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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO O SABER POLÍTICO NA IMAGEM: POSSIBILIDADES ANALÍTICAS DE UM CONJUNTO PARADIGMÁTICO DE FOTOGRAFIAS EM VITÓRIA DE SANTO ANTÃO ANDRÉ CARVALHO DE MOURA Recife-PE 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO ......uma ingratidão – já que tenho uma profunda dificuldade de esquecer cada gesto amigo –, mas por não saber a medida razoável entre

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

O SABER POLÍTICO NA IMAGEM:

POSSIBILIDADES ANALÍTICAS DE UM CONJUNTO PARADIGMÁTICO DE

FOTOGRAFIAS EM VITÓRIA DE SANTO ANTÃO

ANDRÉ CARVALHO DE MOURA

Recife-PE

2015

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ANDRÉ CARVALHO DE MOURA

O SABER POLÍTICO NA IMAGEM:

POSSIBILIDADES ANALÍTICAS DE UM CONJUNTO PARADIGMÁTICO DE

FOTOGRAFIAS EM VITÓRIA DE SANTO ANTÃO

Dissertação apresentada à Universidade

Federal de Pernambuco, como parte das

exigências do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de

Pernambuco, para a obtenção do título de

Mestre.

Orientador: Professor Dr. José Afonso da Silva

Júnior.

Recife-PE

2015

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

M929s Moura, André Carvalho de O saber político na imagem: possibilidades analíticas de um conjunto

paradigmático de fotografias em Vitória de Santo Antão / André Carvalho de Moura. – Recife: O Autor, 2015.

107 f.: il. Orientador: José Afonso da Silva Júnior. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco.

Centro de Artes e Comunicação. Comunicação, 2015. Inclui referências.

1. Comunicação. 2. Arqueologia. 3. Imagens, ilustrações, etc. 4. Fotografia. 5. Político. I. Silva Júnior, José Afonso da (Orientador). II.Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-89)

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André Carvalho de Moura

TÍTULO DO TRABALHO: O saber político na imagem: possibilidades analíticas de um

conjunto paradigmático de fotografias em Vitória de Santo Antão.

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Comunicação da

Universidade Federal de Pernambuco,

como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre em Comunicação.

Aprovada em: 25/02/2015

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

Prof. Dr. José Afonso da Silva Júnior

Universidade Federal de Pernambuco

_____________________________________

Prof. Dr. Thiago Soares

Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________

Prof. Dr. Francisco Sá Barreto dos Santos

Universidade Federal de Pernambuco

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À imagem dos fantasmas, que carregam o

fardo da história.

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AGRADECIMENTOS

Queria pular esta etapa. Não consegui, pois sei que iria me sentir endividado.

Acontece que são momentos que sempre denunciam minha inabilidade, não no sentido de

uma ingratidão – já que tenho uma profunda dificuldade de esquecer cada gesto amigo –, mas

por não saber a medida razoável entre o excesso e a brevidade. Tentarei ser somente breve.

Primeiro ao meu orientador. Agora enxergo que minha graduação, minha paixão por

fotografia e meu percurso na pós estão significativamente entranhados ao seu apoio e

orientação. Muito obrigado.

Aos meus professores, da graduação e da pós. Ali encontrei um acolhimento diferente,

dessa coisa que mora nas ideias e nos livros, e que de repente faz você se sentir um pouco

mais edificado. Com alguns tive diálogos permanentes e isso foi importante pra mim.

Aos professores componentes da banca de qualificação e defesa. Foram só algumas

horas de orientação, mas curiosamente um tempo suficiente para me lembrar do significado e

do valor da docência – verificados no esforço da dissertação.

Às instituições que possibilitaram esta pesquisa – o programa, a universidade e o

órgão financiador. Acontece que as estudamos, as criticamos, mas no final sempre lhe exibem

o peso e a razão de sua existência: tudo seria inviável sem elas.

Aos meus amigos – dos outros parágrafos e da minha memória. Se for verdade o que

dizem sobre a profunda relação entre a amizade e a filosofia, então sem os meus também não

seria possível este projeto. Entre a trollagem e o amor, eles partilham comigo a vida.

Apena deixei minha família por último. Tentei agradecer a cada parágrafo, mas só

percebi que jamais saberia como fazê-lo. Por que arriscar nesta tarefa injusta? O que eu sinto

em relação à minha família – essa “qualquer coisa de gratidão” – toca o indizível.

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“When the president does it that means that it

is not illegal”

Richard Nixon

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RESUMO

Esta dissertação irá tratar de um enunciado político singular, que comporta uma racionalidade

litigiosa e que arrisca escapar ao cômputo dos ordenamentos de poder. Sua capacidade de

atravessar diversas estruturas e unidades permite uma análise a partir de um corpus estético-

fotográfico: um conjunto de fotografias digitais heterogêneas, extraídas contemporaneamente

de Vitória de Santo Antão, mas referentes a uma mesma fórmula pathos chamada Tentações

de Santo Antão – uma alusão à alegoria de Antão Abade, asceta dos primeiros séculos da

cristandade e padroeiro da cidade. A configuração de uma fórmula patética, que encerre essas

imagens variadas, segue o carro daquilo que Giorgio Agamben estabeleceu enquanto método:

arqueologia paradigmática, uma forma de conhecimento nem indutiva e nem dedutiva, mas

analógica, que se move de singularidade a singularidade. O objetivo é elaborar uma

construção metodológica e analítica – a partir da aproximação teórica de autores como Didi-

Huberman, Jacques Rancière, Aby Warburg, Michel Foucault e o próprio Agamben –, que

exponha a dinâmica dos saberes visuais daquele saber político distinto. Assim, esta pesquisa

pretende investigar se as imagens aqui expressas, nos termos de um paradigma visual, podem

produzir reflexões sobre uma ação possível fora dos aparatos do poder, nesta cidade tão

longamente assenhorada por oligarquias. De fato, nos limites de suas temporalidades, o

estatuto lacunar das imagens possibilita ao pesquisador um fecundo lugar de investigação.

Palavras-chave: Arqueologia. Paradigma. Imagem. Fotografia. Político.

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ABSTRACT

This paper will deal with a singular political statement, which includes a litigious rationality

and risks escape the calculation of power order. Its ability to cross various structures and units

allows an analysis from an aesthetic-photographic corpus: a set of heterogeneous digital

photographs, extracted in the contemporaneity of the country city Vitória de Santo Antão in

the State of Pernambuco, Brazil, but also referring to the same pathos formula so called

Temptations of St. Anthony – an allusion the allegory of Anthony the Abbot, ascetic of the

first centuries of Christianity and patron of the city. The set of a pathetic formula, which shuts

down these different images, follows what Giorgio Agamben established as a method:

paradigmatic archeology, a kind of knowledge nor inductive or deductive but analog, which

moves from uniqueness to uniqueness. The goal is to develop a methodological and analytical

construction – from the theoretical approach of authors such as Didi-Huberman, Jacques

Rancière, Aby Warburg, Michel Foucault and Agamben himself – that exposes the dynamics

of a plural visual knowledge of that distinct political statement. Thus, this research aims to

investigate whether the images here expressed in terms of a visual paradigm, can produce

reflections on a possible action out of the apparatuses of power in this city so long oppressive

dominated by landlords oligarchies. In fact, within the limits of its temporalities, the

incomplete status of the images allows to the researcher a fruitful research place.

Keywords: Archeology. Paradigm. Image. Photography. Politic.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1927-1929, prancha 46 (Ninfas) 12

Figura 02 Jheronimus Bosch, As tentações de santo Antão, 1495 23

Figura 03 Time, Person of the year, 2011 43

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................................12

2. CORPO TEÓRICO METODOLÓGICO .......................................................................................15

2.1 Problemática arqueológica .....................................................................................................15

2.2 Rastrear enunciados................................................................................................................18

2.3 Por uma arqueologia paradigmática das imagens ..................................................................21

2.4 Paradigmas visuais .................................................................................................................23

2.5 O problema da iconologia do intervalo ..................................................................................26

3. CORPUS PARADIGMÁTICO ......................................................................................................29

3.1 Pathosformel: Tentações de santo Antão ...............................................................................32

4. I ......................................................................................................................................................47

4.1 Questões do estatuto político e epistemológico das imagens .................................................53

4.2 Considerações epistemológicas ..............................................................................................54

4.3 Experiência do tempo .............................................................................................................58

5. II .....................................................................................................................................................62

5.1 O saber político ......................................................................................................................65

6. III ....................................................................................................................................................70

6.1 Legitimação estética da razão consensual ..............................................................................75

7. IV ....................................................................................................................................................78

7.1 Entre o poder e a vida nua ......................................................................................................83

8. V .....................................................................................................................................................88

8.1 O excesso como dinamizador do político...............................................................................93

8.2 VI ............................................................................................................................................95

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................100

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................103

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1. INTRODUÇÃO

Devemos encontrar em cada pesquisa o prefácio de outro trabalho que jamais será

escrito, uma vez que ficou perdido nas orelhas dos livros, em grifos, em cadernos de

anotações, em documentos digitais e em rascunhos abandonados. Estamos, portanto, sempre

em dívida com aquilo que foi recusado, reduzido ou contornado. Ora, a organização das

possibilidades de escolha – no interior das relações estabelecidas num campo de pesquisa,

numa instituição acadêmica ou numa linha teórica – é muito mais determinante para os

percursos de uma investigação do que uma imposição normativa. Partindo disso, uma ideia de

rigor acadêmico talvez se cumpra não nas determinações de um discurso comprometido com a

verdade, mas no discernimento e posicionamento em relação ao lugar de discurso.

Esta pesquisa define-se, desse modo, e em linhas gerais, num debate centrado em

torno das condições metodológicas e epistemológicas de uma arqueologia – no eixo de

abordagem de autores como Michel Foucault, Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman.

Quer-se uma aproximação teórico-metodológica entre tais pensadores, de modo a construir

um conjunto paradigmático de fotografias que possa refletir um saber singular: o político1.

Trataremos do político aqui, não como aquele acordo racional entre as partes, cujo

diálogo consensual é a sua chave democrática. Ao contrário, trata-se de um enunciado

específico, que comporta uma racionalidade litigiosa, que arrisca sempre escapar ao cômputo

dos ordenamentos de poder e, nessa medida, é ele mesmo portador de uma violência

destituinte. Esse enunciado político, ao modo como será posteriormente articulado entre

Jacques Rancière e Giorgio Agamben, tem a capacidade de atravessar diversas estruturas e

unidades e, por isso mesmo, será analisado a partir de um campo estético-fotográfico.

No entanto, arriscar uma aproximação entre as proposições arqueológicas de Didi-

Huberman e Giorgio Agamben é certamente uma tarefa de fôlego e incerta. Ambos se

aproveitaram do patrimônio filosófico foucaultiano, porém, realizando escolhas e caminhos

completamente distintos. Entretanto, um ponto de encontro entre os dois filósofos se mostrou

frutífero: o paradigmático trabalho de Aby Warburg, Atlas Mnemosyne. Essa proposição

warburguiana de uma historiografia da imagem permitiu-nos refletir sobre as possibilidades

de análise de um conjunto, a partir da construção de uma figura epistemológica que reúna

imagens em torno de um mesmo fenômeno.

1 Devido às várias semânticas que envolvem noção de política, vamos distinguir em itálico sempre que ela

designar uma concepção específica, conforme exploraremos mais tarde, em torno de significados que

legitimem uma ação estética fora dos ordenamentos do poder: ação política, gesto político, saber político, vida

política, etc.

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A obra de Didi-Huberman é extensa a respeito dos métodos warburguianos; já

Agamben dedica à teoria do Atlas o seu livro Ninfas, e algumas páginas de Signatura Rerum.

No entanto, para ambos, cada painel construído por Warburg era um exemplo

epistemologicamente rico, de um fenômeno lacunar e dinâmico produzido pelas imagens.

Mnemosyne era um paradigma – ou um “fenômeno original”, na linguagem de Goethe – que

permitia pesquisar singularidades generalizáveis e agenciar práticas e saberes: não tão distante

da Arché, que não se pudesse alcançá-la, nem tão contemporânea, que não se pudesse fazer

distante. Estariam, enfim, todas as relações, a um só tempo, na superfície do fenômeno.

Apesar da definição de uma sistematização metodológica constar como um dos

principais desafios de investigação, o percurso desses estudos resolveu-se muito mais no eixo

dos campos de pressões que legitimariam uma pesquisa arqueológica da imagem, na

articulação teórica em torno da construção do saber político e na análise das fotografias. A

justificativa disso decorre principalmente de dois pontos: os autores aqui abordados se

ocuparam pouco acerca de uma detalhada sistematização metodológica, e mais a respeito dos

processos analíticos e epistemológicos de suas escolhas; e segundo, foi preciso fôlego na

recuperação teórica de uma arqueologia das imagens e do enunciado político, para tornar bem

fundamentado e legítimo esse gesto acadêmico de se arriscar na construção de um conjunto

paradigmático de fotografias.

Portanto, partimos de uma problemática arqueológica, a saber: as imagens aqui

colocadas podem iluminar, enquanto um conjunto paradigmático de saberes visuais, uma

ação possível fora dos aparatos de poder, nesta cidade tão longamente assenhorada por

grupos oligárquicos bem estabelecidos? A arqueologia aqui está deslocada da epistemologia

até a um regime interno de poder dos enunciados. De modo que, não nos ocuparemos da

origem, mas do ponto de fratura do qual insurge um saber político, as relações que estabelece

com o tempo, a partir de práticas que residem no estatuto plural das fotografias.

É dessa maneira que a mola desta pesquisa não reside na generalidade de uma

hipótese, mas na particularidade generalizável de um paradigma, “cujo objetivo era fazer

inteligíveis aqueles fenômenos cujo parentesco havia escapado ou podia escapar à mirada

histórica” (CASTRO, 2012, pág. 157). O paradigma é ontológico, intenta produzir uma forma

de saber analógica que coloca o geral e o particular na mesma superfície do fenômeno.

Será preciso, então, nomear esse conjunto de fotografias em torno de um mesmo

paradigma. Warburg chamou pathosformel uma fórmula emotiva cujas séries heterogêneas de

imagens do seu Atlas Mnemosyne se reportavam. Essa composição por fórmulas torna

impossível a distinção entre o arquétipo e o fenômeno, entre primariedade e a repetição, de

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modo que cada imagem é original e arcaica. Dessa maneira, fomos compelidos a compor

nossa própria pathosformel sob o signo da alegoria de Antão2: Tentações de Santo Antão.

Trata-se de uma clara referência ao tríptico do pintor holandês Jheronimus Bosch, cuja obra

leva o mesmo nome: um conjunto de painéis que remontam a alegoria de Antão Abade,

arrodeado de elementos que refletem a moral cristã.

Acontece que esse caso exemplar de vida monástica expõe uma dupla semântica: se

por um lado a alegoria de Antão servia a um dispositivo da cristandade, como instrumento

pedagógico, disciplinar e difusor de discursos que cumpriam determinadas funções nos

aparatos de poder – se secularizando e se estabelecendo em várias relações biopolíticas

hodiernas; por outro está a serviço de uma ação fora desses aparelhos. Assim, é por essa

figura que vamos encerrar as construções analíticas do conjunto de imagens: sempre

anunciando, no intervalo entre duas imagens – e entre aquela dupla semântica – um campo de

tensões que possa exibir as implicações de um saber político singular.

A primeira parte deste trabalho, o Corpo teórico metodológico, é composta por uma

proposição teórico-metodológica de uma arqueologia paradigmática das imagens, a partir da

articulação filosófica entre Giorgio Agamben, Didi-Huberman e Aby Warburg. Entretanto,

esses estudos exigiram um recuo ao trabalho de Michel Foucault, autor que definiu os termos

dessa problemática arqueológica que se sucedeu. O capítulo termina com a propositura de

uma ferramenta metodológica mais aplicada, uma iconologia do intervalo, conforme

Agamben sugere sobre a metodologia analítica warburguiana.

A segunda etapa abrange: a elaboração da fórmula pathos e suas implicações na

estruturação oligárquica, política e urbana de Vitória de Santo Antão; as condições

epistemológicas da imagem na produção de saber formal; e a revisão de categorias da

filosofia política tradicional, a partir do enunciado político articulado entre Rancière e

Agamben. A análise propriamente dita das imagens gravitará as construções teóricas

desenvolvidas, dissolvendo-se como um tipo de zona de referência – capítulos breves da

dissertação. Essa determinação ajuda a não perder de vista o nosso objeto, a melhor elucidar

as discussões e análises e a reforçar a ideia teórico-analítica e imagética de um paradigma.

Espera-se testar alguns limiares das pesquisas em fotografia, a contar de uma

proposição metodológica e analítica, na esteira de uma arqueologia paradigmática dos saberes

visuais. No mais, já seria satisfatório colher, ao final do trabalho acadêmico, uma abertura em

direção a outros percursos e possibilidades de investigações.

2 Asceta dos primeiros séculos da cristandade.

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2. CORPO TEÓRICO METODOLÓGICO

2.1 Problemática arqueológica

Não é possível discutir metodologicamente uma arqueologia da imagem, sem pensar

antes algumas das noções básicas formuladas por Michel Foucault. Foi este um intelectual

indócil, por ter proposto, entre outros, uma alternativa inédita de fazer filosofia. Sua obra mais

emblemática, nesse sentido, talvez seja Arqueologia do Saber.

No entanto, propor os estudos de Foucault enquanto possibilidade metodológica é

certamente uma tarefa paradoxal. Pois o discurso, para o autor, é uma relação de poder; e,

portanto, qualquer pretensão de embalsamar ou conferir valor de verdade às suas noções,

necessariamente iria confrontá-lo. Isso acontece de tal maneira, que é preciso ter o cuidado de

não adotar como um valor heurístico a maioria dos conceitos empregados por ele, mas

somente considerando-os momentaneamente e em suas funções conjunturais.

Destarte, o primeiro desafio a ser considerado é a abertura de seus textos. Uma leitura

mais honesta de Arqueologia do Saber, talvez levasse em conta aquilo que tratou Walter

Benjamim em carta a Martin Buber, quando colocou em questão a liberação da linguagem:

Cada efeito salutar, de fato cada efeito não inerentemente devastador que cada

escrita tem, talvez resida no seu (da palavra, da linguagem) mistério. Quantas sejam

as formas por que a linguagem possa se provar efetiva, ela não o será através da

transmissão de conteúdo, mas antes através da abertura de sua pura dignidade e

natureza (BENJAMIM, 1978, pág. 126-127. Tradução nossa).

Assim, quem sabe devêssemos assumir o caráter provisório de suas noções. Em

auxílio a essa empresa, evocamos a leitura esclarecedora de um contemporâneo seu, o filósofo

francês Gilles Deleuze. Este depositou significativa importância ao modo como Foucault

buscou lidar com a concepção filosófica de multiplicidade, no que concerne a preocupação de

não restaurar certo dualismo que oporia o múltiplo ao uno. Deleuze nos alertou com precisão,

que tal “multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é topológica” (DELEUZE, 2005,

pág. 25). Disso poderíamos derivar ao menos duas implicações:

Primeiramente, o caráter não axiomático permite que tais dispersões não precisem

formar sistemas homogêneos, mas atravessar o domínio de diversas estruturas e unidades.

Dessa maneira, Foucault teria apelado a uma teoria geral das multiplicidades, enquanto

maneira de libertar a pesquisa de unidades já formadas: obra, livro, tradição, influência,

desenvolvimento, evolução, mentalidade, espírito, etc. Não é a intenção recusá-las, mas

demonstrar que se tornam conceitos caros quando reivindicam um domínio específico do

tempo, uma continuidade, e, por isso, não devem ser tomados como justificáveis por si.

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O segundo importante efeito seria a negligência teórica de um cogito. Ora, é só

recusando o múltiplo enquanto predicado do um, que se torna imaginável uma indiferença a

uma consciência, sem negar fundamentalmente o estatuto que cabe ao indivíduo, cuja função

se exerce conjunturalmente.

Em um artigo de 1982, The subject and the Power, Foucault, num gesto de revisão de

seu trabalho, declara: “Assim, não é o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de

minha pesquisa” (FOUCAULT, 1995, p. 232). Está presente a ideia, em seus estudos, de que

não somos sujeitos, mas nos tornamos, pois só através das relações de poder é que nós

constituímos um eu. Dessa maneira, não é que o filósofo francês dê importância menor ao

subjetivo, no entanto ele busca criar condições analíticas da constituição do indivíduo. É desse

modo que a arqueologia se instala no interior, ou melhor, na superfície de outra função, diga-

se anônima, que ele resolveu chamar enunciado.

Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade, todo um domínio

encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domínio imenso, mas que se podia

definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham

sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria

de cada um (FOUCAULT, 1987, pág. 30).

Aqui o enunciado talvez deva ser considerado em relação às concepções discutidas em

Análise do Discurso. Dois pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina, André Luiz

Joanilho e Mariângela Peccioli, em um artigo da revista Língua e Instrumentos Linguísticos,

trataram dessa análise do enunciado, partindo justamente de uma crítica à falta de observação

dos comentadores foucaultianos em relação ao seu desejo de descentralização discursiva:

Se partirmos da ideia de que Foucault buscava formas de compreender práticas

discursivas, notar-se-á que os conceitos eram, em sua maior parte, provisórios, isto

é, não tinham valor de verdade ou de chaves mestra, simplesmente serviam como

ferramentas para explorar um determinado assunto num determinado momento da

investigação (JOANILHO, 2012, pág. 2).

Dessa maneira, importava para os pesquisadores compreender tal conceito justamente

no momento em que foi utilizado, o que levaria incondicionalmente a um embate direto com

as formulações das teorias da enunciação e da Análise do Discurso francesa – de onde

Foucault extraiu parcela de seu acervo conceitual. Grande parte das proposições das teorias da

enunciação e da AD não separa o enunciado da sua estrutura linguística, das suas condições

de produção, dos seus contextos históricos e políticos, e particularmente do eu.3 É o sujeito,

nesse sentido, um referente obrigatório. Por sua vez, a Arqueologia do Saber demarcou uma

3 Seria essa a visão presente, por exemplo, nas pesquisas de Pêcheux (1990) e Mazière (2007). O primeiro vê o

sujeito do enunciado no contexto das sociedades capitalistas, enquanto o segundo propõe que o sujeito só é

negado, na verdade, pela sua condição de alienação diante do texto.

