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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Curso de Bacharelado em Direito
PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Niterói
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
IAN ASSED ESTEFAN FRANÇA
PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Trabalho de Conclusão do Curso de
Bacharelado em Direito apresentado à
Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Direito.
Orientador: Lincoln Antônio de Castro
Niterói
2016
RESUMO
O presente artigo trata da análise da teoria do adimplemento substancial e sua
presença e utilidade no ordenamento jurídico brasileiro. É observada a presença dos
princípios fundamentais e sua relação com a teoria, ao passo que é traçada a
trajetória dos mesmos no direito brasileiro. O estudo buscou evidenciar a
importância da aplicação de princípios e do adimplemento substancial para a melhor
tutela das relações contratuais e satisfação das pretensões enquanto evitam-se
abusos.
Palavras-chave
Adimplemento Substancial; Contrato; Princípios; Função Social.
ABSTRACT
The article is about analyzing the theory of substantial performance and its presence
and utility in Brazilian law. The presence of fundamental principles and their relation
to the theory is observed, while their trajectory in Brazilian law is marked. The paper
tried to show the importance of applying principles and the theory of substantial
performance for the best treatment of contractual relations and satisfaction of intent
while avoiding abuse.
Keywords:
Substantial Performance; Contract; Principles; Social Role.
4
Introdução
O objeto deste artigo consiste em analisar a presença do princípio da função
social na teoria do adimplemento substancial, suas repercussões e utilidade no
ordenamento jurídico brasileiro, focalizando a legislação, doutrina e jurisprudência
sobre a matéria.
Inicialmente o artigo versa sobre o nascimento dos princípios no direito
brasileiro e sua relevância para a modernização de um ordenamento ultrapassado
fechado a interpretações e relativizações conforme o contexto social.
Em seguida analisa-se a adequação dos contratos nesse novo ordenamento
jurídico e a comunicação do direito obrigacional com os princípios agora cediços no
direito brasileiro.
Por fim, observa-se como a teoria do adimplemento substancial foi
adequada para as relações jurídicas no direito brasileiro, dando enfoque à presença
dos princípios da função social e boa-fé no instituto. A análise doutrinária e
jurisprudencial demonstra como é aplicada a teoria e sua eficiência para garantir
direitos às partes contratantes.
.Este artigo, visando ao trabalho de conclusão de curso, justifica-se pela
necessidade de conhecimento e compreensão da teoria do adimplemento
substancial, que é tema de debate atualmente à luz do ordenamento jurídico
brasileiro. Pretende-se assim obter subsídios para melhor interpretação e aplicação
das normas jurídicas de regência da matéria.
Na pesquisa foram adotados os métodos indutivo e dedutivo, visando a um
modo de pensar ordenado, coerente e lógico. A pesquisa tem cunho teórico, por ter
sido trabalhado material bibliográfico suficiente para revisão do tema e sustentação
de abordagem projetada no objeto da investigação.
Os dados foram coletados em livros, decisões dos tribunais e textos legais.
Assim, a pesquisa envolveu a análise da legislação, doutrina e jurisprudência dos
Tribunais.
A pesquisa, por ser descritiva, buscou descrever os aspectos jurídicos,
promovendo-se interpretação necessária à formulação de respostas para as
questões sobre o tema.
5
1- Princípio Constitucional e Princípio Geral de Direito
Nos primórdios do Estado de Direito do século XIX marcado pelas
revoluções americana e francesa, estendendo-se até a primeira metade do século
XX, o direito positivado, isto é, as normas escritas prevaleciam em relação aos
princípios jurídicos. O direito era constituído pelas regras do código acima dos
valores que existissem na sociedade.
Entretanto, conforme já foi concluído, o Direito segue em evolução, e
consigo aproximou as relações cotidianas das normas. O Direito não mais era
direcionado à burguesia do Código Napoleônico (CASTRO, 2010, p. 261), e nunca
na história da humanidade a ideia de “cidadão de direito” esteve tão difundida
quanto no final do século XX. No Brasil, esse marco foi localizado no dia 5 de
outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã.
Na constituição de 1988, os Direitos Individuais Clássicos são assegurados
(CASTRO, 2010, p. 261) desde seu preâmbulo até, destacando-se, o art. 5°, em que
se encontram os valores que foram escolhidos para pautar a nova ordem jurídico-
social que se inseria. A dignidade da pessoa humana, igualdade, pluralismo, direitos
humanos, liberdade e paz dentre outros formam um conjunto inviolável perante a
Constituição, tão basilares e abrangentes que a denominação de norma não
abarcaria todo seu significado, tratam-se, portanto, de princípios constitucionais.
Nesse sentido, destaca José Joaquim Gomes Canotilho (apud Medina,
2002, p. 35) que o direito no Estado Constitucional Democrático é um direito de
princípios, e acrescenta que tais alterações implicam em mudanças significativas no
método de concretização do direito e, consequentemente, na atividade jurisdicional
dos juízes.
Anterior à Constituição de 1988, em 1942, a Lei 4.657 (Lei de Introdução às
normas do Direito Brasileiro) consolidou, in verbis:
Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Explica Paulo Nader (2010, p. 82) que os princípios gerais de direito
possuem duas funções, uma, como já mencionado, na fase de elaboração dos
textos legislativos, de regulamentar determinado setor da sociedade conforme os
valores que se inserem naquele ordenamento. A outra, conforme o dispositivo
6
supramencionado, é de natureza integradora e compete aos magistrados a sua
articulação nos casos em que a lei é omissa, inexiste norma costumeira e é
inaplicável a analogia.
