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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO JOVANIR LAGE A FUNÇÃO SOCIOLÓGICA DO [v'r' NOS SALMOS DE LAMENTAÇÃO E OS CONFLITOS DE CLASSES OCORRIDOS NO FINAL DO PERÍODO PÓS-EXÍLIO SÃO BERNARDO DO CAMPO 2016

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

JOVANIR LAGE

A FUNÇÃO SOCIOLÓGICA DO [v'r' NOS SALMOS DE

LAMENTAÇÃO E OS CONFLITOS DE CLASSES OCORRIDOS NO

FINAL DO PERÍODO PÓS-EXÍLIO

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2016

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JOVANIR LAGE

A FUNÇÃO SOCIOLÓGICA DO [v'r' NOS SALMOS DE

LAMENTAÇÃO E OS CONFLITOS DE CLASSES OCORRIDOS NO

FINAL DO PERÍODO PÓS-EXÍLIO

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2016

Dissertação apresentada em cumprimento às

exigências do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Religião da Universidade Metodista de

São Paulo, para a obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

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3

A Dissertação de Mestrado intitulada “A função sociológica do [v'r' nos Salmos de

lamentação e os conflitos de classes ocorridos no final do período pós-exílio”, elaborada por

Jovanir Lage foi apresentada e aprovada em 29 de setembro de 2016, perante banca

examinadora composta pelos professores doutores Tércio Machado Siqueira

(Presidente/UMESP), José Ademar Kaefer (Titular/UMESP) e Antônio Carlos Frizzo

(Titular/ITESP).

_________________________________________________________

Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

_________________________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

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4

Esta pesquisa foi produzida com apoio da CAPES que

ofereceu bolsa de estudos integral, entre

agosto de 2014 à agosto de 2016.

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5

Para Roberta, Ana Luíza e Arthur,

vocês foram essenciais neste processo.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por sua graça e inspiração;

À minha esposa Roberta, por sua presença constante em minha vida, pelo companheirismo,

amor, carinho e paciência;

Aos meus filhos, Ana Luíza e Arthur, por compreenderem a ausência, demonstrando sempre

cuidado e carinho;

À Igreja Metodista que me inseriu neste universo bíblico e me possibilitou os estudos

teológicos por meio da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista;

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião;

Ao meu amigo e orientador Tércio Machado Siqueira, por seus constantes incentivos ao

estudo;

Aos amigos Messias e Delma Valverde, pelos momentos de descanso, pelo apoio constante

e pelas boas conversas;

Aos amigos Wilson Alviano e Bete Camacho, pelos momentos de cumplicidade nas horas

incertas;

A CAPES, mantenedora importante neste processo;

Ao Programa de Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, por abrir novos caminhos.

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LAGE, Jovanir. A função sociológica do [v'r' nos Salmos de lamentação e os conflitos de

classes ocorridos no final do período pós-exílio. São Bernardo do Campo: UMESP, 2016.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Comunicação, Educação e

Humanidades, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

SINOPSE

A presente pesquisa organiza-se a partir do problema da contraposição

entre “malfeitores e justos” que atravessa os diversos tipos de textos

do período persa sob a seguinte pergunta: Quem é o [v'r' na sociedade

israelita, e porque este termo surge com maior intensidade no período

pós-exílio? O objetivo desta pesquisa visa principalmente, a

investigação das razões que influenciaram a introdução da

terminologia [v'r' “malfeitor” em determinados salmos, como

identificação do inimigo. Os objetivos secundários de nossa

investigação serão: (1) analisar a formação conceitual do [v'r' dentro

de sua característica anti-positiva com o qyDIc; “justo” enfatizando o

eixo ético, caracterizado como uma das interpretações do termo; (2)

estudar a função do termo dentro dos Salmos de Lamentação, apoiado

no estudo exegético do Salmo 55; (3) entender de forma crítica, a

análise das implicações do uso do [v'r' como representação da

maldade no desenvolvimento social da comunidade israelita no

período pós-exílio. Em nossa abordagem pretendemos tratar de tal

estudo a partir do eixo ético, estendendo a investigação para a análise

das motivações interpretativas da solidariedade no contexto

veterotestamentário.

Palavras-chave: Maldade, divisão de classe, malfeitor, justo,

lamentação, Salmo 55.

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LAGE, Jovanir. The Sociological Function to [v'r' in the Psalms of Lament and class conflicts

that occur in the end post- exile period. São Bernardo do Campo: UMESP, 2016. Dissertation

(Masters of Sciences of Religious) - Communication, Education and Humanities Faculty,

Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

ABSTRACT

This research is organized from the problem of the opposition between

“wicked and righteous” going through the different types of texts

from the Persian period under the following question: Who is the [v'r' in Israeli society, and because this term appears with greater intensity

in the post-exilic period? This research aims mainly to research the

reasons that influenced the introduction of [v'r' terminology “wicked”

in certain psalms, such as identification of the enemy. Secondary

objectives of our research are: (1) analyze the conceptual formation of

[v'r' in its anti-positive feature with qyDIc;; “righteous” emphasizing

the ethical axis, characterized as one of the word interpretations; (2) to

study the function of the word within the Psalms of Lament, supported

the exegetical study of Psalm 55; (3) to understand critically,

analyzing the implications of the use of [v'r' as evil representation in

the social development of the Jewish community in the post-exilic

period. In our approach we intend treat such study from ethical axis,

extending the research to the analysis of interpretative motivations

Solidarity without Old Testament context.

Keywords: Wickedness, class division, evildoer, righteous, lamentation,

Psalm 55.

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SUMÁRIO

SUMÁRIO _________________________________________________________________ 9

SIGLAS E ABREVIAÇÕES _____________________________________________________ 12

Livros da Bíblia ________________________________________________________________________ 12

Textos e traduções _____________________________________________________________________ 14

Outras abreviações ____________________________________________________________________ 15

SISTEMA DE TRANSLITERAÇÃO _______________________________________________ 16

INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 18

Objetivos gerais ________________________________________________________________ 19

Referencial teórico metodológico _________________________________________________ 20

Apresentação do tema __________________________________________________________ 22

1: ANÁLISE LITERÁRIA E TEOLÓGICA DO [v'r' NOS SALMOS DE LAMENTAÇÃO. __________ 24

1.1. Breve introdução ao livro dos Salmos ___________________________________________ 25

1.1.1. Divisões do saltério _______________________________________________________________ 27

1.1.2. Coleções do saltério _______________________________________________________________ 28

1.2. Camadas literárias do Saltério _________________________________________________ 30

1.2.1. Os métodos de pesquisa ___________________________________________________________ 31

1.3. Os Salmos de Lamentação ____________________________________________________ 35

1.3.1. Consequências históricas e teológicas ________________________________________________ 38

1.3.2. Desenvolvimento sociocultural _____________________________________________________ 41

1.4. Malfeitores e Justos na comunidade do período pós-exílio __________________________ 42

1.4.1. A mensagem dos Salmos ___________________________________________________________ 43

2: ESTUDO EXEGÉTICO DO SALMO 55. _________________________________________ 46

2.1. Determinação do texto base __________________________________________________ 47

2.1.1. Tradução interlinear do Salmo 55: Aproximação literal ___________________________________ 47

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2.2. Crítica textual ______________________________________________________________ 50

2.2.1. Notas do Aparato Crítico da BHS _____________________________________________________ 50

2.2.2. Anotações massoréticas – Masora Parva (Mp) __________________________________________ 56

2.2.3. Conclusões preliminares ___________________________________________________________ 61

2.3. Tradução __________________________________________________________________ 62

2.3.1. Observações _____________________________________________________________________ 62

2.4. Estrutura __________________________________________________________________ 65

2.4.1. Proposta de estrutura do Salmo 55 __________________________________________________ 66

2.4.2. Explicação da estrutura ____________________________________________________________ 70

2.5. Gênero literário ____________________________________________________________ 71

2.5.1. Tipo e estilo literário ______________________________________________________________ 72

2.6. Lugar e data _______________________________________________________________ 73

2.7. Comentário exegético _______________________________________________________ 76

Cabeçalho: 1 __________________________________________________________________________ 76

I. Súplica inicial: 2-3a ___________________________________________________________________ 79

II. Lamentações de um Desesperado: 3b-24b ________________________________________________ 80

III. Afirmação de fé (v. 24c) ______________________________________________________________ 92

2.8. Intenção __________________________________________________________________ 92

2.8.1. Articulação do discurso ____________________________________________________________ 95

2.8.2. Temas teológicos ________________________________________________________________ 96

3. O [vr COMO REPRESENTAÇÃO DA MALDADE ________________________________ 102

3.1. Abordagem conceitual ______________________________________________________ 103

3.1.1. Conceito de [vr na perspectiva forense ______________________________________________ 106

3.1.2. Conceito de [vr na perspectiva ético-religiosa _________________________________________ 108

3.2. Processos dialéticos. Conceitos paralelos e opostos do [vr nos Salmos de lamentação __ 111

3.2.1. O sentido semiótico ______________________________________________________________ 111

3.2.2. O sentido histórico _______________________________________________________________ 112

3.2.3. Conceitos paralelos ______________________________________________________________ 114

3.2.4. Conceitos opostos _______________________________________________________________ 115

3.3. O [v'r' no contexto social e religioso da comunidade no período pós-exílio. ____________ 117

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3.3.1 O Impulso social _________________________________________________________________ 118

3.3.2 Novas concepções teológicas _______________________________________________________ 120

3.3.3 A espiritualidade dos pobres _______________________________________________________ 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________________ 125

Partindo dos resultados obtidos __________________________________________________ 127

Possíveis caminhos hermenêuticos _______________________________________________ 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________________ 130

Artigos ______________________________________________________________________ 130

Bíblias ______________________________________________________________________ 132

Dicionários e gramáticas ________________________________________________________ 132

Livros _______________________________________________________________________ 133

Teses e Dissertações ___________________________________________________________ 137

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SIGLAS E ABREVIAÇÕES

Livros da Bíblia

Ag Ageu

Am Amós

Cr 1-2 Crônicas

Ct Cantares

Dn Daniel

Dt Deuteronômio

Ec Eclesiastes

Eclo Eclesiástico / Sirácida

Ed Esdras

Et Ester

Ex Êxodo

Ez Ezequiel

Gn Gênesis

Hc Habacuque

Is Isaías

Jl Joel

Jn Jonas

Jó Jó

Jr Jeremias

Js Josué

Jud Judite

Jz Juízes

Lm Lamentações

Lv Levíticos

Mac 1-2 Macabeus

Ml Malaquias

Mq Miquéias

Na Naun

Ne Neemias

Nm Números

Ob Obadias

Os Oséias

Pv Provérbios

Rt Rute

Rs 1-2 Reis

Sab Sabedoria de Salomão

Sf Sofonias

Sl Salmos

Sm 1-2 Samuel

Tob Tobias

Zc Zacarias

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Textos e traduções

AOM Antigo Oriente Médio

ARA Almeida Revista e Atualizada no Brasil, 2ed. Barueri: Sociedade Bíblica do

Brasil, 2009

BHS ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm (eds.). Bíblia Hebraica

Stuttgartensia. 5 ad. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. 1997

BDB BROWN, Francis, DRIVER, Samuel Rolles, BRIGGS, Charles Augustus.

BDB – A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Boston, New

York and Chicago: Houghton, Mifflin and Company the Riverside Press,

1906

BJ Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus,

2008.

DITAT HARRIS, R. Lair; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (orgs.)

Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. Trad. Marcio

Loureiro Redondo, Luiz A. T. Sayão, Carlos Osvaldo C. Pinto. São Paulo:

Vida Nova, 1998.

EBD FREEDMAN, David Noel; MYERS, Allen C.; BECK, Astrid B. Eerdmans

dictionary of the Bible. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000.

FOTL The Forms of the Old Testament Literature

HALOT

KOEHLER, Ludwing; BAUMGARTNER, Wlater; RICHARDSON, M. E.

J.; STAMM, Johann Jakob. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old

Testament. New York: E. J. Brill, 1999.

JBL Journal of Biblical Literature

JSB

The Jewish Study Bible, 2ed. New York: Oxford University Press, 2014.

KHAT

LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament.

Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1981.

BEP

Bíblia Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.

OTE Old Testament Essays

RIBLA

Revista de interpretação Bíblica Latino Americana

TDOT

BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer and FABRY, Heinz-

Josef. Theological Dictionary of the Old Testament. 15 Vols. Grand Rapids/

Cambridge: Willian B. Eerdmans Publishing Company. 2004

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Outras abreviações

a.C. Antes de Cristo

abs. Absoluto

adj. Adjetivo

apud Citado por

Ar. Aramaico

AT Antigo Testamento

BH Bíblia Hebraica

Cap. Capítulo

Cf. Conforme, conferir

Col. Coleções

d.C. Depois de Cristo

ed(s). Editores

ed. Edição

esp. Especialmente

et al. e outros autores

etc et cetera

fem. Feminino

gr. Grego

heb. Hebraico

i.e. Isto é

ing. Inglês

lat. Latim

lit. Literalmente

LXX Septuaginta

masc. Masculino

MP Masora Parva

n. Número

opp. Oposto

org(s). Organizadores

p.ex. Por exemplo

pl. Plural

s. Seguintes

sg. Singular

subst. Substantivo

supr. Supra, acima

TM Texto Massorético

trad. Tradução

v. Verso, versículo

vol. Volume

vol(s). Volumes

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SISTEMA DE TRANSLITERAÇÃO

Ao optar por transliterar o hebraico, o faço de forma simplificada, visto que cada

palavra constará de sua representação original acompanhada da tradução aproximada

em itálico. A transliteração acontecerá apenas quando não encontrarmos equivalentes

semânticos adequados no português. Seguindo esse princípio, faço alguns ajustes, ainda

que arbitrários. Esta não é uma transliteração exata que pretende refletir todas as

particularidades da ortografia semita nem sua finalidade fonética.

Para um exame mais completo da língua hebraica usando o sistema de transliteração,

Edson de Faria Francisco nos apresenta um minucioso trabalho1 onde o Hebraico e

aramaico são representados a partir de suas consoantes, sinais vocálicos, ditongos e

letras finais, tendo como base um sistema internacional de transliteração. Ernst Jenni2

opta por apresentar um quadro mais simplificado, sem a pretensão de que sejam

normativas, mas com a intenção de representar o hebraico massorético de forma mais

prática, sem deixar de satisfazer às exigências técnicas.

Élcio Mendonça em sua dissertação de mestrado3, também elaborou um sistema mais

prático do ponto de vista funcional, apoiado no padrão internacional sem deixar de

atender aos requisitos técnicos para uma boa compreensão da vocalização massorética

da língua hebraica.

Milton Schwantes em seus cursos sempre recomendava que a representação de uma

letra hebraica devesse ser feita por apenas uma letra latina, na intenção de facilitar ainda

mais o acesso às palavras hebraicas. Da mesma forma Tércio Machado Siqueira

1 FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica. Introdução ao Texto Massorético. Guia

introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartênsia. 3ª edição. São Paulo: Vida nova, 2008. p. xxvi. 2 JENNI Ernst e Claus Westermann. Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, Volume 1.

Madrid: Edicciones Cristandad, 1985. p.20-21. 3 MENDONÇA, Élcio Valmiro Sales de. “Monte Sião, Extremidade do Safon”. Estudo da influência da

Mitologia Cananéia na Teologia de Sião a Partir da Análise Exegética do Salmo 48. São Bernardo do

Campo: Umesp, 2012. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e

Direito, Universidade Metodista de São Paulo, (UMESP).

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recomenda em suas orientações. Com isso, não acrescentarei letras latinas aos sinais

característicos no hebraico. Espero que o/a leitor/a entendido/a no hebraico seja, então,

compreensível com minha opção em não diferenciar vocalicamente as letras e em não

geminá-las.

Por uma abordagem mais didática, quem se depara com a transliteração deve saber, se

for o caso, recompor a palavra no hebraico com mais facilidade. Acrescentar

duplicações ou diferenciações de pronúncia não parece facilitar essa reconstrução. As

formas finais de algumas letras, obviamente, não alteram a proposta de transliteração.

Sigo esse critério também para os sinais massoréticos. A rigor, deveríamos diferenciar

entre formas breves e longas, bem como “semivogais”. Contudo, como esses sinais não

fazem parte do texto original consonantal, penso que diferenciá-los não trará grandes

problemas na recomposição do hebraico. Talvez, o maior problema esteja nas matres

lectionis. Três consoantes podem remeter a sons vocálicos: h, y e w. Nesse sistema

adotado, peço a atenção tão somente para as duas últimas letras que, para além da

representação da consoante, poderão também ser transliteradas vocalicamente:

i/e ( y ); o/u ( w ). No caso de h, manterei a transliteração latina, afinal “h” igualmente

parece alongar vogal no português.

a ’ x h [ ‘

B b j t p @ p

b v y y c # s

g g k $ k Q q

D d l l R r

H h m ~ m F s

W w n ! n V x

Z z s ṣ T t

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INTRODUÇÃO

Os primeiros contatos com o tema da contraposição entre [v'r' (raxa‘) malfeitor e qyDIc;

(sadiq) justo, surgiram no início do bacharelado em teologia, quando logo, me envolvi

no grupo de pesquisa “A marginalidade nos Salmos”, orientado pelo Professor Dr.

Tércio Machado Siqueira. A oportunidade de pesquisar a atividade dos agressores,

explicitamente citados pelos compositores dos Salmos bíblicos, abriram possibilidades

de maior contato com a estrutura da língua hebraica, com as condições de vida do povo

israelita nos tempos bíblicos e da investigação do culto em Israel, incluindo sua forma

litúrgica.

O ingresso no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião possibilitou maior

contato e abrangência do tema, pois a partir da revisão de bibliografias que resgatam a

história da religião de Israel em seu contexto social e comunitário, percebemos um

contingente, ainda em expansão, de novas descobertas a respeito da religião em Israel

no contexto do pós-exílio.

A história da religião de Israel é sem sombra de dúvidas, o elemento central dos

principais trabalhos sobre o Antigo Testamento. Desde 1787, com os trabalhos de J. P.

Gabler4, a abordagem histórica da Bíblia é vista como elemento que precisa

necessariamente caminhar dissociado da teologia dogmática. O desenvolvimento dos

estudos histórico-críticos marcaram as décadas seguintes, operando principalmente no

campo da crítica literária, mas foi a partir de 1880 que a escola da história da religião,

surge como significativa para os posteriores estudos da religião israelita. Hermann

Gunkel e Hugo Gressmann foram seus representantes mais expressivos.

4 Cf. FOHRER, Georg. História da religião de Israel. Trad. José Xavier. São Paulo: Edições Paulinas,

1982.

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Desdobramentos importantes aconteceram em nosso século, principalmente com os

trabalhos de Roland de Vaux, Gerhard Von Rad e George Fhorer que construíram

evidências textuais e arqueológicas das religiões dos vizinhos de Israel, ampliando

nossa compreensão dos conceitos e fenômenos religiosos em Israel e todo o levante.

Nas décadas recentes, ampliaram-se os questionamentos acerca do desenvolvimento

religioso e social do povo bíblico. Uma nova discussão sobre a história de Israel5 e a

compreensão de Deus na Bíblia, tornou-se frequente em círculos especializados, a fim

de compreender o contexto histórico da Bíblia e como ela apresenta o passado de

Israel6. Rainer Albertz em seu extenso trabalho sobre a história da religião de Israel nos

tempos do Antigo Testamento, ao tratar sobre a divisão social e religiosa das

comunidades, sinaliza que no pós-exílio a divisão de classes acentuou a questão ético-

religiosa, contribuindo para significativo aumento de um extrato de imagens de

inimigos, nos Salmos de lamentação.

Objetivos gerais

Os objetivos gerais de nossa investigação serão: (1) analisar a formação conceitual do

[v'r' “malfeitor” dentro de sua característica ante positiva com o qyDIc; “justo”

enfatizando o eixo ético, caracterizado como uma das interpretações do termo; (2)

Estudar a função do termo dentro dos Salmos de lamentação, apoiado no trabalho

exegético do Salmo 55; (3) Analisar as motivações interpretativas da solidariedade no

contexto veterotestamentário da teologia javista.

Desta forma, a presente pesquisa pretende identificar e procurar entender as razões que

influenciaram a introdução da terminologia [v'r' em alguns Salmos de lamentação,

como indicativo para a imagem do inimigo. Em nossa abordagem pretendemos tratar de

tal estudo a partir do eixo ético, estendendo a investigação para a análise das motivações

interpretativas da solidariedade no contexto veterotestamentário.

5 Sobre os novos caminhos para a compreensão da história e da arqueologia do Antigo Israel, ver:

FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido. Arqueologia e História de Israel Norte. São Paulo: Paulus,

2015 6 SMITH, Mark. S. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no Antigo Israel.

Trad. Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo. Paulus, 2006.

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A expressão que originariamente designava o criminoso declarado culpado em algum

julgamento (p. ex.: Êx. 23.1; Dt 25.1; 1Rs 8.31), converteu-se em uma generalizada e

polêmica acusação a determinado grupo social. A terminologia que atravessa a literatura

pós-exílica, assumindo uma conotação muito mais social e religiosa7 aponta para uma

divisão bem clara e definida entre os grupos da classe alta, proprietários de terras e a

comunidade campesina.

Referencial teórico metodológico

Neste sentido, a contribuição de Helmer Ringgren, Ernst Jenni, Claus Westermann,

Gerhard Lisowsky, Luiz Alonso Schökel e Nelson Kirst8, torna-se crucial para a análise

do verbete. O levantamento e a apuração do significado do termo visam encontrar sua

função sociológica dentro da comunidade, pois já é notório que o [v'r' surge nos textos

bíblicos como o oposto mais importante do qyDIc;. Ao modo dos provérbios, o justo é

quase sempre antítese do malfeitor. Segundo Jenni9, o termo também aparece em

construções antigas das línguas, etíope e árabe, com significados divergentes como

“esquecer” ou “ser fraco, brando”, tendo como aspecto comum o fato negativo da

violação de obrigações e funções.

Rainer Albertz traz em sua obra10

, as bases para a compreensão da história da religião

no pós-exílio, onde mostra com grande definição, a divisão social e religiosa

desenvolvida em Israel a partir da crise social estabelecida no V e IV séculos a.C.

Diante das pressões econômicas de uma fragilizada condição social e política, a

perspectiva de uma legislação social que se movia na direção deuteronômica da ética da

7 ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 1. De los

comienzos hasta El final de la monarquia. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 440 8 KIRST, Nelson et al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. São Leopoldo/Petrópolis:

Sinodal/Vozes, 2009. p. 234; ALONSO SCHÖKEL, Luiz. Dicionário bíblico hebraico-português.

Tradução: Ivo Storniolo e José Bortolini. São Paulo: Paulus, 1997. p. 633; JENNI, Ernst e Clauss

Westermann. Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, Volume II. Madrid: Edicciones

Cristandad, 1985, p. 1022; RINGGREN, H. In Theological Dictionary of the Old Testament. Edited by G.

Johannes Botterweck, Helmer Ringgren and Heinz-Josef Fabry. Volume XIV. Willian B. Eerdmans

Publishing Company. Michigan, Cambridge: Grand Rapids, 2004, p.2; LISOWSKY, Gerhard.

Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, p. 1357 9 JENNI, Ernst e Claus Westermann. Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, Volume II.

Madrid: Edicciones Cristandad, 1985. p. 1022 10

ALBERTZ, Rainer. Historia de la Religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2. Desde

el exílio hasta la época de los macabeos. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 567-709

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fraternidade, alimentada pelo ideal do javismo primitivo, foi sufocada pela divisão entre

ricos e pobres que se havia instalado desde os tempos da monarquia.

O sonho de uma nova comunidade judaica, fundada com tantas esperanças, desembocou

em uma profunda crise que marcou longo tempo na história social e religiosa do pós-

exílio, pois os mesmos mecanismos econômicos que nos últimos tempos da monarquia

haviam conduzido ao total empobrecimento do estrato social mais frágil continuavam a

existir.

Traços da religiosidade javista que influenciavam parte da classe social mais elevada,

produziu um significativo impulso social que dividia a classe alta do judaísmo em dois

campos: de um lado havia os que exploravam os pobres sem nenhuma piedade ou

preocupação com seus irmãos, em prol de benefícios próprios e por outro lado aqueles

que defendiam a solidariedade com seus irmãos mais pobres, e se esforçavam por

manter-se fieis e piedosos, mesmo que lhes custassem importantes sacrifícios

econômicos.

A regulação de normativas religiosas que valorizavam a piedade intensificou o conflito

que se agravou no pós-exílio quando estas normas se tornaram definitivas na religião

judaica. A conduta insolidária passou a ser estigmatizada, fundamentada na figura

negativa do [v'r'.

Portanto, a maldade do [v'r' consiste, antes de tudo, em um comportamento antissocial,

validado por questões teológicas. Albertz ressalta que as ações do setor aristocrático que

explorava os mais pobres, estavam em acordo com o formalismo jurídico e, portanto,

não tinham nenhuma necessidade de se defender ou de justificar suas ações, já que

estavam em posse de seus direitos. As ações empreendidas pelos membros impiedosos

da classe alta eram, até certo ponto, atrativas pois gozavam de bons empreendimentos

em seus negócios, melhorando sempre a sua posição social.

A orientação do javismo oficial fazia do culto no templo, um núcleo da relação com

Deus. A ideia de um povo eleito, gerado pela concepção sacerdotal, produziu um

autêntico bálsamo na existência das minorias judaicas, diante do pluralismo cultural e

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religioso do Império Persa. A partir de então, com a permissão persa, a reorganização

social e religiosa se movia na linha deuteronomista de uma “ética da fraternidade”

produzindo apelos cada vez mais frequentes para a necessidade de uma reforma

econômica e social da comunidade, a fim de superar a divisão entre ricos e pobres que

havia se instalado desde os tempos da monarquia.

Percebemos assim, que no contexto do pós-exílio, as significativas mudanças

econômicas, religiosas e sociais, proporcionaram cenários ideais para o

desenvolvimento de conflitos que impulsionaram a transformação social e permitiram

novas estruturas teológicas para a comunidade judaica.

Apresentação do tema

O presente trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo, trabalharemos a

análise literária e teológica do [v'r' nos Salmos de lamentação. A proposta aqui é

desenvolver de forma introdutória, as informações básicas sobre a composição e as

camadas literárias do saltério, para posteriormente localizar o objeto de nosso estudo. O

contexto histórico e social de tais Salmos no período pós-exílio, serão estudados como

ferramenta fundamental para nossa análise.

O segundo capítulo é a parte central de nossa pesquisa e portanto toma maior espaço

neste trabalho. À partir da análise exegética do Salmo 55, buscamos compreender o

texto bíblico dentro se seu aspecto intencional e literário. Procuramos destacar

elementos da tensão social, bastante presente no pós-exílio, usando os princípios da

Crítica da Forma e da análise histórico-sociológica. Os resultados são reveladores, o

teor litúrgico usado pelo salmista nos remete ao ambiente de culto, onde o salmista

articula seu discurso, expondo queixas e maldições contra seu agressor, enquanto afirma

sua fragilidade e dependência de Javé.

No terceiro capítulo, tratamos de forma mais específica sobre o [v'r', explorando as

palavras que melhor retratam o valor conceitual do termo como representação da

maldade. Usando comparativos semânticos de caráter semelhantes e opostos,

percebemos que o [v'r' adquire, com o tempo, características de uma função social

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rejeitada na comunidade do pós-exílio. Identificar este malfeitor dentro do contexto

social e religioso desta comunidade é nosso objetivo neste capítulo.

Por fim, as conclusões gerais de nosso estudo retomam os planos formulados no início

desta introdução. Ensaiando possíveis respostas e formulando novas interrogações.

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24

1: ANÁLISE LITERÁRIA E TEOLÓGICA DO [v'r'

NOS SALMOS DE LAMENTAÇÃO.

A prática comum em uma dissertação que se destina a conhecer elementos textuais

expressos na literatura bíblica é começar a pesquisa com o estudo exegético, para

posteriormente desenvolver as relações formais deste texto. No entanto, não seria

possível iniciar nossa dissertação nestes moldes, pois o leitor certamente sentiria falta de

alguns pressupostos. Localizar nosso objeto de estudo é o objetivo geral deste capítulo.

Com a intenção de situar melhor o leitor, faremos primeiramente, uma breve introdução

ao livro dos Salmos, com as informações básicas sobre sua composição e as camadas

literárias contidas no saltério, bem como, sua classificação e organização.

Em seguida, faremos a análise literária e teológica dos Salmos de lamentação, com o

objetivo de localizar e entender o contexto histórico e social de tais salmos, no período

pós-exílio, principalmente os que se relacionam com a contraposição entre ~y[iv'r>

malfeitores e ~yqIåyDIc; justos. Para isto, torna-se necessário realizar um levantamento

histórico, mesmo que, de maneira enxuta, da religião de Israel e dos desenvolvimentos

políticos e sociais durante o período persa.

A partir de então, destacaremos nos Salmos de lamentação as consequências históricas e

teológicas presentes no desenvolvimento cultural e social do povo bíblico. Neste ponto,

surge uma questão: que fatores proporcionaram e influenciaram a introdução da

terminologia [v'r' como identificação do inimigo do salmista e por que ele é tão

frequente?

A importância da palavra [v'r' nos textos bíblicos, está atestada pela frequência com que

ela se repete. São 343 citações em todo o Antigo Testamento, das quais, 92 ocorrem no

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25

livro dos Salmos11

. No entanto, nos Salmos de lamentação é que se acentua a imagem

degenerativa do termo, pois invariavelmente o [v'r', na linguagem do orante, está

acompanhado por um campo semântico12

variado como: !w<a' ÷ª, maldade; @a ;, ira; sm'Þx',

violência; hm'r>mi, engano; llx, profanar; anEf', odiar; h['r', perversidade e @rx,

escarnecer, que acentua ainda mais a má conduta e o desvio moral deste agressor.

Estas considerações são importantes e nos ajudarão no desenvolvimento de

pressupostos para a análise exegética do Salmo 55, que será abordada com maiores

detalhes no segundo capítulo.

1.1. Breve introdução ao livro dos Salmos

O cânon da Bíblia Hebraica está dividido em três seções maiores denominadas tanak,

que na verdade é a sigla representada pelas letras iniciais de cada uma destas divisões:

a) torah - Instrução; b) nevi’im - Profetas; c) ketuvim – Escritos13

. A torah, que nas

Bíblias cristãs é conhecida como Pentateuco, compreende os cinco primeiros livros do

Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes são

considerados o conjunto de instruções dadas por Deus ao seu povo14

.

Os Profetas, nevi’im, subdividem-se em duas partes: a) Profetas Anteriores, que

compreendem: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e b) Profetas Posteriores: Isaías,

Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque,

Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

Na terceira parte do cânon, os Escritos, ketuvim, englobam: Salmos, Jó, Provérbios,

Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias,

11

[v'r'. raxa‘ “Ser malvado/culpado”, cf. LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN,

Claus. Diccionario Teologico Manual Del Antiguo Testamento, Volume II. Madrid: Edicciones

Cristandad, 1985. p. 1022-1023 12

O campo semântico do [v'r' e do qIåyDIc; será abordado com maiores detalhes no 3º capítulo desta

dissertação. 13

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao Texto Massorético, guia

introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 513, 524, 529,

532. 14

SILVA, Valmor da. Os Salmos como literatura. Ribla, 45, Petrópolis: Vozes, p.9-23, 2003

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26

1 e 2 Crônicas. O livro dos Salmos, juntamente com Jó e Provérbios, forma o trio de

abertura desta terceira seção da Bíblia Hebraica.

A presença do livro de Salmos depois da Torá e dos Profetas, na Bíblia Hebraica,

mostra uma continuidade no pensamento judaico. Enquanto a Torá é a instrução dada

por Deus e os Profetas orientam o povo a não se desviarem desta instrução, os Salmos

são orações e cânticos litúrgicos que reforçam a fé, o desejo e a esperança15

neste

caminho de que não se pode desviar.

Devemos, no entanto, considerar que os Salmos são uma síntese de toda a Bíblia. Neles,

a história da salvação, da natureza, dos sentimentos, da esperança, dos sofrimentos, é

transformada em oração, que sintetiza a vida individual e coletiva do povo de Israel.