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clara distância com relação a essas teorias, uma vez que estabelece um domínio nem aquém e

nem além do enunciado.

Pouco importa para o autor que a topologia dos enunciados careça de uma

originalidade fundante, posto que o foco de suas análises “reside, muito antes, no sistema que

torna possível e rege sua formação” (FOUCAULT, 1987, pág. 79). Devemos sopesar as

condições em que um enunciado é proferido, na medida em que sua força não se exerce na

coerção, mas na organização das possibilidades de escolha. Portanto, a arché, de arqueologia,

tenta não situar o enunciado cronologicamente, mas numa força que se forja a partir de

campos de pressão que operam na história.

Para Foucault, em primeiro lugar, o enunciado deve ser tomado como plenamente

histórico e isto quer dizer que deve estar ligado não às especificidades temporais

típicas do conhecimento histórico, mas às suas regras de formação. Um enunciado

não atravessa os séculos e é usado conforme a época, ele é inventado em cada época

(JOANILHO, 2012, pág. 5).

Por conseguinte, a liberação das continuidades não condiciona os enunciados a um

tempo histórico, mas agencia diversas temporalidades. Do mesmo modo, o saber nunca se

isola, pois na singularidade de sua aparição, ele estabelece relação com outros enunciados que

é a condição de sua própria existência.

De certa maneira, sempre que praticamos uma investigação de um regime com

temporalidades múltiplas, temos que nos confrontar com essa heterogeneidade constitutiva

implícita no próprio problema de investigação: a eficácia histórica de um acontecimento está

ligada a uma distinção entre o que motivou a permanência de um dado fenômeno e o que

deixou de permanecer.

Giorgio Agamben precisa melhor tal paradoxo, propondo o seguinte problema: “A que

retrocede o investigador que se mede com o problema da crítica da tradição e do cânone?”

(AGAMBEN, 2010, pág. 120. Tradução nossa). O núcleo central da questão é, portanto: o que

ocupa o lugar da origem e do sujeito? Para Agamben, a arqueologia pode ser compreendida

nos termos de uma matriz paradigmática – discutiremos melhor depois – situada numa relação

tal qual a oposição psicanalítica freudiana.4 Dessa maneira, coloca a investigação como um

tipo de operação muito próxima da regressão, que busca recuperar o ponto no qual se

produziu a dicotomia entre consciente e inconsciente:

A regressão arqueológica é, pois, elusiva; não tende, como em Freud, a restabelecer

um estado precedente, mas a decompô-lo, a desloca-lo e, em última análise, cerca-lo,

para remontar-se não a seus conteúdos, mas às modalidades, às circunstâncias e aos

momentos da cisão que, ao removê-los, os constituíram como origem. Neste sentido,

esta é o exato revés do eterno retorno: não quer repetir o passado para consentir o

4 Para Agamben, foi Enzo Melandri quem melhor elucidou essa particular natureza do passado, situado na

relação entre a arqueologia e a regressão.

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que foi e transformar o “assim foi” em um “assim quis que fosse”. Quer ao contrário

deixa-lo ir, livrar-se dele, para acessar, mais além ou mais aquém dele, o que não foi

nunca, o que não quis nunca. Só neste ponto o passado não vivido revela-se pelo que

era: contemporâneo do presente, e deste modo torna-se pela primeira vez acessível,

apresenta-se como “fonte”. Por isso a contemporaneidade, a co-presença do próprio

presente, enquanto implica a experiência de algo não vivido e a recordação de um

esquecimento, é rara e difícil; por isso a arqueologia, que se remonta mais aquém da

recordação e do esquecimento, é a única via de acesso ao presente. (AGAMBEN,

2010, pág. 139. Tradução nossa).

Uma recuperação, portanto, do reprimido histórico, que remonta campos de tensões

até alcançar o ponto de fissão do fenômeno em questão, não um retorno a uma origem como

tal, mas ao que fez daquela emergência um ponto de partida. Ora, nosso modo de representar

o passado é de alguma maneira, organizado e estruturado a partir dessa mesma fissão:

Neste caso, isto se expressa na tendência de representarmos o que está mais aquém

ou mais além da dicotomia como um estado feliz, uma sorte da idade de ouro livre

de repressões, perfeitamente consciente e dona de si. Pelo contrário, mais aquém e

mais além da clivagem, no diluir-se das categorias que determinavam sua

representação, não há outra coisa que a imprevista e luminosa abertura da

emergência, o revelar-se do presente como o que não temos podido viver nem

pensar. (AGAMBEN, 2010, pág. 134-135. Tradução nossa).

O investigador deve, pois, medir-se com a tradição, mas só para desconstruir seus

paradigmas, suas técnicas e suas práticas – que regulam as formas de transmissão, como

também condicionam o acesso as fontes e determinam o estatuto do sujeito. Portanto, há sim

uma aproximação com unidades completamente formadas – como política. Mas o objetivo é

que elas só sejam assumidas inicialmente, e por tempo necessário para que seja possível um

posicionamento diante dos efeitos de sua superfície discursiva – admitindo tais elementos

como funções exercidas no conjunto.

Enfim, para que a multiplicidade insinuada no enunciado possa ser tomada como

objeto, é preciso distinção e delimitação: somos forçados a partir de proposições específicas,

que são selecionadas a cargo de uma ausência de referente, em função do que exercem num

conjunto. O enunciado não pode ser confundido com a produção das singularidades que

supõe, mas a partir de como elas, num conjunto, se comportam de acordo com suas regras de

aparecimento. Conforme insinuou o próprio Deleuze: Arqueologia não é outra senão um

“apelo a uma teoria geral das produções” (DELEUZE, 2005, pág. 24).

2.2 Rastrear enunciados

Pode-se dizer que o interesse de Foucault dirige-se a um problema de regime político

do saber, acerca do que governa os enunciados e do modo como estes governam uns aos

outros. Portanto, um deslocamento da epistemologia para a política, pois a arqueologia não

tem a constituição de uma ciência em sentido próprio, mas a de um regime interno de poder.

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Vamos nos deter com mais detalhes à noção de enunciado elencada por Foucault. Os

enunciados aqui avaliados não se reduzem ao discurso, aos signos semióticos, às frases e as

proposições. Eles funcionam, na verdade, como uma função a que compete atravessar

heterogêneas estruturas tanto no plano dos signos quanto dos objetos; é ele que permite a

existência e a atualização dos conjuntos de signos.

Há uma grande dificuldade em definir uma função enunciativa, principalmente devido

à impossibilidade de identificá-la a uma relação lógica, gramatical ou sintática. Por isso,

Foucault se dirige para os próprios feitos que designam a linguagem, ponderando o conjunto

de regras lógicas e gramaticais de comunicação, bem como o sujeito que às profere, mas

considerando-os a partir de seus regimes internos de poder: as práticas discursivas.

Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não

podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula

uma ideia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser

acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito

falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas,

históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada

época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as

condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1987, pág. 136).

Temos que ter em conta, todavia, essa insistência de Foucault em localizar os

enunciados dentro de um estatuto de funções. Significa que, mais que abordar a linguagem e

ao que ela remete, devemos sopesar as condições de sua própria existência. Acontece que

podemos conceber frases e proposições quanto quisermos, mas quanto ao que realmente é

possível ser dito, num dado momento, “deve-se a que uma frase nega, impede, contradiz ou

recalca outras frases” (DELEUZE, 2005, pág. 14).

É preciso assinalar, antes de qualquer coisa, esse efeito de raridade que rege os

enunciados. Pois nem tudo pode ser dito em qualquer lugar e em qualquer instante, já que a

regularidade com que insurgem os enunciados depende das condições do que é possível ser

visto e falado nos desígnios de uma economia dos saberes.

Foucault é forçado a partir, nesse sentido, de materialidades discursivas, como

palavras, frases e proposições, porém, organizando-as primeiramente em um corpus

condizente com o problema da multiplicidade. Uma vez determinado o corpus, pode-se enfim

definir de que modo a linguagem elabora e adere ao recorte de análise considerado e que

modifica de acordo com o problema colocado.

Apenas quando se configura um procedimento de regularidade que permita ao

enunciado inscrever-se na memória é que a materialização do seu reaparecimento se torna

possível em outras estruturas e enunciações. O acúmulo de tais processos deve-se, portanto, à

própria lei de raridade e dispersão implicadas:

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Os enunciados não são palavras, frases ou proposições, mas formações que apenas

se destacam de seu corpus quando os sujeitos da frase, os objetos da proposição, os

significados das palavras mudam de natureza, tomando lugar no “diz-se”,

distribuindo-se, dispersando-se na espessura da linguagem. Segundo um paradoxo

constante em Foucault, a linguagem só se agrega a um corpus para ser um meio de

distribuição ou de dispersão de enunciados, a regra de uma “família” naturalmente

dispersada (DELEUZE, 2005, pág. 29).

Cabe ao corpus acolher as palavras e os enunciados, mas é à ideia de arquivo que

Foucault confere um papel particular, enquanto sistema geral de formação e transformação

dos enunciados. É a esse conceito que o filósofo deposita o papel de fazer surgir as

multiplicidades, que proliferam nos “fragmentos, regiões e níveis”, definindo o sistema de

funcionamento das “enunciabilidades”.

No entanto, não é possível descrever o arquivo em sua totalidade, pois ele não está no

nível dos documentos, das massas de textos, ou das performances verbais. Apesar disso, e por

conta da raridade com que os enunciados são positivamente proferidos, é possível demarcar

seus limites e suas possibilidades, no momento de seu exercício, sem que para isso realizemos

um profundo recuo cronológico.

A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo

próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que

cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que,

fora de nós, nos delimita. (FOUCAULT, 1987, pág. 150-151).

Poderíamos dizer, dessa maneira, que a investigação arqueológica descreve as práticas

discursivas na estrutura do arquivo, muito mais do que num corpus de análise, pois: “ele é o

que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito

forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras

contemporâneas já estão extremamente pálidas” (FOUCAULT, 1987, pág. 149). A descrição

das práticas discursivas, no escopo do arquivo, espera identificar, descrever e analisar as raras

modificações no elemento histórico.

É importante dizer que estamos falando de uma dimensão apriorística da história, que

domina os enunciados e sua dispersão, que expõe a realidade daquilo que é efetivamente dito,

e que: “dá conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou verdade, mas uma

história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho”

(FOUCAULT, 1987, pág. 146). Estamos tratando, portanto, de uma análise das positividades.

Positividade é o termo empregado por Foucault para pensar a relação entre os

indivíduos e o elemento histórico – noção possivelmente extraída das leituras de Jean

Hyppolite, que, por sua vez, identificou no conceito um elemento chave para a compreensão

do pensamento hegeliano. O filósofo italiano Giorgio Agamben afirmará que Foucault tomará

o conceito emprestado, mas não para empregá-lo no mesmo sentido que Hegel, mas antes

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para “investigar os modos concretos em que as positividades (ou os dispositivos) agem nas

relações, nos mecanismos e nos „jogos‟ de poder” (AGAMBEN, 2009, pág. 33). Assim,

positividade não é um termo particular, que se refere a essa ou aquela tecnologia de poder,

mas cumpre a função de um dispositivo:

[...] não simplesmente esta ou aquela medida de segurança, esta ou aquela tecnologia

de poder, e nem mesmo uma maioria obtida por abstração: antes, como dizia na

entrevista de 1977, “a rede (le réseau) que se estabelece entre esses elementos”.

(AGAMBEN, 2009, pág. 33-34).

Sendo assim, o trabalho de realizar aquilo que Deleuze insistia, enquanto necessidade

de polir a “inscrição simples do que é dito” (DELEUZE, 2005, pág. 27), é propriamente uma

análise da modificação e formação dessas positividades: “analisar positividades é mostrar

segundo que regras uma prática discursiva pode formar grupos de objetos, conjuntos de

enunciações, jogos de conceitos, séries de escolhas teórica” (FOUCAULT, 1987, pág. 205).

Enfim, o governo político dos enunciados se daria nesse a priori histórico, na estrutura do

arquivo e na análise dos saberes positivos.

2.3 Por uma arqueologia paradigmática das imagens

Vamos nos ocupar agora do trabalho metodológico de Giorgio Agamben, enquanto

chave para pensarmos a possibilidade de uma análise de práticas dos saberes visuais, de que

trata essa pesquisa. A teoria arqueológica de Foucault foi capital para chegarmos até este

ponto, pois nos deslocaremos para um método muito semelhante ao seu, mas não exatamente

coincidente: arqueologia paradigmática.

O filósofo italiano propõe que Foucault interessava-se pela existência positiva dos

enunciados, mas também de “figuras”, independentes de uma referência ao sujeito: “é certo

que, no livro, parece interessar-se fundamentalmente no que permite constituir, apesar de

tudo, contextos e conjuntos, na existência positiva de „figuras‟ e de „séries‟” (AGAMBEN,

2010, pág. 20. Tradução nossa). E precisa, citando Foucault:

Quando no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia,

pretende fazer valer (mesmo sem consegui-lo) normas de verificação e de coerência

e o fato de que exerce, em relação ao saber, uma função dominante (modelo, crítica

ou verificação), diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de

epistemologização. Quando a figura epistemológica, assim delineada, obedece a um

certo número de critérios formais, quando seus enunciados não respondem somente

a regras arqueológicas de formação, mas, além disso, a certas leis de construção das

proposições, diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade. (FOUCAULT,

1987, pág. 211).

O filósofo francês estaria deslocando o enfoque dos critérios que possibilitam a

constituição de uma ciência formal, para o próprio conjunto de enunciados e de figuras. Nesse

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aspecto, temos que pôr em conta a própria noção de episteme, colocada aqui como o

“conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão

lugar a figuras epistemológicas, a ciências e eventualmente aos sistemas formalizados.”

(FOUCAULT, 1987, pág. 217).

Grifemos “práticas que dão lugar a figuras...”, pois neste ponto o autor tenta encontrar

no método foucaultiano o seu gesto mais característico: um modelo epistemológico bastante

singular, que comporta uma capacidade dupla: não somente enquanto um exemplo “que

impõe a constituição de uma ciência normal, mas também [...] que permite reunir enunciados

e práticas discursivas em um novo conjunto inteligível e em um novo contexto problemático”

(AGAMBEN, 2010, pág. 24. Tradução nossa).

O autor pondera que os fenômenos históricos abordados por Foucault são tratados

como esses modelos peculiares: o panóptico, o cuidado de si, etc., são basicamente figuras

epistemológicas, que Agamben resolveu acolher pela noção de paradigma. Em relação a isso,

Edgardo Castro5, da Universidad Nacional de San Martín, nos fornece uma síntese precisa:

O homo sacer ou o mulçumano, o estado de exceção ou o campo de concentração

não são “hipóteses” explicativas que buscam reduzir a modernidade “a uma causa ou

uma origem histórica”, mas “paradigmas, cujo objetivo era fazer inteligível aqueles

fenômenos cujo parentesco havia escapado ou podia escapar à mirada histórica.

(CASTRO, 2012, pág. 157).

O interesse de Foucault realmente se desloca da epistemologia para o governo

anônimo dos enunciados. Mas o faz, sugere Agamben, a partir desses conjuntos onde se

articulam as práticas discursivas. Paradigma, designado aí, significa rigorosamente

“exemplo”6. Mas não de uma maneira linear e simples, pois o exemplo é excluído do caso

normal, justamente por ser capaz de pertencer à normalidade e por mostrar a pertinência de

seu novo uso. Exemplificar supõe que sua nomeação primeira é desativada para dar lugar a

outro significado e servir de modelo.

É preciso destacar que Agamben propõe constituir uma espécie de terceira via, “entre

a fenomenologia e a filosofia transcendental” (CASTRO, 2012, pág. 152), diante das

dicotomias que estruturam nossa cultura. Pensar por meio dessas matrizes exemplares é, pois,

uma maneira de aceder ao presente, escapando à antinomia entre a particularidade e a

universalidade – que insiste em parcela do pensamento ocidental. O método arqueológico

paradigmático, portanto, “é uma forma de conhecimento nem indutiva nem dedutiva, mas

analógica, que se move da singularidade à singularidade.” (AGAMBEN, 2010, pág. 156.

5 Dr. Edgardo Castro é especialista em teoria agambeniana e autor do livro Introdução a Giorgio Agamben.

6 Agamben demonstra no livro A comunidade que vem, que o significado grego de exemplo é para-deigma: o

que se mostra ao lado.

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Tradução nossa). Dessa maneira, o paradigma deveria perturbar a lógica de uma simples

condução metafórica do seu significado, para se aproximar mais de um tipo de alegoria:

Não se trata aqui e um significante que a miúdo vem a designar fenômenos

heterogêneos em virtude de uma mesma estrutura semântica. Mais parecido à

alegoria que à metáfora, o paradigma é um caso singular que desloca do contexto do

que forma parte somente na medida em que, exibindo sua própria singularidade,

torna inteligível um novo conjunto, cuja homogeneidade ele mesmo deve constituir

(AGAMBEN, 2010, pág. 23. Tradução nossa).

Não se trata de querer tomar essas construções alegóricas como plenas, contudo, é

justamente ao adotá-las como um tipo de analogia, que elas podem lançar luz sobre o

conjunto de problemas a que nos debruçamos. Este é parte do nosso desafio, é preciso dizer,

pois ao escolhermos o nosso conjunto de fotografias, esperamos um tipo de efeito específico:

que não exponha totalmente ou esgote o problema político e estético ao qual nos dedicamos,

mas que, ao serem expressas em um conjunto, sejam capazes de exibir questões que não

seriam possíveis de elucidar de outra maneira.

Torna-se ainda mais problemático, para este fim, termos que deslocar tais demandas

do método agambeniano para o interior de fenômenos visuais, sobretudo manifestos por

fotografias. Importa ainda que tais figuras epistemológicas nos forneçam um rico instrumental

para a análise dos saberes visuais – assumindo que imagens não são simplesmente uma visão

transcrita materialmente num espaço, mas são gestos, perfeitamente atravessáveis pela

positividade dos discursos.

Em Signatura Rerum, esse autor italiano sublinhou na história da filosofia, algumas

problematizações acerca do paradigma-exemplo, realizadas por pensadores como Aristóteles,

Kant, Victor Goldschmidt – ao ler Platão – e Aby Warburg. Eis que neste último, foi apontada

uma possibilidade metodológica de estudarmos o paradigma em seus regimes visuais.

2.4 Paradigmas visuais

Em Arqueologia do Saber, no capítulo Ciência e Saber, surge um raro momento no

livro, em que Foucault abre espaço para a possibilidade objetiva de uma prática discursiva em

torno dos saberes visuais. Nessa perspectiva, deveríamos considerar se seus elementos –

profundidade, cor, luz, proporções, volumes, contornos – já não foram, em sua época,

enunciados e tornados conceitos em uma prática discursiva. E mais, seria necessário precisar

se os saberes decorrentes de tal prática não teriam sido incluídos em algum tipo de teoria,

formas de ensino, receitas, processos, técnicas ou no próprio gesto do “autor”.

Seria preciso mostrar que, em pelo menos uma de suas dimensões, ela é uma prática

discursiva que toma corpo em técnicas e em efeitos. Assim descrita, a pintura não é

uma simples visão que se deveria, em seguida, transcrever na materialidade do

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espaço. Não é mais um gesto nu cujas significações mudas e indefinidamente vazias

deveriam ser liberadas por interpretações ulteriores. É inteiramente atravessada –

independente dos conhecimentos científicos e dos temas filosóficos – pela

positividade de um saber. (FOUCAULT, 1987, pág. 220)

Trata-se de uma leitura que se distingue claramente de uma análise iconográfica – que

tem seu foco, geralmente, na reunião de dados sobre um objeto, informações acerca de seu

autor e suas técnicas, e como esses elementos deram origem a determinada imagem, num

espaço-tempo específico. Contudo, não é a esse tipo de análise foucaultiana que nos

dirigiremos, pois nos aproximaremos muito mais daquilo que Giorgio Agamben considerou

quando fez coincidir o seu método arqueológico paradigmático com a possibilidade de uma

análise dos saberes visuais: o emblemático trabalho de Aby Warburg, Atlas Mnemosyne.

Em 1764, quando o historiador da arte alemão Johann Winckelmann publicou sua obra

prima História da Arte Antiga, ele equiparou a arte clássica a uma musa partindo em um

navio. Nesta metáfora, dirá o historiador francês Didi-Huberman, ele deixava bastante claro

que a historiografia só poderia ser realizada enquanto “trabalho de luto [...] e uma evocação

sem esperança da coisa perdida” (DIDI-HUBERMAN, 2013, pág. 17). Sua obra centrava-se

numa perspectiva idealista, que deveria rejeitar certa dimensão pathos, emoção, do saber.

Um século e meio mais tarde, outro historiador alemão, Aby Warburg, propõe uma

reformulação das condições de historiografia moderna. No trabalho A imagem Sobrevivente,

Didi-Huberman dedicou particular interesse à maneira como Warburg propôs uma abertura da

história das artes, seus campos, paradoxos e problemas. De modo que o historiador buscava

recontar as condições de produção de uma imagem, não através de seu registro iconográfico e

cronológico, mas a partir de arquivos marginalizados: notificações de pagamentos, livros de

contabilidade, testamentos, etc., investindo na recuperação de vozes inauditas.

Para Didi-Huberman, o gesto historiográfico de Warburg residia na investigação do

recalcado histórico das formas imagéticas, que tornava complexo o contínuo cronológico,

reconhecendo multiplicidades que não sobreviviam aos seus concorrentes. Mas talvez o seu

trabalho mais alegórico no sentido que discutimos, tenha sido o famoso Atlas Mnemosyne: um

conjunto de 79 painéis, cada um composto por séries heterogêneas de imagens – cópias de

obras de arte, manuscritos, fotografias, etc.

