de
isolamento , se tornar um leproso naquele período era sinônimo de se tornar uma
espécie de prisioneiro nesse estabelecimento modular, pois de acordo com o
decreto nº 1.194 art.1 , era obrigatório o isolamento de todos os leprosos do estado
no Leprosário São Roque sem poder sair. Diagnostica a doença no indivíduo, ele
deveria ir diretamente para o Leprosário, caso se recusasse, as forças policiais do
período deveriam ser acionadas fazendo com que o decreto fosse cumprido66.
A inserção do doente no hospital de isolamento era o primeiro passo para o
que Goffman denominou de morte civil, pois a partir daquele momento o interno
perdeu todos os seus direitos de cidadão pertencente à sociedade externa do
internato67.
O Leprosário São Roque funcionava como um mundo inserido dentro de outro
mundo, pois ele realizava uma ruptura dos internos doentes com o mundo exterior,
fazendo com que a vida do leproso não ultrapasse os limites do hospital, é o início
da mortificação do se “eu”. O Leprosário apresentava diversos mecanismos que
fariam com que o interno perdesse suas referências com o mundo exterior e se
tornasse parte integrante do hospital , ou seja, ele perderia a referencia do seu “eu”,
o que o fazia se reconhecer como membro pertencente da sociedade exterior a
instituição total, em troca assimilava-se uma identidade de interno , ele só se
reconheceria enquanto pertencente ao mundo do internato.68
Para que essa mortificação ocorresse o Leprosário foi projetado com
características de uma instituição fechada, mas com um caráter de funcionalidade,
que tinha como objetivo não deixar o interno com tempo ocioso e ainda se distrair
com essa reclusão a que estava forçado.
65 O PROBLEMA DA LEPRA RESOLVIDO NO PARANÁ. Gazeta do Povo, Curitiba, 21 de outubro de 1926.p.1 66 PARANÁ. 1926. Relatório (VICTOR DO AMARAL- Directoria Geral do Serviço Sanitario) apresentado ao Presidente do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, referente aos serviços do exercício da Directoria geral do serviço sanitário entre 1925-1926, em 31 de dezembro de 1926. Curityba: p.361 67 GOFFMAN, Op.cit.p. 25 68 Id.bid. p.24
40
A imprensa do período deu um grande destaque à inauguração do hospital de
isolamento, essa cobertura da imprensa refletiu a euforia da sociedade com a
importância do novo leprosário, afirmando que aquela era uma das construções
sanitárias mais importantes do governo de Munhoz da Rocha. As fotografias da
inauguração também demonstram isso.
FONTE: Acervo pessoal de Sebastião Pamplona, Piraquara, 1926, 1fotografia p&b.
FIGURA 3
41
FONTE: Acervo pessoal de Sebastião Pamplona, Piraquara, 1926, 1
fotografia p&b.
A figura 3 e 4 são fotografia da chegada de alguns representantes da
sociedade paranaense ao hospital de isolamento no dia da sua inauguração e a
cerimônia religiosa do ato inaugural do hospital, nota-se que nessa data a instituição
recebeu um grande número de visitantes que prestigiaram a cerimônia, realizaram
passeios pelas instalações, o que reforça a importância que a construção teve para
o período . Para a inauguração foram convocados apenas alguns membros
importantes da sociedade pode-se notar isso pelas suas vestimentas em ambas as
fotografias e pelo relato das reportagens do jornal O Estado do Paraná que afirmou
o seguinte:
O acto inaugural do modelar estabelecimento está marcada para ás 13 horas como já dissemos. Afim de assisti-lo partirão desta capital o Sr. Dr. Presidente do Estado, autoridades civis, militares e eclesiásticos e bem assim os demais convidados do Sr. Dr. Caetano Munhoz da Rocha … No ultimo trem está reservado um carro para os estudantes das escolas superiores que queiram visitar o estabelecimento.69
69 Inauguração do Leprosário São Roque. O Estado do Paraná, 20 de outubro de 1926, p. 1.
FIGURA 4
42
Porém a solenidade da inauguração apresentou um grande numero de
participantes que segundo os principais jornais do período exaltaram o magnífico
estabelecimento de isolamento.
A solenidade da inauguração do leprosário revestiu-se de um brilho exepecional. À hora marcada para a inauguração , o amplo e aprazível parque do Leprosário se achava repleto de cavalheiros, senhoras e senhoritas, apresentando um aspecto imponente e bello70
Ainda na figura 3 nota-se que os convidados chegaram ao estabelecimento
pela única via de acesso existente aquele espaço durante o período, o trem que no
dia da inauguração levou os ilustres convidados, depois daquela data teria um vagão
especial para conduzir os leprosos do estado. 71 Ambas as fotografias ainda
reforçam a ruptura que o espaço físico do Leprosário realizada com o mundo
exterior, primeiramente a dificuldade de acesso apenas por meio do trem, depois
observa-se a vegetação ao seu redor , caso um interno tentasse fugir seria muito
difícil conseguir atravessar toda a vegetação e chegar a um espaço urbano próximo.
Além dessas características de ruptura com o mundo além dos limites do
hospital havia um mecanismo que possibilitava a constante vigilância dos internos,
esse mecanismo era a sua arquitetura, era um modelo de prédio que possibilitava a
equipe dirigente monitorar todas as atividades dos internos, por esse motivo o
Leprosário São Roque pode ser considerado como uma construção panoptica72
como se observa na planta baixa da instituição:
70 Leprosário São Roque, O Estado do Paraná, 21 de outubro de 1926, p. 1. 71. Entrevista cedida por S. P à Pamela F. Andrade. Piraquara , 19 de Maio .2012. 72 O panoptismos de Benthem se e apresentava através de um caráter arquitetônico, em que sua principal característica era dividir os indivíduos e criar um ambiente em que a observação deles fosse algo constante, mas que por outro lado o próprio individuo não conseguisse ver quem o observa, ou seja, o poder deveria ser visível mas inverificável. De acordo com Foucalt em seu livro “ Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão” ”O panóptico é uma maquina de dissociar o par ver-ser visto (2010, p. 191)”.
43
FONTE: CASTRO, op. cit. p.73 . Curitiba, 1 planta baixa, p&b
De acordo com a planta da instituição pode-se observar que os alojamentos e
demais repartições em que se realizavam as atividades, se concentravam no mesmo
edifício, ou seja , as atividades eram desenvolvidas sempre em grupo e os seus
espaços ficavam sempre no mesmo edifício o que facilitava a vigilância dos internos.
Conduzindo os pacientes a uma percepção certa e constante de visibilidade, isso
era muito importante para que a coerção fosse eficiente sob o paciente, pois um dos
principais efeitos do panoptismo era induzir o interno, a consciência de uma
permanente visibilidade que assegurasse o funcionamento automático do
poder.73Ou seja , era um mecanismo que fazia com que os leprosos seguissem as
73 FOCAULT, Op. Cit. p.191
FIGURA 5
44
regras do isolamento e fossem disciplinados de acordo com o exercício de poder da
equipe dirigente. Esse panoptismo era o elemento mais perceptível na estrutura do
Hospital São Roque, pois ao leprosário cabia observar constantemente os doentes,
de modo a evitar que aqueles corpo que eram mantidos afastados do contato social,
se tornassem corpos indisciplinados, rompendo com a normalidade social e
prejudicando seu desenvolvimento.
Essa vigilância se dava tanto de dentro do prédio para fora , como vice-versa,
como mostram algumas fotografias da organização física do hospital :
FONTE: Acervo pessoal de Sebastião Pamplona, Piraquara, 1926, 1 fotografia p&b.
De acordo com a fotografia a cima nota-se que a principal característica do
panoptismo estava presente desde o início do funcionamento do hospital, os prédios
cercam o pátio destinado as atividades e a circulação dos internos , a vigilância se
dava pelas grandes janelas que estavam presente em todos as paredes . Elas eram
largas por uma questão médica cientifica, mas também causavam a sensação de
que quem estivesse do lado de fora de prédio estaria em constante observação do
mesmo modo quem estivesse dentro da estrutura poderia estar no campo de visão
de quem estivesse nesse pátio.
FIGURA 6
45
FONTE: Acervo pessoal de Sebastião Pamplona, Piraquara, 1926, 1 fotografia
p&b.
Na fotografia da figura 7 se tem uma visão ampla do terreno do Leprosário
São Roque em que a estrutura panoptica se torna ainda mais perceptível, pois se
tem todo o prédio voltado para o amplo campo em que se realizava as atividades de
pecuária, plantação, algumas atividades de lazer. Evidencia-se assim que aquele
modelo de construção possibilitava um grande controle de todo o espaço e da
maioria das ações desenvolvidas dentro dele.