Na Bíblia Hebraica, o livro de Salmos recebe o título de ~yLihiT. (tehilim), o qual

podemos traduzir como cânticos de louvores, adoração ou hinos. Há também outras

designações para o livro dos Salmos que são encontradas na literatura patrística: ~yLihiT.

rp,se (sefer tehilim) livro de louvores; ~yLiiTi ; !yLiiTi ou !yLiiTi rp,se .

Na verdade o título preferido é ~yLihiT., cujo nome deriva de uma formação

característica, plural masculina, de hL'hiT. que é o termo técnico para um grupo de

salmos destinados aos cânticos de louvores. Embora sua forma plural usual é o feminino

tALhiT., nome dado à um grupo específico de Salmos16

, usa-se o ~yLihiT. como um

nome exclusivo para a coleção de cânticos dos 150 Salmos.

A designação “Salmos” ocorre em citações encontradas no Novo Testamento yalmw/n

(Lc. 20.42; 24.44; At 1.20) e remonta à versão grega do Antigo Testamento, a

septuagita (LXX), que foi feita à partir do século III a.C. na diáspora judaica de

Alexandria17

. O termo yalmw/n provavelmente provém do hebraico rAmz>mi mizmor, que

15

Ver em: FREITAS FARIA, Jacir de. “Esperança dos pobres nos Salmos”. Ribla, 39, Petrópolis: Vozes,

2001, p.61-73. 16

KRAUS, Hans-Joachin. Los Salmos. Salmos 1-59. Vol. 1. Trad. Constantino Ruiz-Garrido. Salamanca:

Ediciones Sigueme, 1993, p. 13, 37 e 63 17

WEISER, Arthur. Os Salmos. Trad. Edwino A. Royer, João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994,

p.10

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27

significa um cântico para instrumentos de cordas.18

Esta terminologia aparece 57 vezes

no livro dos Salmos, como título individual. Na tradição cristã tal frequência contribuiu

para que este título se convertesse por extensão, no nome de todo o livro.

Outro nome pelo qual é conhecido o livro dos Salmos é saltério, um termo de origem

grega yalth,rion do Códex Alexandrinus, que também se refere a instrumentos de

cordas que acompanhavam os cânticos litúrgicos.19

1.1.1. Divisões do saltério

O saltério está dividido em cinco partes20

. Estas divisões são chamadas de “livros”. São

compilações de canções, orações e poemas para uso litúrgico, que chegaram a nós

delimitados pelo trabalho editorial ao qual foram submetidos21

.

Hans-Joachin Kraus propõe um quadro que oferece a visão do conjunto destes cinco

livros com suas divisões. No final de cada um deles, estão expressas, fórmulas

doxológicas22

, que marcam os limites de cada livro.

Livro I (Sl 1 - 41) com sua forma final: Bendito seja o Javé, Deus de Israel de século

em século. Amém e Amém (Sl 41.14)

Livro II (Sl 42 - 72). Bendito seja para sempre o seu nome glorioso; e encha-se toda a

terra da sua glória. Amém e Amém. (Sl 72.19)

Livro III (Sl 73 - 89). Bendito seja Javé para sempre. Amém, e Amém. (Sl 89.53)

18

rAmz>mi n.[m.] (Melodia tecnicamente desenvolvida para os Salmos) Cf. BROWN, Francis, DRIVER,

Samuel Rolles, BRIGGS, Charles Augustus. BDB – A Hebrew and English Lexicon of the Old

Testament. Boston, New York and Chicago: Houghton, Mifflin and Company the Riverside Press, 1906,

p.274.; (t.t. Salmos) Cf. KIRST, Nelson, et.al. Dicionário Hebraico-português & Aramaico-português.

18º Ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/vozes, 2004, p.121. 19

KRAUS, Los Salmos, p. 14 20

Cf. BALLARINI, Teodorico e Venanzio Reali. A poética hebraica e os Salmos. Petrópolis: Editora

vozes, 1985, p. 41-42. SIQUEIRA, Tércio Machado. Hinos do povo de Deus. Série Em Marcha, São

Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1990, p.23 21

WEISER, Os Salmos, p. 10-11. 22

KRAUS, Los Salmos, p. 21-22

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28

Livro IV (Sl 90 – 106). Bendito seja Javé Deus de Israel, de eternidade em eternidade,

e todo o povo diga: Amém. Aleluia! (Sl 106.48)

Livro V (Sl 107 – 150). Tudo quanto tem fôlego louve a Javé. Aleluia! (Sl 150.6)

Se compararmos estas fórmulas, veremos que o Salmo 150 está fora do escopo das

outras doxologias, não correspondendo às fórmulas finais dos Salmos 41.14; 72.19;

89.53; 106.48. Weiser23

e Gunkel24

, argumentam que no último livro, todo o Salmo 150

tem a função de doxologia final. Para Gerstenberger25

, os redatores finais podem ter

adicionado os Salmos 1-2 e 150, como Salmos introdutórios e finais, funcionando como

uma espécie de moldura para o saltério.

De qualquer forma, a explicação para este problema está na ideia de se criar nos

Salmos, uma espécie de compilação de livros. A divisão do saltério em cinco livros é a

tentativa de se fazer, no processo de canonização, algo semelhante ao Pentateuco.

Obviamente, esta afirmação se refere à divisão formal e ao processo técnico de

canonização dos Salmos. Para a construção de uma analogia substancial entre o

Pentateuco e o saltério, os resultados exigem uma série de correspondências mais

complexas.26

1.1.2. Coleções do saltério

De fato, existem diversas coleções de salmos presente no saltério que pertencem a

épocas distintas. Erhard S. Gerstenberger defende que durante a história da religião

israelita, estas coleções foram compiladas e rearranjadas, produzindo ao longo de

séculos construções diferentes do saltério, conforme explica o quadro a seguir.27

23

WEISER, Os Salmos, p.11 24

GUNKEL, Hermann. Introduction to Psalms: The Genres of the Religious Lyric of Israel. Trad. James

D. Nogalski. Macon, Georgia: Mercer University Press, 1998, p. 334 25

GERSTENBERGER, S. Erhard. Psalms Part I: With an Introduction to Cultic Poetry. FOTL 14.

Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p 30. 26

WEISER, Os Salmos, p. 10-15 e KRAUS, Los Salmos, p. 23 27

GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 29

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29

Pré-Exílio Antigo Pré-Exílio Tardio Exílio Pós-Exílio

Salmos e liturgias

individuais;

pequenas e

indistinguíveis

coleções para uso

litúrgico

Sl 42-29: Coleção

Coraíta

Sl 3-42: Coleção

Davídica

Sl 1-2: Moldura

Sl 78-86: Coleção

de Asafe

Sl 42-83: Coleção

Eloísta

Sl 3-41: Livro I

Sl 96-99:

Entronização de

Javé

Sl 51-62: Coleção

Davídica

Sl 42-72: Livro II

Sl 111-118: Salmos

de Aleluia

Sl 108-110:

Coleção Davídica

Sl 73-89: Livro III

Sl 120-134: Salmos

de Subida

Sl 138 - 145:

Coleção Davídica

Sl 90-106: Livro IV

Sl 107-149: Livro V

Sl 150: Moldura

Entre as compilações parciais que encontramos temos o Saltério eloísta, onde

predomina o nome divino ~yhiªl{a / ’elohim, que ocupa lugar de destaque dentro da

coleção principal do saltério. O saltério eloísta é formado pelo grupo dos salmos

estabelecidos nos livros II e III (Sl 42-89) onde estão localizadas as coleções “Salmos

dos filhos de Coré xr:qo)-ynEb.li (42-49) e Salmos de Asafe @s"ïa'ñl. rAmªz>mi (73-83). A

coleção xr:qo)-ynEb.li aparece como apêndice nos salmos 84-89, estabelecendo assim, os

limites da divisão eloísta.

As compilações formadas pelos outros livros do saltério são destinadas à Coleção

javista, estruturada pelos Salmos do Livro I e pelo grupo de salmos que abrangem os

Livros IV e V, se subdividindo em agrupamentos como: Salmos para Davi, Coleções

de hinos de louvor a Javé, Salmos de aleluia e hinos com epígrafes salomônicos.

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30

1.2. Camadas literárias do Saltério

Como vimos, a gênese do saltério se deu de forma lenta, a partir do agrupamento de

textos litúrgicos que constituíam peças autônomas para vários ritos coletivos. Ao longo

da história de sua transmissão, grupos de textos foram ajuntados, mas continuavam sua

aplicação individual em determinados contextos ou cerimônias.

Em sua forma textual, os Salmos podem ser vistos como peças literárias que se

acomodam em três itens:28

a classificação por tipos ou gêneros, a linguagem poética e o

poema individual. As atribuições nominais e referências a eventos históricos, que nos

permitem reconhecer o texto em sua estrutura poética, são perceptíveis. Schökel29

considera que a maioria dos Salmos seja de cunho litúrgico musical, enquanto que, a

súplica individual, pode originar gêneros e subgêneros diferenciados.

O Saltério com seus poemas tão variados suscitou indagações sobre o uso e função de

tais textos em determinados momentos e cerimônias. A pergunta pelo Sitz im Leben

(lugar na vida) de tais poemas, se tornou o ponto mais importante da pesquisa que

buscava responder estas perguntas. Na tentativa de entender os lugares ou situações

vivenciais destes poemas tão variados, surge a “Crítica da Forma”.

O método desenvolvido por Hermann Gunkel e Sigmund Mowinckel, considera os

salmos divididos por gêneros30

, dos quais se destacam: a) Lamentação, que incluem

queixas e ações de graças, constituindo o maior grupo de salmos; b) Cânticos de

vitória, embora pouco representado no saltério, é um gênero hínico relacionado aos clãs

e tribos em Israel, ( veja em Sl 68; 124; 129)31

; c) Salmos de louvor, canções de

agradecimento a Deus pela colheita e pela salvação em épocas de seca, fome, epidemias

e inundações; d) Salmos reais, textos usados nos cultos da comunidade com certa

glorificação nostálgica e expectativas messiânicas do retorno ao reinado davídico; e)

28

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72. Tradução de João Rezende Costa.

São Paulo: Paulus, 1996, p 81-82 29

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 82 30

GUNKEL, p.1-21 31

GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 10

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31

Discurso de sabedoria, que marcam as comunidades oriundas do pós-exílio, com um

sistema simbólico de fé centrado nos costumes e comportamentos religiosos e no saber

guardar as orientações da torah.32

Claus Westermann toma como ponto de partida o tema da compilação do saltério e

sugere uma classificação mais simples: os Lamentos, com seu Sitz im Leben e os

Salmos de louvor, conhecidos como . O autor observa que, das compilações

estabelecidas segundo as perspectivas de diversos grupos, os Lamentos e os Salmos de

louvor são os gêneros33

que aparecem com maior frequência no saltério, formando

assim, dois grandes grupos de poemas. Além de considerar os Salmos numa perspectiva

literária, Westermann os considerava também na perspectiva religiosa.

O lamento é o gênero mais frequente no Saltério, ocupando 58 composições em estilo

individual ou comunitário. Por sua característica litúrgica e seu volume de ocorrências,

a lamentação tornou-se tema de grande importância para pesquisadores. Grande parte da

literatura que visa o estudo do lamento concentra-se no estudo dos gêneros literários do

Saltério, que tem sua origem na Crítica da Forma.

1.2.1. Os métodos de pesquisa

a) A Crítica da forma

Com sua classificação dos Salmos, Gunkel foi capaz de superar o positivismo histórico

e literário de seu tempo34

, pois, enquanto teólogos e exegetas se preocupavam em

determinar um autor ou poeta específico para cada Salmo, a Crítica da Forma voltava

seus olhos para o lugar vivencial dos Salmos de lamentação35

. A despeito de sua

autoria, constatava que estes Salmos nasciam de um ambiente marcado pelas

32

Dentre os gêneros desenvolvidos por Hermann Gunkel, Erhard S. Gerstenberger destaca estes cinco

como principais. Cf. GERSTENBERGER, Erhard S. Gênese do Saltério. Revista Caminhos. Goiânia:

Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião PUC Goiás. v8, n1, p.11-28, Jan.-Jun. 2010. Outra

referência também pode ser encontrada em: KIDNER, Derek. Salmos 1-72. Introdução e comentário.

Trad. Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida nova, 1980, p.19. 33

WESTERMANN, Claus. Praise and lament in the Psalms. Edinburgh: T&T Clarck, 1981, p. 15-35 34

Cf. COETZEE, J. H. “A survey of research on the Psalms of lamentation”. Old Testament Essays.

Pretória: OTSSA, v.5, n.2, p. 151-174, 1992, p.156. 35

GUNKEL, Hermann. The Psalms. A Form-Critical Introduction. Philadelphia: Fortress Press, 1967,

p.54

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32

desigualdades e injustiças. O sofrimento do salmista tem sua origem nestes temas. Esta

é a principal característica deste tipo de literatura.

Neste método, a vida sociocultural é o ponto mais importante da pesquisa. Ao observar

os fenômenos linguísticos, temáticos e emocionais das funções sociais que ocupam a

vida cotidiana, o pesquisador se aproxima da dimensão social que implica o fenômeno

religioso.

Para Gunkel o cenário histórico dos Salmos deveria ser pesquisado na vida cúltica36

da

comunidade, tendo em vista suas formas literárias, seu modo de vida e seu sentimento

religioso.

Embora a Crítica da Forma não seja a única perspectiva de leitura dos Salmos, o estudo

dos gêneros literários do saltério é dominante. Ergue-se como divisor de águas,

tornando-se base para trabalhos posteriores. A Crítica da Forma abriu caminho para

novas pesquisas e abordagens de aprofundamento na análise dos Salmos,

principalmente na lamentação.

b) Estudos críticos literários

A interpretação dos Salmos, observados a partir do cenário cúltico da comunidade de

Israel, dominou as principais escolas de pensamento das décadas de 50 e 60, tendo

como expoentes três pesquisadores: Sigmund Mowinckel, Arthur Weiser e Hans-

Joachim Kraus37

.

Discípulo de Gunkel, Mowinckel se tornou o principal precursor do estudo do Sitz im

Leben, aprofundando a ideia de que o indivíduo deve ser observado dentro de um todo

comunitário e ideológico. Os elementos cultuais eram a fonte de pesquisa para o

36

GUNKEL, Hermann and Joachim Begrich. Introduction to Psalms. The Genres of the Religious Lyric

of Israel. Translated by James D. Nogalski. Macon, Georgia: Mercer University Press, 1998, p. 318 37

Há ainda outros expoentes desta escola (Escola Escandinava). São aqueles que veem os Salmos de

lamentação como orações reais, onde o rei é representante de Deus ou da nação. Cf. COETZEE, p.156-

157.

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33

significado do sofrimento na vida do indivíduo e da comunidade. Mowinckel entendia

que os indivíduos não produzem a comunidade, mas são produzidos por ela38

.

Arthur Weiser dá um passo à frente e conclui que, somente o método das formas, não é

suficiente para explicar a natureza da poesia dos Salmos do Antigo Testamento. Para o

autor, o estudo das tradições e do culto é mais promissor, pois tem a possibilidade de

agregar, além da história das formas, a história das tradições que se manifestam nos

Salmos. Deste modo, torna-se possível obter uma imagem mais clara e mais objetiva

das relações externas e internas que se desenvolviam na sociedade39

.

Devido à importância dos estudos da cultura e literatura do Antigo Oriente Médio, para

a linguagem de lamentação em Israel, houve um impulso na descoberta de novos estilos

retóricos, estruturais e literários na pesquisa dos Salmos. Os estudos críticos-literários

começaram a ganhar espaço na pesquisa dos Salmos, contrapondo-se às análises da

Crítica da Forma. Neste novo modelo crítico, as representações ficam por conta das

pesquisas que trabalham estas novas perspectivas da poesia hebraica.

Um dos expoentes deste novo período das pesquisas modernas é Hans-Joachim Kraus.

Suas obras marcam o início da “teologia do lamento”. Questionando o uso do termo Sitz

im Leben, por entender que seu significado serve apenas para descobrir o lugar cúltico

dos salmos, Kraus expande seus trabalhos, buscando compreender o desenvolvimento

dos salmos, fazendo a junção entre a Crítica da Forma e os agrupamentos temáticos do

saltério.

Considerando os temas como “cânticos de oração, cânticos de louvor, cânticos reais,

ação de graças, festividades”40

, o autor busca sentido nos estudos que pretendem

considerar a pessoa e a atividade de Deus em relação aos seres humanos. Kraus aposta

na prudente correlação entre a configuração literária e formal dos Salmos e a situação

do culto, que possivelmente se faz adjacente.

38

MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israel's Worship. Nashville: Abingdon Press, 1962, p.13-15 39

WEISER, Os Salmos, 1994. p. 12-13 40

KRAUS, Los Salmos. 1993, p.61

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34

c) Novos caminhos

O declínio do estudo do Sitz im Leben, de forma exclusiva para um ambiente cultual,

fez com que estudiosos do tema, revitalizassem suas pesquisas a fim de compreenderem

melhor o lugar em que os Salmos de lamentação estão vinculados.

A busca pela definição de um lugar vivencial mais concreto forçou os estudiosos a

caminharem na direção da seguinte hipótese: o suplicante estaria aguardando uma

decisão formal de uma jurisprudência local diante de seu problema e sofrimento. Esta

jurisprudência estaria associada à liturgia do culto que pedia a direção e veredicto pelo

sofredor a partir da consulta e intervenção direta de Deus.41

Gerstenberger verifica que o lugar vivencial dos Salmos individuais pertence aos ritos

privados, orientados para o templo, nos quais a canção de lamento do suplicante

representava o clímax desta liturgia42

. Para o autor, os Salmos de lamentação individual

seriam usados em rituais de exorcismos e curas, por profissionais do templo.

Tércio Machado Siqueira observa que os caminhos abertos por Gunkel foram

posteriormente ampliados e pavimentados por Gerstenberger. O avanço nas

investigações trouxe importantes contribuições para a compreensão da lamentação

como parte da cultura do povo hebreu. Originalmente, os Salmos de lamentação são

provenientes dos grupos primitivos da sociedade israelita43

e refletem situações de grave

perigo que trouxeram dores e sofrimentos no contexto familiar. O estudo de

Gerstenberger tem como foco as comunidades que estavam por trás dos Salmos de

lamentação.

A partir destas considerações é possível traçar um avanço na prática da lamentação no

Antigo Israel. Certamente ela começa no âmbito da religiosidade familiar, transpondo-

se para dentro das estruturas cúlticas. Com o passar dos anos, principalmente com o

evento da destruição do Templo na época do exílio, os lamentos adquirem

características de produção individual. Depois, especialmente no pós-exílio, onde a

41

COETZEE, 1992, p. 161 42

GERSTENBERGER, Gênese do Saltério. 2010, p.23. 43

SIQUEIRA, Tércio Machado. El Lamento. RIBLA. Quito, n. 52, p. 23-30, 2005, p. 24.

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35

sacralidade das escrituras absorve a sacralidade da palavra proferida44

, a lamentação se

ajusta a um tipo de penitência no culto padrão de Israel.

1.3. Os Salmos de Lamentação

A lamentação, que pode ser de caráter comunitário ou individual, “integra como

componente essencial o processo da libertação do julgo egípcio e de outros casos

semelhantes”45

, os gritos dos oprimidos, são clamores que consequentemente procedem

à salvação, e portanto, fazem deste gênero, ponto importante na Teologia do Antigo

Testamento.

No Saltério, a lamentação é o gênero que está representado em maior número,

compondo quase um terço dos Salmos reconhecidos pelo cânon bíblico. Há também

muitos paralelos fora do Antigo Testamento, especialmente na literatura babilônica46

.

Claus Westermann, em seu artigo, começa criticando a falta de ênfase que se dá ao

lamento em estudos do Antigo Testamento. Apesar dos trabalhos realizados por bons

pesquisadores como Gerhard Von Rad e Walter Zimmerli, o autor considera que,

mesmo que os eventos narrativos sobre a libertação do Egito sejam fundamentais para a

Teologia do Antigo Testamento, é preciso estabelecer o lugar do lamento na literatura

bíblica:

O Antigo Testamento não pode fixar Deus em uma única soteriologia;

só é possível falar de atos salvadores de Deus, dentro de uma série de

eventos que envolvem necessariamente, algum tipo de troca verbal

entre Deus e o homem. Este último inclui tanto o grito do homem em

perigo, como a resposta de louvor que os salvos fazem a Deus.47

A causa principal para a pouca atenção que se dava à Teologia do Lamento, é

identificada por Westermann como certo preconceito ocidental que contrasta com a

soteriologia das Escrituras.

44

Cf. ALBERTZ, Rainer. História de la Religión de Israel em tempos del Antiguo Testamento. vol. 2.

Desde el Exilio hasta la época de los Macabeos. Trad. Dionisio Míguez. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p.

474-477. 45

WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 144 46

WEISER, Os Salmos,1994, p. 43. 47

WESTERMANN, Claus. “The Role of Lament in the Old Testament”. University of Heidelberg:

Interpretation, n. 28. p. 20-38. 1974, p. 20.

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36

a) Características e conteúdo

A diferença entre lamentação fúnebre e queixa nascida de tribulação, parecem idênticos

nos idiomas modernos, mas são fenômenos distintos na antiguidade. Enquanto a elegia

funerária tem os olhos voltados para trás, a lamentação do atribulado olha para frente,

para a sobrevivência, para o término do sofrimento.

Assim como o sofrimento é parte da vida do ser humano desde sua origem, a

lamentação é a reação mais apropriada da pessoa que sofre. Em sua forma mais

primitiva, a queixa acontecia no ambiente familiar e só mais tarde, transformou-se no

principal recurso litúrgico do culto.

Do ponto de vista do sujeito dos Salmos de lamentação temos duas classes, que

associadas a outros gêneros como as intercessões pelo rei e as ações de graças,

compõem as lamentações coletivas e lamentações individuais. Estas classes

compreendem os seguintes Salmos: 3-7; 9-14; 17; 22; 25-28; 31; 35-36; 38; 40-44; 51;

54-57; 59-61; 64; 69-71; 74; 79-80; 83; 85-86; 88-89; 94; 102; 108-109; 120; 123; 130;

137; 140-14348

.

Na estrutura formativa, tanto das lamentações coletivas, quanto das lamentações

individuais, temos a seguinte composição: invocação, lamento, súplica (geralmente com

confissão de pecados ou afirmação de inocência), afirmação de fé, apelo, maldição

contra inimigos, reconhecimento da resposta divina, voto ou promessa, bênçãos e ação

de graças.49

A sequência destes elementos não atende a um padrão estrutural e também

não são usadas da mesma forma, variam de acordo com as múltiplas aflições que

constituem o conteúdo das lamentações.

As lamentações revelam uma característica multifacetária da vida pública e particular.

Dentre os muitos motivos de cunho material e espiritual, seus principais motivos são:

calamidades gerais como má colheita, epidemias, guerras, fome, inimigos, ou aflições

48

Somam-se 58 Salmos tendo como base os levantamentos realizados por Hermann Gunkel, que

posteriormente foram ampliados por Artur Weiser e Erhard S. Gerstenberger. Cf. GUNKEL, Introduction

to Psalms, p. 82-83 e 121; WEISER, Os Salmos, p. 43-44; GERSTENBERGER, Psalms Part I e Part II. 49

Cf. GERSTENBERGER, Psalms Part I, p. 12

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37

suportadas pelo indivíduo como doença, perseguição, zombaria, dúvidas ou peso pelo

pecado.

Westermann argumenta que, “os Salmos lamentosos, enquanto variadíssimos, ostentam

um esquema constante e sempre repetido: Súplica introdutória, queixa, afirmação de fé,

súplica e ação de graças”50

. Esta estrutura revela em sua dinâmica o verdadeiro sentido

do lamento. Não interessa ao Salmista a simples reclamação de seu sofrimento. Antes

de ser uma descrição egocêntrica que se esgotaria na queixa, o Salmista amplia sua

súplica, direcionando-a para aquele que poderá alterar sua condição.

A uniformidade das frases, usadas em paralelismos e muitas vezes com repetições

cansativas, apesar de testemunharem de forma poética os dramas da vida, certamente

revela o uso constante das lamentações no culto. Aqui, o comunitário prevalece sobre o

individual e a lamentação assume dupla finalidade, é ao mesmo tempo oração e

testemunho. Enquanto a primeira se dirige à Deus, a segunda se volta para a

comunidade.

b) Lamentação individual

A lamentação composta pela queixa individual constitui a categoria de cânticos usada

com maior extensão nos saltério. Adotando a classificação de Gunkel e J. Begrich,

Gerstenberger destaca os seguintes Salmos com leves modificações: 3-7; 11-12; 13; 17;

22; 26-28; 31; 35; 38-39; 42-43; 51; 54-57; 59; 61; 63-70; 71; 86; 88; 102; 109; 120;

130; 140-143.51

Segundo Gunkel, o indivíduo que lamenta é um personagem concreto52

. Gerstenberger,

porém, com base em investigações posteriores, destaca que é cada vez mais claro que

nestes cânticos, não há sinais de isolamento, mas o orante participa na linguagem de

oração da comunidade.

Tanto a vida pessoal quanto a vida comunitária, devem ser discernidas nitidamente nas

lamentações, pois revelam a autenticidade das expressões humanas. O orante ao

expressar seu lamento, o faz diante dos temores de perigo que ameaçam sua vida, sua

50

WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas. 1987, p. 146 51

GERSTENBERGER, Psalms Part. 1, p.14 52

GUNKEL, Introduction to Psalms, p. 122-123

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38

relação com Deus e com a comunidade, sem os quais ele não pode subsistir. Os mesmos

aspectos antropológicos acontecem nas esferas dos conhecimentos teológicos,

psicológicos e sociológicos expressos no Antigo Testamento.

c) Lamentação comunitária

O ritual da Lamentação comunitária destaca-se um pouco mais no contexto narrativo e

profético do Antigo Testamento. Com sérios perigos eminentes como seca, doenças,

pragas e invasões, além de dias especiais para jejum, luto, sacrifícios e orações, as

Lamentações coletivas53

tornam-se um chamado especial para o culto no santuário, (cf.

Js 7.6; Jz 20.23-26; 1Sm 7.6; 1Rs 8.33).

Nos Salmos 74 e 79, onde o objeto da lamentação do povo é a destruição e a profanação

do templo por inimigos gentios, nota-se este tipo especial de culto de lamentação. A

Festa da Aliança, onde celebrava-se a renovação dos atos salvíficos de Javé, oferecia

exatamente em tempo de tribulação o contexto para a lamentação coletiva, com seu

protesto de fidelidade (Sl. 44.9-21; 80.19)54

.

O livro de Salmos mostra diferentes estilos do gênero lamentação, como poemas

revelando tristeza pela velhice, idade avançada, agressão de pessoas malvadas, entre

outros motivos. Assim, o lamento deixou de ser uma simples reclamação ou um

murmúrio, para ser um lamento acompanhado de esperança na ação libertadora de Javé.

Não há lamento, nos salmos bíblicos, que a afirmação de fé não esteja presente55

.

1.3.1. Consequências históricas e teológicas

A lamentação tornou-se o elemento mais importante no culto no período do exílio e

pós-exílio. O esforço das comunidades para conseguir adequada perspectiva teológica

diante da catástrofe política ocorrida em 587 a.C. refletia-se na celebração litúrgica de

lamentação.

53

GUNKEL, Introduction to Psalms, p. 82-83 54

WEISER, Os Salmos, p. 45 55

SIQUEIRA, Tércio Machado. Culto nos períodos exílico e pós-exílico. Estudos Bíblicos.

http://alemdameraletra.blogspot.com.br/. Acesso em 07/07/2016.

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39

Tudo faz crer que a intensificação do lamento, no culto, deu-se a partir das lembranças

dos episódios mais salientes que culminaram na grande catástrofe nacional: o início do

assédio, no décimo mês; a abertura da primeira brecha na muralha, no quarto mês; a

destruição do Templo e do palácio, no quinto mês; e o assassinato de Godolias, no

sétimo mês.

Estas celebrações eram realizadas anualmente com a liturgia do jejum (Zc 7,2-4; 8,18-

19). 56

Influenciado por estas celebrações, a forma litúrgica ocasional, de lamentação,

que no período pré-exílio estava desvinculada do Templo, foi se agregando à prática do

culto e tornando-se um elemento importante nele.

A ausência dos setores da monarquia que supervisionavam as celebrações proporcionou

maior abertura na prática do culto, convertendo-o numa espécie de foro público, onde os

diferentes grupos podiam expressar suas próprias concepções teológicas. Este fato está

presente na diversidade de gêneros que a própria liturgia de lamentação fez proliferar

como a elegia espontânea em seu desenvolvimento e estilo próprios. Além das

lamentações coletivas e individuais, como já citamos anteriormente.

O espaço litúrgico transformou-se no melhor lugar para o esclarecimento teológico, na

tentativa de encontrar explicações para a dura realidade em que viviam os exilados.

Diante da situação de crise política, as ruínas do templo foram o local onde se

intensificou a popularidade da prática do lamento. Segundo o Historiador

Deuteronomista, o queixoso deveria orar voltado para Jerusalém. Sua oração significava

entrar em contato com o santuário destruído (1Rs 8,45-51).

A aceitação da dura realidade em que viviam as comunidades de exilados tinha como

respaldo, o fato de que a catástrofe não foi provocada por um golpe do destino, ou

mesmo, pelo poder do império babilônico. Javé surge como responsável por esta

situação desesperada, como ato de castigo para com Sião e Jerusalém, que apresentavam

uma estrutura teológica falaz e vazia57

.

56

ALBERTZ, Historia de la Religión, p. 470-474. 57

ALBERTZ, Historia de la Religión, p. 476.

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40

Consequentemente, a visão teológica do poeta leva o povo a reconhecer e confessar a

culpabilidade coletiva do juízo divino. Não é Javé o culpado pela catástrofe e sim a

própria comunidade, personificada pela cidade. Mas em sua experiência pessoal o

salmista entende que Javé não aflige para sempre o justo, por isso é bom e proveitoso

exercitar-se na humilde confiança em Javé, para alcançar um ilimitado horizonte de

esperança, (Sl. 25; 51; 59; 69; 102; 130).

No contexto do período pós-exílio, a lamentação teve importante papel no

desdobramento e na vivacidade da reflexão teológica. Mesmo diante de um sistema

heterogênico, se chegou a uma teologização da religiosidade pessoal, com suas

consequentes diferenças.

O Javismo oficial, que na época do exílio havia se desdobrado em múltiplas tradições

rivais, se desenvolveu, no pós-exílio, em dois movimentos opostos: um de integração,

que intencionava preservar a identidade religiosa e o fundamento jurídico da

comunidade, orientados pela torah, e o outro de desintegração, que a partir do

profetismo desenvolveu o papel de teologia de oposição, voltando suas atividades para

as classes sociais marginalizadas.

Enquanto a classe alta, que desde o período monárquico havia orientado sua conduta no

sentido das máximas sapienciais, desenvolveu uma espécie de religiosidade pessoal

condicionada na piedade e solidariedade, a classe baixa dirigia-se para expressões de

uma religiosidade explicitamente pobre58

, fundamentada nos hinos de lamentação e

ação de graças. Seus representantes fizeram valer todo o potencial da esperança

escatológica que selava sua relação pessoal com Deus, para opor-se à opressão de

classes dirigentes, designadas como malfeitores (cf. Sl. 9; 12; 22 e outros).

No saltério, Javé é claramente o guardião e promotor da vida, ao passo que a morte é o

constante desafio para o salmista (Sl. 39; 88;139). No entanto, a vida não tem sentido se

58

RUIZ, Eleuterio Ramón. Los Pobres Tomarán Posesión de la Tierra: El Salmo 37 y su orientación

escatológica. Navarra: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 257.

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41

não houver justiça. Na verdade, rv;y "59 equidade e ds,x, solidariedade60

são palavras-

chave teológicas muito importantes no culto de Israel. Ainda assim, o saltério, pela

grandeza de suas dimensões teológicas, não poderá ser enquadrado dentro de um molde.