O Código de Processo Civil também prevê a vedação à abstenção em seu
artigo 126, in verbis:
Art. 126 - O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
Portanto, tem-se que a lei brasileira não permite a ausência de solução para
julgamento do magistrado fundado em lacuna ou obscuridade legal. Ao julgar a lide,
o magistrado deverá aplicar as normas legais, caso inexista norma legal sobre o
assunto, o juiz deverá recorrer à analogia, aos costumes e os princípios gerais de
direito.
1.1- Princípios no Novo Código Civil Brasileiro
O diploma civilístico de 2002 teve origem, ainda que em fase “embrionária”
datada de 1969, quando o Governo Federal convidou o professor Miguel Reale, da
Universidade de São Paulo, para assumir a supervisão geral da comissão eu
elaboraria o anteprojeto. Com o objetivo de revisar, aperfeiçoar e, por fim, substituir
o Código de 1916, coube a Reale a formação de sua equipe, que contou com José
Carlos Moreira Alves, Agostinho Neves de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert
Chamoun, Clóvis do Couto e Silva, e Torquato Castro. Cada jurista responsável por
uma parte do novo diploma na qual tinha especialidade (NADER, 2010, p. 40).
O objetivo da criação do novo Código não era uma total revolução nas
normas do antigo, mas, melhor dizendo, seria um aperfeiçoamento do mesmo, que,
embora considerado excelente em matéria de forma e conteúdo, já não atendia às
necessidades da época e seu contexto social. Manteve-se alguns artigos, com a
redação primitiva ainda, aproveitando a boa qualidade da redação ao passo que
evitava divergências hermenêuticas, ao passo que foram excluídas algumas
matérias, deixadas como objeto de leis, por exemplo a locação predial, direitos
7
autorais, condomínios e alimentos. Alguns aspectos foram apenas aperfeiçoados,
formalizando princípios que já se encontravam sedimentados na prática no país.
Porém a verdadeira mudança trazida no novo Código Civil era a adaptação
do Direito Civil aos valores éticos e sociais resultantes de uma nova época que se
inseria. O Código de 1916, criticado pela sua normatividade pura e afastamento de
princípios, seria substituído por um direito moderno, adaptado às relações jurídicas
que ocorriam no cotidiano e o advento de uma Constituição baseada em princípios,
buscando proteger as partes e o interesse social, de forma equilibrada e eficaz.
Miguel Reale traçaria três princípios filosóficos em que o novo diploma se inspirou,
quais seriam a socialidade, eticidade e operabilidade. O novo diploma seria
trabalhado envolvendo esses princípios fundamentais e suas ramificações, com
objetivo de trazê-los à consciência da sociedade e dos operadores do direito
(NADER, 2010, p. 41).
1.1.1- Princípio da Socialidade
Quanto ao princípo da socialidade, aduz Reale em sua obra “O Projeto do
Novo Código Civil” (1999, p. 9) que “o sentido social é uma das características mais
marcantes do Projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o
Código Civil ainda em vigor”. Das declarações do jurista, é possível retirar a
motivação para a inclusão desse princípio na nova lei civil.
Note-se que o antigo Código Civil já completaria um século nos dias atuais,
seu berço foi uma república recém-formada e a escravidão não tinha ainda
completado trinta anos de abolida. Inúmeras mudanças na sociedade ocorreram
desde um período tão longínquo na história brasileira, não só no âmbito político, com
diversas mudanças de regime que incluíram dois períodos ditatoriais e 5 cartas
constitucionais, mas também na sociedade, com a revolução industrial, êxodo em
massa do território rural, aumento da estratificação social e o florescimento,
relativamente recente, dos direitos fundamentais individuais e coletivos.
Assim, seria inconcebível esperar que o mesmo diploma de tantas gerações
refletisse os valores sociais da atualidade de modo eficaz para o direito. Desse
modo, conforme descreve Paulo Nader (2010, p. 41), a comissão elaboradora
8
seguiu o rumo da tendência moderna e acolheu o princípio de prevalência do
coletivo sobre o individual, ao passo que não ignorou ao valor fundante da pessoa
natural
1.1.2- Princípio da Eticidade
O princípio da eticidade é aquele derivado do respeito à dignidade da
pessoa humana acima de todos os outros valores. É esse princípio que afasta o
prejuízo causado pela desigualdade ou deslealdade nos negócios jurídicos,
colocando a valorização da pessoa humana como fonte de todos os valores
(REALE, 1999, p. 9).
A Comissão fortemente rejeitava o modo exageradamente formalista do
Código de 1916, que disciplinava o direito com normas expressas, não conferindo,
portanto, ao magistrado o poder de julgamento fundado em valores éticos da
sociedade com a inserção de princípios como a boa-fé, equidade e justa causa.
Entendia que não bastava o que havia sido estipulado e formalizado no contrato
como absoluto, as partes tinham deveres uma com a outra, prevalecendo a
transparência, informação e respeito às expectativas criadas. Haveria, portanto, o
reconhecimento da possibilidade de resolução de um contrato em razão da
ocorrência de situações imprevisíveis, as quais inesperadamente alterem os dados
do problema, tornando a posição de um dos contratantes excessivamente onerosa
(REALE, 1999, p. 9-10).
