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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LETRAS
CURSO DE LETRAS – PORTUGUÊS/INGLÊS
RAFAEL ANTONIO NOVELO
SIMULAÇÃO DO REAL E A ESPETACULARIZAÇÃO DO COTIDIANO:
REFLEXOS DA VIDA PÓS-MODERNA EM O SHOW DE TRUMAN
PATO BRANCO 2016
2
UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LETRAS
CURSO DE LETRAS – PORTUGUÊS/INGLÊS
RAFAEL ANTONIO NOVELO
SIMULAÇÃO DO REAL E A ESPETACULARIZAÇÃO DO COTIDIANO:
REFLEXOS DA VIDA PÓS-MODERNA EM O SHOW DE TRUMAN
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras Português-Inglês da Universidade Tecnológica Federal do Paraná Campus Pato Branco como requisito parcial para aprovação na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso – TCC II. Linha de Pesquisa: Estudos Culturais e de Cinema Orientadora: Mariese Ribas Stankiewicz
PATO BRANCO 2016
3
Observação: A versão original deste documento encontra-se arquivada na Coordenação de Letras da UTFPR – Campus Pato Branco
4
RESUMO
Sob a luz de algumas noções sobre a realidade, ilusão e hiper-realidade
elaboradas por alguns filósofos e estudiosos, como Platão e Arthur
Schopenhauer, e considerando estudos que apresentam leituras da pós-
modernidade e do Pós-Modernismo, como Jean Baudrillard, no que diz respeito
ao controle exercido pelas mídias e à espetacularização da vida cotidiana, essa
pesquisa tem, como objetivo principal, analisar o sujeito pós-moderno,
representado pelo personagem Truman Burbank, de O Show de Truman. É
preocupação dessa pesquisa verificar se a obra cinematogáfica em questão
reflete as nossas próprias vida na contemporaneidade.
Palavras-Chave: Pós-Modernismo, Realidade, Cinema, Hiper-Realidade, Meios
de Comunicação.
ABSTRACT
In light of some concepts regarding reality, illusion and hyperreality composed
by some philosophers and researchers, as such Platão and Arthur
Schopenhauer, and contemplating studies that provides interpretations of the
Post-Modernity and of the Postmodernism, as such Jean Baudrillard,
concerning the control that is exercised by the media and the spetacularization
of the daily life, this research has, as the main objective, to analyze the
postmodernist individual, represented by the character Truman Burbank, from
the film The Truman Show. This research is also concerned on the verification if
this cinematographic construction under study reflects our own lives on the
contemporaneity.
Key-Words: Postmodernism, Reality, Cinema, Hyperreality, Communication Media.
5
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..............................................................................................
6
CAPÍTULO 1: Interpretações do Real e o Sujeito Pós-Moderno ..................
17
1.1 Realidade, Ilusão e Hiper-Realidade: Considerações sobre Alguns Conceitos ………………….………………..…………….....
18
1.2 O Sujeito Pós-Moderno .………………………………………….....
24
CAPÍTULO 2: O Show de Truman: Uma das Muitas Leituras da Vida na Pós-Modernidade ...…………….....................................................................
32
2.1 A Narração em O Show de Truman .………………………..…......
33
2.2 A Função de Christof em O Show de Truman ..……………….....
36
2.3 O Reality Show e a Espetacularização do Cotidiano ...................
40
2.4 Seahaven: Cidade Simulada ...……………………………………..
42
2.5 Truman Burbank: Sujeito Pós-Moderno? .....................................
44
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..……………………………………………………
50
REFERÊNCIAS ............................................................................................
55
6
INTRODUÇÃO
A realidade é um dos mais recorrentes temas da Filosofia. A palavra veio
do latim realis, que, etimologicamente, significa “coisa”. No senso comum, a
realidade diz respeito a “tudo o que existe” e contempla tanto coisas palpáveis
e visíveis quanto coisas que são invisíveis, desde que exista uma explicação
aceitável oferecida pela Ciência, Filosofia ou por qualquer outro sistema de
análise. Ao longo dos séculos, desde que o homem aprendeu a raciocinar, a
discussão acerca de como definir a “realidade”, lado a lado com a “ilusão”,
esteve sempre presente entre filósofos como Platão, Arthur Schopenhauer,
Friedrich Nietzsche ou Jean Baudrillard.
É nesse contexto das várias possibilidades de concepção da realidade,
de seu contraponto, a ilusão, e de outras tantas facetas que convergem e
divergem desses conceitos, que textos de ficção vêm ao longo dos anos
tentado contar e mostrar ideias diversas sobre a apresentação/representação
do ser humano e sobre como ele percebe o mundo à sua volta. Em vistas disto,
este trabalho trata de uma possível leitura do filme O Show de Truman (1998),
dirigido por Peter Weir, que apresenta questionamentos e críticas sobre como o
homem em nossa contemporaneidade pode estar vivendo uma simulação do
real. O roteiro original do filme, escrito por Andrew Niccol, também contribuiu
para a elaboração da análise.
Sob a luz de algumas noções sobre a hiper-realidade de Baudrillard e de
estudos que consideram leituras da pós-modernidade e do Pós-Modernismo1,
no que diz respeito ao controle exercido pelas mídias e à espetacularização da
vida cotidiana, este Trabalho de Conclusão de Curso tem, como objetivo
principal, analisar o sujeito pós-moderno, representado pelo personagem
Truman Burbank, de O Show de Truman. Ao fazer isto, este estudo constatou
que o filme manifesta alguns elementos descritos como pós-modernos e
questiona o processo de simulação de realidades, supondo que a mesma
1 Fredric Jameson, crítico literário e teorista político norte-americano, diferencia pós-modernidade (uma estrutura) e pós-modernismo (um estilo cultural). De acordo com Jameson, é importante percebermos a diferença para entendermos que os estilos mudam rapidamente, enquanto uma estrutura pode ser mais estável. De acordo com Jameson, a pós-modernidade pode ser chamada de globalização ou terceiro estágio de capitalismo.
7
também se faz presente em nosso dia-a-dia através da mídia e meios de
comunicação.
Os questionamentos sobre uma realidade construída pela sociedade, a
partir de convenções sobre o que é certo e errado, quais seriam os fortes e os
fracos, os manipuladores e os manipulados, ou sobre o que é um mundo
perfeito e o que não é (conceitos geralmente ditados pelos meios de
comunicação), tão bem quanto a observação da qualidade dos programas
televisivos (nomeadamente os reality shows, uma vez que O Show de Truman
pode ser entendido como uma crítica aos mesmos), foram os primeiros pontos
observados para o desenvolvimento deste trabalho e que impulsionaram as
primeiras pesquisas sobre o que vem a ser a realidade e a ilusão e como a
hiper-realidade é descrita por alguns filósofos.
Na verdade, questões sobre realidade e ilusão sempre participaram dos
discursos filosóficos. Enquanto Platão, em sua Alegoria da Caverna2, já tinha
anunciado que o mundo em que sobrevivemos não é a Verdade, mas sim uma
cópia transvestida do “mundo das ideias” ou do “mundo ideal”, na Pós-
Modernidade, muito é questionado sobre o real, a ilusão e a constituição de
uma hiper-realidade ou realidade(s) simulada(s). As questões pós-modernas
acerca dessa temática têm sido bem mais agressivas, e algumas podem ser
consideradas “desconstrucionistas”, uma vez que buscam remover algumas
“certezas irremovíveis” e “verdades absolutas”. Mesmo assim, estamos longe
de conceituar estes termos definitivamente e por isso, discutir o tema é sempre
complexo.
Ainda, muitos pensadores da atualidade (como Linda Hutcheon, Brian
McHale, Fredric Jameson e Jean-François Lyotard), defendem que o
movimento cultural e filosófico pós-moderno surgiu como consequência do
2 O Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna, foi escrito por Platão e está contido no livro VII de A República, um de seus mais importantes escritos filosóficos. Na alegoria narra-se o diálogo de Sócrates com Glauco e Adimato. Platão utilizou a linguagem mítica para ilustrar o quanto as pessoas estavam presas a certas crenças e superstições. A história narra a vida de alguns homens que nasceram e cresceram dentro de uma caverna e ficavam voltados para o fundo dela. Ali contemplavam uma réstia de luz que refletia sombras no fundo da parede. Esse era o seu mundo. Certo dia, um dos habitantes resolveu voltar-se para o lado de fora da caverna e logo ficou cego devido à claridade da luz. E, aos poucos, vislumbrou outro mundo, bem mais atraente do que as sombras na parede. Voltou para a caverna para narrar o fato aos outros prisioneiros, mas eles não acreditaram nele e revoltados com a “mentira” o mataram.
8
capitalismo exacerbado do século XXI, do advento da cultura de massas, do
apogeu das minorias (teorias feministas, cultura negra e queer, para citar
algumas), da globalização e do crescimento exponencial da tecnologia. Todos
esses fatores são explicitamente abordados em muitas obras pós-modernas,
frequentemente sob um viés crítico e reflexivo.
Entre outras muitas coisas, a relação de observador-observado que
envolve Truman e sua condição de “prisioneiro em Seahaven” pode se
identificar com o conceito de panóptico, palavra cunhada por Jeremy Brentham,
jurista inglês, em 1785. Para Michel Foucault: “O Panóptico é uma máquina de
dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem
nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto” (FOUCAULT,
1987, p. 225). Na pós-modernidade, esta ideia do panóptico se desenvolve
também dentro do contexto das relações de poder, controlando a sociedade ao
dar-lhe a falsa impressão de que é livre. Truman, que vive “recluso” dentro de
um estúdio esferoide, acredita ser um homem livre, ainda que seja
constantemente vigiado e controlado por Christof, por sua equipe de produção
e por todos os espectadores que o seguem diuturnamente.
Em especial, o questionamento acerca da realidade empírica é alvo
central de discussões na atualidade, uma vez que o indivíduo pós-moderno,
sensível à atmosfera caótica desse movimento histórico-cultural, sente
dificuldades em discernir a diferença entre o real, o imaginário e o ilusório.
Brian McHale, em Postmodernist Fiction (1987), explica-nos de onde vem essa
sensibilidade que os personagens das narrativas pós-modernas sentem ao
discernir o que é o real, ou se eles próprios são reais ou não:
Mas, é claro que personagens de ficção pós-modernista podem, também, tornar-se cientes de sua própria ficcionalidade. […] O nível de consciência de um personagem perante sua situação, varia de caso para caso. Alguns, confrontados com a evidência de sua própria ficcionalidade, falham ao chegar à conclusão óbvia; eles ouvem a voz de seu ‘mestre’ – algumas vezes literalmente – mas sem reconhecê-la. […] Outros personagens pós-modernistas, no entanto, ouvem a voz de seu ‘mestre’ e o reconhecem pelo o que ele é. (MCHALE, 1987, p. 116; tradução minha).3
3 “But, of course, characters in postmodernist narrative fictions, too, can become aware of their own fictionality. […] The degree of a character’s awareness of his situation varies from case to case. Some, confronted with the evidence of their own fictionality, fail to draw the obvious conclusion; they hear their master’s voice – sometimes literally – but without recognizing it. […]
9
Truman Burbank, protagonista de O Show De Truman, que vive em uma
realidade simulada, inconsciente da condição de um homem constantemente
vigiado e manipulado, se encontra nessa confusão. Truman, um personagem
de ficção, mas que representa homens da contemporaneidade, não está ciente
de sua própria ficcionalidade. Ele “existe” como um ser concreto, mas o seu
comportamento é resultado do mundo simulado em sua volta. Roger Ebert, um
renomado crítico de cinema, teceu um comentário sobre o filme e afirma que
“os cineastas sugerem que [nós] aceitam[os] o mundo que [nos] dão” (EBERT,
1998, tradução minha)4, exatamente como Truman faz com Seahaven, o lugar
onde habita, e tudo o que lhe é imposto.
Truman até mesmo desconhece que é uma grande celebridade, no
mundo além de Seahaven, que é o espaço simulado onde tal personagem vive.
Aliás, sua confusão cresce com o avanço da narrativa, na medida em que os
conceitos de ilusão e realidade se tornam mais difíceis de separar, pois, como
nos explica Harvey:
Realidades radicalmente diferentes podem coexistir, colidir e se interpenetrar. Em consequência, a fronteira entre ficção e ficção cientifica sofreu uma real dissolução, enquanto as personagens pós-modernas com frequência parecem confusas acerca do mundo em que estão e de como deveriam agir em relação a ele. (HARVEY, 2005, p. 46).
Por ser a peça central no programa televisivo “O Show de Truman”, do
qual faz parte desde que nasceu, Truman tem a sua vida acompanhada por
milhares de pessoas. Sua vida, apesar de ser real para ele, não passa de uma
ilusão para as pessoas que o cercam. Porém, com o desenrolar dos eventos
narrativos, Truman é aficionado por uma tomada de consciência que promete
desmantelar o seu mundo. Harvey, ao afirmar que os personagens pós-
modernos são confusos, está coberto de razão e Truman é apenas um
exemplo.
O Show de Truman: O Show da Vida, como o filme é reconhecido no
Brasil, adianta para o espectador através do título que o cotidiano do
Other postmodernist characters, however, hear their master’s voice and recognize it for what it is” (MCHALE, 1987, p. 116).
4 “You accept the world you’re given, the filmmakers suggest” (EBERT, 1998).
10
personagem principal irá passar por um processo de espetacularização, uma
vez que Truman não faz nada além do que um homem comum faria e procura
levar a sua vida da maneira mais normal possível, sem grandes emoções, mas,
ainda assim, o seu dia-a-dia é um grande espetáculo assistido por milhões. O
filme, apesar de ser uma obra de ficção, não está distante da nossa realidade.
Como bem notou Ebert:
A televisão, sempre faminta por material, transforma celebridades em ‘conteúdos’, devorando suas vidas e segredos. Se você pensa que ‘O Show de Truman’ é um exagero, reflita que a Princesa Diana viveu sob condições semelhantes a partir do dia em que ela ficou noiva de Charles. (EBERT, 1998; tradução minha).5
Além disto, é por meio da televisão e demais meios de comunicação que
o espectador consegue perceber a criação de simulacros e simulações da
realidade dentro das quais os seres humanos vivem neste mundo
supostamente “real”.