Qualquer esforço de sistematizá-lo ficará aquém de seu real sentido. Mesmo assim, ele

continuará inspirando nossa vida de fé, em diferentes épocas, assim como tem feito há

séculos.

1.3.2. Desenvolvimento sociocultural

No olhar atento para o estudo dos Salmos, percebe-se com facilidade a dimensão social

presente no fenômeno religioso. As relações interpessoais, alimentadas pela ideia de um

deus de justiça, ajudaram na valorização da temática do pobre e do sofredor61

. A grande

discussão sobre o tema, especialmente em torno dos vocábulos ynI[' oprimido, !Ay=b.a,

necessitado, lD ; fraco e vwr pobre, influenciou boa parte dos estudos dirigidos aos

Salmos de lamentação.

Estes termos revelam certo conceito estabelecido nos textos bíblicos que designam uma

posição social definida. Seu contraponto está na tensão constante entre os pobres

oprimidos e os ricos opressores. Para Milton Schwantes “a pobreza é, portanto,

caracterizada por experiência e conduta, que suscita o direito a ser reivindicado”62

, neste

sentido, a tradição bíblica, principalmente os textos litúrgicos, entende o pobre como

alguém que exige sua parcela na sociedade.

A relação entre oprimido e opressor se desdobra dentro dos Salmos produzindo a tensão

social com maior frequência dentro das lamentações. São os ~y[iv'r> malfeitores versus

59

rv;y" vb. ser brando, em linha reta, certo. Cf. BROWN, Francis; DRIVER, Samuel Rolles; BRIGGS,

Charles Augustus. BDB, p. 448 60

Sobre o ds,x como conceito chave para a solidariedade, ver: KONINGS, Johan. “Solidariedade e paz”.

Convergência. Revista mensal da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB, Ano XL, nº 380. Rio de

Janeiro: Letra Capital Editora, 2005, p. 79-83. 61

Cf. FISCHER, S. Der Alttestamentliche Begriff der Gerechtigkeit in seinem geschichtlichen und

theologischen Wandel, in: H. Seubert / J. Thiessen (Hgg.), Die Königsherrschaft Jahwes (FS H. Klement;

Studien zu Theologie und Bibel 13), Wien, 61-74. Disponível em:

https://www.bibelwissenschaft.de/stichwort/19316/ 62

SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Leopoldo: Oikos; São Bernardo do Campos: Editeo,

2013, p.106

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42

os ~yqIåyDIc; justos, que assumem esta tensão, dando conta de repetidas queixas onde o

Justo está em estreita relação com o necessitado, enquanto o [v'r' malfeitor é

caracterizado como o rico opressor.

Esta dialética peculiar da divisão social, tão presente nas lamentações e que se observa

na história da religião do Israel pós-exílico, tem relacionamento direto com os

acontecimentos políticos e histórico-sociais do período persa.

Conforme as informações de Rainer Albertz63

, na segunda metade do V século, a

divisão social proporcionada por uma profunda adaptação cultural e religiosa,

consequente da invasão assíria que alcançou a comunidade judaica, contribuiu para a

elaboração de uma religiosidade pessoal específica, conhecida como “espiritualidade

dos pobres”, desenvolvida nos círculos de classe baixa, com liturgias que aconteciam às

margens da religião oficial.

Neste conturbado período, os Salmos de lamentação surgem como uma forma específica

de segurança de salvação. A certeza de que Javé defenderá o direito, assegurando ao

indivíduo que sua oração será ouvida (Sl. 140.13), era a maior, ou mesmo, a única

aspiração de salvação para os círculos de classe baixa.

Em virtude do anúncio cúltico-profético de salvação para o sofredor e condenação para

o opressor, a comunidade em seu conjunto exteriorizava sua confiança na palavra e na

proteção de Javé, mesmo diante do triunfo momentâneo dos malfeitores (Sl 12.7-8).

1.4. Malfeitores e Justos na comunidade do período pós-

exílio

O problema essencial dos conflitos sociais narrados nos textos bíblicos, que atravessam

os distintos períodos da história da religião de Israel, está no fato de que alguns poucos

se enriquecem com base no empobrecimento de outros, por meio da exploração

campesina. Como fica claro, o destinatário do Salmo é o indivíduo ou um grupo social,

que sendo oprimidos, são chamados de justos, em relação aos seus opressores

malfeitores.

63

ALBERTZ, Historia de la Religión, p. 701

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43

Os Salmos de lamentação são valiosos registros desta tensão social presente na

comunidade do período pós-exílio. Na leitura do Saltério, percebe-se claramente que o

êxito dos malfeitores e o sofrimento dos justos, é tema frequente e continua

representando um desafio para a fé do crente em Javé. A injustiça cometida pelos

malfeitores representa na vida dos justos motivos de ira, sofrimento, perseguição,

desencanto e vontade de trocar de caminho (Sl. 69 e 73).

Em meio a esta experiência de sofrimento constante, o justo, ocupa repentinamente o

centro da reflexão, onde a ideia da morte é bastante presente. O Lamento se volta para

Javé, pedindo que intervenha destruindo os malfeitores (Sl. 55; 58). Esta intervenção

divina é vista com traços violentos, tanto no nível do castigo individual (Sl. 52), como

na perspectiva coletiva (Sl. 75-76; 94). A morte do malfeitor é vista com alegria pelo

justo, pois é a manifestação concreta da justiça divina que finalmente se faz presente.

A expressão [v'r' malfeitor, está presente no saltério como uma espécie de modelo anti-

ideal humano. Sua imagem hostil atende às tipificações dadas ao inimigo. Este

personagem, no entanto, está caracterizado com menos detalhes. Os Salmos o fazem

parecer como alguém que tem êxito bastando-se em suas próprias riquezas. Ele é

sempre o rico (cf. Sl. 37; 52; 73 e outros) e ainda que seu êxito seja marcado pela

violência, injustiça e opressão, sua atitude é de soberba e altivez (Sl. 73.11; 94.7; Jó

15.25; 21.14). Sendo inimigo do justo é consequentemente, inimigo de Javé.

1.4.1. A mensagem dos Salmos

O Salmista parece resgatar em sua mensagem, a realidade do sofrimento social de

milhões de seres humanos, condenados a viver, desde o seu nascimento, em miseráveis

condições. Excluídos do acesso aos bens básicos da vida, esta realidade representa, para

quem crê em um Deus Justo e poderoso, um verdadeiro problema de fé, que acontece

em níveis teóricos e práticos.

As condições de vida do povo que sofre, são transformadas pelo salmista em palavra

poética, que deixa extravasar sua experiência em metáforas e imagens que convencem e

descrevem de forma objetiva sua realidade.

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44

Os elementos da divisão social de grupos políticos64

e os traços da religiosidade dos

pequenos grupos familiares65

são fatores consequentes das transformações sociais e

religiosa do pós-exílio. O conflito entre malfeitores e justos trata da realidade

comunitária. As experiências comuns de reconstrução social, por meio dos grupos

familiares autônomos no pós-exílio, permitiram que as celebrações litúrgicas fossem

solidárias e mais intensas na comunidade. Os anúncios teológicos de solidariedade

adquiriram nos rituais pessoais, uma função decisiva para a solidez da comunidade e seu

conjunto.

A terminologia [v'r' que atravessa a literatura pós-exílica, assumindo conotações de

ordem social (que exclui da comunidade) e religiosa (que exclui da relação com

Deus)66

, aponta para uma divisão bem clara e definida entre os grupos da classe alta,

proprietários de terras e a comunidade campesina.

Ao analisar a frequência com que ocorre a citação dos ~y[iv'r. no saltério, Erhard S.

Gerstenberger ressalta:

“Os homens designados daquele modo não são estranhos; eles estão

próximos de quem fala. Eles agem como indivíduos, mas pertencem a um

grupo designado. Do contrário não se pode explicar a numerosa

ocorrência do Plural. Do ponto de vista do salmista, os malfeitores se

excluíram por meio de seu comportamento perante a comunidade de

Javé. Eles se tornaram “não-pessoas”, as quais só podem ser tratadas com

desejo de aniquilação. ”67

O maior opositor do salmista não é um estrangeiro, uma nação inimiga ou mesmo um

de seus dominadores, mas ao contrário, é alguém de seu sangue. Neste sentido o salmo

64

ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 1. De los

comienzos hasta el final de la monarquia. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 137-140 65

Os grupos familiares eram sintomas da fragmentação da religiosidade, consequente da crise social e

religiosa que se desenvolveu no período pós-exílio. Com a nova configuração social, desenvolveu-se a

aproximação entre a religiosidade pessoal e a religião oficial da comunidade judaica. Cf. ALBERTZ,

Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2. Desde el exílio hasta

la época de los macabeos. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 685-709 66

ALBERTZ, Historia de la religión, p. 440 67

GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos persas: Séculos V e IV antes de Cristo. Tradução

de Cesar Ribas Cezar. São Paulo. Edições Loyola, 2014, p. 242.

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45

55 aparece como texto fundamental para estudar a problemática relação entre

malfeitores e justos no pós-exílio. As reclamações recitadas pelo sofredor constituem o

esforço para restaurar o bem-estar e a segurança do indivíduo aflito e seus parentes.

Como parte da liturgia do lamento, ele amaldiçoa este e outros inimigos, com a súplica

de que sejam engolidos pelo xeol.

Uma breve passagem pelo Salmo já coloca em evidência as fraquezas e insuficiências

humanas, diante dos ataques provocados pelos opressores do salmista. O apelo por

justiça, desenvolvido em três rodadas de lamento, expondo queixas e maldições contra

seu opressor, faz deste Salmo o modelo claro de uma fé que professa sua confiança e

esperança em Javé, que no momento da aflição declara: “mas eu confiarei em ti” (Sl

55.24c).

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46

2: ESTUDO EXEGÉTICO DO SALMO 55.

No capítulo anterior percebemos que a importância da Lamentação no Antigo

Testamento, está em função de sua estreita relação com a dura realidade da vida do

povo, no contexto dos eventos sociais, econômicos e religiosos do período pós-exílio. A

frequência das ocorrências do termo [v'r' nos Salmos de lamentação, revela os efeitos

da oposição entre malfeitores, considerados impiedosos, opressores e justos, título

destinado aos indivíduos piedosos da classe alta e os pobres oprimidos.

Esta tensão social na perspectiva do conflito de classes assume nos textos bíblicos,

valioso sentido para a comunidade que tem na lamentação a esperança da intervenção e

libertação de Javé. O Salmo 55 nos apresenta este modelo conflituoso do orante, que

sente-se perturbado pelas agressões de alguém tão próximo a ele, mas expõe em seu

lamento seus momentos mais dramáticos, queixa-se, amaldiçoa seu opressor e confia na

intervenção divina.

Busca-se neste capítulo, compreender o texto bíblico em si. As ideias, as intenções e a

forma literária do texto, serão trabalhadas nesta seção a partir dos critérios propostos

pela Crítica da Forma. Assumiremos na análise exegética do Salmo 55 os princípios da

análise histórico-sociológica como metodologia básica.

Os passos utilizados para este trabalho seguem os seguintes níveis: 1. Determinação do

texto base; 2. Crítica textual; 3. Tradução; 4. Estrutura; 5. Gênero literário; 6. Lugar e

data; 7. Comentário; 8. Intenção.

Entendendo a formação do Salmo, sua linguagem e forma, buscaremos responder se o

Salmo 55 pode ser considerado um claro retrato deste conflito social, usado como

gênero literário poético ou pertencente aos eventos litúrgicos sagrados.

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47

2.1. Determinação do texto base

Nosso ponto de partida é o Texto Massorético, normalmente abreviado como TM. A

finalidade principal da análise textual encontra-se neste manuscrito hebraico.

Considerado o manuscrito mais antigo e preservado, com elevado padrão de

uniformidade textual68

, o TM, também conhecido como códex Leningradensis B19A

(L)69

serve como fonte para todas as edições impressas da Bíblia Hebraica e também

para as bíblias modernas.

Mesmo que não seja possível traçar uma linha bem definida, que delimite onde termina

e onde começa a etapa de formação e transmissão do texto70

, o TM segue como o

principal manuscrito para a BHS.

2.1.1. Tradução interlinear do Salmo 55: Aproximação literal

`dwI)d"l. lyKiîf.m; tnO©ygIn>Bi x;Ceîn:m.l;1

para Davi. maskil

em

instrumentos de

corda

Do dirigente

`yti(N"xiT.mi ~L;ª[;t.Ti÷-la;w> yti_L'piT. ~yhil{a/â hn"yzIåa]h; 2 de minha

súplica. e não te esconda minha oração ’elohim Ouça

`hm'yhi(a'w> yxiäyfiB. dyrIßa' ynInE+[]w: yLiä hb'yviäq.h; 3 e agitação. em lamento (pois) vagueio e me responde Atende

[v'_r" tq:å[' ynEåP.mi byE©Aa lAQÜmi 4

Do malfeitor pressão em face da (do) inimigo por causa da

voz

`ynIWm)j.f.yI @a;b.W !w<a'÷ª yl;î[ Wjymiîy"-yKi

guardam rancor e na ira sobre (a)

maldade

pois me fazem

cambalear

68

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica. Introdução ao Texto Massorético, guia

introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartênsia. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 209 69

ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm (eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 5 ad. Stuttgart:

Deutsche Bibelgesellschaft. 1997, p. xxix 70

TOV, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible. Minneapolis Assen/Maastricht: Fortress Press-

Van Gorcum. 1992, p. 289-290. Disponível em: http://www.greeklatin.narod.ru/tov/_0323.htm.

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48

tw<m'÷ª tAmïyaew> yBi_r>qiB. lyxiäy" yBiliâ 5

de morte e terrores em meu

interior. estremece meu coração

`yl'([' Wlïp.n" sobre mim Caem

`tWc)L'P; ynISeªk;T.w:÷ _ ybi aboy"å d[;r:w"â ha'är>yI 6

um

estremecimento e cobre-me entra em mim e tremor

Medo

hp'W[ïa' hn"©AYK; rb,aeâ yLiä-!T,yI-ymi( rm;ªaow" 7

voaria como a pomba, asa quem dera para

mim ter

e disse:

`hn"Ko*v.a,w> e pousaria

`hl's,( rB"åd>MiB; !yliÞa' ddo+n> qyxiär>a; hNEhiâ 8 no deserto (sela) ficaria fugiria para longe Eis!

`r[;S'(mi h['äso x:Wrßme yli_ jl'äp.mi hv'yxiäa' 9 e da tempestade. calúnia do vento da em escapar me apressaria

ytiyai’r"-yKi( ~n"+Avl. gL;äP; yn"doa]â [L;äB; 10 eis que! eu vejo a língua deles, e divide Senhor Confunde

`ry[i(B' byrIåw> sm'Þx' na cidade e contenda Violência

!w<a"ßw> h'yt,_moAx-l[; h'buîb.Asy> hl'y>l;ªw" ~m'ÛAy 11

e maldade sobre os seus

muros rodeiam e de noite de dia

`HB'(r>qiB. lm'ä['w> em seu interior e fadiga

`hm'(r>miW %Toæ Hb'ªxor>me÷ vymiîy"-al{w>) HB'_r>qiB. tAWðh; 12 opressão e

engano

de suas praças e não aparta em seu interior Ruínas

yl;ä[' yain>f;m.â-al{) aF'îa,ñw> ynIpeªr>x")y> byEïAa-al{) yKiÛ 13 (que) me

sobrepõe

não é o que me

odeia

então (eu o)

suportaria

que me

escarnece

Eis que não é o

inimigo

`WNM,(mi rtEïS'a,w> lyDI_g>hi dele então (me)

esconderia

e se engrandece

`y[iD"(yUm.W ypiªWLa;÷ yKi_r>[,K. vAnæa/ hT'äa;w> 14 e meu conhecido

(íntimo) meu amigo conforme

minha ordem

ó homem mas tu

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49

(conforme a

mim)

tybeîB. dAs+ qyTiäm.n::â wD"x.y rv<åa] 15 na casa de em aconselha-

mento,

na nossa

doçura

juntos o qual

`vg<r")B. %LEïh;n> ~yhiªl{a/÷ na multidão nós andávamos ’elohim

Wdår>yE Amyleª[' ¿tw<m'yViy:À 16 e caiam no seja sobre eles Devastação

`~B'(r>qiB. ~r"äWgm.Bi tA[ßr"-yKi(; ~yYI+x lAaåv. em seu interior em suas moradas pois há

perversidades

os (que estão)

vivos

xeol

`ynI[E)yviAy hw"©hyw:÷ ar"_q.a, ~yhiäl{a/-la, ynIa]â 17 me salvará e YHVH clamarei para ’elohim Eu

hm,_h/a,w> hx'yfiäa' ~yIr:h\c'w>â rq,boåw" br<[,Û 18

gritarei lamentando e ao meio dia e manhã Tarde

`yli(Aq [m;îv.YIw: minha voz. e (ele) ouvirá

~yBiªr:b.÷-yKi( yli_-br"Q]mi yvip.n:â. ~Alåv'b hd"ÛP'« 19 pois muitos de quem me

hostiliza

minha vida em paz Resgata

`ydI(M'[i Wyðh' contra mim São

~d<q,ª bveîyOÝw> é~nE[]y:w>¥ lae’ [m;Ûv.yI 20 em frente e permanecerá e os humilhará Deus Ouvirá

Aml'_ tApåylix] !yaeä],î rv<Üa hl's para eles mudanças não existe porque Selá

`~yhi(l{a/ Waår>y" al{ßw> ’elohim temem e não

`At*yrIB. lLeîxi wym'ªl{v.Bi wyd"y"â xl;äv' 21 sua aliança e profanaram em (quem)

tinha paz

suas mãos Lançou

WKßr: ABïliñ-br"q]W* éwyPi taoåm'x.m ŸWqÜl.x' 22 concorrem e hostilidade no

coração

na sua boca Manteiga

(alimentos de leite) a sua falsidade

(é como)

`tAx)tip. hM'heäw> !m,V,ªmi wyr"îb'd> espada

desembainhada

e estas

são

com azeite suas palavras

^l<ïK.l.k;ñy> aWháw> é^b.h'y>; Ÿhw"“hy>-l[ %lEÜv.h; 23 te suportará e ele teu fardo sobre YHVH Lança

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50

`qyDI(C;l; jAmª ~l'îA[l. !TEßyI-al{ o justo vacilar para sempre não deixará

tx;v;ª raeìb.li Ÿ~dEìrIAT Ÿ~yhi’l{a/ hT'Ûa;w> 24 na cova. no poço (os) fará cair ’elohim mas tu

h,_ymey> Wcåx/y<-al{ hm'r>miWâ ~ymiäd" yveÛn>a; o seu dia não alcançarão e fraudulentos sanguinários Homens

`%B")-xj;b.a, ynI©a]w:÷ confiarei em ti mas eu

2.2. Crítica textual

2.2.1. Notas do Aparato Crítico da BHS71

O aparato crítico, também conhecido como aparato de variantes textuais, tem como

função básica informar a situação do texto bíblico ao longo de sua transmissão, desde o

período da Antiguidade até o final da Idade Média. Localizado logo abaixo do aparato

Massorético, no rodapé da BHS, seu objetivo principal é demostrar as diferenças entre o

texto hebraico, como apresentado no manuscrito de Leningrado B19A (L) e as antigas

versões bíblicas. As anotações do Aparato Crítico fornecem também a possibilidade de

observar as emendas textuais que ocorreram no processo de transmissão dos textos.

As variantes textuais encontradas no Aparato Crítico referem-se às principais versões

antigas da Bíblia como a Septuaginta, Pentateuco samaritano, Peshitta, Vetus latina,

Vulgata, Targun, Manuscritos do Mar Morto, entre outras.72

O Salmo 55 consta de 42 notas no aparato crítico, distribuídas em 18 versículos, que

esclarecem acerca da transmissão do texto, constando informações sobre suas variantes.

Vejamos a seguir tais notas e sua respectiva interpretação.

71

As notas do aparato crítico da BHS, foram produzidas por H. Bardtke (1969), cf. BHS. 1997. A

interpretação de tais notas foi feita através de consulta à obra de FRANCISCO, Edson de Faria. Manual

da Bíblia Hebraica, p. 61-96. 72

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica, p. 61

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51

Verso 3: O termo dyrIßa' (vagueio), traz a seguinte anotação: [a evluph,qhn,

σ´kathnecqhn, Hier humiliatus sum; l frt dr;Wa (a ddr ) vel dbe(ao]. Explicação da nota:

a LXX traduz por triste, aflito, a versão Símaco traduz esmagar, afligir73

, Jerônimo

traduz como aviltado, rebaixado; para ser lido possivelmente como derrubado,

subjugado ( da raiz rebaixar) ou destruir.

O termo hm'yhi(a'w> (e agitação), traz a anotação: [b ( σ´, Hier ) evtara,cqhn; l

frt hm,h,(a,w> vel hm'Aaew> (a ~wh ) et cj c 4]. Explicação da nota: a LXX (versão Símaco

e Jerônimo) traduz por problema, lançar-se em confusão; para ser lido possivelmente

como “e perturbado, confuso” ou “e inquieto” (da raiz desconcertar) e conjugado com

verso 4.

Verso 4: O termo ynEåP.mi (em face) traz a anotação:[ a pr cop]. Explicação da nota: a

LXX e a Peshitta coloca antes deste termo a conjunção.

O termo Wjymiîy"-yKi (pois me fazem cambalear) traz a anotação: [b σ´ eperriyan;

prp WJyI (cf. evxe,klinan, clw) vel Wjy[iy" vel Wryijm.îy : ]. Explicação da nota: a versão

Símaco traduz por “jogar em, julgo”(literalmente transmite e ideia de selar um animal

enquanto anda74

). Propõe-se “repelir, expulsar”(confira com LXX “evitar, desviar-se

de” e Peshitta clw) ou Wjy[iy" “fazer cair” ou Wryijm.îy : “fazer descer”

Verso 5: O termo yBiliâ(meu coração) traz a anotação: [a wnplt bj dHlt’ wksjwnj †llj

mwt’ et Cedidit in me pavor et operuerunt me umbrae mortis]. Explicação da nota: A

versão Peshitta sugere cair “e cai o medo em mim, e me cobriu com a sua sombra da

morte”

O termo tAmïyaew> (e terrores) traz a anotação: [b sg]. Explicação da nota: Na

LXX está no singular

73

Cf. LUST, Johan. A Lexicon of Symmachus' Special Vocabulary. In: His Translation of the Psalms.

Katholieke Universiteit Leuven. Disponível em: http://rosetta.reltech.org/TC/v05/Lust2000.html#k 74

FRIBERG, Timothy; FRIBERG, Barbara ; MILLER, Neva F. Analytical Lexicon to the Greek New

Testament. Baker's Greek New Testament Library. Grand Rapids: Baker, 2000. Bible Works, v.7.

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52

Verso 9: O termo jl'äp.mi hv'yxiäa' (me apressaria em escapar) traz a anotação: [a–a

prosedeco,mhn to.n sw,|zonta, (it , sed mas pr cop) = jLep;m.i hl'yxiao (w>)?] Explicação da

nota: Na LXX “para receber a salvação” (do mesmo modo na Peshitta, mas coloca-se

antes da conjunção) que seria uma retroversão de “esperaria para escapar” com o

acréscimo da conjunção (w>) mas esta informação é incerta.

O termo r<[;S'(mi h['äso x:Wrßme (do vento, da calúnia e da tempestade) traz a

anotação: [b–b

ἀπὸ ὀλιγοψυχίας καὶ καταιγίδος =r[;S'w> xr'[ic> מ׳; l xr'['S> מ׳ (h[s

dttg) cf ]. Explicação da nota: a LXX traz “do desânimo e da fúria do vento” que é

uma retroversão de “em explosão súbita do vento” com a partícula prepositiva m ; para

ser lido como “vendaval” com a partícula prepositiva m ; (h[s calúnia é uma

ditografia) compare com a Peshitta.

Verso 10: O termo yn"doa]â [L;äB; (confunde Senhor) traz: [a-a

prp ~n"+ArG> [l;B,].

Explicação da nota: provavelmente garganta de Bela (uma alusão ao que é engolido,

tragado, como forma de castigo, cf. Jr.51.44)

O termo yn"doa] (Senhor) traz: [mlt Mss hwhy; + ’cthwn, ins ~t"c'[],].

Explicação da nota: Muitos manuscritos hebraico medievais trazem o tetragrama;

Guenizá do Cairo acrescenta poderio, força, inserindo “desobediência, relutância”.

O termo gL;äP; ( divide) traz: [ hwpk’ conversationem, prp gl,P,Þ]. Explicação da

nota: Na Peshitta “conduta, conduzir”, proposto como gl,P canal artificial construído

para conduzir as águas.

Verso 11: O termo h'buîb.Asy>; (rodeiam) traz: [a sg]. Explicação da nota: Na LXX está

no singular.

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53

Verso 12: O termo HB'_r>qiB> (em seu interior), traz: [a

> ; l frt Hk'(AtB. vel h'yq,WvB.

e; huc tr:]. Explicação da nota: a LXX e a Peshitta omitem este termo; para ser lido

possivelmente como suspiro, desejo ou apertado, sedento.

Verso 13: O termo al{) (não ) traz: [a eiv cf 51,18

a]. Explicação da nota: a LXX traduz

como “se, conforme Salmo 51.18, na anotação a.

O termo ynIpeªr>x")y> byEïAa (inimigo que me escarnece), traz: [b-b

l prb ynIp;ªr>xe ybiäy>Aa

cf ]. Explicação da nota: Para ser lido provavelmente “inimigo afronta” conforme

Peshitta e Vulgata

O termo aF'îa,ñw> (e suportaria), traz: [c

prb exc vb]. Explicação da nota:

Provavelmente esta palavra foi excluída

O termo al{) (não ), traz: [d kai. eiv cf

a]. Explicação da nota: a LXX traduz

como “e se”, conforme a anotação a.

Verso 15: O termo vg<r")B. %LEïh;n> (nós andávamos na multidão), traz: [a-a

()

evporeu,qhmen evn o`monoi,a|,,,; l prp. %l{ïh>;y: vel WkLe(h;y> et [g:r<ïB. vel v[:r:ïB. ; al trp 21 – 23

post 15]. Explicação da nota: a LXX (e a versão Peshitta) traz “procedíamos em

harmonia”; para ser lido provavelmente como “caminhava” ou “caminhávamos” e

“por um momento” ou “em companhia” outros tranpõem para depois do verso 15

Verso 16: O termo Amyleª[' tw<m'yViy: (devastação sobre eles), traz: [a-a

prp cj c 15bb] .

Explicação da nota: Proposto conectar com verso 15 bloco b

O termo tw<m'yViy: (devastação ), traz: [b

mlt Mss Vrs ut Q (yVy = ayVy), sic l].

Explicação da nota: Muitos manuscritos hebraicos medievais e muitas versões trazem

como qerê de “maltratar, atuar como credor”, assim lido

O termo ~r"äWgm.Bi (em suas moradas ), traz: [c

>]. Explicação da nota: Ausente

na versão Peshitta.

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54

O termo ~B'(r>qiB. (em seu interior ), traz: [d

prb dl]. Explicação da nota:

Provavelmente de ver deletado.

Verso 17: O termo ynI[E)yviAy {)(me salvará ), traz: [a eivsh,kouse,n mou = ynI[Em'v.yi].

Explicação da nota: a LXX traduz como “me atenderá” uma retroversão de “me

ouvirá”

Verso 18: O termo [m;îv.YIw: {)(e ouvirá ), traz: [a Ms ['miv.a;w>]. Explicação da nota: Um

manuscrito hebraico medieval e a Peshitta indicam “e escutará”

Verso 19: O termo hd"ÛP' «{)(resgata ), traz: [a

lutrw,setai = hd,P.yI, psh = hdEP.].

Explicação da nota: Na LXX “redimir” retroversão de resgatar, a versão Peshitta

apresenta “salvar” como retroversão de “recuperar”

O termo br"Q.mi (me faz guerra ), traz: [b

avpo. tw/n evggizo,ntwn , l frt

mybireQ.mi]. Explicação da nota: Na LXX “para o aproximar”, para ser lido

possivelmente como “para guerrear contra mim”.

O termo ~yBiªr:b.÷ (muitos), traz: [c

bHrjn`, in contentione; l frt ~ybir'b.i].

Explicação da nota: Na Peshita surge como “em disputa”; para ser lido possivelmente

como “muitos comigo”.

Verso 20: O termo bveîyOÝw> é~nE[]y:w>¥ Ÿlae’ Ÿ[m;Ûv.yI (ouvirá Deus e responderá e

permanecerá), traz: [a-a

prp la’[em'v.yI bveîy ~l'Þ[.y:w> cf Gn 36.5]. Explicação da nota:

Proposto “ e Jalam retornou para Ismael”, coferir com Gn 36.5

O termo bveîyOÝw> é~nE[]y:w>¥ (e responderá e permanecerá), traz: [b-b

() kai.

tapeinw,sei auvtou,j o` upa,rcwn = bveîyOÝ wOmNE[;ywI?]. Explicação da nota: Na LXX (e na

versão Peshita) “humilhará aquele que existe” uma retroversão de “virá para te

humilhar” mas esta informação é incerta.

O termo hl's,î.÷ (sela), traz: [c prp hOLKu]. Explicação da nota: Proposto “final”

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55

Verso 21: O termo xl;äv' (lançou), traz: [a

cf 15 a-a

]. Explicação da nota: Comparar

com verso 15 a-a

O termo xl;äv' (lançou), traz em sua forma final: [b pl ]. Explicação da nota: Na

Peshita este termos está no plural.

O termo wyd"y"â (suas mãos), traz: [c nonn Mss wdy ]. Explicação da nota: Vários

manuscritos hebraicos medievais e a LXX trazem “nas mãos”

O termo wym'ªl{v.Bi (em quem tinha paz), traz: [d

evn tw/| avpodido,nai = mLev;B.?

´l qrjbh; l wOml.voB.]. Explicação da nota: Na LXX “na recompensa” uma retroversão de

“em paz” mas esta informação é incerta. A versão Peshitta traz “para seu interior”;

para ser lido como “em paz com ele”

O termo lLeîxi (profanaram), traz: [e σ´ pl]. Explicação da nota: Nas versões

LXX, Símaco e Peshita está no plural.

Verso 22: O termo WqÜl.x' (a sua falsidade ), traz: [a

l ql;x ]. Explicação da nota: Para

ser lido como “iludir, lisonjear”

O termo taoåm'x.m; (manteiga ), traz: [b

2 Mss twOaåm'x;>me ; σ´ boutu ,rou cf Hier , l

ha'm.x,me]. Explicação da nota: Dois manuscritos hebraicos medievais trazem “creme de

leite”; Na versão Símaco “cacho de oliva”, compara com Jerônimo e a versão Guenizá

do Cairo, para ser lido como “na manteiga”.

O termo wyPii (sua boca), traz: [c

()tou/ prosw,pou auvtou/ = wyn'P']. Explicação

da nota: Na LXX e versão da Peshitta, “em sua face” = uma retroversão de “sua face”.

O termo ABïliñ-br"q]Wii (e guerra no coração), traz: [d

l frt wblB. (b hpgr)].

Explicação da nota: Para ser lido possivelmente como “em seu coração” (a letra b é

um caso de haplografia)

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56

Verso 23: O termo é^b.h'y> (teu fardo), traz: [a

a´ σ´ e´ Vagaph ,sei se = ^B.xuy> ? Hier

caritatem tuam, sjbrk spem tuam]. Explicação da nota: Nas versões Áquila, Símaco e

Quinta, o termo é “seu amor” uma retroversão de “teu cuidado” mas é incerto.

Jerônimo traduz por “tua caridade”, Guenizá do Cairo por “tua esperança”.

Verso 24: O termo raeìb.li (no poço), traz: [a lgwb’, l = rabol. (rabol.)]. Explicação

da nota: A versão Peshitta traz “para perdição” para ser lido como retroversão de

“para o bem”.

O termo %B") (em ti), traz: [b + ku,rie]. Explicação da nota: A LXX acrescenta

“Senhor”.