Um modo sem dúvida errado de ler o painel consistiria em ver nele algo assim como

um repertório iconográfico, de onde se indaga a origem e a história do tema

iconográfico [...]. Se trataria, então, de localizar as imagens singulares na medida do

possível em ordem cronológica, seguindo a provável relação genética que, ligando-

as entre si, poderia finalmente permitir alcançar o arquétipo, a “fórmula pathos” da

qual todas derivam. Uma leitura apenas mais atenta do painel mostra que nenhuma

das imagens é o original, assim como nenhuma das imagens é simplesmente uma

cópia ou uma repetição. (AGAMBEN, 2010, pág. 37-38. Tradução nossa)

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Pathosformel, ou fórmula pathos, significa algo como uma fórmula emotiva: noção

que ele utilizava enquanto temática para alcunhar seus painéis. Essa composição por fórmulas

colocava em equilíbrio as imagens pesquisadas por Warburg, de maneira que nenhuma das

gravuras era uma cópia ou uma repetição. Eram, por assim dizer, constituintes de sua própria

arché: “Pathosformeln de Warburg são híbridos de arquétipo e fenômeno, de primariedade e

repetição” (AGAMBEN, 2010, pág. 38. Tradução nossa). Representam, pois, verdadeiros

paradigmas de indecidibilidade entre o arcaico e o contemporâneo, que fazem das imagens

exemplos de um fenômeno anacronicamente original: cada fórmula pathos é paradigma das

imagens singulares e, por sua vez, cada imagem é paradigma da pathosformel.

Fig. 1. Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1927-1929, prancha 46 (Ninfas).

Um fenômeno imagético pode ser assim considerado original, quando da sua

capacidade de superar essa dicotomia entre a generalidade e a particularidade, e de sua

disposição em ser um exemplo. Didi-Huberman concorda com Agamben, quando coloca que

a ideia de um fenômeno originário é exatamente o que Goethe propunha como Urphanomen:

“onde tudo pode ser visto na mesma superfície: a manifestação e a sua lei, o fenômeno e a sua

origem” (DIDI-HUBERMAN, 2013, pág. 136). É decididamente um paradigma-exemplo,

pois ainda que não alcance a generalidade de uma hipótese, ou de uma lei, o Urphänomen é:

[...] sem dúvida, cognoscível; mais ainda, no fenômeno singular, é o último

elemento cognoscível, sua capacidade de constituir-se em paradigma. Por isso um

célebre dictum goethiano afirma que não é necessário buscar mais além dos

fenômenos: como paradigmas, “eles são a doutrina” (AGAMBEN, 2010, pág. 40.

Tradução nossa).

A forma pathos não se encontra nas obras de arte, nem no autor e nem no historiador,

pois estes coincidem na superfície das imagens que o Atlas registra. É, pois, o próprio

conjunto de práticas discursivas envolto no gesto da imagem, e da composição dos painéis,

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que o investigador deve apreender e conhecer para ser capaz de operar reflexões na tradição

da memória histórica ocidental.

Dali que Warburg, com uma terminologia paracientífica mais próxima na realidade

da magia que da ciência, se refere as Pathosformelns como a “diogramas

desconectados” (abgeschnürte Dynamogramme) que voltam a adquirir em cada

oportunidade sua eficácia no encontro com o artista (ou com o estudioso) [...] a

ciência sem nome que o mesmo não conseguiu fundar é algo assim como uma

superação e uma Aufhebung da magia através de seu próprio instrumental: neste

sentido arqueológico (AGAMBEN, 2010, pág. 76. Tradução nossa).

O Urphanomen de Goethe, ou o Pathosformeln em Warburg, são, verdadeiramente,

esses conjuntos que, em sua topologia enunciativa, fornecem um perfeito equilíbrio entre o

uno e o múltiplo, nem além e nem aquém do fenômeno. É abordando o arquivo de análise

enquanto figuras epistemológicas paradigmáticas, que pretendemos elucidar as fotografias

desta pesquisa; buscando encontrar um ponto original, conforme colocou Deleuze, em que

ciência e poesia sejam igualmente poder.

2.5 O problema da iconologia do intervalo

Contudo, na esteira do método agambeniano – de configurar um conjunto específico

que gravite práticas, saberes e visualidades singulares – logo nos exclama a tarefa de utilizar

uma ferramenta metodológica mais aplicada, pois nos deparamos com um problema analítico:

como olhar, descrever e interpretar esse conjunto de imagens? Questão que é ainda mais

confusa, caso ponhamos em conta que o próprio Warburg não pôde nem denominar

satisfatoriamente o seu modelo.

Na angústia de recuperar os traços fundamentais do trabalho de Aby Warburg, o

filósofo italiano coloca em um ensaio sobre essa ciência sem nome, que a “tentativa mais

importante que foi feita [...] para nomear essa ciência é certamente a que Panofsky elaborou

no âmbito de suas pesquisas, nomeando „iconologia‟” (AGAMBEN, 2009, pág. 140). Mas

ressalva que em qualquer observação sumária, percebe-se que a análise iconológica discutida

por ambos é diferente: a noção de símbolo em Warburg é mais alargada em seu círculo

hermenêutico, incorporando saberes como filologia, etnologia, história e biologia.

A forma menos infiel de caracterizar sua “ciência sem nome” seria talvez inseri-la

no projeto de uma futura “antropologia da cultura ocidental”, para a qual

convergirão a filologia, a etnologia, a história e a biologia, com vistas a uma

“iconologia do intervalo”: o Zwischenraum, em que trabalha sem cessar o tormento

simbólico da memória social. (AGAMBEN, 2009, pág. 140).

Portanto, trata de uma iconologia, mas de um caráter intervalar, cujos preceitos

poderemos tentar entrever num ensaio de Agamben, chamado Ninfas – que também dá nome

à prancha 46 do Atlas Mnemosyne. O filósofo italiano nos lembra de que as pesquisas de

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Warburg são contemporâneas ao surgimento do cinema, mencionando que as fotografias

possuem uma dimensão que anima suas formas. Entretanto, não versa sobre tal movimento a

partir de uma ordem técnica ou estética, mas enquanto portador de memória histórica.

A proximidade entre as pesquisas warburguianas e o nascimento do cinema ganha,

nessa perspectiva, um novo sentido. Em ambos os casos se trata de colher um

potencial cinético que já está presente na imagem – fotograma isolado ou

Pathosformel mnésica – e que tem relação com o que Warburg definia com o termo

Nacheleben, vida póstuma (ou sobrevivência). (AGAMBEN, 2012, pág. 37)

Essa vida póstuma das imagens não é totalmente inanimada, mas tem sua vitalidade

restituída quando notada sua temporalidade. O que nos recorda as teses benjaminianas sobre a

história, uma vez que essa operação de transformar uma imagem em movimento é uma

maneira de transmitir sua memória ao presente. Um movimento dialético, assim sendo, uma

vez que ao remeter à atualidade, as imagens apresentam o seu índice histórico.

Essa dinâmica dialética, na teoria benjaminiana, é apresentada no gesto de sua

paralisação. É como se a vitalidade das imagens não se apresentasse apenas na imobilidade e

na retomada do movimento, mas no intervalo que as tencionam: “Onde o pensamento se

detém repentinamente numa constelação saturada de tensões, ele confere à mesma um choque

através do qual se cristaliza como mônada.” (BENJAMIM in LOWY, 2005, pág.130). Bem

ali no vazio semântico de um sentido e outro, a imagem dialética é atingida por um

procedimento analógico, que expõe a sua tensão.

É aí que devemos capturar o movimento das imagens, procurando descrever o seu

vazio semântico, de modo a iluminar o campo de tensões apresentado por elas. Essa é

certamente uma das primeiras tarefas interpretativas e descritivas. A outra nos conduz a

pensar o alargamento hermenêutico da noção de símbolo em Aby, em grande parte

influenciado pelos ensaios do filósofo alemão Friedrich Theodor Vishcer.

Vischer denomina vorbehaltende, suspensivo, esse estado intermediário, no qual o

observador não acredita mais na força mágico-religiosa das imagens e, todavia,

permanece ligado a elas, mantendo-as suspensas entre o ícone eficaz e o signo

puramente conceitual. (AGAMBEN, 2012, pág. 46)

Trata-se aqui de outra centralidade ambígua, mas dessa vez ligada à memória

histórica, onde o encontro das imagens acontece nesse lugar entre “a obscuridade da

consciência mítico-religiosa” e a clareza da razão. O pesquisador confrontaria as imagens e

restituiria sua vitalidade, naquele cruzamento entre tradições culturais diferentes.

A terceira operação reside na imaginação, e não na razão, enquanto lugar “vazio que

se abre entre a sensação e o pensamento” (AGAMBEN, 2012, pág. 59-60). Essa ação

circunscreve um espaço em que ainda não nos debruçamos intelectualmente, e, por isso,

imaginá-lo torna-o possível ao pensamento. Algo muito próximo do que Foucault mencionou

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– em razão dos procedimentos de similitude no pensamento medieval –, no seu livro As

Palavras e as Coisas, ao considerar que a analogia era um campo universal de aplicação: “Por

ela, todas as figuras do mundo podem se aproximar” (FOUCAULT, 2000, pág. 30). 7

Daqui [...] surge o vertiginoso multiplicar-se das distinções na psicologia medieval:

virtude sensível, virtude imaginativa, memorial, intelecto material, o iniciado, etc. A

imaginação circunscreve um espaço em que não pensamos ainda, no qual o

pensamento se torna possível somente por meio de uma impossibilidade de pensar.

(AGAMBEN, 2012, pág. 50)

A fórmula pathos adquire diversos significados de acordo com as imagens que são

traduzidas, mas sempre em torno de uma mesma paixão. É necessário encontrar no intervalo

entre uma e outra o seu vazio semântico, o cruzamento entre suas tradições e imaginar suas

possibilidades, de modo a dar ao pensamento o alcance dos limites dos campos de tensões

implicados. Nossa operação interpretativa e descritiva se dirigirá a esses tropos, buscando a

dinâmica de seus enunciados num mesmo conjunto paradigmático. Enfim, três procedimentos

bastante distintos das três camadas de significação de Panofsky:

À primeira, a do “conteúdo natural ou primário”, corresponde a descrição pré-

iconográfica; à segunda, a do “conteúdo secundário ou convencional”, constituindo

“o mundo das imagens, das histórias e das alegorias”, corresponde a análise

iconográfica. A terceira camada, a mais profunda, é a da “significação intrínseca ou

conteúdo, constituindo o mundo dos valores simbólicos”. (AGAMBEN, 2009,

pág.140)

No mais, faz-se necessário também, para efeito de atender aos aspectos formais

exigidos nas pesquisas strictu sensu, realizaremos uma breve identificação iconográfica, de

modo a situar o leitor no contexto cronológico das fotografias. Esse levantamento será feito

pontualmente, na medida em que formos derivando o horizonte de multiplicidades que pode

produzir cada imagem, a partir de seu conjunto. Então aí esperaremos encontrar no

movimento impresso no tema iconográfico, a agitação da memória histórica e a “observação

do céu” – que é a “graça e maldição do homem”.

7 Giorgio Agamben dirá que a imaginação atinge seu limiar crítico no pensamento filosófico Averróis.

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3. CORPUS PARADIGMÁTICO

Apesar da definição de uma sistematização metodológica constar como um dos

principais desafios de investigação, o percurso destes estudos resolveu-se muito mais no eixo

dos campos de pressões que legitimariam uma pesquisa arqueológica da imagem, na

articulação teórica em torno da construção do saber político e na análise das fotografias.

Partimos, portanto, de uma problemática específica: as imagens aqui colocadas podem

iluminar, enquanto um conjunto paradigmático de saberes visuais, uma ação possível fora

dos aparatos de poder, nesta cidade tão longamente assenhorada por grupos oligárquicos

bem estabelecidos?

Talvez agora tenhamos condições de propor nosso próprio corpo de pesquisa,

seguindo o modelo que indicamos até aqui. Nessa medida, abordaremos o nosso conjugado de

fotografias menos à luz do que o próprio Warburg entendeu a respeito das imagens na arte, e

mais sobre o que pretendia Agamben ao acolher as pesquisas desse historiador para lançar

reflexões sobre seu próprio método de investigação.

Selecionamos um conjunto de fotografias digitais heterogêneas de Vitória de Santo

Antão, mas referentes a uma mesma fórmula pathos, que resolvemos chamar de Tentações de

santo Antão. Trata-se de uma clara referência ao tríptico de Jheronimus Bosch8: um conjunto

de painéis que remontam a alegoria de Antão Abade, asceta dos primeiros séculos da

cristandade, arrodeado por grupos e elementos que refletem aspectos da moral cristã. Nomear

assim nossa pathosformel nos parece uma tarefa arriscada para o propósito da pesquisa, mas

não deliberada, conforme veremos com mais detalhes.

A vida exemplar do asceta foi portadora, diríamos, de uma dupla semântica. Por um

lado guardou certo dispositivo9 ideológico que servia à instituição da cristandade, capaz de

conduzir discursos, práticas e sujeitos a dois polos opostos: entre uma vida normatizada,

arrebanhada pela igreja, com seus hábitos, dogmas e costumes – cujo aparato viria a se

modernizar com os aparatos de biopoder10

; e outra vida excluída da instância citadina, do

patronato, mas sem a pena de expulsão, apenas de exclusão, colocando o homem à margem,

mas também à vista da comunidade, para servir de exemplo aos incautos.

8 Pintor holandês do século XV. O tal tríptico encontra-se no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa,

Portugal. 9 A noção de dispositivo em Agamben é mais alargada do que em Foucault, e é essa perspectiva que utilizaremos

aqui: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,

modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”

(AGAMBEN, 2009, pág. 40) 10

Especificaremos o conceito de biopoder no texto Entre o poder e a vida nua. É uma noção utilizada para

designar práticas disciplinares e de governo, cujas relações se aplicam diretamente à vida do homem e da

população. Já biopolítica – que surgirá eventualmente – designa práticas de biopoder.

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Por outro lado, o modelo ascético poderia tocar também aquilo que Agamben

desdobrou ao mencionar que o monasticismo dos primeiros séculos, “talvez seja o primeiro

lugar em que a própria vida foi apresentada como uma arte” (AGAMBEN, 2014, pág. 44).

Acha-se aqui a vida, enquanto ação humana, no seu gesto verdadeiramente político.

Antão aqui é tentado, portanto, de duas maneiras: a primeira, conforme o tríptico de

Jheronimus Bosch – a serviço de uma moral cristã posteriormente secularizada11

no mundo

ocidental –, conduz o homem de um polo a outro em certo dispositivo de arrebanho-

marginalização; e a segunda, é a tentação de um gesto humano subtraído do aparelho jurídico.

Como quer a iconologia do intervalo, aquela ciência sem nome warburguiana, vamos realizar

uma interpretação analógica, a partir do sentido interrompido entre essas duas semânticas. E

bem aí, buscaremos fazer florescer esses vestígios de imagens da cidade de Vitória, para que

enxerguemos a sobrevivência de seu sentido político.

Faríamos uma leitura incorreta se procurássemos no conjugado de fotografias uma

espécie de imagem de onde derivariam as outras, pois não há uma foto original e outras

copiadas. Pretendemos dar aqui um contorno indefinido entre a originalidade e repetição, já

que a matéria do fantasma que se revela é constituída de tempo e memória, e uma vez em

conjunto, podemos testemunhar sua potência cinética, carregada de tensões. “Cada fotografia

é o original, cada imagem constitui a arché; é, nesse sentido, arcaica” (AGAMBEN, 2010

pág. 38. Tradução nossa).

Sendo assim, cada fotografia está relacionada com o tema que dá nome ao grupo, de

modo que as tentações de santo Antão não são arcaicas e nem contemporânea – apesar das

imagens serem datadas de 2010 a 2014 –, mas um paradigma, que coincide com o todo, mas

também com cada registro – não residindo simplesmente nem no autor e nem na obra, mas na

superfície do fenômeno político e imagético em discussão.

Esse agrupamento deve reproduzir efeitos semelhantes às unidades de painéis

tematizadas por Aby Warburg em seu Atlas Mnemosyne, mas partindo de suas próprias

particularidades: por carregar multiplicidades próprias, imbricadas ao processo de construção

histórica urbana de Vitória de Santo Antão; por encerrar, em suas próprias possibilidades

epistemológicas reflexões sobre a condição da imagem na produção de saber formal; e de

alguma maneira, por ser atravessado por semelhantes estruturas estéticas e de biopoder que

11

A noção de secularização cumpre aquilo que Agamben insinuou como “uma forma de remoção que mantém

intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Secularização política de conceitos

teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia

celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder” (AGAMBEN, 2007, pág. 60-61).

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condicionaram a insurgência de manifestações no país e mundo afora – primavera Árabe,

Occupy Wall Street, jornadas de junho, etc. Eis nosso corpus paradigmático de imagens, que

de singularidade a singularidade nos faz assistir, na superfície do mesmo fenômeno, a

qualidade cinética de um gesto político singular.

Referências iconográficas

Procedência

Fotografias digitais produzidas em JPEG, ambientadas na cidade de

Vitória de Santo Antão, dentro de um contexto de manifestações populares

ocorridas entre 2010 e 2014.

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3.1 Pathosformel: Tentações de santo Antão

O eixo que norteia a elaboração de nossa própria fórmula pathos, na esteira da

articulação teórica que se seguiu até então, nos conduz a uma breve passagem sobre algumas

noções teológicas do primeiro século. Em seu projeto Homo Sacer, Agamben entendeu que a

genealogia teológica da economia e do governo poderia iluminar estruturas atuais da vida

social12

. Por nossa parte, fomos levados a crer que o exemplo do mais famoso asceta dos

primeiros séculos da cristandade, Antão, constitui uma figura patética para pensarmos o

conjunto das fotografias extraídas deste município.

Já foi dito que tal vida monástica expõe uma dupla semântica: se por um lado a

alegoria de Antão servia a um dispositivo da cristandade – que se seculariza e se estabelece

em várias relações de dominação hodiernas; por outro está a serviço de uma ação fora desses

aparelhos. As fotografias aqui reunidas tentam captar resíduos hodiernos desse gesto

subtraído do maquinário político-jurídico. Mas antes de nos atermos a essa dinâmica nas

fotografias, que tenta escapar dos aparatos de biopoder, precisamos compreender as duas

semânticas implicadas nessa imagem alegórica de Antão.

Em um artigo publicado em um simpósio sobre poder local e nacional no século XIX,

o historiador brasileiro José Murilo de Carvalho alerta que o “importante em todo debate não

é discutir se existiu ou se existe dominação [...] é detectar a natureza da dominação”

(CARVALHO, 1998, pág. 147-148). Sua angústia era pontuar algumas, entre as inúmeras,

visões macrossociais acerca do desenvolvimento histórico do Brasil, apontando as diferenças

conceituais entre coronelismo, mandonismo, clientelismo, etc.

Faz enorme diferença se ela procede de um movimento centrado na dinâmica do

conflito de classes gerado na sociedade de mercado que surgiu da transformação do

feudalismo na moderna sociedade industrial, via contratualismo, representação de

interesses, partidos políticos, liberalismo político; ou se ela se funda na expansão

lenta do poder do Estado que aos poucos penetra na sociedade e engloba as classes

via patrimonialismo, clientelismo, coronelismo, populismo, corporativismo.

(CARVALHO, 1998, pág. 148).

Não queremos excluir tais teses – tendo em vista que decorrem de outros campos de

abordagem –, mas dar uma mínima contribuição ao debate, pois nossas angústias se movem

na direção de outra instância: a natureza de uma dominação originária. Desejamos fixar que

em todo aquele acervo conceitual – patronato, coronelismo, mandonismo –, que procura

examinar o sistema pelo qual as relações de poder se desenvolvem, há vestígios dessa

dimensão mais primitiva – que fundamenta parte dos estudos sobre biopoder, como veremos

mais tarde. Precisamos desenhar já aqui alguns dos seus traços sumários para que possamos

12

Como mostra em seu livro Altíssima Pobreza.

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perceber importantes aspectos dos serviços litúrgicos dos primeiros séculos de Vitória, e

como eles demandam práticas e saberes relacionados à própria alegoria de Antão.

Esse poder originário remonta uma vida pré-social, cujos atributos podemos assistir na

figura do bandido e do fora-da-lei, em sua condição limite: “Aquilo que deveria permanecer

no inconsciente coletivo como um híbrido monstro entre humano e ferino, dividido entre a

selva e a cidade – lobisomem – é, portanto, a origem da figura daquele que foi banido da

comunidade” (AGAMBEN, 2007, pág.112).

Giorgio Agamben se ocupa desses fragmentos da vida primitiva para revisar algumas

categorias da filosofia política. De modo que, quando Thomas Hobbes funda a soberania no

“lobo do homem”, o pensador italiano abrange que devemos compreender o “estado de

natureza” num limiar que constitui e habita a sociedade moderna. Destarte, a dominação

soberana não seria fundada num contrato social, mas num estatuto particular que força a

animalização de qualquer súdito no interior da própria comunidade: “o homem lobo do

homem, habita estavelmente na cidade.” (AGAMBEN, 2007, pág. 113).

O estado de natureza dentro do Estado Moderno teria, na verdade, os contornos de um

bando à revelia do poder soberano. A configuração originária dessa dominação primeira

remete a essa aporia, onde quem foi colocado em bando está a mercê de quem o abandona, ou

seja, tornado bandido por intermédio de seu abandono.

Tanto na Grécia como em Roma, as testemunhas mais antigas mostram que mais

original do que a oposição entre direito e pena é a condição “não qualificável nem

como o exercício de um direito nem como situação penal” [...] de quem parte para o

exílio em consequência de um homicídio cometido ou de quem perde a cidadania

porque torna-se cidadão de um civitas foederata que goza do ius exilii.

(AGAMBEN, 2007, pág. 116).