Tudo isso compele o público a lembrar de algumas noções de “realidade
virtual”, desenvolvidas ao longo dos avanços tecnológicos. Em um primeiro
momento, o filme traz uma ideia que se assemelha a uma “realidade virtual”,
como descrita por Richard L. Thompson (2003, p. 18), em Maya: The World As
Virtual Reality:
Realidades virtuais revertem o programa tradicional da inteligência artificial. Ao invés de colocar uma mente simulada por computador em um mundo real, uma realidade virtual coloca uma mente real em um mundo simulado por computador. Inevitavelmente, isto requer algum tipo de interface, na qual a mente real faz com que as coisas aconteçam no mundo simulado e também percebe eventos nesse mundo. (THOMPSON, 2003, p. 18; tradução minha).6
Truman não está dentro de um computador propriamente dito, mas essa
ideia de uma pessoa “real” dentro de um mundo de faz-de-conta é o que leva o
espectador a pensar até que ponto as coisas à nossa volta são reais.
5 “Television, with its insatiable hunger for material, has made celebrities into ‘content,’ devouring their lives and secrets. If you think ‘The Truman Show’ is an exaggeration, reflect that Princess Diana lived under similar conditions from the day she became engaged to Charles” (EBERT, 1998, online).
6 “Virtual realities reverse the traditional program of AI. Instead of putting a computer-simulated mind in the real world, a VR puts a real mind in a computer-simulated world. Inevitably, this requires some kind of interface, in which the real mind causes things to happen in the simulated world and also perceives events in that world” (THOMPSON, 2003, p. 18).
11
Tal conceito é um tanto quanto exclusivo da pós-modernidade, mas não
nega a filosofia de Platão. Um exemplo dessa afirmação é o próprio Cinema.
Através de uma “realidade virtual”, essa arte nos oferece obras irreais, portanto
ilusórias, que transmitem diversas interpretações do nosso mundo real. No
entanto, Thompson, assim como outros filósofos e cientistas, discorre acerca
das fundações e conceitos para a realidade virtual. De um modo abrangente, a
realidade virtual consiste na criação de um mundo simulado através da
tecnologia, tal como o espaço narrativo de Matrix (um exemplo clássico de
realidade virtual) e, de uma maneira diferente, de O Show de Truman (que
mostra uma metáfora deste tipo de realidade).
Devido à artificialidade do mundo de Truman, a temática da hiper-
realidade7 tem sido constantemente relacionada com o filme. Todas as
manifestações que acometem Truman não passam de construções ilusórias e
representações. A cultura da contemporaneidade é fruto de uma realidade
minuciosamente construída e planejada – a hiper-realidade, isto é, um universo
tido e compreendido como real, mas que foi construído a partir de valores
simbólicos impostos pelo sistema hegemônico. Assim, os signos existem para
substituir os valores concretos dos significantes correspondentes. Simulacros e
Simulação (1981), de Baudrillard, trata desse fenômeno, que já é facilmente
notado dentro de nossa sociedade.
O autor discorre, sobretudo, acerca das representações feitas pelos
meios de comunicação os quais “veiculam a simulação interior ao sistema e a
simulação destruidora do sistema, segundo uma lógica absolutamente circular”
(BAUDRILLARD, 1981, p. 110). Essas representações, que acontecem em
quatro estágios,8 já não encontram referentes, podendo se tornar
manifestações totalmente independentes da realidade – o hiper-real. Outro
conceito fundamental de Baudrillard é o de simulacros, “um estado de réplica
tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase
impossível de ser percebida” (HARVEY, 2005, p. 261).
7 “modelos de um real sem origem nem realidade” (BAUDRILLARD, 1981, p. 8) 8 Seriam estas as fases sucessivas da imagem (BAUDRILLARD, 1981, p. 13): ela é o reflexo de uma realidade profunda; ela mascara e deforma uma realidade profunda; ela mascara a ausência de uma realidade profunda; ela não tem nenhuma relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro.
12
Baudrillard influenciou muito o cinema hollywoodiano da década de
1990, como nota o autor Randy Laist, na introdução de seu livro Cinema Of
Simulation: Hyperreal Hollywood in the Long 1990s. O autor discute como o
cinema americano nessa década foi influenciado pela ideia do hiper-real de
Baudrillard e como a hiper-realidade foi amplamente explorada pelos diretores
em atividade nesse período. Segundo Laist:
O cinema da hiper-realidade dos anos 90 concebe as telas de cinema nem como uma janela para uma já pré-existente realidade (realismo), nem como um “buraco” que leva à uma dimensão fantasiosa (escapismo), mas como uma área onde imagens e realidades trocam máscaras, se misturam e desafiam as propostas filosóficas que diferenciam uma da outra. (LAIST, 2015, p. 4, tradução minha)9
Como um bom exemplo do cinema norte-americano dos anos 90, O
Show de Truman serve para exemplificar o raciocinio de Laist. A realidade e a
ilusão, durante o tempo de projeção do filme, estão intrinsecamente
misturadas, especialmente a partir do ponto de vista de Truman. Só sabemos
distinguir uma da outra por que somos espectadores do filme. O autor ainda
cita diversos outros construtos cinematográficos que apresentam essa
tendência do cinema hollywoodiano, como o já mencionado Matrix (1999), Pulp
Fiction: Tempo de Violência (1994) e JFK (1991).
Laist ainda chama a atenção para como O Show de Truman pode ser
considerado uma das principais películas a representar a teoria da hiper-
realidade de Baudrillard, em detrimento de outros filmes lançados na década
de 1990:
Matrix explicitamente alude à hiper-realidade pensada por Baudrillard, apesar de que o próprio Baudrillard negar que o cenário fantasioso presente no filme seja uma representação fiel de suas ideias. Baudrillard minimizou a relevância de Matrix em demonstrar o impacto cultural do conceito da hiper-realidade, explicando que ‘já houve outros filmes que trataram da confusão crescente entre o real e o virtual: O Show de Truman (1998), Minority Report – A Nova Lei (2002) e Cidades dos Sonhos (2001)’.10 (LAIST, 2015, p. 6, tradução minha).
9 “The hyperreal cinema of the 1990s conceives of the movie screen as neither a window on a preexisting social reality (realism) nor as a wormhole into a fantastic dream-dimension (escapism), but as an arena in which images and reality exchange masks, blend into one another, and challenge the philosophical premises which differentiate them from one another.” (LAIST, 2015, p. 4) 10 “The Matrix explicitly alludes to Baudrillardian hyperreality, although Baudrillard himself denied that the fantasy scenario dramatized in The Matrix was a faithful representation of his ideas. Baudrillard downplayed the significance of The Matrix in demonstrating the cultural impact of the concept of hyperreality, explaining that ‘there had already been other movies
13
O autor percebeu que O Show de Truman é um excelente exemplo do
que Baudrillard quer dizer com hiper-realidade, justamente pela junção
praticamente homogênea entre os elementos do real com os da ilusão. Se é
difícil separarmos o que é real e o que não é como espectadores, é
praticamente impossível para Truman separar uma coisa da outra.
Douglas E. Forster, em Deconstructing Reaganism: An Analysis of
American Fantasy Films (2014), expõe que a crítica dirigida aos meios de
comunicação, especialmente à televisão, aos reality shows e à
espetacularização da vida cotidiana, é um dos principais méritos de O Show de
Truman como obra cinematográfica. O autor afirma que “é extremamente
irônico que a audiência ficcional do programa televisivo de Truman seja
retratada como um grupo de pessoas que não pensam, adoradoras-de-
celebridades mentalmente moribundas” (FORSTER, 2014, p. 190; tradução
minha).11
Tais títulos não são os únicos a se preocuparem com questões acerca
da hiper-realidade e da realidade virtual. O cinema tem vinculado muitas obras
que levantam essa discussão, principalmente a partir da década de 1980, e
com mais intensidade ainda na década de 1990. Blade Runner – O Caçador de
Androides (Ridley Scott, 1982), A Origem (Christopher Nolan, 2010), Ela (Spike
Jonze, 2013), Ex-Machina: Instinto Artificial (Alex Garland, 2015) são alguns
dos filmes que discutem e levantam questões referentes àquilo que se
apresenta como real, à tecnologia e a sua relação desumanizadora com o
homem ou mesmo à percepção da manipulação dos meios de comunicação.
Tais textos suscitam discussões acerca do real e da ilusão, além de
apresentarem interpretações distintas sobre elas.
O Show de Truman foi produzido em uma época de amplo crescimento
dos meios de comunicação e da tecnologia. Contudo, o filme apresenta um
viés extremamente crítico acerca desses veículos e direciona um
questionamento preocupante para o seu público. O contexto de produção, que
também foi marcado pelo pleno advento do desenvolvimento das mídias e da
dealing with the growing blur between the real and the virtual: The Truman Show (1998), Minority Report (2002), even Mulholland Drive (2001)’” (LAIST, 2015, p. 6). 11 “It is extremely ironic that the fictional audience of Truman’s television show is portrayed as an unthinking gaggle of mentally moribund celebrity-worshippers” (FORSTER, 2014, p. 190).
14
intensificação da invasão da vida privada, O Show de Truman veio ao encontro
da experiência empírica da sociedade americana da década de 1990. Depois
do lançamento do filme, o impacto cultural foi tamanho, que algumas pessoas
procuraram assistência psicológica afirmando que acreditavam que sua vida
era um “grande espetáculo televisivo” ou estarem “constantemente sendo
vigiadas”.
Apesar do transtorno não estar listado no Diagnostic and Statistical
Manual of the American Psychiatric Association, os psicólogos irmãos Joel e
Ian Gold cunharam as expressões “Síndrome de Truman” ou “Ilusão do Show
de Truman”12, no livro Suspicious Minds: How Culture Shapes Madness (2014),
o qual recebeu a crítica de Jennifer Latson, do Boston Globe, de que “[…] os
irmãos descrevem o modo como a cultura pode tanto contribuir para doenças
mentais como influenciar a forma que podem tomar” (LATSON, 2014; tradução
minha)13 nessa obra.
Slavoj Žižek, em Bem-vindo Ao Deserto do Real (2002), tece um breve
comentário sobre O Show de Truman e o aproxima do romance O Homem
Mais Importante do Mundo (1959), de Phillip K. Dick, um autor referencial em
estudos da ficção científica. Para Žižek, “a experiência subjacente a Time Out
of Joint14 e a O Show de Truman é que o paraíso capitalista e consumista da
Califórnia, em toda a sua hiper-realidade, é de certa forma irreal, sem
substância, carente de inércia material” (ŽIŽEK, 2002, p. 29). Žižek percebe
que tanto O Show de Truman quanto O Homem Mais Importante do Mundo
apresentam farsas representadas que servem para iludir seus respectivos
protagonistas e que, de uma forma ou de outra, servem para tecer uma crítica
direcionada à sociedade norte-americana e à simulação do real.
Discutir sobre a realidade é sempre relevante. Discutir sobre o sujeito
observador que vive e sobrevive neste mundo de percepções ajuda-nos a
descrever o quanto este mundo nos influencia, gerando questionamentos e
posicionamentos que estão constantemente rearticulando-se e modificando-se.
O que é a realidade e o que é real são perguntas que desconfortam o ser
12 “Truman Syndrome” ou “The Truman Show Delusion”.
13 “[…T]he brothers describe the way that culture can both contribute to mental illness and influence the shape it takes” (LATSON, 2014, online).
14 O título original do romance de Phillip K. Dick.
15
humano, mas é importante pensarmos sobre isso e observarmos como vários
questionamentos são veiculados pelos textos ficcionais, neste caso, em
particular, por O Show de Truman.
Por esta razão, o primeiro capítulo deste trabalho, intitulado “As
Interpretações do Real e o Sujeito Pós-Moderno”, trata de um estudo descritivo
sobre o homem pós-moderno e o seu relacionamento problemático com as
percepções do real e da ilusão. O capítulo também se preocupa em expor mais
leituras acerca da hiper-realidade e como o tema já foi trabalhado pelos
filósofos com o passar dos séculos e como o tema vem gerando mais
discussões na pós-modernidade.
O segundo capítulo, “O Show de Truman: Uma das Muitas Leituras da
Vida na Pós-Modernidade”, por sua vez, é uma análise de O Show de Truman,
focando em como as questões da hiper-realidade, realidade e ilusão foram
abordadas no filme. Ainda, tal análise se voltará à aproximação de Truman
Burbank, como sujeito contemporâneo pós-moderno. Nesse capítulo, um dos
tópicos a serem abordados é como acontece a narração em O Show de
Truman. Por ser uma narrativa que oscila constantemente entre vários planos é
interessante reservar um momento para comentar sobre como o processo
narrativo acontece no filme. Neste caso, importantes noções sobre a narração
fílmica, encontradas em Narration Of Fiction Film, de David Bordwell, ajudou no
desenvolvimento da análise do filme. Além disto, apesar de não fazer parte da
análise imediata deste trabalho, comentou-se sobre a consciência de Truman,
entendendo-o como uma representação do sujeito pós-moderno, apesar da sua
ficcionalidade, através de alguns conceitos de Sigmund Freud e Jacques
Lacan.
Sabemos que não é propriamente o mundo que é pós-moderno, mas
sim, a nossa perspectiva criada por todo tipo de desenvolvimento na ciência,
na tecnologia e na sociedade. Com isso, o sujeito autônomo e determinado da
modernidade foi progressivamente substituído por um agente cuja identidade é
amplamente determinada pelo “Outro”, que se tornou amplamente difícil de ser
representado, uma vez que, falada sobre múltiplas perspectivas do tempo
presente, o denominador comum de todas as teorias pós-modernas é
exatamente a crise da “representação”, ou seja, um sentimento de impotência
16
em nossa habilidade em representar o real. As representações em que
confiávamos não são mais palpáveis.