Para garantir que o interno permanecesse recluso no Hospital, além de todos
esses mecanismos de vigilância, ainda existiam os seguranças que eram
responsáveis por garantir que nenhuma fuga ocorresse. 74O que contradizia com a
propaganda realizada pelo governo e os meios de comunicação do período, que
exaltavam o hospital como um local muito bom para o doente viver e se tratar. No
relatório de governo de 1926, o então diretor geral do serviço sanitário apontou que
o leprosário seria um espaço destinado ao conforto e tratamento do doente, era uma
74 PELO PARANÁ MAIOR. Direção de Fr. M. MUCHA. Curitiba: Botelho Film, 1927. 1 cassete (90 mim.): mudo: p&b. VHS NTSC.
FIGURA 7
46
forma de melhorar a sorte daqueles indivíduos.75 O jornal O Estado do Paraná de 22
de outubro de 1926, afirmou o seguinte:
O leprosário concentra um aspecto de pequena cidade e procura-se minorar o infortúnio da existência proporcionando momentos de prazer e alegria que tanto prendem e encantam a sociedade…E o pobre leproso, dest’arte assistido, em um meio amargo, não terá por certo gesto algum de revolta ao ver-se privado do seu maior e melhor dom, o da liberdade.76
Mas se a vida dentro do isolamento era tão boa assim não existiram as
fugas dos internos , e não seria necessário manter seguranças dentro do hospital,
essas evidencias revelaram que a exclusão dos doentes dentro do Leprosário São
Roque não era bem vinda para todos os internos e que eles não mantiveram uma
vida feliz nos seus limites como apresentou o jornal e o governo da época. Essa
situação de descontentamento com a exclusão permanecerá durante todo o período
em que o isolamento compulsório era a principal maneira de combate a doença, a
segregação e o estigma continuaram a marcar quem foi obrigado a viver dentro dos
muros do Leprosário São Roque.
Até o final da década de 1970 e início de 1980, os mecanismos de exclusão
e mortificação do “eu” continuaram e se acentuaram, mesmo com os avanços
científicos que possibilitaram mudanças no tratamento tanto em relação aos
medicamentos utilizados para uma possível cura, que deveriam modificar o
tratamento dos doentes dentro e fora do hospital São Roque, possibilitando uma
diminuição gradual dessa exclusão. Porém, as modificações nesse tratamento
ocorreram de maneira lenta e, mas será que junto com elas ocorreram as melhorias
na vida dos que foram acometidos pela lepra dentro e fora do isolamento ?.
2.2 ALTERAÇÕES NO TRATAMENTO DOS INTERNOS DO LEPROS ÁRIO SÃO ROQUE.
“Alí nos éramos tratados piores que animais” e assim que a ex-interna Isabel77
se refere ao tratamento dado durante seu isolamento no hospital São Roque, um
discurso muito diferente do que o apresentado pelo governo do Estado desde a
75 PARANÁ. 1926. Relatório (VICTOR DO AMARAL- Directoria Geral do Serviço Sanitario) apresentado ao Presidente do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, referente aos serviços do exercício da Directoria geral do serviço sanitário entre 1925-1926, em 31 de dezembro de 1926. Curityba: p.340. 76 Inauguração do Leprosário São Roque. O Estado do Paraná, 22 de outubro de 1926, p. 1. 77 Isabel de Andrade. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012.
47
inauguração da instituição no ano de 1926, em que foi afirmado que era uma obra
destinada ao tratamento digno dos doentes, e que iria lhes oferecer uma vida mais
feliz. 78 Com o decorrer das décadas de funcionamento do leprosário as experiências
vividas por seus ex-pacientes em relação ao tratamento recebido formaram um
discurso quase que unânime entre eles, e que nada se assemelhou à ideia de uma
estadia e tratamento respeitável e feliz dentro dos muros do isolamento. Sebastião
Pamplona afirmou que o São Roque “era uma prisão mesmo…era pior que uma
prisão porque na prisão você sabe quando vai sair e de lá não “79.
Com base nos depoimentos dos antigos pacientes a relação do isolamento
como uma prisão não se restringia apenas ao período em que estavam dentro do
hospital, mas começava desde o diagnóstico da doença devido a maneira com que
desde 1926, a doença e seus portadores eram tratados perante a sociedade sadia.
Foram ações que deram à doença um caráter de “crime”, no sentido em que poderia
causar danos ou representar perigo para a sociedade e, portanto, deveria ser
combatida pelos poderes públicos por meio de ações que garantissem o
afastamento desses indivíduos, como o Decreto nº 1.194, que estipulou a
obrigatoriedade do isolamento, e que determinava que, se houvesse resistência do
doente, seria utilizada a força policial para fazer com que a norma fosse cumprida. 80 Essa situação ocorreu com o pai da senhora Isabel, que foi tratado como um
criminoso por ser portador da hanseníase, como ela contou na entrevista concedida
no ano de 2012, em que afirmou o seguinte:
Quem sofreu mesmo na pele foi meu pai, porque descobriram no meu pai , que nos morávamos em Francisco Beltrão né, então foi assim, tinha um daqui que fugiu, um senhor que estava internado aqui que fugiu , e meu pai trabalhava na sapataria , ele tinha uma sapataria né , dai esse homem foi lá e viu o meu pai , então como ele tava aqui ele conhecia tudo né como é que era o sintoma né, como que aparecia a doença assim , e ele viu meu pai , meu pai com uns caroços assim no rosto , ele viu que o pai era doente, dai ele pegou e foi na policia e delatou meu pai. Dai meu pai lá trabalhando e chegou um cara da policia para pegar ele, e trazer aqui, dai só não trouxe
78 PARANÁ. 1926. Relatório (VICTOR DO AMARAL- Directoria Geral do Serviço Sanitario) apresentado ao Presidente do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, referente aos serviços do exercício da Directoria geral do serviço sanitário entre 1925-1926, em 31 de dezembro de 1926. Curityba: p.340. 79 Entrevista concedida por Sebastião Pamplona à Pamela F. Andrade, 2012 80 PARANÁ. 1926. Relatório (VICTOR DO AMARAL- Directoria Geral do Serviço Sanitario) apresentado ao Presidente do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, referente aos serviços do exercício da Directoria geral do serviço sanitário entre 1925-1926, em 31 de dezembro de 1926. Curityba: p.361.
48
ele porque o inspetor de quarteirão, que lá sé usava isso, era compadre do pai , dai se não o pai … dai o compadre disse que não ele não é criminoso, nem bandido, nem nada. Dai esse inspetor que se comprometeu de trazer o pai na saúde. 81
A ação de denunciar a pessoa suspeita de ser um doente e a polícia, e ela
poder levar mesmo que à força o indivíduo ao hospital de isolamento já era vista
pelos ex-internos como uma atitude de desrespeito, eles se sentiram tratados como
criminosos apenas por involuntariamente serem portadores da hanseníase. Foi
durante a década de 1950, que houve a descoberta do primeiro remédio que
apresentou resultado para o tratamento e uma possível cura da hanseníase82,
mesmo assim o destino final de quem contraia a terrível moléstia era com toda
certeza o São Roque, e como afirmou o senhor Pamplona “era uma viajem incerta
apenas de ida e sem data de retorno”, por esse motivo a constatação da
obrigatoriedade de internamento no leprosário era algo indesejável ao ponto de
alguns internos acharem que a morte seria a melhor saída. Foi esse pensamento
que teve a ex-interna F.B que ao ser diagnosticada com a doença recebeu uma
terrível afirmativa de qual seria o seu destino, o médico lhe disse que “ Você chegou
aqui para ficar, só sai daqui para o cemitério, pois para o leproso não tem volta,
pegou , ta morto” 83 . Ao ter esse tratamento se sentiu sem esperanças de obter um
fim diferente e tomou a decisão de acabar com a sua própria vida , porém sua
tentativa não obteve sucesso e ela foi internada no hospital São Roque.
Todo esse medo do isolamento também era devido a sua característica física
de uma instituição panoptica com características que fechamento, ajudavam a
reforçar a representação do espaço como uma prisão, e esse isolamento não se
restringia apenas ao espaço físico , era perceptível também no sentido psicológico
pois o indivíduo diagnosticado com a doença era obrigado a sair de seu ambiente
familiar. Isso significava que toda a sua vida seria modificada, ele iria ser afastado
do mundo que conhecia e pertencia, abandonando sua casa, trabalho, família e
amigos, tudo o que o fazia com que ele fosse identificado com aquela sociedade
sadia era desapropriado de si. Quando a senhora I.S e seu pai foram isolados no
hospital, tiveram que abandonar suas posses de terra e a sapataria que possuíam, o
senhor Pamplona abandonou tudo, até seus sonhos como relatou na entrevista:
81 Isabel. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 82 DUCATI, op. cit., p. 01 83 PINTO,Jorge Ferreira.São Roque O Estigma do Preconceito. Monografia. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba. 1998. p 20.
