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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
MATEUS SOKOLOWSKI
POR SANTA MARIA! A FINA FLOR DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE
AFONSO X (1252 – 1284)
CURITIBA
2010
1
MATEUS SOKOLOWSKI
POR SANTA MARIA! A FINA FLOR DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE
AFONSO X (1252 – 1284)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa História como
requisito parcial à conclusão do Curso de
Licenciatura e Bacharelado em História, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª.drª. Marcella Lopes
Guimarães
CURITIBA
2010
2
DEDICATÓRIA
Dedico esta monografia a minha mãe
que sempre zelou pela minha formação
como pessoa e pela minha formação acadêmica.
3
AGRADECIMENTOS
Primeiramente gostaria de agradecer a minha orientadora pelo brilhantismo e sensibilidade,
aos meus colegas e professores que me auxiliaram direta ou indiretamente e todos que me
apoiaram no decorrer deste ano desafiador.
4
SUMÁRIO
1.INRODUÇÃO..........................................................................................................................7
2. O REI SÁBIO E A RECONQUISTA...................................................................................09
3. CAVALARIA E IMAGINÁRIO..........................................................................................14
4. AS CANTIGAS DE SANTA MARIA COMO FONTE HISTÓRICA: UMA LEITURA
INTERDISCIPLINAR..............................................................................................................19
5. A FINA FLOR DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE AFONSO X.............................23
5.1. A CASTIDADE.................................................................................................................24
5.2. A CAÇA.............................................................................................................................32
5.3. A FÉ...................................................................................................................................38
5.4. AUTOCONTROLE E CONTRIÇÃO...............................................................................42
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................45
7. REFERÊNCIAS....................................................................................................................47
8. APÊNDICES.........................................................................................................................50
9. ANEXOS..............................................................................................................................51
5
RESUMO
Nesta pesquisa levantamos os traços emblemáticos do cavaleiro elogiado nas Cantigas de
Santa Maria de autoria ou co-autoria de Afonso X (1252-1284) de Leão e Castela e os
confrontamos com a historiografia a fim de perceber as singularidades e as possíveis
analogias do cavaleiro lírico do rei com as expectativas que esses guerreiros geravam na
sociedade medieval. Afonso X foi um dos grandes monarcas ocidentais do século XIII, além
de ter sido um rei guerreiro criado no ambiente da Reconquista, era um amante das artes e do
conhecimento. As Cantigas de Santa Maria compostas em sua corte são o maior conjunto de
poemas medievais redigidos em galego-português. Após a leitura crítica das 427 cantigas,
realizamos um recorte temático: selecionamos as que elogiavam a cavalaria para formar o
corpus de fontes. A partir daí, descobrimos que o rei autor estabelecia nas cantigas uma
relação de fidelidade entre os cavaleiros e a Virgem. Levantamos então, a hipótese de que
estes guerreiros foram educados através do amor cortês, adaptado à cantiga religiosa. Através
da lírica, Afonso X estimulava seus cavaleiros à Reconquista, sublimando os valores da fé,
castidade e fidelidade.
Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria, Afonso X, cavalaria.
6
ABSTRACT
In this research we raise the main trends of the Knight praised in the Cantigas de Santa Maria
authored or co-authored by Afonso X (1252-1284) de Leão e Castela and confronted them
with the historiography to understand the peculiarities and the possible analogies of the lyrical
king’s Knight with the expectations these warriors generate in medieval society. Afonso X
was one of the great western monarchs of the thirteenth century, besides being a warrior king
raised in the environment of the Reconquista, he was a lover of the arts and knowledge. The
Cantigas de Santa Maria composed in his court are the largest collection of medieval poems
written in Galician-Portuguese. After a critical reading of the 427 songs, we conducted a
thematic focus: we select those that praised the cavalry to form the corpus of sources. From
there, we discovered that the king author established in the songs a loyal relationship between
the Knights and the Virgin. We hypothesize that these warriors were educated through the
courtly love, adapted to religious song. Through poetry, Afonso X urged his knights to the
Reconquista, evoking the values of faith, chastity and fidelity.
Keywords: Cantigas de Santa Maria, Alfonso X, cavalry.
7
1. INTRODUÇÃO
Esta monografia fecha um ciclo de pesquisa iniciado na graduação, com a iniciação
cientifica em 2010. Nesta investigação tive a oportunidade de aliar meu trabalho como músico
profissional e pesquisador de música tradicional e medieval ao rigor científico da pesquisa
histórica como historiador.
As Cantigas de Santa Maria são fontes extremamente ricas, o que permite uma
infinita gama de questões e abordagens. Nossa pesquisa, no entanto, foi impulsionada por um
questionamento específico: quais são os traços emblemáticos do cavaleiro elogiado nas
Cantigas de Santa Maria de autoria ou co-autoria de Afonso X (1252-1284) de Leão e
Castela? Após levantarmos estes traços os confrontamos com a historiografia a fim de
perceber as singularidades e as possíveis analogias do cavaleiro lírico do rei, com as
expectativas que esses guerreiros geravam na sociedade medieval.
No primeiro capítulo, revelamos aspectos importantes do contexto da época de forma
sucinta, com o objetivo de demonstrar pontos fundamentais que alteraram significativamente
a análise das fontes. Entre estes se destaca o embate centralizador do poder régio com uma
nobreza conservadora, destacada entre outros autores por Joseph. F O’ Callaghan, Marina
Kleine e José d’ Assunção Barros entre outros. Aqui, procuramos evidenciar que o clima da
Reconquista era intenso em Castela, e que a cavalaria além de possuir um papel político e
militar essencial, estava presente no imaginário medieval.
Quanto ao imaginário, desenvolvemos reflexões importantes no segundo capítulo,
onde procuramos evidenciar que, apesar de termos levantado traços do cavaleiro medieval, é
preciso esclarecer que a cavalaria estava longe de corresponder ao ideal presente na
literatura1. Contudo, este ideal não deixa de ter importância, uma vez que através de um jogo
de espelhos, influenciava a cavalaria ao mesmo tempo em que era influenciado por ela.
Após levantarmos traços fundamentais do cavaleiro medieval, onde nos amparamos
principalmente nas pesquisas de Jean Flori, acrescentamos no terceiro capítulo a reflexão de
autores da área de Letras, de modo a evidenciar um dos principais desafios da pesquisa: a
construção de uma análise interdisciplinar, sem a qual nosso trabalho não teria êxito. Trata-se
das reflexões de estudiosos como Antônio José Saraiva, e Paul Zumthor que entende a poesia
medieval como arte performática, reconhecendo sempre a importância da música e da
oralidade.
1 FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos nobres guerreiros da Idade Média; tradução Eni Tenório dos
Santos-São Paulo: Madras, 2005.
8
A partir destas considerações a respeito da poesia medieval, definimos neste capítulo a
metodologia de pesquisa empregada. O primeiro passo foi o de compreensão, uma vez que se
trata de 427 cantigas do século XIII escritas em galaico-português. Em seguida, através de um
recorte temático, construímos séries interpretativas, que finalmente nos levam às primeiras
conclusões da pesquisa.
Na primeira série agrupamos cantigas que tinham como ideal o cavaleiro casto. Além
de evidenciarmos a importância desta virtude nas Cantigas de Santa Maria, elaboramos
reflexões fundamentais a respeito do amor cortês. Em um segundo momento, fomos
surpreendidos por um aspecto do cotidiano da nobreza medieval. Trata-se da caça, que
abordamos na segunda série interpretativa, onde apontamos que Afonso X demonstrava
grande simpatia por esta prática. Além disso, neste mesmo capítulo foi desenvolvida uma
importante discussão a respeito do termo infançon e a cavalaria castelhana.
Por fim, nas duas últimas séries, demonstramos que a fé era um dos valores mais
importantes. Aqui delineamos o perfil do cavaleiro ideal nas Cantigas de Santa Maria.
Descobrimos que são exaltados valores de contenção, como o autocontrole, castidade e
fidelidade, enquanto valores como a coragem, a habilidade com as armas são deixados em
segundo plano.
A este posicionamento acrescentarmos ao fim de nossa pesquisa, que as Cantigas de
Santa Maria figuravam como o material que possivelmente teve mais ampla difusão no
período2. Fundamentalmente acompanhadas de música, e de todo um gênero de arte
performática que incluía também dança e teatro, ao mesmo tempo em que divertia, inspirava
nos cavaleiros o modelo do guerreiro devoto e cristão. Neste contexto onde pouquíssimos
nobres eram alfabetizados, as cantigas figuravam como um importante meio de
correspondência entre a nobreza e o monarca. Através desta obra inovadora, Afonso X traçou
o modelo que almejava para seus cavaleiros.
2 KLEINE, Marina. El rey que es fermosura de Espanna: as concepções do poder real na obra de Afonso X
de Castela. 2005. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Orientador: Jose Rivair Macedo, p. 232.
9
2. O REI SÁBIO A RECONQUISTA
Afonso X foi um dos grandes monarcas ocidentais do século XIII. Seu reinado sofreu
influência do reinado do pai Fernando III rei de Castela (1217-1252) e Leão (1230 – 1252) em
que as guerras da Reconquista culminaram com a tomada de Sevilha. Ainda infante, já estava
envolvido em lutas contra os mouros e, ao assumir o trono, havia a expectativa de que
estivesse à altura do desafio e desse continuidade aos projetos do pai. Neste período a guerra
era uma atividade contínua que contava com a lealdade de homens ligados uns aos outros por
laços de fidelidade3, a Reconquistava demandava além de um grande contingente de armas
uma coesão em torno do rei. Nesse sentido, Carlinda Mattos ressalta que:
Para Afonso X, assim como para outros reis do século XIII, comprometidos com o
projeto de centralização do poder real, tratava-se de tentar diminuir a autonomia e os
poderes dos grandes senhores que, como vassalos do rei, contavam com a devoção de
seus próprios vassalos. 4
Nessa conjuntura de luta contra os “infiéis” e de busca da anexação de novos
territórios, Afonso X enfrentava ainda desafios internos, como a resistência dos nobres à sua
política centralizadora e o desafio de governar um reino cristão e conduzir sua convivência
com muçulmanos e judeus5. Além disso, apesar de ter tomado medidas administrativas que
beneficiaram o comércio, este monarca enfrentou a insatisfação de amplos segmentos do reino
devido a um pesado sistema fiscal, em vista dos recursos sempre tão escassos do reino. Outro
fator importante que marcou seu reinado foi a sua candidatura ao Sacro Império Romano
Germânico, objetivo para o qual despendeu muitos esforços, sem, no entanto, ter sucesso.
Além de ter sido um rei guerreiro criado no ambiente da Reconquista, Afonso X foi
um amante das artes e do conhecimento. Sua corte foi conhecida pela reunião de intelectuais
de diferentes crenças e regiões. Este rei adotou como oficial a língua vernácula em detrimento
do latim e fez jus ao epíteto de Sábio, pois grande foi seu esforço em mandar traduzir, compor
obras e prover o conhecimento em seu reino. Ascendendo ao trono em 1252, após sua
expressiva participação na Reconquista, Afonso X dá um novo impulso aos trabalhos de
tradução além de mandar revitalizar as universidades de Salamanca, Sevilha, Valladolid.
Dando continuidade à tradição ibérica medieval de traduções conhecida principalmente
3 MATTOS, Carlinda Maria Fischer. A classificação dos seres no 'Lapidário' de Alfonso X, O Sábio. Porto
Alegre. 2008. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. Porto Alegre 2008, p. 15. 4 Id.
5 SILVEIRA, Aline dias da. “Política e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria”.
In: PEREIRA, Nilton M., CROSSETTI, Cybele de A., TEIXEIRA, Igor S. Reflexões sobre o medievo. GT
Estudos Medievais/ ANPUH-RS. São Leopoldo (RS): Oikos, 2009, p. 39.
10
através da Escola de Tradutores de Toledo, que teve seu auge no século XII, a corte afonsina
foi também um local de incentivo à transmissão do saber greco-arábico para o Ocidente
cristão.6
Segundo Kleine, este monarca era mais do que um mecenas, escolhia qual obra
mandaria traduzir, revisava e se fazia presente em todo processo, por conseguinte, a ideologia
do rei sábio perpassou toda sua obra7. Entre estas, além de diversas traduções de textos da
Antiguidade Clássica, encontramos a tradução de textos elaborados por sábios islâmicos como
livros de astronomia e astrologia8. O referido monarca também elaborou um completo
sistema de leis, mandando compor o Especulo, as Siete Partidas, o Fuero real além de obras
historiográficas como a Crônica Geral da Espanna.
Não menos importantes são as obras de cunho artístico do rei Sábio, entre as quais
figuram as Cantigas de Santa Maria. Compostas em sua corte, são o maior conjunto de
poemas medievais redigidos em galego-português, somam 427 poemas acompanhados de
iluminuras e notação musical. Nelas vemos narrativas de tradição oral, cânticos de louvor à
Virgem, histórias de seus milagres e histórias acerca do cotidiano do rei.
Para Jacques Le Goff, as relações de um rei com o saber e a cultura, definem um novo
ideal de rei, o do rei letrado, culto e erudito, que caminha paralelamente à transformação da
realeza em estado administrativo e burocrático. Já no século XII, há uma nova relação de
forças entre a Igreja, realeza e ciência, encarnada pelo surgimento das universidades. Para o
autor, conforme os reis adquirem cultura, essa cada vez mais passava pela prática das línguas
vulgares9, como é o caso do contexto abordado em nossa pesquisa, onde o galego-português
se afirma como língua oficial e ganha cada vez mais espaço, enquanto o latim gradualmente
se reduz ao mundo dos clérigos. Ainda segundo o autor:
A bagagem cultural dos reis permanece modesta, mesmo no domínio religioso. Houve,
contudo, reis eruditos cuja cultura e curiosidade intelectual impressionaram vivamente
os contemporâneos. É o caso de Afonso X, o Sábio, de Castela, na segunda metade do
século XIII, e de Carlos V, da França, rei “aristotélico”, na segunda metade do século
XIV. 10
6 O’ CALLAGHAN, Joseph. F. Apud KLEINE, Marina. El rey que es fermosura de Espanna: as concepções
do poder real na obra de Afonso X de Castela, op. cit, p. 50. 7 KLEINE, Marina. El rey que es fermosura de Espanna: as concepções do poder real na obra de Afonso X
de Castela, op. cit, p. 11. 8 MATTOS, Carlinda Maria Fischer. A classificação dos seres no 'Lapidário' de Alfonso X, O Sábio. Op cit,
p. 7. 9 LE GOFF. Jacques. “Rei” in LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval/ coordenador da tradução Hilário Franco Junior. – Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 408. 10
Id.