Esse animal banido é a exata figura de um homem sacro, na ambiguidade de que esta

noção tem de comportar “a impunidade da matança e a exclusão do sacrifício” (AGAMBEN,

2007, pág. 89). Ora, estamos lidando com uma esfera da dominação que mais do que excluir o

homem das leis divinas e mundanas, expõe o animal preso no bando a uma violência

desmedida. Agamben o nomeou Homo Sacer, em menção a essa figura que remonta ao direito

romano arcaico, onde pela primeira vez a sacralidade liga-se à vida humana:

A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano

como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário,

em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável

exposição na relação de abandono (AGAMBEN, 2007, pág. 91).

Vestígios dessa dimensão mais primitiva de bando – não seria exagerado fixar –

estariam presentes em outras relações de poder, como no caso emblemático dos regimes

patronais – implicados na alegoria do asceta Antão. Podemos recuperar no modelo do

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patronatus, existente desde antes da fundação de Roma, uma espécie de acordo de fidelidade

entre alguém que se sujeitava à obediência de um nobre rico e poderoso, e em troca era

beneficiado pela tutela do patronus. Trata-se de um sistema assentado na relação proteção-

sujeição – muito parecido com aquela entre o amo e o escravo liberto – cuja motivação

ocorria por diversas razões: sobrevivência, inclusão na vida citadina, fuga de guerras etc.

O sistema patronal se torna notadamente mais complexo com o desenvolvimento de

Roma, de modo que na época imperial alcança importância no escopo das relações políticas –

entre outras coisas, por revestir o patrono de uma auctoritas para atuar publicamente. Neste

sentido, a professora Renata Venturini13

, da Universidade Estadual de Maringá, traça um

paralelo entre o patronato e a relação imperador-cidadão: “De acordo com a auctoritas, o

imperador era o patrono da Itália e exercia a tutela sobre uma imensa quantidade de

indivíduos [...]. Ele era o pater patriae.” (VENTURINI, 2001, pág. 216). Uma provocação

curiosamente semelhante à que Agamben atribuiu àquela ordem originária do poder:

E quando, em uma fonte tardia, lemos que Bruto, mandando à morte os seus filhos,

“havia adotado em seu lugar o povo romano”, é um mesmo poder de morte, que,

através da imagem da adoção, se transfere agora sobre o povo, restituindo o seu

originário, sinistro significado ao epíteto hagiográfico de “pai da pátria”, reservado

em todos os tempos aos chefes investidos no poder soberano (AGAMBEN, 2007,

pág. 96).

O patronatus, desse modo, não era somente uma estrutura de poder, “mas também um

sistema para a reprodução do poder” (VENTURINI, 2001, pág. 221). A noção desse conceito

é utilizada para compreender vários modelos de organização sociopolítica no medievo, mas

também diversas práticas do Estado Moderno. Inclusive no Brasil há um grande acervo de

autores14

– não cabe aqui aprofundar – que discutem uma forma de poder institucionalizada

daquele tipo tradicional de dominação patronal, por vezes chamada patrimonialismo: uma

forma mais flexível que o patriarcalismo, cujo poder público é assimilado como um

patrimônio de governo do soberano.

Com estas estruturas em horizonte, agora podemos nos deter aos primeiros séculos da

cristandade, onde aquela primeira semântica de Antão se insinua. De modo que recorremos

aos trabalhos do historiador francês Jacques Le Goff, 15

para iluminar aspectos importantes do

período medieval.

13

Especialista em História Antiga, com ênfase específica nas temáticas de principado romano, instituições

políticas, patronato e poder imperial. 14

Por exemplo, Os donos do poder, de Raimundo Faoro, discute a formação do patronato político brasileiro, de

D. João I até Getúlio Vargas. 15

Historiador francês que era especialista em Idade Média, reconhecido, em parte, por certa renovação na

pesquisa histórica.

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No texto O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval, Le Goff dedica algumas

páginas à categoria dos excluídos no medievo. Em virtude de explicar as bases ideológicas da

marginalidade no período, asseverou que grande parcela da força da cristandade residia na

capacidade de estabelecer um clima de insegurança material e mental, difundindo suspeitas a

todos que ameaçassem o sagrado equilíbrio social.

Semelhante insegurança gera um modo de pensar maniqueísta que anula todos os

matizes, todos os cambiantes, e condena as posições intermédias, acabando por

engendrar um autoritarismo que sacraliza as “autoridades” (auctoritates) e a um

sentido hierárquico que de toda tentativa para escapar às situações fixadas pelo

nascimento faz um pecado contra a ordem querida por Deus. (LE GOFF, 2002, pág.

132. Tradução nossa).

Assim, os casos de imprudência, ou quem sabe má sorte, poderiam resvalar o

indivíduo para a marginalidade, mendicância ou crime – trata-se de uma sociedade em que

operava certo dispositivo de produção ideológica de criminosos. No entanto, no interior dessa

máquina de contaminação e desconfiança residia uma atitude ambígua de caridade, de um

desejo de manter próximas essas figuras de exclusão, como que para colocar aos olhos da

comunidade os perigos a que se sujeitam os incautos.

A cristandade medieval parece detestá-los e admirá-los ao mesmo tempo, tem medo

deles num misto de atração e espanto. Mantém-nos à distância, mas fixa essa

distância a um nível bastante próximo, de modo a poder tê-los ao seu alcance [...]. A

sociedade medieval tem necessidade destes párias postos à margem porque, se bem

são perigosos, são visíveis, porque na virtude dos cuidados que os prodiga, se

assegura tranquilidade de consciência e, mais ainda, porque projeta e fixa neles

magicamente todos os males que afasta de si. (LE GOFF, 2002, pág. 135. Tradução

nossa).

Numa sociedade constantemente ameaçada pela desintegração, as pessoas

angustiavam-se por uma imaginável perda da “liberdade”, uma vez que o medo produzido

pelo aparato ideológico agitava certa obsessão por identidade e pertencimento. Vale salientar

que estamos rastreando elementos de um “bando medieval”, que, conforme Agamben

mencionou, continha características análogas àquela figura originária primitiva.

Os santos, nessa medida, cumpriam o papel dentro do sistema político-religioso, por

ajudar a instituir a confiança e figurar um horizonte de salvação. Acontece, que durante muito

tempo, no período medieval, houve essa crença bastante difundida e consolidada acerca da

existência de espíritos protetores – em parte sobrevivente de uma antiguidade tardia –,

idealizados como demônios, gênios e outras forças que o homem temia. O papel dos

santificados acabou por cumprir também esse tipo de relação: interseção e proteção. Mas já o

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fazia na composição da instituição cristã católica, que em grande medida alargou-se,

estruturando vários dispositivos de clientelismo16

e patronato.

Ao culto de santos e mártires foi atribuída uma função eclesiástica, cuja propagação

era formalizada e centralizada pela instituição religiosa. As homenagens cada vez maiores

possibilitaram a unidade e integração de marginais, camponeses, pobres, mulheres e outros,

bem como a formulação simbológica de dias santos, calendários, procissões, cemitérios,

santuários etc. A difusão de práticas de arrebanho sob a proteção de um santo teve função

singular na construção de igrejas, nos rituais de sepultamento, no patronato de cidades, enfim,

regulando e organizando vários tipos de relações que sobreviveram ao medievo.

Uma das formas mais emblemáticas do ideal de santidade residia na vida dos padres

no deserto, que se tornaram personagens famosos: muito em virtude da propaganda de suas

privações, mortificações, abandono citadino, descuido dos limites da condição humana e

refúgio no consolo de suas orações – que os preservavam da loucura e dos males da alma.

Nesses desertos os demônios eram inevitáveis, já que consistiam num lugar de excelência do

maravilhoso, onde moravam os mais variados tipos de marginais, imaginários ou não:

monstros, errantes, desprezados, mercenários, loucos, pedintes, selvagens, penitentes, doentes,

pobres, hereges e demônios.

Se na moral cristã o simbolismo do deserto é o lugar das tentações, dos embustes, das

angústias e das alucinações; por outro lado, sua mitologia apocalíptica guardava a astúcia de

legitimar também prestigiosos protetores, os santos, pois estes eram capazes de enfrentar

aquelas forças que o homem receia. Sendo assim, o lugar imaginário do inóspito acaba

comportando essa dupla visão: que ombreia monges e marginais, anjos e demônios,

abandonados e citadinos, colocando em um lugar comum tanto aqueles de ofício asceta

quanto os que ameaçavam a comunidade sagrada.

De vez em quando se tem esquecido de estabelecer uma relação entre o meio

desértico e o fenômeno religioso. Se há plantado a questão de se há uma religião do

deserto, se o deserto predispõe mais a uma determinada forma de experiência

religiosa que a outra, e em particular se pensou que o deserto favorecia o misticismo

[...] Mas o deserto – real ou imaginário – desempenha um papel importante nas

grandes religiões euroasiáticas: o judaísmo, o islamismo, o cristianismo. O mais

frequente era que o deserto representara os valores opostos aos da cidade (LE

GOFF, 2002, pág. 31).

Podemos encontrar traços das relações entre o simbolismo do deserto e a moral cristã

em uma antiga compilação de textos hagiográficos, as Vitae Patrum: uma coletânea de

16

Clientelismo não vai ser exatamente um conceito que nos deteremos na pesquisa. Designa, de uma maneira

geral, um tipo de relação política que envolve concessão de benesses públicas – vantagens fiscais, empregos,

apoio partidário e eleitoral etc. Portanto, uma leitura distinta dos conceitos de patronato, coronelismo,

patrimonialismo e mandonismo – embora algumas dessas noções acabem envolvendo relações clientelistas.

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escritos organizada por Rosweyde17

, a respeito desses primeiros monges que exerceram

eremitério em regiões inóspitas. Sabe-se que tais textos falavam da salvação da alma segundo

o evangelho, mas também de aspectos do governo, da vida, dos costumes, dos homens, da

edificação espiritual dos monges, seus preceitos e proibições. Um livro em particular dessa

enciclopédia, escrito por Atanásio18

, é dedicado à vida daquele que talvez tenha sido o maior

exemplo eremita dos primeiros séculos da cristandade: Antão.

A história de Antão Abade – ou Antônio19

– está relacionada aos tormentos com que

foi acometido no deserto, e por isso, foi reconhecido como um dos fundadores da vida

monástica. Por ter passado 85 anos no inabitado, em penitência e oração, seu valimento era

invocado contra pragas, doenças, feras e animais daninhos.

Santo Antão vai ao deserto, vai progressivamente em busca de maior solidão para

poder se enfrentar com todas as incitações que pretendem envolvê-lo em sua

complexidade, estorvando-lhe o caminho à recuperação de sua unidade. É o lugar de

sua luta contra o demônio. À medida, porém, que seu progresso espiritual avança, o

deserto se converte para ele em lugar privilegiado de seu encontro pessoal e místico

com Deus. (ANTANÁSIO, s.d., pág. 9.)

É preciso evidenciar que as hagiografias não são os únicos saberes a respeito desses

ascetas dos primeiros séculos. Também é possível avaliar tais discursos em outros tipos de

textos – como os sermões dos padres –, mas também em representações pictóricas – que nos

desperta particular interesse. Acontece que o culto e consagração desses personagens figuram

estatuetas, vitrais, pinturas e toda sorte de representações iconográficas.

O exemplo que nos interessa, já no contexto do século XVI, é a obra pictórica inatual

de Jheronimus Bosch20

, que buscava a tematização de alegorias fundamentadas para a

educação religiosa, ética e cívica – sem deixar de incluir também aspectos da alquimia, sexo,

monstros, medo e outros elementos que objetivavam a moralização do homem medieval. O

artista baseava-se em matérias que não só deviam refletir certo espírito popular, mas sintetizar

e fixar nas imagens alguns modelos sociais que ajuizassem o domínio daquilo que poderia ou

deveria crer-se em endosso à igreja.

Os elementos simbólicos utilizados por Bosch derivam de técnicas, matrizes e

convenções bem estabelecidas – e em ampla medida institucionalizadas –, cujos limites não

cabe aqui discutir. Mas prestemos rapidamente atenção na alegoria presente em uma de suas

obras mais emblemáticas: As tentações de santo Antão.

17

Heribert Roswyde era um famoso jesuíta hagiógrafo do século XVII e XVIII. 18

Conhecido como Atanásio, este santo foi arcebispo de Alexandria e importante teólogo cristão. 19

Também é conhecido por santo Antão do Egito ou santo Antônio do deserto. 20

Pintor e gravador holandês do século XV e XVI, autor dos trípticos Jardim das delícias, O carro de Feno e

Juízo Final.

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Fig. 2. Jheronimus Bosch, As tentações de santo Antão, 1495. 21

Neste tríptico podemos ver múltiplas ações relacionadas, movimentos de pequenos

grupos independentes, incorporados num repertório quase teatral que nos obriga a contemplar

diversos papéis morais. No painel central, eis que temos santo Antão ajoelhado, inclinado

sobre um batente, enquanto sua mão está em posição de benção: polegar dobrado, dedos

médios e apontador em posição oblíqua, quase vertical, enquanto os demais estão dobrados

em direção à palma da mão. Ao redor do santo, assistimos àquela tensão guardada na alegoria

do asceta, que, diante dos perigos e inseguranças provocados pelos demônios que

assombravam o homem medieval, era capaz de buscar consolo em sua devoção.

Sua simbologia era inevitável na tematização de práticas teológicas, utilizadas no

aprofundamento de certa divisão do imaginário popular: entre um mundo medieval inseguro e

ameaçador, e outro cuja recompensa se escondia nas privações e confronto de tais males.

Assim é que aquela primeira semântica envolvida na figura de Antão – tanto nos discursos

hagiográficos quanto iconográficos – está relacionada à qualidade de um dispositivo a serviço

da instituição político-religiosa, e, portanto, veículo daquele modelo de poder primitivo capaz

de tornar bandidos os indivíduos sujeitos ao abandono. Tal aparelho de arrebanho-abandono

vai secularizar-se, de modo que, ao fixarmos em imagem sua alegoria, podemos melhor

iluminar algumas práticas e saberes dos primeiros anos de serviços litúrgicos em Vitória.

O fato é que o uso de santos para além de sua função religiosa ou milagrosa assumiu

uma difusão maior, cada vez mais caracterizada por aspectos sócio-políticos, já que consistia

numa maneira bem sucedida de organizar cidades e fieis em torno de uma mesma comunidade

afetiva e sentimento de pertença citadina. De modo que a “partir do século XIII, o desejo de

arranjar um patrono aumentou, estendendo-se às comunidades profanas e a mais pequena

21

Localizado no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal.

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cidade ou a mais modesta confraria desejam agora ter um santo patrono próprio.”

(VAUCHEZ in LE GOFF, 1989, pág. 228).

Curiosamente observamos a sobrevivência desse fenômeno na gênese de Vitória, no

século XVII, onde Antão foi acolhido depois como patrono desta cidade cujas fotografias

foram extraídas. O fato é que estamos inclinados a pensar que tal escolha não foi totalmente

deliberada. Pois quando Diogo de Braga, colono ligado à ilha de Santo Antão – principal

arquipélago de Cabo Verde –, fixa-se junto à família numa clareira às margens do rio

Tapacurá, em 1626, ergue para o santo uma capela. O clássico de José Aragão, História de

Vitória de Santo Antão, recolhe notas e documentos que relatam bem esses primórdios.

E a devoção ao santo espalhou-se “naquelas brenhas e matos circunvizinhos”, cujos

moradores, todos os anos, aos 17 de janeiro, lhe faziam uma festa, “com missa e

pregação, para que lhes guardasse e defendesse seus gados e cavalgaduras das onças

suçuaranas” e “as roçarias de farinha e legumes, dos porcos do mato”, segundo o

testemunho, já citado, de cronistas contemporâneos (ARAGÃO, 1977, pág. 55).

A casa de Braga e a capela foram, portanto, as primeiras construções erguidas na

paisagem fisionômica do que mais tarde seria um núcleo urbano. É no mínimo intrigante

como, apesar de separados por mais de um milênio, o culto a Antão foi acolhido pelos

moradores daquela mata desértica. Confiavam ao santo a defesa e o amparo de seus gados –

principal fonte de subsistência naquele período – e outras criações, acreditando que o mesmo

advogava em favor do povoado.

Também é difícil não imaginar uma analogia entre a narrativa do asceta no deserto dos

primeiros séculos da cristandade e o momento de estabelecimento do português naquela mata

inóspita.22

Ora, a relação dos primeiros habitantes com o protetorado do santo não era apenas

formal, de modo que há relato de um conflito entre os citadinos e o exército da Companhia

das Índias – no período da Batalha das Tabocas, em 1645.

Depois que os holandeses entraram em Pernambuco ficou a igreja em desamparo, e

os hereges fizeram a imagem em pedaços; tanto que os viu naquela paragem

brigando com os cristãos católicos, que era a nossa gente, veio ajudar-nos a vencer, e

a significar-nos que estava da nossa parte, e juntamente castigar os desaforos que os

inimigos da Fé fizeram em sua igreja, e a despertar em nós a memória e cuidado de

o servirmos e venerarmos. (CALADO in ARAGÃO, 1977, pág. 20).

Quando o povoamento intensifica-se, e já no século XVIII torna-se uma freguesia,

toma Antão como padroeiro – fato que se segue até os dias atuais. A noção de rebanho surge

na própria estrutura administrativa, uma vez que freguesia concerne uma espécie de paróquia

civil. Em latim, seu significado é paroeciam, algo como “fregueses do pároco”, ou “rebanho,

sob o governo de um pastor” (ARAGÃO, 1977, pág. 49). Ambas as nomenclaturas, freguesia

22

Esse desejo de manter uma relação de patronato especial certamente foi inspirado na Ilha de Santo Antão,

colônia portuguesa em que Diogo de Braga morou, cujos habitantes mantinham práticas católicas.

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e paróquia, são um tipo de sinônimo, cujo significado passou a distinguir-se entre estrutura

civil e estrutura eclesiástica.

No desenho citadino, a capela em homenagem a Antão acaba por servir de matriz

topográfica, onde o organismo urbano arrodeou, tornando-se ponto natural de convergência

dos moradores das regiões circunvizinhas e dos tropeiros sertanejos que atravessavam boiadas

para as feiras semanais de gado – o que constituiu o mais importante movimento econômico

da cidade nesse período. Mas ainda no século XVIII começa a se estabelecer a indústria

sucroalcooleira – cerca de três engenhos e mais de trinta engenhocas – que aos poucos ganha

centralidade econômica na região.

Essa gênese da cultura produtiva municipal, porém, demonstra não conduzir riquezas

para toda a população, que permanece em grande parcela pobre já que não conseguia o

suficiente das feiras semanais. A saúde precária da cidade era, por vezes, diagnosticada a

partir da situação física da capela da Matriz de Santo Antão, de modo que a penúria da

paróquia parecia ser até mais indigna do que outras mazelas do povoado:

[...] Santo Antão da Mata, e na última notou a maior indigência, não havendo meio

algum para celebrar o sacrifício da Missa, porque tudo estava destruído e os

moradores, pela sua pobreza, não lhe podiam acudir com o necessário, [...] e para se

evitar toda demora em matéria tão importante e dar-se a providencia conveniente,

lhe parecia que se devia estabelecer outra forma de prover as igrejas do necessário.

(ARAGÃO, 1977, pág. 40).

Notemos que as providências administrativas, diante dos graves problemas sociais,

dirigiram-se primeiramente às necessidades da capela, antes de qualquer cuidado direto com o

próprio rebanho paroquial. A desqualificação do corpo era notória, se pensarmos que as

relações de patronato, mediadas pela igreja, dirigiam-se muito mais para a gestão das almas. 23

Mas já assistíamos nesse período a difusão de outro fenômeno: a pressão biológica

sobre os destinos da comunidade. As fustigações e moléstias do povoado foram ganhando

contornos mais dramáticos, e sua catalogação, ainda no século XVIII, já parecia ser percebida

como importante noção burocrática para as autoridades daquele núcleo urbano.

A falta de água potável, o que levava a população a servir-se de água poluída [...]; a

carência de esgotos para as águas servidas; a inexistência de fossas higiênicas,

ficando os dejetos humanos depositados à flor da terra, no fundo dos quintais; a

inobservância, por ignorância e displicência, dos mais elementares preceitos de higiene na vida privada e na atividade pública; desnutrição, consequência natural do

pauperismo generalizado.

A varíola, que grassava todos os anos epidemicamente, e outras doenças, sobretudo

afecções gastrointestinais ceifavam preciosas vidas, justificando, tudo isso, a

péssima fama em torno do clima da localidade. Não havia médicos diplomados [...]

23

Tanto que nos termos da escritura de doação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Todos os Negros, ao

doador coube a cautela de entender que o patrimônio era de “utilidade e bem comum para as nossas almas, por

cujas aplicamos dita esmola, e pelas mais necessitadas almas do purgatório” (CONCEIÇÃO in ARAGÃO,

1977, pág. 60).

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Na legislação da época, a arte de curar e a venda e aplicação de drogas eram

disciplinadas por severos preceitos. (ARAGÃO, 1977 , pág. 68-69).

Por processo igual de controle, ainda que precário, também assistíamos a gênese da

formalização da educação e seus conjuntos disciplinares:

Data dessa época a criação de escolas públicas, chamadas “escolas régias”, para

manutenção das quais fora concomitante criado um imposto especial denominado

subsídio literário. [...] O provimento das cadeiras seria por exame; os professores

eram obrigados a remeter anualmente um mapa, dando conta do movimento da aula

e só recebiam o ordenado com um certificado de exercício fornecido, no interior,

pelos presidentes das Câmaras. (ARAGÃO, 1977, pág. 74).

Sendo assim, fomos observando aos poucos o aperfeiçoamento de técnicas agrícolas, a

difusão de um regime de discursos médicos e educacionais, e, principalmente, a importância

crescente do sistema jurídico. Michel Foucault, no final de A vontade de saber, se reporta a

uma nova ética ocidental fundada não na desqualificação do corpo daquela moral ascética,

mas na entrada dos fenômenos da vida no campo das técnicas de poder: “as disciplinas do

corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se

desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (FOUCAULT, 1999, pág. 131). Essas

técnicas de biopoder vão ganhando importância crescente na colônia brasileira, na medida em

que o poder público vai estendendo sua autoridade sobre o território.