Assim, optou a Comissão por afastar-se do viés codicista do antigo diploma,
conforme o qual a palavra do código era a única fonte de julgamento, aplicando a
eticidade como a base sobre a qual as relações jurídicas deveriam erguer-se.
1.1.3- Princípio da Operabilidade
Finalmente, a Comissão deu por princípio da operabilidade a necessidade
de as disposições alcançarem “realibilidade”, ou seja, efetividade, como uma
condição essencial para as normas jurídicas serem aplicadas (NADER, 2010, p. 41).
9
Segundo Miguel Reale (1999, p. 10-12), o princípio da operabilidade
“confere ao julgador maior elastério, para que, em busca de solução mais justa, a
norma, que, contendo cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, possa, na
análise de caso por caso, ser efetivamente aplicada, com base na valoração
objetiva, vigente na sociedade atual”.
A falta de atenção a esse princípio no diploma anterior também foi objeto de
revisão, uma vez que, conforme as relações jurídicas evoluíram no tempo, alguns
dispositivos restaram obsoletos ou não elaborados o suficiente, conforme o caso da
não distinção rigorosa das hipóteses de prescrição e de decadência no Código de
1916.
O respaldo ao princípio da operabilidade é simplesmente a concretude do
normativismo, vale dizer, a necessidade de o legislador não operar sobre o abstrato,
mas sim legislar para o indivíduo situado, com seu papel específico em uma relação
jurídica específica, o tanto quanto possível (REALE, idem).
2- Princípio da Função Social nos Contratos
O vocábulo “Princípio”, conforme o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (2008, p. 397), é seguido pela definição: “Princípio. S. m. 1. Momento ou
local ou trecho em que algo tem origem. 2. Causa primária, origem. 3. Preceito,
regra”.
Ao se trazer o termo para o vocabulário jurídico, encontra-se uma definição
que se aproxima dos sinônimos dados de “preceito” e “regra”, todavia com uma
peculiaridade que aparentemente traz maior importância ao conceito. Leciona Celso
Antônio Bandeira de Mello (apud SILVA, 1989, p.81):
“O princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”.
Percebe-se que “princípio”, portanto, é algo de maior abrangência que mera
regra ditada, mas sim alicerce de todo um sistema jurídico normativo. Mais geral e
10
intrínseco, o princípio, ou o conjunto de princípios, definirá o modo como as normas
do ordenamento operarão e quais são seus objetivos. Com sua análise atenta, os
princípios revelam os mandamentos da sociedade em que se inserem,
demonstrando seus valores e condutas na imagem que teria o legislador do que
seria a conduta social ideal.
Conforme a lição de Medina (2002, apud CASTRO, 2008), os princípios
jurídicos possuem três funções básicas: a normativa, interpretativa e integrativa.
Entende-se por função normativa a possibilidade de os princípios servirem de base
para o ordenamento jurídico; já na função interpretativa os princípios são
considerados parâmetro para a atividade interpretativa das normas legais; e, por fim,
na função integrativa, os princípios oferecem meios para correção de defeitos das
mesmas.
O olhar cuidadoso sobre os princípios de um ordenamento jurídico funciona
como um estudo científico. Nas minúcias das normas encontram-se as leis que
regem aquela sociedade, a história por trás delas, como e por que elas vieram a
existir e evoluir, é o que mantém o ordenamento estruturado e, sem as quais, o
mesmo ruiria. Em um sistema solar jurídico, em que a Constituição é o Sol com
normas e leis orbitando ao seu redor, os Princípios são nada menos que a
Gravidade.
Demonstra-se, portanto, evidente a importância dos princípios na
elaboração do presente estudo, assim como qualquer estudo jurídico que trata de
ideais basilares em um ordenamento jurídico. Toda norma jurídica para considerar-
se adequada a um ordenamento, deve adequar-se a eles. Os princípios são as
provas da evolução de valores em uma sociedade refletida no direito que criou.
2.1- Função Social do Negócio Jurídico
Na lição de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 24), com o advento do Código Civil
de 2002, buscou-se a socialização do direito, vale dizer, foram afastadas as concepções
individualistas que nortearam o diploma anterior ao passo em que prevaleciam os valores
coletivos. Com a disposição de que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato” (Código Civil, art. 421), revisa-se os direitos e deveres
11
dos personagens do processo, de modo que, agora, a concepção social do contrato torna-se
um conceito basilar para a aplicação do direito nos negócios jurídicos. Comparando-se ao
princípio constitucional da função social da propriedade, o dispositivo subordina a autonomia
de vontade à função social e equilíbrio entre as partes (GONÇALVES, 2012, p. 25).
Nesse sentido, explica Caio Mário da Silva que “a função social do contrato
serve precipuamente para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia
esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa
limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas
hipóteses de contrato obrigatório” (2003 apud GONÇALVES, 2012, p. 25).
Entretanto, não se deve confundir a subordinação à função social com
eliminação da autonomia das partes, conforme adverte Judith Martins-Costa (1999
apud GONÇALVES, 2012, p.26). A doutrinadora civilista destaca que o princípio não
seria uma exceção ao respeito à liberdade contratual, mas apenas uma limitação
perante o interesse coletivo da sociedade que envolve o exercício daquele direito.