Muito do que existe nessa ideia é possível identificar no filme. Truman
é o homem moderno inserido em uma realidade difícil de ser explicada ou
representada. O homem que oscila entre a realidade e a ilusão sem conseguir
entender a distinção entre ambas aproxima-se daquele que somos. Em “O
Final da Renascença?” (1963), Leonard B. Meyer traz algumas novas ideias
sobre o homem pós-moderno:
O homem não é mais para ser a medida de todas as coisas, o centro do universo. Ele foi medido e encontrou-se como um indistinto pedaço de matéria, nenhum pouco diferente, de nenhuma forma essencial, das bactérias, pedras e árvores. Seus objetivos e propósitos; suas noções egocêntricas do passado, do presente e do futuro; sua fé em seu poder de predizer e, através da predição, de controlar o seu destino – tudo isto é questionado, considerado irrelevante ou condenado ao trivial. (MEYER, 1960 apud BERTENS, p. 23; tradução minha).15
A centralização do homem em O Show de Truman, que culmina com a
invasão de sua privacidade e com a observação diuturna de sua vida é uma
forma de espetacularizar a rara característica da pós-modernidade que
revelaria o homem como o centro de tudo. Além disto, ainda dentro do
processo de observação, qual seria o juízo que fazemos de Truman diante de
sua própria realidade? Que juízo fazemos de nós mesmos diante de nossa
própria realidade?
15 “Man is no longer to be the measure of all things, the center of the universe. He has been measured and found to be an undistinguished bit of matter different in no essential way from bacteria, stones, and trees; his goals and purposes; his egocentric notions of the past, present, and future; his faith in his power to predict and, through prediction, to control his destiny – all these are called into question, considered irrelevant, or deemed trivial” (MEYER, 1963 apud BERTENS, p. 23, 1995).
17
CAPÍTULO 1
Interpretações do Real e o Sujeito Pós-Moderno
O Show de Truman é construído a partir da temática da realidade, que
configura um dos temas mais estudados desde a gênese da Filosofia. Seria
imprudente supor que os questionamentos levantados pelo filme possuem
caráter original e revolucionário. Sendo assim, uma contextualização sobre o
tema se faz necessária e bem-vinda. O filme levanta discussões que já foram
travadas há muito tempo, desde a construção da escola filosófica na Grécia
Antiga. Isso se justifica pelo fato que o ser humano nunca cessou em buscar o
significado e a razão para sua existência (talvez seja esse o principal impulso
dos estudos filosóficos) e pela necessidade que o mesmo sente em
compreender o meio em que habita.
Por milênios, a temática da realidade foi estudada, surgindo muitas
teorias e debates nos meios intelectuais, todos movidos pelo intuito de
descobrir a Verdade por trás das supostas ilusões do mundo e suas
representações. Essa procura pela Verdade, novamente, se tornou uma das
grandes preocupações da Pós-Modernidade, e, devemos considerar, que muito
do que foi dito na contemporaneidade encontra a sua raiz em estudos que
aconteceram durante a Antiguidade Clássica e durante o Iluminismo, por
exemplo.
Para que se possa compreender melhor os estudos pós-modernos e,
especialmente, conseguir perceber as referências que acontecem em O Show
de Truman (a exemplo de como o filme pode ser entendido como uma releitura
da Alegoria da Caverna, de Platão), uma breve contextualização do que já foi
dito sobre a temática do real ao longo dos tempos será abordado nos próximos
tópicos, antes de chegarmos a discutir como a realidade foi trabalhada durante
os estudos ocorridos na pós-modernidade.
18
1.1 Realidade, Ilusão e Hiper-Realidade: Considerações sobre alguns
conceitos
Na Antiguidade, Parmênides acreditava que a realidade era uniforme,
imutável, estática e única (monismo), além de estar incorporada em um Ser-
Absoluto. Ele defendia que a permanência era o estado natural das coisas. Em
contrapartida, as ideias de Heráclito são associadas à existência de uma
mudança permanente, pois “tudo se esvai”. Parmênides e Heráclito
discordavam-se entre si (pois qual seria a explicação para o mundo estar em
constante transformação e ser sempre o mesmo?), considerando que, para
Parmênides, o mundo sensível (ou mundo das ideias) não existia e que
Heráclito acreditava que a “unidade dos contrários” sustenta o mundo (Platão
irá recuperar essa premissa). Ambos tentaram, de formas diferentes, encontrar
uma explicação coerente quanto à natureza metafísica da realidade.
Por outro lado, Platão tentou encontrar uma explicação plausível acerca
do real. Para o filósofo, o ser humano entra em contato com a realidade através
dos sentidos e o mundo material é, na verdade, uma cópia (ou uma
“representação invertida”) do mundo das ideias. Ou seja, para Platão, a
realidade não passa de uma ilusão e uma preparação do indivíduo para
adentrar o mundo das ideias.
Em O Show de Truman, acontece uma interessante abordagem do
simulacro. No universo narrativo do filme, a abordagem acerca da temática do
simulacro remete a uma cópia ou representação perfeita e atraente, porém
falsificadora. O Show de Truman veicula a ideia que o mundo é composto de
objetos sem referência que se apresentam mais reais do que a própria
realidade (definição que apareceria com a nomenclatura hiper-real, nos
estudos de Baudrillard). Desse modo, o filme fortifica a ideia de Platão, e a
premissa de que o mundo real é uma ilusão,
Gilles Deleuze, em A Lógica do Sentido (1974), aponta a importância da
Alegoria da Caverna de Platão para as definições de simulacro, simulação e
realidade. O autor explica que as dicotomias platônicas, a essência e a
19
aparência, o inteligível e o sensível, a ideia e a imagem, o original e a cópia, o
modelo e o simulacro, não são compostas de conceitos equivalentes, a relação
é, na verdade, de opostos. Enquanto as cópias possuem um referente
concreto, o simulacro não possui nenhum referente na realidade, ou, se
preferir, no mundo real:
A distinção se desloca entre duas espécies de imagens. As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essencial. É neste sentido que Platão divide em dois o domínio das imagens-ídolos: de um lado as cópias-ícones, de outro os simulacros-fantasmas. (DELEUZE, 1974, p. 262; itálicos do autor).
Delimitar o conceito de simulacro envolve muita discussão sobre
igualdade e diferença, semelhança e disparidade, representação e criação.
Deleuze, quando analisa o simulacro definido por Platão, propõe uma reversão
direcionada à criação, maximizando ainda mais a diferença e a
dessemelhança, ou seja, apontando rupturas com modelos, identidades,
processos de representação e de identificação.
O platonismo funda o domínio da representação, definido numa relação
intrínseca ao modelo. A representação consiste na adequação entre a ideia e a
coisa, o abstrato e o real. Platão introduz uma distinção entre cópia e
simulacro. Para tanto, elabora um modelo, uma espécie de identidade pura,
existente no Mundo das Ideias que serve como o “original” para selecionar e
classificar as cópias.
Friedrich Nietzsche, como Deleuze, também nega o platonismo. Em O
Crepúsculo dos Ídolos, livro no qual o filósofo faz uma crítica a outros grandes
nomes da Filosofia, como Platão e Immanuel Kant, ele defende que “falar de
outro mundo distinto deste carece de sentido” (NIETZSCHE, 2001, p. 25) e que
“o Mundo-Verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O mundo das
aparências? Mas não; com o Mundo-Verdade abolimos o mundo das
aparências! ((NIETZSCHE, 2001, p. 27; itálicos do autor). Nietzsche e Deleuze
se opõem a Platão ao inverterem a dualidade essência/aparência: enquanto
Platão supervalorizava a essência, Nietzsche e, mais tarde Deleuze, são
responsáveis pela supressão dessa dualidade, não apenas por dar uma
importância maior à aparência, mas por extinguir o elemento platônico da
20
essência. Para os autores, é aconselhável acreditarmos apenas no real e no
concreto.
O autor Nick Herbert, em seu livro Quantum Reality: Beyond the New
Physics (1985), além de revelar o quanto os filósofos e físicos da Era Moderna
se preocupavam em compreender a verdadeira natureza da realidade, o autor
cita Albert Einstein, que foi um dos cientistas-chave das mudanças
paradigmáticas para o desenvolvimento pós-moderno, para ilustrar como a
Ciência se preocupa em caracterizar a realidade: “a realidade é a verdadeira
preocupação da Física” (HERBERT, 1985, p. 4; tradução minha)16.
A Filosofia Clássica não conseguiu encontrar um lugar-comum para as
conceituações sobre realidade e ilusão e acabou por deixar mais perguntas do
que respostas. A discussão pouco avançou após o colapso das potências
greco-romanas da Antiguidade Clássica até o término da Idade Média.
Contudo, durante o Renascimento e, posteriormente, no Iluminismo, quando os
valores do Classicismo foram recuperados pelos grandes intelectuais, tentar
definir e delimitar o conceito de realidade era, mais uma vez, uma preocupação
filosófica.
Na primeira metade do século XVII, o questionamento acerca da
realidade encontrou duas perspectivas: os empiristas e os racionalistas. Os
primeiros defendiam que o conhecimento era obtido através dos cinco sentidos,
ao passo que os racionalistas defendiam que o conhecimento chegava até o
homem por meio da razão. Os empiristas John Locke, George Berkeley e
David Hume refutaram “a teoria inata das ideias”, já presentes em Platão, mas
recuperadas pelos modernos René Descartes, Baruch Espinoza e Gottfried
Leibniz, e aperfeiçoaram a teoria de Thomas Hobbes (uma abordagem
fisicalista de que o mundo exterior influencia o modo como o indivíduo pensa
ou raciocina). Com a queda da teoria inata das ideias, a experiência empírica
ganha destaque com os três filósofos britânicos e é ela que determina o modo
como percebemos a realidade (que, agora, varia de indivíduo para indivíduo).
Truman tinha sua própria realidade enquanto morava em Seahaven, a
qual era percebida pelo protagonista através de seus sentidos, exatamente nos
moldes teorizados pelos empiristas e o modelo da percepção do real e a
16 “Reality is the real business of physics” (HERBERT, 1985, p. 4).
21
compreensão do mundo através dos sentidos e da experiência empírica. Nós,
na nossa posição de espectadores de uma obra cinematográfica, sabemos que
ele vive em uma ironia dramática, ou seja, sabemos que a realidade dele é
construída, enquanto ele não sabe.
Kant, aproveitando o que Locke, Berkeley e Hume haviam escrito sobre
a realidade, defendeu que podemos compreendê-la sem os sentidos, mas
apenas parcialmente. O filósofo afirma que se nos apoiarmos apenas nisso,
nossa mente irá criar sua própria realidade (em termos muito relativos,
entendemos isso como uma manifestação de esquizofrenia na atualidade).
Para Kant, a realidade existe objetivamente, enquanto a razão nos possibilita
percebê-la subjetivamente:
Kant acreditava que as aparências do mundo estavam profundamente condicionadas pelo aparato sensorial e intelectual humano. Outros seres, sem dúvida, experimentam o mesmo mundo de formas radicalmente diferentes. (HERBERT, 1985, p. 4; tradução minha).17
Desse modo, podemos acreditar que os sentidos talvez não são tão confiáveis
como os empiristas acreditavam ser. O mundo é muito complexo para poder
ser compreendido apenas pelos sentidos. Temos que nos valer de mais
artifícios para compreendermos a realidade.
A crítica do idealismo tanto quanto a defesa do realismo aproximam
Berkeley e Kant, uma vez que ambos aceitam a crítica de que suas filosofias
conduzem ao idealismo, quer dizer, à afirmação de que o mundo externo seja
ilusório (como defendeu Platão em A Alegoria da Caverna, e no caso de O
Show de Truman, isso se aplica ao modo como interpretamos a cidade
simulada de Seahaven). Pelo contrário, ambos defendem a tese realista que
afirma que o mundo é real, embora eles adotem posturas opostas para expor
os argumentos usados para defender o realismo:
Colocar a questão da objectividade em termos de adequação é estabelecer algo como existindo em si fora da representação independentemente do sujeito – o que parece impossível por definição, uma vez que estabelecer alguma coisa é já representarmo-
17 “Kant believed that the world’s appearances were deeply conditioned by human sensory and intellectual apparatus. Other beings no doubt experience the same world in radically different ways” (HERBERT, 1985, p. 4).
22
la: a posição é representação. Partindo dessas questões, o criticismo reencontrava assim o problema que fora levantado pela primeira vez por Berkeley ao estabelecer a tese, insuperável aos olhos de Kant, segundo a qual quando estabelecemos um ‘em si’, o ‘em si’ que estabelecemos é sempre, pelo próprio facto de o estabelecermos, um ‘em si’ para nós. (RENAUT, 2010, p. 405).
De acordo com Berkeley, a subjetividade é de extrema importância no
momento que criamos a necessidade de representar e compreender o nosso
mundo (Kant não deu muita atenção à subjetividade do sujeito). Truman
Burbank, exatamente devido a essa subjetividade necessária para representar
as coisas do mundo, acaba aceitando Seahaven como o mundo real, e não
questiona a veracidade de suas representações, nem a verdadeira natureza de
seu mundo.
Arthur Schopenhauer foi outro filósofo a teorizar sobre a realidade
durante a Idade Moderna. O Mundo Como Vontade e Representação (1818),
um de seus estudos mais notórios, inicia-se com a frase “o mundo é minha
representação” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43), que resume como o filósofo
percebe a realidade, ou seja, cada realidade é subjetiva e individual, cada
indivíduo irá representar sua realidade de acordo com sua vontade e
experiências e, sendo assim, a Filosofia encontra um impasse em tentar definir
a “realidade em si” ou “realidade comum”: “tudo o que pertence e pode
pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estar-condicionado
pelo sujeito, existindo apenas para este. O mundo é representação”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 44).