2.2.2. Anotações massoréticas – Masora Parva (Mp)75

A Massorá Menor (lat. Masora Parva) é a expressão usada para designar o conjunto

principal de anotações massoréticas escrito nas margens laterais do texto bíblico, muito

presente nos códices da Bíblia Hebraica de tradição tiberiense.76

Estas anotações têm

como base o Códice de Leningrado B19a (L) e o responsável pela editoração destas

anotações foi Gérard E. Weil.77

A mesma expressão no hebraico é hN"j;q. hr'wOSm' (maṣorah qetanah - massorá pequena).

A Mp contém elementos concernentes à qualidade do texto78

e tem a função de observar

todos os aspectos do texto hebraico como: palavras e expressões únicas nos casos de

hápax legomenon79

, frequência de vocábulos e expressões, detalhes gramaticais,

75

Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica, p. 112-152 76

Cf. RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel. Guide de la Bible Hébraïque. La critique textualle dans

la Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Genève: Labor et Fides, 1994, p. 9, 21-22 77

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica, p. 113 78

RÖMER e MACCHI, 1994, p. 13 79

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica, p. 118 e 514

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57

ortografias incomuns, observação sobre formas de ler o texto (casos de Qerê, Ketiv80

e

severin81

), além de outras observações de ordem textuais.

O Salmo 55 possui 49 anotações massoréticas distribuídas em 21 versículos. Vejamos

sua interpretação:

Verso 2:

hn"yzIåa]h; (ouça), Mp Ay, interpretação: Esta palavra ocorre 16 vezes no texto da Bíblia

Hebraica;

~yhil{a/â hn"yzIåa]h; (ouça ’elohim), Mp lO, interpretação: Hapax legomenon, esta

expressão ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

~L;ª[;t.Ti÷ (te esconda) Mp bO, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia

Hebraica;

Verso 3:

dyrIßa' (vagueio), Mp lO, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre uma

única vez no texto da Bíblia Hebraica;

hm'yhi(a'w> (e agitação), Mp lO, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

Verso 4:

(tq:å[' (pressão ), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre uma

única vez no texto da Bíblia Hebraica;

Wjymiîy" (me fazem cambalear), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão

ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

@a:ïb.W (e na ira), Mp b, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia Hebraica;

80

TOV, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible. Minneapolis Assen/Maastricht: Fortress Press-

Van Gorcum. 1992, p. 58 e FRANCISCO, Edson de Faria, p.178-186 81

TOV, Emanuel, p 64 e FRANCISCO, Edson de Faria, p.186 - 187

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58

ynIWm)j.f.yI (guardar rancor), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão

ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

Verso 5:

yBi_r>qiB. (em meu interior terrores), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta

expressão ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

tAmïyaew> (e terrores), Mp l˜, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

Verso 6:

tWc)L'P; (um estremecimento), Mp d, interpretação: Esta palavra ocorre quatro vezes no

texto da Bíblia Hebraica;

Verso 7:

rb,aeâ(asa), Mp b˜, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia Hebraica;

hn"©AYK; (como a pomba), Mp 4b, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia

Hebraica. O número 4 sobrescrito, indica a Massora Magna82

, Mm 3292 citada no

aparato Massorético da BHS. hp'W[ïa' (voaria), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre uma

única vez no texto da Bíblia Hebraica;

hn"Ko*v.a,w> (e pousaria), Mp l˜, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

82

A Mm, a grosso modo, funciona como uma espécie de “concordância massorética” que complementa

as informações da Mp contida na Bíblia Hebraica, elaborada pelos massoretas. As referências expostas no

rodapé da BHS indicam uma lista de versículos, editada como suplemento da BHS, conhecida como

Massorah Gedolah , de autoria de Gérard E. Weil. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria, p. 153-155

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59

Verso 8:

ddo+n> (fugiria), Mp s˜xw l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre uma

única vez nos salmos e também com escrita defectiva83

;

Verso 9:

jl'äp.mi (em escapar), Mp l˜, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

h['äso (calúnia), Mp s˜xw l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica e também com escrita defectiva;

Verso 10:

yn"doa]â [L;äB; (confunde Senhor), Mp l, interpretação: Hapax legomenon84

, esta

expressão ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

gL;äP; (divide), Mp l˜, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre uma única

vez no texto da Bíblia Hebraica;

byrIåw> (e contenda), Mp d, interpretação: Este termo ocorre quatro vezes no texto da

Bíblia Hebraica;

Verso 11:

h'buîb.Asy>; (rodeiam), Mp !k t˜kw l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão

ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica e escrito desta maneira;

83

Do Latim (scriptio defectiva), se refere ao texto ou a uma palavra dentro de um texto que foi escrita

sem o recurso de letras vocálicas ou indicadores vogais. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico: uma

gramática introdutória. tradução: Marie Ann Wangen Krahn. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 424. 84

Embora as anotações massoréticas da BHS indiquem esta expressão como l, Gerhard Lisowsky faz

referência de yn"doa]â [L;äB; em dois textos: Salmo 55.10 e Lamentações 2.2. Cf. LISOWSKY, Gerhard.

Konkordanz zum Hebraischen Alten Testament. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Printed in

Germany. 1981, p. 27,28, 232 e 233

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60

Verso 12:

al{w>)>; (e não), Mp 5b, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia Hebraica. O

número 5 sobrescrito, indica a Mm 2555 citada no aparato Massorético da BHS.

vymiîy" (aparta), Mp 6z, interpretação: Ocorre sete vezes no texto da Bíblia Hebraica. O

número 6 sobrescrito, indica a Mm 3293 citada no aparato Massorético da BHS.

Hb'ªxor>me ÷(suas praças), Mp vylb s˜x b, interpretação: Este termo ocorre duas vezes

em escrita defectiva, com este significado e com esta forma; hm'(r>miW (e engano), Mp

7h, interpretação: Ocorre cinco vezes no texto da Bíblia

Hebraica. O número 7 sobrescrito, indica a Mm 3127 citada no aparato Massorético da

BHS.

Verso 13:

yKiÛ (ei que), Mp poysb p , ,r [˜jb h˜n˜, interpretação: Esta interjeição ocorre cinquenta

e cinco vezes com este acento de cantilação no início de versículo neste livro.

aF'îa,ñw (e suportaria), Mp b, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia

Hebraica;

yain>f;m.â(o que me odeia), Mp b, interpretação: Ocorre duas vezes no texto da Bíblia

Hebraica;

lyDI_g>hi yl;ä[' (me sobrepõe e se engrandece), Mp l, interpretação: Hapax legomenon,

esta expressão ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

rtEïS'a,w> (e me esconderia), Mp 1l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão

ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica. O número 1 sobrescrito, indica Mp

sub loco no aparato Massorético da BHS;

Verso 14:

yKi_r>[,K.iÛ (conforme minha ordem), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta

expressão ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

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61

ypiªWLa;÷ (meu amigo), Mp l˜, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão ocorre

uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

y[iD"(yUm.W.â (e meu conhecido), Mp l, interpretação: Hapax legomenon, esta expressão

ocorre uma única vez no texto da Bíblia Hebraica;

Verso 15:

~yhiªl{a/÷ tybeîB. (na casa de ’elohim), Mp 8b, interpretação: Esta expressão ocorre duas

vezes no texto da Bíblia Hebraica. O número 8 sobrescrito, indica a Mm 23287 citada

no aparato Massorético da BHS.

Verso 16:

tw<m'yViy: . (devastação), Mp vylb sx g˜w lm b˜ ayvy x !m dxw y˜rt rqw hdh

hlym 9yh !m dh twm yVy q, interpretação: Este é um Qerê (texto lido) de yVy

(maltratar, atuar como um credor) e twm (morte). Esta é uma das quinze palavras que

aparecem em destaque, o número 9 sobescrito indica a Mm 214 onde há um contra texto

sugerindo yVy em vez de ayvy . Escrito como uma palavra, mas lido como duas, da

qual 8 vezes aparece como ayvy , duas vezes como escrita plena e três vezes como

escrita defectiva, com este significado e esta forma.

2.2.3. Conclusões preliminares

Uma avaliação geral coloca em evidência que o Texto Massorético do Salmo 55 está

bem preservado, levando em consideração os seguintes aspectos:

a) Em quase todas as variantes encontramos explicações, tendo como base o TM, sendo

que a grande maioria delas, são de menor importância e não afetam substancialmente o

texto.

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62

b) Não há indícios em nenhum dos casos estudados, de que se deva substituir o texto

para reconstruir o suposto “texto mais original”.

Na prática, o TM do Salmo 55 não demonstra ser necessário alguma correção. Por tanto,

como texto base para nosso estudo, tomaremos o TM do Salmo 55 sem nenhuma

modificação.

2.3. Tradução

2.3.1. Observações

Textos poéticos estão carregados de sentimentos e metáforas. A estrutura da poesia

hebraica não foge à regra, há dificuldades em estabelecer em que tempo traduzir um

verbo e como interpretá-lo a partir das ações referidas no texto.

Com vocabulário, sintaxe e estilo estereotipados e palavras raras, nosso texto apresenta

este elemento literário poético, com formulações litúrgicas85

. Nossa tradução pretende

manter a sintaxe e fraseologia hebraica, na medida em que resulte numa estrutura

inteligível para a língua portuguesa.

A tradução dos termos tem a intenção de manter-se a mesma para cada vocábulo

hebraico, de modo que se possa perceber a repetição dos mesmos, como é o caso da

partícula yKi traduzido por eis que!. Os termos [v'_r" e qyDI(C; amplamente utilizados

nos Salmos, possuem correspondentes variados que são determinados de acordo com o

contexto. No Salmo 55 traduzimos como malfeitor e justo sinalizando a dimensão

religiosa dos termos.

85

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 1, with an Introduction to Cultic Poetry. In The Forms of

the Old Testament Literature, Volume XIV, Rolf Knierim and Gene M. Tucker, editors. Wm. B.

Eerdmans Publishing Co. Grand Rapids, Michigan 1988. pp. 223.

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63

Do dirigente86

em instrumentos de cordas, maskil para Davi.

2 Ouça87

’elohim minha oração e não te esconda88

de minha súplica.

3 Atende89

e me responde90

(pois) vagueio91

em lamento e agitação92

.

4 Por causa da voz (do) inimigo93

em face da pressão94

do malfeitor, pois me fazem

cambalear95

sobre (a) maldade e na ira guardam rancor96

.

5 Meu coração estremece97

em meu interior98

e terrores de morte caem99

sobre mim

6 Medo e tremor entra 100

em mim e cobre-me101

um estremecimento

7 E disse:102

quem dera103

para mim ter asa como a pomba, voaria104

e pousaria105

86

x;Ceîn:m.l; verbo, piel, particípio, masculino, singular, absoluto, raiz: xcn = supervisor, diretor. 87

hn"yzIåa]h; verbo, hiphil, imperativo, masculino, singular, raiz: !za = dar ouvidos. 88

~L;ª[;t.Ti÷-la;w> verbo, hithpael, imperfeito, 2ª pessoa, masculino, singular, jussivo, raiz: ~l[ = ser secreto,

ficar oculto. 89

hb'yviäq.h; verbo, hiphil, imperativo, masculino, singular, raiz: bvq = ser atencioso, escutar. 90 ynInE+[]w: verbo, qal, imperativo, masculino, singular, raiz: hn[ = responder, iniciar (conversa). 91

dyrIßa' verbo, hiphil, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: dwr = agitar-se, não aguentar. 92

hm'yhi(a'w> verbo, hiphil, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: ~wh = alvoroçar, lançar em confusão. 93

byE©Aa verbo, qal, particípio, masculino, singular, absoluto, raiz: bya = hostil tornar-se inimigo. 94

tq:å[' Este é um caso típico de hapax legomenon. (palavra ou expressão que ocorre uma única vez no

texto da Bíblia Hebraica). A tradução sugere “pressão, opressão e aflição” derivam de - hq"å['Wm)) ) que

também ocorre somente no salmo 66.11. Cf. HARRIS, R. Laird. Dicionário Internacional de Teologia do

Antigo Testamento. Tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luiz A. Sayão, Carlos Oswaldo C. Pinto. São

Paulo: Vida Nova. 1998, p. 1094. 95

Wjymiîy" verbo, hiphil, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, plural, raiz: jwm = tropeçar, fazer cambalear. 96

ynIWm)j.f.yI verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, plural, raiz: ~jf = rancor, animosidade. 97 lyxiäy" verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: lyx = se contorcer, tremer. 98

br,q, nome comum, masculino, singular, construto. Basicamente, denota estar em posição mais íntima e

próxima de algum objeto ou pessoa. Tem o sentido de aproximação, acercar-se, avizinhar-se. Na

condição temporal, apresenta-se como substantivo para: vísceras, interior, âmago, ânimo. Em outros

casos apresenta-se como Adj. Verbal, como é o caso dos vv. 19 e 22: peleja, batalha, guerra, em

contraposição à ~Alv' (v.19) e taom'x.m; (v.22). Cf. SCHÖKEL, Luiz Alonso. Dicionário bíblico hebraico-

português. Trad. Ivo Storniolo e José Bortolini. São Paulo/; Paulus, 1997. p 590-591; HARRIS, R. Laird.

São Paulo: Vida Nova. 1998, p. 1367-1369; TWOT - The Theological Wordbook of the Old Testament,

by R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., Bruce K. Waltke, originally published by Moody Press of

Chicago, Illinois. Copyright © 1980.; HOLL - A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old

Testament, Based upon the Lexical Work of Ludwig Koehler and Walter Baumgartner, edited by W.L.

Holladay. Copyright © 1997 by Brill Academic Publishers. in. Bible works 7, LLC. 2002. 99

Wlïp.n" verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, comum, plural, raiz: lpn = queda, colapso. 100

aboy" åverbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: awb = penetrar, entrar. 101 ynISeªk;T.w:÷ verbo, piel, waw consecutivo, imperfeito, 3ª pessoa, feminino, singular, raiz: hsk = cobrir,

desonrar. 102

rm;ªaow" verbo, qal, waw consecutivo, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: rma = dizer, falar. 103

yLiä-!T,yI-ymi (verbo, qal, imperfeito, 3ªpessoa, masculino, singular, raiz: !tn = (sentido variado) dar, por,

nomear. 104

hp'W[ïa' verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: @w[ = voar para longe

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64

8 Eis! para longe106

fugiria107

, ficaria108

no deserto (sela)

9 Me apressaria109

em escapar do vento da calúnia110

e da tempestade.

10 Confunde111

Senhor e divide112

a língua deles, eis que! vejo113

violência e contenda

na cidade.

11 De dia e de noite rodeiam114

sobre os seus muros e maldade e fadiga em seu interior.

12 Ruínas em seu interior e não aparta115

de suas praças opressão e engano.

13 Eis que! não é o inimigo116

que me escarnece117

. Então (eu o) suportaria118

, não é o

que me odeia119

(que) me sobrepõe e se engrandece120

, então (me) esconderia121

dele.

14 Mas tu ó homem conforme minha ordem, meu amigo e meu conhecido122

(íntimo),

15 o qual juntos na nossa doçura123

em aconselhamento, na casa de ’elohim nós

andávamos124

na multidão.

16 A devastação125

seja sobre eles e caiam no xeol os (que estão) vivos, pois há

perversidades em suas moradas, em seu interior.

17 Eu para ’elohim clamarei126

e YHVH me salvará127

.

18 Tarde e manhã e ao meio dia lamentando128

gritarei129

e (ele) ouvirá130

minha voz.

105hn"Ko*v.a,w> verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: !kv = acampar, fixar residência, pousar

106 qyxiär>a; verbo, hiphil, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: qxr = afastar-se, tornar-se distante

107 ddo+n> verbo, qal, infinitivo, construto, raiz: ddn = retirar-se, fugir 108

!yliÞa' verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: !yl = reter, manter-se prolongadamente 109

hv'yxiäa' verbo, hiphil, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: vwx = mostrar pressa, apressar 110

h['äso verbo, qal, participio, feminino, singular, absoluto, raiz: h[s = calúnia, recuar com pressa 111

[L;äB; verbo, piel, imperativo, masculino, singular, raiz: [lb = perturbar, confundir, destruir 112

gL;äP; verbo, piel, imperativo, masculino, singular, raiz: glp = cortar, dividir 113

ytiyai’r" verbo, qal, perfeito, 1ªpessoa, comum, singular, raiz: har = ver, perceber 114

h'buîb.Asy> verbo, poel, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, plural, raiz: bbs = cercar, rodear 115

vymiîy" verbo, hiphil, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: vwm = remover, separar 116

byEïAa verbo, qal, particípio, masculino, singular, absoluto, raiz: bya = ser hostil, inimizar-se 117

ynIpeªr>x")y> verbo, piel, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: @rx = provocar, insultar, 118

yain>f;m.â verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: afn = levantar, erguer, suportar 119

yain>f;m.â verbo, piel, particípio, masculino, singular, construto, raiz: anf = odiar, rejeitar 120

lyDI_g>hi verbo, hiphil, perfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: ldg = valorizar, ser importante 121

rtEïS'a,w> verbo, niphal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: rts = esconder, guardar segredo 122

y[iD"(yUm.W verbo, pual, particípio, masculino, singular, construto, raiz: [dy = ser visto, conhecido 123

qyTiäm.n: verbo, hiphil, imperfeito, 1ª pessoa, comum, plural, raiz: qtm = ser doce, suave 124

%LEïh;n> verbo, piel, imperfeito, 1ª pessoa, comum, plural, raiz: $lh = caminhar, andar 125

A opção em traduzir tAmyviy> por devastação e não por morte ou morte súbita, como na maioria das

biblias em português, está apoiada nas anotações massoréticas da Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 126

ar"_q.a, verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: arq = clamar, proclamar 127

ynI[E)yviAy verbo, hiphil, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: [vy = ser salvo, entregue 128

hx'yfiäa' verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: xyf = chamar a atenção, preocupado 129

hm,_h/a,w> verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: hmh = fazer barulho, gritar

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65

19 Resgata131

em paz minha vida de quem me hostiliza, pois muitos são132

contra mim.

20 Ouvirá133

Deus e os humilhará134

e permanecerá135

em frente (Selá), porque não

existe mudanças para eles e não temem136

’elohim.

21 Lançou137

suas mãos em (quem) tinha paz e profanaram138

sua aliança.

22 A sua falsidade139

(é como) manteiga na sua boca e hostilidade no coração.

Concorrem140

suas palavras com azeite e estas são espada desembainhada.

23 Lança141

sobre YHVH teu fardo e ele te suportará142

não deixará143

para sempre

vacilar o justo.

24 E tu ’elohim (os) fará cair 144

no poço na cova. Homens sanguinários e fraudulentos

não alcançarão145

o seu dia, mas eu confiarei146

em ti.

2.4. Estrutura

O pressuposto metodológico do presente estudo é que, só se pode compreender

corretamente o sentido de um texto, especialmente textos poéticos, se levarmos em

conta sua estrutura. Entende-se por estrutura a organização de todos os elementos que

compõem o texto, desde os mais simples como os lexemas e sintagmas, até os mais

130

[m;îv.YIw: verbo, qal, waw consecutivo, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: [mv = ouvir,

escutar 131

hd"ÛP'« verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: hdp = resgatar, redimir

132 Wyðh' verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, comum, plural, raiz: hyh = ser, estar

133 [m;Ûv.yI

verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: [mv = ouvir, escutar

134 ~nE[]y: verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: hn[ = curvar-se, ser coitado, miserável

135 bveîyOÝw> verbo, qal, participio, masculino, singular, absoluto, raiz: bvy =permanecer, habitar

136 Waår>y" verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, comum, plural, raiz: ary = medo, amedrontar

137 xl;äv'

verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: xlv = soltar, enviar

138 lLeîxi verbo, piel, perfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: llx = poluir, profanar

139 WqÜl.x' verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, comum, raiz: qlx = dividir, repartir

140 WKßr: verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, comum, plural, raiz: $kr = tenro, suave, tímido

141 %lEÜv.h; verbo, hiphil, imperativo, masculino, singular, raiz: $lv = jogar para baixo, lançar

142 ^l<ïK.l.k;ñy> verbo, piel, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: lwk = segurar, conter

143 !TEßyI verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: !tn = dar, deixar

144 ~dEìrIAT verbo, hiphil, imperfeito, 2ª pessoa, masculino, singular, raiz: dry = cair, descer

145 Wcåx/y< verbo, qal, imperfeito, 3ª pessoa, masculino, plural, raiz: hcx = dividir, ter parte em

146 %B")-xj;b.a, verbo, qal, imperfeito, 1ª pessoa, comum, singular, raiz: xjb = confiar em, inspirar confiança

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complexos como as estrofes e os poemas em sua totalidade147

. Esta tarefa nos ajudará na

compreensão do texto em sua conformação global e consequentemente seu significado.

O primeiro elemento que nos chama a atenção no Salmo 55 é sua estrutura típica de

lamentação constituída por três lamentos. Esta constatação pode justificar algumas

emendas no Texto Hebraico. Por esta razão, é possível supor, que na sua atual forma

literária, ele não seja visto como uma unidade.

2.4.1. Proposta de estrutura do Salmo 55

O Salmo 55, diferentemente dos demais textos do saltério, não apresenta uma

composição unificada. Emendas do Texto Massorético tornam-se visíveis a partir de

uma análise mais crítica dos versos 10, 19 e 20. A constatação de tais emendas têm

gerado controvérsias, nos modelos de estrutura apresentados pelos principais exegetas.

Segundo Erhard S. Gerstenberger148

, a primeira delas é um imperativo que surge no v.

10a-b em forma de imprecação149

, por outro lado, na maioria dos modelos de estrutura

apresentados por outros autores, o v.10 é assumido como parte do conjunto de lamentos

que se liga ao v.9.

William R. Taylor150

considera que no verso 10, o salmista interrompe o relato sobre

seus problemas, recomeçando com a descrição dos problemas causados na cidade.

Herman Gunkel151

e Hans Joachim Kraus152

observam que o Salmo 55 apresenta

divergências em seu conteúdo e o v.19 surge como um divisor de águas que separa o

Salmo em dois hinos diferentes. A primeira parte se apresenta como afirmação de

147

Cf. EGGER, Wilhem. Metodologia do Novo Testamento. Introdução aos métodos linguísticos e

históricos-críticos. trad. Johan Konings, Inês Borges. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 24-29 148

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 1, p. 222-223. 149

A imprecação é um elemento que parte da petição, na sua queixa, o salmista pede pela eliminação do

mal que ameaça o suplicante. (Psalms part 1 – P.250) 150

TAYLOR, Willian R e W. Stewart McCullough. In: Nolan B. Harmon (Editor). The Interpreter’s

Bible. Volume IV. The book of Psalms and Proverbs. Nashville, New York. Abingdon Press., 1963. p.287 151

GUNKEL, Hermann. An Introduction to the Psalms: The Genres of the Religious Lyric of Israel.

Printed in the United States of American. Mercer University Press. 1998. p.123-145 152

KRAUSS, Hans Joachim. Psalms 1-59: A commentary. Translated by Hilton C. Oswald. Augsburg

Publishing House. Minneapolis. p.517-523.

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67

confiança de um salmo autônomo, enquanto a segunda parte surge como uma nova

denúncia.

Kraus ainda pontua que os v.19b-24 são o “restante de um poema que foi inserido aqui

por engano”153

. Nesta segunda parte são acrescentados novos personagens que parecem

não ter ligações com os relatos anteriores (v. 1-19a). Na leitura de Gunkel, o v. 23 tem

mais sentido se for adicionado à primeira parte do salmo154

.

Gerstenberger sugere em todo o v.19, uma afirmação de confiança que compõe a sessão

17-20b. O autor comenta que o v.20 é tomado como uma referência para as tribos

bárbaras do deserto (cf. Sl. 83.6-9; 120.5), mas, considera todas estas especulações

textuais como hipóteses erradas de que os Salmos devem refletir incidentes biográficos

únicos de aflição ou calamidades, dentro de uma ordem lógica.

Taylor155

considera que a estrutura do Salmo 55, não está em conformidade com o

padrão regular encontrado nos salmos de lamentação. Para o autor, o argumento e a

ordenação das peças são confusos e também fica difícil determinar se os versos

dedicados ao amigo traiçoeiro do salmista formam um elemento independente no salmo

ou devem ser interpretados em relação ao todo.

Percebemos assim que este Salmo não é de fácil interpretação. Para um avanço na

melhor compreensão do Salmo 55, nos valemos dos estudos sobre a composição do

saltério. Conforme apresentamos no capítulo anterior, os 150 salmos são divididos em 5

livros e certamente fazem analogia com a torah. O Salmo 1 e 2 apresentam um prefixo

para todo o saltério e o salmo 150 tem a função de doxologia final. Os 5 livros são

divididos na seguinte ordem: I 1-41; II 42-72; III 73-89; IV 90-106; V 107-150. Para

Claus Westermann156

a aglomeração dos Salmos no saltério, se deu conforme a dialética

entre queixa e louvor. Sendo assim, o livro dos Salmos, reflete uma teologia marcada

basicamente por estas duas vertentes.

153

KRAUSS, Psalms 1-59 p. 519 154

Idem p.520 155

TAYLOR, William R. In: Nolan B. Harmon (Editor). The Interpreter’s Bible. Volume IV. The book

of Psalms and Proverbs. Nashville, New York: Abingdon Press, 1963. p. 285-286 156

WESTERMANN, Claus. Praise and Lament in the Psalms, Atlanta: John Knox, 1981, p.17-20.

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68

Interessa-nos, nesta pesquisa o segundo bloco. Dentro dele, há uma miscelânea157

de

coleções que se apresentam da seguinte forma: Salmos dos filhos de Korah (42-49), Um

apêndice no salmo 50 atribuído “para Asaf” (@s'a'l.) e a coleção conhecida como a

segunda coleção davídica (51-72). Esta coleção é atribuída a Davi pela inscrição

(dwId"l), embora ela não apareça nos salmos 66-67 e 71-72.

Ultrapassando a classificação proposta por Westermann, o Salmo 55 foge à regra e

apresenta mais de um lamento em situações diferentes, mais de um inimigo e mais de

um deus. Apresenta também, elementos estereotipados, quando se observa seu

vocabulário, sua sintaxe e seu estilo, mas ao mesmo tempo é único quando se observa

palavras como: (v.4) hq'[',,, pressão, que aparece somente neste versículo; jWm,

cambalear e @a;, ira, que apresentam significados raros ou incertos158

.

Com uma sequência típica para os Salmos de lamentação, nosso texto apresenta uma

estrutura de queixa individual. Dentre os modelos propostos por alguns autores, Kraus e

Gerstenberger apresentam uma estrutura mais detalhada, porém, as diferenças entre eles

são marcantes. Enquanto Kraus159

ao dividir o Salmo em dois blocos (1-19a e 19b-24) é

mais objetivo, Gerstenberger160

, apresenta mais detalhes e sugere o desenvolvimento de

uma estrutura com base na interpretação litúrgica do Texto Massorético.

Após esta breve passagem pelas propostas dos principais autores, verificamos que o

modelo apresentado por Gerstenberger161

, apesenta uma estrutura típica da Crítica da

Forma, incorporando elementos de recursos retóricos, dando ao Salmo uma

interpretação litúrgica. Optamos por este modelo, usando-o como base para nossa

proposta de estrutura, acrescentando pequenas alterações. A surpresa fica por conta da

157

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms part 1, p.37 158

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 1, p.223. 159

KRAUS, Psalms 1-59, p. 518 160

GERSTENBERGER, Psalms Part 1, p. 221 161

GERSTENBERGER, Psalms part. 1, p.223

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69

repetição de três incidências de queixa e de maldição num mesmo salmo162

. Optamos,

portanto, em trabalhar com a seguinte estrutura:

Cabeçalho: 1

I. Súplica inicial: 2-3a

A. Oração (v.2a)

B. Súplica (v.3a)

II. Lamentações de um Desesperado: 3b-24b

A. Problemas causados na vida do salmista: v. 3b-10a

1. Queixa (v. 3b-6)

a) Divagações em lamento (v. 3b-4)

a. Identificação dos inimigos (v.4a)

b. Descrição de suas ações (v. 4b)

c. Os males que causam (v.4c)

d. Reações na vida do salmista (v. 4d)

b) Angústias do salmista (v.5-6)

a. Expectativas (v. 7-9)

b. Maldição (v. 10a)

B. Queixa pelos problemas causados na cidade: (v. 10b – 20a)

1. Queixa (v. 10b-12)

a) Violência e contenda (v. 10b)

b) Maldade e fadiga (v. 11b)

c) Ruínas opressão e engano (v.12)

2. Queixa contestatória (v. 13-15)

3. Maldição (v. 16)

4. Afirmação de fé em linguagem litúrgica (v. 17-20a)

a) Clamor (v. 17a)

b) Lamento (v. 18a)

c) Resgate para a paz (v. 18b-20a)

C. Novas denúncias contra o inimigo (v. 20b-24)

162

Cf. Diálogos de orientação com o Prof. Dr. Tércio Machado SIQUEIRA no dia 26/04/2016.

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70

1. O salmista renova suas queixas (v. 20b – 22)

a) Não temem a ’elohim (v. 20b)

b) Profanaram sua aliança (v.21b)

c) Eles são falsos (v. 22)

2. Exortação à comunidade (v. 23)

3. Maldição (v. 24, a+b)

III. Afirmação de fé (v. 24c)

2.4.2. Explicação da estrutura

A organização do Salmo 55 concentra-se em três partes, mostrando alguns detalhes

interessantes. O texto começa com uma súplica inicial onde o salmista queixoso pede

para que ’elohim o ouça, preste atenção e responda à sua oração e súplica (v.2-3a). Após

esta palavra inicial, o salmista apresenta em três instâncias sua sequência de lamentos.

Na primeira (3b-10a) o Salmo relata os problemas causados na vida do salmista,

decorrente da voz opressora do malfeitor e do medo e tremor que elas lhe causam.

Como ato demonstrativo de sua incapacidade de agir, o salmista queixa-se, e na

angústia amaldiçoa seu inimigo.

A segunda instância do lamento (v.10b-20a) revela os problemas causados na cidade.

Queixa, maldição e afirmação de fé, são os artifícios usados pelo salmista para

comprovar sua disposição contínua de confiança em Javé, enquanto seu opressor ainda

provoca ruínas, opressão e engano (v.12). O auge das revelações que faz o salmista está

na constatação de que seu agressor é alguém de seu círculo de amizades (v.13-15).

Na apresentação da terceira instância do lamento (v.20b-24a+b), surgem novas

denúncias contra o inimigo (v. 20b-24). O salmista renova suas queixas (v. 20b – 22),

testemunhando a rebeldia e irreverência de seus inimigos diante da presença divina. A

exortação à comunidade surge como ato de fortalecimento e esperança nas ações de

Javé para com os fiéis, ao passo que, a maldição que se segue, acontece no mesmo nível

de confiança, pois, Javé castigará os homens sanguinários e fraudulentos (v. 24, a+b).

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71

Aos moldes dos poemas litúrgicos, o salmista conclui sua lamentação com uma

afirmação de fé (v.24c), garantindo na força de sua confiança a possibilidade de ser

ouvido e ajudado por Javé.

2.5. Gênero literário

O estudo a que nos propomos, na presente análise, compreende a soma das

características estilísticas, sintáticas e estruturais de um texto, ou seja, o seu perfil

linguístico. As convenções e expressões típicas desta linguagem, expressas em ditos ou

narrativas, apresentam um “conjunto de formas idênticas conhecidas como gênero”163

.

Ao observarmos os fenômenos linguísticos e estilísticos do texto, com base nas

ferramentas da Crítica da Forma, nos aproximamos do ambiente social164

mais provável

do texto.

As lamentações de ordem individual ou coletiva funcionam como um grito de socorro,

podendo ser acessadas pelo orante, antes que este tenha sucumbido ao ataque de seus

inimigos. Provenientes originalmente de ritos de cura e de ação de graça depois da

salvação divina, as orações de queixa, reportam ao ambiente mágico que

acompanhavam os ritos de petição (I Rs. 14.1-19).