Para fins de ilustrar o raciocínio, Mônica Bierwagen (2003, apud idem)
ressalta que há contratos que podem perfeitamente atender os interesses individuais
de ambas as partes sem lhes causar prejuízo ou desvantagem alguma, embora se
mostrem incompatíveis com o interesse social. É o exemplo de um terreno alugado
por uma empresa para descarte de lixo tóxico sem tratamento ou a abertura de um
estabelecimento de bebidas alcoólicas em frente a uma unidade dos Alcoólatras
Anônimos. Nesses casos, é clara a existência de um interesse coletivo, o ambiente
ou a saúde daqueles indivíduos, que não pode ser ignorada em favor da liberdade
contratual.
Desse modo, o negócio jurídico deve satisfazer o aspecto individual da
vontade das partes e seus interesses próprios e o aspecto público, conforme o
interesse da coletividade no negócio jurídico. Afinal, cada pessoa tem seus anseios
e objetivos, para realizar os quais celebrará negócios jurídicos ao longo de sua vida,
contudo a atuação de cada um deve estar condicionada aos interesses da
sociedade e ser exercida nos limites da lei (NADER, 2010, p.332).
Finalmente, conforme explica Gonçalves (2012, p. 26), tem-se que a função social
do negócio jurídico estará satisfeita quando sua finalidade for atingida de forma justa,
tornando-se assim uma fonte de equilíbrio social.
12
3- Relação com a autonomia da vontade e equilíbrio das partes
Desde o direito romano, as pessoas detentoras de direitos foram livres para
contratar da forma que lhes interessasse, se, com quem e sobre o que desejassem
O princípio da autonomia da vontade se alicerça na ampla liberdade de
contratar, conferida aos contratantes para disciplinar os seus interesses mediante
acordo de vontades, com os respectivos efeitos tutelados pela ordem jurídica
(GONÇALVES, 2012, p. 41). Nesse sentido, destaca Mazeaud e Mazeaud sobre o
modelo francês, apogeu do individualismo e liberdade, que “uma obrigação originária
de um contrato se impõe aos contratantes com a mesma força que uma obrigação
legal” (1969, p. 713, apud GONÇALVES, 2012, p. 41). Sendo assim, uma vez
celebrado o contrato, este passa a ser fonte formal de direito, assegurando a
qualquer parte, valer-se do Estado para ver cumprido o contrato segundo a vontade
que determinou sua celebração.
Ampliando a liberdade contratual no direito brasileiro, o art. 425 do Código
Civil prevê a licitude de estipular contratos atípicos, desde que observadas as
normas gerais fixadas na lei.
Contratos atípicos são o resultado de um acordo de vontades não regulado
no ordenamento jurídico, mas nascido das necessidades e interesses das partes. A
lei civil tornou prevista e válida a criação desse tipo de contrato, contanto que
estejam em conformidade com os requisitos para a celebração contratual, ou seja,
estejam capazes as partes e o objeto seja lícito, possível, determinado ou
determinável e suscetível de apreciação econômica (GONÇALVES, 2012, P. 42).
Todavia, conforme apresentado anteriormente, a liberdade de contratar não
é absoluta tanto para contratos típicos ou atípicos. O novo Código Civil e o
ordenamento jurídico brasileiro aumentaram consideravelmente as limitações à
autonomia da vontade, em especial ao conteúdo do contrato, uma vez que encontra
limites nos princípios da boa fé e função social do contrato, estes trazidos pelo
próprio legislador.
Existe o questionamento sobre a possível ingerência excessiva do Estado
nas relações jurídicas que deveriam ser livres, quando se inserem tantas limitações
à autonomia da vontade. No entanto, o princípio da autonomia da vontade não é
absoluto, conforme vimos. Constatou-se que a total não intervenção do Estado, no
cenário econômico moderno agravava uma situação de desigualdade, em que os
13
mais fortes exploravam os mais fracos, gerando relações que beiravam a
compulsoriedade. Fez-se mister a intervenção do Estado, não no sentido autoritário,
mas para garantir, por meio da supremacia da ordem pública, moral e bons
costumes, que os contratos fossem fonte de satisfação de interesses mútuos, mas
jamais ferramenta de benefício para torpeza (GONÇALVES, 2012, p. 44).
Ao proteger a ordem de interesses jurídicos e morais em que se baseia
sociedade e o Estado, a lei permite que os indivíduos criem relações no âmbito
jurídico da forma que desejarem, mas nunca sobrepondo seus próprios interesses
aos de seus iguais ou aos da sociedade coletiva.
4- Adimplemento Substancial
O adimplemento é definido como o cumprimento do contrato. Ele é a
finalidade de toda a atuação das partes e da sociedade, justificando os deveres de
conduta que levem a obrigação ao seu desfecho esperado (FARIAS e
ROSENVALD, 2015, p. 357). Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 178) considera o
adimplemento como o "meio normal de extinção do contrato", uma vez que é o que
se espera de uma relação obrigacional, o pagamento pela quitação da obrigação.
O adimplemento substancial, por sua vez, seria o pagamento da parte
essencial ou a maior parte daquela obrigação. Conhecido também como o
inadimplemento mínimo, o instituto trata do cumprimento de expressiva parcela da
dívida, em que resta um valor pequeno, que não prejudicará o credor ao passo que
demonstra a intenção e boa-fé do devedor em seguir até o fim do adimplemento.