11
Marina Kleine, contudo, em seu estudo das diversas imagens do rei na obra afonsina,
vai mais além, não só reconhece em Afonso X a figura o rex litteratus, como Le Goff
comenta brevemente, mas cinge também a imagem do rey trobador, visto que mais do que
um erudito, Afonso X era um poeta. A autora ressalta que poucos governantes possuíam estas
características, entre estes cita Dom Dinis de Portugal (1261- 1325) e imperador Frederico II
(1194 – 1250), entretanto, afirma que a obra poética de nenhum deles se iguala em magnitude
a de Afonso X, que além das Cantigas de Santa Maria compôs 38 poemas de escárnio e 3 de
amor.11
Obviamente, ao mesmo tempo que Afonso X era um homem medieval muito
interessado pela ciência, não deixava de crer nos milagres da Virgem, ou de afirmar que seu
poder fora concedido por Deus.12
Em vista de compreender os possíveis motivos que levaram o rei Sábio a se referir à
cavalaria nas Cantigas de Santa Maria é necessário pôr em evidência um fator o qual diversos
autores chamam a atenção: o embate entre o projeto centralizador do rei Sábio e o
conservadorismo da nobreza, fator que José D'Assunção Barros, percebe como coincidente
em Portugal13
. Marina Kleine expõe que o projeto político de Afonso X incluía uma
homogeneização legislativa, que vinha acompanhada de privilégios dirigidos à oligarquia
urbana de cavaleiros, um dos três grandes grupos políticos do reino, cujos interesses próprios
constituíam um obstáculo ao projeto centralizador régio.14
Entre estes privilégios, a autora registra que os cavaleiros que possuíssem cavalo e
todo equipamento e residissem em determinada vila estavam escusados de peitar tributos ao
rei15
. Além disso, este monarca buscava garantir que apenas seus vassalos ocupassem cargos
de administração municipal16
, a fim de obter um controle direto dos assuntos urbanos e
reduzir a influência da alta nobreza nas cidades. A autora também demonstra que os
cavaleiros-vilãos foram contemplados por estes privilégios:
Além de garantir a aceitação do Fuero Real, Afonso X, ao conceder tantos privilégios
e franquezas aos cavaleiros-vilãos, buscou ganhar uma força militar importante e
embora alguns autores tenham destacado o fim da reconquista em seu reinado (...)
trata-se de uma interpretação a posteriori (...) para Afonso X, a reconquista não estava
terminada. Não apenas granada ainda estava para conquistar, mas também o norte da
11
KLEINE, Marina. Op cit, p. 206. 12
KLEINE, Marina. “Afonso X e a legitimação do poder real nas 'Cantigas de Santa Maria'”. Anos 90 (UFRGS).
Porto Alegre, v. 16, 2002. p. 51-69 13
BARROS, José d’ Assunção. “Diálogo entre dois cancioneiros. O trovadorismo galego-português nos séculos
XIII e XIV”. In REVISTA LETRA MAGNA. ano 02 – n. 03, 2º semestre de 2005, p.4. 14
KLEINE, Marina. “O Fuero Real e o projeto político de Afonso X". In: PEREIRA, Nilton M., CROSSETTI,
Cybele de A., TEIXEIRA, Igor S. Reflexões sobre o medievo. Op. cit. 15
Ibid, p. 179. 16
Ibid, p.181.
12
África (...). Ele descendia de uma linhagem de reis guerreiros e conquistadores, e não
há motivo para pensar que não tivesse tais pretensões. 17
Nesse sentido, Kleine afirma que Afonso X estabelecia uma relação de equivalência
entre os poderes de imperador e do rei, tal como um imperador em seu império, reivindicava
para si o monopólio legislativo e utilizava todo o aparato ideológico para justificar sua
atuação como legislador18
. Contudo, a unificação jurídica do reino chocava-se frente aos
tradicionais fueros baseados nas sentenças dos juízes locais19
.
Ao lado destas considerações, é importante ressaltar que nessa conjuntura onde o rei
enfrentava a revolta da nobreza, as Cantigas de Santa Maria figuravam como o material que
possivelmente teve mais ampla difusão no período20
, onde, conforme evidencia Zumthor, a
maioria da nobreza do século XIII permanecia iletrada, em virtude dos tipos de saber exigidos
por sua função e situação social, que nada tinham a ver com a prática da leitura21
. Desse
modo, as Cantigas de Afonso X eram uma ferramenta importante na mediação de conflitos
entre a nobreza e o monarca, pois através delas Afonso X demonstrava seu ideal de cavalaria.
Uma das principais reflexões que procuramos desenvolver neste capitulo é a de que o
clima da reconquista era muito forte em Castela, e que apesar da heterogeneidade do reino a
igreja matinha a mentalidade de cruzada. Além disso, Afonso X desejava dar cabo ao projeto
de seu pai de conquista do norte da África. Segundo Jaime Estevão dos Reis, dois motivos
levaram o monarca a realizar esta cruzada, um motivo ideológico que remetia a época
visigoda quando estes territórios estavam sob controle dos reis de Toledo, e um de razão
estratégica, pois o controle do norte da África traria segurança aos portos de Andaluzia e
dificultaria as invasões dos muçulmanos. 22
Ainda segundo o autor:
Nas Cortes de Toledo de 1254 Alfonso X procurou despertar o interesse da nobreza
para participar da cruza à África. Também recorreu às ordens militares para que
aderissem á empresa africana. O monarca prometeu à Ordem de Calatrava a
participação no quinto real dos despojos de qualquer expedição de que participasse. 23
Logo, apesar das guerras da reconquista terem quase cessado no reinado de Afonso X,
isto seria uma interpretação a posteriori, já que, para os contemporâneos do período, a
17
Ibid, p.182. 18
KLEINE, Marina. “O Fuero Real e o projeto político de Afonso X”, op. cit , p. 171. 19
Ibid, p,174. 20
KLEINE, Marina. El rey que es fermosura de Espanna: as concepções do poder real na obra de Afonso X
de Castela. Op.cit, p. 232. 21
ZUMTHOR, Paul. Op.cit, p. 107. 22
REIS, Jaime Estevão dos. Território, legislação e monarquia no reinado de Alfonso X, o Sábio, (1252-
1283). Assis, 2007. Tese (Doutorado em História) – Faculdades de Ciências e Letras, Campus de Assis,
Universidade estadual paulista, p. 94. 23
Ibid, p 96.
13
reconquista ainda estava em andamento, por conseguinte, a cavalaria desempenhava um papel
militar e político fundamental, e por último, mas não menos importante, possuía um papel
importantíssimo no imaginário medieval, que discutiremos a seguir.
14
3. CAVALARIA E IMAGINÁRIO
Com o intuito de descobrirmos o perfil do cavaleiro ideal nas Cantigas de Afonso X,
foram importantes as reflexões de Hilário Franco Junior a respeito de dois conceitos:
mentalidade e imaginário. O historiador não acredita que este último conceito substitua
mentalidade ou representação, mas sim que os complementa. Se por mentalidade ele
compreende o complexo de emoções e pensamento analógico, imaginário é a decodificação e
representação cultural deste complexo24
. Ou seja, toda imagem é uma tentativa de revelar um
modelo e vice-versa25
, uma reflete a outra e sobre a outra, constituindo-se um jogo de
espelhos. Nesse sentido, é essencial em nossa pesquisa a perspectiva de que as Cantigas de
Santa Maria além de constituírem um modelo sobre a cavalaria, exerciam uma influência
sobre a cavalaria ao mesmo tempo em que eram influenciadas por ela.
Entendemos a ideologia como manifestação sistematizada da visão de mundo de um
dado grupo social26
, conforme nos mostra Hilário Franco Junior. Em suma, os sentimentos de
qualquer imaginário se manifestam de acordo com a escala de valores vigente27
. O
imaginário reflete formas próprias dos homens perceberem o mundo e a si mesmos, criam
elos e despertam uma consciência social. Desse modo, é possível captar através das cantigas
tanto a escala de valores quanto a visão de mundo do rei autor.
Na busca por captar esse imaginário presente na lírica, foram fundamentais as
pesquisas de Jean Flori, especialista em cavalaria e na ideologia guerreira, que afirma que a
cavalaria é resultante da fusão lenta e progressiva na sociedade aristocrática que se implanta
no fim do século X e o fim do século XI, de muitos elementos de ordem política, militar,
cultural, religiosa, ética e ideológica, para chegar o século XII como uma corporação de
nobres cavaleiros com uma ética que lhe é própria28
.
A cavalaria assim como os sistemas de valores pertinentes a este tema tem sido objeto
de extensa produção historiográfica. Katiuscia Quirino Barbosa, em sua recente dissertação de
mestrado, realizou um breve levantamento historiográfico dos autores mais relevantes ao
tema, dentre os quais destacou Johan Huzinga, Marc Bloch, Georges Duby, Michel Patoureau,
Jacques Le Goff, Jean Flori, Franco Cardini e Jérôme Braschet. Segundo autora, apesar das
especificidades de cada autor, é possível identificar que eles limitam suas análises ao modelo
24
JÚNIOR, Hilário Franco. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu. Reflexões sobre mentalidade e
imaginário” In: Signum, Revista da Abrem, Associação brasileira de Estudos Medievais. Nº. 5. 2003. 25
ibid, p. 96 26
Ibid, p. 112 27
Ibid, p. 113 28
FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos nobres guerreiros da Idade Média; Op. cit.
15
de cavalaria francesa, que servia como paradigma para os casos inglês, germânico e
português29
. Como então justificar a expressiva e basilar presença dos estudos de Jean Flori
(1936), Georges Duby (1919 – 1996), e Jacques Le Goff (1924) em nossa pesquisa, uma vez
que o modelo de cavalaria presente na lírica do contexto da Reconquista, não pode ser
entendido como mero reflexo do modelo francês? Não seria o suficiente responder que o
trovadorismo provençal influenciou profundamente os jograis da corte de Afonso X, uma vez
que isso nos leva a compreender a Península Ibérica com mero receptáculo de influências
externas, incapaz de criar um modelo próprio de cavalaria. Além disso, não podemos negar,
entre outros fatores, a expressiva influência das carjas moçárabes na poesia peninsular,
destacadas por Antônio José Saraiva. Todavia, acreditamos que os estudos acima citados, são
relevantes no sentido de que certos valores pertinentes à cavalaria permearam toda a
cristandade medieval. Ao nos orientarmos por estes autores, extremamente perspicazes em
captar o imaginário medievo, não significa que descuidaremos das especificidades do modelo
peninsular evidenciada em nossas séries interpretativas. Aqui realizaremos a contraposição
destes autores com as fontes, o que permite uma análise comparativa do modelo de cavalaria
ibérico com o francês.
Nesse sentindo, adotamos a perspectiva de J. Flori que esclarece que o conteúdo do
conceito de cavalaria evoluiu ao longo do tempo assumindo conotações sociais que a
aproximavam da vassalagem, do feudalismo, da nobreza, sem que possamos, todavia,
confundi-la com nenhuma dessas noções 30
. A função da cavalaria estava antes de tudo
vinculada à idéia de serviço de natureza militar, o que explica em grande parte seu prestígio
em uma sociedade na qual a guerra é onipresente. Em suma, Flori compreende a cavalaria
como uma entidade socioprofissional guerreira e honrosa que tem seus ritos, costumes e sua
moral própria, investida de uma função e até de uma missão.
Jean Flori ressalta que a palavra cavaleiro nas línguas vernáculas do século XII,
evocava antes de tudo o guerreiro e não sugere de modo algum status social elevado31
. Neste
momento o cavalo é tomado como referência semântica: o termo se aplica ao guerreiro
montado com o equipamento adequado. Contudo, no decorrer deste mesmo século a palavra
assume gradualmente um caráter ético e honorifico. Nobreza e cavalaria jamais foram
29
BARBOSA, Katiuscia Quirino. A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e Dom Afonso
V (1433 – 1481) / Katiuscia Quirino Barbosa. Orientador: Vânia Leite Fróes. Dissertação (Mestrado em História
Social) - Universidade Federal Fluminense – Instituto de ciências humanas e filosofia, Departamento de História,
2010. p, 19. 30
FLORI, Jean. Op cit, p. 187. 31
Ibid. p, 22.
16
sinônimos, no entanto, ao longo da Idade Média entrelaçam seu destino. O aumento do brilho
da cavalaria atrai a nobreza que demanda por fim sua exclusividade.
Também é importante esclarecer, que existem fases distintas da ideologia
cavalheiresca presente na literatura medieval. Por volta do século XI, temos as canções de
gesta, onde o melhor exemplo é Canção de Rolando e o Cantar de Mio Cid, este que narra as
aventuras de um dos principais heróis da Reconquista. Nas canções de gesta, revelam-se
também traços da ética guerreira, contudo, a violência reina sem condenação explícita.32
A
essas regras de comportamento guerreiro, entre os séculos XII e XIV, os trovadores do sul da
França, acrescentam a dimensão cortês. Nesse sentido, Le Goff afirma que os Cavaleiros da
Távola Redonda ilustram bem este processo. Os mesmos representantes da proeza no século
XII tornam-se então, heróis do amor cortês na virada do século XII para o XIII. 33
Neste
momento o cavaleiro não deve ser apenas um soldado audacioso e vassalo fiel, deve também
aumentar seu valor humano pelo amor de sua dama, por suas virtudes de homem de corte.
O maior exemplo seria Lancelot, que realiza proezas para libertar a rainha Guinevere,
um perfeito cavaleiro, bravo no combate, amante cortês e fiel, sublimado pelo amor. Nesse
sentido, J. Flori afirma que:
Por mais diferente que sejam os ideais propostos á cavalaria pela igreja e pela
literatura aristocrática e romanesca eles convergem em muitos pontos; aqueles em
particular, que tendem a elaborar um código de conduta menos violenta, poupando
vidas humanas nos meios guerreiros aristocráticos e nas populações “civis” cristãs,
sobretudo entre os membros do clero e das mulheres. Essa constatação não tem nada
que surpreenda: muitos poetas e romancistas eram eles próprios clérigos. 34
No caso das Cantigas de Santa Maria, o amor cortês é revestido de um caráter
religioso, como evidenciaremos no decorrer da pesquisa. Importante ressaltar que a atitude da
igreja perante a cavalaria não é isenta de ambigüidade. Ela resulta de relações também
ambíguas da Igreja com a guerra em geral e com os cavaleiros em particular 35
. Ela contava
com a defesa dos estabelecimentos eclesiásticos ao mesmo tempo em que era contrária à
violência. Com as cruzadas, combater em nome de Deus foi sancionado por novos ritos entre
eles a cerimônia da investidura. Segundo Le Goff um espaço específico que favoreceu o
desenvolvimento desta cavalaria cristã foi a Península Ibérica, onde a Reconquista elevou os
32
Ibid, p. 161. 33
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média/ Jacques Le Goff, Tradução de Stephania
Matousek. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p, 116. 34
FLORI, Jean, Op Cit, p .175. 35
Ibid, p,127.