Seus elementos básicos são: Invocação / queixa / confissão / afirmação de fé / súplica /

maldição / reconhecimento da resposta divina / voto ou promessa / hinos e elementos de

louvor / ação de graças antecipada. Dentre as duas classes de lamentações, (lamentações

coletivas e lamentações individuais), nosso salmo se apresenta como pertencente ao

gênero165

de lamentação individual. Conforme relatamos no primeiro capítulo,

Gerstenberger destaca os seguintes Salmos com leves modificações: 3-7; 11-12; 13; 17;

22; 26-28; 31; 35; 38-39; 42-43; 51; 54-57; 59; 61; 63-70; 71; 86; 88; 102; 109; 120;

130; 140-143.

163

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal. São

Paulo: Paulus, 1998. p. 168-171 164

Cf. SWEENEY, Marvin A. “Form-Criticism: The question of Endangered Matriarchs in Genesis”.

Em: LEMON, Joel M.; RICHARDS, Kent Harold (eds.). Method Matter: Essays on the Interpretation of

the Hebrew Bible in Honor of David L. Petersen. Atlanta: SBL, 2009, p. 17-38 165

GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos Persas: Séculos V e IV antes de Cristo. São

Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 240

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72

O Salmo 55 está neste grupo. Certamente desenvolveu-se a partir da constante e

ameaçadora luta contra a morte, presente no contexto social de grupos primários do pós-

exílio. A constatação da natureza e das causas que devem ter precedido a recitação deste

salmo, tem obviamente, as maquinações inimigas como causa da aflição do sofredor.

Consequentemente, a queixa expressa no lamento do salmista, toma posição contra o

grupo hostil, incluindo os ex-amigos, com pesadas denúncias e maldições.

2.5.1. Tipo e estilo literário

O tipo e estilo de nosso texto são poéticos. Os salmos trazem em suas unidades, certa

estrutura poética, agendária166

, que permite reconhecer a divisão do texto em

introdução, desenvolvimento e conclusão. O Salmo 55 deixa sobressair em sua

poeticidade, comparações e metáforas, que proporcionam ao texto uma estrutura típica

do paralelismo, que é o elemento base da poética hebraica.167

Aqui se percebe os traços característicos da poesia hebraica, quando na sonoridade de

suas palavras identificamos a construção de rimas, como, por exemplo, no versículo 2,

onde temos as palavras yti_L'piT. e yti(N"xiT.mi traduzidas respectivamente como “minha

oração” e “minha súplica”; também no versículo 5, yBiliâ e yBi_r>qiB. traduzidas por

“meu coração” e “em meu interior”. Ainda em referência à sonoridade encontramos

aliterações168

que dão o efeito estilístico da prosa poética. Vejamos alguns exemplos:

versículo 10, [L;äB; e gL;äP; traduzidas por “confunde” e“ divide”; versículo11, ~m'ÛAy e

h'buîb.Asy> traduzidas por “de dia” e“ rodeiam” e versículo 20, é~nE[]y:w>¥ e bveîyOÝw> traduzidas

por “ e responderá” e“ e permanecerá”.

166

GERSTENBERGER, “Gênese do saltério”, p. 14. 167

BALLARINI, Teodorico e Venanzio Reali. A poética Hebraica e os Salmos. Petrópolis. Vozes, 1985,

p. 17-29 168

Palavras com sonoridades semelhantes em seu início. Cf. SCHÖKEL, Luiz Alonso. Manual de

Poetica Hebrea. AC 41. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1987, p. 41

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73

O poema muda do singular para o plural, misturando orações, queixas e confissões de

fé169

. O conteúdo do texto em estudo está repleto de paralelismos com elementos

sinonímicos170

, que seria uma espécie de repetição semântica; há também paralelismos

antitéticos, quando a segunda parte contrapõe a primeira, e sintéticos, onde a segunda

parte completa ou leva adiante o pensamento.

Seguimos com alguns exemplos: (1) Paralelismo sinonímico: Por causa da voz (do)

inimigo byE©Aa em face da pressão tq:å[' do malfeitor [v'_r" pois me fazem cambalear

Wjymiîy" sobre (a) maldade !w<a'÷ª yl;î[ e na ira @a;b.W guardar rancor ynIWm)j.f.yI (v.4); (2)

Paralelismo antitético: Resgata em paz ~Alåv'b minha vida / de quem me faz guerra

br"Q]mi (v.19); (3) Paralelismo sintético: Eis que não é o inimigo byE©Aa que me

escarnece, ynIpeªr>x")y> então eu o suportaria / não é o que me odeia yain>f;m que me

sobrepõe yl;ä[' e se engrandece lyDI_g>hi, então me esconderia dele. (v. 13).

Assim, esta variedade de elementos encontrados, bem como os tipos poéticos

assinalados, demonstram a elaboração poética desta composição.

2.6. Lugar e data

Diagnosticado nosso texto como Salmo de lamentação individual, resta-nos responder

qual é o lugar e o tempo desta composição. Como percebemos, nesta forma de lamento,

a denúncia constitui a categoria litúrgica usada mais amplamente no Saltério.

Originalmente deriva-se de um culto de adoração que mais tarde foi usado como

cânticos espirituais individuais. Estes salmos surgiram em maior quantidade nos

contextos onde há aparente risco de vida. Tais contextos podem incluir doença,

infortúnio e perseguição por inimigos.

169

DUNN, Steven. Wisdom Editing in the book of Psalms: Vocabulary, Themes and Structures.

Wisconsin, 2009. 343f. Tese (Department of Theology, Faculty of the graduate School – Marquette

University, Wisconsin, 2009, p. 84-85. 170

SCHÖKEL, Luiz Alonso, Manual de Poetica Hebrea, p. 86-89

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74

Gerstenberger ressalta:

Os salmos de lamentação individual em si, no entanto, deixam claramente

transparecer os motivos existenciais do culto caseiro de cura: doença grave (cf.

Sl 38; 41), polêmicas internas e externas (cf. Sl 35; 55; 69; 109; 120), falsas

acusações (cf. Sl 7; 17; 26), própria culpa (cf. Sl 6; 51; 130), ataque de

demônios (cf. Sl 91), angústias e sinais ominosos (cf. 13; 22; 59; 102). Em

todos estes casos de perigo para a vida, os meios caseiros estando esgotados, as

famílias antigas se dirigiam a um curandeiro reconhecido (no AT: “homem de

deus”, como Elias e Eliseu) pedindo ajuda profissional. A oração pelo sofredor,

provavelmente com participação dos familiares, era o ponto alto do tratamento.

Estas súplicas foram recolhidas através dos séculos no acervo de textos

sagrados e serviram em cultos casuais da comunidade judaica emergente171

A ocorrência de palavras raras no Antigo Testamento como (tq:å[' pressão, jwm fazer

cair, cambalear, v. 4); (jl'p.mi escapar, h[s calúnia, v.9); (gL;äP ; divide, v.10); (hp'ylix]

mudanças, v.20); (é^b.h'y > teu fardo, ^l<ïK.l.k;ñy> te suportará, v.23), junto com o excesso

de maldições, presente nesta composição, remontam possívelmente há períodos tardios.

Estes fatos, adicionados a imagens arcaicas, que lembram o mundo cananeu, como por

exemplo as referências a ~yhiªl{a / ’elohim; tybeîB ~yhiªl{a/ casa de ’elohim e a hn"©AY

pomba, nos permite supor que o Salmo seja um texto poético que ainda tem na

memória, eventos mais primitivos.

Por outro lado, quando nos deparamos com o cabeçalho, tendo a informação de que

estes, remetem a editorações posteriores dos Salmos172

, a indicação de certos autores

como Coré, Asaf, Emã, Etã, Moisés, Salomão e Davi173

, nos dão a idéia que existiam,

na época tardia e na memória do povo, certos adminstradores e talvez autores de

Salmos.

O nome de Davi é o mais proeminente no Saltério e se tornou um ponto de cristalização

para os transmissores dos salmos, que nos faz olhar mais para o uso pragmático dos

textos, do que para o conteúdo doutrinário. Segundo Kraus, a relação dos Salmos com a

171

GERSTENBERGER, “Gênese do saltério”, p. 15 172

Cf. McCULLOUGH, W. Stewart. The Book of the Psalms: Introduction. In: The Interpreter’s Bible.

Volume IV. Nashville: Abingdon Press, 1994, p.8 173

Cf. GERSTENBERGER, “Gênese do saltério”, p. 18 e KRAUSS, Los Salmos 1-59, p.28-46

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75

história de Israel requer pensar no título dado a Davi, como um modo de reler a história

de Israel de forma imediata nos salmos.174

A referência yti_L'piT. minha oração e yti(N"xiT.mi minha súplica, dão sinais do lugar

deste salmo na liturgia como uma coleção de hinos e orações. A referência à tybeî

~yhiªl{a/ casa de ’elohim, faz pensar que a cidade é Jerusalém, ainda que eram comuns

as peregrinações rituais. A menção à profanar a aliança At*yrIB. lLeîx, corrobora com o

teor cultual e ritualizado do texto, pois uma complexa e rica tradição no AT sobre o

conceito de aliança está vinculada à pratica religiosa.175

No entanto, Gerstenberger afirma que “a referência a uma aliança no verso 21 é de

tratados privados, não um pacto israelita como no Salmo 50.5. Portanto, não há

vestígios de serviços sinagogais posteriores no Salmo 55”.176

Esta afirmação de

Gerstenberger, associada ao conceito de aliança como um tratado entre duas partes,

assegurado pelo testemunho divino, tem seu reforço nos escritos proféticos onde o povo

é indiciado por quebrar a aliança, sendo submetidos a um processo ou litígio byrIå.

O aparecimento palavras como byrIå litígio contenda,ry[i cidade, bxor> praça, vwm

apartar, l[; sobrepor, reforça o ambiente de uma disputa legal, observada com

frequência no período pós-exílio.

Se tratando, portanto, de um Salmo que combina elementos distintos, de características

que situam-se em diferentes níveis, nosso texto insere-se de modo evidente na tradição

do saltério.

Quando percebemos seu marcado teocentrismo, sua insistência na confiança em Javé e

o refúgio para ’elohim, partindo de uma aplicação individual para o comunitário,

174

KRAUSS, Hans Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca: Ediciones Sigme, 1985. p237-238 175

HARRIS, R. Laird. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. Tradução de Márcio

Loureiro Redondo, Luiz A. Sayão, Carlos Oswaldo C. Pinto. São Paulo: Vida Nova. 1998, p. 214-217 176

Cf. GERSTENBERGER, Psalms Part. 1, p. 226

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76

podemos concluir que o lugar vivencial deste Salmo é o templo de Jerusalém e o seu

uso poderia estar associado a algum trecho litúrgico do culto no período pós-exílio177

.

2.7. Comentário exegético

Cabeçalho: 1

1 Para o dirigente de música. Maskil para Davi

O cabeçalho, sendo acréscimo posterior para as composições cúlticas, contém, na

verdade, indicações relacionadas ao seu uso prático, nas celebrações. São consideradas

anotações tardias, feitas pelo pessoal encarregado da ordem litúrgica dos cultos. É

importante observar que elas foram redigidas antes da primeira edição da Septuaginta

(século III a.C.).

O cabeçalho deste salmo é exatamente idêntico ao Salmo 54, o que pode indicar, mesmo

que sejam Salmos diferentes, que o editor os usou para os mesmos fins litúrgicos. Em

todo o saltério temos quatro agrupamentos de salmos considerados “davídicos”,

identificados pela fórmula dwI)d"l. “para Davi” em seu título. São eles: Sl 3-41; 51-72;

108-110; 138-145.

A interpretação do l. neste caso tem gerado dificuldades. Como preposição seu

significado está associado à expressão de sentido ou lugar: para, sobre, por, etc.178

Devido o relato da tradição cronista de que Davi é o iniciador e criador das instituições

e cerimônias do culto (cf. 1Cr. 22.2 - 29.5) 179

, a interpretação do l. foi conduzida para

o sentido de autoria. Kraus citando T. K. Cheyene, interpreta a utilização do nome no

sentido de “pertencentes à coleção de Salmos de Davi”.180

177

Cf. KRAUSS, Hans Joachim. Psalms 1-59: A commentary. Translated by Hilton C. Oswald. Augsburg

Publishing House. Minneapolis. p.520 178

KIRST, Nelson, et alii. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 18ª Ed. São

Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/vozes, 2004, p.107 179

KRAUSS, Psalms 1-59, p.30 180

Idem

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77

A razão do título usando a fórmula dwI)d"l. tem o sentido de conferir ao Salmo maior

prestígio e aceitação litúrgica,181 visto que , este título está presente em 73 composições.

Fica evidente a suma importância de Davi na tradição cultual do Antigo Testamento.

Esta tradição é na verdade, bastante complexa e repleta de atribuições a Davi, que o

configuram como o ungido de Deus (ISm. 16.13), tornando-se a figura messiânica por

excelência em algumas camadas literárias do AT (Cf. Is. 9.5-6; 11.1-9; Jer. 33.14-22; Ez

34.23-24) 182

.

Segundo Bervard S. Childs a intenção dos títulos davídicos é totalmente religiosa com a

finalidade de permitir ao leitor experimentar os mesmos sentimentos de Davi. Isto faz

pensar que os títulos dos Salmos provém de círculos de judeus piedosos e não

meramente editores intelectuais.183

O Título pode ser visto neste caso, como um convite

para ler o Salmo em memória de Davi e assim o leitor pode sentir-se participante da

dignidade e das promessas davídicas messiânicas.

Embora seja um título comum em quase metade dos Salmos, não é tão frequente que

esteja só, sem outras especificações. Em todo o saltério somente nove Salmos o tem

como breve título, seis deles pertencem ao primeiro Livro: Sl. 25.1; 26.1; 27.1; 28.1;

35.1; 37.1.

A expressão x;Ceîn:m.l; ocorre 55 vezes nos cabeçalhos de salmos (e em Habacuque 3.19).

Não há uma explicação plausível para o seu significado, porém, é possível levantar duas

possibilidades, a partir da História do Cronista: primeiro, em Esdras 3.8, 1Cr 23.4, e 2

Cr 2.1, a raiz verbal xcn possui o significado de sobrepujar, sobressair, distinguir-se,

dirigir, estar a frente, liderar. Como a maioria dos cabeçalhos tem informações sobre a

música, não é difícil supor que a palavra x;Ceîn:m.l; se refere à música. Assim, o

significado pode ser “diretor de música” ou “mestre do coral”.

181

GERSTENBERGER, Erhard S. “Gênese do Saltério”. Revista Caminhos. Goiânia: Programa de Pós-

graduação em Ciências da Religião PUC Goiás. v8, n1, p. 11-28, jan./jun. 2010. p.21 182

GERSTENBERGER, Erhard S. “Gênese do Saltério”, p 20 183

CHILDS, Bervard S. “Psalm Titles and Midrashic Exegesis”. Journal Semitic Studies. 1971, XVI (2):

137-150. p. 149. Disponível em http://jss.oxfordjournals.org/content/XVI/2/137.full.pdf+html.

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78

Segundo, o texto de 1Cr 15.21 pode nos levar à segunda possibilidade. Aqui, xcn ,

provavelmente, também significa “fazer música”. Em vista disso, Hans-Joachim Kraus

sugere que a expressão x;Ceîn:m.l; deveria ser traduzida por “para o desempenho

musical”184

ou como “regente”, enquanto Schökel prefere “ao diretor”. Embora, para

Kraus, esta seja uma interpretação incerta185

, os textos de Esdras 3.8; 1Cr. 23.4; 2Cr.

2.1, trazem a mesma raiz, xcn demonstrando cargos administrativos dentro do templo.

Entretanto, como o verbo xcn encontra-se na forma "Piel" particípio, a palavra x;Ceîn:m.l;

poderia ser traduzida por “fazer música”. Assim, com o prefixo “l;” o verbo no

particípio forma uma expressão “para o que faz música”, isto é, aquele que dirige a

música nas celebrações. Observando 1Cr. 15.21, percebemos que a intenção do texto é

destacar um “diretor de música”, que nos faz concordar com a opinião de Kraus para a

nossa tradução.

A segunda palavra desse cabeçalho é a enigmática lyKiîf.m; . O termo é frequentemente

considerado como um poema que é intelectualmente e artisticamente concebido para

fins litúrgicos.

A ocorrência deste termo hebraico merece uma análise cuidadosa, seja no aspecto

etimológico, seja no seu contexto histórico. Contudo, é muito difícil explicar o sentido e

o significado de certos termos técnicos. Este termo ocorre nos títulos dos seguintes

salmos: 32; 42; 44; 45; 52-55; 74;78; 88-89; 142 e no Sl 47.7 como objeto do verbo

rmz, no piel (cantar, tocar). Entre as interpretações deste termo, a mais sensata é aquela

que põe lyKiîf.m; em relação com a sabedoria186

. Sem sair dessa compreensão sapiencial

do termo, posteriormente, outros exegetas viram em lyKiîf.m; uma palavra que expressa

canto artisticamente composto187

.

184

KRAUSS, Hans Joachim. Psalms 1-59, p. 435-442 185

Cf. KRAUSS, Hans Joachim. Psalms 1-59, p.31 186

Cf. MOWINCKEL, S. The Psalms in Israel’s Worship II. Nashville: Abingdon. 1979. p.209. 187

Cf. KRAUSS, Psalms 1-59, p.25-26

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79

Tércio Machado Siqueira comenta:

A raiz yKiîf significa “entendimento”, “discernimento”, “sabedoria”, etc.

O verbo dinamiza este significado determinando como alcançar o alvo da

sabedoria e do sucesso. Assim, a palavra lyKiîf.m; significa, no contexto

do Salmo, uma canção que carrega uma força de sabedoria além do

normal. Por possuir este efeito, é que os cultuadores acreditavam ser este

salmo um hino digno de louvor a Javé.188

I. Súplica inicial: 2-3a

2 Ouça ’elohim minha oração

e não te esconda de minha súplica.

3a Atende e me responde

O salmo começa se apresentando como hL'piT. oração e hN"xiT. súplica, que

corresponde à nossa classificação deste trecho como súplica inicial. Três imperativos e

um verbo definem também a tonalidade de petição: !za dar ouvidos (v.2a); ~l[189,

ocultar, ser secreto (v.2b); bvq, prestar atenção, hn[, responder (v.3a). Ao contrário

de muitos salmistas que misturam, ao apelo, expressões de queixa, confiança e louvor,

este celebrante queixoso desenvolve com amplidão, por motivações de ordem social e

psicológica, todas as desgraças que sofre para mover e comover a ’elohim190

. Trata-se

de uma fórmula litúrgica, já que muitos salmos a repetem em seus lamentos (Sl 4,2;

54,3-4;102,2-3; 143,1).

O verbo ocultar, ~l[, não é estranho aos demais verbos, mas reforça o apelo do

salmista para que ’elohim possa ouvir a sua súplica, e a sua oração. A incidência destes

188

SIQUEIRA, Tércio Machado. “Violência e esperança.” Em: Revista Caminhando, v. 1, n. 1, p. 13-17,

2009 [2ª ed. on-line; 1ª ed. 1982] 189

Embora ~l[ não esteja no imperativo, o termo ~L;ª[;t.Ti÷-la;w> possui um significado equivalente. Cf.

McCANN, J. Clinton, Jr. The Book of the Psalms: Introduction, commentary and reflections. In: The New

Interpreter’s Bible. Volume IV. Nashville: Abingdon Press, 1994, p.898 190

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 727

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80

imperativos mostra que o salmista tem pressa em ser atendido. Ele demonstra ter medo

da voz e da aproximação dos inimigos.

II. Lamentações de um Desesperado: 3b-24b

O uso de um vocabulário pouco comum na Bíblia Hebraica e, aparentemente, três

círculos de queixa: primeiro, versos 3b-10b; segundo, versos 10c-16; terceiro, versos

20c-24, faz deste salmo algo peculiar. É importante destacar que o salmista separa dois

momentos para reafirmar a sua fé (v.17-20b e 24b). Cada rodada de queixa mostra dois

elementos fixos: a descrição da queixa e as palavras de maldição. O ponto de partida,

até aqui, para estas composições de lamentação, parece refletir os aspectos de uma

aflição ritualizada191

. O desespero do salmista diante da opressão que ele sofre, revela

muito mais a emoção de um conflito individual, do que a experiência concreta do perigo

de morte. A variedade de expressões de lamento, intercalados com maldições e

afirmações de confiança, descreve este estado físico e mental do salmista.

A. Problemas causados na vida do salmista: v. 3b-10a

1. Queixa (v. 3b-6)

3bvagueio em lamento e agitação.

4 Por causa da voz (do) inimigo

em face da pressão do malfeitor,

pois me fazem cambalear

sobre (a) maldade

e na ira guardam rancor.

O salmista sente-se pressionado, agita-se dwr em sua ansiedade. O verbo ~wh

alvoroçar, lançar em confusão, lembra o barulho confuso de uma multidão, como por

exemplo, de uma cidade em 1Rs 1.55; do povo em Rt 1.19. Parece-nos que o orante se

contagia pelos “gritos e apertões” (voz do inimigo e pressão do malfeitor) que associado

a tq:å[' pressionar, apertar, esmagar (v.4), faz com que ambos os significados se

encaixem no contexto.

191

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 1, p.224

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81

Na maioria das passagens poéticas, o termo lAq voz, abrange muitos tipos de sons e

pode até indicar uma situação de catástrofe192

. Sua angústia e medo antecedem as

reclamações que demonstram múltiplos aspectos de sua aflição. Um rápido olhar para as

atividades do inimigo byE©Aa e do malfeitor [v'_r" (v4) é seguido pelo sentimento de

angústia que se apodera do suplicante.

Geralmente, o significado, tanto de inimigo como do malfeitor devem ser determinados

pelos verbos que descrevem suas ações. Assim, somente a partir do verso 4b, é que se

pode melhor conhecer os feitos desses dois inimigos do salmista. Eles fizeram cair jwm

“tropeçar, fazer cambalear” sobre o salmista a desgraça, !w<a (v.4c) e com ira se

alimentam de rancor, ~jf193 (v.4d). Com isso, as reações psicológicas, sobre o

salmista, causaram-lhe uma paralisia.

5 Meu coração estremece em meu interior e

terrores de morte caem sobre mim

6 Medo e tremor entra em mim e cobre-me

um estremecimento

Nestes versos, o salmista utiliza-se de termos e expressões que comunicam sua profunda

angústia, causada pela ação de seus inimigos que trouxe desdobramentos em seus

sentimentos e sensações. A reação do íntimo de seu corpo foi negativa: terrores de

morte, medo e tremor, estremecimento. Schökel afirma que “esta é a única vez que o

verbo lyx, tremer, contorcer-se, tem como sujeito ble”194, deixando transparecer o

descontrole emocional do salmista. Outras palavras importantes deste campo semântico

192

HARRIS, R. Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de

Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova. 1998, p.1330-1331 e HOLLADAY, William L.

Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova.

2010, p. 448 193

O verbo ~jf hostilizar, ter sentimentos hostis, é pouco utilizado no AT (Gn 27,41; 49,23; 50,15; Jó

16,9; 30,21). Cf. WANKE, G. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (orgs.), Diccionario Teologico

Manual Del Antiguo Testamento, Volume II, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985, p. 1032-1035. 194

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72,p. 729.

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82

como, terrores de morte tw<m'÷ª tAmïyaew> (v5); medo ha'är>yI (v6); d[;r;, tremor (v6) e, por

fim, estremecimento, tWc)L'P; (v6), expressam bem o sentimento do salmista diante da

voz do inimigo, byE©Aa e da opressão do malfeitor, [v'_r' (v. 4a).

A identidade deste inimigo, segundo Kraus195

, está presente nos Salmos de orações

individuais, que descrevem suas ações como: malfeitores e perseguidores. Assim, não é

difícil entender que o salmista fala do inimigo, byE©Aa e do malfeitor, [v'_r", como pessoas

que mentem e torcem a verdade (Sl 5.10;19.7), são negadores de Deus (Sl 14.1) e se

comportam com segurança e superioridade perante sua riqueza(Sl 4.5; 35.20; 12.5).

A determinação exata do inimigo, nos Salmos de Lamentação, especialmente, é bastante

problemática. O substantivo byE©Aa é uma denominação geral para todos os que agem

como adversários do povo de Israel. Em Salmos 45.6, encontramos a formulação

%l,M,(h; ybeîy>Aa “inimigos do rei”, que obviamente são inimigos de Israel ou judá. Os

Salmos registram dois tipos de inimigos: inimigo pessoal (Sl 3.8; 6. 11;7.6; 4.7; 13.5 e

outros) e nação inimiga (Sl 18.41; 21.9; 72.9; 110.1-2 e outros). Nos salmos onde a

nação é o sujeito, é normal que se trate os inimigos como as nações que fazem guerra

contra o povo de Deus (Sl 2.8; 18.48; 45.6; 72.11 e outros). Porém, nos salmos

individuais, a identificação dos inimigos fica mais difícil. Inimigos, também, podem,

até, ser os irmãos judeus que frequentam a mesma comunidade de culto. O Salmo 55

classifica estes inimigos como: [v'_r" , malfeitor (v.4); a cidade, ry[i (v.10); o que

odeia, anEf' (v.13); o que profana a aliança, At*yrIB. lLeîxI (v. 21); homens sanguinários

e fraudulentos, hm'r>miWâ ~ymiäd" yveÛn>a; (v. 24). A identificação desse grupo de pessoas

revela a ação do inimigo contra o salmista, contra a comunidade e Javé.

a. Expectativas (v. 7-9)

7 E disse: quem dera para mim ter asa como a pomba,

195

KRAUS, Hans-Joachim. Theology of the Psalms. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1986,

p.129-131

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83

voaria e pousaria

8 Eis! para longe fugiria ficaria no deserto (sela)

9 Me apressaria em escapar do vento da calúnia

e da tempestade.

Estes três versos fogem da seqüência normal de uma lamentação. Surge uma imagem

diferente no verso 7 que descreve o salmista em uma “síntese peculiar de inação física e

fuga imaginária”196

, o medo que mobiliza a imaginação do salmista, o faz desejar um

refúgio seguro para desfazer seus traumas e angústias.

A imagem é bem composta e evoca múltiplas referências e insinuações. A pomba hn"Ay,

apesar ser a única espécie de ave escolhida para o sacrifício, nos rituais de purificação,

tem como única defesa um par de asas para voar. O deserto rB'd>mi, lugar de tensões e

desolações, tem seus valores invertidos, transforma-se em local de refúgio piedoso de

perseguidos (Cf. 1Rs 19). As figuras que o salmista usa de uma pomba que se apressa

em escapar dos ventos da calúnia, são condizentes com a situação que ele vivencia.

b. Maldição (v 10a)

10a Confunde Senhor e divide a língua deles,

O salmista faz uso, pela primeira vez em sua queixa, do elemento mágico da maldição:

[lb perturbar, confundir, destruir e glp cortar, dividir, a !Avl' língua deles (v.10a).

Na ampla lista dos Salmos de Lamentação, Gerstemberger197

e Claus Westermann198

,

destacam três dimensões da maldição: (a) sobre o próprio sofrimento do queixoso; (b)

sobre a ação dos inimigos contra o queixoso; (c) sobre a negligência divina.

Evidentemente que o Salmo 55 refere-se ao segundo caso. Com dois verbos no

imperativo, o salmista revela todo o seu sentimento para com os seus inimigos:

primeiro, o verbo [lb, com seus derivados, “usado para se referir a homens (Isaías

28.4), um peixe (Jn 2,1), serpentes (Ex 7,12) e animais (Gn 41.7, 24)”199

.

196

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 730 197

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 1, p.11-13 198

WESTERMANN, Claus. The Role of the Lament in the Theology of the Old Testament. p. 27-28 199

HARRIS, R. Laird, Gleason L. Archer Jr e Bruce K. Waltke. 1998, p.187

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84

O Aparato crítico da BHS sugere que o verbo [lb seja substantivado por ~n"+ArG> [l;B,,

provávelmente uma alusão ao ato de engolir, devorar. Este substantivo ocorre apenas

duas vezes no Antigo Testamento (Sl 52.6 e Jr 51.44)200

. A Massora Parva da BHS

descreve a expressão yn"doa]â [L;äB como única (hapax legomenon). No entanto, o verbo

[lb neste salmo, ganha mais sentido quando observado em paralelismo com palavra

língua, !Avl', nesse caso, a tradução do verbo por confundir, ganha o sentido

reminiscente de ll;B' (cf. Gn 11.7-9), na ocasião da Torre de Babel e também em outras

passagens: Sl 107.27, Isaías 9.15; 193 e 28.7.201

O segundo imperativo é o verbo gL;äP;, fender, dividir. Este é também um caso único

(hapax legomenon)202

e ocorre somente no nifal e no piel203

, o aparato crítico informa

que o sentido do texto seja provávelmente gl,P,, uma espécie de canal de águas

construído artificialmente. O paralelismo dos verbos – confundir e dividir a língua –

não encaixa bem na seqüência do pensamento, mas no contexto do salmo, o verso pode

indicar o desejo do salmista em que os discursos que fluem ameaçando e destruindo,

sejam confundidos. “Parece que o salmista recorre à uma inversão de funções: os canais

que alegram e fecundam a cidade (cf. Sl 46.5), tornam-se perniciosos, e do mesmo

modo, a língua, instrumento de convivência pacífica, converte-se em fator de

divisão.”204

Basicamente, o verso carrega o sentido de intervenção punitiva e julgamento de Javé,

particularmente no período do exílio quando os babilônios devastaram a terra de Judá.

Para Jeremias, essa destruição foi um ato punitivo de Javé sobre o povo de Judá. Se

Deus puniu Judá, por que não punir os inimigos, confundindo e dividindo as

difamadoras línguas dos malfeitores?

200

Idem 201

ALBRIGHT, W. F., The oracles of Balaam, JBL, 63:207-233 disponível em:

http://www.jstor.org/stable/3262320 e HENGSTENBERG, E. W., The History of Balaam and this

prophecies, in: Dissertations of the genuineness of Daniel and the integrity of Daniel. Edinburgh: Clark,

1847, p. 337-356. 202

Cf. Mp da BHS 203

DITAT, p.1214 204

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 731

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85

B. Problemas causados na cidade: (v. 10b – 20a)

Esta segunda rodada de lamentação mantém os dois gêneros da lamentação: a queixa

(v.10b-12) e a maldição (v.16). Porém, o salmista, nos versos 13-15, lamenta de forma

contestatória, para depois declarar sua afirmação de fé (v. 17-20a).

1. Queixa (v. 10b-12)

10b eis que! vejo violência e contenda na cidade

11 De dia e de noite rodeiam sobre os seus muros

e maldade e fadiga em seu interior

12 Ruínas em seu interior e

opressão e engano não aparta de suas praças

A forte sequência de paralelismos indica a intenção do salmista em deixar bem evidente

as ações de seu agressor. O recurso poético dominante nesta secção personifica as várias

situações que cooperam para a sua aflição.

Esta segunda queixa inicia sugestivamente com a partícula yKi(, eis que! O salmista

destaca a opressão que ele sofreu e, ao mesmo tempo, denuncia os sérios problemas que

a sua cidade estava enfrentando. Enquanto no primeiro círculo o salmista lamenta de

seus problemas particulares, aqui, ele menciona os conflitos vividos pela comunidade.

O salmista se coloca como uma testemunha ocular. Ele inicia sua acusação com a

expressão ytiyai’r", eu vejo. Para ele, a sua cidade está inundada de violência, sm'x', e

contenda jurídica, byrI (v.10b), maldade, !w<a', e fadiga, lm'[ (v.11b), ruína, hW"h;,

opressão, %T, e fraude,engano, hm'r>mi (v.12). Este elenco de adjetivos para a cidade,

onde a opressão é mais uma vez descrita em forma de lamento, reforçam de forma

incisiva a depravação do lugar. A observação do salmista começa pelas muralhas, segue

para o interior e passa por suas praças. Para ser mais explícito, a cidade encontrava-se

sob o comando de pessoas perversas e violentas, ao todo, sete personificações que

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86

exercem o comando político da cidade podem caracterizar melhor o lamento do

salmista. É interessante que essa violência estava instalada em todos os lugares

públicos. A história bíblica registra que no século V a.C., Jerusalém foi palco de tristes

acontecimentos. Certamente, o salmista foi testemunha desses fatos quando os judeus

eram vassalos da Pérsia.