Com origem no direito inglês da Common Law, o adimplemento substancial
foi resultado do entendimento do ordenamento em controlar a boa fé e a função
social das relações contratuais para buscar uma solução justa. Foi questionada a
faculdade em exercer o direito potestativo à resolução contratual do credor nos
casos de inadimplemento quando este fosse mínimo, porém, por alguma razão, foi
incapaz de ser concluído (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 495). Nesse contexto,
destaca o Enunciado 361 do Conselho de Justiça Federal: "O adimplemento
substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a
14
função social do contrato e o princípio da boa fé objetiva, balizando a aplicação no
art. 475."
A teoria do adimplemento substancial ainda gera discussão no cenário
jurídico atual e é o objeto principal deste estudo, conforme será aprofundado a
seguir.
4.1- Noções Gerais sobre o Contrato
Para entender desde a base a teoria do adimplemento substancial, é
necessária a compreensão do contrato. O objetivo do estudo não é esgotar a
matéria relativa a essa fonte de obrigações, mas elucidar noções gerais que serão
utilizadas adiante.
Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 21) descreve o contrato como a mais
comum e a mais importante fonte de obrigação, devido às suas múltiplas formas e
repercussão no mundo jurídico. Os contratos são disciplinados pela lei, tendo a
eficácia da mesma assim que celebrados dentro dos parâmetros permitidos,
obrigando o devedor a satisfazer a dívida, adimplindo a obrigação.
Classificado por Orlando Gomes (1983, apud GONÇALVES, 2012, p. 22)
como uma espécie do gênero negócio, o contrato requer para sua formação a
participação de, pelo menos, duas partes. Portanto, é certo dizer que o contrato é
um negócio jurídico bilatreal ou plurilateral, resultado da composição de interesses
em mútuo consenso.
Conforme estudado anteriormente, assim como leciona Caio Mário (2003,
apud idem), a vontade humana seria o fundamento ético do contrato, desde que
observada a ordem jurídica, portanto, "um acordo de vontades, na conformidade da
lei". Desse modo, observa-se que, sempre que um negócio jurídico resultar de um
encontro de duas ou mais vontades em consenso, trata-se de um contrato. Todavia,
cabe lembrar dos princípios já estudados, levando em consideração a função social
e o interesse coletivo.
O Código Civil brasileiro de 2002 disciplina vinte e três espécies de contratos
nominados dentre os arts. 481 a 853 (GONÇALVES, 2012, p. 23)
15
4.1.1- Extinção do Contrato
Na lição de Humberto Theodoro Júnior (1999, apud GONÇALVES, 2012,
P.178), “ao contrário dos direitos reais, que tendem à perpetuidade, os direitos
obrigacionais gerados pelo contrato caracterizam-se pela temporalidade. Não há
contrato eterno. O vínculo contratual é, por natureza, passageiro e deve
desaparecer, naturalmente, tão logo o devedor cumpra a prestação prometida ao
credor”. Desse ensinamento, retira-se que os contratos têm um ciclo vital, sendo
criados do acordo de vontades entre as partes, produzem seus efeitos e, por fim,
extinguem-se, dando fim à relação jurídica.
Em regra, tem-se a extinção do contrato pela execução, ou seja, pelo
cumprimento da prestação ou, como foi estudado, adimplemento. Carlos Roberto
Gonçalves (2012, p. 178) descreve esse meio de extinção do contrato como o modo
“normal”, modo de dizer que é a forma que se espera que seja o fim da relação
quando é celebrada, em condição de normalidade.
Todavia, há casos em que o contrato extingue-se sem alcançar seu fim,
restando obrigações não cumpridas. Tal extinção “anormal” dos contratos pode
resultar de diversas causas, podendo ser anteriores ou contemporâneas à formação
do contrato, ou ainda supervenientes.
Dentre as causas anteriores ou contemporâneas à formação do contrato
estão: a) possíveis defeitos decorrentes do não preenchimento de requisitos
subjetivos (capacidade das partes e livre consentimento), objetivos (objeto lícito,
possível, determinado ou determinável) e formais (forma prescrita em lei), que
afetam a validade do instrumento, acarretando a nulidade absoluta ou relativa; b) o
implemento de uma cláusula resolutiva; e c) o exercício do direito de arrependimento
convencionado (GONÇALVES, 2012, p. 179). Por sua vez, as causas
supervenientes ou posteriores seriam: a) a resolução, como consequência do
inadimplemento; b) resilição, pela vontade de um ou de ambos os contratantes; c) a
morte de um dos contratantes, quando o contrato é personalíssimo; e d) rescisão
(idem, p.185).
Merece destaque para o presente estudo a extinção por resolução, uma vez
que se relaciona diretamente com o inadimplemento e sua motivação que traz ao
juiz a tarefa de analisar a possível aplicação do adimplemento substancial. Ao longo
de uma relação contratual, podem ocorrer situações supervenientes que impedem
16
ou prejudicam a execução da obrigação. A resolução é a ferramenta usada para a
extinção do contrato com causa no incumprimento por um dos contratantes,
rompendo o vínculo mediante ação judicial. A inexecução pode ser voluntária,
quando ocorre o inadimplemento pelo comportamento culposo de um dos
contraentes, ou involuntária, quando resulta de caso fortuito ou força maior. Porém,
o presente estudo focará na resolução do contrato por inexecução voluntária do
devedor, haja vista a sua relevância e aplicabilidade à teoria do adimplemento
substancial, como será demonstrado adiante.