Relacionando as ideias de Schopenhauer a O Show de Truman,
podemos concluir que Truman “representou” Seahaven como o seu “mundo-
todo”, uma vez que não houve motivos suficientes para que o personagem
pensasse o contrário até que acontecessem os sucessivos eventos que
resultaram em sua liberdade. Até mesmo o desejo de visitar as Ilhas Fiji e a
utopia de Truman, quando criança, em se tornar um explorador, parte dessa
premissa da representação (dentro de outra, pois Truman conhece as ilhas
apenas por fotografias, uma das formas mais comuns de representarmos
lugares e coisas). Se Truman representa Sehaven como o seu mundo, ele
representa, do mesmo modo, as Ilhas Fiji com a ideia (e promessa) de
liberdade.
23
Schopenhauer foi influenciado pela literatura filosófica oriental,
especialmente pelo conceito de Maia, o véu da ilusão, por trás do qual
“encontra-se a realidade última e verdadeira das coisas, alheia ao tempo e à
mudança. Realidade essa sem começo e fim, idêntica e inalterável, a tudo
animando” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 18). Segundo Schopenhauer, o véu
“envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se
pode falar que é nem que não é, pois assemelha-se ao sonho”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 49).
Nietzsche, que se fez valer do schopenhauerismo em seu pensamento
filosófico, afirma em Fragmentos Póstumos, que “o homem – constrói a partir
de si todo o resto do mundo, por outras palavras, toma-lhe a medida, tacteia-o,
modela-o segundo a força que é sua” (CAMPIONI apud NIETZSCHE, 2010, p.
482).
Muitos outros filósofos, além desses citados aqui, tentaram encontrar o
“cerne da realidade”. Mas a discussão ainda não encontrou um fim. À parte dos
filósofos, algumas crenças e credos possuem sua própria forma de entender e
compreender a realidade. O Cristianismo, o Hinduísmo e o Budismo, por
exemplo, possuem seu próprio método de compreender e interpretar a
realidade. Um ponto em comum entre essas religiões é o de que o mundo é
ilusório.
Na pós-modernidade, a discussão acerca dos modos de apresentação
da realidade e de suas representações ganhou um novo enfoque.
Estabelecendo uma discussão sobre tudo o que já foi dito e estudado sobre a
realidade, teóricos pós-modernos decidiram que o enfoque está na
interpretação da(s) realidade(s) e não no modo como a representamos. E uma
das maneiras que os pós-modernos encontraram de interpretar a realidade
apresentada é através do cinema.
Na virada para o século XXI, acontecia o lançamento de um filme que
iria fazer o espectador repensar o modo como percebe a realidade.
Precisamente, no ano de 1999, The Wachowski Brothers apresentaram uma
produção cinematográfica intitulada Matrix, fazendo-se valer de um roteiro
original escrito por eles, fortemente influenciado pelas ideias de Baudrillard (os
próprios roteiristas reconheceram que Matrix é um releitura do conceito de
hiper-realidade de Baudrillard, mas não podemos esquecer que o escritor
24
William Gibson também influenciou o roteiro, principalmente no que tange o
subgênero de ficção-científica cyberpunk, especialmente seu romance de 1984,
Neuromancer) e por velhas questões e conjecturas da filosofia da Antiguidade,
perpassando por Platão e sua teoria de que vivemos em um mundo que não
passa de uma cópia (o plano material) de outro idealizado (o plano das ideias).
No contexto de Matrix, percebemos que a humanidade não consegue
mais separar a ilusão da realidade, considerando que um poderoso programa
computacional (metáfora de que a tecnologia exacerbada da pós-modernidade
controla o homem, e não vice-versa) é responsável por criar uma “hiper-
realidade”, ou até mesmo, uma realidade considerada paralela.
Muitas discussões já foram levantadas acerca desse tema na nossa
contemporaneidade. Porém, os assuntos abordados em Matrix, como a
credibilidade do real e a simulação de realidades, nada tem de novo. The
Wachowski Brothers apenas aproveitaram o tema para difundir a necessidade
de que os seres humanos têm em atingirem a “matriz”,18 de saber como e por
que surgimos, ou de encontrar o verdadeiro sentido de “existir” ou do próprio
“Criador”. Porém, várias crenças e religiões tinham o seu parecer acerca
desses questionamentos há milênios.
1.2 O Sujeito Pós-Moderno
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, defende que a sociedade
em que vivemos, especialmente nas grandes cidades e centros urbanos, é
regida pela mídia, configurando uma “cultura do espetáculo”. O autor
acrescenta que os homens que compõem essa sociedade preferem as
imagens, “a cópia de”, a representação, ou ainda a aparência do real. Dessa
forma, as relações que acontecem nessa sociedade são mediadas por imagens
ou construtos imagéticos, como a propaganda, os anúncios publicitários, os
filmes, as peças de teatro, e ainda outras formas de entretenimento possíveis.
Como consequência desse processo, o “espetáculo” (os construtos
imagéticos que cercam o sujeito pós-moderno e funcionam como mediadores
na relação deste com o Outro e deste com o Meio) substitui a realidade objetiva
18 No dicionário Aurélio, essa palavra significa um lugar onde alguma coisa nasce ou se gera.
25
e a realidade vivida passa a ser substancialmente baseada na contemplação
do espetáculo. Sendo assim, essa relação de reciprocidade configura o cerne
da sociedade nos tempos pós-modernos.
O Show de Truman veicula muito bem essa premissa ao mostrar
pessoas acompanhando Truman vinte e quatro horas por dia, durante toda a
semana, em tudo o que ele faz. Tais espectadores transformam cada ação de
Truman em um espetáculo, sendo que tudo o que acontece com ele não é
muito distante do que acontece na vida cotidiana deles próprios.
O espetáculo, que na era pós-moderna se faz sentir no cotidiano, afeta o
sujeito pós-moderno. Esse sujeito, imerso no universo do eletrônico e da
informação, é facilmente alcançado pelos veículos de comunicação. Como
aponta Annie Dillard:
À nossa volta – em painéis de propaganda, prateleiras de livros, capas de discos, telas de televisão – estas fantasias escapistas em miniatura se apresentam. Parece que isto nos mostra que estamos destinados a viver como personalidades divididas, nas quais a vida privada é perturbada pela promessa de rotas de escapismo para outra realidade. (MCHALE apud. DILLARD, 1987, p. 38; tradução minha).19
Mais uma vez, O Show de Truman serve para exemplificar como os
indivíduos da contemporaneidade sentem a necessidade do escapismo ou de
uma rota de fuga para outra dimensão (ou outra realidade), mesmo que esta
seja fictícia. As pessoas que acompanham Truman, mais uma vítima do
cotidiano, como eles próprios, sentem uma empatia enorme, pois Truman foi
idealizado desde o seu nascimento para ser o reflexo dessas pessoas que o
iriam acompanhar no futuro.
O indivíduo pós-moderno, narcisista, vê-se refletido em imagens e
percebe que é um sujeito sem substância (como o Neo, personagem principal
de Matrix, totalmente alheio à realidade que o cerca) ou a peça central de um
grande espetáculo (como Truman que, como Neo, está totalmente inconsciente
de sua situação de sujeito controlado). A partir desses exemplos extraídos do
Cinema, percebemos que os indivíduos contemporâneos não são mais
19 “All around us – on advertisement hoardings, bookshelves, record covers, television screens – these miniature escape fantasies present themselves. This, it seems, show we are destined to live as split personalities in which the private life is disturbed by the promise of escape routes to another reality” (MCHALE apud DILLARD, 1987, p. 38).
26
capazes de se organizar em classes ou blocos, como outrora. Ele é
fragmentado, subjetivo, confuso, individualista e isolado.
Posteriormente, Baudrillard iria defender que a sociedade pós-moderna
é regida pelas simulações, novas formas de tecnologia e de organização social
e cultural. O autor coloca que a representação de um território em um mapa
geográfico não é mais equivalente, ou seja:
O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí. Já não tem de ser racional, pois já não se compara com nenhuma instância, ideal ou negativa. É apenas operacional. Na verdade, já não é o real, pois já não está envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera. (BAUDRILLARD, 1991, p. 8).
Portanto, O Show de Truman constitui um bom exemplo do estudo de
Baudrillard, pois o filme é repleto de simulacros e simulações, onde ocorrem
implosões que deixam as fronteiras entre o real e a ilusão diluídas e difíceis de
identificar. Seahaven, o ambiente controlado onde Truman vive (e, podemos
acrescentar, o único lugar que conhece, o seu “mundo-todo”, pois vive
enclausurado desde o seu nascimento) é um lugar totalmente artificial e pode
ser considerado como uma realidade melhorada que mira na perfeição.
Todos os cenários e as situações sociais são simuladas (as casas, as
ruas, os automóveis, o céu, o mar, a lua, o anoitecer, e a chuva, tudo se passa
dentro de uma enorme cúpula), mas não deixam de ser reais. O efeito que
Seahaven produz é um exemplo de hiper-realidade e isso se justifica, nas
palavras de Baudrillard, pelo fato de “esconder que o real não é mais real e,
portanto, salvaguardar o princípio de realidade” (BAUDRILLARD, 1991, p. 21).
Linda Hutcheon, nesse ponto discorda de Baudrillard. A autora defende
que a grande questão da pós-modernidade não é se existe ou não uma hiper-
realidade, mas se o sujeito pós-moderno é capaz de apontar a diferença entre
as simulações e simulacros e a realidade. Segundo ela “nós não estamos
testemunhando uma degeneração do real para o hiper-real, sem origem e
27
realidade, mas questionando o que o ‘real’ pode significar e como podemos
saber o que é” (HUTCHEON, 1988, p. 223; tradução minha)20.
Baudrillard, ao definir os conceitos de simulacros e simulações, e
especialmente como ambos se fazem presentes na vida cotidiana na pós-
modernidade, advoga sobre os perigos de se viver numa hiper-realidade e
como a mesma pode nos influenciar negativamente como sujeitos pós-
modernos. Baudrillard defende que os meios de comunicação em massa
podem contribuir no processo de alienação e são usados como um veículo de
poder; eles estabelecem modelos e manipulam as relações sociais
(especialmente com os reality shows, concursos de beleza, talk shows e
programas similares).
Essa ideia da manipulação midiática e a alienação das massas, que
pode ser uma das possíveis consequências desse controle, remetem-nos à
Louis Althusser e o que o autor chama de Aparelhos Ideológicos do Estado. Do
mesmo modo que Christof mantem Truman preso e sob controle, o Estado age
de forma idêntica com a sociedade, através da alienação. A televisão e outros
meios de comunicação em massa, apenas veiculam para o público o que é de
extremo interesse do governo. Assim, continuemos vivendo no obscurantismo,
acreditando nas notícias que chegam até nós, acreditando no senso comum,
sem questionar, atendendo diretamente os interesses da classe dominante,
que tira proveito da ignorância da população. No filme, Christof (que pode ser
visto como uma metáfora do Estado) nunca é questionado por ninguém que
tenha vinculo direto com o seu programa e Truman (que, por sua vez, constitui
uma metáfora da sociedade) é inocente e ingênuo demais para compreender a
ilusão que o cerca.
A objetificação do indivíduo é outro ponto que Baudrillard e diversos
autores pós-modernos identificam como característica desse movimento
filosófico-cultural. O indivíduo pós-moderno está cada vez mais
despersonificado, superficial e efêmero. O individualismo e o narcisismo
marcam a personalidade do protótipo pós-moderno. Gilles Lipovetsky, em A
Era do Vazio, analisa a sociedade pós-moderna, marcada, segundo ele, pela
20“We are not witnessing a degeneration into the hyperreal without origin or reality, but a
questioning of what ‘real’ can mean and how we can know it” (HUTCHEON, 1988, p. 223).
28
perda das grandes faculdades morais, sociais e políticas e por uma cultura
hedonista. David Harvey também postulou sobre como a mídia está interferindo
diretamente com as práticas culturais pós-modernas:
Para começar, a publicidade e as imagens da mídia passaram a ter um papel muito mais integrador nas práticas culturais, tendo assumido agora uma importância muito maior na dinâmica de crescimento do capitalismo. Além disso, a publicidade já não parte da ideia de informar ou promover no sentido comum, voltando-se cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante as imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido. Se privássemos a propaganda moderna da referência direta ao dinheiro, ao sexo e ao poder, pouco restaria. (HARVEY, 2005, p. 259-260).
Harvey caracteriza o que podemos chamar de “cultura do simulacro”. A
publicidade, que deixa de vender produtos reais e concretos e passa a vender
imagens, na Pós-Modernidade adquire um tom extremamente manipulativo,
sem nunca deixar de ser atrativo. Em O Show de Truman, há diversas
situações em que Truman, sua esposa, Meryl, e seu amigo Marlon são
utilizados como “publicitários” ou “estrelas de um anúncio” (no caso de Truman,
isso acontece de modo involuntário, pois ele não sabe que é parte de um reality
show). Meryl aparece várias vezes mostrando produtos para a dona de casa,
enquanto Marlon faz publicidade para uma marca de cervejas.
Fredric Jameson, em Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio, também aponta que o período pós-moderno é marcado pela perda do
referencial e do apogeu das imagens e representações. Ele cita Debord e seu
conceito dos pseudo-eventos chamados de espetáculo para ilustrar o que ele
chama de “cultura do simulacro”:
É para esses objetos que devemos reservar a concepção de Platão do ‘simulacro’, a cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu. De forma bastante apropriada, a cultura do simulacro entrou em circulação em uma sociedade em que o valor de troca se generalizou a tal ponto que mesmo a lembrança do valor de uso se apagou, uma sociedade em que, segundo observou Guy Debord, em uma frase memorável, ‘a imagem se tornou a forma final de reitificação [A Sociedade do Espetáculo]’. (JAMESON, 2002, p. 45).
Tal como Truman Burbank, como indivíduos pós-modernos, sentimos
dificuldades em postular o que é real e o que não é. A indústria cinematográfica
se faz valer dessa dúvida e veicula, desde a década de 1980, cada vez mais
29
obras que nos fazem questionar a nossa própria realidade, mesmo que
estejamos, de fato, conscientes de que estamos presenciando uma obra de
ficção.