2. Queixa contestatória (v. 13-15)

13 Eis que! não é o inimigo que me escarnece Então (eu o) suportaria

não é o que me odeia (que) me sobrepõe e se engrandece

então (me) esconderia dele.

14 Mas tu ó homem conforme minha ordem,

meu amigo e meu conhecido (íntimo),

15 o qual juntos na nossa doçura em aconselhamento,

na casa de ’elohim

nós andávamos na multidão.

Neste ambiente ameaçador, o salmista deixa de generalizar sobre a violência e alude à

particular e dolorosa traição do amigo @WLa; íntimo [d;y" . Em tom contestatório ele

abre sua queixa, reforçando sua intensidade novamente com a partícula yKi(, eis que!

Em tom metafórico, a linguagem torna-se direta e valorizada pelo contraste amigo /

inimigo, antes / agora e pela interpelação do traidor hT'äa;w> na segunda pessoa,

masculino, singular. Esta intimidade mencionada na confidência da casa de ’elohim,

reforçada por yKi_r>[,K. vAnæa/ “homem conforme minha ordem, igual a mim, da minha

mesma condição” juntamente com amigo @WLa; e íntimo [d;y" , reforçam o trato

prolongado e familiar. Nos textos da torah @WLa; é usado como referência aos chefes

tribais ou guias do povo (cf. Gn 36; Ex 15.15; Prov. 2.17 e outros). No Salmo 55 o

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87

termo se refere provavelmente a um amigo e parente, companheiro de caminhada à Casa

de ’elohim. Esta referência “Casa de ’elohim”, faz pensar que a cidade é Jerusalém,

mesmo que também se possa referir à peregrinações rituais em comum.

Em qualquer caso, o “lugar sagrado”, intensifica o contraste da cidade entregue à

violência e ao crime.

3. Maldição (v. 16)

16 A devastação seja sobre eles e

caiam no xeol os (que estão) vivos, pois há perversidades em suas

moradas, em seu interior.

Pela segunda vez, o salmista pragueja os perversos habitantes de sua cidade. Esta

maldição encerra a segunda rodada de lamento (v.10c-15). Certamente é uma

comunidade localizada fora de Jerusalém. A ligação desta maldição com a expressão

yn"doa]â [L;äB; no verso 10a completam a intenção do salmista em ver exterminada as

ações dos seus inimigos.

Esta maldição, caiam no xeol os vivos, lembra Nm 16,33, quando o ancestral da casa de

Coré foi engolido pela terra, em razão da tentativa de desafiar Moisés. Este, também, é

o que o samista deseja aos seus inimigos.

Em paralelo com lAav. xeol está tAmyviy> ieximot. A intensidade com que o salmista

profere sua maldição é violenta e se apoia em dois poderes equivalentes: devastação e

abismo. Tanto o aparato crítico quanto a Massora parva da BHS indicam que tAmyviy> é

um ketiv, tendo como qerê205

, a fórmula que une dois termos: twm morte e yVy

maltratar, atuar como um credor. A opção em traduzir tAmyviy> por devastação e não

205

O texto da Bíblia Hebraica apresenta várias situações em que uma determinada palavra deve ser lida

de forma diferente daquela que está escrita no próprio texto. Esta situação é reflexo da existência de

variantes encontradas em antigos manuscritos. Em tais casos, a palavra ou expressão recebe a

denominação de Ketiv (o que está escrito), enquanto a forma que deve ser lida é Qerê (o que é lido).

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica, p. 178

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por morte ou morte súbita, como na maioria das Bíblias em português, tem como

pretensão destacar com maior intensidade a força empregada pelo salmista nesta

palavra.

No contexto bíblico lAav. xeol é o lugar dos mortos (Sl 63,10) para onde descem os

que morreram (Sl 89,49). O mundo dos mortos era imaginado pelos antigos como

oculto nas profundesas subterrãneas, onde se sustenta e estende a compacta terra dos

vivos206

. A literatura bíblica menciona o xeol paralelo à fossa e à sepultura (Cf. Gn

37.35; 42.38; Nm 16.30; Jo 17.13 e outros)207

. É um lugar de trevas e vermes. A descida

para o xeol, conforme o salmista (55, 16) equivale à morte.

O orante deseja aos inimigos, que uma força devastadora, de fora e de cima, caia sobre

eles e que abaixo, no abismo, o xeol os tranque sem escapatória.

4. Afirmação de fé em linguagem litúrgica (v. 17-20a)

17 Eu para ’elohim clamarei

e YHVH me salvará.

18 Tarde e manhã

e ao meio dia lamentando gritarei

e (ele) ouvirá minha voz.

19 Resgata em paz minha vida de quem me faz guerra,

pois muitos são contra mim.

20 Ouvirá Deus e os humilhará

e permanecerá em frente Sela

O queixoso é um fiel javista que lamenta, mas crê e declara a sua fé. É a primeira

afirmação de fé deste salmo de lamentação. O paralelo entre Javé e ’elohim reflete bem

a dimensão da fé do salmista, enquanto ’elohim é usado de forma genérica, Javé é

indicado como aquele que salva, pois, no saltério, Javé é claramente o guardião e

promotor da vida.

206

PEDRO, Enilda de Paula e NAKANOSE, Shigeyuki. Como ler o livro de Oséias, reconstruir a casa.

São Paulo: Paulus, p. 30; SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 733 207

Cf. LISOWSKY, Gerhard. KHAT, p. 1390

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A extensão desta declaração de fé pode explicar a sua ausência na primeira rodada de

queixa, a lógica da linguagem litúrgica de um lamentador segue correta. O queixoso

clama, arq (v.17a), e medita lamentando, xyf e grita, hmh (v.18a) e ’elohim

resgata, hdp em paz, ~Alåv'b. (v.18b-20a ). Aqui é preciso frisar que o tempo verbal de

hdp208, remete ao paradoxo da paz em meio à agitação e sofrimento do salmista, “eu

estou em paz pela esperança segura”.

O salmista conclui afirmando que a ação salvífica de Deus não é temporária ou

passageira, mas seu governo, bvy, permanece, desde a antiguidade, salvador. Apesar do

Salmo 55 não estar creditado aos "filhos de Coré" (Sl 42; 44-49; 84-85; 87-88), ele traz

marcas teológicas da coleção coreíta209

.

C. Novas denúncias contra o inimigo (v. 20b-24b)

O salmista lamenta pela terceira vez, e novas denúncias são levantadas contra os

inimigos. Esta nova sequência de lamento revela a intensidade do anseio do salmista por

viver em paz em sua comunidade. Para ele, o ritual do lamento era parte importante no

processo de obtenção da paz. Para isso, ele renova suas queixas.

1. O salmista renova suas queixas (v. 20b – 22)

20b porque não existe mudanças para eles

e não temem ’elohim.

21 Lançou suas mãos em (quem) tinha paz

e profanaram sua aliança.

22 A sua falsidade (é como) manteiga na sua boca

e guerra no coração,

208

hd"ÛP'« verbo, qal, perfeito, 3ª pessoa, masculino, singular, raiz: hdp = resgatar, redimir

209 Cf. SIQUEIRA, Tércio Machado. “Jerusalém vista pelos coraítas (Sl 46)”. Em: Estudos Bíblicos.

Salmos de Coré. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 46-47; AHARONI, Yohanan. The Archeology of the land of

Israel. From the. Prehistoric Beginnings to the End of the First. Temple Period. Philadelphia: The

Westminster Press, 1978, p. 229.

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concorrem suas palavras com azeite

e estas são espada desembainhada.

Esta terceira queixa do salmista tem este teor de denúncia. Na verdade, seus inimigos

são irmãos de raça e fé, conforme os versos 13-15. Portanto, estas acusações encaixam

perfeitamente nos israelitas que tinham conhecimento que a Aliança era inviolável.

Primeiro, ele acusa-os de deslealdade para com ’elohim (v.20b). A frase e não temem,

Waår>y" (v.20b) é marcada pela denúncia de que seus inimigos são indignos e incapazes

do perdão, “não existe mudanças para eles pois não temem ’elohim”. Como em outras

ocasiões, a falta de senso religioso precede à perversão e impede a conversão.

Aqui, o salmista não se referia à emoção causada pelo medo do divino, mas esta

expressão está ligada ao comportamento moral e político dentro da comunidade. Assim,

a intenção do salmista é criticar os seus inimigos em razão de que eles não honram e

não são fiéis a Deus, em todos os seus empreendimentos.

Em segundo lugar, o salmista acusa-os de lLeîxi profanar a tyrIB. aliança, (v.21b).

Qualquer membro da comunidade tinha conhecimento que a violação da tyrIB. ,

acarretaria duras conseqüências. Por fim, o salmista acusa os seus inimigos de

agressividade contra a comunidade. A fraternidade tem sido tratada de maneira

traiçoeira: eles usam palavras suaves para esconder atitudes e práticas vis. Para ser mais

claro, o salmista substancia suas denúncias com duas comparações. Com estas

comparações, o salmista quer denunciar a falsidade de seus inimigos210

. Este tema foi

muito veiculado no ambiente dos sábios judeus dos últimos séculos antes de Jesus (Pr

26,23-26; Eclo 12,15).

2. Exortação à comunidade (v. 23)

Como o salmista tem em vista as pessoas de sua comunidade de fé, ele sente que o

perigo dessa prática vil pode alastrar-se junto aos outros membros. Por isso ele dedica

210

Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de la religion de Israel en tempos del Antiguo Testamento. Volume 2,

Desde el exilio hasta la época de los Macabeos. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 799-802

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um conselho para os oprimidos de sua comunidade de culto, oferecendo uma palavra de

encorajamento e salvação.

23

Lança sobre YHVH teu fardo

e ele te suportará

não deixará para sempre vacilar

o justo.

No tom imperativo, o salmista faz a seguinte recomendação aos oprimidos pelos

transgressores da Aliança: Lança, $lv, sobre Javé teu fardo, bh'y> Ele te suportará,

lwk (v.23a). O versículo possui um estilo oracular, o objeto da ação, indicada pelo

salmista, não é o inimigo, mas, metaforicamente, o fardo, isto é, o jugo da opressão que

tem causado muita angústia aos justos. O profeta Isaías desafiou os fiéis a lançarem fora

os ídolos (2,20) e Ezequiel fez o mesmo com relação às abominações (20,7.8). Todavia,

o salmista encontra-se num outro contexto de vida. Ele quer afirmar que a pessoa justa,

qyDIc;, tem sua estabilidade assegurada pela bondade de Javé que “não o deixará para

sempre ~l'îA[l. vacilar”, Assim, o justo pode lançar, em confiança, suas cargas sobre

Javé (cf. Sl 112,6; Pr 10,30; 12,3). Esse desafio implica em confiar na ajuda de Javé. O

culto é o lugar próprio para o salmista fazer esse desafio (Sl 22,11).

3. Maldição (v. 24, a+b)

Pela terceira vez, o salmista pronuncia uma maldição.

24aE tu ’elohim (os) fará cair

no poço na cova.

b Homens sanguinários e fraudulentos

não alcançarão o seu dia

O Salmista parece recapitular as maldições proferidas anteriormente. É sugestivo

observar que a primeira praga está articulada como um pedido feito pelo queixoso para

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’elohim (cf. v.10a+b). As três maldições referem-se à descida ao xeol. A segunda (v.16)

e a terceira (v.24a) maldições caracterizam-se, não pelo pedido de intervenção de Deus,

mas pela afirmação de que Ele agirá punindo os infiéis. Aos inimigos, o salmista deseja

que a morte caia sobre eles, da mesma forma que ele espera que o abismo os trague.

24aE tu ’elohim (os) fará cair no poço na cova

16bcaiam no xeol

III. Afirmação de fé (v. 24c)

24c mas eu confiarei em ti.

A última sentença, mesmo em sua forma resumida e breve, triunfa no final de um salmo

agitado. Provavelmente o verso 24 deveria ser lido após cada parte da lamentação. Ele

seria uma recomendação final, vista a partir de um chocante contraste. Trata-se de uma

palavra acentuadamente pedagógica, já que os infiéis, que não confiam em Deus, não

alcançarão a vida plena.

Os termos desta declaração de fé, certamente, faziam parte da liturgia dos crentes

javistas. Esta afirmação constitui, não somente uma recomendação aos celebrantes, mas,

acima de tudo, uma advertência contra a falsa confiança apregoada pelos inimigos (Sl

44.7; 56,4-5.12). O salmista não diz somente que está vivendo uma situação de

confiança, apesar das investidas dos inimigos contra ele. Ele também afirma que a

confiança será um exercício do seu dia-a-dia, mesmo que venham os maus dias.

2.8. Intenção

Apresentado de modo parcial as observações fundamentais que emergem da exegese do

Salmo, pretendemos aqui ordenar de modo mais sistemático os resultados obtidos,

permitindo uma visão de conjunto do poema que expresse a intenção do salmo.

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O Salmo 55, dentre os salmos de lamentação individual, tem a peculiaridade de

identificar seu agressor como algúem de seu círculo de intimidade. Este fato, nos

desperta o interesse para algo inusitado. A raiz @La (I - aprender, ensinar; II –

produzindo, milhares) que identifica o amigo no verso 14, é usada na BHS em 29

versículos, dos quais, Gn. 36 a reproduz 42 vezes211

, fazendo referência aos chefes

tribais. Em algumas ocasiões ele é o “guia da mocidade” (Prov. 2.17; Jer. 3.4), ou

alguém próximo e confidente (Prov. 16.28; 17.9; Sl 55.14).

Em todo o saltério, somente o Salmo 55, no verso 14, faz referência a este termo. O

salmista parece resgatar elementos da divisão social de grupos políticos212

e os traços da

religiosidade dos pequenos grupos familiares213

, consequentes das transformações

sociais e religiosa do pós-exílio.

No estilo poético desta composição, o salmista se deixa inflamar por seus sentimentos,

mantén-se como um observador e transforma sua experiência em palavra poética. Tudo

fica pessoal e intenso. Seus sentimentos possuem traços metafóricos e imagens

convincentes que descrevem objetivamente sua situação social.

O teor litúrgico desta composição, atestado pelas imagens que o salmista usa em seu

lamento, expondo o conflito social dentro da comunidade, revela, na força do

dramatismo poético do Salmo, um claro conflito e disputa de direitos atestados pelas

palavras byrIå litígio, contenda,ry[i cidade, bxor> praça, vwm apartar e l[; sobrepor,

como já dissemos anteriormente214

.

Chama-nos a atenção, o fato de que o salmista, em sua lamentação individual, integra

elementos de sua comunidade como: cidade e seus muros, praças e a casa de ’elohim.

Ele relembra fatos importantes da história de seu povo, como o deserto e a pomba,

211

Cf. LISOWSKY, Gerhard. KHAT, p. 100 212

ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 1, p.

137-140 213

Os grupos familiares eram sintomas da fragmentação da religiosidade, consequente da crise social e

religiosa que se desenvolveu no período pós-exílio. Com a nova configuração social, desenvolveu-se a

aproximação entre a religiosidade pessoal e a religião oficial da comunidade judaica. Cf. ALBERTZ,

Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2. Desde el exílio hasta

la época de los macabeos. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 685-709 214

Cf. p. 41

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enquanto extende seus votos de louvor e afirmação de fé como base para a confiança da

comunidade em Javé.

Ambos os elementos supõem um Sitz im Leben do ambiente de culto215

. Percebemos

que o salmista é um crente javista que expõe seus conflitos, na realidade em que se

encontra dentro de sua comunidade. Embora seu lamento seja individual, suas queixas

são recitadas em adoração corporativa, pois pede a intervenção divina (v.2-3) e no

decorrer de seu lamento, se revela ansioso e temeroso diante dos perigos decorrentes da

violência que tomou conta de sua cidade. Em sua lamentação individual, deixa

transparecer, a relação de igualdade entre os inimigos pessoais e os adversários de

Israel.

As reclamações recitadas pelo sofredor constituiu um esforço para restaurar o bem-estar

e a segurança para o indivíduo aflito e seus parentes. Como parte da liturgia do lamento,

ele amaldiçoa este e outros inimigos, com a súplica de que estes sejam engolidos pelo

xeol.

No entanto, outras razões como as questões psicológicas e teológicas precisam ser

mencionadas216

. As experiências comuns de reconstrução social, por meio dos grupos

familiares autônomos no pós-exílio, permitiram que as celebrações litúrgicas fossem

solidárias e mais intensas na comunidade. Os anúncios teológicos de solidariedade

adquiriram nos rituais pessoais, uma função decisiva para a solidez da comunidade e seu

conjunto.

No fim de sua oração, o salmista aconselha os seus ouvintes a confiar em Deus, pois Ele

jamais os deixará frustrados. Nesta afirmação de fé, o salmista sintoniza os seus

ouvintes no horizonte de experiências históricas, em que a religião Javista

experimentava a intervenção divina como seu fundamento central.

215

Sobre a distinção entre culto e rito ver: GERSTENBERGER, Erhard S. “Psalmen und Ritual praxis”.

Em: Ritual und Poesie. Formen und Orte religiöser Dichtung im Alten Orient, im Judentum und im

Christentum. Hg. von Erich Zenger u.a. Freiburg u.a.: Herder 2003, 73-90,p. 73-76. Disponível em: http://geb.uni-giessen.de/geb/volltexte/2012/8819/ 216

ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p. 686

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O Salmista reanima sua comunidade, na confiança em Javé a partir de uma

incondicional dedicação divina ao indivíduo. Em contrapartida desta relação pessoal

com Deus, introduz a justificação da cólera divina, para com aqueles que “profanam sua

aliança”.

Nesta perspectiva, o Salmo 55 retrata de forma caricata, esta mescla entre o individual e

o comunitário, produzido pelos eventos da crise social e religiosa do pós-exílio. Diante

detes acontecimentos, brotaram as experiências comuns de reconstrução e assim, a

comunidade também poderia encontrar-se no mesmo destino do indivíduo que se via

vítima do sofrimento e das ameaças de seus inimigos.

Para Rainer Albertz,217

esta era uma “transposição paradigmática”, que permitia melhor

sintonia com o horizonte das experiências do indivíduo, diante da agonizante situação

teológica da comunidade. No período pós-exílio, as queixas contra o inimigo, que

originariamente se expressavam contra a ameaça dos poderes demoníacos218

, se

converteu em imprecações contra o malfeitor, [v'_r" (cf. Sl 3.7; 11.2; 17.9; 140.5). As

violoentas expressões de ameaças relatadas pelo salmista, mesmo que não fossem

correspondentes aos fatos, retratavam o testemunho dos temores e dificuldades que a

divisão social e religiosa da comunidade, produziu em muitos de seus membros.

Percebemos, portanto, no salmo 55, o claro retrato do conflito social e religioso que se

produziu na sociedade israelita do V século a.C., reforçado pela contraposição entre

malfeitores e justos.

2.8.1. Articulação do discurso

A estrutura proposta nos permite distinguir três momentos fundamentais no discurso do

salmista:

217

Idem, p. 687 218

H. Birkeland, sublinha de maneira especial a expressão !w<a"+, opinando que os inimigos foram

origináriamente magos que mediante encantamentos, queriam causar a ruína do pobre. Esta explicação

tem como base, o fato de que, no mundo mesopotâmico, se projetavam nas orações imagens de indivíduos

em que predominava o mágico e o demoníaco. (cf. Sal 5.6; 6.9; 14.4; 28.3; 36.13; 59.3; 92. 8-10; 94.4-16;

101. 8; 141.4-9) BIRKELAND, H. The Evildoer in the Book of Psalms, Oslo, Avhandlinger utgitt av det

Norske Videnskaps -ii, Akademi i, Oslo II, 1955. Blackman, A.M. Myth and Ritual, apud. KRAUSS,

Hans Joachim. Los Salmos. Sal. 1-59, Vol. I , p.149.

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1. No primeiro momento o salmista expõe sua fragilidade (v. 2-3a), sua intenção

fundamental é demonstrar a incapacidade que tem diante do problema. A súplica

funciona como uma peça retórica que interpela o socorro de Javé e assim, a

nescessidade do suplicante encontra a bondade do suplicado.219

Refletindo o drama da

vida pessoal e social, a súplica está centrada na fé e na promessa de uma ação de Javé

que mudará a situação.

2. Um segundo momento mais argumentativo (v. 3b-24b), expressa com veemência, em

forma de queixas e maldições, as consequências da situação conflitiva entre malfeitores

e justos. A proposta para a resolução final deste conflito está na devastação daqueles

que praticam a maldade e no resgate e salvação para aqueles que sofrem. Enquanto eles

profanam a aliança, são irreverentes, falsos e proferem guerras, os justos depositam em

Javé sua confiança e seu fardo.

3. O terceiro momento acontece com um final parenético, onde, na afirmação de fé,

projeta-se toda a força e esperança da firme decisão em seguir Javé. A virtual ausência

de violência nesta curta afirmação revela a esperançosa atitude do orante que demonstra

sua inabalável confiança em Javé.

A organização deste discurso descarta a possibilidade de interpretar este salmo de forma

ideológica ou legitimador de uma estrutura de conflito. O Salmo, pelo contrário, deve

gerar no leitor uma atitude pacífica e não violenta, que deixa nas mãos de Deus a

transformação de tais estruturas. A motivação é de esperança revolucionária para

aqueles que denunciam abertamente as injustiças e opressões que perseguem os mais

frágeis.

2.8.2. Temas teológicos

Como resultado da exegese, torna-se importante também mencionar os temas teológicos

suscitados no Salmo. Não se trata aqui de desenvolver os temas em sua extensão

teológica, pois esta seria uma tarefa que excederia nosso objeto de estudo, mas levantar

219

SCHÖKEL, Luiz Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72, p. 87

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os enunciados teológicos do texto de forma descritiva, que surgem no texto como um

todo.

O mixpat

Nesta visão sintética dos temas teológicos do Salmo 55, não pode faltar uma palavra

sobre o tema da justiça. O jP'v.mi embora não apareça de forma explícita neste Salmo,

surge como tema efetivo. Portador de amplo significado, o lexema jP;v' que tem

basicamente o sentido de “agir como governante” ou “decidir como juiz”220

, articula

em grande medida a resposta necessária aos anseios do orante que clama a intervenção

divina em meio às ações do malfeitor.

Na segunda instância do Salmo (v. 3b-24b), há o anseio de que o agressor será punido,

enquanto Javé salvará e transformará a situação do justo (v. 17 e 23). Palavras como

byrI contenda (v. 10), tyrIB. aliança (v. 21) e qyDIc; justo (v. 23) reforçam a intenção

do orante que clama pelo governo justo de Javé.221

A idéia de que Javé “ama a justiça jP'êv.mi bheäao” (Is. 61.8; Sl. 37.28) é dominante dentro

do poema e, por tanto, o salmista mantém-se justo, assumindo aqui o sentido de frágil,

sofredor, piedoso e bom222

, identificando-se com a preferência de Javé, transformando-

se em objeto privilegiado de sua bondade e amor. Esta identificação entre a opção do

justo e a vontade de Javé, conduz a duas consequências: por um lado, o discurso do

justo expressa a ordem social desejada por Javé e por isso, ganha-se a autoridade de

quem pronuncia uma sentença (v. 24); por outro lado, o próprio Javé se colocará ao lado

do justo, e não o deixará vacilar (v. 21).

220

DITAT, 1998, p. 1603 221

Cf. FISCHER, S. Der Alttestamentliche Begriff der Gerechtigkeit in seinem geschichtlichen und

theologischen Wandel, in: H. Seubert / J. Thiessen (Hgg.), Die Königsherrschaft Jahwes (FS H. Klement;

Studien zu Theologie und Bibel 13), Wien, 61-74. Disponível em:

https://www.bibelwissenschaft.de/stichwort/19316/ 222

Cf. KRAUS, Hans Joachim. Teologia de los Salmos. Biblioteca de Estudios Bíblicos, Salamanca:

Ediciones Sigueme, 1985, p. 207-219

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A retribuição

Dos temas teológicos que aparecem no Salmo, a teologia da retribuição tem uma

posição de destaque, já que aparece de forma subjacente à problemática desencadeada

no texto. Não há no texto, uma afirmação direta do princípio da retribuição, mas, por

outro lado, está implícito em sua elaboração retórica. As atitudes do malfeitor o farão

vítima de um terrível destino, a culpa por sua conduta está na sua postura antissocial.

Por outro lado, “o postulado teórico, alinhado com as ideias sapienciais sobre a

retribuição”223

produziam efeito de resistência nos estratos espiritualistas da classe alta.

Inspirados pela narrativa de Jó, rejeitavam as injustas circunstâncias que lhes haviam

permitido viver em boas condições, enquanto outros padeciam.

Jó é o protótipo da espiritualidade dos membros da classe alta que experimenta a

salvação divina, porque era “homem íntegro e reto, temente a Deus, que se desviava do

mal” (Jó 1.1). Na literatura profética a reelaboração dos oráculos de salvação ou de

juízo, não se destinam mais a todo o povo, mas a salvação corresponde aos justos,

enquanto o juízo está destinado aos malfeitores.

No Salmo 55 a intervenção divina está relacionada, direta e explicitamente, com o

destino dos justos, para a salvação e dos malfeitores para a ruína. Enquanto o justo em

suas orações, súplicas, queixas e maldições espera ser retribuído porque se mantêm fiel,

o malfeitor deve ser condenado por suas ações de perversidade e engano.

Estas afirmações colocam o justo em outro nível. Mostra que a vida do justo não deve

ser vista somente pelo aspecto do sofrimento224

. Há também uma dimensão de

espiritualidade que o faz experimentar a presença divina que lhe dá sustento e lhe

assegura a salvação. Antes de ser uma resignação passiva diante da injustiça, é uma

resistência de fé, firmada na esperança.

223

ALBERTZ, Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p. 697 224

ARTUSO, Vicente. Salmo 30. Alegre ação de graças: “Transformaste o meu lamento em dança”.

Estudos Bíblicos, 53, Petrópolis: Vozes, p.45-58, 1997.

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Malfeitores e justos

O ideal do justo que perfila no Salmo, contrapõe-se com a figura do malfeitor. Embora

o texto não pretenda fazer uma apresentação teórica dos dois termos, as afirmações do

justo supõe um conflito. Sua queixa, repleta de desejos violentos diante do conflito

social em que vive, são acompanhadas de expressões de confiança que mostram a

segurança que sente na proteção de Javé.

Dos Salmos de lamentação individual, o Salmo 55 apresenta uma única vez estas duas

palavras. Outros Salmos a repetem com maior frequência, como é o caso do Salmo 11

(3 vezes) e do Salmo 37, que sendo considerado Salmo de instrução, apresenta-os em

grande quantidade ([v'r' 14 vezes e qyDIc; 9 vezes). O diferencial do Salmo 55 está no

conjunto social onde estas palavras aparecem.

O justo, torna-se modelo daqueles que experimentam a ajuda de Javé e lhe pertencem.

Sua relação estreita com Javé, lhe permite assumir a postura de não violência, pautada

mais na confiança, do que no simples pacifismo. Justo é aquela pessoa que mediante as

provações de Javé, é achado inocente (Sl. 11.5) e quando confrontado pelas intrigas e

maquinações dos malfeitores, tem a convicção de que os olhos de Javé pousam sobre

ele.225

O justo sabe que o Deus ouvirá seu clamor e Javé o salvará (Sl 55.17-18); lhe resgatará

a paz (v.19), confiante de que Ele não deixará o justo vacilar, tem sua confiança

convicta em Javé (v.23).

O personagem do malfeitor, por outro lado, está caracterizado como alguém que tem

êxito em suas próprias forças, bastando-se nelas. Sua voz é o que mais incomoda o

justo, pois está recheada de opressão e maldade (v4), calúnias (v.9), intrigas e violência

(v.10). Eles profanam a aliança (v.21) e são falsos (v.22).

No Salmo 55 em especial, o malfeitor é íntimo do Salmista, um amigo, que de certa

forma, identificado pela palavra ypiªWLa;÷ desempenhava, juntamente com o Salmista,

uma função administrativa no Templo, (v. 14-15).

225

KRAUS, Teologia de Los Salmos, p. 208

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100

Os pobres

Os conceitos para designar o pobre no Antigo testamento são diversificados:

ynI['/oprimido, !Ayb.a, /pobre, lD; /fraco, vor'/pobre226

, podendo designar alguém sem

posses, pessoa abandonada ou digna de piedade. Dentro da perspectiva sociológica, os

pobres aparecem como objeto do ataque dos malfeitores. São identificados como mais

frágeis (v.5-7) e expostos à queda (v. 4, 19).

A associação do pobre com o justo, aproxima-nos da identificação daqueles que

acumulam complexas experiências de sofrimento e perante Javé se identificam como

ynI['/oprimido, !Ayb.a, /pobre, assumindo, na verdade, sua condição humana227

.

Esta distribuição de personagens em dois grupos, justos pobres e malfeitores ricos,

manifesta uma situação social de injustiça, fazendo com que a riqueza adquira

implicações morais e espirituais negativas, enquanto a pobreza, normalmente vista

como um mal, passa a estar associada à piedade.228

Javé é o defensor jurídico dos

pobres, a justiça de Deus evidencia-se na sua imparcialidade como juiz, condenando

poderosos culpados.229

Não violência

Por último e como consequência dos temas teológicos aqui levantados, o tema da não

violência, surge como proposta central do Salmo, contrapondo-se à @a ;, ira dos

malfeitores e inimigos. É verdade que o tema da ira no saltério está mais bem

relacionado com as ações de Javé,230

no entanto, em alguns Salmos, a ira aparece como

reação do homem como sujeito ( Sl. 7.7; 76.11; 112.10; 124.3; 138.7).

226

SCHWANTES, Direito dos Pobres, p. 16. 227

KRAUS, Teologia de Los Salmos, p. 198 228

ALBERTZ, Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p. 681-682. 229

SCHWANTES, Direito dos Pobres, p. 324. 230

Sobre a ira de Javé, veja Salmos: 2.5,12; 6,2; 7.7,12; 18.8-9; 21.10; 27.9; 30.6; 38.2,4; 56.8; 59.14;

60.3; 69.25; 74.1; 74.8; 77.10; 78.21,31,38,49-50,58-59,26;79.5-6; 85.4-6; 88.8,17; 89.39,47; 90. 7,9,11;

95.11; 102.11; 103.8; 106.23, 29, 32, 40; 110.5; 145.8. Cf. LISOWSKY, Gerhard. KHAT, p. 132

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101

No Salmo 55, a ira aparece como uma reação malfeitor, que causam medo a paralisam o

justo diante de sua !w<a'÷ª, maldade (v.4). A primeira reação do justo é o desejo de fuga

(v.7), mas em seu lamento ele clama a Deus pelo hd'P', resgate da ~Alv', paz (v. 17-19).

Como se vê, a @a ;, ira provocada por uma situação injusta, diante das palavras, ofensas

e ações do inimigo do salmista (%To, opressão, hm'r>mi , engano, ha'r>yI medo, tWcL'P;,

estremecimento, sm'x', violência, !w<a' ÷ª, maldade, cf. v. 4-12), são contrastadas pelo

justo, com seu desejo e esforço para orientar sua comunidade à dependência e confiança

em Javé (v.23).

O salmista lança sobre Javé seus dramas mais agudos. As queixas e maldições

proferidas, transmitindo a ideia de que Javé castigará o malfeitor, tendem a mostrar

muito mais um Deus justo, do que violento. As imprecações reforçam a máxima de que

Javé “ama a justiça jP’êv. mi bheäao”.

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102

3. O [vr COMO REPRESENTAÇÃO DA MALDADE

Após o estudo exegético do Salmo 55, percebemos a nítida expressão de conflitos

sociais e religiosos, muito presentes no contexto das grandes transformações que Israel

vivenciava no período pós-exílio. Neste contexto, destaca-se a figura do [vr

malfeitor, o verdadeiro algoz do salmista. Com frequência, o orante reforça em seus

poemas litúrgicos os dramas decorrentes destes conflitos.