Deve ainda ser ressaltada a hipótese da resolução causada por onerosidade
excessiva. Tal princípio, originário da Idade Média, se opõe à força obrigatória dos contratos,
ressaltando o entendimento “de que fatores externos podem gerar, quando da execução de
uma avença, uma situação muito diversa da que existia no momento da celebração,
onerando excessivamente o devedor” (GONÇALVES, 2015, p. 51). Como o contrato era
celebrado na expectativa de que as condições externas permanecessem as mesmas, essas
mudanças na situação de fato resultariam, consequentemente, na mudança na execução:
“Contractus qui habent tractum succesivum et dependetiam de futuro rebus sic stantibus
intelliguntur”. Resumidamente rebus sic stantibus, essa cláusula tornou-se implícita em todo
contrato comutativo de trato sucessivo (SILVA PEREIRA, 2003, apud GONÇALVES, 2012,
p. 193).
O Código Civil de 1916 era omisso sobre o tema, por sua vez, o novo diploma
regulamentou a resolução dos contratos por onerosidade excessiva em três dispositivos,
quais sejam:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Destaque-se que a cláusula rebus sic stantibus não se confunde com o
adimplemento substancial, uma vez que a primeira trata de uma hipótese
imprevisível que muda a situação de fato em torno do contrato, tornando seu
adimplemento excessivamente oneroso e requerendo a consequente mudança ou
17
fim do mesmo, enquanto a teoria objeto do estudo é um meio de dar continuidade ao
contrato, evitando sua resolução causada por um inadimplemento mínimo. Ainda
assim, vale o esclarecimento, uma vez que ambos os institutos são formas adotadas
no direito moderno de fazer prevalecer a função social e a boa-fé nas relações
obrigacionais, ainda sendo alvo de debates no ordenamento jurídico atual.
4.2- Inadimplemento
O Código Civil de 2002 deixa estabelecido o devedor está vinculado ao
cumprimento da obrigação prometida, ao passo que o credor o tem o direito de
receber o bem ou serviço estipulado na convenção, não sendo obrigado a receber
coisa diversa, ainda que mais valiosa. (Art. 313, CC).
Conforme já visto, há casos em que as relações obrigacionais não alcançam
seu fim esperado, tendo um fim “anormal” à relação jurídica, sem a satisfação da
prestação. É o caso do Inadimplemento, que se traduz no não cumprimento da
obrigação em decorrência da culpa lato sensu do devedor ou de fato a ele não
imputável (GONÇALVES, 2015, p. 371-372).
Quando se fala em fatos não imputáveis, trata-se do caso fortuito ou força
maior, cujos efeitos não seriam possíveis evitar ou impedir. O artigo 393 do Código
Civil dispõe que o devedor não responde pelos prejuízos deles resultantes, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado. O advento desses cenários
extingue o vínculo obrigacional, sem que caiba ao credor qualquer ressarcimento,
cessando, consequentemente, a obrigação sem que tenha havido pagamento
(DINIZ, 2007, p. 363).
Por sua vez, o inadimplemento voluntário pode ser configurado como
absoluto ou relativo. É considerado absoluto quando a obrigação não for e nem
poderá ser cumprida de forma útil ao credor. O inadimplemento absoluto é
subdividido em total, quando referente à totalidade do objeto de prestação, e parcial,
dá quando a prestação compreender vários objetos, e for cumprida de forma parcial.
Já o inadimplemento relativo está relacionado ao cumprimento imperfeito da
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obrigação, com inobservância do tempo, lugar e forma que a lei ou convenção
estabelecer, ou seja, o devedor está constituído em mora. (Artigo 394, CC).
Conforme foi observado anteriormente, o inadimplemento absoluto ou
relativo prevê à parte prejudicada pela não satisfação do negócio o direito de acionar
o mecanismo sancionatório do direito privado para demandar o cumprimento forçado
da obrigação ou, na impossibilidade deste se realizar, a resolução com a
indenização cabível na figura de perdas e danos, de modo a recompor o patrimônio
lesado (DINIZ, 2007, p. 378)
Todavia, observa Caio Mário da Silva Pereira (apud DINIZ, 2007, p. 378) que
não se deve tratar de forma geral e absoluta o emprego de perdas e danos quando
não cumprida a prestação, uma vez que essa hipótese deverá ser utilizada quando
não for possível obter o objeto devido. Prega o doutrinador que indenizar o prejuízo
não é o mesmo que restaurar o objeto da prestação, nem implica sua conversão no
equivalente pecuniário. Há casos, ainda, em que uma não exclui a outra, quando
nada obsta o credor de perseguir a satisfação da prestação original e as perdas e
danos juntamente com a causa principal.
5. Decisão pelo Adimplemento Substancial na Resolução Obrigacional
Até o presente ponto, já foi estudado o fim do contrato causado pelo inadimplemento
voluntário e a sua repercussão em forma de resolução por vias judiciais. Como a resolução
se dá por forma de ação judicial, o devedor acionado pode apresentar diversas defesas, de
direito material ou processual, por exemplo, que o contrato não é bilateral, que o credor não
cumpriu sua parte, a já vista onerosidade excessiva e, inclusive, o adimplemento substancial.