49
Eu lá no interior trabalhava no comercio né e eu tinha feito um concurso na Copel naquela época , entrar na Copel naquela época era ,sabe era o sonho de todo jovem né , a Copel estava começando ainda no estado né , e eu tinha feito o concurso e passei né e eu tive que vir para cá estudando e sonhando ai né, com uma faculdade derrepente né , foi tudo por água a baixo . 84
De acordo com Goffman esse indivíduo que era isolado no leprosário possuía
uma “cultura aparente”, formada por uma forma de vida que era aceita sem
discussões no mundo exterior, já se havia construído uma concepção de seu eu ,
que lhe permitia lidar com todas as situações encontradas.85
A partir do diagnóstico, o indivíduo passava a ser pertencente a outro grupo
social , o dos internos do São Roque, ao se inserir nesse novo ambiente ele perderia
a maioria de seus direitos civis que desfrutava no mundo exterior como afirmou o
senhor Sebastião:
era uma morte civil, era isso mesmo né , parece que a gente começa a pensar nisso da a impressão de que foi fantasioso né , mas .. Era chocante, você saber que chegando ali, você tinha perdido tudo a sua vida, a relação de família essas coisas , não tinha mais né.86
Como já foi afirmado anteriormente esse mundo do isolamento se
assemelhava a uma prisão, em que as celas eram representadas pela arquitetura de
fechamento e o distanciamento dos centros urbanos, os carcereiros eram os
integrantes da equipe dirigente que fazia todo o trabalho de separação dos doentes,
além de alguns próprios internos que trabalhavam como guardas do hospital
tentando evitar as recorrentes fugas. O Hospital já foi construído para impedir que o
doente tivesse contato com o mundo exterior, como ocorriam nas prisões, e quem
chegava ali contraia esse sentimento para si. 87 A reportagem do jornal O Estado do
Paraná afirmou acerca do hospital São Roque “Tinha aspecto de presídio onde
seus habitantes eram obrigados a ficar até morrer, multilados pela doença ,
marcados por uma sociedade que não os queria para fora dos quatro muros”88
A forma de tratamento apoiado no isolamento compulsório não afetava
apenas o doente, mas toda a sua família, pois os internamentos fizeram com que 84 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 85 GOFMAN .Op. Cit., p. 23 86 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 87 Hospital São Roque Corrige Problema do lixo, O Estado do Paraná, 04 de novembro, 1988. 88 São Roque, Uma cidade sem muros. O Estado do Paraná, 05 de novembro, 1976
50
muitas famílias fossem desfragmentadas como ocorreu com uma ex-paciente que
antes era casada, tinha uma filha, morava no interior do Paraná, aparentemente
tinha uma vida normal e feliz. Quando foi diagnostica como portadora de
hanseníase, foi isolada no hospital São Roque e teve sua vida completamente
mudada, e como a reclusão a impedia de sair, perdeu o contato com sua família,
nunca recebeu noticias da filha e do marido durante todo o período em que esteve
em tratamento, e depois, jamais voltou a reencontrar sua antiga família. 89
Existiam famílias que acompanhavam seus parentes durante o período de
reclusão, abandonado tudo o que possuía para iniciar uma nova vida próximo ao
leprosário, durante esse deslocamento, a maior dificuldade enfrentada pelas famílias
era o estigma 90 que permanecia e acompanhava a toda a família. Esse estigma
fazia com que a população sadia evitasse e até mesmo desprezasse algo que havia
pertencido ao doente, um exemplo foi o que ocorreu com a família de Isabel que
precisou acompanhar seus parentes durante o isolamento:
A minha mãe ficou quase louca, porque foi assim nos saímos de uma casa que nem eu falei para você ne 11 peças , então nos era em nove , dez , dez nos viemos de lá do mato em 13 , porque estava a tia Iris, mais a Rosa , mais uma mulher , e tudo nos , nos era uma família de nove irmão mais pai e a mãe , então a gente saiu de lá e veio chegar aqui no Irai em uma casa com duas peças, entrava três e tinha que sair…a nossa casa lá , é como eu sempre falo nos podia ser rico , a gente sempre estava bem de vida dai aconteceu isso né, quando nos saímos de lá nossa casa eles tacaram fogo, era uma casa de 11 peças e mais embaixo que tinha a sapataria , mas acabou , porque ninguém quer , as vacas tudo ficou porque ninguém quer , então era assim91
Muitas famílias foram desfeitas devido ao tratamento do portador da
hanseníase, a distância entre o interno e sua família, o estigma que ficava por ser
uma família em que um de seus membros estava com aquela doença, considerava
terrível para a sociedade, fazia com que muitas famílias abandonassem o doente no
hospital São Roque, forçando-o a reconstruir outro grupo familiar, isso era normal de
ocorrer durante o tratamento, como revelou a senhora Isabel:
89 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 90 De acordo com Ervig Goffman em sua obra Estigma: notas sobra a manipulação da identidade deteriorada, estigma é quando atribuímos evidências e características diferentes ao outro, atribuindo a esse outro um status de diferente, externo à normalidade, perigoso. Assim deixamos de considerá-lo como uma pessoa comum, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída, o que coloca indivíduo numa categoria diferente do que ele estava inserido anteriormente 91 Isabel. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012.
51
Acontecia bastante, das pessoas larga lá a mulher ou larga o marido dai vem fica ai, já se acha com outro ai dai se arruma por ai mesmo e fica junto. Era assim essas coisas ai, tem aqui a dona Tereza ela , quando eles descobriram que ela era doente, ela tinha um nenenzinho de colo, ela nem chegou a conhecer essa filha, dai eles moravam no norte né, trouxeram ela pra cá e ela nunca mais soube do marido e dessa filha. Agora depois de anos, procuraram ela, o marido sabia que ela estava aqui deve ter comentado com alguém né que mataram a filha dela e o pai dela pelas terras lá, ela não chegou a conhecer a filha dela, ela nunca foi pra lá e eles nunca vieram pra cá, quando chegaram, largaram ela ali e nunca mais voltaram, ai depois quando morreram o pai e a filha, vieram procurar ela ai, agora vai fazer o que, já morreram.92
Porém, não era apenas entre os próprios internos que ocorria o enlace
matrimonial, em algumas ocasiões acontecia dos internos se envolverem com
pessoas não internas, todavia essa era uma realidade que se tornou mais possível
após a década de 1970, quando já existia um remédio eficaz para a o tratamento e o
estigma havia diminuído. Mesmo assim ainda existia uma barreira que impedia esse
casamento como apontado nas reportagens dos jornais sobre o São Roque:
Aos 22 anos conheci um rapaz que quis casar comigo.. o problema era que ele era saudável e o Dr. Rui Miranda não quis que a gente se casasse … Ah! Naquela mesma noite que ele disse não pra gente, eu fugi com o moço, nos casamos em Piraquara e tivemos 12 filhos.93
Esses relacionamentos tanto de namoro, casamento e até mesmo as ajudas
mútuas, em relação aos amigos, que se faziam durante o isolamento eram
reconhecidos como intercâmbios sociais, era a maneira de um interno ajudar o
outro, era a construção de um sentimento de companheirismo que possibilitava ao
interno se adaptar melhor ao mundo do internato. 94
Muitos desses casamentos que ocorriam dentro do isolamento resultavam em
filhos, esses filhos eram retirados do convívio do casal, como determinava a Lei
Federal nº 610, de 13 de fevereiro de 1949. Para que isso fosse cumprido, o governo
sentiu a necessidade da construção de um educandário que abrigasse essas
crianças. 95 Isso ocorreu com a senhora Carmem, segundo o jornal Gazeta do Povo,
que relatou que quando Carmem tinha 7 anos de idade, seus pais foram internados
no Hospital, ela e seu irmão foram enviados para um educandário, e só voltou a
92 Isabel. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 93 No Paraná, o registro de 20 mil hansenianos, Gazeta do Povo, 09 de abril, 1984 94 GOFFMAN. OP.Cit.p. 228 95 JUNIOR, Luiz Augusto Curador. Responsabilidade Civil do Estado Perante os Portadores da Hanseníase e Seus Filhos Internados em Preventórios. Monografia. Centro Universitário de Brasília, Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento- ICPD, Brasília. 2010, p. 10.