Christian Metz, em A Significação do Cinema, aponta que o espectador
tem uma “impressão de realidade” quando assiste a um filme:
De todos os problemas de teoria de filme, um dos mais importantes é o da impressão da realidade vivida pelo espectador diante do filme. Mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real. (METZ, 1972, p. 16).
Metz ainda atenta para o conceito da verossimilhança21 no cinema. As Artes da
Representação – e o cinema é uma delas – se preocupam com a
verossimilhança, para que o espectador saia convencido e satisfeito das salas
de cinema. Para Metz, essa impressão de realidade é um fenômeno de duas
faces, pois a cópia pode ser mais ou menos fiel ao seu modelo; ou a percepção
dessa cópia pode manipular o espectador. Assim “devemos perguntar por que
a impressão de realidade é tão forte diante de um filme” (METZ, 1972, p. 19).
Na atualidade, as obras cinematográficas (mais do que as outras artes
de representação) estão borrando ainda mais as fronteiras entre o real e o
ilusório, pois muitos filmes têm misturado os dois elementos, em um nível
epistemológico. Se o homem pós-moderno é incapaz de diferenciar o real do
ilusório no mundo concreto, ele é ainda mais incapaz de diferenciar os dois
planos (o real e o ilusório) em um filme. Em O Show de Truman, podemos
diferenciar os planos facilmente, pois os realizadores fizeram com que tudo
ficasse explícito.22 Ainda, pela breve projeção de um filme, podemos sentir
emoções reais, mesmo sabendo que estamos experenciando uma obra
ficcional e irreal. Segundo Hutcheon:
Apesar disso, nós podemos questionar estas fronteiras (entre arte e vida) apenas porque nós ainda as colocamos. Nós achamos que sabemos a diferença. Os paradoxos do pós-modernismo servem para chamar a nossa atenção tanto às nossas suposições contínuas sobre essa diferença como também a uma mais nova dúvida
21 Para Aristóteles, o verossímil é tudo que é possível aos olhos do senso comum.
22 Um exemplo claro da confusão e mistura de dois (ou mais) planos narrativos em um filme é a filmografia do diretor norte-americano David Lynch.
30
epistemológica (Sabemos a diferença? Podemos saber?). (HUTCHEON, 1988, p. 224-225; tradução minha).23
O sujeito pós-moderno, indeciso na bifurcação entre ilusão e realidade,
pode sofrer com neuroses e psicoses. Sigmund Freud mostrou que o sujeito é
dominado por impulsos irracionais e inconscientes e atacou a autonomia do Eu,
ou seja, que não somos donos de nós mesmos e somos seres incapazes de
nos controlar. Desse ponto originam-se as neuroses e psicoses: da relação
repressiva desses impulsos, que estão em discordância com os sentidos dos
indivíduos. Ele postulou em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose:
Em uma psicose, a transformação da realidade é executada sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com ela — isto é, sobre os traços de memória, as ideias e os julgamentos anteriormente derivados da realidade e através dos quais a realidade foi representada na mente. Essa relação, porém, jamais foi uma relação fechada; era continuamente enriquecida e alterada por novas percepções. Assim, a psicose também depara com a tarefa de conseguir para si própria percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação. (FREUD, 1924, p. 3).
Sabemos do comportamento de Truman antes dos eventos narrados, pois nos
é dito através do mise-en-scène e de inúmeras falas de Christof, que afirma ter
tido poucos problemas (a maioria deles foram causados por rápidas falhas
técnicas) com o personagem anteriormente. Mas, já nos minutos iniciais do
filme, entramos em contato com um Truman confuso acerca do que é real e do
que não é, o que o leva a descobrir a simulação em Seahaven, desenvolvendo,
dentro da esfera de seu mundo, algo parecido com o que Freud entende por
psicose. O choque de realidades que Truman sofreu, faz com que ele fique
confuso, e a ansiedade que ele sente parte da tentativa de conseguir entender
e se adaptar ao seu “novo mundo” e/ou aceitar que tudo o que ele viveu até ali
configura uma ilusão.
Simone Knox, em seu comentário sobre o filme que está em discussão
nesse estudo, intitulado Reading The Truman Show Inside Out, aponta que os
dualismos presentes em O Show de Truman é o que chama a atenção dos
23 “We can interrogate these borders (between art and life), though, only because we still posit them. We think we know the difference. The paradoxes of postmodernism serve to call to our attention both our continuing postulation of that difference and also a newer epistemological doubt. (Do we know the difference? Can we?)” (HUTCHEON, 1988, p. 224-225).
31
críticos e estudiosos, o que torna o filme um dos textos mais relevantes para os
Estudos Culturais e Estudos Pós-Modernos. Segundo ela, o filme deve ser
visto como algo muito mais profundo do que uma crítica aos meios de
comunicação e reality shows e analisa a forma complexa do filme de Weir:
O que eu acho tão cativante em O Show de Truman é que a complexa relação entre o filme e o show-dentro-do-filme faz com que ele se torne algo muito mais interessante do que qualquer comentário redutivo nos meios de comunicação em massa. Porque ele é posicionado ‘na fronteira’, porque é ambos, e se desloca entre O Show de Truman e ‘O Show de Truman’, esse texto permite (e, até mesmo, obriga) uma exploração crítica de uma série de fronteiras e operações binárias. Eu argumento que, enquanto o filme é ostensivamente estruturado ao longo de oposições binárias convencionais, como cinema/televisão, ruptura/estabilidade, realidade/simulação e exterior/interior, ele sutilmente problematiza estas oposições de maneiras que reflexivamente levanta assuntos ao redor do próprio status de análise fílmica. (KNOX, 2010, p. 2; tradução minha).24
Como a autora afirma, a complexidade de O Show de Truman, com a
constante troca de planos narrativos e as dualidades presentes no filme,
problematizam a própria análise fílmica. O próximo capítulo, intitulado “O Show
de Truman: Uma das Muitas Leituras da Vida na Pós-Modernidade”,
apresentará uma possível leitura analítica do filme. Tal comentário ilustrará um
paralelo entre o Truman Burbank e o próprio homem pós-moderno, à luz do
que foi exposto nesse primeiro capítulo.
24 “What I think is so engaging about The Truman Show is that the complex relationship
between film and the show-within-the-film raises it above any reductive commentary on the mass media. Because it is positioned ‘on the edge,’ because it is both, and shifts between The Truman Show and ‘The Truman Show,’ this text enables (and, indeed, demands) a critical exploration of a range of bondaries and binary operations. I will argue that, while the film is ostensibly structured along the rather conventional binary oppositions of cinema/television, disruption/stability, reality/simulation and outside/inside, it subtly problematizes these oppositions in ways that reflexively raise issues around the very status of film analysis itself” (KNOX, 2010, p. 2).
32
CAPÍTULO 2
O Show de Truman: Uma das Muitas Leituras
da Vida na Pós-Modernidade
Truman Burbank tem sua vida inteira filmada e transmitida ao vivo pela
televisão, em tempo real, vinte e quatro horas por dia, configurando o seu
próprio reality show, chamado “O Show de Truman”, o qual é acompanhado por
milhões de pessoas ao redor do globo. O Show de Truman começa a partir do
episódio 10.909 desde o lançamento do show. É o 30º ano ininterrupto de
transmissão da vida de Truman, sem que o próprio saiba que é um
personagem. Truman é um homem comum e trabalha como um corretor de
seguros. Todos os dias cumprimenta seus vizinhos, sendo que nada de
espetacular acontece em sua rotina. O programa é transmitido sem nenhuma
interrupção, nem mesmo intervalo publicitário (pois os mesmos são
transmitidos dentro do próprio programa, como um elemento intrínseco,
realizado pelos próprios atores).
Tudo acontece num grande estúdio, chamado Seahaven: as casas, as
ruas, os automóveis, o céu, o mar, a lua, o anoitecer e a chuva são “fabricados”
e acontecem dentro de uma enorme cúpula, que isola a cidade do mundo real.
Truman nunca ultrapassou os limites que lhe foram impostos e desconhece-os.
Seahaven é um mundo dentro de outro mundo. Cerca de cinco mil câmeras
filmam cada movimento de Truman e milhares de pessoas trabalham dia e
noite para que o show funcione com total verossimilhança com a realidade,
contribuindo para o sucesso da simulação necessária para iludir Truman.
Sob a luz de conceitos básicos sobre realidade, ilusão, hiper-realidade,
espetacularização do cotidiano e do sujeito pós-moderno, este capítulo se
centrará numa análise de O Show de Truman, através de uma perspectiva pós-
moderna, uma vez que os tópicos citados acima são algumas das
preocupações e objetos de pesquisas da Pós-Modernidade. Primeiramente, um
comentário acerca das fundações de como acontece o processo de narração
do filme se faz necessário para o melhor entendimento da análise.
Posteriormente, algumas observações acerca do discurso do criador do reality
33
show “O Show de Truman”, Christof, e suas visões sobre o personagem de
Truman e a cidade simulada Seahaven serão o objeto de análise.
Ainda, alguns comentários acerca da crítica que O Show de Truman
direciona aos reality shows e como a televisão tem sido usada como um
instrumento ideológico, em diversos sentidos e de diversas formas, e como a
mesma é responsável pela espetacularização do cotidiano, terão espaço nessa
análise. Além disso, uma investigação direcionada ao espaço diegético do
filme, Seahaven, e como tal ambiente contribui para a simulação da realidade
de Truman, será de extrema importância nesse estudo. Por último, um paralelo
entre o sujeito pós-moderno e Truman Burbank será exposto.
2.1 A Narração em O Show de Truman
Em O Show de Truman encontramos dois níveis ou universos narrativos:
o mundo “ideal e perfeito” conhecido por Truman, chamado Seahaven, criado
por Christof, única e exclusivamente para aquele personagem; e um outro
mundo, externo a Seahaven, desconhecido por Truman, e que caracteriza o
lugar que os telespectadores do show conhecem por realidade. Nesse segundo
mundo, Truman não passa de um personagem, enquanto no primeiro ele é um
ser individual e livre (dentro dos limites pré-estabelecidos).
O cinema pós-moderno vem investindo em produções que oscilam entre
dois mundos (ou duas realidades). A Mulher do Tenente Francês (Karel Reisz,
1981) é um exemplo possível, que, como o filme analisado aqui, traz uma
narrativa que oscila entre a ficção e a realidade. A filmografia do diretor David
Lynch (especificamente as produções Cidade dos Sonhos, de 2001, e Veludo
Azul, de 1986) é permeada de filmes que oscilam entre diversos níveis e
camadas narrativas (ficção/realidade, sonho/realidade, ilusão/realidade). Lynch
é um dos percursores do cinema pós-moderno e suas narrativas são tidas
como texto-chaves para o estudo desse período. Mera Coincidência (Barry
Levinson, 1997) é outro exemplo de uma narrativa que oscila entre dois níveis
narrativos e que trata da manipulação televisiva de maneira crítica, como O
Show de Truman.
Ainda, agora no território da ficção científica, encontramos ainda mais
exemplos de mudanças de níveis narrativos como as encontradas em O Show
34
de Truman: Matrix (The Wachowski Brothers, 1999), Minority Report – A Nova
Lei (Steven Spielberg, 2007), e A Origem (Christopher Nolan, 2010) são outros
exemplos e, devemos considerar que tais produções destacam o elevado
patamar da tecnologia e levantam hipóteses de onde as ferramentas
tecnológicas podem chegar e como os apontamentos e questões levantadas
por tais filmes se aproximam da realidade pós-moderna, como destaca Henri
Kunzru, em seu artigo “Você é um Ciborgue”:
Esses febris sonhos de ficção científica têm origem em nossas mais profundas preocupações sobre ciência, tecnologia e sociedade. Com os avanços na medicina, na robótica e na pesquisa sobre Inteligência Artificial, eles estão se aproximando, inexoravelmente, da realidade. (KUNZRU, 2009, p. 19).
O Show de Truman, como uma produção cinematográfica de ficção
científica, também projeta previsões para um futuro não tão distante: a
possibilidade de uma simulação ao nível de Seahaven, que já não nos parece
tão absurda (e está bem próxima de nós, a exemplo da Disneylândia e os
Cassinos de Las Vegas, como exemplos citados por Baudrillard e que são bem
literais acerca da simulação), o impacto da televisão e dos reality shows na
vida dos indivíduos e a morte da privacidade, entre outros temas.
David Bordwell, em Narration Of Fiction Film (1985), trata da narração no
cinema da seguinte forma: “a realidade concreta existe porque existe; já a
realidade ficcional existe porque é narrada” (BORDWELL, 1985, p. 11; itálicos
do autor).25 Esta realidade ficcional se preocupa com uma realidade fílmica
determinada. A “realidade” presente em determinado filme (ou qualquer outra
narração) recebe o nome de diegese, e Bordwell, aproveita a definição de
Etienne Souriau: “‘diegese’ vem a ser o termo aceito para o mundo ficcional da
história” (BORDWELL, 1985, p. 16; tradução minha).26 Desse modo, a
expressão “realidade diegética” encontra a seguinte definição: é o próprio
mundo em que os eventos narrados em uma narração acontecem.
25 “While a concrete reality exists because it exists, a fictional reality exists only by virtue of the
fact that it is narrated” (BORDWELL, 1985, p. 11).
26 “‘Diegesis’ has come to be the accepted term for the fictional world of the story” (BORDWELL,
1985, p. 16).
35
No caso de O Show de Truman, a realidade diegética apresenta dois
níveis. Entendemos que existem dois mundos coexistindo paralelamente,
compondo uma única narrativa. Ou seja, ocorre uma comunicação entre as
duas realidades, notada apenas pelo espectador extra-diegético, que fica
evidente pela montagem e intercalação de cenas sugeridas pelo diretor. Ora o
espectador acompanha o reality show dentro do filme, ora ele assiste
espectadores assistindo o mesmo show, e assim sucessivamente.