Conforme o ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 187), resolução do
contrato por incumprimento é subordinada à condição de que a falta não seja ínfima, de
pequena importância, de modo a considerar o interesse da parte que sofrerá com seus
efeitos. Assim, seria injusto que “toda mínima e insignificante inexatidão na execução da
outra parte” (ROPPO, 1988, apud GONÇALVES, 2012, p. 187) ensejasse o desfazimento
contratual. É necessário o oposto, que o não cumprimento seja grave e prejudique de modo
considerável o interesse de quem invoca a resolução. Essa avaliação será feita pelo juiz,
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caso a caso, verificando a existência desse pressupostos, sempre levando em consideração
os princípios da boa fé e da função social do contrato.
É esse modo de decidir sobre a resolução de forma justa que abre espaço para a
teoria do adimplemento substancial. O Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal aprovou o Enunciado nº 361 na IV Jornada de Direito Civil realizada
em 2006, segundo o qual: “o adimplemento substancial decorre dos princípios gerais
contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da
boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. Nessa linha de raciocínio, o
adimplemento substancial nada mais é que uma limitação ao direito do credor à
resolução nos casos em que o incumprimento é de pequena gravidade, não
chegando a retirar a utilidade e função da contratação.
Assim, de acordo com a teoria do adimplemento substancial, quando o
contrato estiver sido quase em sua totalidade cumprido, não caberá a sua extinção,
mas apenas outros efeitos jurídicos, pretendendo sempre a conservação do negócio
jurídico, ou seja, do contrato. (Enunciado n° 22 do CJF/STJ).
Esse entendimento foi ratificado no Informativo nº 0500 do Superior Tribunal
de Justiça (Terceira Turma, 2012, apud FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 496),
transcrito a seguir:
ARRENDAMENTO MERCANTIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.
Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36 prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios. Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, daí a expressão "adimplemento substancial", limita-se o direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. REsp 1.200.105-AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/6/2012.
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Perceba-se que, em contratos de compra e venda e alienação fiduciária, não
são raras as situações em que o contratante praticamente liquida o débito, porém,
próximo ao final da prestação, falha em adimplir pequena parcela do contrato. Na
literalidade da lei, poderia o credor ajuizar a ação de reintegração de posse,
conforme foi o caso do informativo, para reaver o bem. Contudo, acerta o magistrado
ao perceber que tão pequeno débito não valida a perda de bens de grande valor e
importância, como imóveis, automóveis e meios de trabalho, sendo excessivo o
sacrifício do devedor. Neste momento aparece o instituto do adimplemento
substancial, restringindo a abusividade que surge no direito à resolução contratual
para recebimento de crédito.
A teoria do adimplemento substancial tem sido amplamente debatida nos
tribunais, inclusive levantando as questões de quanto seria o adimplemento
suficiente para ser configurado como substancial e se a aplicação frequente da
teoria causaria uma tendência de devedores acreditarem estar desonerados das
parcelas finais de uma prestação. Conforme demonstram algumas decisões
jurisprudenciais a seguir, o valor não é estabelecido de modo fixo, sendo encargo do
magistrado observar e julgar o caso, dando seu entendimento do que seria um
adimplemento suficiente. Ainda assim, percebe-se que a tendência é de que seja o
mais próximo do final da prestação possível:
1)
TJRJ
0036457-80.2010.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO 2ª Ementa DES. MONICA COSTA DI PIERO - Julgamento: 28/09/2010 - OITAVA CÂMARA CÍVEL
AGRAVO LEGAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. LIMINAR. INCIDÊNCIA DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. 1. Cuida-se de agravo legal em agravo de instrumento contra decisão monocrática que manteve provimento jurisdicional indeferindo a liminar pleiteada, ao fundamento de que deverá ser aplicada ao caso a teoria do adimplemento substancial do contrato. 2. Hipótese em que o réu cumpriu com grande parte de sua obrigação, eis que adimpliu com quarenta e uma de quarenta e oito prestações, restando, apenas, sete prestações pendentes, o que justifica a aplicação da teoria do adimplemento substancial. 3. É certo que, se já houve cumprimento significativo do contrato, com a quitação de parte considerável das prestações, deve ser indeferida a liminar pleiteada, mantendo-se o réu na posse do bem. 4. Em sede de cognição perfunctória, veiculada por intermédio de liminar em ação de busca e apreensão, não se encontra
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presente o fumus boni iuris necessário à pretensão almejada, uma vez que a medida, nesse momento, seria desproporcional e em desprestigio ao princípio da boa-fé objetiva que deve nortear as relações comerciais. 5. Ademais, não demonstrada à existência de periculum in mora lastreado em fatos concretos, sendo certo que o cumprimento desse requisito de forma isolada, não permite a concessão da liminar. 6. Desprovimento do recurso.