17
cavaleiros a primeiro plano, fazendo dos mesmos modelos prestigiosos não só para a
Península, mas também para toda a cristandade. 36
Destarte, ao discutir cavalaria no medievo, a questão das cruzadas é central. O apelo
de Urbano II à primeira cruzada se dirige diretamente aos cavaleiros, passando por cima dos
soberanos, manifesta uma tentativa de colocar a cavalaria a serviço da igreja, além de inculcar
valores de proteção dos fracos, os que oram e os que trabalham37
. Todavia o ideal de cruzada
não penetrou profundamente na ideologia cavalheiresca, continua sendo meritório, mas não se
constitui uma obrigação. Para Flori uma cavalaria mítica e idealizada sempre foi um doce
sonho. Ainda segundo o autor:
A cavalaria havia privilegiado, em sua ideologia valores mais laicos, aristocráticos e
até profanos. As mesmas que Bernard de Claraval condenava, elogiando o ideal de
guerra santa (...) Esses valores laicos, caricaturados e fustigados por Bernard não eram
desprovidos de traços éticos de origens diversas. Uns são eclesiásticos e se referem,
por exemplo, à proteção das igrejas e dos fracos; os outros foram veiculados
pela literatura, principalmente a romanesca, e valorizam a honra, a glória, os valores
fundamentais desenvolvidos pela cavalaria no decorrer dos séculos, e que, nos séculos
XIII e XIV, têm o nome de nobreza, proeza, generosidade e cortesia, fasto e
ostentação. 38
Estes valores marcam presença nos torneios, que mais do que apenas um treinamento,
constituíam a principal expressão cultural da cavalaria. Nestes eventos, condenados pela
Igreja, exaltam-se a coragem e o brilho além dos valores corteses, de lealdade com a dama e
respeito à palavra dada. Esses ideais exaltados com insistência no fim da Idade Média
atestam a onipresença nos espíritos, do ideal cavalheiresco.
Necessário destacar que a guerra no medievo, contava também com operações de sítio
onde a cavalaria não desempenhava o papel principal, apesar de estas operações serem mais
freqüentes e decisivas, foram deixadas de lado, porque contavam com pedestres, enquanto a
literatura dava ênfase às façanhas cavalheirescas; os belos golpes de espada não combinavam
com o anonimato do golpe à distância. Flori acrescenta que para os cavaleiros, a coragem
muitas vezes era mais importante do que a vitória:
A honra cavalheiresca, na Canção de Rolando, confunde-se como o desprezo pela
morte. È preciso evitar que alguém possa, sobre ele mesmo ou alguém de sua
linhagem, “cantar uma canção ruim”. A concepção honra ligada a coragem se mantém
em todas as épocas, e constitui o principal fundamento da ideologia cavalheiresca,
reivindicada pela nobreza ao logo da história. 39
36
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Op. Cit, p, 112. 37
FLORI, Jean Op. cit, p. 44. 38
Ibid, p. 181. 39
Ibid, p. 159.
18
Esse desprezo pela morte é registrado por Georges Duby na canção do Marechal, onde
é narrado o episódio em que os companheiros de Guilherme o repreenderam durante as
guerras de Maine, pois o Marechal galopava contra o obstáculo de uma fortaleza e se o cavalo
não desse meia volta ele cairia no abismo.40
Uma contradição destacada por J. Flori são as pilhagens da Guerra dos Cem Anos e as
rapinas e saques em tempos de paz, que parecem incompatíveis com o ideal cavalheiresco:
Du Guesclin, por exemplo, forjou sua reputação de cavaleiro modelo à frente de
companhias de mercenários e aventureiros, saqueadores, violadores e incendiários, na
Espanha. Quanto aos massacres, conhecemos também muitos exemplos nos séculos
XI e XII. De restos estes atentados a ética cavalheiresca, infelizmente muito
reais, destacam o fosso que em todas as épocas que separa o ideal da realidade. Aqui
também, a literatura provavelmente desempenhou um papel preponderante inculcando
na cavalaria valores que ela venera sem poder sempre assumi-los na realidade
cotidiana. 41
Concluímos, então, que esta cavalaria que permeava o imaginário medieval,
personificava a imagem do herói no medievo. Heróis como Lancelot e Rolando traduzem as
aspirações da cavalaria e constituem modelos de comportamento que influenciaram
certamente os cavaleiros da realidade, apesar desses guerreiros estarem longe de corresponder
a estas expectativas. Segundo J. Flori para melhor compreender a cavalaria é necessário usar
uma ampla gama de fontes, como a liturgia, iconografia e a literatura. Nesse sentido, nosso
estudo sobre as Cantigas de Santa Maria se vê especialmente justificado.
40
DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Op. Cit. Cap IV. 41
FLORI, Jean. Op.Cit, p, 184.
19
4. AS CANTIGAS DE SANTA MARIA COMO FONTE HISTÓRICA: UMA LEITURA
INTERDISCIPLINAR
As Cantigas de Santa Maria são a maior fonte de música medieval ibérica não
litúrgica e o maior conjunto de poemas medievais redigidos em galego-português. Este idioma
era utilizado não só por seu prestígio, mas também, devido à corrente de um processo maior,
onde no século XIII cada vez mais as línguas vernáculas acabam por substituir o latim. Nesse
sentido, é possível afirmar que estas fontes constituem a maior expressão da literatura
portuguesa medieval. Sem dúvida Afonso X idealizou a obra, no entanto, há um consenso
entre os estudiosos de que o monarca não foi o único autor, mas contou com a colaboração
dos diversos trovadores presentes em sua corte. Segundo Osvaldo Ceschin, Afonso X foi
ousado em relação aos poetas da época, em virtude do caráter inovador das cantigas que
contava com neologismos e sinônimos, que não são encontrados em outros cancioneiros do
período42
.
As Cantigas de Santa Maria foram cantadas por todo o reino, pois eram executadas na
corte itinerante de Afonso X. Mais do que isso, é importante destacar que os músicos não
estavam restritos à corte, mas podiam tocar nos mais diferentes espaços como por exemplo
em feiras e festas religiosas.Outrossim, a escolha deste idioma comum pelos trovadores de
Portugal e Castela superava as barreiras locais e permitia que esses trovadores circulassem
entre as cortes régias destes reinos, que se tornaram um foco cultural de destaque no século
XIII. 43
. Por conseguinte, é possível perceber que a função difusora e propagandística é
inerente às Cantigas de Santa Maria44
.
Estas fontes se mostraram de fácil acesso, constituem-se num grupo de cantigas que
podem ser encontradas na sua integralidade em sites e em versões impressas de qualidade.
Utilizamos o site “Domínio Publico” 45
lançado em 2004, onde se adota a classificação
corrente utilizada para a numeração das Cantigas de Santa Maria. Este site propõe o
compartilhamento de conhecimentos de forma equânime, colocando à disposição de todos os
usuários da Internet uma biblioteca virtual que se constitui referência para professores, alunos
e pesquisadores. Seu principal objetivo é promover amplo acesso às obras literárias, artísticas
42
CESCHIN, O. H. L. O léxico inovador das Cantigas de Santa Maria. Filologia e Lingüística Portuguesa, São
Paulo, v. 5, p. 177-203, 2003. 43
BARROS, José d’ Assunção. “Diálogo entre dois cancioneiros. O trovadorismo galego-português nos séculos
XIII e XIV”. In: REVISTA LETRA MAGNA. Revista eletrônica de divulgação cientifica em língua
portuguesa, Lingüística e literatura – ano 02 – n. 03, 2º semestre de 2005, p. 3. 44
SILVEIRA, Aline dias da. op. cit, p. 58. 45
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp
20
e científicas; uma forma de adequação aos novos paradigmas de mudança tecnológica, da
produção e do uso de conhecimentos.
Para o trabalho de compreensão destes poemas contei ainda com um dicionário
eletrônico de português arcaico produzido por Antonio Geraldo da Cunha, um grande filólogo
com projeção nacional e internacional. Ele faleceu em 1999, poucos dias antes de se iniciar a
fase de digitação das fichas do Vocabulário histórico-cronológico do português medieval, que
sonhava ver concluído. Esse trabalho foi muito útil em nossa pesquisa como o é para muitos
pesquisadores da História e da Literatura Medieval. Ao lado da leitura, acompanhei versões
musicais e interpretações contemporâneas das cantigas, que apesar de algumas serem obras de
cunho artístico sem rigor acadêmico, me auxiliaram a compreender o idioma galego-
português.
Trabalhamos com uma fonte extremamente rica, que possibilitou diversas questões e
abordagens. Em vista de tornar nossa pesquisa viável utilizei um recorte temático46
. Após o
intenso trabalho de leitura crítica das quatrocentas e vinte e sete cantigas, pude constatar que
quarenta e três cantigas tinham como personagem o cavaleiro, nobre, ou o escudeiro, ou
contava com a presença de uma dessas figuras47
. Este número ainda pode ser extrapolado se
levarmos em conta todas as cantigas que tratam da atividade guerreira.
A partir daí realizamos mais um recorte onde selecionamos quinze cantigas para
formar o corpus de fontes da pesquisa. Nestas o cavaleiro idealizado aparece de forma
positiva, através de suas atitudes ou características. Após levantarmos as características
gerais, incluindo as específicas do gênero de composição literária, recolhemos os elementos
que se constituíam em virtudes para o rei autor. Em seguida, realizamos a contraposição dessa
fonte com a bibliografia, para construir um diálogo entre a fonte e seu contexto de produção.
Por fim, construímos séries interpretativas, em decorrência de situações e virtudes presentes
nas cantigas, que serão expostas no próximo capítulo.
Foi essencial em nossa pesquisa, o estudo do caráter performativo da poesia medieval,
para qual evocamos Paul Zumthor. Em sua obra A letra e a voz, ele nos mostra que a poesia
medieval era destinada à apresentação oral e pública, e que a maioria destes textos passou por
um processo de tradição oral, onde a escritura muitas vezes estava a serviço da preservação
46
Aline Silveira também adota esse método. Em sua pesquisa seleciona todas as cantigas onde aparecem a figura
do mouro, assim como Marina Kleine que em seu trabalho seleciona todas as cantigas na quais aparecem a figura
do rei. 47
Ver CSM16, 22, 45, 48, 58, 63, 64, 67, 84, 94, 121, 135, 137, 144, 148, 152, 155, 158, 174, 194, 195, 207,
216, 217, 232, 233, 234, 237, 243, 264, 277, 281, 312, 314, 336, 341, 352, 382, 409.
21
desta tradição48
. Segundo o autor, o conteúdo e o poder da vocalidade dos textos medievais
tinham grande influência sobre os espectadores. Ele nos lembra que havia todo um gênero
performático acompanhado de música, dança e teatro apresentado à população mais simples
em sua hora de repouso, festas e outras circunstâncias.
Segundo Paul Zumthor, a poesia popular já fora marginalizada em oposição à escritura
erudita, até que o termo oralidade chega ao vocabulário dos medievalistas, revestido, no
entanto, de um caráter pejorativo que remetia à ausência de escritura. A intenção do autor não
é provar a existência da oralidade medieval, mas valorizar o fato de que a voz foi um fator
constitutivo de toda obra denominada literária. Ele assinala o aspecto teatral da poesia
medieval a partir do ponto de vista de que a obra é concretizada pelas circunstâncias de sua
transmissão.
Nesse sentido, descobrimos que apesar dos temas abordados serem dos mais variados
e as possibilidades de pesquisa infinitas, há uma estrutura comum nas Cantigas de Santa
Maria: elas são escritas em versos de modo a ritmar a fala, o que facilitava a memória e
evidenciava o caráter musical das mesmas. Primeiramente são realizados louvores à Virgem,
posteriormente são apresentados os personagens, que por sua vez enfrentam algum desafio,
para o qual há uma interferência de Santa Maria a partir de um milagre divino, que dá um
desfecho à história com uma lição de moral e o agradecimento sincero dos fiéis à ação da
Virgem, ou arrependimento devido a algum pecado.
Também se mostram fundamentais em nosso estudo, as considerações do historiador
francês Georges Duby, para quem o amor cortês, de início um objeto literário explicitado
pelos poemas e obras romanescas, tinha uma relação com os poderes e as relações de
sociedade49
. Para que fossem compreendidas era preciso que essas obras de alguma forma
tivessem relação com o que preocupava as pessoas para quais elas eram produzidas; ao lado
disso, elas não deixaram de influir sobre a conduta daqueles que lhe davam atenção50
.
O autor demonstra a relação entre o amor cortês e os ritos de vassalagem, onde, nas
cantigas, a dama representava o papel de soberano. Para Duby, neste jogo do amor cortês
evidenciado na literatura, se ensinava a desejar o bem do outro mais do que o seu, sendo isto o
que o senhor esperava de seu homem. O amor cortês vinha então, reforçar as regras da moral
vassálica.
48
ZUMTHOR, Paul. 49
DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios; Tradução Jônatas Batista
Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 59. 50
Id.
22
Dentre os estudos literários, que oferecem um instrumental valioso para análise destas
fontes poéticas, destacamos Antônio José Saraiva. Em sua obra História da Literatura
Portuguesa, o autor compartilha com Paul Zumthor a perspectiva que reconhece a
importância da oralidade na poesia medieval, uma vez que a produção manuscrita era lenta,
cara e sua circulação extremamente reduzida. Para Saraiva o lirismo proveniente da Provença
transpõe a idéia de vassalagem para o plano de submissão do amante e, provavelmente, todos
os trovadores galego-portugueses tinham presentes no espírito a idéia de que os provençais
eram modelos a seguir51
.