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encontrar a mãe, com 17 anos de idade, ela não chegou a perder o contato por toda
a vida com os familiares, porque seu pai não deixou que isso ocorre. 96
Todavia não foram todas as crianças separadas que tiveram a mesma sorte
que a senhora Carmem, ocorria frequentemente que as crianças separadas dos
pais, fossem entregues para adoção, segundo Isabel:
As meninas que são moças já meio de idade já, que são da cabeça meia fraca , porque quando nascia, iam para o educandário , e lá eles judiavam demais das crianças, eles criavam os filhos dos doentes assim que eles ficaram tudo meio bobinho, e o que não dava para a adoção, dai vinham ai e mandavam avisar para os pais que os filhos tinham morrido, às vezes davam para a adoção, assim que nascia ia pra lá, dai lá os que não eram adotados, eram muito judiados, quem saiu de lá tudo tem uma sequela, porque judiavam demais .97
Segundo Sebastião Pamplona, as crianças que não eram entregues para
adoção, sofreram muito com os maus tratos ocorridos dentro dos educandários:
O Estado quando ele construiu os hospitais eles construíram também chamavam de educandário e em outros lugares chamavam de preventórios, então as crianças ficavam isolados lá né, nesses locais então isso foi muito agressivo para as crianças, as crianças cresciam e sabe, sem condição nenhuma de educação.98
O Leprosário São Roque realizava o tratamento de seus internos sob a
vigilância constante na tentativa de discipliná-los, para isso contava com diversos
mecanismos disciplinadores, alguns já foram apresentados nos tópicos anteriores
como o panoptismo e a localização funcional, porém um mecanismo de disciplina
que reforçava a representação da instituição como prisão, foi a separação física dos
internos. De acordo com Focault, da necessidade de controle surgiram instrumentos
sociais, que tiveram como finalidade fazer com que a disciplina fosse imposta e
absorvida pelos diferentes corpos sociais. Um desses instrumentos disciplinares era
a separação dos indivíduos, pois, a disciplina tende a organizar os indivíduos em
espaços diferenciados.99 Primeiro ocorreu a separação do doente do seu espaço de
convivência com a família, depois ao ser isolado no hospital, ocorreu uma outra
separação, entre o grupo dos internos e o grupo da equipe dirigente, depois
96 Genética vai unir os separados pela Lepra, Gazeta do povo, 03 de novembro de. 2011. 97 Isabel. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 98 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 99 FOCAULT .Op. Cit., p 136.
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separavam os doentes por estágio da doença, sexo, poder aquisitivo, além disso,
ainda ocorria a separação no interior da Igreja como se pode perceber na foto a
seguir.
F
ONTE: Acervo pessoal de Sebastião Pamplona, Piraquara,
1950, 1 fotografia p&b.
A fotografia tirada durante uma missa na igreja dentro do hospital revela bem
essa separação, o cercado no altar servia para separar os funcionários sadios dos
internos, como os internos eram a maioria eles ficavam para fora do cercado na
tentativa de evitar o contato com os funcionários sadios, como explicou o senhor
Pamplona, que vivenciou essa separação:
Uma coisa também que havia essa separação era na igreja, primeiro eles davam a hóstia para os sadios, funcionários, religiosos para depois dar a hóstia para o pessoal né. È, os internos eram maioria né, era muita gente, a própria parte da igreja quando você entra tem aqueles bancos que eram ocupados pelos internos. As religiosas os funcionários, tem aquela
FIGURA 8
54
cerquinha eles ficavam do lado de lá né, aquela cerquinha. Fazia parte desses sistemas. 100
Toda essa separação tinha o caráter de propiciar uma melhor aplicação da
disciplina.
Ao separar o interno, se dava continuidade à sua desapropriação do eu na
tentativa de fazer com que ele reconhecesse que o único espaço que lhe pertencia
dentro do hospital, era o do grupo do internato, por isso ocorria o processo que
Goffman denominou de desaculturamento das expressões do paciente, algumas
ações e costumes eram desapropriados em relação ao novo ambiente.
Durante a década de 1970, o leprosário recebeu um paciente chamado
Takami Tano, que antes de seu internamento, estava cursando o sexto ano de
medicina, acostumado, portanto, a tratar dos doentes e circular nas áreas onde a
equipe médica dos hospitais permanecia. No entanto, teve que abandonar esse
costume, ao fazer parte da equipe dos pacientes do leprosário101. Ocorreu então
para Takami Tano, segund entendiento de Gofmann, a desapropriação do seu eu,
ao ser desapropriado do papel social que mantinha antes de fazer parte do grupo
dos internados. O interno passou a participar de atividades que eram incompatíveis
com a sua percepção de eu até então. 102
O paciente de uma instituição total, como o São Roque não tinha a fronteira
entre si e o ambiente em que estava inserido, era sempre vigiado pela equipe
dirigente, e todas as ações desse sujeito eram determinadas e regulamentadas pela
equipe, o direito de escolha do próprio individuo deixava de existir, ou seja, Takami
não poderia mais transitar livremente entre as zonas do hospital, porque isso
somente era feito pelos médicos e enfermeiros, a partir do momento que ele foi
diagnosticado com a doença, não era mais o estudante de medicina prestes a se
formar e sim, apenas mais um doente em meio as demais internos. Por esse motivo,
devia se tornar cada vez mais submisso, e qualquer autonomia perante a instituição.
O internado deveria manter-se sob o ambiente coercitivo, e compreender que as
regras impostas se destinavam a garantir a disciplina da instituição. 103
100 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 101 PINTO. Op. Cit, p. 03. 102 GOFFMAN. Op. Cit, p. 24 103 Id.bid, p. 31
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Quando os internos chegavam para o isolamento forçado na colônia São
Roque se depararam com um ambiente extenso que apresentava diversas tarefas
das quais deviam participar, pois elas tinham a função de ocupar o tempo ocioso
durante seu isolamento, além de que essa era uma maneira de garantir o
funcionamento do hospital. Desde o seu projeto inicial, a instituição foi pensada para
ser autossustentável, ou seja, deveria se manter, em parte, por meio do trabalho dos
próprios internos.
O hospital fisicamente estava dividido em grupos de edifícios denominados de
zonas. Existia a zona sadia que era composta pela residência dos funcionários
sadios, a oficina mecânica, a torrefação de café, a escola dos filhos dos
funcionários, a guarita e a estação de trem pela qual os novos internos chegavam.
Na zona intermediaria se encontrava o pavilhão da administração, refeitório dos
funcionários, almoxarifado, farmácia, clausura das freiras e o jardim. A terceira
zoana era chamada de zona dos doentes, em que se estabeleceu a policlínica, que
possuía entradas diferentes para os doentes e os sadios, encontrava-se ainda a
farmácia dos internos, agencia postal, restaurante, biblioteca e, a partir do ano de
1934, passou a contar com a Caixa Beneficente São Roque, local onde eram
realizados eventos como os bailes, cinema, entre outras atividades recreativas. 104
O hospital ainda disponibilizava um espaço chamado de Carville, que era um
pavilhão de uso coletivo para os solteiros que não estavam em estágio avançado da
doença.. Os casais que eram internados juntos ou que realizavam o enlace
matrimonial no hospital, disponibilizavam de casas para viver durante o período de
tratamento, desde que não estivem em estágio avançado da doença. A Caixa
Beneficente após a sua inauguração passou a contar com mais atividades como
teatro e sorveteria, pois pretendiam dar aos internos um recurso a mais para distraí-
los e evitar o sentimento de que necessitavam sair do isolamento. Para finalizar, a
estrutura do São Roque contava com quadras de futebol, vôlei e basquete, além de
um necrotério, cadeia e cemitério. 105
Todo esse complexo dava ao hospital uma característica de cidade projetada
para que os internos não tivessem a intenção de sair e ajudassem no tratamento,
porém por trás de todo esse aparato, existia duas questões fundamentais, a primeira
era devido a angústia que os pacientes sentiam por estarem reclusos e terem sido
104 PINTO. Op. Cit, p. 15. 105 Ibid, p. 17
56
forçados a abandonar sua vida para fora daqueles muros. Uma reportagem do jornal
O Estado do Paraná,de 1976, afirmou que “ Para quem chega, o São Roque é uma
cidade comum do interior“106, os próprios internos também tinham a mesma
impressão a cerca da instituição, como revelou Sebastiâo Pamplona:
Era um mundo dentro de outro mundo, isso mesmo, é um mundo a parte, mas apesar de tudo as pessoas ali encontravam tempo para serem felizes sabe porque o hospital era como se fosse um mundo mesmo , porque ali tinha cadeia, a igreja, tinha campo de futebol , era dos pacientes. As pessoas casavam ali, aquelas casas que tem ali assim em volto do campo de futebol eram de famílias. Do canto de lá cada casa daquela tinha, abrigava quatro casais. 107
Durante o período de tratamento os internos podiam vir a desenvolver um
sentimento de que o tempo passado durante o isolamento era um tempo morto, o
que de acordo com Erving Goffman significava que era um período retirado da vida
do paciente, ou seja, era um tempo perdido, um tempo que precisa ser cumprido e
depois esquecido.108 Esse sentimento fez com que alguns internos dessem valor as
atividades realizadas dentro da instituição, era segundo Goffman, desinteressante
mas que faziam com que o interno esquecesse a sua situação real, essas atividades
tinham a intenção de matar misericordiosamente o tempo do tratamento dos
internos.109 Uma matéria da revista Panorama, de 1963, apontou que o hospital era
como uma cidade, em que os próprios internos realizavam diversas tarefas para
ocupar seu tempo durante o período que passavam reclusos para tratamento, a
reportagem mostra diversas fotografias de atividades desenvolvidas no Hospital de
isolamento como na imagem abaixo, em que os próprios internos estavam
realizando obras de reparos no hospital .