É preciso um breve recuo para situar que estamos diante de um fenômeno de

secularização daquela dominação primitiva: aquela vida do bando medieval – que já era

explícita no direito romano arcaico – tem suas implicações nas relações de patronato e

arrebanho da cristandade24

, e no século XIX25

passa a imbricar-se aos poucos na ordem

jurídica brasileira. Entretanto, devido à particularidade do processo histórico nacional, o

estabelecimento desse aparelho jurídico-político depende amplamente da interferência da

Coroa na vida colonial. Ainda assim, trata-se de um fenômeno não muito claro de situar nessa

época, pois a Metrópole portuguesa, e depois a brasileira, não possuía recursos materiais e

humanos para estender seu domínio sobre a terra, prescindindo da força disciplinadora

encarnada nos senhores do lugar: os coronéis, proprietários de engenho.

Vale tentar distinguir aqui dois momentos do coronelismo no Brasil: o primeiro

durante a maior parte do século XVIII e XIX, em que à colônia urgia uma autoridade coerciva

local, principalmente judiciária e policial, da qual os grandes proprietários de terra serão uma

prestigiada figura a que a Coroa recorre; e a partir da Primeira República, trataremos do

24

Lembrando que Agamben se serve de uma teologia para iluminar processos e técnicas de governo hodiernas. 25

Conforme apontam os estudos de Foucault, especialmente na parte final de A vontade de saber.

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coronelismo enquanto fenômeno amplo, que sistematiza e estrutura várias relações de poder, e

cuja função está confusamente imbricada ao aparelho burocrático e jurídico do Estado.

O livro de José Aragão, História da Vitória de Santo Antão, em virtude talvez dos

poucos recursos que dispunha para recontar a história da cidade 26

, se volta primeiramente aos

documentos oficiais e por isso, a ótica burocrática do governo ganha ênfase. De maneira que

recorremos ao clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto27

, para provocar

algumas reflexões sobre o exame do fenômeno do coronelismo.

Os chefes locais eram coroados pela sua posição econômica e social privilegiada, em

ampla medida beneficiados pelo desenvolvimento da produção sucroalcooleira28

. Uma

primeira simbiose entre poder público e privado elevou a jurisdição dos donos de terra: desde

a organização jurídica e litigiosa das rixas populares, incluindo funções policiais, até as

relações de trabalho agenciadas em torno da propriedade rural.

Na manutenção da ordem, na realização de obras públicas, na coleta de recursos

financeiros, num sem-número de problemas da administração, [...] às vezes por

iniciativa espontânea, muitas outras por solicitação das autoridades. A maneira pela

qual a Metrópole alcançou esse resultado consistiu em não lançar os representantes

do poder público contra os senhores locais, mas, ao contrário, em incorporar esses

elementos, que dispunham de prestígio social, ao aparelho administrativo do Estado,

através dos postos de comando das ordenanças (LEAL, 1986, pág. 212).

No Império temos que o ponto máximo dessa relação público-privada foi a instituição

da Guarda Nacional, criada no período regencial. Trata-se do mecanismo patrimonial que,

entre outros, legitimava o controle das populações pelo senhorio local: “Praticamente toda

tarefa coercitiva do Estado no nível local era delegada aos proprietários” (CARVALHO,

1998, pág. 146). Confiava-se à Igreja alguns serviços litúrgicos de registro de nascimento,

casamento, organização eleitoral etc.

E aqui reside um conflito que mais tarde iria exibir-se de maneira contundente. Esses

primeiros coronéis exerciam outro tipo de domínio, melhor iluminado pela noção de

“mandonismo”, enquanto “existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de

poder” (CARVALHO, 1998, pág. 133). Assim, o comando pessoal dos grandes proprietários

sobre a população estava ligado a uma dimensão de poder mais tradicional – que existia pelo

menos desde o início da colonização. É justamente este tipo de dominação que remete mais

diretamente àquela forma mais originária de poder, cujas implicações estamos percorrendo –

de modo que podemos relacionar o antigo “bando medieval” ao colonial “bando do coronel”.

26

E em grande medida por ter outra dimensão de abordagem. 27

Bem como os estudos de José Murilo de Carvalho, conforme já colocado. 28

Computando que no século XVIII Santo Anto – agora na condição de Vila – já possuía importância econômica

na região.

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Mas esse status começa a ganhar contornos mais complexos quando a burocracia

estatal, que agencia aparatos jurídicos e disciplinares, amplia-se e expõe conflitos. Ocorre que

podemos assistir, durante o século XIX, a Metrópole portuguesa – e depois a brasileira –

investir no recalque desses resíduos patrimoniais. Fenômeno que vai desdobrar não o

apagamento das formas daquele mandonismo, mas o seu agenciamento na sistematização de

um coronelismo mais amplo e elaborado – e não menos violento em certo sentido.

A tendência era claramente no sentido de reduzir, até a eliminação, os resíduos

patrimoniais da administração em favor da burocracia do Estado. Inúmeros conflitos

surgidos em função do comportamento das autoridades patrimoniais, como os

delegados e oficiais da Guarda, começaram já no Império a ser resolvidos pelo

recurso a autoridades burocráticas, como os juízes de direito e oficiais da polícia

(CARVALHO, 1998, pág. 147).

A evolução desse conflito pôde ser testemunhada nas terras antoninas. O caso é que

após a autonomia eclesiástica – quando o núcleo habitacional atingiu o status de freguesia –, o

lugar passou a demandar sua emancipação político-administrativa. Aqui a noção de defesa dos

“direitos diante dos poderosos, que enfeudavam a autoridade” (ARAGÃO, 1977, pág. 81), já

começava a se fazer patente. No princípio do século XIX, quando a povoação é erigida à

categoria de vila, o Príncipe regente, no próprio alvará que concedeu tal status, expressa um

desejo de dotar a terra de justiça:

“[...] que pelo aumento da sua população, e meios de subsistência dos seus

habitantes, se faziam merecedores de obterem aquela graduação, e privilégios, do

que resultava aos seus moradores a mais pronta administração da Justiça e maior

segurança interior em se poderem coibir melhor os delitos.” (JOÃO in ARAGÃO,

1977, pág. 86).

Havia um quadro em que a justiça eletiva servia ao domínio de um senhoriato rural,

“cuja influência elegia juízes e vereadores e demais funcionários subordinados às câmaras”

(LEAL, 1986, pág. 186-187). 29

Assim, na medida em que a ordem jurídica se deslocava para

a nomeação régia, a Coroa vai assenhorando parte da governança local. Por isso, em 1833,

quando os órgãos de justiça são implantados na Vila de Santo Antão – Juiz de Direito e de

Paz, criação da Comarca, etc. –, “devem as autoridades judiciárias ter encontrado sérias

dificuldades no estabelecimento de uma nova ordem” (ARAGÃO, 1977, pág. 180).30

29

A título de exemplificação, em meados do século XIX a constituição do Império já estabelecia eleições para o

cargo dos Juízes de Paz, cujas atribuições eram: conciliações, custódias, impedição de rixas, destruição de

quilombos, realização autos de corpo delito, interrogatórios, catalogação de criminosos, vigilância e

conservação das matas, divisão urbana dos quarteirões etc. 30

A título de exemplo, temos a morte de um Juiz municipal em 1835 e no mesmo ano o afastamento de outro a

pedido da câmara. E em 1936, continuava tensa a situação geral, “tendo sido abatido, em emboscada, o Juiz de

Paz do Distrito de Cacimbas, Joaquim porfírio de Albuquerque Uchoa” (ARAGÃO, 1977, pág. 182.)

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Mas esse conflito vai expor sua face mais sangrenta, no final do século XIX – quando

a vila já tinha sido nomeada Cidade da Vitória31

–, no episódio emblemático da Hecatombe 32

.

O Juiz municipal da comarca, Nicolau Rodrigues da Cunha, chefe ostensivo do partido dos

“Liberais Leões” na cidade, amargou derrota para oposição nas eleições para o Senado.

Contudo, no mesmo ano houve a votação para os cargos eletivos de Juiz da Paz e vereadores,

momento em que o grupo derrotado orquestrou uma intervenção no pleito: com transferência

de promotoria pública, nomeação de oficiais “amigos” e encaminhamento de contingente

policial para bloquear a igreja onde ocorreriam as eleições. A sangria foi inevitável:

Apeia-se Dr.. Ambrósio e dirige-se ao Delegado Torreão, exprobrando-lhe o

procedimento ilegal, ao mesmo tempo que o Barão da Escada, montado, discutia

com o Dr. Nicolau. Ouvem-se dois disparos e cai o Barão fulminado, abaixo do seu

cavalo. O Dr. Ambrósio é atingido por dois tiros e, nas costas, com uma punhalada,

sendo retirado do local, nos brações de amigos. Vem a reação desesperada da

multidão procurando apoderar-se da igreja, mas sendo objeto da fuzilaria despejada

das seteiras abertas no templo. [...] Cessado o tiroteio, dezesseis cadáveres jaziam

dentro da matriz e em suas cercanias e dezenas de feridos eram socorridos.

(ARAGÃO, 1983, pág. 300-301).

O caso é que, embora o Juiz municipal estivesse a serviço de seus correligionários

Liberais e Conservadores, o conflito expressou a realidade do enfrentamento entre uma

autoridade jurídica, imbuída de força pública33

, e os tradicionais chefes latifundiários. Mas

podemos extrair outras implicações – que vão fazer-se notórias mais tarde: podemos afirmar

que o aparato jurídico e a força pública, longe de anular o poder privado do senhoriato,

acabaram conformando perversamente as suas forças: os coronéis vão atingir um

desdobramento sistêmico no centro da máquina jurídico-política e burocrática do Estado,

passando a estruturar e organizar inúmeras relações de poder.

Da imagem simplificada do coronel como grande latifundiário isolado em sua

fazenda, senhor absoluto de gentes e coisas, emerge das novas pesquisas um quadro

mais complexo em que coexistem vários tipos de coronéis, desde latifundiários a

comerciantes, médicos e até mesmo padres. O suposto isolamento dos potentados

em seus domínios também é revisto. Alguns estavam diretamente envolvidos no

comércio de exportação [...], quase todos se envolviam na política estadual, alguns

na política federal (CARVALHO, 1998, pág. 133-134)

Nunes Leal data historicamente as circunstâncias que favoreceram esse fenômeno que

ele chama coronelismo, enquanto surgimento na Primeira República de uma articulação entre:

o federalismo – descentralização do Poder – que propiciou a criação do Governo do Estado –

e que por sua vez já não dependia de uma relação de confiança com o Ministério; e o

31

Cuja elevação à categoria de cidade se deu em 1843. 32

Esta denominação já insinua novamente àquela mesma relação de arrebanho guardada na alegoria de Antão,

uma vez que o termo deriva do grego e significa sacrificar 100 reses bovinas para oferecer aos deuses. Mas

também é uma noção empregada, em geral, para designar um acontecimento catastrófico ou de carnificina. 33

Considerando que posteriormente, o grupo governista e o Juiz sofreram processo criminal.

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enfraquecimento econômico dos antigos proprietários rurais. E aqui temos um paradoxo em

que a ascensão política dos coronéis coincide justamente com seu declínio econômico.

Ademais, aquela antiga relação patrimonial privada exercida junto ao poder público

não sofreu o apagamento de suas formas, pois era necessário ao chefe estadual – agora com

amplos poderes – arregimentar oligarquias locais em busca de consolidação, delegando parte

substancial da administração. E os coronéis, por sua vez, hipotecavam seu apoio ao governo –

sobretudo eleitoralmente –, de maneira tal que vão coexistir com um regime político de ampla

base representativa.34

Temos, portanto, um tipo de remoção daquelas forças que comportam,

além de tudo, certo modelo de domínio primitivo; mas que agora se deslocam e se imbricam

ao processo político, eleitoral e democrático do país: “a história do mandonismo confunde-se

com a história da formação da cidadania” (CARVALHO, 1998, pág. 133).

É precisamente esse o traço nefrálgico desse coronel republicano: a base

representativa. Aquele voto, enquanto gesto do devoto medieval, que buscava um patronato

especial com os santos, parece agora ser afirmado por um “rito” mais moderno de devoção: o

voto sufragado. Reside aí a compreensão de que o patronatus, sobrevivente no medievo e no

período colonial brasileiro, conserva-se amplamente nas funções jurídicas e democráticas do

coronelismo no Estado republicano:

A superposição do regime representativo, em base ampla, a essa inadequada

estrutura econômica e social, havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso

contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão

política, vinculou os detentores do poder público, em larga medida, aos condutores

daquele rebanho eleitoral (LEAL, 1986, pág. 253).

Esse sistema vai se estender formalmente pelo menos até 1930, com o fim da Primeira

República, baseando-se na barganha do Poder, sujeição, dependência eleitoral e outros. De

maneira que estamos diante de uma figura investida de uma soberania que encontra simetria

com um rebanho eleitoral cuja dimensão política – na medida em que avança nossa noção de

cidadania – confunde-se com o seu próprio esvaziamento.

Completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais nem

revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos

esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é dele na verdade, que recebe os

únicos favores que sua obscura existência conhece. Em sua situação, seria ilusório

pretender que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a uma vida melhor e

lutasse por ele com independência cívica. (LEAL, 1986, pág. 25)

Portanto, este “novo pária” ou “obscura existência”, é análogo àquela outra figura

obscura do direito romano arcaico: o paradigmático Homo Sacer. Assim a ficção da soberania

34

A depender da federação ou município, essa dimensão do mandonismo vai incidir mais ou menos, podendo a

dinâmica político-econômica da localidade se tornar mais complexa. De tal modo que o debate em torno da

concepção de coronelismo em Leal sofre duras críticas, pois vários autores vão acrescentar elementos nesse

sistema, deslocar suas questões etc.

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popular passou a comportar uma articulação forçosa entre rebanho eleitoral e mandonismo, no

centro da máquina eleitoral coronelista: “O cidadão republicano era o marginal mancomunado

com os políticos; os verdadeiros cidadãos mantinham-se afastados da participação no governo

da cidade e do país.” (CARVALHO, 1987, pág. 89).

Apesar do atual avanço da cidadania, da democracia, do aperfeiçoamento eleitoral, e

outras formas reguladoras da vida, ainda podemos observar, principalmente no interior do

nordeste e especialmente em Vitória, manifestações visíveis desse soberano interiorano.

Queremos dizer que a ampliação da eficácia do sistema jurídico e policial não apagou

totalmente suas forças, se considerarmos a forma como ainda são operadas e centralizadas

várias relações de governo nas mãos de oligarquias: influência na câmara dos vereadores,

nomeações de instituições públicas, domínio de concessões públicas de meios eletrônicos,

alianças com autoridades do judiciário, sujeição dos eleitores a uma relação patronal etc.

Contudo, ainda que seja fundamental destacar a sobrevivência dessa dimensão

coronelista no seio da comunidade vitoriense hodierna,35

por outro lado, temos que

dimensionar outras dinâmicas – implicar outros dispositivos e variados aspectos da nossa

democracia representativa –, conforme discutiremos mais tarde. Mas desde já queremos

reservar a possibilidade de uma ação política36

, no horizonte do séc. XXI, abrigada numa

segunda semântica de Antão, que deseja incessantemente a normatização litúrgica da vida.

A grande tentação dos monges não foi aquela que a pintura do século XV fixou nas

figuras femininas seminuas e nos monstros informes que importunam Antônio em

seu eremitério, mas a vontade de construir a própria vida como uma liturgia integral

e incessante. (AGAMBEN, 2014, pág. 10)

Estamos falando da tentativa de um gesto totalmente desvinculado da esfera do direito,

cujos monges cenobitas – e, portanto, Antão – foram os precursores. Para Agamben essa

forma de vida comum é uma antípoda daquela vida nua da qual tratamos, pois o caso é que,

enquanto a vida desnudada pode ser capturada por um dispositivo de exclusão-inclusiva do

bando soberano, uma vida política se situa fora desse maquinário. Os próximos capítulos vão

dissolver melhor alguns aspectos dessa segunda semântica.

Finalmente, colocamos no cruzamento das tradições de Vitória de Santo Antão essas

duas telas antoninas: uma primeira que é análoga ao tríptico de Jheronimus Bosch, cuja

pintura ensaia figuras marginalizadas que assombram os cidadãos, e que avolumam a

perpetuação de um poder soberano que seculariza suas forças e sujeita o homem a um

35

E a partir disso, há estudos que atualizam hipóteses de um coronelismo eletrônico ou um neocoronelismo. Em

Vitória de Santo Antão, como em outras cidades do interior, esse fenômeno é particularmente evidente. 36

Não do tipo que insurgiu com os movimentos messiânicos e cangaceiros – ou com o movimento das Ligas

Camponesas em Vitória de Santo Antão – que notadamente atingiram o domínio de diversos grupos oprimidos

do país e estavam envoltos em dinâmicas e contextos completamente diferentes.

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dispositivo de arrebanho-abandono; e outra imagem de um Antão sem sobressaltos, pois

conserva os olhos abertos e detém o seu gesto fora desse mesmo aparato, aventurando uma

vida comum. As fotografias extraídas em Vitória tentam recuperar este último vitral.

4. I

REF. Retrato das oligarquias

(Autores desconhecidos. Vitória de Santo Antão – PE, 2012)

Descrição

É clássica a disputa eleitoral entre as duas cores dos grupos políticos locais:

os vermelhos e os amarelos. As fotografias foram produzidas

separadamente, no contexto das referidas campanhas. Ambas foram

realizadas em 2012, no período das eleições municipais para o poder

executivo, fato que é possível datar por conta das chapas formadas.37

Podemos identificar ao menos cinco personalidades distintas nos retratos: à

esquerda, no adesivo vermelho, está José Aglailson – candidato a prefeito –,

sua filha Ana Queirálvares – candidata a Vice – e Eduardo Campos –

naquela altura Governador do Estado; na fotografia direita, no adesivo

amarelo, está o atual prefeito Elias Lira – que venceu aquelas eleições; e

finalmente “coquinho”, um garoto pobre que, é a personalidade mais

“socialmente invisível” dos retratos. 38

É problemático pensar a tradição política e oligárquica da cidade de Vitória de Santo

Antão, sem considerar a herança socioeconômica da indústria sucroalcooleira. A região

conhecida como Zona da Mata Sul faz parte de um contexto histórico de estruturação

produtiva das primeiras lavouras de cana-de-açúcar do país, ainda durante o período colonial.

Ali se formaram oligarquias e grandes proprietários de terra que possuíram forte poder

37

Na primeira fotografia consta o adesivo do ex-prefeito José Aglailson, que novamente aspirava ao cargo, e

mais sua filha, na altura candidata à vice-prefeita – situada no canto direito do adesivo vermelho; a segunda

foto contém ao fundo, por trás do menino, o banner de um candidato que pleiteou o cargo executivo pela

primeira vez no começo da década. 38

Apesar disso, o menino apelidado “coquinho” é conhecido na cidade, tendo inclusive duas páginas no

Facebook que o parodiam.

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econômico e político, conhecidos como senhores de engenho – classe que exerceu grande

influência no lugar, como se sabe.

A agroindústria do açúcar na cidade intensificou-se nas últimas décadas do século

XVIII e só atingiu sua plenitude até meados do século XIX, quando começa a entrar em

declínio – antecipado em Vitória por conta da decadência dos engenhos “banguês”.39

Assenhorar tais empreendimentos não era tarefa simples, de modo que implicava aquisição de

instrumentos agrícolas, gestão de escravos e trabalhadores – carpintaria, oleiros, pedreiros,

ferreiros, purgadores de açúcar, feitores –, manejo de animais, transporte, tudo sem contar a

manutenção das obrigações políticas e familiares. Tanto complicado, que a indústria do

açúcar não marcou tão fortemente o município como em outros lugares do Estado.

Os engenhos vitorienses foram e são, na sua quase totalidade, de pequeno e médio

porte, a maior parte, dos antigos, movidos por animais, poucos pela roda d‟água. A

própria cidade da Vitória nasceu pobre e pobremente cresceu, porque sua população

vivia do pequeno comércio de produtos agrícolas, provindo do campo sua principal

indústria, a aguardente. (ARAGÃO, 1983, pág. 48).

Ainda assim, destacaram-se algumas propriedades e suas respectivas famílias, que

exerceram notável atividade política. Sem querer negligenciar todas as estirpes do período e

seus efeitos, queremos nos deter a um clã específico da região que não teve tanta importância

no século XIX como outras, mas que a sua perpetuação no Poder, em meados do século XX e

depois, incidiu diretamente nos destinos da cidade: o entrecruzamento, entre outros, das

famílias Silva, Queiroz e Álvares – dos engenhos Lagoa Dantas, Canha e outros.

O primeiro prefeito na história de Vitória a perpetuar longamente a família na carreira

política foi o Coronel José Joaquim da Silva – casado com Rosa Amélia Queiroz e Silva 40

–,

prefeito na cidade em 1945 e reeleito em 1951. Seu filho, conhecido por “Nô” Joaquim – José

Joaquim da Silva Filho41

– foi vereador de 1947 até 1951, deputado estadual de 1951 até 1959

e prefeito de Vitória de 1966 até 1969.