Assim, como Tiago Madalozzo concluiu em sua dissertação Quando a
Ficção Cinematográfica Enquadra o Reality Show: Uma Inter-Relação de
Mídias Audio-Visuais em The Truman Show, é possível separar os níveis
narrativos de O Show de Truman de acordo com os critérios seguintes:
1) A diegese televisiva (o programa de que Truman é protagonista
involuntário);
2) A equipe de produção do programa;
3) Os espectadores do programa; e
4) A narrativa “geral”, o filme em si.
(MADALOZZO, 2009, p. 68). 27
27 Esse esquema foi elaborado por Tiago Madalozzo, em sua dissertação de Mestrado intitulada Quando a Ficção Cinematográfica Enquadra o Reality Show: Uma Inter-Relação de Mídias Audio-Visuais em The Truman Show (Curitiba, 2009).
36
Como percebemos ao observar o quadro acima, Truman está exposto a
todos os olhares, seja dos espectadores intra ou extra-diegéticos. Contudo, ele
não observa ou vigia ninguém. Mesmo estando no centro desse mundo
panóptico, Truman acredita ser um homem livre, mas ele vive dentro de um
estúdio esferoide e é constantemente vigiado e controlado por Christof e sua
equipe de produção.
2.2 A Função de Christof em O Show de Truman
A “realidade” de Truman pode ser caracterizada como “panóptica,
segundo o conceito ideológico e estrutural de prisão que o jurista inglês,
Jeremy Bentham atribuiu ao termo, em 1785. Michel Foucault, em seu livro
Vigiar E Punir, discorre sobre o panóptico, e podemos aproveitar a definição do
autor para explicar a relação entre Truman / Christof: “O Panóptico é uma
máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente
visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto”
(FOUCAULT, 1987, p. 225). Enquanto Truman vive “no anel periférico”, sendo
observado por inúmeros olhos, Christof está “na torre central”, controlando e
manipulando a realidade dele, o que é um fato desconhecido para o
protagonista, que pode ser considerado um prisioneiro. Ele não é vigiado por
guardas, mas sim por câmeras digitais.
Christof é o idealizador e criador do maior programa televisivo do
universo narrativo criado por Niccol e Weir. Tal figura, em relação a Truman, é
uma espécie de demiurgo28 anedótico, ou seja, uma pessoa que controla toda
a sua realidade, moldando-a ao seu gosto e ao gosto da audiência, e assim, o
deixa sem livre-arbítrio e liberdade. O personagem se assemelha ao Big
Brother, o antagonista de 1984, romance distópico de George Orwell sobre o
totalitarismo, no que se refere à sua onipresença. Christof, como o diretor de
“The Truman Show”, controla todos (os atores de forma consciente e Truman
de forma inconsciente) por meio de câmeras e/ou olhares. O personagem
idealiza, produz e conduz tal reality show, de forma panóptica e literalmente
28 Para Platão, o demiurgo é um artesão divino ou o organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos.
37
constrói a história do protagonista, num ambiente de total simulação. A
configuração panóptica e simulada de Seahaven levanta questionamentos
acerca da abordagem do diretor ao construir uma sátira aos reality shows e/ou
veicular uma reflexão sobre a cidade contemporânea.
Para compreendermos o comportamento de Christof e seus objetivos ao
dirigir “The Truman Show”, precisamos enfatizar duas cenas. Uma delas é a
cena construída por Weir por meio de um talk show, onde o espectador extra-
diegético (nós, os espectadores da produção de Weir) conhece as intenções do
diretor, o que ele pensa sobre Truman e como ele vem conseguindo manter a
simulação de Seahaven intacta, apesar de algumas falhas no estúdio e a
tomada de consciência repentina de Truman. Nessa cena, Christof conversa
com o público intra-diegético do “O Show de Truman” (as pessoas ficcionais
que acompanham a jornada de Truman).
A segunda cena é o momento de desfecho do filme, quando o
protagonista e o antagonista finalmente se encontram. Nessa cena, ainda
mantendo uma postura panóptica (em momento algum da narrativa de Weir,
Christof e Truman se encontram, o diretor vê e conversa com Truman sem ser
visto), Christof conversa com a sua criação, Truman Burbank, e este sofre o
impacto do vislumbre da natureza de sua realidade e a verdade sobre si
mesmo.
O Show de Truman, já em suas cenas iniciais, mostra-nos um homem
confuso que, finalmente, está conseguindo perceber a verdadeira natureza de
sua realidade. Sendo assim, Christof, o responsável pelo show, está sentindo
dificuldades em manter a farsa, que se manteve intacta por trinta anos. Depois
de muitas manobras bem-sucedidas que garantiram o andamento de seu
programa, Christof é convidado para o programa “Conversa Franca” (programa
que existe na realidade intra-diegética da narrativa de Weir) para conversar
com espectadores sobre o andamento e o prestígio de seu trabalho.
Quando o entrevistador questiona o realizador sobre o motivo do
sucesso de seu programa, ele não hesita em responder que o que faz
programa ser tão bem-sucedido é o trabalho para manter a verossimilhança
com a realidade que os espectadores experienciam ao assistirem “The Truman
Show”:
38
CHRISTOF: Ficamos cansados de ver atores que nos passam emoções artificiais, tediosos com os shows pirotécnicos e com os efeitos visuais. Apesar de o mundo que ele habita ser simulado, não há nada de falso no próprio Truman. Nada de roteiros nem ensaios. Nem sempre é igual a Shakespeare, mas é genuíno. E é por isso que ele pode ser a base da programação de um canal. (WEIR, 1998, 1’-2’)
Christof revela que a possibilidade de nada de extraordinário acontecer
em seu show é o que o torna especial e diferente. Acompanhar Truman, uma
pessoa como quem o assiste, com a sua verossimilhança comportamental de
uma pessoa normal (apesar do seu comportamento extrovertido e vocabulário
excêntrico), fazem os espectadores pensarem que eles também podem ser
especiais como Truman e/ou oferecer uma fonte de escapismo da “realidade
concreta” ao assistir Truman em interação com o seu meio simulado. Christof
retifica ainda mais essa ideia quando fala:
CHRISTOF: Como diz o bardo, ‘O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres são meros atores’. A única diferença entre nós e Truman é que a vida dele é mais documentada. Ele enfrenta os mesmos obstáculos e influências que nós. Faz seus papéis devotados, assim como nós. (NICCOL, 1998, p. 80).
Christof, quando questionado sobre a ignorância de seu protagonista,
em uma cena que imita talk shows (outra forma de espetacularizar o cotidiano
por meio da televisão), onde o diretor dialoga diretamente com espectadores
de seu programa, podemos inferir uma referência a Platão e à sua Alegoria da
Caverna em seu discurso:
ENTREVISTADOR: Por que você acha que Truman nunca chegou perto de descobrir a verdadeira natureza de seu mundo?
CHRISTOF: Nós aceitamos a realidade do mundo que nós é apresentado. […]
SEGUNDA TELESPECTADORA: Ele não é um ator. Ele é um prisioneiro.
CHRISTOF: Ele pode sair a qualquer hora. Se tivesse ambição na vida, se estivesse absolutamente determinado a descobrir a verdade, não haveria maneira de o impedirmos. Acho que o que realmente a irrita, telespectadora, é que Truman basicamente prefere o conforto de sua ‘cela’ como você diria. (WEIR, 1998, 105’-108’).
O Show de Truman é uma variação muito interessante do Mito da
Caverna de Platão, pois transmite que são poucos os inclinados a distinguir
39
entre o mundo das aparências e o mundo das realidades autênticas e poucos
são os que se questionam sobre a natureza da própria realidade, na qual estão
inseridos, tal como Truman, que, em raros momentos (podemos dizer nenhum),
questiona-se sobre a natureza de sua realidade.
Na cena que marca a conversa entre Christof e Truman, que nunca se
encontraram pessoalmente, o diretor, diante da ruína iminente de seu
programa, tenta convencer a peça central de seu show a não abandonar
Seahaven. A relação de Truman e Christof é marcada pela opressão deste
último para com o primeiro. Quando Truman questiona quem é Christof, ele
não hesita em responder “Sou o criador” (WEIR, 1998, 92’). Ele reconhece a si
próprio como o demiurgo de Seahaven e do próprio Truman. Na percepção de
Christof, que controla até mesmo os fenômenos naturais, nada pode desafiar a
continuidade de seu show, muito menos Truman.
Tentando intimidar Truman e evitar que ele deixe o set para sempre,
Christof pega um monitor exibindo a imagem de Truman e percebemos que o
diretor pode possuir a imagem e a representação de Truman e, como ele
mesmo diz: “Eu o conheço melhor do que você mesmo. Você não sairá por
essa porta” (WEIR, 1998, 93’), mas o diretor não possui o “indivíduo Truman”.
Afinal, nas palavras de Truman: “Você nunca teve uma câmera dentro de
minha cabeça” (WEIR, 1998, 93’).
Temos, ainda, uma outra interpretação dessa cena. De forma
semelhante como acontece no Mito de Pigmalião (o qual descreve como um
Rei escultor se apaixona por uma de suas criações), o criador acaba se
envolvendo emocionalmente com a sua criação. Christof considera-se como
quase um “pai” para o protagonista, apesar de afirmar que acha “importante
manter a objetividade” e não quer se “envolver emocionalmente” (NICCOL,
1998, p. 79). O diretor ameaça e desafia Truman nos momentos em que ele
tenta escapar – afinal ele é o motivo de toda criação da grande estrutura de
Seahaven e do seu sucesso como profissional – mas podemos inferir que
existe sim uma relação afetiva entre eles. Nessa cena, quando conversa
diretamente com o protagonista, Christof, prevendo o que está prestes a
acontecer, acaricia o monitor em que vê o rosto de sua criação, num gesto de
pai para filho. Para a infelicidade de Christof, resta apenas a imagem de
Truman.
40
Passaram-se mais de dois mil anos e Truman Burbank está aprisionado
em uma caverna moderna: Seahaven. O protagonista foi legalmente adotado
por uma corporação, OmniCam, que adquiriu os direitos de vida e imagem da
criança. Truman está preso em Seahaven, uma cidade artificial, construída em
um estúdio de Hollywood, onde nada é verdadeiro (ou, usando as palavras de
Platão, tudo são sombras projetadas em uma parede), pois ele é a peça central
de um show televisivo.
2.3 O Reality Show e a Espetacularização do Cotidiano
Um reality show é um programa que tem muitas regras: os participantes
são filmados o dia todo; usam obrigatoriamente microfone em tempo integral;
são proibidos de se comunicar por mímica ou cochicho; não devem ter contato
nenhum com o mundo externo, entre outras regras. Em troca disso, os
participantes concorrem a algum tipo de recompensa. No caso do programa
Big Brother Brasil, um exemplo desse tipo de programa, o prêmio é uma
quantia monetária considerável. A mídia tem o poder de fazer dos participantes
o que quiser (e assim, transforma-os de pessoas reais em personagens),
sempre visando ao lucro e à publicidade de marcas e produtos que financiam
toda aquela encenação.
A diferença entre Truman e participantes de um reality show qualquer
reside no fato de que Truman vive em um sem ter conhecimento disso. Truman
não está em uma corrida milionária, pois ele é a peça central de um grande
programa, o qual possui traços de semelhança com uma novela televisiva. Nos
outros quesitos, Truman é exatamente como um participante de um reality
show: ele é filmado o dia todo, não pode fazer nada suspeito e que ameace os
planos do idealizador, e, sobretudo, não pode ter nenhum contato com o
mundo externo (devemos considerar que Truman nem mesmo tem consciência
da existência de um mundo externo a Seahaven).
Os reality shows, bem como as novelas televisivas, recriam a própria
cotidianeidade dos seus espectadores e destacam os conflitos individuais de
tais participantes (ou personagens). Dessa forma, o indivíduo que acompanha
diariamente tais programas acaba absorvido pelo cotidiano do Outro, e projeta
41
tais acontecimentos para a própria vida e/ou romantiza (transforma em
espetáculo) o que acontece com os integrantes do programa.
Por exemplo, momentos escolhidos pelos idealizadores de tais
programas – como em “The Truman Show”, seu reencontro com o pai –
revertem-se em ápices de audiência, fazendo com que a emoção de um
personagem fictício (ou integrante de um programa) seja vivida em plenitude
por uma audiência global que incorpora essa sensação como se fosse seu
próprio sentimento. Por esse meio, na sociedade contemporânea, entes
estranhos passam a fazer parte das vidas das pessoas “normais”, e as
mesmas tentam reproduzir tudo o que viram para suas próprias vidas.
Por meio dessa poderosa ferramenta, os meios de comunicação de
massa passam a funcionar como mediadores em relações sociais, e as
imagens veiculadas por esses meios passam a criar importantes jogos políticos
que obedecem a interesses econômicos. Sendo assim, o cinema, a publicidade
e a televisão adquirem um lugar central neste tipo de sociedade.
Mais uma vez, podemos mencionar 1984 e a previsão de Orwell de que
o mundo seria constantemente observado por um grande “olho”, que teria
conhecimento da vida de todos e imune às influências externas. O romance
possui um viés político e a falta de liberdade que as pessoas teriam em um
mundo controlado por eixos políticos. Na nossa sociedade, as ideias de Orwell
poderiam ser lembradas quando nos referimos à constante vigilância que os
indivíduos se submetem e a que são submetidos no dia-a-dia e às câmeras
que funcionam como constantes vigilantes.29
Os reality shows são programas assistidos sob o slogan de “a vida como
ela é”, mas já é perceptível que esses programas são tão simulados quanto
“The Truman Show”, de Christof. Nesse caso, a vida se torna algo banal e
comercializável, ou até mesmo, acaba sendo espetacularizada e vira
mercadoria nas mãos das redes de televisão (que lucram cada vez mais com
essa demonstração de vida). Truman é mais um produto na prateleira, e
igualmente o são os inúmeros participantes de um reality show qualquer.