106 São Roque uma cidade sem muros. O Estado do Paraná, 05 de novembro de 1976. 107 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 108 GOFFMAN.Op.cit, p. 64 109 Id.bid, p. 65
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FONTE: Revista Panorama, Piraquara, Ago. de 1963, 1
fotografia p&b.
Em uma das legendas apresentadas na reportagem fica claro essa questão
das tarefas como parte para ocupar esse tempo de tratamento, a frase afirma que
“Os internos ocupam parte de seu tempo cooperando nas obras de ampliação e
consertos do Sanatório São Roque…Os que podem e querem trabalhar encontram
ocupações rendosas”110. O ex-interno Pamplona discorreu sobre a importância que o
trabalho realizado pelos internos teve para o bom funcionamento e a manutenção
física da instituição, afirmando que:
Sapateiro era uma coisa que tinha, assim tudo que era feito ali de obra civil, de construção era feito pelos internos , isso era uma maneira de ocupar o tempo também, mas também poderia ser mais bem remunerado. Por exemplo, a casa das Irmãs , a igreja , foi tudo construído pelas mãos dos internos , tinha no meu tempo uma verba que era de uma outra secretaria que eles pagavam uma quantia para as pessoas. Porque a equipe de enfermagem era toda, com exceção das Irmãs né eram todos de internos, a construção civil todos dos internos, então tudo que você imaginar que era ali , você viu o campo de futebol lá ?, agora você imagina que a natureza
110 HOLANDA, Jorge de. Sanatório São Roque não é masmorra. Revista Panorama, n.135. Ago. Paraná: Sociedade Comercial e Representações Gráficas Ltda. p. 17
FIGURA 9
58
não fez aquele relevo ali bonitinho, aqueles cortes ali tudo, aquilo foi feito tudo pelas mãos dos internos. 111
Todavia existiram internos que não se enquadravam nessa questão, pois
acreditavam que aquele tempo de reclusão para o seu tratamento era sim um tempo
perdido, um tempo que não havia mais como ser recuperado e mesmo com todas as
atividades disponíveis alguns internos não conseguiam se desligar do mundo
exterior, ou seja, não conseguiam se entreter por muito tempo. Essas atividades, de
acordo com Focault, também tinham um caráter disciplinar, porque se preocupavam
com a “docilidade dos corpos”, essas atividades eram instrumentos de impor
disciplina e modelar o comportamento dos internos.112Quando nenhuma das táticas
de adaptações de isolamento funcionavam, ocorria um descumprimento das regras
da instituição, e as atividades perdiam a sua função para esses indivíduos , como
descreveu a ex-interna Isabel de Andrade.
Tinha cinema, tinha baile, tinha que viver ali né, então tinha assim jogo de futebol, todo domingo tinha. Sabe, era um luxo. Vinha time de fora jogar né, tinha banda. Mas isso não era muito valorizado pelas pessoas que estavam ali. Sabe, não adianta você oferecer cinema , baile o que fosse , porque não pode sair dali sabe, não pode ir pra casa ver os filhos, ver a mãe, isso ai nada servia pra gente. A gente ficava lá, levava a vida assim sabe, mas não era aquilo, o que eles queriam mesmo era ficar em casa né . Eu mesma eu ganhei alta em outubro né, dai eles falavam assim, não Isabel fique que dai você vai fazer prova, que se você passar você ganha o boletim, eu não queria nem saber, eu queria ir embora. Assim que eu soube que me deram alta, eu não quis mais saber de nada, já tratei de mandar avisar a mãe para ir me buscar, eu não fico aqui mais nem um dia ( risos ) dai ia ter dia das crianças sempre davam doce, brinquedos, roupas, não, não quero, não teve agrado, eu fui embora. Não quero mais ficar aqui não e fui embora.113
A autossustentabilidade do hospital em grande parte era devido ao medo que
os demais membros da sociedade tinham em relação à hanseníase e seus
portadores, isso fez com que não fosse tarefa fácil arrumar mão-de-obra, pois como
afirma Goffman toda instituição total tinha uma função, e sua equipe dirigente tinha
que trabalhar com os parâmetros estipulados em função da localidade, porém esses
funcionários poderiam sentir uma certa periculosidade em relação ao seu trabalho.
Isso ocorreu no São Roque e por esse motivo era muito difícil conseguir mão-de-
111 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 112 FOCAULT. Op. Cit, p. 133. 113 Isabel de Andrade. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012.
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obra 114 não interna, para as tarefas do hospital como apresentado na reportagem do
jornal O Estado do Paraná em 04 de novembro de 1988, que afirmou que:
A falta de funcionários também é um problema. Muitos se recusam a trabalhar com os doentes do São Roque “Algumas vezes, em reuniões sociais, pessoas se recusam a apertar minha mão, quando souberam que eu trabalhava aqui”, conta Bostelmann.115
Essa característica fazia com que os internos assumissem tarefas que não
condiziam com a situação a que estava vivendo e muitas delas eram um desrespeito
com o interno, colocava-o em uma situação de perigo, pois aquela situação, não os
permitia grandes esforços, por isso era uma queixa muito constante dos internos, o
que ajudou a reforçar a ideia de que os portadores da hanseníase não tiveram um
tratamento que os respeitasse e os tratasse dignamente como relatou o ex-interno
Sebastião Pamplona.
Então o hospital tinha uma horta muito grande que supria aquela quantidade grande de pacientes, e tinha olaria própria que era a produção de tijolos né, e ali era uma coisa ruim né, porque a hanseníase ela compromete a sensibilidade né, agora você imagine, uma pessoa com falta de sensibilidade lidar numa olaria, naquela época bem rudimentar assim né, era perigoso. Na horta ou aonde tinham os carpinteiros, pedreiros, eram todos internos, se acabava.116
No tratamento direto com os doentes também se usava a mão-de-obra dos
internos justamente pelo motivo destacado no parágrafo anterior, sem que houvesse
uma preparação eficaz para que isso ocorresse, como Pamplona revelou:
Toda a equipe de enfermagem até 1980, 81, 82, ainda era dos internos, as Irmãs que os treinavam né , eram cursinhos assim né básico para você ai saber aplicar injeção, ministrar um comprimido né, fazer curativos, né.117
Goffman em sua obra, Manicômios, prisões e conventos, apontou que,
muitas vezes, os internos passavam a realizar atividades de trabalho por mando da
instituição em que estavam internados, mesmo quando não condiziam com as suas
condições, principalmente físicas. No Hospital São Roque, tal situação era
vivenciada com freqüência pelos internos que trabalhavam em diversas tarefas até
114 GOFFMAN.Op.cit , p. 71 115 Hospital são roque resolve problema do lixo. O Estado do Paraná, 04 de novembro de 1988. 116 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 117 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012.
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mesmo como enfermeiros, uma função que deveria ser exclusivamente da equipe
dirigente, devidamente preparada para isso118. Devido a essa questão, o resultado
desse tratamento muitas vezes se apresentava ruim, pois muitos internos sofreram
com erros ocorridos durante os procedimentos como revelou a ex- interna Isabel:
Imagina criatura que às vezes a pessoa ia aplicar uma injeção em outra e caia dura, porque não tinha curso, não tinha nada, eu mesmo aprendi a aplicar injeção na veia, no músculo tudo, porque era assim tudo na louca, ia o médico lá e pegava esse, esse, você vai trabalhar de enfermeiro, recebia uns troquinhos, então ensinava a aplicar uma injeção, faze um curativo, então era enfermeiro, então muita gente eles aplicavam a injeção e a pessoa caia dura, as pessoas tinham um medo tremendo de tomar injeção, porque não sabia se tomava a injeção e continuava vivo, era terrível, ali é só para quem passou mesmo.119
Contudo, o interno não tinha outra alternativa, ele só podia contar com o
tratamento oferecido dentro do hospital porque o restante da sociedade os tratava
com medo, repulsa, marginalizava-os na tentativa de apagar sua existência
indesejável. 120 Todos esses sentimentos se refletiram na maneira pela qual os
doentes eram tratados dentro do hospital, com o repudio da grande maioria dos
funcionários sadios, como os médicos, que pareciam não ter o menor interesse em
não chocar os pacientes, como revelou Sebastião Pamplona:
Os médicos se não tivessem máscaras, gorro, luvas, aquelas sapatilhas tipo que coloca por cima do sapato, eles não entravam no hospital. Meu amigo falava que eles não tinham receio de chocar a gente, de magoar né, o Lima falava que a gente deixava a vergonha para fora do portão. 121
Esse modo de tratamento, naturalmente, chocava os internos, era como se
eles não tivessem nenhum valor e como o próprio Pamplona salientou, era como se
eles não fossem pessoas que merecessem respeito, aquilo deixava os doentes com
o psicológico mais abalado ainda. Mesmo com a eficácia comprovada do
medicamento, após o ano de 1970, o preconceito não foi erradicado e o tratamento
com os doentes e ex-internos não sofreu grandes modificações, nem mesmo com
internos que viraram funcionários do hospital, o tratamento era diferenciado entre os
118 GOFFMAN. Op.cit, p. 78 119 Isabel de Andrade. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 120Fraternidade, a força para recuperar as exploradas vitimas da pior doença do mundo, O Estado do Paraná. 16 de Junho, 1974. 121 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012.