Ainda que tenha sido um período significativo de uma mesma família no Poder, o

cenário governamental só começa a ficar mais intrigante a partir do sobrinho e genro de “Nô”:

39

Outros engenhos utilizaram modernos processos de técnicas e cultivo do solo, industrialização da cana,

conseguindo um melhor preço de mercado. O caso é que os banguês não podiam competir com as usinas, já

que seu modo de produção era “artesanal”. 40

Um blog local chegou a tratar da estruturação desse fenômeno, conforme disponível em:

<http://www.blogdopilako.com.br/wp/2014/05/08/de-joaquim-a-joaquim-o-curral-eleitoral-vai-seguindo-em-

frente/>, consultado em 24 de janeiro de 2015. 41

Uma curiosidade da estirpe é a ramificação decorrente da esposa José Joaquim da Silva Filho, a senhora Josefa

Álvares da Silva. Ocorre que, no livro de José Aragão, uma das primeiras menções ao sobrenome Álvares está

relacionada ao episódio da Hecatombe de Vitória, em 1880, quando Cristóvão Álvares dos Prazeres foi listado

entre os principais responsáveis pelo conflito, sendo inclusive processado: “O Tte. Cristóvão Álvares dos

Prazeres homiziou-se na casa do Dr. José Felipe de Souza Leão, presidente do Tribunal, no Recife, mas, tendo

saído para receber curativo em ferimento, foi preso numa farmácia e recolhido à casa de Detenção, donde

conseguiu fugir” (ARAGÃO, 1983, pág. 301).

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o médico Ivo Queiroz Costa – finado irmão do atual deputado estadual Henrique Queiroz.

Entre os políticos do clã foi esta a personalidade que mais perdurou no Poder executivo, com

três mandatos, sendo ainda vereador em 1958 e deputado por duas vezes. Também ficou

bastante conhecido por permitir e incentivar em Vitória a invasão de terras, sem nenhum

plano de urbanização, além de dar o tom das campanhas de “cores” que se sucederam.

O fato é que a partir deste se iniciará a polarização política na cidade, já que foi o

principal responsável por eleger, em 1982, alguém que até então era insignificante

politicamente: Elias Lira. Naquela altura comerciante, viria a se tornar o prefeito com mais

tempo no executivo – quatro mandatos ao todo – iniciando uma ordem de revezamento que se

estenderia por décadas: Ivo de 1963 até 1966, depois de 1978 até 1982; Elias Lira assume de

1983 até 1988, Ivo retorna de 1989 até 1991, e novamente Lira de 1992 até 1996.

Acontece que em 2001, José Aglailson Queirálvares42

, filho de “Nô” Joaquim, assume

a prefeitura por dois mandatos, engendrando a disputa clássica entre o “vermelho” dos

Queirálvares e “amarelo” dos Lira. Zé do Povo, conforme foi alcunhado, foi reeleito em 2004

e abriu precedente para Elias Lira retornar pelo terceiro mandato em 2009. Porém, dessa vez,

o vice-prefeito escolhido pelos “amarelos” foi Henrique Queiroz Filho – sobrinho do finado

Ivo e filho do atual deputado estadual Henrique Queiroz. Assim, temos que Elias Alves de

Lira entra no Poder por intermédio de uma estirpe – pois até 1983 não gozava de prestígio ou

influência política, só conquistando o pleito por conta da influência de Ivo – e retorna

novamente no século XXI aliançado com o mesmo clã, conforme apoio de Henrique Queiroz,

num misto de consórcio e oposição com as ramificações de uma mesma família – fato que se

segue até então, pois a mesma chapa foi reeleita em 2012.

Constam, dessa maneira, 25 anos de uma mesma estirpe à frente do Poder Executivo, e

quase 16 anos de revezamento com um dissidente do mesmo grupo, sem contar as

possibilidades de perpetuação: atualmente, Aglailson Júnior – filho de José Aglailson

Queirálvares e neto de “Nô” Joaquim – é Deputado Estadual, tal qual o seu primo Henrique

Queiroz, que já vai para o décimo mandato. Além do mais, Elias Lira garantiu ao seu filho

Joaquim Lira, nas eleições de 2014, uma confortável posição entre os 10 deputados mais bem

votados do estado. Enfim, são cinco cargos eletivos atualmente ocupados – três deputados,

um prefeito e um vice – por representantes cuja história se imbrica há pelo menos 30 anos,

sem horizonte de consumação.

42

Sua irmã mais jovem, Maria do Socorro, foi casada com o seu primo Ivo Queiroz Costa.

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Essa política de cores, com baixo grau de institucionalização partidária, e elevado

nível de familismo e de patrimonialismo, naturalmente não é exclusividade da cidade – já que

esses fenômenos são verificáveis em muitos lugares do nordeste e do país. Então por que é tão

imperativo nomear essa estirpe, por que tal minúcia se impõe na análise dessa fotografia?

Primeiramente porque nos dá uma pálida noção do quanto é complexa a dinâmica da

reprodução social e a manutenção dessas oligarquias. São títulos que não só assinam a história

da cidade, como também ainda nomeiam suas ruas, prédios públicos, escolas, praças etc.

Sendo assim, as terras antoninas estão embebidas desses nomes e ainda sangram diante das

suas heranças. Mas há outro conjunto de implicações que precisamos mencionar.

Em Profanações, Agamben expressou um desejo difícil de silenciar: uma exigência

singular da fotografia.

Mesmo que a pessoa fotografada fosse hoje completamente esquecida, mesmo que

seu nome fosse apagado para sempre da memória dos homens, mesmo assim, apesar

disso – ou melhor, precisamente por isso – aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu

nome, que não sejam esquecidos (AGAMBEN, 2007, pág. 24).

O caso é que naquele retrato do menino pesa um rosto ainda mais exigente, de uma

vida desnudada, que já nasce esquecida de seu nome. Imagens assim tornam-se mais

problemáticas, porque escondem algo de imemorial – cativado em seu gesto mais ordinário: o

riso melancólico do garoto, confrontado pelos sorrisos personalistas dos materiais de

campanha, carrega o peso da memória das gerações que passaram, ao resumir potências de

uma dominação originária. De modo que não é possível nomear o garoto e fazer justiça a

todas as vítimas que ele carrega, sem enunciar cada um daqueles fantasmas que o assombram.

Portanto, indicar os coronéis, cuja herança ainda colore a camisa desbotada do menino,

cumpre essa tarefa paradoxal de iluminação e assombro, necessária a certa dimensão da

justiça guardada na memória. Algo parecido com aquele epílogo de 100 anos de solidão, de

García Márquez, quando Aureliano começa a redimir e consumar sua família, no fascínio da

decifração dos pergaminhos de Melquíades – que era também a sua própria maldição.

[...] impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto. Então

começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de

gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais

persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os

primeiros indícios do seu ser (MÁRQUEZ, 1967, pág. 285-286)

Assim, atordoado pelo entrecruzamento de diversas temporalidades – que remete tanto

aos antigos coronéis, quanto a estruturas de Poder mais amplas e complexas da esfera

municipal, estadual e federal43

–, o retrato do garoto estadeia a imagem mais pura do homo

43

Lembrando que as fotografias exibem os sorrisos de chefes de Estado – Dilma e Lula –, e do Governo do

Estado – Eduardo Campos.

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sacer: “um indivíduo que, tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente,

mas não pode ser sacrificado aos deuses” (AGAMBEN, 2007, pág. 61). Trata-se da figuração

de um humano despido de cidadania, mas que ainda habita a cidade – e aí reside o seu

compromisso político.

Suas vestes não nos deixam mentir. Aqueles adesivos de campanha, na superfície da

camisa desgastada e no rosto do garoto, lembram as marcas de um imemorial arcano: uma

assinatura de dominação semelhante às antigas marcas dos escravos, das populações

carcerárias, das boiadas, dos prisioneiros do nazismo etc. Entretanto, nos remetem a um tipo

mais moderno de signo, graficamente bem acabado, que expõe a natureza de um rebanho

eleitoral – igualmente sujeito a uma violência arbitrária, mas agora travestida de algum tipo

paliativo de representação democrática.

Assim é sua vida biopolítica nas terras antoninas: ou ele é “vermelho” ou “amarelo”.

Pois poucas ações políticas parecem ser possíveis fora desses campos – ao menos para boa

parcela da população vitoriense. Mas se o retrato exibe uma figura animalizada, onde se

esconde o gesto político nessa fotografia? O que justifica sua escolha enquanto paradigma das

Tentações de Antão?

Ora, seu aceno comum está estruturado em outro lugar: no autor que reside nos limites

das duas imagens.44

Na verdade, numa função autor – conforme os estudos arqueológicos de

Foucault, a que Agamben se dedicou –, pois se trata de uma presença estranha, caracterizada

pela circulação e funcionamento de discursos e saberes que animam a fotografia.

Há, por conseguinte, alguém que, mesmo continuando anônimo e sem rosto, proferiu

o enunciado, alguém sem o qual a tese, que nega a importância de quem fala, não

teria podido ser formulada. O mesmo gesto que nega qualquer relevância à

identidade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade (AGAMBEN,

2007, pág. 49)

Mas queremos fixar que a dimensão política destes retratos não se deu exatamente na

autoria de seu registro, ou na denúncia da pobreza e dos itens eleitorais dos coronéis

explícitos nas fotografias. A intervenção ocorreu fora desses dispositivos, num gesto

contingencial: a justaposição profana dos retratos. A essa técnica composicional, que deu

movimento às imagens, podemos chamar montagem, pois comporta uma condição de

possibilidade de repetição e paragem.

Assim os dois retratos do menino primeiro recuperam uma ideia cíclica, de restituição

daquilo que se tornou novamente possível, repetível.

44

De fato, não foi possível encontrar o autor de nenhuma das fotos, como também não conseguimos descobrir

quem justapôs as duas imagens. Elas são um tipo de meme, que foi bastante circulado nas redes sociais.

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A memória restitui ao passado a sua possibilidade. É o sentido desta experiência

teológica que Benjamin via na memória, quando dizia que a recordação faz do

inacabado um acabado, e do acabado um inacabado. A memória é, por assim dizer, o

órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o

possível em real. (AGAMBEN, 1998, pág. 70. Tradução nossa)

É que a memória não nos devolve aquilo que foi, mas somente outra coisa. Quando o

garoto exibe os dois polos, vermelho e amarelo, de um conflito de estirpes senhoriais que se

confrontam por décadas, ele acaba projetando “a potência e a possibilidade em direção ao que

é por definição impossível, em direção ao passado” (AGAMBEN, 1998, pág. 70. Tradução

nossa). Trata-se da experiência do princípio do “tudo é possível”.

Por outro lado, a técnica composicional exibe a qualidade cinética de uma paragem,

pois no limite material e visual dos dois retratos, percebemos uma suspensão dos seus

sentidos, das suas representações e do seu ritmo. Aí é que a cesura entre as duas imagens

expõe a cíclica narrativa dessas terras antoninas, subtraídas de seu fluxo contínuo e

transcendental.45

É esta montagem – entre a repetição e a paragem – um gesto político que articula os

retratos e o elemento histórico das Tentações de santo Antão. Contudo, não falamos aqui de

uma história qualquer, mas de uma história escatológica, “em que alguma coisa deve ser

consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se à

cronologia, sem sair para um exterior” (AGAMBEN, 1998, pág. 67-68. Tradução nossa).

Assim temos um duplo nas fotografias: tanto a imagem daqueles dispositivos

seculares, que deslocam suas forças imemoriais para o regime discursivo destes retratos – sem

deixar de conservá-las intactas46

; quanto a de um caráter político, que implica a neutralização

dessas mesmas forças, a partir do toque profano da montagem dos retratos dessa figura

abandonada, marcada pelo esquecimento e pelos desmandos do lugar. Eis que sua imagem

sacra foi liberada, pelo autor anônimo da montagem, de sua vida e restituída a um novo uso

ordinário: uma ação fora do rebanho eleitoral, que expõe a conservação de uma narrativa

polarizada e cíclica nas terras antoninas.

45

Agamben disse que em filosofia, depois de Kant, “chama-se às condições de possibilidade de alguma coisa os

transcendentais.” (AGAMBEN, 1998, pág. 69. Tradução nossa) 46

O método paradigmático agambeniano permite uma compreensão ontológica dos fenômenos, a partir do

rastreamento do momento de fratura e insurgência de determinados enunciados. Por isso é que essa noção de

secularização compreende um deslocamento e conservação de suas forças: na instituição da cristandade

medieval, no mandonismo da colonização brasileira, no sistema coronelista que se estendeu no período da

Primeira República e, possivelmente, no regime representativo e na máquina eleitoral de várias cidades

interioranas – como Vitória de Santo Antão.

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4.1 Questões do estatuto político e epistemológico das imagens

Na revista Les Temps Moderns, publicada no ano de 2001, dois artigos elaborados

pelo psicanalista Gérard Wajcman e pela professora Elisabeth Pagnoux, da Universidade de

Paris, criticavam, em tom diagnóstico, certo amor generalizado pela representação em

imagens na modernidade. Eles localizaram parte da motivação dessa sintomática

sobrevalorização numa falta de distanciamento entre passado e presente, o qual acabaria

permitindo a construção de investigações cientificamente ilegítimas. Tais críticas foram

dirigidas em especial ao filósofo, historiador e crítico de arte francês Georges Didi-

Huberman, por suas reflexões em torno da reconstituição histórica realizada a partir de quatro

películas47

produzidas pelos próprios prisioneiros em Auschwitz no ano de 1944.

Tudo se passa como se ele estivesse preso numa espécie de captação hipnótica das

imagens que não lhe permitisse refletir senão em termos de imagens, de

semelhantes. Ficamos estupefatos com esse valor, com esse poder conferido à

imagem quase divina do homem (WAJCMAN in DIDI-HUBERMAN, 2012, pág.

74).

De um ponto de vista clínico, caracterizaram as investigações do historiador como

uma denegação fetichista que conduz o indivíduo perverso “a expor e a adorar, como relíquias

do falo em falta, sapatos, meias ou cuecas” (WAJCMAN in DIDI-HUBERMAN, 2012, pág.

74). Não menos sutil foi Pagnoux ao acusá-lo de uma “imprecisão narrativa que confunde

tempos, impõe sentidos, inventa um conteúdo e se obstina em colmatar o nada, em vez de o

afrontar” (PAGNOUX in DIDI-HUBERMAN, 2012, pág. 76). Ou seja, anunciava-se a

impotência das imagens ao pensar o real: “uma fotografia não nos ensina nada mais para além

daquilo que já sabemos.” (PAGNOUX in DIDI-HUBERMAN, 2012, pág. 78).

É emblemático como Wajcman repete a tese que não há imagens da Shoah48

. Ou seja,

inexiste continuidade entre a angústia de extrair imagens de Auschwitz e a tentativa de se

fazer história a partir delas. Sendo assim, para eles, as quatro fotografias apresentam um fato

histórico, mas de modo algum possibilitam inferências acerca da verdade em torno do

holocausto – revoga-se qualquer olhar sobre as imagens em sua legítima condição de produzir

conhecimento histórico. Portanto, não haver imagens da Shoah significa que não há nada mais

para ver.

O cerne da discussão, desse modo, é certo temor diante do perigo político e ético de

uma fé nas imagens. Didi-Huberman sai em defesa de seu posicionamento enquanto

47

Produzidas por membro do Sonderkommando. Estão localizadas no Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau. 48

Nome hebraico para o genocídio dos judeus durante a segunda guerra mundial.

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historiador, na segunda parte do livro Imagens apesar de tudo, partindo do pressuposto de que

a exceção daquelas imagens sobreviventes faça repensar a regra:

Tal como a radicalidade do crime nazi nos obriga a repensar o direito e a

antropologia (como mostrou Hannah Arendt); tal como a enormidade desta história

nos obriga a repensar a narrativa, a memória e a escrita em geral (como o

mostraram, cada um de sua forma, Primo Levi ou Paul Celan); também o

„inimaginável‟ de Auschwitz nos obriga, não a eliminar, mas antes a repensar a

imagem, de cada vez que uma imagem de Auschwitz, ainda que lacunar, surge, de

repente, concretamente, sob os nossos olhos (DIDI-HUBERMAN, 2012, pág. 85).

O crítico de artes francês coloca que Wajcman e Pagnoux precisam de uma via de

verdade que não possa ser revista. E por isso, assenta seus argumentos na compreensão de que

o real é manifesto apenas em resíduos parciais, cabendo à imagem, dessa maneira, um lugar

fundamental de reflexão do passado. Destarte, a uma imagem absoluta ele opõe uma imagem

lacunar, condizente com o papel necessário dos vestígios visuais para a história.

Quer dizer, é justamente diante de uma tradição que justifica o impensável, que o

inimaginável precisa ser imaginado, uma vez que se contrapõe àquela expressão científica que

não reconhece exceções, assinalando a tirania do irrepresentável. O título do livro Imagens

apesar de tudo é, dessa forma, a legitimação do estatuto epistêmico da imagem, a propósito

de sua histórica recusa no pensamento ocidental.

Para além da questão do ver e do saber surge, portanto, nestas linhas, a questão da

imagem e da verdade. A minha análise das quatro fotografias de Auschwitz supunha,

com efeito, que se pusesse em jogo uma certa relação – lacunar, „em fragmentos‟,

tão preciosa quanto frágil, tão evidente quanto difícil de analisar – da imagem à

verdade. Nesta perspectiva, as imagens de Agosto de 1944 são ao mesmo tempo

imagens da Shoah em ato – ainda que extremamente parciais, como são em geral as

imagens – e um fato de resistência histórica em que a imagem está em jogo. (DIDI-

HUBERMAN, 2012, pág. 99)

Esse debate impõe uma questão: é legítimo pensar a imagem, em sua materialidade,

como um lugar que agencia saberes e práticas, e, portanto, capaz de expressar vestígios

parciais de um enunciado político singular? Se o lugar de produção de conhecimento é uma

construção, cabe aqui apresentar algumas considerações epistemológicas a respeito da

legitimidade de se pensar um lugar de investigação que considere os fundamentos plurais

próprios dos saberes visuais.

4.2 Considerações epistemológicas

No primeiro livro Em busca do Tempo Perdido, chamado O caminho de Swann, o

escritor francês Marcel Proust conta sobre uma profunda alegria que lhe arrebata ao sentir o

gosto de madeleine.49

Ele percebe que o sentimento causado pelo biscoito nada tem a ver com

49

Biscoito da culinária francesa.

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o objeto desfrutado, e persegue a origem de tal sensação: “É claro que a verdade que eu busco

não está nela, mas em mim” (PROUST, 2006, p. 44). Proust se dirige então ao próprio

espírito, onde toda bagagem que tinha de nada lhe servia. Não se tratava apenas de uma busca,

mas também de uma criação.

Há aí um exercício filosófico de Proust, quando tenta acionar memórias involuntárias

com objetos ordinários, reconstruindo o “tempo perdido”. Contudo, está em jogo também

certa problemática de se fazer filosofia nas situações cujo pesquisador é a “região obscura”

pesquisada.

Na obra Ideia de Prosa, especialmente no ensaio Ideia de Imemorial, de autoria do

filósofo italiano Giorgio Agamben, há similitudes com esse exercício proustiano. O autor

começa o texto falando sobre o despertar de um sono – assim como curiosamente o escritor

francês inicia sua obra – como o momento em que recordamos de forma clara todas as

imagens do sonho, porém, ao mesmo tempo, percebemos que algo perde sua força de verdade:

“Temos o sonho, mas, inexplicavelmente, falta-nos sua essência, que ficou sepultada naquela

terra à qual, uma vez despertados, deixamos de ter acesso” (AGAMBEN, 1999, p. 57).

Assim, ocorre que no despertar reside o paradoxo de confiarmos a um lugar perdido o

segredo do sonho, mas é só ao acordar que enxergamos a inteireza daquilo que se foi. Isso

significa que a recordação é a mesma que nos remete ao seu vazio. E completa: “A memória

involuntária proporciona uma experiência análoga. Nela, a recordação que nos devolve a

coisa esquecida esquece-se também dela, e este esquecimento é a sua luz” (AGAMBEN,

1999, p. 58). Assim sendo, para Agamben, em conformidade com Proust, recordar e esquecer

envolvem-se no mesmo gesto.

Ora, tal aporia do sonho e da memória involuntária trata de algo que é próprio da

estrutura de nosso pensar: “a consciência contém em si o presságio da inconsciência, e esse

presságio é precisamente a condição de sua perfeição” (AGAMBEN, 1999, p. 58). Isto

sinaliza que, nos limites do pensamento, algo de confesso está entrelaçado a algo de

inconfesso, ou seja, trata-se de dimensões do pensamento cujo significante confessável remete

a um significado obscuro.

Essa condição de perfeição do pensamento, que implica dimensões mudas e confessas,

interliga-se ao modo como o ser humano produz conhecimento. Vale salientar que a

contribuição do inconsciente, enquanto elemento constituinte do nosso pensamento foi uma

descoberta recente, mérito comumente atribuído a Sigmund Freud. Dessa maneira, se é só na

modernidade que ocorre esse fundamental achado, é porque entre os atributos do irracional –

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do sonho, da imagem ou da criação poética – e os atributos do pensamento racional houve

uma cisão, diga-se histórica, na tradição da cultura ocidental.

A cultura civilizacional ocidental fundou seu princípio de realidade num único

procedimento de dedução dos fatos, estabelecendo uma ruptura com aqueles fundamentos

plurais de conhecimento – constitutivos da imagem. Corrobora com esta perspectiva, o

diagnóstico de Giorgio Agamben a respeito de certa cisão no logos ocidental:

Trata-se da cisão entre poesia e filosofia, entre palavra poética e palavra pensante, e

pertence tão originalmente à nossa tradição cultural que já no seu tempo Platão

podia declará-la „uma velha inimizade‟. De acordo com uma concepção que está só

implicitamente contida na crítica platônica da poesia, mas que na idade moderna

adquiriu um caráter hegemônico, a cisão da palavra é interpretada no sentido de que

a poesia possui o seu objeto sem conhecer, e de que a filosofia o conhece sem o

possuir. A palavra ocidental está, assim, dividida entre uma palavra inconsciente e

como que caída do céu, que goza do objeto do conhecimento representando-o na

forma bela, e uma palavra que tem para si toda seriedade e toda a consciência, mas

que não goza do seu objeto porque não o consegue representar. (AGAMBEN, 2007,

pág. 12).