Nesta abordagem preliminar do estudo conceitual sobre o malfeitor, torna-se necessário,

a definição mais precisa e detalhada desta expressão. A palavra mal, malvado e

malfeitor são termos bastante genéricos que podem designar, entre outros, alguém que

apresenta desvio de caráter, arrogante, perverso, tirano e sem piedade. Estes termos

revelam, nos salmos de lamentação, uma espécie de modelo social, definido por um

conjunto de acontecimentos tais como: ameaça de morte (Sl 71.4), espoliação dos bens

dos mais pobres (Sl 10.2), violência (Sl 140.5) e opressão (Sl 55.3), representado por

diversas palavras em seus respectivos contextos.

Destes, nos interessa o adjetivo [v'r'231 e seu conjunto semântico composto por palavras

que determinam muito mais do que um simples significado. É antes, o conceito adotado

para uma função social, muito presente na história da religião de Israel.

231

Cf. BROWN, Francis, DRIVER, Samuel Rolles, BRIGGS, Charles Augustus. BDB – A Hebrew and

English Lexicon of the Old Testament. Boston, New York and Chicago: Houghton, Mifflin and Company

the Riverside Press, 1906, p. 957 [v'r ': adj. malfeitor, criminoso; — abs. r Gn 18:23 +; pl. ~y[iv'r> Is 13:11

+; cstr. y[ev.rI Sl. 75:9 + 3 t. sf. h['v'r> Ez 3:18 , v:19 ([v'r' ); — †1. usu. como subst., um culpado de crime

que merece punição; sts. também malfeitor; opp. [yDIc;; [v'r' Ex 2:13 23:1 (E), Dt 25:2 Pr 17:23 18:5 25:5

Jó 9:22; 9:24; col. Gn 18:23; 18:25; 18:25 (J) Mi 6:10 Pr 3:33 28:4, ~y[vr 1 S 24:14 Je 5:26 Pr 19:28

20:26 29:12, ~y[vr ~yvna 2 S 4:11 (assassinos), tWml' [v'r' Nu 35:31 (P) culpado de morte, År lveAm Pr 28:15,

cf. 29:2, År qyDIc.hi Ex 23:7 (E) Is 5:23 Pr 17:15; År [;yvir>hi Dt 25:1 1R 8:32 = [v'r'l. byvh 2 Cr 6:23; qyDIc; ¾rl rma Pr 24:24. 2. culpados de hostilidade para com Deus ou seu povo, inimigos perversos: [vr sg. Sl.

17:13 + 6 t. , Is 26:10; col. Sl 9:6; 9:17 10:2 + 6 t. , Is 11:4 Hb 3:13; ~y[vr Sl. 3:8 7:10 9:18 + 5 t. , Is

48:22 57:20; 57:21 Je 25:31 Ez 21:34 Mal 3:21 (+ (poss.) outros casos, muitas vezes difícil de decidir);

especificação para: Faraó Ex 9:27 (J), Babilônia Is 13:11 14:5, Caldeus Hb 1:4; 1:13; || hwhy yaen>f 2 Cr

19:2. 3. culpados do pecado, contra Deus ou homem, malvado: ~y[vrh ~yvnah Nu 16:26 (J, rebelião dos

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103

Conforme já mencionado232

, a importância da palavra [v'r' nos textos bíblicos, está

atestada pela frequência com que ela se repete. São 343 citações em todo o Antigo

Testamento, das quais, 92 ocorrem no livro dos Salmos233

. No entanto, nos Salmos de

lamentação é que se acentua a imagem degenerativa do termo, pois invariavelmente o

[v'r', na linguagem do orante, está acompanhado por um campo semântico variado

como: !w<a'÷ª, maldade; @a ;, Ira; sm'Þx', violência; hm'r>mi, engano; llx, profanar; anEf ',

odiar; h['r', perversidade e @rx, escarnecer. Estas palavras acentuam ainda mais a má

conduta e o desvio moral deste agressor.

A partir desta percepção semântica, buscaremos identificar os processos dialéticos

existentes entre os conceitos paralelos e conceitos opostos do [vr nos Salmos de

lamentação. Nosso objetivo está na identificação do [vr, dentro do contexto social e

religioso da comunidade judaica no período pós-exílio.

3.1. Abordagem conceitual

[v'r': f. h['v'r.; pl. ~y[iv'r., cs. y[ev.ri: A Raiz [vr está consolidada no hebraico com o

sentido de “ser malvado; malfeitor; Culpado”234

. Embora esta mesma forma e

Coraítas), Mal 3:18 (não servindo Åy), opp. qyDIc;; sg. indiv. Ez 3:18; 3:18 21:30 33:8; 33:8 Sl 11:5 32:10

Pr 9:7 +; col. Is 3:11 Jó 34:18 36:6; 36:17; pl. ~y[vr Is 53:9 Je 23:19 = 30:23, Zq 1:3 Sl 26:5 Pr 10:3 Ec

8:10 +; || ~ydysox 1 S 2:9 (Poema), Sl 12:9 50:16 97:10 145:20; || ^t+,d'At ybez>[o 119:53, cf. V:61, +; †År ~da Pr

11:7 Jó 20:29 27:13; År vyai Pr 21:29; År $alm 13:17; ~y[vr [r;z< Sl 37:28; †~y[vr tc;[] 1:1 Jó 10:3 21:16

22:18; †~y[vr xr,D, Je 12:1 Sl 1:6 146:9 Pr 4:19 12:26; [vr xr,D, 15:9; AKd>D;mi h[v'r>h†' Ez 3:18; 3:19 (mas v,

supr.); †#ra¿hÀ y[ev.rI Sl 75:9 101:8 119:119 Ez 7:21 (LXX ycyr[). 232

Cf. p. 25 233

Cf. LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p. 1022-1023 234

Cf. KIRST, Nelson et al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. Petrópolis/ RJ:

Sinodal/Vozes, 2009. p. 234; SCHÖKEL, Luiz Alonso. Dicionário bíblico hebraico-português.

Tradução: Ivo Storniolo e José Bortolini. São Paulo. Paulus, 1997. p. 633; LEEUWEN, C. Van. In:

JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p. 1022; RINGGREN, H. In: Theological Dictionary of the Old

Testament. Edited by G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren and Heinz-Josef Fabry. Volume XIV.

Willian B. Eerdmans Publishing Company. Grand Rapids: Michigan, Cambridge. 2004, p.2;

LISOWSKY, Gerhard. KHAT, p. 1357; BROWN, Francis, DRIVER, Samuel Rolles, BRIGGS, Charles

Augustus. BDB – A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Boston, New York and Chicago:

Houghton, Mifflin and Company the Riverside Press, 1906, p. 957

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significado estejam presentes também no aramaico, neste último caso, o significado é

quase sempre posterior ao Antigo Testamento. Segundo C. Van Leeuwen, o termo

também aparece em construções antigas das línguas etíope e árabe com significados

divergentes como “esquecer” ou “ser fraco, brando” tendo como aspecto comum o

fato negativo da violação de obrigações e funções.235

O aparecimento deste termo no Antigo Testamento está quase sempre, relacionado à

culpa, maldade, perversidade, iniquidade, pecado e crueldade. O verbo é denominativo

do substantivo masculino [v;r, “erro, culpa, maldade”, que denota o tipo de vida

oposto ao caráter de Deus e parece ter dois sentidos distintos: a) agir perversamente; b)

condenar como culpado. Abrindo espaço para declarações de acusação e julgamento.

Construções substantivas relacionadas com o [v'r' “culpado, perverso, ímpio236

”, muitas

vezes caracterizado como “pessoa má”, ocorrem 263 vezes no Antigo Testamento, com

relativo acúmulo de um grupo de palavras em Jó, Salmos, Provérbios e Ezequiel.

O [v'r' também funciona como adjetivo e neste caso, o termo é originariamente usado

para designar fatos objetivos que apontam para as atitudes e intenções do agressor,

como por exemplo no Salmo 10, onde o [v'r' é caracterizado como alguém que na sua

arrogância persegue furiosamente o pobre (v.2); blasfema contra Javé (v.3); é orgulhoso

e considera que não há Deus (v.4). Outros exemplos estão expressos nos Salmos 34.22;

55.4; 71.4 e outros. Assim, o termo deixa de ser um simples fenômeno subjetivo, para

se referir às ações e condutas de um indivíduo ou determinado grupo de pessoas.

Usado em paralelo com quase todas as palavras hebraicas relacionadas ao pecado237

, o

mau238

e iniquidade239

, o [v'r tem seu sentido ampliado, reforçando o grau e a

intensidade de seu aspecto degenerativo.

235

Cf. LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p.1022 236

Aqui ganha o sentido de desapiedado, desumano, cruel, bárbaro. O mesmo, também se aplica ao seu

parônimo ímpio, que se refere a aquele que não tem fé ou que tem desprezo pela religião. Cf. HOUAISS,

Antônio. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2002. 237

Por exemplo: !w<a"ß / Maldade, injustiça, pecado, desgraça, como em Is. 55.7 e Sl. 66.18. O termo é

geralmente associado como uma distinção intencional de !Aa / força, vigor, fortuna, riquezas como em

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Os textos bíblicos apresentam o [v'r' em correlação direta com qyDIc;. Esta

correspondência direta e ao mesmo tempo oposta, permite também que seu sentido seja

influenciado consideravelmente, pois, diante da composição positiva, em conformidade

com o padrão ético e moral empregada na figura do qyDIc; é que o [v'r' torna-se a palavra

que expressa a conduta negativa, os maus pensamentos, palavras e obras contra um

indivíduo ou contra a comunidade, revelando ao mesmo tempo, a desintegração moral e

a intranquilidade interior de um homem240

.

Neste jogo de antônimos241

que percebemos com maior clareza o valor conceitual do

[v'r' e seus processos dialéticos. Para Luiz Alonso Schökel, esta correlação exposta nos

textos bíblicos entre [v'r' e qyDIc; tendem a influenciar o sentido do termo em pelo

menos 3 eixos: a) Pelo eixo forense onde a oposição acontece entre culpado x inocente;

b) No eixo jurídico onde ocorre injusto x justo e c) No eixo ético onde figura a oposição

malvado x honrado.242

C. Van Leeuwen, observa que “embora o [v'r' não tem em si mesmo significado

jurídico” 243

, está presente em contextos e narrativas onde a má conduta de um indivíduo

é julgada em tribunal. A distinção entre o profano e o religioso para o significado do

[v'r' é também, na visão do autor, algo que não se pode medir com precisão. Numa

Oséias. 12.9; Is. 40.26 e Jó. 18.7. O texto hebraico costuma distinguir !Aa para aspectos positivos e !w<a"ß para aspectos negativos. aj'x' / errar, falhar; no sentido ético religioso, pecar, pecador, ofensa, cometer

delito. Presente em variados textos como Ex. 34.7; Sl. 40.7; Am. 9.8; Sl. 1.1, e outros. Cf. KIRST, Nelson

et al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. Petrópolis/ RJ: Sinodal/Vozes, 2009. p. 5 e

66; SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 33-35 e 211-212.

238 [[r: qal: pf. [r;, [r'(, h['(r'w>, W[r'; impf. [r;yE, [r;Y:)w:, W[r.y:) / Para o significado I: mau, molesto,

prejudicial, feio, desagradável. Cf. KIRST, Nelson et al. p.231 e HOLLADAY, William L. Léxico

Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2010. p. 486-387. 239

!A[' / Iniquidade, culpa, crime, ofensa. Pr. 5.22; Ez. 14.3-7; Dt. 19.15. Denota traços do caráter e das

ações humanas, bem como as consequências de tais ações. Cf. HARRIS, R. Laird. Org. Dicionário

Internacional de Teologia do Antigo Testamento (DITAT). Tradução Márcio Loureiro Redondo, Luiz

Alberto T. Sayão, Carlos Oswaldo C. Pinto. São Paulo. Vida Nova, 1998. p.1086-1088. 240

LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p.1023. 241

Termo emprestado de Claude Levi-Strauss. Cf. LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural.

Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Cosac Naify Editora, São Paulo. 2008. 242

SCHÖKEL, Luiz Alonso, Dicionário bíblico hebraico-português, p 633-634. 243

LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p.1027.

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sociedade de caráter pansacral, onde as prescrições do direito divino dominam o

cotidiano, toda a conduta contrária à comunidade é também contrária a Deus.

No entanto, há várias passagens bíblicas onde se coloca ênfase no significado religioso

que trata o [v'r' dentro de um conjunto de comportamentos sociais que afetam a

comunidade religiosa. Em nossa pesquisa, caminharemos na abordagem das

perspectivas forense e religiosa, dando prioridade à compreensão das divergências

promovidas pelo sentido ético-religioso do termo.

3.1.1. Conceito de [vr na perspectiva forense

Para Helmer Ringgren244

, do significado forense é que vem a expressão mais clara do

verbo. A maioria das ocorrências no Pentateuco exibe o significado forense, pois era

nos antigos tribunais que se reforçavam a ideia de que em uma disputa legal, deve-se

absolver o inocente qyDIc; e condenar oo [v'r' culpado (Dt 25.1).

Expressões semelhantes ocorrem no livro de Jó. A declaração de que Deus não o terá

por inocente hQ'n", o apavora, pois sabe que será condenado [v'_r> (Jó 9.28-29). Embora

Jó permaneça culpado como acusado, ele suplica a Deus, “ynI[E+yvir>T;-la ; - não me

condenes” (10.2). Elifaz diz que são as próprias palavras de Jó que o condenam, “^ypiä

^å[]yvi(r>y : - a sua própria boca te condena” (15.6). Eliú acusa Jó de condenar aquele que é

absolutamente justo “`[:yvi(r>T; ryBiäK; qyDIÞc;-~aiw>” (qyDIÞc; i.e. Deus, cf 34,17); quem o pode

condenar quando Ele se cala? [:viªr>y: ymiîW Ÿjqi’v.y : (34.29). Em seu discurso de

encerramento Javé declara: “Acaso, anularás tu, de fato, o meu juízo yji_P'v.mi? Ou me

condenarás ynI[eªyvir>T;÷, para te justificares `qD"(c.Ti?” (Jó 40.8).

Em Salmos 94.21, o orante é claramente preocupado com aqueles que condenam [v'r' o

inocentes yqIån" e o justo qyDIÞc;. Prov. 12.2 contrasta a maneira como Deus se mostra a

244

RINGGREN, H. Theological Dictionary of the Old Testament. Edited by G. Johannes Botterweck,

Helmer Ringgren and Heinz-Josef Fabry. Volume XIV. Grand Rapids, Michigan, Cambridge: Willian B.

Eerdmans Publishing Company. 2004, p.5.

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107

favor (!Acr"â ) para com a pessoa boa, enquanto condena ([v'r' ) o que tem maus

desígnios. A afirmação em Sl 37.33 é puramente forense, ou seja, Deus não permitirá

que o justo seja condenado WN[,ªyvir>y:÷ nem julgado jp;v'.

Estes textos refletem o nexo entre maldade, culpa e castigo que ficou evidenciado como

sequência de uma lei automática na vida humana, pois a esfera de ação do [v'r' produz

consequentemente a maldição de Javé.

Por suas ações perversas, torna-se necessário exterminar da terra a culpa do [v'r' para

compensar seus danos, seja por vingança de sangue ou pena de morte, para que a

comunidade possa voltar a viver,( Nm 35. 31; 2Sm 4,11).245

A ruptura das relações sociais, faz do malfeitor, uma ameaça constante de desintegração

do bem estar social. Em Deuteronômio 25.1, a intenção é prevenir este tipo de ação e

por isso os juízes devem decidir quem é o culpado, [v'r.' Diferente dos cânticos de

lamentação com suas condenações e maldições de indivíduos, ocorre aqui uma espécie

de “ideologia do extermínio de todo o mal”246

, onde desejos de morte se voltam contra

grupos inteiros de malfeitores.

Além dos textos deuteronômicos, esta fórmula de extermínio, adquire força desenfreada

nos Salmos de instrução, só no Salmo 37, o verbo tr;K' ser cortado, abatido,

exterminado, aparece cinco vezes (Sl. 37. 9. 22. 28. 34. 38)247

. A compreensão dos

oponentes como grupo irreconciliável diante dos justos, permite concluir que esta

fórmula de extermínio, era na verdade, um mecanismo de separação, que determinava

se o indivíduo era seguidor ou não de Javé.248

Nesta mesma linha de responsabilidade coletiva, Abraão pergunta a Deus se a presença

do justo poderia, ao contrário, produzir uma função protetora para toda a cidade de

Sodoma (Gn 18.16-33).

245

LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p. 1024. 246

GERSTENBERGER, Israel no tempo dos persas, p. 243 247

LISOWSKY, Gerhard. KHAT, p. 702 248

GERSTENBERGER, Israel no tempo dos persas, p. 241-244

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Ezequiel é o primeiro a rechaçar a ideia de que a consequência das próprias ações

poderia repercutir em gerações futuras (Ez. 18.20), “a justiça do justo cairá sobre ele, e

a perversidade do culpado cairá sobre ele.” Cada pessoa deve responder a Javé sobre

si, se é [v'r' ou qyDIc;, declarando-se a favor da morte ou da vida, abrindo espaço para a

possibilidade de conversão do [v'r' (Ez. 3.18).

Para Riggren, a maioria dos textos do Antigo Testamento se referem ao [v'r'

principalmente como “aquele que deve ser declarado culpado em um tribunal”249

. No

entanto, os textos em prosa, como por exemplo, Salmos e Provérbios, apresentam um

significado extenso e simultaneamente mais profundo.

O número de ocorrências nos Salmos e na literatura sapiencial é também muito maior

do que em textos narrativos e o [v'r' ganha conotação ético-religiosa, sendo mais

propriamente traduzido como malfeitor, ímpio, pessoa sem Deus.

3.1.2. Conceito de [vr na perspectiva ético-religiosa

Não se pode falar propriamente, em uma separação entre o significado profano e

religioso do conceito de [v'r' no Antigo Testamento, pois a vida comum e religiosa

estão intrinsecamente ligadas. Em uma sociedade com variadas expressões de sua

sacralidade, onde as prescrições do direito divino dominavam a vida, toda a conduta

contrária à comunidade, era, ao mesmo tempo, contrária a Deus.

No entanto, a ênfase ético-religiosa ocupa grande parte dos textos bíblicos, quando se

refere ao comportamento dos ~y[iv'r>â'. Eles são como abominação para Javé (Prov. 15.8)

e por isso Javé está longe deles (Prov. 15.29). O [v'r' é acusado de não temer a Javé

(Ecl. 8.13). Na literatura sapiencial e especialmente nos Salmos caracterizados como de

Lamentação250

, os conceito paralelos251

como !w<a") yle[]Poï÷ª, os que praticam a maldade (Sl.

249

RINGGREN, H. Theological Dictionary of the Old Testament, p.3 250

A lista de Salmos de Lamentação varia entre alguns autores que trabalham o saltério. Marc Girard, por

exemplo, classifica 89 composições do saltério como sendo poemas de lamentação, os quais o autor

prefere chamar de “Salmos de libertação”. Erhard Gerstenberger classifica como lamentação, 58 Salmos,

divididos entre salmos de lamentação individual e coletiva. Para este trabalho usamos a classificação

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5.6; 14.4; 55.4 e outros); anEf' os que odeiam Javé (Jó. 8.22; 2 Cr. 19.2); e os que

odeiam Sião (Sl.129.5); os que Ad)b'[] al{ï não servem a Javé (Mal. 3.18), ou os conceitos

opostos como ‘wyd"ysix] piedoso (ISm 2.9); para salvar teu povo ^M,ê[; [v;yEål. (Hab. 3.13); a

todos que o amam wyb'_h]ao-lK'-ta, (Sl. 145.20); o que confia x;jeîABh;w> em Javé (Sl 32.10),

mostram claramente um sentido religioso que coloca o [v'r' no centro das inquietações

teológicas sobre a miséria experimentada nas adversidades da comunidade de Javé.

As fórmulas litúrgicas de confissão usadas por Israel em determinados casos, temos

pecado; temos faltado; temos sido malfeitores (1 Re 8.47; 2 Cr 6.37; Dn. 9.15), revelam

a conotação penitencial, onde o emprego do [v'r' equivale à descrição de falhas ou erros

com fórmulas cunhadas nas liturgias, confessando sua culpa, como é o caso de Jr 14.20:

“Conhecemos Javé a nossa maldade ([v'r'))) e a culpa (!wO[') de nossos pais...

a) Transformações estruturais

O período persa, proporcionou o surgimento de novos e importantes temas para a

constituição fé judaica nas comunidades pós-exílica. A piedade vivida e refletida está

assentada nas estruturas sociais e no padrão comportamental da existência cotidiana e

dos rituais religiosos.

Os Salmos, que em tempos posteriores desenvolveram-se em situações vivenciais bem

diversas como contextos familiares, comunidades, organização tribal e nacional,

ganharam no pós-exílio finalidades próprias. Os diversos gêneros foram preparados de

acordo com as necessidades cultuais e comunicativas dentro da comunidade, na

tentativa de dar sentido às vigentes transformações.

A perda da antiga fé familiar, provocou mudanças na estrutura social e na

espiritualidade das comunidades, que concentraram as expressões religiosas na ligação

desenvolvida por Gerstenberger. Cf. GIRARD, Marc. Como ler o livro dos Salmos: Espelho da vida do

povo. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p.22; GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part. 1 . With na

introduction to cultic poetry. Volume XIV e GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms Part 2.

Lamentations. Volume XV. In: KNIERIM, Rolf and TUCKER, Gene M., editors. The Forms of the Old

Testament Literature. Grand Rapids, Michigan: Wiliam B. Eerdmans Publishing Company. 1988. 251

Os conceitos paralelos e opostos do [v'r' serão tratados com maiores detalhes adiante.

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individual com Deus. “O sujeito da fé não é mais a família, mas o confessor individual

de Javé, no seio da comunidade”.252

Nestas circunstâncias, a transitoriedade torna-se uma séria dificuldade para o sujeito da

fé que está relativamente só. Gerstenberger ressalta:

“O tom de lamento é inegável. Não se trata porém, de um perigo atual,

concreto, de doença, difamação ou algo semelhante, mas da

transitoriedade, do passageiro na existência humana e do tempo de Deus

que perdura muito.”253

O antigo grupo familiar não é mais a unidade básica da religião a qual todos pertenciam

de forma natural. Todos que aderissem a Javé, deveriam decidir pelo Deus da nova

comunidade religiosa com responsabilidade pessoal de suas ações. A comunidade

assume em parte, a proteção de que o indivíduo precisa, mas é o comportamento de

cada um perante Javé e perante o próximo que é decisivo para saber se uma pessoa

pertence ao grupo dos justos ~yqIåyDIc; ou dos que se comportam com rebeldia perante

Javé, ou seja, os malfeitores ~y[iv'r>. No projeto desenvolvido para esta nova sociedade,

a presença do [v'r' , que já não é bem-vinda, torna-se ainda mais, sinal de degradação

moral e de transtornos sociais.

Na esteira destas transformações estruturais, a comunidade pós-exílica experimentou

um exigente desafio ético religioso que sobrepôs até mesmo as camadas sociais mais

elevadas. O livro de Jó é um destes exemplos, onde se representa a crença de que as

vítimas de grandes catástrofes são necessariamente um [v'r' (Jo 11.20; 15.20; 18.5;

20.5). Fortemente ligado ao destino do fiel, está a pergunta sobre as forças que causam o

sofrimento e a morte. No mundo onde ainda não havia o conhecimento científico para

as causas das doenças, as necessidades básicas para a vida eram consequências de

poderes sobrenaturais e demoníacos produzidos pelos inimigos.

252

GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos Persas, p. 239; Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia

de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2. Desde el exílio hasta la época de los

macabeos. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 686-688. 253

GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos Persas: Séculos V e IV antes de Cristo. São

Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 238

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Os Salmos de Lamentação desenvolvem este modelo em que a descrição do inimigo era

correspondente à situação concreta da necessidade do indivíduo queixoso. Ou seja, o

sofrimento ou as condições de vida do orante eram apresentadas ao “especialista”254

,

este, por sua vez, diagnosticava as causas individuais e preparava orações para as

doenças correspondentes em um culto de súplicas.255

A solução teológica para explicar estes males recorrentes é a cólera divina. Numa

sociedade com constante falta de segurança e estabilidade, as adversidades são

facilmente entendidas como a reação de Deus aos pecados ou comportamentos falhos. A

miséria torna-se imanente ao sistema. As ameaças de morte e as condições de salvação

são necessidades universalizadas.

3.2. Processos dialéticos. Conceitos paralelos e opostos do

[vr nos Salmos de lamentação

A contraposição e a contradição de ideias, levam à construção de novos conceitos256

.

Este modo de explicar a realidade através de oposições conceituais, também conhecido

como dialética, é tema central nos bastidores da filosofia antiga, onde a linguagem

refere-se à natureza das coisas. No entanto, um mundo em constante transformações,

não nos permite estabelecer uma identidade conceitual absoluta, teremos apenas

opiniões aproximadas de determinado contexto ou palavra.

3.2.1. O sentido semiótico

Neste sentido, a definição de um conceito precisa ir além dos dicionários. Esta é a base

teórica de Iuri M. Lotman257

, que defende o desenvolvimento da semiótica como

extensão de métodos linguísticos, buscando encontrar o sentido de textos e palavras, a

partir das relações que estas, assumem com suas fronteiras. Para Lotman a “fronteira é

254

GERSTENBERGER, Erhard S. Caminhos, Goiânia, v. 8, n. 1, p. 11-28, jan./jun. 2010. p.14-15 255

KRAUS, Hans-Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1985, p.179-182 256

FOULQUIÉ. Paul. A dialética. Lisboa: Europa-América. 1966, p. 128. 257

LOTMAN, Iuri M. La Semiosfera I. Semiótica de la cultura y del texto. Selección y traducción del

ruso por Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones Cátedra, S. A. 1996.

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um dos aspectos do caráter semioticamente delimitado”258

, funcionando como filtros

bilíngues, onde os espaços internos e externos de uma cultura se comunicam, fazendo

com que um texto possa se traduzir em outra linguagem .

O intercâmbio que se realiza de forma semântica entre textos e palavras259

, nos permite

expressar de forma adequada, a melhor aproximação do sentido da palavra no texto.

Percebemos, portanto, que o valor conceitual mais importante do [v'r' está justamente

nas palavras que compõem seu campo semântico, principalmente aquelas que se opõem

ao termo. Este modo de encontrar o melhor significado das palavras, por oposição à sua

forma, está na base da estrutura sociocultural. O proeminente praticante do

estruturalismo, Claude Levi-Strauss ressalva que é no processo dialético entre tese,

antítese e síntese que se constrói uma cultura260

.

O desenvolvimento sociocultural do povo bíblico não é diferente. O texto hebraico se

desenvolve tomando forma, a partir de determinados contextos onde o uso e a aplicação

das palavras vão se moldando a conceitos estipulados pela situação social.

Por este motivo, destacamos que diante da raiz positiva do qyDIc é que o [v'r' toma sua

forma e significado mais importante, quando pretende-se retratar o comportamento

antissocial e pejorativo de um indivíduo ou um grupo de pessoas.

3.2.2. O sentido histórico

Outra importante ferramenta para análise dos conceitos em torno do [v'r' é a história. A

partir da investigação histórica, percebe-se no conjunto de processos e eventos,

ocorridos no Antigo Oriente Médio, o desenvolvimento marcante da religiosidade, da

cultura e da sociedade. A história da religião de Israel no período pós-exílio,

258

LOTMAN, Iuri M. La Semiosfera I. Semiótica de la cultura y del texto. Selección y traducción del

ruso por Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones Cátedra, S. A. 1996, p. 11 259

Idem, p.84-85 260

LEVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido: Mitológicas I . São Paulo: Cosac Naify, 2004 p. 19-42

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principalmente em sua primeira etapa, em torno dos anos 538 – 400 a.C., foi o período

mais criativo de toda a religião Israelita261

.

Foi na vivacidade desta reflexão religiosa que se manifestou no período pós-exílio, o

desenvolvimento de variadas corrente teológicas, proporcionada pelo encontro das mais

diversas tradições como: deuteronômica, sacerdotal, cronista, sapiencial, profética e

hínica.262

Neste panorama variado, impulsionado por constantes transformações sociais, o [v'r'

torna-se o conceito determinante na tipificação de grupos sociais. Com os conflitos

advindos da crise que se produziu durante o período persa, a divisão social e religiosa da

comunidade foi inevitável, gerando a distinção entre piedosos e malfeitores.

Aqui a distinção está na prática da solidariedade social como elemento religioso de

profissão de fé. A autêntica pertença a Javé, estava diretamente ligada ao

comportamento social, neste sentido, a situação social do justo, poderia ser definida,

tanto pelo rico, como pelo pobre. A imagem do rico piedoso, torna-se contra imagem do

malfeitor, refletindo um ideal do estrato solidário da classe alta.

Em contrapartida, o malfeitor, tem em sua imagem, os traços típicos da hostilidade,

inimizade, arrogância e riqueza. Seu comportamento é profundamente antissocial, pelo

que, maltrata os mais frágeis, anula sua existência e rouba seus bens (Sl. 37. 12. 14. 32;

94.5).

A análise que fazemos do [v'r' como representação da maldade, se realiza à partir do

estudo do contexto social dos salmos de lamentação, principalmente aqueles que se

tornaram mais frequentes no período pós-exílio, característicos de uma possível

editoração sapiencial263

. Destacaremos aqui, o conjunto destes salmos, concatenados

com o salmo 55, onde os conceitos paralelos e opostos ao [v'r' se repetem (p. ex.: Sl 3-

261

Cf. ALBERTZ, Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p. 568. 262

Idem, p. 569 263

DUNN, Steven. Winsdom Editing in the book of Psalms: Vocabulary, Themes and Structures.

Wisconsin, 2009. 343f. Tese (Department of Theology, Faculty of the graduate School – Marquette

University, Wisconsin, 2009, p. 50-66. Gerstenberger também propõe um gráfico sobre a construção do

Saltério durante a história religiosa Israelita destacando o processo de editoração dos Salmos. Cf.

GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms. Part 1, p.29.

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7; 9; 10-14; 17; 22; 25-28; 31; 35; 36; 38; 40-44; 51; 54; 55-57; 59-61; 64; 69; 70; 71;

74; 79; 80; 83; 85; 86; 88; 89; 94; 102; 108; 109; 120; 123; 130; 137; 140-143)264

.

3.2.3. Conceitos paralelos

Partindo dos conceitos paralelos do [v'r', usados no Salmo 55, buscamos a referência de

tais palavras repetidas com maior frequência no conjunto de Salmos de lamentação.

Catalogamos as seguintes expressões: a) byE¿AÀao inimigo, aparece 14 vezes (Sl. 7.6;

31.9; 42.10; 43.2; 44.17; 55.4, 13; 61.4; 64.2; 74.3, 10, 18; 89.23; 143.3); b) !w<a'

maldade, 18 vezes (Sl. 5.6; 6.9; 7.15; 14.4; 28.3; 36.4, 5, 13; 41.7; 55.4; 56.8; 59.3, 6;

64.3; 94.4, 16; 141.4, 9); c) @a; ira, 18 vezes (Sl. 7.7; 10.4; 27.9; 44.10; 55.4; 56.8;

69.25; 74.1, 16; 85.4, 6; 86.15; 89.6, 12, 22, 28, 44; 108.2); d) lyx estremece, 6 vezes

(Sl. 10.5, 10; 51.7; 55.5; 59.12; 60.14); e) tw<m'ֻ morte, 6 vezes (Sl. 7.14; 9.14; 22.16;

55.5, 16; 89.49); f) ~D' sangue, sanguinário, 9 vezes (Sl. 5.7; 9.13; 26.9; 51.16; 55.24;

59.3; 79.3, 10; 94.21); g) br,q, hostil, 11 vezes ( Sl. 5.10; 27.2; 36.2; 51.12; 55.5, 11,

12, 16, 19, 22; 64.7); h) sm'x' violência, 7 vezes (Sl. 11.5; 25.19; 27.12; 35.11; 55.10;

74.20; 140.12); i) hm'r>mi engano, 10 vezes (Sl.5.7; 10.7; 17.1; 35.20; 36.4; 38.13; 43.1;

55.12, 24; 109.2); j) @rx escarnecer, 11 vezes (Sl. 42.11; 44.17; 55.13; 57.4; 69.10;

74.10, 17, 18; 79.12; 89.522; 102.9); k) anEf' odiar, 19 vezes (Sl. 5.6; 9.14; 11.5; 25.19;

26.5; 31.7; 35.19; 36.3; 38.20; 41.8; 44.8, 11; 55.13; 69.5, 15; 83.3; 86.17; 89.24;

120.6); l) h['r' perversidade, 13 vezes (Sl. 28.3, 9; 35.4, 12, 26; 38.13, 21; 40.13, 15;

41.2, 8; 55.16; 70.3; 71.13, 20, 24; 80.2, 14; 88.4; 94.23; 109.5; 140.3, 141.5); m) lm'['

fadiga, 8 vezes (Sl. 7.15, 17; 10.7, 14; 25.18; 55.11; 94.20; 140.10); n) llx profanar,

9 vezes (Sl. 55.21; 69.27; 74.7; 88.6; 89.11, 32, 35, 40; 109.22); o) ql;h' falsidade, 10

vezes (Sl. 5.10; 12.3, 4; 17.14; 22.19; 36.3; 55.22; 60.8; 108.8; 142.6); p) jwm vacilar,

10 vezes (Sl. 10.6; 13.5; 17.5; 38.17; 55.4, 23; 60.4; 94.18; 140.112); q) tx;v ; cova, 7

264

Cf. LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament. Stuttgart: Deutsche

Bibelgesellschaft, 1981. 1672p.