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doentes que eram funcionários, e os funcionários sadios. Sebastião Pamplona que
passou pela situação de ser paciente e funcionário, durante um longo período de
tempo, presenciou diversas situações em que o repúdio com os portadores da
doença ficou evidenciado:
Era época de Natal, dias antes do Natal nos tínhamos que ir receber o salário diretamente no banco. No hospital existiam duas conduções, uma para levar os funcionários sadios e outra para levar os funcionários internos, porém naquele dia a condução que levava os funcionários internos tinha quebrado e os sadios não deixaram os funcionários internos irem junto na mesma condução. Nós tivemos que ir na condução que transportava o lixo do hospital. 122
E o desrespeito durante o tratamento do hospital não se restringia apenas as
questões de quem era funcionário interno, muitas vezes ela se inicia no caminho do
paciente até a instituição, fosse por trem em que assim que chegava à estação do
São Roque, os demais passageiros fechavam as janelas na tentativa de evitar o
contágio 123, fosse pelo transporte da própria Secretaria de Saúde que deveria zelar
pela boa condição do doente. Era uma amostra da segregação e do estigma a que
o doente passaria a vivenciar, a partir de seu internamento. Muitas vezes, o descaso
com esse doentes era total, um exemplo foi o relato do ex-interno Pamplona sobre o
que ocorreu com dois pacientes a caminho da internação:
Olha na década de 80, finalzinho da década de 70, eu vi uma coisa assim que me deixou estarrecido, então aqui tinha uma ambulância que vinha lá do centro, ali da Saúde Pública, que trazia pacientes que vinham do interior pra cá né, dai a ambulância trazia até aqui sabe. E eu já trabalhava aqui naquelas condições de paciente e funcionário, a ambulância chegava aqui por volta das dez e meia, um pouquinho mais e no fim da tarde, um pouquinho antes das cinco, chegava a ambulância com paciente. Um dia eu estava esperando chegar essa ambulância para eu me recolher né, fechar o serviço lá e ela não vinha, não vinha, derrepente parou uma rural, dai o motorista sai, abre aquela portinha da rural, ele abre pra fora assim, quando eu vou olhar tinham dois pacientes que estavam sentados ali onde ficam o porta malas, sentadinhos assim, com a perna encolhida assim. Conclusão, a ambulância estragou, eles não deixaram os pacientes subirem nos bancos normais do carro, eles vieram sentadinhos assim, dai eles levantaram do carro, dai eles não conseguiram sabe, naquele tempo era estrada de chão, sabe não tinha asfalto, imagina o tormento que eles tiveram ali, que descaso, que falta de respeito. Isso no finalzinho da década de 70, eu não
122 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 123 HOLANDA, Jorge de. Sanatorio São Roque não é masmorra In: Revista Panorama, n.135. Ago. Paraná:Sociedade Comercial e Representações Gráficas LTDA.p. 17. 4.7846.
62
lembro bem assim, mas foi nessa época, era uma coisa assim que hoje parece fantasia né, que não existiu né124.
De acordo com os relatos apresentados evidenciou-se que a exclusão social
permaneceu mesmo após as descobertas científicas que amenizaram a
periculosidade da doença, todavia esse desrespeito com os portadores da
hanseníase não se restringiu apenas ao universo da instituição, ele se acentuava
fora de seus muros125. Mesmo quando o doente recebia alta do isolamento, sendo
constatado que não possuía mais a enfermidade, a sociedade exterior os
representavam como sendo eternamente “os doentes do hospital São Roque”, a
própria senhora Isabel de Andrade, sentiu esse preconceito na pele, anos depois de
sair do hospital, quando já estava casada e com filhos. Aparentemente vivia como
uma pessoa normal, porém ocorreu uma situação em que ela foi a um evento, com
seus filhos. Enquanto estava na fila, escutou duas mulheres que sabiam que ela
havia sido interna do hospital conversando a respeito de jovem senhora, e
afirmavam o seguinte “O que essa doente faz na fila, só veio para tirar o nosso lugar
“ 126. Ou seja a dona Isabel havia deixado o mundo do internato, porém o estigma e
o preconceito a perseguiram durante muito tempo ainda.
A morte civil do indivíduo se iniciava desde o momento em que recebia o
terrível diagnóstico, o de que estava acometido com a Hanseníase, e ele apenas se
acentuava com a sua inserção ao mundo do internato, iria dessa maneira se
desapropriando de todo o que fazia com que ele fosse aceito e reconhecido como
pertencente ao mundo exterior127. Com isso ocorria que muitos dos seus direitos
civis eram negados, até mesmo o direito de garantir a manutenção de sua própria
vida, isso porque os hospitais se recusavam a dar atendimento clínicos mais
complexos aos portadores de hanseníase. O que ocorreu constantemente no São
Roque, com seus internos foi a morte devido a insuficiência renal, em função da
perda de seus direitos civis, como revela o relato do senhor Sebastião:.
O Lima se apaixonou por uma mulher casada, dai as religiosas expulsaram ele, e ele não tinha condições né, ele tinha a mão toda deformada. Ele foi para outra colônia, daí ele tinha insuficiência renal, naquela época eles não faziam hemodiálise em pacientes com hanseníase, e ele morreu assim por conta disso , ele e tantos outros, era bem um desrespeito né, era um
124 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 125 PINTO.Op. Cit, p. 27 126 Isabel de Andrade. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 127 GOFFMAN. Op. Cit, p. 54
63
descaso, tinha outra moça com quem aconteceu a mesma coisa. Isso é uma coisa que marca muito a gente né, a gente não esquece nunca. 128
Nem mesmo os mortos eram poupados da reclusão, pois desde o início de
seu funcionamento o hospital contou com um cemitério próprio, pois muitos doentes
saíam de cidades distantes para fazer o tratamento no São Roque, outros foram
abandonados á própria sorte pelas famílias e não se tinha como contactar a família
para fazer um sepultamento. Além disso, havia uma norma que impedia que ex-
internos e doentes de hanseníase fossem sepultados em cemitérios que estivessem
fora dos limites do isolamento. Devido ao preconceito da sociedade como revelou a
reportagem do jornal Gazeta do Povo, 19 de abril do ano de 1990, que afirmou que o
cemitério na área interna do hospital surgiu exatamente dentro das concepções
preconceituosas de que os hansenianos deveriam serem apartados do convívio
social.129 Quem tinha a intenção de enterrar seus entes queridos fora do cemitério
do hospital tinha uma terrível surpresa como afirmou Pamplona:
Uma família que morasse em Curitiba e não contasse que era um paciente daqui podia ate ser enterrado né, agora se soubessem, eles não deixavam, mesmo depois de morto ainda se tinha uma resistência. Tem um caso que eu ouvi que no interior, morreu um paciente que tinha lepra né, eles tiveram que enterrar fora dos muros do hospital, não deixaram enterrar, tinham que enterrar fora dos muros130
Mesmo com todas as regras impostas na instituição que mantinham a
disciplina, sempre se arrumava uma maneira de burlar as normas, essas pessoas
que burlavam as normas deveriam receber as punições. De acordo com Goffmam,
as punições existiam nas instituições totais em forma de castigos, esses castigos
eram aplicados quando havia uma desobediência a alguma regra, sendo que a partir
disso, o interno ficava impossibilitado de conseguir privilégios. 131 Esses castigos
ocorriam no hospital também, a estrutura do hospital contava com a cadeia, que
tinha como função deixar aprisionados aqueles internos que tentavam fugir. Era o
castigo por descumprir a regra de permanecer no isolamento. Um caso em que esse
128 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 129 No São Roque, Cemitério Clandestino.Gazeta do Povo, 19 de abril. 1990. 130Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. . 131 GOFFMAN. Op. Cit, p. 78
64
castigo foi aplicado ocorreu com um ex-interno na década de 1950, de acordo com o
relato de Sebastião Pamplona:
Eu tenho um amigo que no final da década de 50, ele me contou que ele deixou uma filhinha e sabe ele tinha muita saudade né, uma noite ele sonhou que a menina tinha caído e estava sangrando o lábio da menina, ele ficou desesperado, tinha lá uns amigos dele que estavam com vontade de fugir e eles marcaram um dia lá e sumiram. E ele chegou na casa dele lá no norte do Paraná, eu não me lembro a cidade agora, mas a criança estava com uma cicatriz no lábio, eu não sei se foi coincidência ou não. Eu sei que ele ficou lá uns dias, depois voltou, se apresentou para o diretor e ficou lá na cadeia132.