Em conjunto a tais considerações, é central em nossa análise o aspecto político que
permeava sua obra. A partir das Cantigas de Santa Maria, Afonso X pode evidenciar seu
ideal de cavalaria, e demonstrar sua cumplicidade para com a Virgem. Outro fator importante
da temática abordada é o fato de que a produção poética de Afonso X não se restringia a
propor um modelo para a cavalaria. Além de incentivar seus cavaleiros através de cantigas
religiosas, o rei não deixava de expressar nas cantigas de escárnio e maldizer sua indignação
para com cavaleiros que não cumpriram suas obrigações vassálicas. Quanto a este aspecto,
são elucidativos os estudos de Paul Zumthor, que ao realizar o levantamento de 32 canções de
gesta percebe que a palavra canção aparece 47 vezes com função auto-referencial; a partir daí
ele se depara com um jargão cavalheiresco: “o combatente tomado pela fadiga ou desânimo
exorta-se a agir de modo que não seja cantada sobre ele uma canção ruim”. 52
51
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. op. cit, p. 58. 52
ZUMTHOR, Paul, op.cit, p, 37.
23
5. A FINA FLOR DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE AFONSO X
Para facilitar o entendimento e demonstrar a operacionalidade do método,
apresentamos um quadro das quinze cantigas selecionadas para pesquisa, sendo seguidas da
principal virtude encontrada, de modo a permitir uma visão geral do nosso corpus de fontes:
CSM53
nº:
Resumo: Principal Virtude evocada
na cantiga
16 Um formoso e bom guerreiro se apaixona por uma donzela,
mas acaba por amar santa Maria mais do que qualquer outra
mulher.
Castidade
44 Um Infanção de Aragão perde seu açor, mas graças a um
milagre da Virgem ele o recupera na Igreja.
Fé
45 Um cavaleiro de má índole se arrepende e manda construir
um mosteiro, porém, é acometido por uma doença fatal antes
do término da obra. Deus permite que ele seja ressuscitado
para terminar o mosteiro e ali levar uma vida casta.
Humildade,
contrição, fé e castidade.
63 Santa Maria luta como se fosse o cavaleiro, para salvá-lo da
vergonha, uma vez que o valente guerreiro faltou à batalha,
pois estava na missa.
Fé.
64 Santa Maria guarda a esposa de um nobre fiel à Virgem que
vai a guerra, da tentação de outro nobre que se utiliza de uma
alcoviteira vil.
Fidelidade, fé e castidade.
121 Cavaleiro faz uma guirlanda de rosas à Virgem Maria, até
que um dia recebe uma proteção de seus inimigos, graças a
essa homenagem.
Fé
158 Santa Maria salva um cavaleiro da prisão, devido às orações
de seu senhor.
Fé e fidelidade
195 Santa Maria fez com que honrassem um cavaleiro que
morreu no torneio, porque ele resistiu à tentação e guardou
seu dia de festa.
Castidade
207 Um cavaleiro fiel servidor de Maria captura o assassino de
seu filho pequeno, mas o poupa de sua vingança recebendo
em troca a gratidão da Virgem.
Misericórdia, fé e
autocontrole.
232 A Virgem recupera o açor perdido de um preocupado
cavaleiro graças a sua fé.
Fé
233 Um exército celestial guarda um cavaleiro fiel à Maria de
seus inimigos.
Fé e fidelidade.
243 Dois falcoeiros do rei Afonso X são salvos por santa Maria
de uma geada, que os atingiu enquanto caçavam sozinhos.
Fé e fidelidade.
281 Um bom cavaleiro é mal afortunado e perde tudo, acaba por
virar vassalo do demônio. Contudo ele se recusa a negar a
Virgem Maria e a partir de um milagre se arrepende. Por
conseguinte, o rei percebe que não pode deixar seus súditos à
mercê da má sorte e o recompensa.
Fé e fidelidade.
336 Um cavaleiro humilde e cortês pede que Santa Maria o
guarde da luxúria, o homem que ardia do desejo, torna-se
graças ao milagre mais frio do que a neve.
Castidade.
352 O filho do rei presenteia um cavaleiro com um açor, que
acaba por ficar muito doente, Santa Maria cura a ave, graças
Fé
53
Abreviatura corrente para Cantiga de Santa Maria.
24
às orações do guerreiro caçador.
As séries interpretativas apresentadas a seguir, não foram aplicadas às fontes, mas são
conseqüência da análise das mesmas, constituindo-se um dos aspectos mais criativos de nossa
pesquisa.
5.1 A CASTIDADE.
Na grande maioria das quinze cantigas selecionadas, apesar de no início geralmente
serem listadas virtudes como bravura e valentia, os principais valores exaltados são a fé e
castidade, que se sobrepõem sobre os outros atributos. Vemos ainda, repetido mais de uma
vez que o cavaleiro de determinada cantiga nunca faltava à boa lide ou torneio, o curioso é
que de todas as cantigas lidas apenas uma54
tem uma passagem com o evento do torneio, onde
inclusive o cavaleiro acaba por morrer ao fim da cantiga.
Nesta série interpretativa selecionamos as cantigas onde a castidade é o principal valor
guerreiro55
, de modo a analisá-las em conjunto. A mais emblemática cantiga da série é a CSM
336, porque ela evidencia claramente que não basta o cavaleiro ter fé na virgem, ser caridoso
com os pobres, bom guerreiro e humilde, se está tomado pela luxúria:
“Este cavalciro era grand' e apost' e fremoso,
manss[o] e de bon talante, sen orgull' e omildoso
e mesurad' en seus feitos; pero tan luxurioso
era que mais non podia seer, per quant' aprendemos”56
No imaginário medieval era pela castidade que a salvação era atingida, a partir da idéia
de que a fuga da carne conduz à vida enquanto a sujeição à carne conduz à morte. Nesse
sentido, segundo Rejane Barreto Jardim, o modelo oferecido por Maria e seu Filho, ambos
celibatários, ainda que Maria fosse casada, exercia um forte apelo aos jovens que desejavam a
salvação eterna. 57
Porém, por mais que o cavaleiro da cantiga se dedicasse não conseguia
vencer a luxúria. É aí que o guerreiro roga a Virgem pedindo ajuda para vencer esta tentação
inspirada pelo diabo. Este trecho é seguido por um dos pontos mais interessantes da cantiga:
quando a Virgem aparece para o cavaleiro, e ele tenta argumentar com a Santa:
54
CSM. 195. 55
CSM, 16, 64, 195, 336. 56
CSM 336 57
JARDIM, Rejane Barreto. Ave Maria, ave senhoras de todas as graças! : um estudo do feminino nas
perspectivas das relações de gênero na Castela do século XIII – Porto Alegre 2006. Tese (Doutorado),
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História, PUCRS, 2006, p. 52.
25
“Enton diss' o cavaleiro: «Mia Sennor, eu sõo vosso,
e a vos per nulla guisa mentir non devo nen posso;
mais est' erro per natura ben des Adan é-xe nosso,
de que non seremos sãos, se per vos non guarecernos.»”58
Aqui o cavaleiro da cantiga utiliza argumentos teológicos, em resposta à ordem da
Virgem para que deixe o erro, diz que o pecado da luxúria havia sido enraizado na natureza
do homem deste tempo de Adão, logo, era impossível resistir. Na próxima estrofe a Virgem
quebrou o poder do diabo, ela pune tanto o demo quanto os pecadores. Nesta cantiga nos
deparamos com uma imagem severa de Maria, que através de um milagre faz do cavaleiro
que antes ardia de luxuria tornar-se mais frio do que neve para levar uma vida virtuosa, como
podemos perceber na última e penúltima estrofe da cantiga.
No imaginário medieval, para que todos não fossem condenados ao inferno, pela
impossibilidade de controlar seus corpos, foi elaborado um sistema tripartido, onde havia três
formas de castidade: casamento, virgindade e viuvez.59
A próxima cantiga analisada, reforça a
nossa série interpretativa, nesta o cavaleiro é casto pelo casamento, trata-se da CSM 64, que
narra o milagre onde um infanção convocado a servir seu senhor em guerra, roga para que a
Virgem proteja sua esposa durante sua ausência.
Todavia, o diabo arteiro faz um cavaleiro se apaixonar por sua esposa:
Foi-ss' o cavaleiro logo dali. Mas, que fez
o diabr' arteiro por lle toller seu bon prez
a aquela dona? Tant' andou daquela vez
que un cavaleiro fezo dela namorar.
Este, louco de amor, contrata os serviços de uma alcoviteira que lhe aconselha a
presentear a dama com um par de sapatos. No segundo em que a dama calça os sapatos ocorre
um milagre, eles ficam presos em seu pé por mais de um ano até o retorno do marido. Quando
o guerreiro volta da guerra a esposa lhe conta tudo, mas ele a perdoa e agradece a Virgem por
guardar a castidade de sua esposa. Essa cantiga permite uma série de reflexões sobre gênero e
sobre adultério60
, no entanto, vamos nos ater aqui ao significado para a o ideal de cavalaria.
Nesta sociedade onde a guerra era constante tornam-se comuns os problemas
matrimonias motivados pela ausência dos cavaleiros casados em tempos de guerra. Logo.
Afonso X, traz aqui uma mensagem tranqüilizadora para seus vassalos, fica evidente neste
58
CSM 336 59
LE GOFF, Apud, JARDIM p, 54. 60
Para tal, ver a tese de Rejane Barreto Jardim supra-citada, onde a autora analisa esta mesma cantiga ver p,
183 – 184.
26
poema que enquanto seus fiéis cavaleiros estiverem em guerra, não é necessário que se
preocupem com suas esposas, que estarão sob a proteção da Virgem Maria.
Com o estudo da CSM 16 desenvolvemos uma importante reflexão sobre o amor
cortês que é transformado nas Cantigas de Santa Maria. No refrão canta-se: “Quen dona
fremosa e bõa quiser amar, am’ a Groriosa e non poderá errar”, ou seja, ame Santa Maria que
estará no caminho correto. O caminho a ser seguido é o do amor divino, impossível de ser
alcançado na terra. Esta cantiga contém dezesseis estrofes intercaladas por este refrão, onde
conta-se a história de um nobre e formoso cavaleiro que era muito habilidoso no manuseio das
armas, qualidade que se espera de quem ocupa esta posição. Virtudes muito similares as que
Georges Duby percebe em Guilherme, o Marechal61
. Todavia, o cavaleiro da CSM nº. 16
ama uma mulher que não lhe dá atenção, mesmo com todas suas qualidades, em desespero ele
roga à Santa Maria, descobrindo ao final da cantiga o verdadeiro amor: o amor pela Virgem,
optando então pela castidade. Aqui nos deparamos com um dos principais valores evocados
na cantiga: a castidade do guerreiro que ama Santa Maria mais do que qualquer outra mulher.
Nas cantigas de amor, o trovador se imagina vassalo enquanto a dama figurava como
um suserano a quem ele confiava seu destino. Este ideal de amor corresponde a um tipo
idealizado de mulher que cada vez mais tem características de pureza e santidade62
.
Percebemos também a influência francesa quando vemos na primeira estrofe o local onde se
realizou o milagre, neste caso, na França63
. Descobrimos em várias outras cantigas, narrativas
de milagres que aconteceram em diferentes regiões da Europa que não a Península Ibérica.
Na segunda estrofe da cantiga vemos que o amor do cavaleiro era tão intenso que ele
estava disposto a morrer pela dama e já havia perdido a razão. É a coita amorosa tão presente
na lírica trovadoresca, para qual Sigismundo Spina nos chama a atenção: o drama passional,
um tormento amoroso em toda sua complexidade64
. Spina acrescenta que na dinâmica do
amor cortês, o homem solicita e a mulher nega, daí o sofrimento amoroso, quando o homem
não pode saciar seu desejo. Este extrato da cantiga exemplifica o que foi exposto até aqui:
“Este namorado foi cavaleiro de gran
prez d'armas, e mui fremos' e apost' e muy fran;
mas tal amor ouv' a ha dona, que de pran
cuidou a morrer por ela ou sandeu tornar.” 65
61
DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1987. Cap. IV. 62
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. op. cit. 63
A cantiga se refere a um “fremoso miragre, que foi em França fazer” 64
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p. 372. 65
CSM nº. 16.
27
Na CSM 16, com sua estética repetitiva e circular comum às cantigas do gênero
observa-se na terceira estrofe outra virtude chave: a coragem, este cavaleiro não recusava
nenhum bom combate. Podemos intuir que o rei autor não hesitou em salientar essa qualidade
de modo a propor um modelo a seus cavaleiros. Paul Zumthor66
discorre longamente a
respeito da forte influência que as cantigas exerciam sobre os ouvintes, podemos levantar a
hipótese de que o cavaleiro desse período desejava ser o cavaleiro que era cantado pelos
jograis, ou na melhor das hipóteses ter o seu nome cantado até nas mais distantes regiões,
como percebemos no caso de Guilherme o Marechal67
: sua canção resistiu ao tempo e chegou
até nós talvez pelo fato do trovador João ter atuado como o “melhor trovador do mundo”, para
que Guilherme pudesse ser lembrado como o herói de então. Esta qualidade jamais poderá ser
confirmada, muito menos foi esta a intenção de Duby em sua obra, pois as cantigas não
traduzem o mundo tal como era, mas sim um mundo idealizado, modelo que ambicionamos
captar nesta pesquisa.
A cantiga aparece como um instrumento de incentivo à cavalaria. Afonso X sabia da
influência que as canções tinham sobre a população e desejava, portanto, traçar o espelho que
almejava para seus cavaleiros. Notamos em outras cantigas68
atitudes que ele reprovava na
cavalaria evidenciando qual era a conduta correta a ser seguida e qual não era. Ainda na
terceira estrofe vemos que o cavaleiro tinha o apreço de todos os condes e reis, fica evidente
aqui que o bom cavaleiro é apreciado pelo rei e com o apoio deste pode contar. Todavia,
vemos no decorrer da cantiga que a dama ainda permanecia intocável para o cavaleiro e não
desejava nem ao menos escutá-lo, mesmo com todas essas qualidades. Este amor impossível
era típico das cantigas de amor.