No ensaio Limiar, do livro Ideia de Prosa, Agamben discute essa incapacidade da

filosofia gozar um objeto, a partir de um relato sobre as investigações de Damáscio, filósofo

neoplatônico de 529 d.C. A tradição diz que Damáscio trabalhou trezentos dias em Aporias e

Soluções em Torno dos Princípios Primeiros – uma obra cujo autor enfrentava o paradoxo de

colocar ao pensamento questões do seu próprio princípio. De maneira semelhante à

experiência proustiana, Damáscio desperta involuntariamente a memória de uma passagem

sobre a alma, em que havia comparado o intelecto a uma tábua vazia. E, como numa epifania,

formula que o limite último que o pensamento pode atingir não é mais que “a própria potência

absoluta, a pura potência da própria representação” (AGAMBEN, 1999, p. 25).

É no momento que a perspectiva racionalista se afasta da imagem, que as

investigações a respeito do objeto do pensamento deixam de prescindir de discussões acerca

de sua representação. A questão em que se debruça Agamben, portanto, é definir um caminho

para a filosofia, que passe pela reestruturação do logos cindido, ou seja, pela determinação de

uma voz que coloque a poesia e a filosofia num mesmo acervo metodológico.

Tal questão converte-se ainda mais problemática, na medida em que a determinação de

um estatuto unitário do pensamento – ao expurgar a pluralidade da imagem – desemboca em

certa condição de identificação entre potência e ato. Quer dizer, o modelo de significação que

dominou a cultura ocidental foi o da identificação entre língua e fala, semiótico e semântico;

em outras palavras, foi o paradigma da possibilidade de apreensão e transmissão direta dos

patrimônios teóricos de saber.

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Contudo, sabemos que o discurso jamais se inscreveu na linguagem. Se pensarmos,

por exemplo, que a lenta formação do cérebro humano – fenômeno da neotenia – traz como

consequência a necessidade de educação e de uma sistematização simbólica, podemos derivar

que o ser humano não nasce falante, mas deve constituir-se como sujeito da linguagem.

Assim, há um verdadeiro hiato que permite ao homem inventar algo como a ética. Caso

linguagem e discurso fossem indivisos, não existiria nem conhecimento e nem história, ou

seja, seria o humano, desde sempre, unido a sua própria natureza sem encontrar em nenhum

lugar a descontinuidade necessária para o florescimento do saber e da história.

Esta tarefa epistemológica de reencontro entre poesia e filosofia é, para Agamben, a

mesma daquela denegação fetichista. Entenda-se a fixação fetichista como uma recusa em

admitir a falta, sob a ameaça de permitir sua própria castração. E no conflito entre realidade e

percepção – a negação de sua percepção versus o reconhecimento perverso dessa realidade –,

o fetichista concilia duas reações contrárias: cinde o eu. Ora, é dessa maneira que o cientista

deve se libertar do valor normal de uso dos objetos para estabelecer outra relação de valor:

“trata-se da perversão de uma vontade que quer o objeto, mas não o caminho que a ele

conduz” (AGAMBEN, 2007, pág. 29).

Igualmente aos fetiches, os brinquedos só são brinquedos na medida em que a criança

transgrida suas regras, expropriando seu uso ordinário:

Fetichistas e crianças, „selvagens‟ e poetas conhecem desde sempre a topologia que

se expressa aqui com cuidado na linguagem da psicologia; e é nessa „terceira área‟

onde deveria situar sua busca uma ciência do homem que se tivesse verdadeiramente

livrado de qualquer preconceito do século XIX, deveria situar a sua pesquisa.

(AGAMBEN, 2007, pág. 98-99).

Por conseguinte, o tropos original aberto coloca o brinquedo, o fetiche ou o objeto da

ciência em um lugar aquém dos objetos e além do homem: nem objetivo e nem subjetivo, nem

material e nem imaterial, mas entre o pesquisador e o pesquisado.

É dessa forma, por exemplo, que Proust se dirige ao próprio espírito para construir o

tempo perdido, mas só o consegue a partir de memórias involuntárias acionadas por objetos

exteriores a ele mesmo. Ou que Damáscio, em busca de um objeto último do pensamento, é

tomado pela imagem de uma tábua vazia se deparando com a condição de que nunca poderia

possuir um objeto, que não a sua própria representação. Ou ainda que Didi-Huberman, ao ser

acusado de fetichizar as fotos da Shoah, ressalta a plasticidade dialética no interior delas:

Elas tanto são o fetiche como o fato, o veículo da beleza e o lugar do insustentável, a

consolação e o inconsolável. Elas não são nem ilusão pura, nem toda a verdade, mas

o batimento dialético que agita em conjunto o véu e o seu dilaceramento (DIDI-

HUBERMAN, 2012, pág. 107).

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Sendo assim, o problema do logos cindido que coloca Agamben, deve passar pela

legitimação epistemológica de um terceiro lugar de investigação – cônscio de que este tropos

não reside nem na inteira estrutura do eu e nem na completa exterioridade do pesquisador. É

nesse sentido que Didi-Huberman, em suas reflexões sobre a história, nos oferece uma

terceira via possível de produção do conhecimento, colocando que o historiador ao se

debruçar sobre um objeto histórico, faz uma escolha do tempo – um ato de temporalização.

Eis que a experiência do tempo é uma possível chave epistemológica para se pensar a imagem

enquanto via de conhecimento.

4.3 Experiência do tempo

Nas teses de Benjamim sobre o conceito de história, o autor fala de um encontro

secreto entre as gerações que passam e as nossas, na medida em que o passado parece nos

dirigir um apelo. Algo como no título do documentário ficcional de Marcelo Masagão – frase

de um cemitério em São Paulo: Nós que aqui estamos por vós esperamos.

Há um quê de redenção nas imagens do passado, como se estas nos lembrassem de um

compromisso forjado por vozes agora mudas, desejosas de remissão. Significa que os

sofrimentos das gerações não foram irrevogavelmente perdidos, posto que a rememoração das

vítimas pretéritas, para além da indiferença cronológica da história, é a instância em que a

humanidade oferece justiça aos “penitentes”.

Se o passado não se perde, é que o progresso continua a se realizar de maneira

misteriosa, no interior de uma consciência histórica, atribuída por Benjamim de um caráter

messiânico-revolucionário – de uma salvação que sempre estaria porvir: “Nesse caso, como

cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um

apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso”

(BENJAMIM in LÖWY, 2005, pág. 41).

Numa carta em 1937, Horkheimer critica essa história inacabada, considerando que se

“levarmos a sério o não fechamento da história, teremos de acreditar no juízo final” (LÖWY,

2005, pág. 50). A esse pensamento, corresponde uma herança marxista que confere ao

materialismo histórico uma composição positivista do tempo. Em contrapartida, Benjamim

vai combater esse “marxismo vulgar”, rompendo com certo historicismo evolucionista.

Para um tempo messiânico, o filósofo alemão propôs uma articulação entre redenção e

revolução, de modo a estabelecer uma experiência da história humana. Esse automatismo do

triunfo socialista, teleologia de um materialismo histórico ingênuo, só é possível a partir de

uma consciência do tempo racionalista, dominante na cultura ocidental. Contudo, assim como

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Damáscio se depara com a falta de objeto último do pensamento, a cisão com a imagem

resultou numa incapacidade de domínio do tempo.

A cultura ocidental, herança da antiguidade helênica, assimilou uma representação

espacial da temporalização incompatível com uma experiência genuína da história. Acontece

que os primeiros filósofos gregos discursavam a partir da physis, um lugar de objetivação e

naturalização espacial do tempo. Era este, dessa forma, uma figura contínua, quantificável

numa infinidade de pontos, cujo instante é sempre outro. Essa natureza de divisibilidade

matematicamente infinita do tempo, que exclui os domínios da poesia em sua representação,

fundamenta seu caráter destrutivo e não histórico.

Ora, o sujeito não foi considerado partícipe do tempo no pensamento da antiguidade

clássica. E quando o cristianismo catequiza a temporalidade nos termos da herança sintática

helênica, o faz dando-lhe outro direcionamento e significação: o mundo é criado no tempo e

terminará nele, marcado pela gênese e pelo apocalipse. A história da humanidade acha-se

aqui, portanto, como a história de uma realização progressiva e de uma redenção, no entanto,

mundanizada diante de um tempo superior, divino e eterno.

Mas, foi o cristianismo que estabeleceu uma experiência da história, separando o

tempo do movimento natural dos astros. Diz Santo Agostinho em seu livro Confissões:

Porque não serão antes os tempos os movimentos de todos os corpos? Será que, se a

luz do céu parasse e continuasse a mover-se a roda do oleiro, deixaria de haver

tempo com que medíssemos suas voltas e disséssemos, ou que se move durante

instantes iguais, ou que umas voltas são mais longas e outras menos, se a roda se

movesse umas vezes mais vagarosamente e outras mais velozmente?

(AGOSTINHO, 2001, pág. 121).

Com a modernidade o tempo sofre uma laicização, e a história, na espera de uma

salvação, resumiu-se em cronologia. É este, por conseguinte, o tempo da vida nas grandes

cidades, das fábricas, do trabalho empobrecido de experiência – conforme Benjamim – cujo

instante se perde a todo o momento. Assim, o antes e o depois, incertos para a antiguidade

clássica e significativos apenas em termos doutrinários para o cristianismo, constituíram-se no

próprio sentido da história – o progresso torna-se o guia do conhecimento histórico.

No capítulo Tempo e História, do livro Infância e História, Agamben traz um

horizonte interpretativo da conceptualização benjaminiana, que coloca a perda da experiência

histórica no homem: “por trás do aparente triunfo do historicismo no século XIX se esconde

na realidade uma radical negação da história em nome de um ideal de conhecimento moldado

nas ciências naturais” (AGAMBEN, 2008, pág. 118). Um tempo, portanto, que jamais pode

ser apreendido em seu instante, mas somente holisticamente, enquanto processo global.

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Partindo de uma crítica a esse instante inaferrável, a formulação temporal

benjaminiana forja-se na condição de substituir o tempo linear e infinito por um estado da

história, cujo evento está sempre na duração e que busca sua redenção no presente. Em outras

palavras, um conceito de temporalidade implícito na concepção marxista, combatendo a visão

automatizada de transformação gradual da sociedade. Para isso, recorre ao pensamento

hebraico, sugerindo um espírito messiânico, sem o qual o materialismo histórico não pode

fazer triunfar verdadeiramente uma revolução.

Ao instante vazio e quantificado, ele opõe um „tempo-agora” (Jetzt-zeit), entendido

como suspensão messiânica do acontecer, que „reúne em uma grandiosa abreviação

a história da humanidade‟. É em nome deste „tempo pleno‟, que é o „verdadeiro

lugar da construção da história‟, que Benjamim, diante do pacto germano-soviético,

conduz a sua lúcida crítica das causas que levaram à catástrofe as esquerdas

europeias no primeiro pós-guerra. O tempo messiânico do hebraísmo, „no qual cada

segundo era a pequena porta pela qual podia entrar o messias‟, torna-se assim o

modelo para uma concepção da história „que evite toda cumplicidade com à qual os

políticos continuam a ater-se‟ (AGAMBEN, 2008, pág. 125)

Agamben concorda com essa construção de um tempo materialista genuíno, esse que

reside no pleno, descontínuo e prazeroso. E, por isso, toma posição com relação ao presente,

propondo outra experiência histórica contemporânea:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele

que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é,

portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse

deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e

apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, pág. 58-59)

A definição agambeniana é, assim como as considerações do filósofo Friedrich

Nietzsche, a do intempestivo. De modo que, o contemporâneo não trata apenas de uma

temporalidade, mas também de uma agenda política, filosófica, epistemológica e visual.

Tal qual a urgência epistêmica de reatamento do logos cindido, o filósofo italiano

metaforiza a relação entre a poesia e o tempo, propondo ao poeta manter fixo o olhar sobre a

contemporaneidade: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o

tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.” (AGAMBEN,

2009, pág. 61).

A experiência anacrônica é, dessa maneira, chave epistemológica para pensar um

terceiro lugar de produção do conhecimento. Essa valorização do agora, enquanto suspensão

do contínuo, que reside no pensamento de Nietzsche, Benjamim e Agamben, é para onde olha

Didi-Huberman ao repousar sobre as quatro fotografias da Shoah.

É enquanto suspensão do tempo e sobrevivência de múltiplas temporalidades, que a

imagem agencia saberes e práticas, tão próximas da arké quanto inscritas no presente: “A

distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu

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fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do

que no presente.” (AGAMBEN, 2009, pág. 69). Entre o arcaico e o presente, há, por

conseguinte, um compromisso semelhante ao que as vítimas do passado forjaram com os

sobreviventes – como nas teses benjaminianas sobre a história.

Assim, a via de acesso ao presente tem similitudes com uma arqueologia:

É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem

necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um

passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso

viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais

pode alcança-la (AGAMBEN, 2009, pág. 70).

O caso é que tal paradigma de produção de saber nos convida a pensar como buscar

esses resíduos de verdade, a partir do estatuto plural das imagens – esse que a história se

empenhou em deslegitimar. Parece ser por aí que escorre a proposição metodológica de Didi-

Huberman, quando propõe uma arqueologia da imagem:

Tal é a aposta do presente trabalho: estimular uma arqueologia crítica dos modelos

do tempo, dos valores de uso do tempo na disciplina histórica que desejou fazer das

imagens seus objetos de estudo. Questão tão vital, concreta e quotidiana – cada

gesto, cada decisão do historiador, desde a mais humilde classificação de suas fichas

até suas mais altas ambições sintéticas não revelam, a cada vez, uma escolha de

tempo, um ato de temporalização? – que é difícil de ser clarificada (DIDI-

HUBERMAN, 2011, pág. 38-39. Tradução nossa).

Em razão de diversos historiadores não conseguirem superar a doença do método, ao

colocar o objeto histórico na linha contínua convencional, o crítico e filósofo francês vai

declarar que toda questão metodológica é também uma questão do tempo: nem

demasiadamente presente e nem demasiadamente passado, porém demarcando momentos de

proximidades empáticas e recuos críticos.50

Ou seja, para acessar esses múltiplos tempos e

sobrevivências, é necessário “um choque, um rasgo do véu, uma irrupção ou aparição do

tempo, tudo isso de que Proust e Benjamin falaram tão bem sob a designação da „memória

involuntária‟” (DIDI-HUBERMAN, 2011, pág. 43-44. Tradução nossa).

Através da imagem, finalmente, o observador pode demarcar temporalidades,

proximidades e recuos, alcançando a paradoxal fecundidade do anacronismo. Ora, é quando o

caminho metodológico da palavra se faz insatisfatório ou quando a imagem é paradigmática

no sentido de provocar uma descontinuidade, que ao pesquisador cabe investigar as

temporalidades, as práticas e os saberes que ela agencia.

50

E é justamente por isso que Didi-Huberman elogiará a historiografia do alemão Aby Warburg e seu famoso

Atlas Mnemosine. Ambos entendiam que o anacronismo das imagens é fecundo para o saber histórico,

justamente quando o passado se mostra insuficiente.

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5. II

REF. Enterro do rio Tapacurá

(André Carvalho. Vitória de Santo Antão – PE, 2010).

Descrição

Ato público e simbólico de enterro do Rio Tapacurá – que permanece

com alto nível de poluição – na chamada “Semana Mundial da Água”,

em 20 de março de 2010. O registro foi feito na placa em cima de uma

ponte, às margens do rio Tapacurá. Uma coroa de flores, símbolo

funerário, foi colocada sobre a placa que nomeia o rio. O movimento foi

organizado pela juventude do Partido Verde, na cidade. Parte dos

envolvidos eram estudantes de biologia, geografia e ciências ambientais,

todos vitorienses. O cortejo fúnebre saiu da câmera dos vereadores, em

passeata, até o trecho do rio, localizado na antiga BR 232.

O homem é o único animal que zela pelas imagens, mesmo quando descobre que se

tratam apenas de imagens51

. É por essa razão que ele vai ao cinema, aprecia pinturas e fica

absorto ao contemplar fotografias. Se concordarmos com o pressuposto de certa tradição da

filosofia ocidental que diz “o homem é um animal que fala”, podemos conceber que ele

também é um bicho que fotografa.

Dessa maneira a imagem, enquanto elemento material de uma memória, é atravessada

por uma negatividade: o que supomos enquanto realidade do registro fotográfico é na verdade

a diametral impossibilidade de sua captura. Ou seja, a fotografia só é possível pela exata

ausência de seu referente. Nesse sentido, o seu ato é um gesto de morte, pois aquilo que é

tornado imagem sempre fenece. Esta é sua experiência constitutiva.

No momento em que identificamos um ser à sua imagem – considerando que essa

relação não é direta – desencadeamos nela catástrofes semióticas. Ora, é só no fenecer da

imagem que o homem pode figurar o mundo e a si mesmo, constituindo-se como sujeito:

51

Outros animais se interessam pelas imagens, mas somente até o ponto em que descobrem sua natureza.

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animal que fotografa. Porém esse thanatus da fotografia também expõe nossa própria

centelha, uma vez que, em busca de entender o fim, elaboramos conceitos, sentidos, noções,

tentando angustiosamente dominá-lo ou retardá-lo. Mas, conforme questiona Agamben no

ensaio Ideia de Prosa, o “anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa faz a linguagem?”

(AGAMBEN, 1999, pág. 126). É precisamente aí que reside nosso calvário: a morte é difícil

pra nós porque nos chega apenas a sua imagem – ou o seu anúncio.

É apenas nos dirigindo à imagem, ou a este ser-para-morte, que poderemos

inelutavelmente morrer. Porquanto não tenhamos compreendido sua potência, estaríamos

unidos a nossa própria natureza: um animal que não vive, apenas anima. O domínio

discursivo sobre a própria morte significa, dessa maneira, liberdade e autonomia sobre a

própria vida. Como explica um importante escritor francês, Maurice Blanchot, em seu ensaio

A literatura e o direito à morte:

Cada cidadão tem, por assim dizer, direito à morte: a morte não é sua condenação, é

a essência de seu direito; ele não é suprimido como culpado, mas necessita da morte

para se afirmar cidadão, e é no desaparecimento da morte que a liberdade o faz

nascer. (BLANCHOT, 1973, pág. 308).

A soberania absoluta sobre sua própria liberdade é o exato extremo desse direito:

consiste em carregar os vestígios da morte – já que esta perdeu todo o seu drama –, pensar e

decidir com o anjo sobre os seus ombros, tornando o seu gesto implacável. Os terroristas e os

revolucionários sabem disso. Em contrapartida, não ter mais direitos sobre sua própria morte é

sujeitar sua vida a uma violência. Desta feita, o soberano é aquele que confisca tal imagem,

tolhe sua pluralidade, suprime moralmente e socialmente seus súditos, organizando a

linguagem da morte.

Na fotografia acima, ao observarmos a coroa de flores repousando sobre a placa do rio

Tapacurá, constatamos que, além de sua qualidade inefável, nos é colocado à consciência

outro espectro: o rio morreu. Aquele ornamento que coroa a placa encontra seu sentido mais

próximo na simbologia cristã, pois o uso das flores está associado à contingência da existência

humana. Por outro lado, marca também a própria salvação do homem: “Nada temas das coisas

que hás de padecer. [...] Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.” (BÍBLIA, 1974, pág.

1232. Ap 2.10). Assim sendo, sua iconografia assinala precisamente o gesto fúnebre na

imagem, pois, traz um elemento partícipe dos ritos funerários daquelas tradições judaico-

cristãs.

Destarte, se o rio Tapacurá morreu o que é que corria em seu leito? O que é aquilo que

chamavam rio? Ora, residia ali a inanidade de seu cadáver que viajava num fluxo sem vida.

Essa indecisão de uma água-animada, cujas veias já não pulsam, circunscreve um espaço de

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exceção onde o rio é sujeito à violência de qualquer um: podemos dedicar a ele nosso lixo,

nossos dejetos, nossas sobras, sem que se cometa crime ambiental, pois ali existe menos que

um rio. Sua vida coincidia com sua morte.

A primeira consequência da morte é, de fato, a de liberar um ser vago e ameaçador

[...], que retorna com a aparência do defunto aos lugares que ele frequentou e não

pertence propriamente nem ao mundo dos vivos e nem ao dos mortos. O objetivo

dos ritos fúnebres é assegurar a transformação deste ser incômodo e incerto em um

antepassado amigo e potente, que pertence estavelmente ao mundo dos mortos e

com o qual mantém-se relações ritualmente definidas. (AGAMBEN, 2007, pág.

105).

Nas cerimônias fúnebres dos antigos reis franceses, uma efígie de cera à sua imagem e

semelhança era manufaturada para ocupar a pessoa viva do soberano. Essa imago era tratada

como um semivivente, que após sete dias lhe celebravam um funeral da imagem: “o rito

macabro e grotesco, no qual uma imagem era primeiramente tratada como uma pessoa viva e

depois solenemente queimada” (AGAMBEN, 2007, pág. 102). Enquanto não se cumpria tal

rito, o rei não deveria pertencer ao mundo dos vivos e nem dos mortos, mas ao seu limiar.

Dessa maneira, o funeral de sua imago servia à liberação de seu excedente: a consagração de

sua vida sacramentada.

Deparamo-nos, tanto no exemplo do soberano quanto do rio, com uma vida separada

de seu contexto, e que, uma vez não sendo conduzido o seu rito funerário – porquanto não se

domine sua imagem de morte –, é incapaz de habitar a cidade dos homens e dos mortos: “a

vida sacra é, de algum modo, ligada a uma função política. Tudo ocorre como se o poder

supremo [...] implicasse, por uma singular simetria, a sua assunção na própria pessoa de quem

o detém” (AGAMBEN, 2007, pág. 108).

Entretanto, mais que a semântica de um mero rio, talvez esse habitante morto

guardasse aquela mesma relação que João Cabral abriu entre o Cão sem Plumas e a cidade:

O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o

outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. [...] Abre-se em flores pobres e

negras, como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os

mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.

[...] Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do

hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e

abafada) por onde se veio arrastando. (MELO NETO, 1997, pág. 73-75)

Mendigos, loucos, penitentes, idosos abandonados e todas as “vidas sujas”,

verdadeiros cães sem plumas, tais quais os párias do bando medieval. É a melhor figuração

daquilo que Agamben queria se referir enquanto “matável e insacrificável”. Também assim

parece ser o Tapacurá: persona dessa parcela não contada dos vitorienses, sacer da Vitória,

que atravessa a cidade desenhando sua paisagem, caminhando invisível, mas sempre exposto

a uma violência de qualquer um.