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vezes (Sl. 7. 16; 9.16; 35.7; 55.24; 57.1; 59.1; 94.13); r) lAav . xeol, 10 vezes (Sl. 6.6;

9.18; 31.18; 55.16; 57.1; 59.1; 86.13; 88.4; 89.49; 141.7).

Todas estas palavras reforçam os traços da esfera de ação do malfeitor. O caráter

ameaçador dos ~y[iv'r>, se expressam nas suas distintas representações, como por

exemplo: os inimigos do povo e do rei, caracterizados como ybiy>ao; os que praticam a

maldade, os poderosos que gr;h' mata o pobre, o órfão e a viúva (Sl. 94.6) e até antigos

amigos que ~jf hostilizam (Sl 55.4; 109.2); que pronunciam palavras perniciosas (Sl

10.7; 17.9; 140.9). Com suas maldições, cavam túmulos e estendem armadilhas (Sl.

7.16; 9.16; 10.9; 140.6; 141.9), expressões que são frequentes na Babilônia para

designar as maldições e as artes mágicas que provocam doenças e toda a sorte de

males.265

Deste modo, fica claro nos textos bíblicos que a esfera de ação do [v'r 'ganhou maior

sentido nas ocorrências caracterizadas pela queixa de lamentação executada de forma

litúrgica nas expressões da religiosidade comunitária.

Decididamente, a esfera de ação do [v'r', provoca a reação de Javé¨. (a tr:äaem. maldição

de Javé habita na casa do malfeitor Prov. 3.33).

3.2.4. Conceitos opostos

Como conceitos opostos ao [v'r', aparecem nos textos bíblicos: qyDIc; justo, fiel à

comunidade , que é o principal deles, com mais de 80 ocorrências, sendo que metade

delas se encontram em provérbios266

; o que semeia retidão rv,yO (Prov. 11.24); o que

busca a retidão rv'y" (Prov. 15.9, Sl. 37.37); ~ymiT' íntegro (Prov. 11.5; Jó 9.22); lk;f'

sábio, prudente (Dn.12.10); lD; fraco, (Is. 11.4); ynI[' humilde, pobre (Jó 36.6); wn"[ '

oprimido (Sl 147.6); rGE forasteiros, ~Aty " órfãos e hn "m'l .a ; viúvas (Sl. 146.9). Todos

265

Cf. PEDERSEN, Johannes. Israel: Its Life and culture. Volume II. University of South Florida studies

in history of Judaism, nº 29. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1991, p. 448-449. 266

LEEUWEN, C. Van. In: JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, p. 1024

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116

estes casos são caracterizados como aliados do justo, já que são as principais vítimas

das ações do [v'r'.

No Salmo 55, as palavras que se opõem ao sentido do [v'r', estão ligadas diretamente ao

qyDIc;, justo. Além do qyDIc;, não estão presente no texto as palavras citadas acima e nem

as expressões tradicionalmente conhecidas como: ds,x,, solidariedade, bondade,

fidelidade; bh;a', aqueles que amam; ynI[',, oprimido, !Ayb.a,, pobre, e outras. No

entanto, os textos paralelos às ações do [v'r', surgem como metáforas, que dão foco à

maldade praticada por ele.

A valorização da situação do justo e de sua fé se expressam nas palavras: a) dAs,

aconselhamento, conversa confidencial, 5 vezes (Sl. 25.14; 55.15; 64.3; 83.4; 89.8); b)

af'n", suportar, perdoar, 19 vezes (Sl. 4.7; 7.7; 10.12; 25.1, 18; 28.2, 9; 55.13; 69.8;

83.3; 85.3; 86.4; 88.16; 89.10, 51; 94.2; 102.11; 123.1; 143.8); c) ar'q', clamar, chamar,

28 vezes (Sl. 3.5; 4. 2, 4; 14.4; 17.6; 22.3; 27.7; 28.1; 31.18; 35.3; 42.8; 55.17; 56.10;

57.3; 59.5; 61.3; 69.4; 79.6; 80.19; 86.3, 5, 7; 88.10; 89.27; 102.3; 120.1; 130.1;

141.12); d) hd"ÛP'«, resgate, 8 vezes (Sl. 25.22; 26.11; 31.6; 44.27; 55.19; 69.19, 71.23,

130.8); e) ~Alv', paz, 13 vezes (Sl. 4.9; 28.3; 35.20,27; 38.4; 41.10; 55.19, 21; 69.23;

85.9, 11; 120.6, 7); f) %lv, lançar, jogar fora, 7 vezes (Sl. 22.11; 51.13; 55.23; 60.10;

71.9; 102.11; 108.10); g) xj;B', confiar, 22 vezes (Sl. 4.6, 9; 9.11; 13.6; 22.52, 6, 10;

25.2; 26.1; 27.3; 28.7; 31.7, 15; 40.4; 41.10; 44.7; 55.24; 56.4, 5, 12; 86.2; 143.8)267

.

Em síntese, estes paralelos trazem luz para a ampla compreensão da noção de justiça e

salvação, expressas em Javé, que realiza sua ação em favor do justo. Estes dados servem

como contexto que permite entender as ressonâncias dos Salmos em um leitor que

conhece as correspondentes tradições teológicas de seu tempo.

Neste sentido, a chave argumentativa usada pelo salmista, reforça o arquétipo de um

personagem que sofre, porém, continua firme em sua fé, mantendo sua condição de

267

Cf. LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament. Stuttgart: Deutsche

Bibelgesellschaft, 1981.

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117

qyDIc;, justo. A oposição que este justo representa ao malfeitor, localiza-se na linguagem

típica dos Salmos e da literatura sapiencial.

3.3. O [v'r' no contexto social e religioso da comunidade no

período pós-exílio.

O sonho de uma nova comunidade judaica, fundada com tantas esperanças, desembocou

em uma profunda crise que marcou longo tempo na história social e religiosa do pós-

exílio, pois os mesmos mecanismos econômicos que nos últimos tempos da monarquia

haviam conduzido ao total empobrecimento do estrato social mais frágil continuavam a

existir.

Em troca de soluções mais fáceis em seu próprio benefício, muitos membros da classe

social mais elevada, mantiveram sua leal colaboração com os persas mantendo a

superprodução de excedentes à custa da espoliação dos mais pobres. A disputa entre a

classe alta e os campesinos, resultava sempre em prejuízos para aqueles mais

empobrecidos.

Ao considerarmos o contexto social que se desenvolve na segunda metade do pós-

exílio, percebemos o surgimento, em maior escala do [v'r' como descrição injuriosa de

um determinado grupo social. A identificação do malfeitor com a camada antissocial da

classe alta, que emerge tirando proveitos da crise de seu tempo, se torna caracterização

genérica para descrever o distanciamento de uma pessoa de suas virtudes éticas, morais

e religiosas.

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118

3.3.1 O Impulso social

Rainer Albertz traz em sua obra268

, as bases para a compreensão da história da religião

no período pós-exílio, onde mostra com grande definição, a divisão social e religiosa

desenvolvida em Israel a partir da crise social estabelecida no V e IV séculos a.C.

Diante das pressões econômicas de uma fragilizada condição social e política, a

perspectiva de uma legislação social que se movia na direção deuteronômica da ética da

fraternidade, alimentada pelo ideal do Javismo primitivo, foi sufocada pela divisão entre

ricos e pobres que se havia instalado desde os tempos da monarquia.

Traços da religiosidade javista que influenciava parte da classe social mais elevada,

produziu um significativo impulso social que dividia a classe alta do judaísmo em dois

campos: de um lado havia os que exploravam os pobres sem nenhuma piedade ou

preocupação com seus irmãos, em prol de benefícios próprios e por outro lado aqueles

que defendiam a solidariedade com seus irmãos mais pobres, e se esforçavam por

manter-se fieis e piedosos, mesmo que lhes custassem importantes sacrifícios

econômicos.

A regulação de normativas religiosas que valorizavam a piedade provocou a agudização

do conflito que se agravou no pós-exílio quando estas normas se tornaram definitivas na

religião judaica. A conduta insolidária passou a ser estigmatizada, fundamentada na

figura negativa do [v'r'.

Albertz declara:

“Isso quer dizer que elevaram a solidariedade social à categoria

religiosa de profissão de fé, com a qual, em comparação com os

enormes desafios da crise, deveria decidir a verdadeira pertença a

Javé.”269

268

ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p.

567-709 269

Tradução de: “Eso quiere decir que elevan la solidaridad social a categoría religiosa de profesión de

fe, con la que, frente a los enormes retos de la crisis, debería decidirse la auténtica pertenencia a

Yahvé.”Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol.

2, p. 670

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119

Para o autor a relação com Deus e com a comunidade de Israel estava diretamente

associada à conduta social do indivíduo. Com caracterizações de deliberado corte

partidarista, a situação do justo qyDIc; e do homem religioso DyIsx'270 se tornaram menos

clara, diante da frente comum que se formava contra os malfeitores. Esta era, uma

confrontação teológica entre o setor solidário da aristocracia, juntamente com os

agrupamentos da classe baixa contra a classe alta opressora.

Portanto, a maldade do [v'r' consiste, antes de tudo, em um comportamento antissocial,

validado por questões teológicas. Albertz ressalta que as ações do setor aristocrático

que explorava os mais pobres, estava em acordo com o formalismo jurídico e, portanto,

não tinha nenhuma necessidade de se defender ou de justificar suas ações, já que

estavam em posse de seus direitos.

As ações empreendidas pelos membros impiedosos da classe alta eram, até certo ponto,

atrativas, pois gozavam de bons empreendimentos em seus negócios, melhorando

sempre a sua posição social.

“Por isso, a luta dos aristocratas que mantinham firmemente as suas

obrigações de solidariedade impostas pela religião Javista, teve que se

desenvolver em duas direções: em primeiro lugar, para fora, contra uma

postura tão sedutora como a dos malvados; e em segundo lugar, para

dentro, para proteger os membros de seu próprio partido”271

O caminho encontrado para combater esta sedutora facilidade que acompanhavam as

ações dos malfeitores, foi a prática educativa e propagandista, empreendida pelos

aristocratas piedosos, membros de uma elite letrada. Celebrações litúrgicas, textos

poéticos, dramatizações, Salmos didáticos, eram todos, recursos utilizados para o

fortalecimento da campanha contra seus adversários.

270

RINGGREN, H., hasid, Em: Theological Dictionary of the Old Testament, Volume V, Grand Rapids:

William B. Eerdmans Publishing Company, 1986, p. 75-79) 271

Tradução de: Por eso, la lucha de los aristocratas que mantenían firmemente las obligaciones de

solidaridad impuestas por la religión yahvista tuvo que desarrollarse em dos direcciones: em primer

lugar, hacia afuera, contra uma postura tan sedutora como la de los ‘malvados’; y em segundo lugar,

hacia adentro, para proteger a los miembros de su próprio partido. Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de

la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p. 672.

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120

A força do dramatismo poético encontrado em muitos Salmos eram estratégias usadas

pelos escribas que compunham Salmos didáticos para interpelar seus adversários. Sobre

a atividade dos escribas, Karel Van der Toorn272

, faz importantes observações quanto às

influências da cultura escribal, oriundos de uma elite letrada. Os enfrentamentos contra

a postura dos malfeitores aconteciam, portanto, muito mais pela força de uma elite

piedosa do que por um clamor dos pobres.

Em seu capítulo In search of the scribes, I 273

Toorn comprova que qualquer produção

literária, por mais precária que pareça, só poderia ser fruto da atividade profissional de

escribas, que por sua vez, eram sociologicamente influenciados pelas culturas

mesopotâmicas e pelo Egito, proporcionando uma visão cosmopolita que entendia

muito bem a conjuntura política e social de seu tempo.

Os recursos usados pelos escribas tinham o teor educativo. Suas ações se

desenvolveram em amplo aspecto, empregando até mesmo nas escolas, coleções de

sentenças com uma série de aforismos sobre malfeitores e fiéis com as quais as crianças

da classe alta aprendiam a ler.

3.3.2 Novas concepções teológicas

Quanto ao desenvolvimento deste conflito, tendo como ponto de partida na crise social

do século V a.C, Erhard S. Gerstenberger274

nos traz importantes contribuições.

Segundo o autor, o período da dominação persa (539-331) deu nova forma ao antigo

Israel, fornecendo em sua política, cultura e religião, o cenário para a nascente

comunidade judaica.

A partir do retorno dos exilados em 540, as condições de vida foram transformadas

positivamente, produzindo modificações, principalmente com respeito à religião. Com

esta “liberdade religiosa” foi possível reorganizar em Jerusalém as atividades do templo

272

TOORN, Karel Van Der. The Image and the book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise of Book

Religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters, 1997 273

“Em busca dos escribas, I” TOORN, Karel Van Der, The Image and the book, p 51-74 274

GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos persas: Séculos V e IV antes de Cristo. Tradução

de Cesar Ribas Cezar. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p.15-17

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121

e a refundação de uma comunidade de Javé, dando impulso para formação de novas

concepções teológicas adequadas ao contexto em que viviam.

A orientação do javismo oficial fazia do culto no templo, um núcleo da relação com

Deus. A ideia de um povo eleito, gerado pela concepção sacerdotal, produziu um

autêntico bálsamo na existência das minorias judaicas, diante do pluralismo cultural e

religioso do Império Persa. A partir de então, com a permissão persa, a reorganização

social e religiosa se movia na linha deuteronomista de uma “ética da fraternidade”

produzindo apelos cada vez mais frequentes para a necessidade de uma reforma

econômica e social da comunidade, a fim de superar a divisão entre ricos e pobres que

havia se instalado desde os tempos da monarquia.

Mark S. Smith275

defende que os desafios para Israel durante o período persa

influenciaram significativamente a definição exata e identidade da divindade. Este fato

provocou enormes consequências para a ordem social. Javé se impunha como Deus

único e isto se tornou altamente significativo pois o impulso social era considerado

inerente à religião javista.

Para Gerstenberger o fruto teológico do nascimento desta espiritualidade em torno da

comunidade de Javé foi importante instrumento no desenvolvimento da nova

comunidade confessional, fundada na formação da identidade judaica. Uma

transmutação fez com que Javé se tornasse o nome divino mais conhecido enquanto

divindade oficial do Estado de Judá e da casa real de Davi.

Percebemos assim, que no contexto do pós-exílio, as significativas mudanças

econômicas, religiosas e sociais, proporcionaram cenários propícios para o

desenvolvimento de conflitos que impulsionaram a transformação social276

e permitiu

novas estruturas teológicas para a comunidade judaica.

275

Cf. SMITH, Mark. S. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no Antigo

Israel. Trad. Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo: Paulus, 2006, p. 108-116 276

ARMANDO NOGUEZ. “El contexto histórico-cultural de los Salmos. Una introducción religiosa

sociocultural de los salmos”. Ribla, 45, Petrópolis: Vozes, p.23-35, 2003

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122

a) A teologia dos sábios

No período pós-exílio, o retorno às imagens tradicionais dos tempos passados da aliança

com Deus, fez com que Javé novamente se tornasse uma figura de identificação divina.

Se a autêntica pertença a Javé estava ligada à solidariedade social, elevada à categoria

de profissão de fé, o malfeitor tornava-se, portanto, a figura anti-positiva em

contraposição direta com o justo.

A ampla difusão deste fenômeno não só no campo sapiencial, mas também em grande

parte dos textos bíblicos, especialmente nos escritos proféticos tardios277

, nos dão pistas

de que a figura do malfeitor apresenta muito mais do que elementos casuais promovidos

por sua riqueza. Sua maldade consiste num comportamento antissocial, onde os pobres

são maltratados e espoliados de seus bens por parte de membros da aristocracia, que por

sua vez, continuam inabaláveis em sua condição econômica, mantendo prestígio e

grande consideração na sociedade.

Os textos bíblicos exibem marcas deste conflito social com relativo acúmulo de

ocorrências do [v'r' nos Salmos e na literatura sapiencial278

, expondo em sua

textualidade poética, conflitos que acentuavam a ética da religiosidade pessoal.

O livro de Jó surge como exemplo legendário de um homem rico e piedoso, que perdeu

tudo em sua vida, mas deixa claro que a religiosidade extremamente orientada, faz

compreender que a severa crise que atingia também os membros da classe alta, tinha as

garantias da intervenção divina, após provar seu sentido religioso.

A argumentação teológica contida no livro de Jó, propõe um processo evolutivo para a

os membros da classe alta que se viam ameaçados pela crise. Deus havia estabelecido

uma nova ordem no mundo. A luta por uma autêntica religiosidade e por uma justiça

277

Como por exemplo: Mal.3.13-21; Is 56.9-57.21; 59.5-8, 13-15ª. Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de la

religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento: Desde el Exilio Hasta la Época de los Macabeos.

Vol. 2, . Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 671. 278

Dentre o grupo de palavras formadas a partir da raiz [vr o adjetivo [v'r' é o que aparece em maior

frequência: Salmos 82 vezes; Jó 26 vezes e Provérbios 78 vezes. Cf. LEEUWEN, C. Van. In: JENNI,

Ernst e WESTERMANN, Claus. Diccionario teologico manual Del Antiguo Testamento, Volume II.

Madrid: Edicciones Cristandad, 1985, p. 1022

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123

social, encontrava o devido reconhecimento da vontade divina. Somente a verdadeira

conversão a Deus levava ao pleno conhecimento de seu amor e de sua justiça.279

3.3.3 A espiritualidade dos pobres

A segurança da salvação foi tema central para o círculos religiosos da classe baixa que

celebravam suas liturgias às margens dos cultos oficiais do templo. Reunidos em casas e

sinagogas as ações de graças e lamentações serviam como base para expressar a certeza

da salvação.280

Apesar das dificuldades enfrentadas (Sl. 35.9; 69.7; 70.5; 109.30), a salvação de um

membro da comunidade era para todo o grupo, motivo de alegria (Sl. 35.27). Este era o

sinal da segurança em Javé que se estendia a todo o grupo. Esta aproximação entre a

religiosidade pessoal e a teologia comunitária marcou o período pós-exílio e

intensificaram espiritualidade das classes sociais marginalizadas.

A liturgia era o ponto central para o desenvolvimento da lamentação, onde o anúncio

profético de salvação e condenação, tornaram-se formas específicas de segurança para

os grupos sociais de pobres e oprimidos.281

Exteriorizando a confiança na palavra e na

proteção de javé, os oráculos divinos asseguravam que mesmo diante das opressões dos

humildes e dos lamentos dos pobres282

, estes recuperariam seus direitos e toda a

violência humana chegaria a seu fim (Sl. 10.18).

Enquanto a função mais importante da teologia pessoal cultivada pelos piedosos da

classe alta, era de salvaguardar a responsabilidade ética diante da crise, a principal

tarefa da espiritualidade dos pobres consistia em devolver às vítimas da crise, sua

dignidade e esperança283

. As súplicas e desejos contras seus opressores (Sl. 9.18; 10.15;

279

Cf. ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento:Vol. 2, p.

691- 697 280

BARROS SOUZA, Marcelo de. A oração forte do lamento e da resistência do Povo de Deus (Um

ângulo de abordagem do livro dos Salmos). Ribla, 13, Petrópolis: Vozes, p.50-61, 1993. 281

Cf. GERSTENBEGER Erhard S. “Psalm 12: Complaint of the individual; Congregational Lament”.

In: GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms. Part. 1, FOTL, p.80 - 83 282

Para este significado genérico ver: SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Leopoldo/São

Bernardo do Campo: Oikos/Editeo, 2013, p. 210 - 212 283

BARROS SOUZA, Marcelo de. Os Salmos nas lutas das comunidades cristãs. Estudos Bíblicos, 10,

Petrópolis: Vozes, p.58-60, 1986.

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124

55. 10s.,70.3s.), produzidas por vinganças imaginárias, aplacavam a reprimida e

desesperada sensação de impotência que sondava os deserdados e marginalizados

daquela sociedade.

A beleza destes traços de espiritualidade está na expressão de uma obstinada vontade de

resistência de um povo que não quer e nem pode conformar-se com a privatização de

sua esperança. Como consequência, criavam-se expectativas escatológicas que

anelavam pelo grande juízo de Deus, que cairia sobre os malfeitores (Sl. 55.17, 18, 24).

Os ricos malfeitores receberiam seu merecido castigo enquanto os pobres veriam

estabelecida sua justiça (Sl. 9.20; 12.6; 14.5).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossas considerações finais propomos dois momentos. O primeiro, com uma visão

mais sintética, do caminho percorrido até aqui e a importância de cada uma de suas

etapas. No segundo momento oferecemos uma leitura global dos resultados obtidos,

finalizando com possíveis caminhos hermenêuticos.

O Primeiro capítulo foi dedicado à introduzir e localizar nosso objeto de estudo a partir

da composição e análise literária do saltério. A fim de construir uma base sólida para o

trabalho posterior. Percebemos que os Salmos de lamentação têm presença marcante no

contexto histórico e social do período pós-exílio e a força das expressões de queixa,

maldição e súplicas articuladas pelo orante, processam um conjunto elaborado de

liturgias que alimentam as esperanças na ação libertadora de Javé.

A situação do [v'r' ganha conotações mais próximas do rico opressor284

, enquanto o

sentido de justo continua em estreita relação com o pobre e necessitado. Os conteúdos

de ordem social e religiosa285

, apontam para uma divisão bem clara e definida entre os

grupos da classe alta, proprietários de terras e a comunidade campesina.

Assim, as consequentes transformações sociais e religiosas do pós-exílio e as

experiências comuns de reconstrução social, adquiriram função decisiva para a solidez

da comunidade e seu conjunto. A valorização da temática do pobre e sofredor,

alimentaram ainda mais o desejo e busca por um Deus de justiça286

.

A partir destas bases procedemos com a análise exegética do Salmo 55. O segundo

capítulo foi dedicado para este fim. A tradução do TM revelou-se coerente com as

análises do aparato crítico da BHS e quando observamos sua estrutura conseguimos

identificar a sobreposição de queixas, maldições e afirmações de fé que caracterizam a

284

SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Leopoldo: Oikos; São Bernardo do Campo: Editeo,

2013, 285

ALBERTZ, Historia de la religión, p. 440 286

Ver: GERSTENBERGER, Erhard S. “A Bíblia – fermento da sociedade humana. Reflexões de uma

perspectiva europeia”, p. 68-80. Em: Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. Carlos A.

Dreher et.al., org.(s). São Leopoldo: Oikos, 2006, p.75

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126

intensidade do lamento. A força poética do salmo intensifica a denúncia e o ritimo das

agressões do malfeitor.

Como resultados finais da exegese, percebemos que o salmista apresenta de forma

peculiar, a identidade de um agressor que está próximo, um amigo íntimo, alguém de

seu mesmo sangue. A articulação do discurso do salmista se dá em três momentos onde

sua fragilidade, suas queixas e sua afirmação de fé combinam elementos retóricos que

intensificam e legitimam a estrutura de conflito entre justos e malfeitores.

Alguns temas teológicos foram suscitados nos permitindo vislumbrar enunciados

expressos de forma efetiva como o mixpat, a retribuição, os pobres e a não violência,

conferindo maior sentido na interpretação das motivações de esperança na justiça de

Javé.

O terceiro capítulo retoma o sentido da espressão [v'_r" e busca, a partir de seu estudo

conceitual, a definição que mais lhe aproxima da representação da maldade em seu

contexto social. O estudo semântico nos orientou para as transformações estruturais da

palavra, ocorridas ao longo do tempo, bem como o sentido diferenciado em situações de

acusação jurídica e ético-religiosa, provocadas por mudanças nas estruturas sociais.

Dentre os processos dialéticos do sentido do [v'_r" destacamos as interpretações

desenvolvidas à partir da leitura semiótica, onde as transformações linguísticas ocorrem

no intercâmbio entre textos e palavras287

. O sentido histórico é em seguida, avaliado

como elemento determinante para nossa análise pelo fato de distinguir na prática a

solidariedade social como elemento religioso de profissão de fé. Neste sentido, a

oposição entre [v'_r" e qyDIc; ganham maior ligação com os eventos sociais e religiosos

do pós-exílio. Estes eventos impulsionaram transformações na estrutura social,

dividindo a sociedade entre piedosos e ímpios288

.

287

LOTMAN, Iuri M. La Semiosfera I. Semiótica de la cultura y del texto. Selección y traducción del

ruso por Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones Cátedra, S. A. 1996, p.84-85 288

Ímpio aqui tem o sentido de caracterizar o homem sem Deus. Cf. ALBERTZ, Historia de la religión,

p. 225, 315, 327, 674,

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127

Os conceitos paralelos e opostos do [v'_r" mostram a intensidade dos elementos que

caraterizam de forma genérica a ligação do malfeitor com a camada anti-social da classe

alta, provocando reações de ordem social e religiosa289

. Novas concepções teológicas

surgiram, em meio à alguns membros da classe alta, com retorno às imagens

tradicionais da solidariedade social ligadas ao javismo, enquanto se destacava a

espiritualidade dos pobres com elevado destaque para o anúncio profético da segurança

da salvação para os piedosos e a condenação para os malfeitores.

Partindo dos resultados obtidos

No fim desta pesquisa sobre a função sociológica do [v'r' nos Salmos de lamentação,

com o olhar para os conflitos de classes ocorridos no final do período pós-exílio,

constatamos que as primitivas experiências da religiosidade pessoal, tornaram os setores

marginalizados da sociedade, convictos de sua autêntica pertença a javé. Estas

convicções serviam para consolidar e afirmar sua dignidade humana.

Contrariamente às concepções teológicas correntes, sua miséria não era sinal do

abandono de Deus, mas sim, um sinal relevante para a manifestação da força de javé, o

Deus da libertação.

Os marginalizados da comunidade constituíam um núcleo que pretendia ser o

verdadeiro povo de Deus, sobre tudo, frente aos erros cometidos pelos malfeitores. Este

ideal lhes davam forças para afirmarem-se frente à sociedade, conseguindo desenvolver

maior influência sobre o povo com sua espiritualidade.290

O fato de que na religião de Israel fora possível que grupos socialmente oprimidos,

convertessem sua religiosidade pessoal em instrumento de autoafirmação, mostra que,

289

PEREIRA, Nancy Cardoso. “Jardim e poder. Imperialismo persa e resistência camponesa”, p. 172-

187. Em: Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. Carlos A. Dreher et.al., (orgs.). São

Leopoldo: Oikos, 2006, p.180 290

ALBERTZ, História de la Religion, p. 709

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128

mesmo em escala reduzida, toda a força de libertação, estava contida na espiritualidade

destes grupos marginais.291

Possíveis caminhos hermenêuticos

A proposta em se pensar em possíveis caminhos hermenêuticos surge a partir da

seguinte pergunta: em que medida os Salmos podem ser significativos para os homens e

mulheres de hoje, especialmente os pobres que buscam na Escritura respostas para seu

sofrimento, tendo a experiência de uma justiça demasiadamente longa?

A realidade do sofrimento social de um incontável número de pessoas em míseras

condições de vida, excluídas não somente do acesso às grandes conquistas do progresso,

mas também dos bens básicos que fazem a vida digna, constitui um verdadeiro

problema de fé que se estende não somente a nível teórico mas também de modo

prático. Ao ler as Escrituras, encontramos a frequente e repetida profissão de fé em um

Deus que ama a justiça, sustenta e acolhe os mais frágeis, justamente pelo fato de que

são mais carentes e necessitados

Considerando a dinâmica da revelação bíblica e como ela se manifestou ao longo dos

anos, percebemos que esta coleção de escritos bem antigos, proveniente de civilizações

desaparecidas, podem ainda, exercer grande influência nas pessoas modernas. As forças

libertadoras da Bíblia atuam como fermento que podem dar razões de esperança para

possíveis formas de nova organização social.

Os Salmos, são de fato, fonte de mensagens válidas e significativas para aqueles que

continuam buscando neles, respostas para a vida. Sem perder seus conteúdos

fundamentais, o saltério incorpora um conjunto de respostas cuja a validade se afirma na

sua capacidade de interagir e de opor-se às situações essenciais da vida.

Em estreita relação com estes fatos, se abre a possibilidade hermenêutica de estabelecer

a compreensão da fé como uma realidade que promove o diálogo entre ideologia e

291

Cf. SILVA, Valmor da. “Escutai, ilhas! Leitura do segundo canto do Servo do Senhor, segundo Is

49.1-6”, p. 258-272. Em: Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. Carlos A. Dreher et.al.,

org.(s). São Leopoldo: Oikos, 2006, p 269-270.

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129

utopia292

. É a força da unificação e conservação associada à força da transformação. O

Salmo pode ser visto então como uma proclamação de fé que localiza-se principalmente

na linha da utopia, impulsionando e oferecendo razões para a esperança. Por outro lado,

em nível pragmático, articula sua dimensão ideológica, quando aliena de atitudes

violentas.

A dimensão utópica é sem dúvida, a lição que aprendemos com o Salmo 55, pois trata-

se de um texto que rechaça o conformismo e se opõe aos olhares ingênuos que

minimizam a injustiça. Se opõe também àqueles que cinicamente validam a opressão e o

engano. O salmista professa sua fragilidade diante das ações do malfeitor e a inteira

dependência em Javé que se opõe à injustiça.

Embora o salmista, levado por medos e temores, pareça sucumbir à violência, desejando

que o [v'r' seja exterminado, está na verdade, validando a ideia da justiça divina que se

contrapõe às ações de seu agressor. O desejo do salmista é, portanto, de justiça e não de

violência.

A proposta destes caminhos hermenêuticos, que poderiam ser completados por muitas

outras, permite perceber nos Salmos uma leitura válida e com muitas possibilidades de

sentido para os dias atuais. A beleza de se fazer exegese sem destacar demasiadamente a

distância histórica e cultural dos textos, torna possível, a aproximação bonita, natural e

subcutânea da realidade.293

292

RICOEUR, Paul. Los caminos de la interpretación; Actas / Symposium Internacioinal sobre el

Pensamiento Filosófico de Paul Ricoeur, Granada, 23-27 de noviembre de 1987; CALVO MARTINEZ,

Tomás; ÁVILA CRESPO, Remédios (eds.). Trad. José Luis García Rúa. Barcelona: Anthropos, 1991, p.

426-433 293

GERSTENBERGER, Erhard S. “A Bíblia – fermento da sociedade humana. Reflexões de uma

perspectiva europeia”, p. 68-80. Em: Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. Carlos A.

Dreher et.al., (orgs.). São Leopoldo: Oikos, 2006, p.80

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Artigos

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FICHA CATALOGRÁFICA

L135f

Lage, Jovanir

A função sociológica do raxa´ nos salmos de lamentação e os conflitos de

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Bernardo do Campo, 2016.

137fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) -- - Escola de Comunicação,

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da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo

Bibliografia.

Orientação de: Tércio Machado Siqueira

1. Bíblia – A.T. – Salmos – Crítica e interpretação 2. Salmo 55 I. Título

CDD 223.207