Porém, na quinta estrofe vemos a persistência do cavaleiro que não deixa de cobiçar a
dama, nem a rejeição é suficiente para partir seu coração. Adiante nos deparamos com um
ponto chave da CSM 16:
“Mas con coita grande que tia no coraçon,
com' ome fora de seu siso, se foi enton
a un sant' abade e disse-ll' en confisson
que a Deus rogasse que lla fezesse gãar „‟69
Devido a todo sofrimento que sentia o cavaleiro recorre ao abade da igreja para se
confessar. Neste momento a cavalaria recorre à igreja, vemos a dependência do homem que
66
ZUMTHOR, Paul – A letra e a voz: A “literatura” medieval; Tradução Amalio Pinheiro, Jerusa Pires
Ferreira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 67
DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Op. cit. 68
Ver CSM 19, 22, 48, 58, 94, 194, 314. 69
CSM nº.16
28
luta (belator) ao que ora (orator). Pela sua cobiça e paixão, o cavaleiro é caracterizado com
sandeu e tolo, como Lancelote em seu amor por Guinevere, a mulher que ele desejava acima
de tudo, mas não podia possuir. Todavia, este cavaleiro que era cantado pelos jograis da corte
Afonso X se redime e segue o conselho do abade presente na sétima estrofe:
“E poren lle disse: «Amigo, creed' a mi,
se esta dona vos queredes, fazed' assi:
a Santa Maria a pedide des aqui,
que é poderosa e vo-la poderá dar 70
”
Na oitava estrofe o cavaleiro permanece durante um ano orando sob o altar. O bom
guerreiro tem fé e recorre à ajuda divina. Percebemos uma forma de “escambo” com o
sobrenatural, onde o guerreiro cumpre o conselho do abade esperando em troca um favor da
Virgem Maria.
A Virgem Maria que de início representa o papel de “alcoviteira” para o cavaleiro
desesperado, que roga para que Deus demovesse a amada, ao final da Cantiga realiza um
milagre: a Santa aparece para o guerreiro com uma beleza incomparável e o indaga quanto à
dona que ele amava. É aí que o cavaleiro opta por amar a Virgem mais do que tudo, tornado-
se vassalo amoroso de Maria, pois, como diz o refrão, quem ama a gloriosa não poderá errar,
vemos que ao ter fé, confiar em Deus e na santa igreja o cavaleiro toma a atitude certa, vive
um milagre divino, cantado pelos jograis e ouvido em toda a Península. O cavaleiro que a
cantiga evoca é o que descobre na castidade e no amor por Santa Maria o fim de seu
sofrimento.
Descobrimos aspectos muito parecidos na CSM n° 195, onde um cavaleiro vence a
tentação apresentada logo no início:
“Dun bon cavaleiro
d' armas, que senlleiro
con seu escudeiro
a un tornei ya
e viu mui fremosa
mena en un terreiro
e muit' amorosa.
(...)
El nunca quisera
casar, mas mui fera-
mente garçon era;
poren lle fazia
ssa luxuriosa
voontade que ouvera
sempr' e boliçosa ”71
70
CSM nº.16 71
CSM 195
29
Nesta cantiga, que de início possui um tom erótico, é contada a história de um
cavaleiro que nunca quis casar e junto ao seu escudeiro estava a caminho de um torneio,
quando avista uma bela jovem em um jardim: neste momento ele é consumido pela luxúria. A
moça era pobre e o pai não hesita em entregá-la nas mãos do cavaleiro, no entanto, ela
começa a chorar, conta que seu nome é Maria e que sempre guardava os sábados em nome da
Virgem. A cantiga narra que ao perceber a fé da moça, o cavaleiro se arrepende, ordena que
ela seja levada a um convento e segue seu caminho.
Porém, neste torneio ele é morto violentamente, permanecendo insepulto. A menina no
convento suspeitava que a vida do cavaleiro estivesse em perigo e rezou com muita fé por ele.
A Virgem aparece e lhe diz que o cavaleiro foi morto; a moça lhe pergunta onde estava o
corpo do cavaleiro e a Santa lhe diz que uma rosa vermelha estaria desabrochando no local. A
moça encontra o corpo do cavaleiro e o enterra em um lugar digno. Assim, a alma do
guerreiro é salva e a moça segue sua vida feliz. Nesta longa cantiga com 25 estrofes
intercaladas por refrão, percebemos que a virtude principal é a da castidade do cavaleiro que
freia seus impulsos sendo então recompensado com o paraíso celeste.
Quanto aos torneios, mais do que manter a cavalaria em atividade como um substituto
da guerra, foram uma expressão prática que fez com que a cavalaria fosse perpetuada no
imaginário. Com o tempo, os torneios se tornaram mais faustosos e menos perigosos, o que
não diminuiu o culto à coragem, ao heroísmo, o respeito à palavra dada, o zelo pela reputação
e pela generosidade72
. Todavia, de todas as 427 cantigas lidas, a CSM n° 195 é a única que
trata de um torneio e ainda assim o foco é o milagre da Virgem que recompensa o cavaleiro
por respeitar o dia santo e a vontade da moça. Descobrimos que possivelmente nas Cantigas
de Afonso X, a castidade, fidelidade e o autocontrole são valores guerreiros, de certo modo,
mais importantes do que a coragem, habilidade no manuseio das armas e outros atributos
considerados secundários.
No entanto, Duby registra que na canção de gesta do Marechal em mais de dois mil e
quinhentos versos, João o trovador, fala quase somente de torneios. 73
Em seguida ele
acrescenta que a igreja condenava esses eventos, em razão dos mesmos desviarem os
cavaleiros de Cristo e dos negócios militares importantes como as cruzadas74
. Ora, antes de
tudo as Cantigas de Santa Maria são cantigas religiosas, sua função era diferente da canção
72
FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos nobres guerreiros da Idade Média, Op. Cit. 73
DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Op.cit. p. 124. 74
Ibid, p. 126.
30
de gesta, por conseguinte, não é surpresa que aqui os torneios estejam praticamente ausentes,
uma vez que nestas se enaltecem outros valores. São tempos de guerra santa contra os
mouros, não seria proveitoso ao rei estimular seus cavaleiros à participação em torneios.
Em relação às peculiaridades das Cantigas de Afonso X, nota-se um contraste com o
sistema hierárquico e bárbaro das canções de gesta e seus temas sanguinolentos, devido
possivelmente à influência provençal, como é possível notar pela forma poética e o
vocabulário empregado. Para Saraiva, o lirismo oriundo da Provença é marcadamente
individualista, transpõe a idéia de vassalagem ao plano da submissão do amante. Canta-se o
que é delicado e sutil, correspondente ao desenvolvimento da vida na corte. Nesse sentido,
Saraiva registra que provavelmente todos os trovadores galego-portugueses tinham presentes
no espírito a idéia de que os provençais eram modelos a seguir75
.
Um dos aspectos mais interessantes que a série da castidade evidenciou foi a
transferência cultural de um tema da literatura profana, o amor cortês, para o campo da
cantiga religiosa. No entanto, percebemos que este processo não estava restrito somente às
cantigas religiosas, mas era comum à tradução de outras obras. Saraiva chama a atenção às
adaptações portuguesas ou castelhanas de histórias da Bretanha, pois é de presumir que
fizessem parte do repertório dos jograis peninsulares. O autor afirma que os feitos da cavalaria
e os enredos de amor destas histórias foram adaptados a uma intenção religiosa na Península
Ibérica76
.
Quanto às diversas influências que contribuíram para produção poética na corte do rei
Sábio, Saraiva entende que:
O encontro mais produtivo da joglaria galaica com o trovar occitânico deve ter-se
produzido na corte castelhana. (...) Quando a poesia provençal através de seus
trovadores e jograis ou seus imitadores peninsulares, chegou a Península, existia já
aqui (...) uma escola local de poesia jogralesca, provavelmente relacionada com as
carjas moçarabes, aquela mesma, que recolheu, adaptou e divulgou nas vilas e nas
cortes a poesia folclórica a que pertencem as cantigas de amigo.77
Marina Kleine acrescenta que os trovadores provençais da corte de Afonso X ao
comporem canções de louvor à Virgem, caracterizaram um processo que pode se chamar de
“marianização” do amor cortês78
. O que reforça nossa hipótese da transferência cultural, como
referido à CSM 16, quando o cavaleiro deixa de amar a dama, para se tornar vassalo amoroso
da Virgem.
75
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa, op. cit, p. 58. 76
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar, ibid, p. 96. 77
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar, ibid, p. 60. 78
MENÉNDEZ. PELÁEZ, Jesús, Apud KLEINE El rey que es fermosura de Espanna: as concepções do
poder real na obra de Afonso X de Castela, op. cit. p 207.
31
A partir das cantigas trovadorescas, é possível captar sutilezas do imaginário medieval
e a tentativa de revelar um modelo, que só faria sentido se tivesse relação com a experiência
dos ouvintes. Mais do que isso, segundo Barros, o amor cortês desempenhou uma função
social e lúdica na sociedade de corte que emerge da sociedade medieval79
. Entendemos que
este aspecto lúdico também estava presente nas cantigas religiosas, decorrente do processo de
“marianização” supra citado. Destarte, descobrimos em nossa análise das cantigas um aspecto
educativo, onde se preza a fidelidade e a contenção dos sentidos.
79
BARROS, José D'Assunção: “Os trovadores medievais e o amor cortês – reflexões historiográficas” In:
"Alethéia", UFG, Ano 1, vol.01, n°1, abril/maio de 2008.
32
5.2 A CAÇA
Após a descoberta das quinze Cantigas de Santa Maria que elogiavam de alguma
forma a cavalaria, nos deparamos com a seguinte temática: a caça. São aproximadamente
quatro cantigas que trazem esta temática. Apesar da forte expressão deste tema nas fontes,
inicialmente não encontramos em nossa bibliografia informações significativas a respeito.
Jean Flori, especialista em ideologia guerreira, em sua obra “A Cavalaria: A Origem dos
nobres guerreiros da Idade Média” (2005) ignora o tema, é possível que a palavra caça não
apareça em nenhum momento do livro. Nas obras de Georges Duby lidas para esta pesquisa,
percebemos que assim como Flori, os torneios recebem muita atenção, enquanto a caça não é
mencionada.
Apesar desta omissão por parte dos autores citados, há uma significativa produção
sobre este fascinante tema, que infelizmente não será possível aprofundar nesta monografia.
Neste capítulo, amparados pelos textos de Jacques Le Goff e Alain Guerreau realizamos um
estudo introdutório que nos impulsionará em novas pesquisas de caráter mais específico a
respeito da prática da falcoaria, além de ser importantíssimo em nosso esforço de responder
ao questionamento central de nosso trabalho.
Levantamos a hipótese de que a prática da caça é tão importante para o imaginário e
para a cavalaria medieval quanto os torneios, principalmente a prática da falcoaria, que no
contexto específico da Península Ibérica do século XIII marca forte presença nas cantigas de
Afonso X. Nesse sentido, Alain Guerreau afirma que a literatura e a iconografia medieval
conferem a esses animais de caça uma importante função. Ainda segundo o autor:
Aprofundando a investigação, percebemos que a aristocracia laica medieval dava a
esta atividade uma importância primordial, mas também é preciso reconhecer que, até
hoje, a historiografia não conseguiu fornecer um esquema de interpretação que torne
compreensíveis as estranhas modalidades desta prática, nem a paixão de que ela foi
objeto por parte de toda a aristocracia européia durante doze séculos. 80
No século XIII havia uma grande difusão dos manuais de caça, e os falcoeiros faziam
parte do círculo intimo dos reis e de grandes aristocratas81
. Sabemos que Frederico II sacro
Imperador Romano-Germânico (1220-1250) e não por acaso tio de Afonso X, escreveu um
manual sobre falcoaria: “De arte venandi cum avibus”. Este monarca estava familiarizado
com muitas obras traduzidas do árabe referente a este tema. Este seria um dos muitos
80
GUERREAU, Alain. “Caça” in LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval/ coordenador da tradução Hilário Franco Junior. – Bauru, SP: Edusc, 2006, p, 139. 81
ibid p, 141.
33
exemplos que mostram a importância deste rito na sociedade medieval européia, muito
presente também, no cotidiano dos cavaleiros peninsulares.
A CSM 44 foi a primeira cantiga na qual encontramos referência à caça. Nesta, a
história começa em Aragão, conta-se de um infançon desta região que perdeu seu açor82
enquanto caçava. Esta ave, tão apreciada na prática da falcoaria, o leva a cruzar toda Castela
para chegar a Sines em Portugal em sua busca. O adestramento destes animais era
extremamente dificultoso, a caça com pássaros era praticada em área aberta e sempre avia o
risco de o pássaro recuperar a sua liberdade83
, por conseguinte, um açor adestrado era um
presente de grande valor.
Na segunda estrofe da CSM 44 vemos a condição da dita ave, era grande e formosa, e
podia capturar todo tipo de presa. Daí a dor do infançon, tratava-se de uma ave especial. Em
desespero, o guerreiro viaja para as terras próximas, pedindo informações a respeito do açor,
sua busca, porém, foi em vão. Ele por si só não pode recuperar o animal. Em seguida, se
dirige a capela de Salas, que provavelmente está situada em Sines na região de Portugal84
, que
é inclusive muito comentada nas cantigas de Santa Maria85
. O infançon leva para esta capela
uma imagem de cera do seu açor, lá ele roga a Santa Maria, conta do seu sofrimento, e
promete ser para sempre seu fiel servidor:
Santa Maria, eu venno a ti
con coita de meu açor que perdi,
que mio cobres; e tu fas-lo assi,
e aver-m-ás sempre por servidor.
(...)
E demais esta cera ti darei
en sa figura, e sempr' andarei
pregõando teu nome e direi
como dos Santos tu es la mellor.»
Podemos notar neste trecho uma espécie de barganha espiritual onde o fiel oferece
seus serviços a Santa Maria, com a expectativa de recuperar seu açor. Quanto à imagem de
cera, constatamos na CSM 232 e na CSM 352 este mesmo costume, onde o cavaleiro
reproduz a imagem do seu açor perdido ou machucado para levar a Igreja. Trata-se dos ex-
votos uma importante expressão da crença no sobrenatural presente no medievo. Uma arte
popular pela qual se acredita que quando colocados em igrejas ou capelas exercem a função
82
Ave falconiforme, encontrada na Europa, Ásia e América do Norte segundo Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva. 2001. 83
GUERREAU, Alain. Op cit. 84
Ver: http://www.sines.pt/PT/Concelho/patrimonioarquitectonico/igrejadassalas/Paginas/default.aspx 85
Na cantiga anterior a essa (CSM 43), por exemplo, se passa um milagre onde um menino é ressuscitado ali;
esta ermida já existia no século XII, e sofreu diversas transformações com o passar dos séculos.
34
de agradecer uma graça ou para pagar promessas. Ao final da CSM 44, o açor milagrosamente
pousa na mão do infançon, que expressa sua sincera gratidão entoando louvores para a
Virgem.