2)
TJRS
Número: 71003156346 Tribunal: Turmas Recursais Tipo de Processo: Recurso Cível Órgão Julgador: Primeira Turma Recursal Cível Relator: Leandro Raul Klippel Data de Julgamento: 30/06/2011
Ementa: AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Tendo o requerido pago parte significativa do contrato, é incabível a resolução contratual pelo não-pagamento do restante do débito. O direito formativo extintivo de resolução contratual não se exibe absoluto ao promitente-comprador, cabendo ser analisado se, no caso concreto, o pedido de resolução não significa abuso da posição jurídica do vendedor. Somente deve ser declarada a eficácia da cláusula resolutiva se estão atendidos os princípios da boa-fé e da equidade. Deste modo, o pagamento de parte significativa do preço impõe a manutenção do contrato e, por via de consequência, impede a sua rescisão, pela aplicação da chamada Teoria do Adimplemento Substancial, sob pena de estar-se violando o Princípio da Boa-Fé Objetiva. RECURSO PROVIDO. (Recurso Cível Nº 71003156346, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Leandro Raul Klippel, Julgado em 30/06/2011)
3)
TJSP
9097723-22.2007.8.26.0000 Apelação Relator(a): Andrade Neto Órgão julgador: 30ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 08/06/2011 Outros números: 992070206251
CONTRATO DE ADMINISTRAÇÃO DE GRUPO DE CONSÓRCIO - CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DO BEM ADQUIRIDO COM A CARTA DE CRÉDITO - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO CONVERTIDA EM DEPÓSITO -. PAGAMENTO DE 80% DAS PARCELAS PREVISTAS NO CONTRATO - ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL - CREDOR QUE DEVE BUSCAR O RESSARCIMENTO PELAS VIAS PRÓPRIAS, QUE NÃO A APREENSÃO DO VEÍCULO. O direito de opção pela resolução do contrato diante do inadimplemento, previsto no art. 475 do CC, não pode ser exercido arbitrariamente, devendo o credor levar em consideração os princípios da manutenção dos contratos e da boa-fé objetiva. Nesse sentido, o adimplemento substancial da dívida funciona como um limitativo desse direito, forçando o credor a exigir o cumprimento da avença, tal qual originalmente prevista. APELAÇÃO PROVIDA.
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Quanto ao receio de abusos da teoria para evadir o pagamento das últimas
parcelas do contrato, caberá ao juiz analisar e perceber quando há a boa-fé e a
intenção de finalizar o adimplemento por parte do devedor, ainda que se deixe livre o
valor para a aplicação da teoria, que seja tomado o devido cuidado para seu bom
aproveitamento. A torpeza e más intenções, infelizmente, sempre estarão presentes
no convívio humano, todavia, o ordenamento jurídico não poderia jamais sobrepor o
receio à aplicação de princípios fundamentais como a função social e a boa-fé,
privando o indivíduo de ter a justiça lhe beneficiando em situações que realmente
faz-se necessária.
Por fim, conforme destacam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald
(2015, p. 496-497), percebe-se uma mudança de paradigma, a partir do momento
que não se pode dar eficácia a uma cláusula resolutória expressa, sem que o Poder
judiciário avalie o nível de sacrifício de uma das partes em observância ao que já foi
adimplido. Não são mais concebidos direitos absolutos, direitos subjetivos e
potestativos são relativizados, acomodando interesses patrimoniais individuais ao
respeito aos direitos da personalidade da contraparte.
Conclusão
O presente artigo teve como intenção observar o funcionamento da teoria do
adimplemento substancial e sua relação com o princípio da função social presente
nas relações contratuais.
Conforme foi observado, a aplicação dos princípios no direito brasileiro é
relativamente recente para sua história e, com o advento de um Estado Democrático
de Direito, a dignidade da pessoa humana e a função social das relações jurídicas
floresceram em meio a um ordenamento antiquado, que debruçava sobre a letra da
lei como palavra absoluta. Com um moderno diploma legal, o Direito Civil presenciou
a quebra de paradigmas que permitiam abusos e desigualdades, trazendo a leitura
aberta do texto legal para princípios e normas de bom convívio e paridade social.
Nesse contexto, adotou-se do direito inglês a teoria do adimplemento
substancial. Com a possibilidade de relativizar o direito potestativo à resolução
contratual quando o inadimplemento é mínimo ao final da prestação. Foi dada a
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chance do devedor de boa-fé manter o bem pelo qual tanto sacrificou, em nome da
função social do contrato. Mais que um meio de manter-se a relação contratual, a
teoria do adimplemento substancial deu a oportunidade ao devedor de ser
contemplado pela justiça.
Portanto, ao final da pesquisa que levou a elaboração do presente artigo,
chega-se a conclusão de que a teoria do adimplemento substancial é mais uma
importante inovação do direito brasileiro moderno que se adapta ao contexto de
paridade perante a justiça e aproximação da parte mais fraca das relações jurídicas
a um resultado satisfatório a suas pretensões, fazendo valer seu sacrifício e
protegendo de abusos que um ordenamento fechado para a comunicação com
princípios permitiria.
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Referências
BRASIL. Código Civil. 4ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nºs 1/92 a 52/2006 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nºs1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006. CASTRO, Flávia Lages Castro. História do Direito Geral e do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. CASTRO, Lincoln Antônio de. Missão Ética do Jurista. Conhecimento e Diversidade, edição especial, p. 42-50. Jul./dez. 2008. Niterói: Unilasalle. 2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 2º volume: Teoria Geral das Obrigações. 22. ed. rev. e atual, de acordo com a Reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2007. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, v. 2: Obrigações. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira; coordenação Mariana Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. Curitiba: Editora Positivo. 2008 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 2: teoria geral das obrigações. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: Contratos e Atos Unilaterais. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MEDINA, José Miguel Garcia. Execução Civil: princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral. Volume I. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil, 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989.