29 Ao entrarmos em estabelecimentos comerciais (e, em alguns países, nas ruas também) e vermos as inúmeras placas dizendo “Sorria! Você está sendo filmado”, podemos refletir que essa “constante observação” não se limita apenas aos reality shows, mas já está se enraizada como parte da cultura na Pós-Modernidade.
42
Weir realça a insistência na publicidade presente em reality shows. É
crescente o vício em comprar e assistir, ou vice-versa. As ofertas da tela,
transmitidas através de imagens que podem ou não corresponder ao seu
referente, são tão imperativas e conseguem alcançar milhares de pessoas de
uma vez só, que acabam por criar necessidades e vontades outrora
inexistentes. A mediação pelo monitor inibe a própria vida. Imagens poderosas
e mais reais que a realidade, exibidas em enormes telas, estabelecem os
padrões da realidade e de sua avaliação, e também a necessidade de tornar
mais agradável a realidade ‘vivida’. A vida desejada tende a ser aquela exibida
nos monitores. Sem agrado nenhum é a vida realizada, que parece irreal,
insossa e sem propósito. A ironia reside no fato de que em tais shows não
acontece nada de espetacular e em nada difere de nosso cotidiano. Mas qual o
motivo deles serem tão atrativos se achamos a nossa realidade sem propósito?
Fazendo uma conexão com a realidade política no cenário da
globalização na era pós-moderna, é interessante lembrar da metáfora das
pílulas do filme Matrix. A pílula azul, se escolhermos essa, nos permitirá ver as
opiniões sobre a realidade reforçada pela mídia todos os dias (uma falsa
aparência coletivamente fabricada). Como Neo, o protagonista de Matrix,
vivemos submergidos num mundo simulado mentalmente e não conseguimos
ver além dos discursos ideológicos, muito bem disfarçados de verdades
absolutas e incontestáveis, amplamente espalhados pelos mass media. Em
contrapartida, se escolhermos a pílula vermelha, poderemos perceber a
realidade tal como ela é, por mais desagradável que isso seja. Se, em Matrix,
existe o real e o simulacro em “mundos” distintos, em O Show de Truman os
dois estão misturados e inseparáveis, como se pode perceber através das
concepções de Baudrillard sobre a hiper-realidade.
2.4 Seahaven: Cidade Simulada
Seaheaven é representada como um paraíso, um lugar perfeito, ou
como nos diz a placa do carro de Truman, “a nice place to live”30. É totalmente
o oposto do que encontramos nas grandes cidades e arquipélagos urbanos. Se
30 “Um lugar agradável de se viver”.
43
Seahaven é organizada, suburbana, limpa, segura, uniforme e agradável, os
centros urbanos podem ser caracterizados como exatamente o oposto. Estaria
Seahaven localizada no plano ideal, usando as definições platônicas, e nossas
cidades seriam os correspondentes localizados no plano material?
Seahaven (o nome da cidade, se traduzido, significa “porto”,
aproximadamente) é uma cidade planejada exclusivamente para Truman. Para
ele, a cidade é seu lar e o ambiente onde ele se sente seguro (aliás, Truman,
desde quando era um bebê foi condicionado a pensar assim, para nunca sentir
o impulso de deixar o lugar e descobrir a realidade). Para Christof, Seahaven é
o seu local de trabalho e onde ele pode se sentir como um “senhor supremo”,
responsável por tudo o que acontece, desde os fenômenos naturais até os
simples detalhes da vida cotidiana de Truman, como o que colocar na banca de
jornal naquele dia, e esconder, uma vez mais, o mundo real de Truman.
Seahaven esconde uma realidade (aquela dos espectadores intra-
diegéticos de O Show de Truman) não muito atrativa, por outra, simulada,
muito mais agradável. A cidade é toda arquitetada como uma grande ode aos
valores do american way of life, da América da década de 1950/1960,
minuciosamente organizada, com ruas que recebem o nome de grandes atores
da Hollywood Clássica, como a (Humphrey) Bogart Street e a (Burt) Lancaster
Square, bem como os atores de “The Truman Show” recebem o nome de
grandes estrelas: Meryl (Streep), Marlon (Brando), Kirk (Douglas), Lauren
(Bacall), Angela (Lansbury), Lawrence (Lawrence Harvey; Laurence Olivier),
Vivien (Leigh) e Spencer (Tracy). Nas palavras de Baudrillard:
Todos os valores são aí exaltados pela miniatura e banda desenhada. Embalsamados e pacificados. Donde a possibilidade de uma análise ideológica da Disneylândia: seleção do american way of life, panegírico dos valores americanos, transposição idealizada de uma realidade contraditória. Decerto. Mas isso esconde uma outra coisa e esta trama ‘ideológica’ serve ela própria de cobertura a uma simulação de terceira categoria: a Disneylândia existe para esconder que é o país ‘real’, a América ‘real’, que é a Disneylândia (de certo modo, como as prisões existem para esconder que é todo o social, na sua omnipresença banal, que é carceral). (BAUDRILLARD, 1991, p. 21).
Seahaven existe para mascarar uma realidade que não é atraente, como a
Disneylândia, e para entreter os espectadores intra-diegéticos de “The Truman
44
Show”. Se, para Truman, o lugar é a única realidade possível, para tais
espectadores Seahaven configura o ideal lugar para se viver e ser feliz.
Não obstante, o filme nos instiga a refletir sobre a atividade de
conhecimento do mundo, a atitude filosófica, a desfetichização que questiona o
que já foi imposto, como a verdade supostamente absoluta do real apresentado
em si mesmo.
2.5 Truman Burbank: Sujeito Pós-Moderno?
TRUMAN BURBANK: “Os olhos estão em todos os lugares” (NICCOL, 1998, p. 105)
O sujeito, com sua razão autônoma, busca felicidade e liberdade. A
nossa sociedade contemporânea percebe o indivíduo como o que há de mais
valioso no mundo. A pós-modernidade considera a liberdade de escolha, a
realização pessoal (o narcisismo), a obtenção de sensações prazerosas (o
niilismo) e a possibilidade de viver sem depender do Outro como direitos
naturais irrevogáveis. A individualidade é o que mais importa para o sujeito
pós-moderno.
Com a leitura dos romances de Aldous Huxley e George Orwell,
Admirável Mundo Novo e 1984, respectivamente, podemos afirmar que nossa
sociedade contemporânea já tenha incorporado muito do que foi descrito pelos
autores. Tal sociedade é composta por Trumans confusos e incapazes de
enfrentar a realidade imposta, seduzidos pelo consumo imperativo veiculados
pelos mass media e presos num eterno reality show, onde tudo é falso (ao qual
assistimos como substituto do próprio árduo cotidiano). Repletos de
passividade, excluídos da coletividade, amedrontados pela relação com o
Outro, despolitizados e invadidos na privacidade, vivemos o nosso próprio
“Show de Truman”. O verdadeiro questionamento que se faz acerca disso não
é se fazemos parte dele – do grande espetáculo da simulação do real – mas se
estamos cientes de que não somos mais capazes de entender a realidade
como ela é.
Deleuze, em uma coletânea de textos, artigos e entrevistas chamada
Negotiations 1972 – 1990, expõe o seu ponto de vista e sua preocupação
45
diante da passividade e submissão pós-moderna em relação a quem está no
poder:
Nós temos uma carência de fé no mundo, nós estamos perdidos nele, ele nos foi tirado. Se você acredita no mundo, você está precipitando eventos, seja qual for as imperceptíveis formas que mascaram o controle, você cria um novo espaço-tempo, seja qual for sua pequena superfície ou volume […] Nossa habilidade para resistir ao controle ou nossa submissão perante ele é percebido em todos os nossos
movimentos. (DELEUZE, 1995, p. 176).31
Deleuze, em muitos de seus escritos, já havia expressado suas opiniões
acerca do estilo de vida pós-moderno, a ubiquidade dos meios de comunicação
em massa e como os mesmos vêm se estabelecendo como uma ferramenta
para aqueles que detêm o poder e como eles oferecem possibilidades de
controle social. Seahaven é uma ótima metáfora para o que o autor definiu
como “sociedade do controle”. Tal sociedade se opõe ao modelo panóptico,
pois o observador (opressor) tinha que estar presente nessa sociedade. Já nas
sociedades de controle, todo mundo vê e todo mundo é visto. Há uma
vigilância contínua, caracterizada pela propagação das câmeras espalhadas
por toda a parte.
Truman se opõe à farsa, ao tomar conhecimento dela (na conclusão do
filme, Truman deixa o estúdio). Assim, também podemos afirmar que Truman
se preocupa com a sua individualidade. Mas, a sociedade contemporânea se
entrega à manipulação desse poder central, e até fortifica as classes
detentoras do poder. O indivíduo pós-moderno sente a necessidade de ser
observado, independente das circunstâncias e admira as celebridades
(independente do que a pessoa faz/fez para conquistar esse título).
O narcisismo pós-moderno nos faz querer estar no centro da cena,
debaixo de holofotes, já que “a exposição da privacidade é um valor, não uma
tortura” (BENTES, 2003). Vivemos sob a noção Bentham-Orwelliana do
panóptico, a qual determina que estamos constantemente sob observação.
31 “What we most lack is a belief in the world, we’ve quite lost the world, it’s been taken from us.
If you believe in the world you precipitate events, however inconspicuous, that elude control, you engender new space-times, however small their surface or volume […] Our ability to resist control, or our submission to it, has to be assessed at the level of our every move” (DELEUZE, 1995, p. 176).
46
Resta saber se isso é percebido pela grande maioria como algo negativo ou
positivo.
Os personagens que compõem a vida de Truman, desde sua esposa até
seu melhor amigo, são meros atores que compõem a vida irreal e ilusória do
personagem. Os atores dignificam o show do qual fazem parte e não percebem
nada de irregular nele. Contudo, não é possível afirmar que tudo o que Truman
viveu até agora foi uma farsa. Sob a perspectiva dele, tudo foi real. Ele não
sabe que sua vida foi condicionada a ser um mero produto usado para a
obtenção de lucro aos responsáveis do show e prestígio para o idealizador
Christof. E nós, como espectadores do filme de Weir, estamos cientes da
condição dele, pois isso nos é apresentado na cena dos créditos iniciais,
quando Truman é creditado por “interpretar ele mesmo” (inconsciente e
involuntariamente).
Truman, visto mais como um ator do que uma pessoa, não estava ciente
de sua situação. Ele viveu tudo como se fosse real. Mas quando ele toma
consciência das “falhas técnicas” que casualmente aconteciam ao seu redor,
ele começa a conhecer o seu mundo e tomar conhecimento da simulação
presente nele.
Poder-se-ia dizer que o filme, como produto da indústria
cinematográfica, deseja que seus espectadores transformem Truman Burbank
em uma figura heroica e, finalmente, descubra a verdade sobre si próprio,
sobre Seahaven. E, como desejado, nós, como espectadores, torcemos para
que o personagem escape da tirania de Christof, e somos recompensados com
o final catártico: Truman encontra a finitude de sua prisão. Será que o desejo
de vê-lo livre não reflete o nosso próprio desejo de sermos livres e isentos de
qualquer forma de dominação. Ou será que esse desejo existe justamente pelo
motivo de sabermos que a nossa liberdade não é plena?
A postura socrática de Truman, expressa na frase “só sei que nada sei”,
é o que o possibilita descobrir toda a verdade escondida em seu mundo. A
ignorância dele inicia o seu processo de libertação, e, sendo assim ela não é
sua situação permanente (negando a postura contrária às mudanças expressas
na Filosofia de Parmênides), mas é o que vai permitir que ele escape da sua
prisão.
47
Apesar de não fazer parte da análise imediata deste trabalho, podemos
dizer que a conscientização intuitiva32 de Truman foi muito trabalhada na
psicanálise de matiz lacaniana, de que o ser não é o que ele pensa ser, onde o
sujeito observa o mundo e seus detalhes através da figura do Outro, apontada
pelo clássico texto de Lacan sobre o estágio do espelho. Lacan utilizou essa
definição para explicar a tomada de consciência do bebê de seu próprio corpo,
e de seu próprio “eu”, que acontece depois de seis meses do nascimento da
criança e pode ir até os dezoito meses, quando o sujeito já é capaz de formar
uma imagem especular, a qual se relacionará com o mundo exterior.
A referência no filme é direta, desde o início, quando Truman conversa
‘‘consigo mesmo’’, ao olhar para o espelho antes com familiaridade, e depois
com estranhamento. Aliás, esse espelho de dupla-face, onde Truman se
observa e nós o observamos, é o que nos possibilita vermos a nossa própria
imagem ao vermos um Truman refletido e nos identificarmos com ele.
Outro problema, também tratado no filme, é a questão da figura paterna
ou a função paterna discutida por Freud ao desenvolver sua teoria sobre o
superego. Aliás, Christof se fez valer dessa figura paterna para condicionar
Truman ao seu medo do mar. Quando o diretor mata o pai fictício de Truman
afogado, e sabendo que Seahaven é uma ilha, ele sabia que Truman nunca ia
tentar fugir devido ao seu trauma.
Truman, como indivíduo, se preocupa em manter um naturalismo e uma
sintonia com a realidade em si, como todos os atores de “O Show de Truman”,
que comungam e sabem, ou pensam que sabem, da essência do real. Esse
real socialmente velado pela ilusão (nos termos do véu da ilusão de Maya)
possibilita aos espectadores extra-diegéticos do filme a pensarem que sabem o
que é real e o que não é. Por isso, O Show de Truman cria um
constrangimento não apenas direcionado aos telespectadores e atores que
espiam um ditador que controla um indivíduo inconsciente, mas ele nos
constrange perante nós mesmos e a nossa incapacidade de separar o real do
ilusório e de sucumbir, de forma submissa, perante nossos opressores. Este
constrangimento é ao mesmo tempo uma conivência com a inocência e
32 a tomada de consciência de Truman é um processo muito lento, baseado na intuição e observação do que acontece ao seu redor.