Segundo José Matoso, o termo infançon nas cantigas do século XIII significava a
categoria mais baixa da nobreza, aquela que por si só não permitia sequer ter os rendimentos
necessários para que se adote o estilo de vida que a superioridade de nascimento devia
requerer86
. Apesar de Mattoso tratar da nobreza portuguesa, são muito frutíferas as
considerações do autor, que percebe os ricos-homens como no nível mais superior da nobreza
e quanto aos outros diz:
Não existe designação adequada para os níveis intermédios. Infanções são todos os
que são nobres pelo nascimento, mas o termo designa, pelo menos em vários textos
literários do século XIII, os membros inferiores da nobreza. 87
No entanto, Osvaldo Humberto Leonardi Ceschin, argumenta que a bibliografia
histórica acompanhou os passos desses antigos guerreiros e permite presumir outros não
visíveis, na dura caminhada pelas sendas da Reconquista, contudo:
Não assinala os fenômenos do cotidiano de um infanção, um indivíduo com
um rosto, apesar de possível modelo dos demais. Não propicia a composição de uma
figura dinâmica, colorida, humanamente viva e real(...) Os documentos literários em
especial a sátira, registraram , no entanto, o lado existencial dos infações.(...)
Documenta, todavia, os aspectos da vida comum dos infanções, das relações pessoais,
dos hábitos, do comportamento, das atividades e de sua situação na nobreza luso-
hipânica.88
È ratificada, portanto, a contribuição das cantigas na compreensão desta importante
categoria da sociedade medieval. Além disso, o autor ressalta que Afonso X muito
provavelmente os confundia com os cavaleiros nobres e com os cavaleiros vilãos89
. Destarte,
descobrimos que a prática da caça, privilégio exclusivo dos nobres, era praticada não só pela
baixa nobreza, mas também pelos membros da alta nobreza. Importante ressaltar, que no
medievo, qualquer desrespeito a este privilégio era reprimido cruelmente.
Homens que eram muito próximos de Afonso X se mostravam angustiados na busca
para encontrar seu açor ou a cura de uma doença que podia afligir o tão valioso animal. Isso
fica evidente na CSM 243 que conta o episódio de um grupo de cavaleiros do rei, que com
86
MATTOSO, José. Ricos-Homens Infanções e Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI
e XII. 3ª Ed. Lisboa. Guimarães Editores 1998, p, 171. 87
Ibid, p, 256. 88
CESCHIN. Osvaldo Humberto Leonardi. Poesia e História nos cancioneiros Medievais. O Cancioneiro do
Infanção - São Paulo: FFLCH/USP 2004, p, 332. 89
Ibid, p, 331.
35
seus falcões em dia de caça, caem em um rio parcialmente congelado e ficam presos. Rogam
para que a Santa Virgem os salvem da morte, e milagrosamente o gelo derrete e eles podem
escapar, viajando em seguida direto para a capela de Vila- Sirga onde louvam a Virgem, e tem
a oportunidade de contar o milagre para o Rei na frente de muitos outros cavaleiros.
Esta cantiga é similar a CSM 366, onde Dom Manuel, irmão do rei Afonso X, reza
para que Virgem recupere seu açor, enquanto que na CSM 142 um falcoeiro arrisca sua vida,
ao pular no rio Henares de fortíssima correnteza, a fim de salvar o açor do Rei Afonso X, que
havia se ferido e submergido. Por pouco o caçador não morre afogado, a cantiga conta que
Afonso X rezou para Virgem e disse para seus homens que não deveriam se preocupar. Ao
fim da cantiga o milagre acontece: cavaleiro e açor sobreviveram.
Na CSM 352, novamente a Virgem atua em favor de um caçador; aqui o cavaleiro
ganha de presente de um dos filhos do rei o açor da mais alta qualidade, que antes pertencia a
um cavaleiro da Estremadura, região onde a prática da falcoaria se fazia assaz. Estas cantigas
apresentam uma rede de relações entre diferentes extratos da nobreza com o rei, através desse
rito tão comum e importante para a nobreza medieval. Estas aves além de possuírem um valor
material, tinham um valor afetuoso, talvez pelo seu caráter simbólico, que permeou a prática
da caça no medievo.
Os jograis narravam a história do infançon ajoelhado na capela de Salas, entregando a
imagem de cera, jurando sua devoção, sua total e sincera dedicação a Santa Maria, também
cantavam sobre cavaleiros preocupados com a doença de sua ave. Poderiam perguntar o que
há de heróico ou bravo em perder uma ave e ir rezar por seu retorno?
Ora, nestas cantigas religiosas o valor da fé grita mais alto. É esse um dos valores que
estas cantigas evocam: a fé, e a fidelidade à Santa Maria, um valor chave quando falamos
destes guerreiros. Aqui há uma relação de troca que dialoga com a prática da entrega
vassálica. Em mais de um momento vemos o Virgem salvando da morte um caçador. Na
CSM 44 o infançon vai assistir a missa, ouve os cantos, e quando a missa acaba o açor lhe
pousa na mão, é um milagre! A fé triunfa, não foi a violência ou habilidade com as armas,
mas sua fé em Santa Maria que deu um fim a sua angústia. O aspecto religioso é apenas uma
das facetas da ideologia da classe guerreira, esta cantiga nos mostra uma delas. Para
Guerreau:
o valor do animal caçador conduz ao do animal caçado (...) o cervo ou o javali
representam o cavaleiro (as presas das aves de rapina têm um sentido feminino
utilizados com menos freqüência: ganso selvagem, grou, eventualmente coelho). O
simbolismo cinegético adquire sua plena força expressiva no seio do sistema cortês-
cavaleiresco, onde a relação homem-dama é a representação privilegiada da relação
36
cavaleiro-senhor, relação de dependência selada pela fé, vista como crucial para o bom
ordenamento da sociedade em geral. 90
Neste sentido, encontramos na Cantiga 232 uma narrativa muito similar a da CSM 44.
Primeiramente aparecem os elogios ao açor, que capturava todo tipo de pássaros e voava com
incomparável graça e velocidade, até que um dia o cavaleiro perde a ave. Nesta cantiga fica
implícito que um homem com posse de tal animal, seria também de bom caráter. Afonso X
simpatizava com a prática da caça, o bom caçador nas cantigas de Santa Maria, sempre é um
bom cavaleiro, porque a Virgem atende continuamente aos pedidos do guerreiro atormentado.
Nesta cantiga o cavaleiro envia seus homens em busca da ave:
Tod' aquel dia buscó-o, mais per ren nono achou;
e foi-sse pera ssa terra e seus omees enviou
busca-lo a muitas partes, e por el tanto chorou,
pois viu que o non achavan, que cuidou enssandecer.91
Muito provavelmente era um rico-homem, uma vez que manda os seus em busca da
ave e não o faz como o infançon da CSM 44, que pessoalmente percorre toda a Península. O
cavaleiro chora e beira à loucura, pois não havia ave igual em todo reino de Castela. Após
quatro meses de busca o cavaleiro leva a imagem do açor de cera ao altar da Virgem. Ao
retornar ao lar, a graça ocorre, o açor pousa milagrosamente na mão do dono.
Em contrapartida vemos na CSM 277 a história de 16 almogávares92
, onde oito
soldados se abstêm de comer carne no sábado enquanto outros oito não guardam o dia santo e
comem. Esta opção terá peso decisivo numa batalha com os mouros narrada na mesma
cantiga. Neste caso fora caçado um cervo, obviamente não fora utilizado um açor para tal,
aqui tratavam-se de soldados comuns e não cavaleiros. Cito está cantiga para explicitar que a
caça não era para aristocracia um modo de obter a carne93
, mas sim um rito cheio de
características simbólicas. Vemos que os almogávares erram não só em caçar mas em comer a
carne em um dia santo. Percebemos então que a igreja também regulava e interferia na prática
da caça.
Porém, nas cantigas em que encontramos a prática da falcoaria, o protagonista é o bom
cavaleiro, este sim, obedece aos ritos da caça. Os jograis não cantavam a respeito de
cavaleiros que fizeram mal uso da caçada, mas narram a história de cavaleiros que tiveram a
90
GUERREAU, Alain, Op. Cit. p, 144. 91
CSM 232 92
Tropas de choque da Coroa de Aragão formadas por infantaria ligeira; foram ativos no Mediterrâneo entre os
séculos XIII e XIV. 93
GUERREAU, Alain, Op. Cit. p, 139
37
graça dos milagres da Virgem Maria. Afonso X poderia muito bem compor cantigas onde a
falcoaria estivesse envolvida em situações tortuosas, mas não o faz, daí a possível simpatia do
rei por esta prática, sendo que é sempre um bom cavaleiro que é também falcoeiro.
Dentro desse eixo descobrimos uma dimensão da fina-flor da cavalaria: o guerreiro
caçador. Percebemos como essa prática estava inserida e dialogava com o ordenamento da
sociedade medieval. Para Le Goff, os animais não somente povoaram intensamente o
ambiente doméstico e selvagem dos homens e mulheres da Idade Média, como também
iluminaram todo seu imaginário. 94
94
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Op. cit, p, 21.
38
5.3 A FÉ
Esta terceira série complementa o capítulo anterior que também demonstra a confiança
dos cavaleiros nos milagres de Santa Maria. A CSM 63, além de ser a mais importante da
série “A fé”, contém a narrativa mais fascinante encontrada em nosso trabalho. Convém
descrever esta cantiga com mais cuidado. O protagonista é um guerreiro ímpar que jamais
quis ter paz com os mouros e sempre demonstrou muita coragem. Quando Almançor ataca
São Estevão de Gormaz, guardada pelo Conde de Castela Don Garcia, muito elogiado na
cantiga inclusive, o cavaleiro oferece sua participação na hoste do conde para ir ferir os
mouros. Nesta cantiga vemos novamente a expressão tão usada para elogiar os cavaleiros, este
não faltava nenhuma boa demanda ou torneio:
tanto fez y d'armas, per quant' end' eu sei,
que non ouv' y lide nen mui bon torney
u se non fezesse por bõo ter95
No entanto, antes de ir para batalha, resolve ouvir a missa que estava sendo ministrada
em homenagem à Santa Maria. Lá ele se arrepende dos pecados e assiste a mais duas missas.
No entanto, o escudeiro deste cavaleiro vem trazer a notícia de que era uma grande vergonha
ele ter demorado a ir a combate, faltando, então, à batalha. O cavaleiro suplica para que Maria
o proteja da vergonha, monta em seu cavalo e se dirige rapidamente ao encontro do conde,
que lhe diz:
Ca se vos non fossedes, juro par Deus
que vençudos foramos eu e os meus;
mais tantos matastes vos dos mouros seus
del rei Almançor, que ss' ouv' a recreer96
.
Este ponto da cantiga é surpreendente, o Conde parabeniza o cavaleiro pela decisiva e
corajosa atuação em combate. Ora, mas ele não tinha faltado? É um milagre, Santa Maria
lutou pelo cavaleiro! Um guerreiro fiel à Virgem jamais poderia cair em vergonha. No
medievo, a fama, a honra e a glória são de suma importância para os cavaleiros, a má fama e a
humilhação, por faltar a batalha, beiravam ao insuportável. J. Flori cita o comportamento
excessivo de Rolando, por exemplo, que podemos dizer comportava-se de maneira
desmedida. Ele recusa com horror tudo o que pode ser assimilado à covardia, defeito
95
CSM 63 96
Id.
39
imperdoável dos cavaleiros prontos a tudo para que os jograis e os arautos de armas não
possam “cantar uma canção ruim” 97
.
O cavaleiro da CSM 63 percebe que sua armadura estava com marcas da batalha e as
feridas marcavam seu corpo. É aí que ele entende o milagre, sendo eternamente grato à
Virgem, por tê-lo salvo da desgraça.
Para Jacques Le Goff, a cristianização dos cavaleiros foi marcada pelas insistentes
referências a santos que lhe foram designados como padroeiros. Sobretudo São Jorge, o santo
cavaleiro, cujo papel religioso a social foi frequentemente representando pelo episódio em que
ele mata o dragão e salva a princesa 98
, e Miguel Arcanjo, líder dos exércitos celestiais. Na
Península Ibérica, as vitórias contra os mouros geralmente eram atribuídas a São Tiago, que
teria aparecido miraculosamente em vários combates travados durante a Reconquista Cristã,
sendo a partir de então apelidado de Matamoros, no entanto, aqui é Santa Maria que assume
essa atitude guerreira. Afonso X se remete ao passado, narrando uma importante batalha da
Reconquista, onde a fé do cavaleiro triunfa sobre a coragem. A fé dele foi mais importante
para a vitória do que o seu compromisso em combater.
Neste período todos estavam convencidos que apenas as potências celestes
proporcionavam a vitória. A presença nos campos de batalha das relíquias dos santos e de
seus estandartes testemunha no mesmo sentido a certeza que têm os cavaleiros (dos dois
lados, geralmente) de combater por uma causa justa. 99
Esta figura do cavaleiro cristão está presente também na CSM 121. Nesta cantiga o
milagre se passa na Provença onde um cavaleiro prestava uma homenagem para a Virgem
com uma guirlanda de rosas todos os dias. Quando faltavam rosas, ele rezava uma Ave Maria
para cada rosa que lhe faltava. Até que um dia topou com seus inimigos, também cavaleiros,
em um grande vale, todos estavam bem armados exceto ele que estava desprevenido montado
em seu palafrém. Quando estava prestes a receber um golpe mortal, os cavaleiros inimigos
tem uma visão da Virgem junto ao homem que atacavam, um deles exclama:
«Tornemo-nos daqui logo, pois esto non praz a Deus
que est' ome nos matemos, ca x' éste dos servos seus.»
«E porende vos consello», diss' enton un deles, «meus
amigos, que nos vaamos; ca muit' é descomunal100
Ora, não era sensato matar um vassalo da Virgem, no medievo era comum as relações
de vingança entre a nobreza. No entanto, nas Cantigas de Santa Maria vemos a canalização
97
FLORI, Jean. Op. Cit. 98
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Op. Cit, p, 113. 99
FLORI, Jean. Op. Cit, p, 92. 100
CSM 21.
40
da violência para Reconquista, como vimos na CSM 63 onde Santa Maria encarna o papel de
Matamoros. Afonso X prezava pela ordem interna. Para este rei, o cavaleiro ideal jamais
poderia fazer guerra contra os seus, na cristandade não pode haver desavença, ainda que
muito houvesse. A CSM 233 tem este mesmo sentido, o poema narra a história de um bom
cavaleiro, que ao sair do Mosteiro de São Domingo de Silos em Burgos101
, é perseguido pelos
seus inimigos que queriam matá-lo. Após fugir à cavalo, ele se refugia numa ermida em
Penacova, Portugal. Nesta ermida estavam enterrados vários homens bons que foram mortos
pelos mouros no decorrer da Reconquista.