A ex-interna Isabel de Andrade ainda relatou que a cadeia servia de castigo
para aqueles que não se encontravam bem psicologicamente, devido a reclusão
forçada:
Tinha, tinha cadeia, tinha parte, porque a pessoa às vezes fica fora do juízo né, então tinha muitos que perdia o juízo né, e mesmo porque tinha muita dor. Por que essas pessoas que tinham dores nos nervos, é uma dor terrível, você sabe quando você tem um dente que tem um canal aberto, assim é aqueles dores ali que davam nas mãos, nos pés, dai você fica, você perde o juízo. E tinha uma parte lá,um porão e jogavam lá esses, além de serem doentes tudo, ainda tinha essa coisa 133.
Até mesmo bebida alcoólica que, naturalmente, não era permitida dentro do
isolamento, davam um jeito de conseguir, de forma clandestina. Esse era um fato
que Erving Goffman denominou de ajustamento secundário, ou seja, era uma prática
que não desafiava frontalmente a equipe dirigente134. Sebastião Pamplona afirmou
que ocorria com uma certa frequência, mesmo com a firmeza do tratamento e a
constante vigilância que as religiosas mantinham sobre os internos.
O isolamento compulsório foi entrando em declínio apenas a partir da década
de 1970, pois somente nesse período, a ciência conseguiu com maior eficácia uma
combinação de remédios que não apresentasse resistência à doença. Com isso a
função do hospital São Roque foi gradativamente se modificando, o isolamento
compulsório já não era mais necessário. Todavia, foram muitas décadas de
isolamento e o saldo da década de 1980, quando se abriram definitivamente os
portões da instituição, foi de que muitos internos fizeram do hospital São Roque sua
casa alguns por escolha própria, já que haviam perdido os vínculos e o interesse
pelo mundo exterior. Porém, outros não tiveram alternativa, sem família, sem rumo, 132 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 133 Isabel de Andrade. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade , 06 de Abril de 2012. 134 GOFFMAN. Op. Cit, p. 85
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sem mais nada de seu, a melhor opção era permanecer no hospital. Mas, como eles
viveram abandonados pelo mundo exterior no São Roque?
2.3 FIM DO PROCESSO DE EXCLUSÃO E A DECADÊNCIA INS TITUCIONAL.
O primeiro medicamento utilizado para o tratamento da hanseníase, que
chegou a dar um resultado satisfatório foi produzido em 1940. Tratava-se de Sulfona
que, algum tempo depois, teve que ser substituída por outros medicamentos, pois
haviam aparecido agentes reagentes que tornaram seu tratamento ineficaz. Por isso,
no início da década de 1970, após novas pesquisas, foi descoberto um tratamento
poliquimioterápico que se apresentou totalmente eficaz no tratamento. 135
Assim, desde a década de 1950, quando a Sulfona foi utilizada no Hospital
São Roque, apareceu uma esperança para os internos, para a grande maioria, o
medicamento era representado como um bilhete de despedida da reclusão. Aqueles
que tinham uma condição econômica mais favorável, tiveram oportunidade de
adquirir o medicamente antes que os demais como informou o senhor Sebastião:
Olha até 1950, não tinha o remédio ainda né, as pessoas vinham ai para ficar ai, fazer curativo, fazia, tratava de outras intercorrência, mas não tinha ainda o tratamento, não tinha tratamento para, específico para hanseníase,né? E eu conversei com muitos pacientes antigos que quando ficaram sabendo que já tinha o remédio no exterior na Europa, as famílias abastadas importavam o remédio, só alguns anos depois ai que, que o pais, o Estado conseguiu trazer o remédio. Dai foi uma loucura, porque todo mundo que estava isolado ali queria tomar o remédio para sair dali né, quem que queria ficar ai? Era pior do que prisão, porque quando a pessoa vai preso ele tem um tempo que ele sabe, e ali não tinha isso né, eu sei que quando descobriram o medicamento foi uma loucura, aquelas famílias mais bastadas importavam Os pacientes me contavam que eles achavam que se tomassem mais comprimidos eles se curariam mais rápido.136
Naquele período, o São Roque contava com cerca de 1.200 internos, com
diferentes estágios da doença e com situações financeiras e psicológicas
diversas,137 por isso, nem todos os internos, apesar de tratarem a instituição como
“prisão”, ela representando o do medo devido aos maus tratos durante o tratamento,
alguns estabeleceram outras relações com o Leprosário e não tinham a intenção de
abandonar o hospital, muitos pacientes adquiram o hospital como sua casa alguns
135 DUCATTI.Op. Cit, p. 01 136 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. . 137 Genética vai unir separados pela lepra. Gazeta do povo, 03 de novembro . 2011
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por opção, uma dolorosa opção, outros por serem obrigados a permanecer na
instituição pelo motivo de terem sido abandonados pelos familiares. Os relatos dos
jornais ao longo das décadas denunciam essas questões, e alguns pacientes
revelaram histórias de sofrimento como o ex-interno Alcides, do qual se desconhece
o sobrenome:
Depois de curado, voltei para casa . Mas os Holandeses ameaçaram expulsar até a minha família de casa. Então, por preconceito da comunidade e para deixar meus filhos e minha esposa tranquilos, eu preferi ficar aqui, lamenta. Aqui sou bem cuidado, tenho cama limpinha. Mas não me acostumo, tenho saudade da minha família.138
Outros pacientes viram no hospital sua casa e por mais que tivessem famílias,
criaram uma relação de afeto com a instituição de modo que mesmo depois do fim
do período obrigatório de isolamento, acharam melhor permanecer como internos,
pois acreditavam que ali era a sua casa e receberiam um tratamento mais eficaz,
como discorrido na entrevista da paciente Joenize, no jornal O Estado do Paraná:
Eu digo que tenho duas famílias. Uma lá fora e uma aqui no hospital. Da minha família eu não posso reclamar. Mas do desprezo dos outros … Só Deus sabe o que eu passei, afirma Joenize que optou por ficar no hospital por achar que ali teria mais condições de saúde do que ficar em casa. 139
Essa ideia de que a instituição se tornou a casa do paciente foi evidenciado
em outra entrevista do diário Gazeta do Povo, de 04 de julho do ano de 2006.
Estou aqui desde 70, meu primo me disse que iria ser difícil sair… Naquela época eu vim com medo. Mas, quando cheguei, senti que aqui era a minha casa, o meu lugar e que daqui não sairia.140
Algumas das pessoas que estavam isoladas no hospital para tratamento
criaram obstáculos para saírem da instituição, sobre isso Goffman afirmou que ao se
ganhar a liberdade da instituição total, o sujeito podia se deparar com o pensamento
de o que se fazer agora que está livre. Não se conseguia um desprendimento total
daquele mundo ao qual ele fazia parte.141 Esses obstáculos eram justamente devido
a esse não desprendimento da instituição, o principal obstáculo que alguns
pacientes criaram foi em relação a sua cura como afirmou Pamplona: 138. Antigo leprosário no Paraná ainda abriga 35 ex-doentes. Folha de londrina.04 de Julho, 2006. 139 Isolamento não é mais necessário. O Estado do Paraná. 30 de maio de 2005. 140 No Paraná , o registro de 20 mil hansenianos. Gazeta do Povo, 09 de abril de 1984 141 GOFFMAN Op. Cit, p. 225
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Muitos não saíram né porque já não tinham mais contato nenhum com ninguém né? ficavam ai , mais muitos saíram. Diz que foi assim primeiro veio para aqueles que tinham dinheiro, e depois que veio o remédio diz que o desespero era tão grande que tomavam, que aqueles que tinham grana e tinham aqueles que não tinham mais interesse nenhum em sair, vendiam o remédio pro outro.142
Mesmo os antigos pacientes que saíram do hospital não conseguiram esse
desprendimento total da instituição, isso se revelou na própria equipe que continuou
a trabalhar no hospital, a equipe de internos que trabalhou no período do isolamento
compulsória, a partir daquele momento alguns foram efetivados como funcionários
da instituição, desse modo não se rompeu o vinculo total com o Hospital colônia.
Como era comum também outras colônias, foram criados núcleos populacionais em
torno da instituição, que originaram os bairros de Primavera, Santa Mônica e Vila
Macedo, criados principalmente em função do deslocamento que as famílias tinham
que fazer para acompanhar seus familiares durante o tratamento. Todavia, esses
bairros cresceram mais após o fim do isolamento, porque muitos dos pacientes que
saíram do hospital fixaram suas moradias nesses locais, uma vez que o preconceito
em torno dos portadores de hanseníase ainda prevalecia na sociedade “sadia”143.