48
ignorância do personagem principal (que seria uma representação nossa?) e
uma sensação de revolta para com os responsáveis pelo show.
No caso de O Show de Truman, o particular se sobrepõe ao singular,
pois, tal como em clássicos da ficção científica como Blade Runner, Matrix e
Laranja Mecânica – a relevância desses filmes se deve, em parte, ao fato de
que são verdadeiras distopias e funcionam como um aviso para tendências
potencialmente realistas – há uma ameaça do estranhamento total, da total
submissão da criatura para com o seu criador, e até a perda total da
identidade. O sujeito, quando condicionado a uma instância meramente
particular, pode ser manipulado sem dificuldades. E manipular sujeitos é o
grande desejo da ideologia opressora.
Entendemos que Truman não tem consciência de sua fama em boa
parte do filme. O protagonista percebe, por meio de uma grande quantidade de
sinais, que “algo está errado” (as falhas técnicas e a repetição de eventos), ou
que ele estaria “sendo seguido” ou “sendo observado”, como afirma em
algumas cenas. Freud teorizou esse sentimento de familiaridade que o sujeito
sente perante algumas situações da vida cotidiana no seu texto The Uncanny.
O inquietante ou o estranho-familiar é um conceito freudiano que se refere a
algo (ou uma pessoa, situações ou, até mesmo, sensações) que não são
propriamente desconhecidas mas sim inquietantemente familiares, o que
resulta em um sentimento de confusão e estranhamento que remonta àquilo
que é desde há muito conhecido. Truman, ao se deparar com essas situações
se sente confortável em um primeiro momento (como os habituais
cumprimentos dos vizinhos pela manhã, as mesmas músicas e programas no
rádio, os colegas de trabalho que abordam Truman sempre da mesma forma e
a relação com a esposa, que nunca parece progredir, mas, ao mesmo tempo,
parece estar estável). Esses detalhes fizeram com que Truman percebesse
que havia algo errado com ele (uma preocupação de cunho individual), e, mais
tarde, ele percebeu que o problema estava em seu mundo.
A consciência de sua “atuação” em um programa televisivo seria
demonstrada, apenas em uma das cenas finais, momentos antes de Truman
escapar de seu mundo artificial e panóptico.
Em tal cena, já mencionada nesse estudo, o protagonista encontra uma
escada que pode o levar em direção à saída do set de filmagens, e então
49
Christof se volta para ele, contando sobre a existência do programa e a
verdade sobre seu mundo, chamando-o de “a estrela do show”. Por fim,
Truman dirige-se ao “mundo todo”, como dizia Christof, se despedindo e
fazendo uma grande reverência antes de “sair de cena”. Portanto, neste
momento, Truman age exatamente como uma estrela/celebridade, e seu gesto
é transmitido para milhões de pessoas. O cumprimento de Truman poderia ser
entendido como uma paródia do formato reality show ou como o seu
condicionamento cênico, que esteve presente com ele desde o seu
nascimento, marcou para sempre a sua personalidade.
Niccol afirma que estaria interessado na ideia de quem é o verdadeiro
prisioneiro, Truman ou os espectadores diegéticos de “The Truman Show”. Em
uma entrevista, ele afirma:
[Andrew Niccol:] “Estou interessado nessa ideia de quem é o verdadeiro prisioneiro – é o Truman ou os espectadores que o assistem? Nós não nos vemos nos rostos dos espectadores ficcionais que ficam bisbilhotando por longos períodos de tempo numa tela exibindo Truman – eles representam as pessoas que realmente deixam a mídia controlar suas vidas, nós pensamos […] A ilusão é essa: depois de ver esses filmes, nós estamos cientes de quem pode, efetivamente, lidar com o impacto das mass media em nossas vidas.
(BISHOP, p.7, 2000).).33
Acreditamos que os espectadores intra-diegéticos são as pessoas que
realmente deixam a mídia controlar suas vidas – não nos vemos ali
representados e o tratamos com ironia. A ilusão, segundo o roteirista, é que,
após assistir esses filmes, como esses citados nessa pesquisa, é que o
impacto das mídias de comunicação são muito mais influentes do que se
imagina e podem nos afetar de maneiras que desconhecemos.
33 “[Andrew Niccol:] I’m interested in this Idea of who’s the real captive – is it Truman, or is it the
viewers watching Truman? We do not see ourselves in the faces of fictional viewers peering longingly at the television screens in Truman – they represent the people who really let the media control their lives, we think. […] The illusion is this: that after seeing these films, we are aware of and can effectively deal with the media’s impact in our lives” (BISHOP, p.7, 2000).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Show de Truman é uma das produções cinematográficas mais
importantes dos últimos anos. Além de possuir temáticas pertinentes da
atualidade, como a simulação de realidades e a manipulação midiática, o filme
consegue nos fazer refletir e questionar o que se apresenta como real em
nossas próprias vidas.
A partir do estudo feito no primeiro capítulo dessa pesquisa, percebemos
que O Show de Truman é muito rico filosoficamente, pois levanta
questionamentos que eram inquietantes já na Antiguidade Clássica. Procurar
entender o que é a “realidade em si” sempre foi uma preocupação do homem,
e muitos tentaram explicá-la de forma coerente, sem nunca chegar a uma
conclusão definitiva. Por isso, discutir esse filme é sempre de uma
complexidade imensurável.
Dentre as inúmeras relações possíveis do filme com teorias filosóficas,
talvez a mais interessante delas seja a aproximação de O Show de Truman
com a Alegoria da Caverna, de Platão. A metáfora de Seahaven como uma
caverna, e Truman como o único prisioneiro, é uma interpretação que garantiu
a O Show de Truman, um status de uma releitura do texto de Platão. Truman,
uma representação do sujeito pós-moderno, prefere a sua cela, como acredita
Christof, uma vez que ele evita questionar a sua realidade e confrontar o que
lhe é imposto. Como Platão nos revelou com a sua famosa Alegoria, poucos
são os inclinados a questionar o mundo das aparências. Christof, ainda, revela
que Truman pode deixar Seahaven quando quiser. Mas se é assim, por que ele
não o fez mais cedo? Por que ele levou tanto tempo (30 anos) para descobrir a
verdade? Será que enxergamos somente o que queremos, e estamos
acomodados em nossas celas, como Truman? O ato final do filme nos conforta,
porque vemos Truman deixando Seahaven. Contudo o conforto final não é
suficiente pela reflexão que o filme levanta acerca da nossa própria realidade.
A própria vida de Truman é apresentada de uma maneira atrativa,
apesar da exaustiva rotina. Toda a “realidade” que Truman acredita, não passa
de uma construção televisiva (a cidade em que mora, a sua esposa, a sua
família, o seu melhor amigo, o seu emprego, tudo não passa de uma ilusão). E
é nesse ponto que o filme encontra-se com a vida na contemporaneidade.
51
Vivemos sob o impacto constante da mídia, a qual nos proporciona uma
“realidade” construída e nós, como bons atores, participamos euforicamente do
espetáculo da sociedade, como anteviu Debord em A Sociedade do
Espetáculo, onde o autor teoriza sobre como as relações sociais e econômicas
seriam mediadas pelas imagens que não possuem correspondentes concretos
no mundo real.
O Show de Truman ilustra também o que disse Baudrillard, em
Simulacros e Simulação, onde o autor discorre sobre como a cultura da
atualidade é fruto de uma realidade simulada – a hiper-realidade – a qual é
construída partir dos valores simbólicos impostos pelo sistema. Dessa forma,
cria-se uma realidade dentro de outra, onde os signos substituem os valores
concretos das coisas. É assim que podemos entender Seahaven, uma cidade
fictícia, uma hiper-realidade, um ambiente que se apresenta mais atrativo que o
real. Para tanto, a “cidade” é mostrada como “a nice place to live”, onde o pôr-
do-sol é mais bonito (como diz o criador/diretor Christof).
Sendo assim, a hiper-realidade é sempre construída, de forma invisível.
Christof toma o cuidado de nunca ser visto, apesar de estar presente em todos
os momentos, e em todos os lugares, o que é possível através do uso de
câmeras, como anteviu Orwell, em 1984 (desse modo, Christof pode ser
entendido como a personificação do Big Brother, o universo narrativo de O
Show de Truman). O mesmo acontece em nossa sociedade, pois nem
percebemos que estamos sendo vigiados constantemente, seja por meio de
câmeras ou por outros aparatos tecnológicos. Ainda, o que é mais grave,
contribuímos para “a cultura do vigiar”, quando assistimos reality shows, lemos
revistas de fofocas, acompanhamos canais do YouTube e nos expomos em
redes sociais.
Outro ponto essencial a ser destacado é a crítica de O Show de Truman
direcionada aos veículos de comunicação em massa. A indústria cultural,
infinitamente influenciada pela televisão e seus programas que ditam padrões
de ser e agir, possui um alcance considerável. Os programas similares ao Big
Brother exemplificam bem essa estratégia midiática de entreter a população e,
simultaneamente, servem como instrumentos ideológicos, que estabelecem
padrões de comportamentos.
52
A mídia é um veículo detentor de muito poder e, obviamente, precisa ter
os seus interesses atendidos pelo público (e não vice-versa, como pode
parecer num primeiro momento). Certamente que seu propósito principal é o
econômico, uma vez que toda a publicidade está sempre presente nos meios
midiáticos. Essa ideia é muito bem veiculada por O Show de Truman, que,
além de transformar o protagonista, Truman (em vida e em imagem), em um
objeto numa prateleira para ser vendido (aliás, todos nós somos mercadorias
nessa cultura de imagens), mostra constantemente merchandising de outros
produtos, que estão longe de ser necessidade dos consumidores (aqui, a
publicidade cria necessidades no consumidor, antes inexistentes, para
estimular o comércio de produtos).
O Show de Truman perpassa também por questões éticas e morais. Se
por um lado as imagens podem também contribuir para a sociedade, pela
identificação de pessoas que infringem as leis (como nos casos de câmeras de
segurança), os “olhos eletrônicos” onipresentes podem facilitar a invasão de
privacidade em ambientes públicos e privados e podem contribuir para a
exposição demasiada e invasiva, como claramente podemos perceber no caso
de Truman, que tem a sua privacidade totalmente invadida diariamente.
Nesse sentido, O Show de Truman pode ser visto como um alerta aos
perigos que essa constante vigilância pode causar. A ficção aqui serve para
ilustrar um exemplo claro da exposição constante que sofremos na Era da Pós-
Modernidade. Com o advento do YouTube e redes sociais, a cada dia mais
intensamente, as pessoas se expõem na Internet sem receio nenhum,
divulgando cada etapa do seu dia e revelando segredos que deveriam ter sido
mantidos no silêncio. O curioso é que, ao contrário do que vemos em O Show
de Truman, essa exposição acontece de maneira voluntária. Isso vai ao
encontro com a ideia de que o sujeito pós-moderno sente a necessidade
constante de estar num palco.
Os valores, tais como identidade, posições políticas, a ética e a moral, a
cultura e tudo mais que diz respeito ao ser em sua essência não podem ser
devassados pelos olhos eletrônicos do Big Brother. A partir do momento que
passamos a aceitar essa padronização imposta pela sociedade de consumo e
nos deixamos hipnotizar pelo poder da mídia, estamos entrando mais uma vez
da Caverna de Platão, imersos na escuridão da ignorância.
53
O Show de Truman também problematiza questões referentes ao livre
arbítrio, outra preocupação filosófica milenar. A vida de Truman é
supervisionada por Christof, e tudo o que acontece ao redor dele é fruto de
uma decisão do diretor. Truman não está no controle de sua própria vida (será
que nós estamos?) e obedece a padrões pré-estabelecidos, como, por
exemplo, a necessidade do personagem em atender a demanda da audiência.
Ou seja, ao passo que Truman se parece com um simples personagem,
Christof se parece com Deus. Todos os condicionamentos sociais
estrategicamente engendrados (fobia ao mar e à navegação, por exemplo),
servem para que Christof nunca se depare com problemas graves no
andamento de seu show. Mesmo assim, Truman consegue estabelecer
resistência.
O Show de Truman nos proporciona muitas interpretações de textos já
consagrados da Filosofia, mas que trazem tais textos de forma pertinente ao
que encontramos no dia-a-dia de nossas vidas na Era Pós-Moderna.
Descobrimos, com Platão, o texto histórico da Alegoria da Caverna e a
coragem de um prisioneiro que ousou libertar-se. Deparamo-nos com a
possibilidade de existir um gênio maligno poderosíssimo que se diverte ao nos
iludir, como imaginou Descartes, no texto Meditações. Imagina, ainda, que
esse ser mal-intencionado é poderoso o bastante para criar em nós falsas
impressões, de tal maneira que tudo à nossa volta não passa de uma ilusão,
onde a sensação de realidade é esmagadora, mas não é real. Poderá a nossa
vida ser também uma ilusão e estarmos tão distante quanto Truman em
descobrir a verdade?
Christof, quando questionado do porquê de Truman não ter, ainda,
descoberto a verdade depois de tanto tempo, dá a resposta mais simples que
poderia pensar, mas cheio da razão: “As pessoas aceitam a realidade do
mundo em que vivem” (WEIR, 1998, 105’). Acontece o mesmo conosco.
Raramente questionamos a realidade apresentada e aceitamos tudo com uma
passividade esmagadora (e até mesmo com certo otimismo, que lembra o
personagem Cândido, de Voltaire).
Assim como Truman fez a partir da metade final de sua narrativa,
devemos questionar sempre a realidade que nos é imposta, os valores que nos
são transmitidos pelos programas de televisão e se isso condiz ou não com o
54
que acreditamos e com o que queremos para nossas vidas. É preciso ser mais
que indivíduos passivos, robotizados e adestrados, pois o sistema sempre
tentará nos seduzir com fábulas (como Seahaven), cientes de que sabem de
tudo que sentimos e precisamos, como Christof acreditou conhecer o íntimo de
sua notória criação. Mas, não sabem, pois, como bem diz Truman, eles não
têm uma câmera em nossas cabeças.
55
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