A cantiga alude a um fenômeno sobrenatural: quando os inimigos alcançam o
cavaleiro nesta ermida, ele conta com a proteção de uma hoste celestial de guerreiros em sua
defesa; quando seus inimigos perceberam que estes guerreiros não eram deste mundo,
perdoaram e foram perdoados pelo cavaleiro. Nesta cantiga, Maria encarna a figura da mãe
que obriga os filhos rebeldes a se reconciliar.
A fé triunfa também na CSM 158, onde Santa Maria liberta um nobre cavaleiro de
prisão:
E de tal razon vos quero contar un mui gran miragre, que fez por un cavaleiro
bõo d'armas e de mannas e en servir un ric-ome cug' era, mui verdadeiro;
e foi pres' en seu serviço, e en carcer tevrosa
o meteron e en ferros, como gente cobiiçosa,102
Nos torneios, tanto quanto na guerra, o principal objetivo não era matar o adversário,
muitas vezes era mais vantajoso capturar o cavaleiro e pedir uma recompensa para sua
libertação. Com vemos neste trecho, que conta do cavaleiro preso num cárcere tenebroso, por
pecadores cobiçosos em receber um pagamento de resgate, como era típico neste contexto.
Nesta cantiga mais uma vez a Virgem intercede em favor de um cavaleiro que cheio de
fé roga por um milagre e que, além disso, servia a um rico-homem que também era fiel à
Virgem. Neste milagre, após a Santa romper as correntes que prendiam o guerreiro, ela o guia
até Rocamadour, uma capela e santuário da Virgem, que fica num complexo de construções
monásticas sob um monte rochoso de difícil acesso que existe até os dias de hoje. Lá o
cavaleiro conta o milagre para os monges e para todos que quiseram ouvir.
Para Flori, as grandes batalhas eram raras na Idade Média, os príncipes evitavam esses
confrontos de risco. Os conflitos menores eram mais freqüentes, e geralmente o vencido
continua no mesmo lugar, porém ligado por um pacto de aliança ao vencedor reforçado por
101
Para saber mais sobre o mosteiro ver: http://www.abadiadesilos.es/ 102
CSM 158
41
laços familiares de casamento.103
Apesar dos beligerantes não sofrerem perdas como hoje, a
terra e seus habitantes muito sofriam com essas operações guerreiras. O sítio provocava fome
e os que mais sofriam eram a população do campo. Apesar dos guerreiros arriscarem a vida,
o numero de mortos permanecia mínimo nos combates entre cavaleiros104
. Os cavaleiros
cobiçavam o equipamento do derrotado, principalmente seu cavalo e armamentos, o combate
podia significar para os mais pobres a perda de seu status ou um meio de enriquecer e armas e
cavalos. Ao poupar o derrotado, ou evitar matá-lo em combate para capturá-lo, o cavaleiro
espera receber um montante proporcional à posição do cavaleiro capturado. Segundo o autor
esta prática de misericórdia torna-se habitual, a ponto de constituir um dos fundamentos da
ética cavalheiresca no século XII.105
.
A partir das Cantigas de Santa Maria, Afonso X propunha uma conduta menos
violenta para os cavaleiros, visando à ordem de reino. A próxima série interpretativa, é a
continuidade desta, e segue esta mesma linha, onde como veremos adiante, há uma
preocupação do rei Sábio, de conter as relações hostis entre seus cavaleiros.
103
FLORI, Jean, Op cit. p, 85. 104
Ibid, p, 84. 105
Ibid, p, 90.
42
5.4. CONTRIÇÃO E AUTOCONTROLE
Na CSM 281, conta-se a história de um cavaleiro francês, um bom homem que havia
perdido toda sua fortuna:
Dest' avo un miragre en França a un frances,
que non avia no reino duc nen conde nen marques
que fosse de mayor guisa, e tal astragueza pres
que quanto por ben fazia en mal xe ll' ya tornar.106
Segundo o vocabulário histórico cronológico de português medieval, astragueza
significava azar e má sorte. É esta má sorte que leva a o cavaleiro ao desespero. Não havia no
reino nenhum conde ou marquês que tivesse mais azar do que ele. Isto o leva a beijar a mão
do demônio, tornado-se então seu vassalo, que lhe exige que negue a Deus e a todos os santos,
ele o faz, no entanto, prefere morrer a negar a Virgem; ainda assim o diabo recupera toda a
fortuna perdida do personagem. Até que um dia o cavaleiro vai junto ao Rei de França assistir
a um sermão, quando a imagem da Virgem Maria o convida para entrar na igreja, o cavaleiro
apavorado confessou tudo para o rei, o que nos leva a um ponto surpreendente da narrativa:
Diss' enton el Rey: «Amigo, eu fui errado, par Deus,
de vos averdes pobreza en meu reyn' e ontr' os meus.»
E deu-ll' enton por herdade muy mais ca ouveran seus
avoos, e ficou rico com' ome do seu logar107
.
O próprio rei aqui, admite o erro de permitir que seus vassalos sejam vítimas da
pobreza e má sorte. Isto ocorre depois de o cavaleiro se apresentar contrito com um
arrependimento sincero do fiel, por todos os pecados cometidos. Levantamos a hipótese de
que Afonso X procurou demonstrar neste poema a imagem de um rei justo, que protege seus
vassalos das dificuldades. A cantiga demonstra a importância do sincero arrependimento do
cavaleiro que, no entanto, jamais nega Santa Maria.
Vemos a contrição também na CSM 45, onde Santa Maria ressuscita um cavaleiro que
foi de má índole por toda sua vida, mas que em seus últimos momentos , se arrepende, decide
construir em sua propriedade um mosteiro com claustro, igreja, cemitério e enfermaria, e lá
viver como um frade ao lado dos monges. Contudo, o guerreiro foi subitamente acometido
de uma doença fatal. Quando o diabo vem buscar a sua alma, a Virgem intercede em seu
favor, pedindo a Cristo para dar-lhe a alma. Deus concedeu o desejo. restaurou a alma para o
106
CSM 281 107
Id.
43
corpo do cavaleiro, que teve então a oportunidade de construir um mosteiro e lá levar uma
vida casta.
Nesta cantiga, também são descritas uma série de defeitos do cavaleiro:
E desta guisa avo | pouc' á a un cavaleiro
fidalg' e rico sobejo, | mas era brav' e terreiro,
sobervios' e malcreente, | que sol por Deus un deiro
non dava, nen polos Santos, | esto sabed' en verdade.108
Este trecho contém apenas parte deles, pois este homem possuía os defeitos mais
abominaveis que se podiam esperar de um cavaleiro cristão. O milagre de sua salvação é
descrito com cuidado, como uma verdadeira batalha espiritual por sua alma. A fé e o
arrependimento, além de todo bem material que dedicou em nome de Deus construindo um
mosteiro, salvaram sua alma. Fica claro aqui, a força transformadora dessas virtudes que
salvaram uma vida manchada de pecado. Esse cantiga permite uma estudo sobre a morte.
Duby ressalta a importância deste evento no medievo, ao analisar a morte de Guilherme o
Marechal, que se vê na posição de abrir mão de tudo de material se desfazendo das
responsabilidades e de toda investidura que se possuí, se livrando de tudo o que pesava para
subir aos céus. Segundo o autor na hora de sua morte, todos esperam como de costume, uma
lição de moral, algo que demonstre valores, de integridade e lealdade, ou seja, um exemplo a
ser seguido, logo, a morte descrita na obra, é a morte desejada pelas pessoas que viveram
nesse período: uma passagem solene de uma condição para outra. 109
Esta cantiga apesar de seguir a ordem inversa das outras, reforça o mesmo que a
maioria das cantigas analisadas presentes nas séries anteriores. A CSM 336, por exemplo,
conta a história de um cavaleiro quase perfeito que, porém, era luxurioso; outras cantigas
tratam de cavaleiro justos, corajosos e humildes, mas que não tinham fé, ou não eram castos.
A CSM 45, todavia, conta de um cavaleiro cheio dos mais terríveis defeitos, soberbo que não
confiava nos santos, mas que ao fim da sua vida se arrepende e dedica-se inteiramente a
louvar Santa Maria, demonstrando castidade e fé: qualidades que permitem ao cavaleiro
ingressar ao paraíso, sem elas, mesmo que o cavaleiro tenha todas as outras, queimará no
inferno.
Finalizamos esta série com a CSM 207, uma curta cantiga que evidencia a
importância do autocontrole, quando um cavaleiro poupa o assassino de seu filho:
108
CSM 45 109
DUBY, Georges. . Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Op. Cit.
44
El avia un seu fillo que sabia mais amar
ca ssi, e un cavaleiro matou-llo. E con pesar
do fillo foi el prende-lo, e quisera-o matar
u el seu fillo matara, que lle non valvesse ren.
Se ome fezer de grado pola Virgen algun ben110
A cantiga deixa claro que o pai amava muito seu filho, e que mesmo acometido pela
tristeza, poupou a vida do assassino o levando como prisioneiro em uma igreja, contando
então com a graditão da Virgem. Mais uma vez, a cantiga esbeleçe uma relação de fidelidade
entre o cavaleiro e a Santa. Nestas ultimas duas séries, demonstramos que há portanto, uma
inversão dos valores cavalheirescos, o guerreiro monge, deixa de ser guerreiro, para tornar-se
apenas monge, a contenção dos instintos é levada a tão ponto, que anula a atividade guerreira
no seio da cristandade.
A cantiga aqui apareçe como um instrumento que visa educar os cavaleiros a conter
seus instintos de vingança pessoal e canalizar a violência para guerra justa, por excelência
acompanhada de promessas espirituais. Favorecendo então a Reconquista e a Cruzada para
África, que sacraliza o combate contra os infiéis, fazendo da guerra justa, uma guerra santa. J.
Flori demonstra que inicialmente a cavalaria está inteiramente no campo do mal, uma vez que
vive da guerra e do homicídio. 111
. Contudo, as cruzadas permitem que o cavaleiro abandone a
milícia secular para entrar na milícia de Cristo. Não como monge, mas como guerreiro. A
cruzada é ao mesmo tempo uma peregrinação e uma penitência. Os milites cristi, antes
monges, são agora guerreiros que lutam contra os sarracenos e muçulmanos.
110
CSM 207 111
FLORI, Jean. Op. Cit, p, 125.
45
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro desafio da pesquisa foi descobrir um recorte adequado às Cantigas de
Santa Maria, pois, apesar de todos os estudos realizados nos últimos anos, elas se mostraram
uma fonte inesgotável de informações. Cada cantiga contém um universo, e constituem um
tesouro para o historiador. Posteriormente, com o corpus já definido, descobrimos que o amor
e a guerra, dois conceitos aparentemente antagônicos, coexistiam e se complementavam nas
Cantigas de Santa Maria. Foi possível, então, levantar a hipótese de que durante o reinado de
Afonso X, os cavaleiros foram educados através do amor cortês, adaptado à cantiga religiosa.
Aqui este sentimento não é direcionado a algo palpável, ou real no sentido estrito do termo,
mas sim, direcionado para algo intangível e inalcançável. Esta tensão do amor cortês é
potencializada, uma vez que amor de Santa Maria é ainda mais abstrato, pois a Santa
personifica muito melhor os atributos de pureza e santidade do que a imagem de qualquer
outra mulher. Para Ceschin, Afonso X teria encontrado no humor um modo de se vingar do
desserviço de seus súditos através das cantigas de escárnio onde, segundo o autor “A poesia e
a guerra andaram muito juntas” 112
Pois bem, acreditamos que a poesia e guerra também
andaram juntas nas Cantigas de Santa Maria.
Outro detalhe importante é a função auto-referencial presente na última estrofe de
muitas das cantigas que analisamos, ou seja: o momento em que o protagonista realiza uma
cantiga para agradecer o milagre da Virgem. Esta característica, provavelmente, legitimava
seu caráter verídico, que revestia o poeta, o jogral e o trovador, da autoridade da voz, como
responsável por relatar os fatos passados. Poderíamos parodiar que os jograis eram os
historiadores do medievo, melhor ainda, os jornalistas, pois possuíam expressiva influência
sobre a opinião pública. Os trovadores através da cultura exerciam uma forma de poder.
O rei trovador estabelecia nas cantigas uma relação de fidelidade entre os cavaleiros e
a Virgem. Por Santa Maria! Gritavam os soldados, que provavelmente acreditavam estar
envolvidos numa luta do bem contra o mal. Quem melhor para transformar os horrores da
guerra, onde vingam o sofrimento e os piores instintos humanos, nos maiores valores que um
homem pode alcançar se não os trovadores? Através da poesia, Afonso X estimulava seus
cavaleiros à Reconquista, evocando os valores da fé, coragem e fidelidade. Além disso, por
meio destes poemas o rei divulgava sua cumplicidade com a Santa.
112
Ceschin, p, 332.
46
Em um dos “Diálogos Mediterrânicos” assistidos no decorrer desta pesquisa a Profa.
Dra. Aline Dias Silveira113
comentou a respeito da importância que se tem hoje na Europa o
estudo da Península Ibérica medieval, em virtude dos temas relacionados aos problemas de
alteridade entre diferentes religiões e a questão dos imigrantes nos dias de hoje. Nesta linha,
apontando para novas pesquisas, acreditamos que também é necessário compreender a
idealização da cavalaria para descobrir como o homem medieval explicava a guerra e os seus
principais autores. Isso poderia levar a uma reflexão sobres as guerras de nosso tempo,
geralmente justificadas pela idéia de liberdade ou até mesmo pela fé.
Inversamente, as Cantigas de Santa Maria também lembravam aos cavaleiros valores
essenciais que não só legitimavam o seu estado, mas traziam o sentimento de ocupar um lugar
legítimo e útil na sociedade. As Cantigas de Santa Maria foram fruto de uma criatividade
espetacular, com histórias de enredos complexos e passagens inesperadas, apesar da óbvia
interferência divina. Não é necessário referir a beleza poética da obra afonsina, acompanhada
pelo timbre de instrumentos de origem mourisca como o alaúde114
e a rabeca115
, para expor
que a música é um dos meios de transcender a realidade. Ela diverte e comove, influenciando
profundamente as sensibilidades humanas desde sempre até os dias de hoje.
De modo geral, o movimento da Escola dos Annales demonstrou que a História é um
modo de compreender a experiência humana ao longo tempo116
. Neste sentido, a música e a
literatura, fontes escolhidas para este estudo, são fundamentais para compreensão do homem
medieval.
113
Título da Palestra: "A busca da identidade cultural européia no atual debate historiográfico na área de estudos medievais", data: 10/05/2010. 114
Derivado do Al ‘ ud, conhecido também como oud. 115
Derivado do Rebab. 116
Perspectiva adotada de pela Escola dos Annales.