Com o fim do isolamento compulsório ocorreu que uma das principais funções
do hospital foi substituída, ele foi projetado para ser uma cidade dos pacientes da
hanseníase, um local em que eles não necessitariam sair, um local para agrupar um
grande número de internos 144. Devido a sua nova situação, de abertura dos portões
da instituição, ele já não contava com um grande numero de internos, o que
acarretou no início de seu abandono estrutural, pois os internos, até então
compunham a maior parte da mão-de-obra do São Roque. Eram os responsáveis
pelos reparos e conservação da estrutura e com a diminuição dos internos,
consequentemente muito deixou de ser feito. Como consequência disso, entre o
final da década de 1970 e início dos anos de 1980, a situação da estrutura física do
hospital foi se deteriorando, o prédio necessitava de reformas, o teto sofria com
infiltrações, pacientes eram acomodados em corredores devido as mãs condições
142 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012. 143 PINTO. Op. Cit, p. 27 144 PARANÁ. 1926. Relatório (VICTOR DO AMARAL- Directoria Geral do Serviço Sanitario) apresentado ao Presidente do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, referente aos serviços do exercício da Directoria geral do serviço sanitário entre 1925-1926, em 31 de dezembro de 1926. Curityba: p. 361.
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do prédio, era a revelação de que seus tempos de glória e modernidade pareciam
ter chegado ao fim.145
Nesse período, o hospital passou a contar com a ajuda de Frei Ruy,
sacerdote franciscano que se tornou responsável, inicialmente pelo ofício religioso,
mas com a sua chegada, o hospital começou a sofrer significativas transformações.
Frei Ruy desenvolveu uma série de ações para arrecadar fundos para as melhorias
pelas quais o hospital deveria passar. Além disso, o hospital sempre contou com a
ajuda de doações que eram provenientes da Europa, e foram conseguidas por
intermédio da Congregação das Irmãs Franciscanas de São José que desde o início
do funcionamento do hospital estavam presente em sua administração e no trato
com os doentes. 146 Esse sempre foi um fator fundamental para a tentativa de
manter uma a conservação do hospital, mesmo após o fim do isolamento
compulsório, como informou o funcionário Sebastião Pamplona.
Os religiosos as irmãs eles ajudavam muito , vinha muita coisa da Europa para cá tanto em dinheiro , só que era uma coisa que a gente não tinha controle nenhum só as irmãs né, que recebiam né, que a gente não sabe se vinha tanto se era tudo gasto no hospital ou não né , a gente não tinha . Esse hospital aqui se não fosse a ajuda desses religiosos, a ajuda da Europa pra cá eu não sei como seria, inclusive com construções ali .147
Com isso pode-se perceber que o abandono não foi apenas dos internos que
não puderam sair depois do fim do isolamento compulsivo, que obrigatoriamente
tiveram que adotar a instituição como seu lar, porque já haviam perdido tudo o que
fazia com que “seu eu” se reconhecesse pertencente do mundo exterior ao São
Roque. Esses pacientes e todos os demais ex-internos que não perderam o vínculo
com o hospital, observaram a decadência e o abandono pelo qual o hospital vinha
passando, assistiram lentamente todo aquele período suntuoso e modular chegar ao
fim. A importância que ele teve em tempos anteriores foi sendo diluída a partir do
momento em que a reclusão não se tornou mais obrigatória. No entanto, seu papel
e sua história permaneceram preservados em todos os que tiveram sua vida
modificada em função da doença e do isolamento que ela impunha.
145 PINTO. Op. Cit, p. 44 146 Id.bid, p. 46, 47. 147 Sebastião Pamplona. Entrevista concedida à Pamela F. Andrade. Piraquara, em 19 de Maio de 2012.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Leprosário São Roque surgiu como um projeto da modernidade que buscou
colocar a sociedade paranaense do século XX, nos trilhos do progresso. Para que
isso fosse possível se acreditava que era necessário eliminar do seu meio tudo que
fosse responsável por trazer o caos e a anormalidade para esse grupo. E nesse
momento surgiu a necessidade de uma instituição que estivesse apoiada nos
preceitos modernos, retirando e isolando aqueles corpos doentes acometidos pela
moléstia da hanseníase que tanto amedrontava a sociedade.
No início, o hospital seguia os preceitos científicos e medicinais mais
modernos para o período, por esse motivo ele foi representado em sua inauguração
como uma instituição modular e moderna, no sentido em que representava uma
ruptura com o passado atrasado em relação ao tratamento dos leprosos. Porém,
essa modernidade ao longo dos anos foi cedendo espaço para a exclusão, isso
porque desde o início do tratamento a condição psicológica dos internos nada se
assemelhou com a propaganda feita pelo governo, de que o São Roque era um
espaço destinado a tratar os doentes com respeito, proporcionando-lhes uma vida
de felicidades. A exclusão ficou explicita no sentimento de prisão que tomou conta
da maioria dos que ficaram reclusos na instituição.
Essa segregação e exclusão se tornaram evidentes com as constantes fugas
e descumprimento das regras internas que ocorria constantemente na instituição,
além da maneira com que os internos foram tratados mesmo após as descobertas
cientificas que proporcionaram um tratamento eficaz para a doença. O tratamento
para com essas pessoas não se modificou muito desde o período medieval, pelo
contrário ela foi resignificada, ou seja, em pleno século XX, algumas práticas
permaneciam, mas com uma roupagem diferente. Um exemplo era a morte civil, que
durante a Idade Média europeia também ocorria tendo até mesmo um ritual para
simbolizar essa passagem. Durante o internamento no Leprosário São Roque o
mesmo ocorreu, o paciente perdia todos os direitos que o faziam se reconhecer e
ser reconhecido como pertencentes da sociedade sadia.
Além do mais eles eram obrigados a se afastar de suas famílias, abandonar
seus lares bruscamente como se fossem os culpados por terem contraído a terrível
doença, essa mesma situação ocorria há séculos e permaneceu assim até chegar
ao século XX. O desrespeito com que foram tratados por décadas dentro do
70
hospital, como prisioneiros e criminosos, fez com que os internos criassem uma rede
de amizade e solidariedade entre eles, como forma de sobreviver às duras
condições a que estavam sujeitos.
As pessoas que foram internas no hospital sofreram com a hanseníase e com
o preconceito de membros dos membros sociedade sadia, o que acarretou a
formação de uma sociedade dos internos. Uma sociedade no sentido de que os
pacientes eram um grupo de pessoas que compartilhavam das situações comuns de
existência, pois seguiam a mesma rotina durante o período de isolamento,
compartilhavam a mesma ideia de que não mereciam estarem vivenciando a
exclusão, isso influenciava até mesmo em suas representações do mundo exterior.
148
Essa sociedade que se criou ultrapassou os limites do hospital após o fim do
isolamento compulsório. Mesmo com o paciente passando por diversas situações
difíceis como a morte civil, o sofrimento de ter sido separado de sua família e de seu
lar, se afastando do que ele conhecia como seu mundo de referência, o hospital se
configurou para muitos como um ponto inicial para uma nova vida seja dentro dos
limites da instituição ou em seu entorno. Por esse motivo, muitos dos que
permaneceram na instituição, mesmo após a extinção do internamento compulsório,
desenvolveram um sentimento de que aquele espaço era o seu lar, a sua casa.
Muitos teriam afirmado que, quando chegaram ao São Roque, o viram como o lugar
em que terminariam suas vidas. Isso de fato ocorreu aos milhares, mas outros,
talvez pelo abandono de suas famílias, criaram um sentimento de pertencimento
profundo pelo mundo intramuros, influenciados possivelmente pelos mecanismos
disciplinadores e de “desaculturamento do seu eu”.
Para todos os que sentiram o início de uma nova vida, como por exemplo,
para os que constituíram família durante o internamento, para as famílias que
acompanharam seus doentes e encontraram nos bairros ao redor do hospital um
novo lar, ou ainda aos que saíram da reclusão, a própria instituição continuou em
suas vidas por meio de diferentes vínculos. Essas situações configuraram, de uma
forma ou de outra, numa nova fase de vida. O isolamento compulsório era como um
ponto de separação, entre o que havia existiu antes da reclusão no São Roque e o
148 GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: Ciência do Homem : Filosofia da cultura, São Paulo, Contexto , 2011, p 45.
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depois, sendo que a permanência, qualquer que tenha sido seu tempo, mudou
drasticamente a vida de todos os que o vivenciaram.
Esse período de tratamento dentro do hospital deixou como semente uma
sociedade de ex-internos que descobriu na sua união a maior arma de combate
contra o estigma. Um estigma que atravessou a própria história da humanidade.
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FONTES
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