47
7. REFERÊNCIAS.
7.1. FONTES.
Domínio Público. Cantigas de Santa Maria. Alfonso X el Sábio. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1
7833. Acessado em 01/10/2009.
7.2. BIBLIOGRAFIA.
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48
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ZUMTHOR, Paul – A letra e a voz: A “literatura” medieval/ Paul Zumthor ; Tradução
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50
8. APÊNDICES
8.1 A FACE SOMBRIA DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE AFONSO X 117
.
CSM
nº: Resumo: Principal maleficência
evocada na cantiga
19 Cavaleiro rico e soberbo mata inimigo em frente à igreja e se
arrepende. Agressividade.
22 Camponês é salvo de cavaleiros agressivos. Agressividade.
48 Cavaleiro se nega a dar água de seu rio aos monges. Mesquinhez e descrença.
58 Uma monja é tentada e vai para o curral com um cavaleiro,
contudo, sonha com o inferno e opta pela castidade. Luxúria.
94 Uma freira se apaixona por um cavaleiro, tem filhos com ele e
se arrepende profundamente. Luxúria.
194 Um jogral vai à casa de um cavaleiro cobiçoso, que manda
seus homens roubá-lo na volta, entretanto, Santa Maria o
salva.
Cobiça.
314 Cavaleiro critica a esposa pelas rezas longas, fica cego e a
esposa reza por ele. Descrença.
174 Um cavaleiro perde no jogo de dados, culpa e destrata Santa
Maria. Arrependido, corta a própria língua. Blasfêmia.
117
As cantigas que figuram nesta tabela não foram analisadas profundamente em nossa pesquisa, pois
evidenciam o lado negativo da cavalaria. Contudo, é interessante que o leitor esteja a par de que nem todas as
Cantigas de Santa Maria elogiam o cavaleiro.
51
9. ANEXOS
9.1 Transcrição integral de algumas das Cantigas de Santa Maria utilizadas em nossa
pesquisa.
CSM 16
Esta é como Santa Maria converteu un cavaleiro namorado, que ss' ouver' a desasperar porque non
podia aver sa amiga.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar,
am' a Groriosa e non poderá errar.
E desta razon vos quer' eu agora dizer
fremoso miragre, que foi en França fazer
a Madre de Deus, que non quiso leixar perder
un namorado que ss' ouver' a desasperar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
Este namorado foi cavaleiro de gran
prez d'armas, e mui fremos' e apost' e muy fran;
mas tal amor ouv' a ha dona, que de pran
cuidou a morrer por ela ou sandeu tornar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E pola aver fazia o que vos direi:
non leixava guerra nen lide nen bon tornei,
u se non provasse tan ben, que conde nen rey
polo que fazia o non ouvess' a preçar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E, con tod' aquesto, dava seu aver tan ben
e tan francamente, que lle non ficava ren;
mas quando dizia aa dona que o sen
perdia por ela, non llo queri' ascoitar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
Macar o cavaleir' assi despreçar se viu
da que el amava, e seu desamor sentiu,
pero, con tod' esto, o coraçon non partiu
de querer seu ben e de o mais d'al cobiiçar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
Mas con coita grande que tia no coraçon,
com' ome fora de seu siso, se foi enton
a un sant' abade e disse-ll' en confisson
que a Deus rogasse que lla fezesse gãar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
O sant' abade, que o cavaleiro sandeu
vyu con amores, atan toste ss' apercebeu
52
que pelo dem' era; e poren se trameteu
de buscar carreira pera o ende tirar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E poren lle disse: «Amigo, creed' a mi,
se esta dona vos queredes, fazed' assi:
a Santa Maria a pedide des aqui,
que é poderosa e vo-la poderá dar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E a maneyra en que lla devedes pedir
é que duzentas vezes digades, sen mentir,
«Ave Maria, d'oj' a un ano, sen falir,
cada dia, en gollos ant' o seu altar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
O cavaleiro fez todo quanto ll' el mandou
e tod' ess' ano sas Aves-Marias rezou,
senon poucos dias que na cima en leixou
con coita das gentes que yan con el falar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
Mas o cavaleiro tant' avia gran sabor
de comprir o ano, cuidand' aver sa sennor,
que en un' ermida da Madre do Salvador
foi conprir aquelo que fora ant' obridar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E u el estava en aqueste preit' atal,
mostrand' a Santa Maria ssa coit' e seu mal,
pareceu-lle log' a Reinna esperital,
tan fremos' e crara que a non pod' el catar;
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E disse-ll' assi: «Toll' as mãos dante ta faz
e para-mi mentes, ca eu non tenno anfaz;
de mi e da outra dona, a que te mais praz
filla qual quiseres, segundo teu semellar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
O cavaleiro disse: «Sennor, Madre de Deus,
tu es a mais fremosa cousa que estes meus
ollos nunca viron; poren seja eu dos teus
servos que tu amas, e quer' a outra leixar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
E enton lle disse a Sennor do mui bon prez:
«Se me por amiga queres aver, mais rafez,
tanto que est' ano rezes por mi outra vez
quanto pola outra antano fuste rezar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
Poi-la Groriosa o cavaleiro por seu
fillou, des ali rezou el, e non lle foi greu,
quanto lle mandara ela; e, com' oý eu,
53
na cima do ano foy-o consigo levar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
CSM 44
sta é como o cavaleiro que perdera seu açor foy-o pedir a Santa Maria de salas; e estando na
eigreja, posou-lle na mão.
Quen fiar na Madre do Salvador
non perderá ren de quanto seu for.
Quen fiar en ela de coraçon,
averrá-lle com' a un ifançon
avo eno reino d' Aragon,
que perdeu a caça un seu açor,
Quen fiar na Madre do Salvador...
Que grand' e mui fremos' era, e ren
non achava que non fillasse ben
de qual prijon açor fillar conven,
d' ave pequena tro ena mayor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E daquest' o ifançon gran pesar
avia de que o non pod' achar,
e porende o fez apregõar
pela terra toda en derredor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E pois que por esto nono achou,
pera Salas seu camo fillou
e de cera semellança levou
de ssa av', e diss' assi: «Ai, Sennor
Quen fiar na Madre do Salvador...
Santa Maria, eu venno a ti
con coita de meu açor que perdi,
que mio cobres; e tu fas-lo assi,
e aver-m-ás sempre por servidor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E demais esta cera ti darei
en sa figura, e sempr' andarei
pregõando teu nome e direi
como dos Santos tu es la mellor.»
Quen fiar na Madre do Salvador...
Pois esto disse, missa foi oyr
mui cantada; mas ante que partir
s' en quisesse, fez-ll' o açor vir
Santa Maria, ond' ouv' el sabor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E que ouvess' end' el mayor prazer,
fez-ll' o açor ena mão decer,
54
come se ouvesse log' a prender
caça con el como faz caçador.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E el enton muit' a Madre de Deus
loou, e chorando dos ollos seus,
dizend': «Ai, Sennor, tantos son os teus
bes que fazes a quen ás amor!»
Quen fiar na Madre do Salvador...
CSM 63
Como Santa Maria sacou de vergonna a un cavaleiro que ouver' a seer ena lide en Sant' Estevan de
Gormaz, ve que non pod' y seer polas suas tres missas que oyu.
Quen ben serv' a Madre do que quis mor[r]er
por nos, nunca pod' en vergonna caer.
Dest' un gran miragre vos quero contar
que Santa Maria fez, se Deus m'anpar,
por hun cavaleiro a que foi guardar
de mui gran vergonna que cuidou prender.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Este cavaleiro, per quant' aprendi,
franqu' e ardid' era, que bes ali
u ele morava nen redor dessi
d'armas non podian outro tal saber.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
E de bõos costumes avia assaz
e nunca con mouros quiso aver paz;
porend' en Sant' Estevão de Gormaz
entrou, quand' Almançor a cuidou aver,
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Con el conde don Garcia, que enton
tya o logar en aquela sazon,
que era bon om' e d'atal coraçon
que aos mouros se fazia temer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Este conde de Castela foi sennor
e ouve gran guerra con rei Almançor,
que Sant' Estevão tod' a derredor
lle vo çercar, cuidando-lla toller.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Mais el conde defendia-sse mui ben,
ca era ardido e de mui bon sen;
e poren do seu non lle leixava ren,
mais ya-os mui de rrijo cometer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Mais o cavaleiro de que vos faley
55
tanto fez y d'armas, per quant' end' eu sei,
que non ouv' y lide nen mui bon torney
u se non fezesse por bõo ter.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
E avo-ll' un dia que quis sayr
con el conde por na hoste ir ferir
dos mouros; mais ante foi missa oir,
como cada dia soya fazer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Pois foi na ygreja, ben se repentiu
dos seus pecados e a missa oyu
de Santa Maria, que ren non faliu,
e outras duas que y foron dizer,
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Que da Reynna eran espirital.
Mais un seu escudeiro o trouxe mal
dizendo: «Quen en tal torneyo non sal
com' aqueste, nunca dev' apareçer.»
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Por nulla ren que lle dissess' aquel seu
escudeiro, ele nulla ren non deu,
mais a Santa Maria diz: «Sõo teu,
e tol-me vergonna, ca ás en poder.»
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
As missas oydas, logo cavalgou
e ena carreira o conde achou,
que ll' o braço destro no colo deitou
dizend': «En bon ponto vos fui connocer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Ca se vos non fossedes, juro par Deus
que vençudos foramos eu e os meus;
mais tantos matastes vos dos mouros seus
del rei Almançor, que ss' ouv' a recreer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
E tanto fezestes por gãardes prez,
que ja cavaleiro nunca tanto fez
nen soffreu en armas com' aquesta vez
soffrer fostes vos polos mouros vençer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Mas rogo-vos, porque vos é mui mester,
que de vossas chagas pensedes, senner;
e eu ey un meje dos de Monpisler
que vos pode çedo delas guareçer.»
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Disse-ll' est' el conde, e mui mais ca tres
lle disseron aquesta razon medes;
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e el deles todos tal vergonna pres
que con vergonna se cuidou ir perder.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Mais pois que sas armas viu e couseçeu
que feridas eran, logo connosçeu
que miragre fora, ca ben entendeu
que d'outra guisa non podia seer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
Pois est' entendudo ouve, ben foi fis
que Santa Maria leixa-lo non quis
caer en vergonna; e maravidis
e outras offrendas lle foi offreçer.
Quen ben serv' a Madre do que quis morrer...
CSM 281
Como un caveleiro vas[s]alo do demo non quis negar Santa Maria, e ela o livrou do seu
poder.
U alguen a Jhesu Cristo por seus pecados negar,
se ben fiar en ssa Madre, fará-ll' ela perdõar.
Dest' avo un miragre en França a un frances,
que non avia no reino duc nen conde nen marques
que fosse de mayor guisa, e tal astragueza pres
que quanto por ben fazia en mal xe ll' ya tornar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
El non era de mal siso nen deserrado en al,
senon que quanto fazia por ben saya-ll' a mal;
e passand' assi seu tenpo, con esta ventura tal,
de grand' algo que ouvera non ll' ouv' en ren a ficar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Poys que sse viu en pobreza, diss' un dia entre ssi:
«Mesqo desanparado, que será agora de my?
A requeza que avia, non sey por que mia perdi;
mais se a cobrar non posso, yr-m-ei algur esterrar.»
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
El estand' assi coydando, un ome ll' apareceu,
e aquel era o demo, e assi o cometeu:
«Cuidas tu no que perdische? Ja outr' ome mais perdeu
ca tu, e fez meu mandado, e fiz-llo todo cobrar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
E se tu assi fezeres, todo cho eu cobrarey.»
Diss' el: «Di-me que che faça, e logo cho eu farey.»
Diss' o demo: «Por vassalo meu t'outorga, e dar-ch-ei
mui mais ca o que perdische.» E el foy-llo outorgar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Pois que lle beijou a mão, diss' o demo: «Un amor
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me farás, pois meu vassalo es: nega Nostro Sennor
e nega todos seus santos.» E fillou-xe-lle pavor
de os negar, e negó-os; tanto ll' ouv' a preegar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Despos esto disso: «Santa Maria renegarás.»
Diss' enton o cavaleiro: «Este poder nono ás
que me faças que a negue, nen tanto non me darás
que negue tan bõa dona; ante m' iria matar.»
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Diss' o demo: «Pois negaste Deus, non mi á ren que fazer
de ssa Madre non negares, mais dou-che mui grand' aver;
demais negasch' os seus santos, mais al mi ás de prometer
que non entres en eigreja.» E jurou d' i non entrar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
El anda[n]do por do demo passou a gran sazon;
e foy con el Rey de França un dia a un sermon,
e el Rei ena eigreja entrou, e el con el non
entrou e ouve vergonna de sse del assi quitar
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
A magestade de Santa Maria viu u ficou
de fora o cavaleiro, e a ssa mão levou
contra el e sinal fizo que entrass'; e espantou
s' a gente por neun ome a magestade chamar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Diss' enton el Rey: «Amigos, algun sant' entre nos á
e non entrou na eigreja, mais algur de fora 'stá.»
E fezo catar de fora quaes estavan alá,
e viron o cavaleiro soo senlleiro estar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Diss' el Rey: «Sancta Maria muy pagada de vos é,
ca a sua magestade vos chamou, que aqui sé.»
Disso el: «Mais é m' irada con dereito, a la fe,
e fez sinal que ant' ela sol non m' ousasse parar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Ca eu fiz tan mao feyto, que nunca viu ome quen
tan mao feito fezesse por algo, nen tan mal sen;
ca porque pobre tornara, vassalo torney poren
do dem', e Deus e os santos neguey por m' enrrequentar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Mais des oje mais do demo m' espeço e nego eu
el e todas suas obras e leixo quanto m' el deu,
e torno-m' a Jhesu-Cristo e outorgo-me por seu
e peço-lle que sse queira de mi peccador nenbrar.»
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Poi-lo viu el Rey queyxar-se e muy ben se repentir,
preguntou-lle se ja quando traballara en servir
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a Virgen Santa Maria; e el disso: «Consintir
nunca quix ao diabo que mia fezesse negar.»
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...
Diss' enton el Rey: «Amigo, eu fui errado, par Deus,
de vos averdes pobreza en meu reyn' e ontr' os meus.»
E deu-ll' enton por herdade muy mais ca ouveran seus
avoos, e ficou rico com' ome do seu logar.
U alguen a Jhesu-Cristo por seus pecados negar...