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Assim como num luto público – análogo ao iustitium, o luto oficial romano antigo –, a

população anunciou com atraso sua morte: “No ar, senhoras e senhores, a juventude do PV na

sua missão há de informar: nota de falecimento, rio Tapacurá”. Um sepultamento que, por

advir de uma ação cívica, revestiu-se não exatamente num gesto religioso, mas justamente por

sua intensão paródica, exibiu o seu caráter profano. E para um rio sacrificado, sua

“profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha

separado e dividido” (AGAMBEN, 2009, pág. 45).

Portanto, diante do fluxo de seu cadáver abandonado e da displicência do poder público, o

cortejo fúnebre sepultou finalmente o rio e colocou sua memória em comunidade, num desejo

de libertar sua vida sacra. A fotografia tenta capturar esse gesto, guardar sua ausência, para

que outras gerações, quem sabe, lhe ofereçam alguma justiça.

5.1 O saber político

O intuito de agora em diante é tentar nos aproximar de um tipo singular de saber

político que repense certas categorias das teorias tradicionais. Mas em lugar de analisá-lo na

direção da epistemologia, pretende-se rastrear esse enunciado em outro percurso: lutas,

conflitos, técnicas, etc., corroborando com a recuperação historiográfica e de dispositivos,

realizada por Jacques Rancière e Giorgio Agamben.

É preciso, nesse sentido, arriscar identificar nesses filósofos um tipo de reflexão que

não seja uma aplicação teórica, mas um campo com práticas distintas e funções. E finalmente,

avaliar as formações e as transformações desse enunciado político singular, que se torna real,

na medida em que consegue operar uma desconexão entre causa e efeito, potência e ato, de

modo a abrir o enunciável e o visível de uma comunidade.

Heródoto realizou na antiguidade clássica um relato a respeito dos guerreiros citas,

que tinham o hábito de cegar os escravos para submetê-los com eficiência a uma condição

servil: ordenhar gado. Quando aqueles partiram em expedição para Ásia permanecendo

durante o período de uma geração, os filhos de escravos nasceram com os olhos saudáveis e

aguardaram armados a volta da expedição.

Desses escravos e de mulheres citas nasceram muitos jovens, que, tendo

conhecimento da sua origem, marcharam ao encontro dos Citas que regressavam da

Média [...] Houve entre eles várias escaramuças, sem que os Citas pudessem

conseguir a menor vantagem. “Companheiros, que estamos fazendo? – gritou um

dos Citas no meio da peleja – se esses homens matam um dos nossos, diminuímos

de número; se matamos um deles, diminuímos o número de nossos escravos.

Abandonemos os arcos e dardos e marchemos contra eles armados de chicote com

que fustigamos nossos cavalos. Enquanto nos virem de armas na mão considerar-se-

ão nossos iguais; mas se em lugar de armas nos virem de chicote, lembrar-se-ão de

que são nossos escravos, e apercebendo-se da sua baixa origem, não mais ousarão

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resistir-nos” [...] Os escravos, atemorizados, puseram-se logo em fuga, sem mais

pensar em combater. (HERÓDOTO, 1952, pág. 292)

Os escravos dos Citas disputavam uma igualdade baseada na guerra que, contudo,

dissolveu-se a partir da lembrança simbólica da divisão entre senhores e escravos: o chicote.

Esse relato expressa, dessa maneira, uma condição genésica das relações humanas: a ordem

“natural” das sociedades é a ordem de dominação ou a desordem de revolta.

É preciso assinalar antes de tudo a realidade política nessa narrativa, em caráter de

endosso ao que o filósofo francês Jacques Rancière expressa no livro O desentendimento:

“foram os antigos, muito mais que os modernos, que reconheceram no princípio da política a

luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram exatamente [...] sua realidade propriamente

política” (RANCIÈRE, 1996, pág. 26).

A linha fundadora da comunidade Grega, discutida em Aristóteles, vai principiar as

análises de Rancière – bem como dos filósofos Michel Foucault e Giorgio Agamben em torno

da biopolítica, discutida posteriormente – acerca de uma compreensão do que constitui

genealogicamente a política: a vida do homem era dividida, na cultura helênica, em duas

dimensões: zoé, categoria que expressa a simples existência do animal biológico; e a bios, que

caracteriza a vida exercida na polis. Seria desse modo, o homem, o único animal capaz de

realizar uma passagem da zoé para a bios: animal político.

Mas essa passagem não era uma operação simples, em sentido filosófico, uma vez que

a mera existência biológica só encontrava a dimensão política na condição que o ser humano

possui de exprimir o logos – capacidade de racionalização do indivíduo. É importante

destacar que Aristóteles deixa aparecer nessa demonstração da simples passagem da vida nua

para a vida na polis, a lógica do desentendimento distintiva da racionalidade política – e de

que trata Rancière: “o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala [...] e é a

comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.” (ARISTÓTELES,

1985, 1253 a). Mas completa:

É um escravo por natureza quem é suscetível de pertencer a outrem (e por isto é de

outrem), e participa da razão somente até o ponto de apreender esta participação,

mas não a usa além deste ponto (os outros animais não são capazes sequer desta

apreensão, obedecendo somente a seus instintos). (ARISTÓTELES, 1985, 1254 b)

Ora, era escravo aquele que tinha capacidade de compreender o logos sem poder

expressá-lo. Sendo assim, não era a simples faculdade de fala que daria ao homem grego a

legitimidade de exprimir a razão. O logos, como simples passagem do cidadão nu para o

cidadão político, era uma falsa evidencia, uma vez que não significava a mera capacidade de

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expressão racional, mas também certa legitimação do lugar de interlocução. A comunidade já

estaria em princípio dividida, fundada na impossibilidade do povo participar de fato da polis.

Rancière sugere que a polis grega era definida, em sentido kantiano, por um sistema de

formas apriorísticas que organizava a participação da comunidade, considerando a

distribuição da legitimidade política e social de cada membro. Esta é a tese central, por

exemplo, de seu livro A partilha do sensível52

, onde defende a possibilidade de uma

constituição social em torno de uma divisão sensível que: “se funda numa partilha de espaços,

tempos, e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um comum se

presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2005,

pág. 15). Haveria, então, na base de toda política uma estética.

Nessa perspectiva, a organização do domínio de opressores é muito mais profunda do

que a simples oposição entre ricos e pobres – esta é a razão, por exemplo, pela qual os

guerreiros citas largaram as armas e fizeram uso do chicote para lembrar aos escravos a sua

condição servil. Mas tal realidade estética denuncia que a ordem de dominação é

contingencial e, desse modo, a desigualdade inscrita no interior da comunidade deve

pressupor em último sentido a própria igualdade. Tal cálculo, puro e simples, é

desconcertante, porque possibilita uma operação de “ruptura de toda lógica do comando, de

todo princípio da distribuição natural dos papéis em função das qualidades de cada parte”

(RANCIÈRE, 2006, pág. 369).

A contingência de uma lógica de domínio é, desse modo, frágil, mas igualmente

escandalosa para a organização social predominante. É ilustrativo, assim como o nome

democracia, na Grécia Antiga, foi utilizado pela primeira vez como “um insulto, inventado

não pelos democratas, mas por seus adversários para designar uma coisa para eles grotesca e

impensável” (RANCIÈRE, 2006, 370). De maneira que o demos era uma categoria econômica

e principalmente simbólica que não possuía nenhum valor.

Contudo, uma das grandes reformas que inauguram a democracia grega foi a

instauração da liberdade do demos ocorrida depois que a escravidão por dívidas foi abolida:

“A simples impossibilidade, para os oligoi, de reduzir à escravidão seus devedores

transformou-se na aparência de uma liberdade que seria propriedade do povo” (RANCIÈRE,

1996, pág. 23). Como homens fadados ao mero trabalho e reprodução, puderam ser contados

como participantes da comunidade? A democracia se constitui, nessa medida, como um

52

Na verdade, A partilha do sensível é um livro cujo autor se propôs a responder ao conjunto de

questionamentos dedicados ao livro O desentendimento, realizado pelos filósofos Muriel Combes e Bernard

Aspe, na revista Alice.

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indecoroso modelo de organização social, cujo “demos é a maioria no lugar da assembleia,

assembleia no lugar da comunidade, os pobres em nome da polis” (RANCIERE, 1996, pág.

2). Essa falsa aparência democrática era violentamente litigiosa no sentido que expõe uma

equidade impossível, mas que arruína cada vez mais a dedução da própria igualdade como

constituinte da polis.

Para Jacques Rancière, é mediante a instituição de um povo como propriedade vazia

da polis que a comunidade existe enquanto política, ou seja, enquanto dividida por um litígio

fundamental. A democracia seria, nesse sentido, a subjetivação daquilo que é propriamente

político: a suspensão da ordem de dominação pela instituição de um pressuposto de igualdade.

Dessa maneira, só há política porque a ordem “natural” dos reis, senhores e proprietários é

interrompida por uma liberdade que vem atualizar a igualdade última que assentaria toda

ordem.

A política não advém naturalmente nas sociedades humanas. Advém como um

desvio extraordinário, um acaso ou uma violência em relação ao curso ordinário das

coisas, ao jogo normal da dominação. Esse jogo normal é a transição de um

princípio de dominação a um outro. Há o velho princípio de dominação, o que

remete a sociedade ao mito de suas origens: o poder do nascimento, isto é, da

diferença no nascimento [...] E há o novo princípio, o que resulta das atividades da

sociedade, o poder da riqueza que ordena a sociedade segundo a repartição de suas

forças vivas, segundo os modos de produção da riqueza, as funções e as partes que

ela define. A política advém nas sociedades como uma ruptura no processo de

passagem de uma lógica da dominação a outra, do poder da diferença do nascimento

ao poder indiferente da riqueza. (RANCIÈRE, 2006, pág. 371)

Essa equidade não se institui diretamente na ordem social, mas é manifesta através de

uma razão do dissenso: uma lógica que opera no litígio em torno dos espaços públicos e

privados, dos assuntos da comunidade e dos actantes que ocupam legitimamente tais lugares.

O desentendimento, de que fala Rancière, não é um conflito em torno de pontos de

vista, não é a oposição entre Estado e cidadão, mas um litígio: em que há primeiramente uma

disputa pela constituição de um lugar comum de interlocução, e só após essa legitimação dos

interlocutores é que se faz possível um diálogo consensual53

. Os agentes políticos,

precisamente, fingem que um mundo comum existe e a própria inscrição estética desse mundo

já distorceria a lógica da ordem estabelecida. A política é, portanto, uma disputa em torno da

configuração do mundo sensível.

A tese do filósofo francês, por conseguinte, considera uma reformulação da concepção

própria de política, reservando-a ao conjunto das atividades que venham perturbar a ordem

dominante, pela instituição de um pressuposto de igualdade manifesto numa razão dissensual:

53

Trata-se de uma situação de interlocução política – não nos moldes da razão comunicativa habermasiano –

dialógica, em que “pelo menos um dos elementos de cena não está constituído em seu lugar” (RANCIÈRE,

2006, pág. 377).

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“uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável”

(RANCIÈRE, 2006, pág. 372).

Uma das implicações dessa lógica do desentendimento, é que o cômputo dos excluídos

distinga seus membros em relação a outros grupos sociais, laborando uma subjetivação desses

indivíduos. Rancière vai destacar a figura do sociólogo alemão Karl Marx, como formulador

preciso da natureza dissensual desse sujeito político:

Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a nossa

resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da

sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja

a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal

mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito

particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça

por excelência (MARX, 2010, pág. 156).

O proletário seria, dessa maneira, a própria dissolução de todas as classes – e aí reside

sua universalidade. O autor elabora, na verdade, uma radicalização das ideias marxistas, para

enfatizar uma potência desclassificatória nos sujeito político: “A luta de classes não está „sob‟

a política, não é a realidade da divisão e da luta que desmentiria a falsa pureza da política. A

luta de classes, o cômputo polêmico enquanto um todo dos que são nada, é a própria política.”

(RANCIÈRE, 2006, 371)

A título de exemplo, examinemos a violência simbólica da cena de conflito do

movimento operário do século XIX, na ocasião do processo contra o revolucionário francês

Louis Auguste Blanqui, acusado de insurreição:

O procurador lhe pergunta, como de costume, sua profissão. Blanqui responde

apenas: “Proletário”. O procurador então exclama. “Isso não é uma profissão”.

Blanqui replica: “É a profissão de 30 milhões de franceses que vivem de seu

trabalho e que são privados dos direitos políticos” (RANCIÈRE, 2006, pág. 378)

Profissão, neste diálogo, se apresenta como um homônimo em que reside uma dupla

acepção: de uma ordem dominante que não reconhece a atividade como um pertencimento

coletivo, mas reduzida a um ofício definido na figura de um trabalhador braçal pobre; e que

encerra ainda uma concepção revolucionária de pertencimento à classe proletária em sua

potencialidade de não-classe. O evento denuncia, nessa medida, a querela em torno do embate

estético dos sujeitos litigiosos.

Contudo, se temos que a operação política é um desvio da ordem “natural”, é

compreensível que ela esteja constantemente ameaçada a se dissipar nas partes orgânicas da

sociedade. Esta tradicional ordem de dominação, que é habitualmente aceita como a própria

política, se constitui num conjunto de processos que organiza poderes e gere populações,

distribui lugares e sistemas de legitimação; que Rancière intitula polícia:

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Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação,

por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos

da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças de ordem, o espaço

onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos

previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função (RANCIÈRE,

2006, pág. 373).

A lógica policial exprime uma razão consensual, que suprime insurgências políticas,

numa tensão pela hegemonização da primeira em derrocada da última, conforme

perceberemos ao analisar as sociedades democráticas ocidentais contemporâneas: “Da Atenas

do século V antes de Jesus Cristo até os governos de hoje em dia, o partido dos ricos sempre

terá dito uma única coisa – que é muito exatamente a negação da política: não há parcela dos

sem-parcela” (RANCIÈRE, 1996 p. 29).

6. III

REF. Ocupação da Prefeitura

54

(André Carvalho. Vitória de Santo Antão – PE, 2013).

Descrição

No período das manifestações de junho de 2013, centenas de pessoas

realizaram uma passeata em protesto, finalizando seu trajeto com a

ocupação do pátio em frente à prefeitura de Vitória de Santo Antão.

Cartazes, apitos e rostos pintados reivindicavam pautas difusas, mas

relativas aos problemas estruturais da cidade. A fotografia foi produzida no

final do percurso.

O devir social tem a singularidade de operar de maneira imprevisível e descontínua.

Há uma pletora de exemplos históricos onde um acontecimento localizado tem a força de

desencadear uma série de processos, expandindo dramaticamente os seus efeitos. Numa

54

Em 19 de junho de 2013, centenas de pessoas, na maioria estudantes, ocuparam as ruas da cidade em

manifestação, acompanhando o processo popular que ocorria em todo o país. Mais informações disponíveis

em: < http://folhavitoriense.blogspot.com/2013/06/protesto-reune-cerca-de-mil-pessoas-em.html>. Consultado

em: 14 jan. 2015.

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conferência em outubro de 2011, o filósofo e professor da Universidade São Paulo, Vladimir

Safatle, menciona um episódio desse tipo, cuja ideia pôde ignorar sua própria origem:

No início do século XIX, Napoleão enviou tropas à colônia do Haiti. O objetivo era

retomar o poder da mão de escravos rebelados comandados por Toussaint

L‟Ouverture e, com isso, reinstaurar a escravidão. Num estudo clássico, Cyriil James

conta o momento em que os soldados franceses, imbuídos dos ideais da Revolução

Francesa, ouvem a “Marselhesa” ser cantada por seus oponentes, os negros.

Desnorteados, os franceses se perguntam como era possível ouvir sua própria voz

vinda do outro lado da batalha. Afinal, contra quem estavam lutando, a não ser

contra seus próprios ideais? (SAFATLE In HARVEY et al, 2012, pág. 46).

Por razões difíceis de mapear, um pequeno evento, aparentemente contingente, pode

encontrar o seu próprio tempo e reconstruir seu espaço. Assistimos um fenômeno desse tipo

no Brasil, diria não negligenciável, que foram as chamadas jornadas de junho de 2013:

quando uma jornalista quase cegou – em virtude de uma bala de borracha atirada pela polícia

– na ocasião em que cobria um protesto do Movimento Passe Livre em São Paulo, a chamada

“grande mídia” deu significativo dimensionamento ao ocorrido, catalisando um grande

volume de pessoas nas ruas. A partir daí, inumeráveis demandas sociais despressurizaram,

arrancando das ruas verdadeiras marchas gandhianas que ocuparam os centros das principais

metrópoles do país – e outras cidades pequenas, como Vitória.

Os desdobramentos tiveram recepções variadas, ao longo do tempo e por diversos

atores. Em parte, há o reconhecimento de que as jornadas produziram movimentações nos

sistemas de poder e conquistaram diversos pleitos, reintroduziram agendas adormecidas,

motivadas pelo diagnóstico de uma crise de representação. 55

Entretanto, de uma perspectiva

mais estrutural, o Estado exibiu um tipo de surdez, buscando deslegitimar e ignorar as ruas.

Na verdade mostrou uma face ainda mais sinistra, ao investir no adensamento de dispositivos

de segurança: desproporcional força policial, propositura da Lei 499/2013 – conhecida como

“antiterrorismo” –, estudo e apropriação de técnicas de coerção policial, etc.

As jornadas também expuseram aquele litígio originário que discutíamos antes,

colocando os termos dessa distribuição do mundo sensível, principalmente no que consiste

certa disputa semiótica em torno das práticas manifestantes. Estas foram sistematicamente

deslegitimadas nos menores detalhes, como no caso das infelizes mortes em consequência dos

protestos: Cleonice Vieira de Moraes, Douglas Henrique de Oliveira, Valdinete Rodrigues

Pereira, Luiz Felipe Aniceto de Almeida, estas mais diretamente implicadas pela ação da

polícia militar; mas não provocaram tanta comoção nacional quanto a tragédia que ocorreu

55

O congresso nunca trabalhou tanto quanto nesse período. Matéria inclusive publicada no Wall Street Journal,

disponível em: <http://www.wsj.com/articles/SB10001424127887323419604578569333031395370>.

Consultado em:14 jan. 2015.

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com o cinegrafista Santiago Andrade, que foi vítima de um rojão dos manifestantes. A

sensibilidade a uma fatalidade em detrimento de outras – em grande parte estimulada pela

“grande mídia” – expõe um tipo de indignação seletiva, a partir de certo cinismo que

distingue as mortes “acidentais” daquelas causadas por “vandalismos”.

A terrível consequência de um ato que é enquadrado nos dispositivos de segurança e

outros aparatos de deslegitimação, é o crescente enfraquecimento de algumas formas de

protestos. Após essa morte do cinegrafista, uma pesquisa do Datafolha apontou que os

brasileiros contrários às passeatas somaram 42% contra 15% em junho de 2013, enquanto os

simpatizantes reduziram de 81% para 52% em 24 de fevereiro de 2014.56

Parte desse índice

de rejeição é consequência do que é amplamente veiculado no sistema midiático. Ou seja, os

manifestantes enfrentam o paradoxo de confronto direto versus a perda de adesão – um

dilema que nunca foi novo, mas talvez tenha ganhado radicalidade no período.

Quanto a isso, é preciso nos situar em relação ao pensamento filosófico-político, na

tentativa de clarificar algumas aporias que não são tão novas assim. Primeiramente, essa

surdez, por parte de uma ordem de poder estabelecida, não é prática nova de nossa

democracia. Quanto a isso, Jacques Rancière nos lembra de uma antiga querela em torno de

toda ação política:

A querela não tem por objeto os conteúdos de linguagem mais ou menos

transparentes ou opacos. Incide sobre a consideração dos seres falantes como tais. E

por isso que não se trata de opor uma era moderna do litígio, ligada à grande

narrativa de ontem e à dramaturgia da vítima universal, a uma era moderna do

diferendo, ligada ao esfacelamento contemporâneo dos jogos de linguagem e dos

pequenos contos. A heterogeneidade dos jogos de linguagem não é um destino das

sociedades atuais que viria suspender a grande narrativa da política. Ela é, ao

contrário, constitutiva da política, é o que a separa da igual troca jurídica e comercial

de um lado, da alteridade religiosa ou guerreira de outro. (RANCIÈRE, 1996, pág.

62)

Essa “narrativa de origem”, na tese em questão, é uma fórmula que sucederia em todo

conflito singular, onde uma cena põe em jogo a desigualdade dos interlocutores, num embate

em torno da legitimação da voz dos actantes políticos. Contudo, não é exatamente o que tem

acontecido, pois o fechamento do espaço da ação política efetiva tem resultado em uma

intensificação dos confrontos diretos e, consequentemente, mais violência física.

Em segundo momento é necessário pôr em perspectiva o jogo dos dispositivos de

segurança, que se beneficiam das respostas violentas para acionar mecanismos de

deslegitimação. Esse chamado Estado securitário nos coloca a urgência de repensar as

próprias práticas políticas:

56

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/153706-rejeicao-a-protestos-e-a-maior-desde-

junho-diz-datafolha.shtml>. Consultado em: 25 fev. 2014.

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Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais de conflito

político. No paradigma securitário, todo conflito e toda tentativa mais ou menos

violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a oportunidade de administrar os

efeitos em interesse próprio. É isso que mostra a dialética que associa diretamente

terrorismo e reação do Estado numa espiral viciosa. A tradição política da

modernidade pensou nas transformações políticas radicais sob a forma de uma

revolução que age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída.

(AGAMBEN, 2014, pág. 26).

Uma problemática então se apresenta: os poderes ignoram e deslegitimam as

manifestações, fechando o espaço político e utilizando estratégias de enfrentamento; os

segmentos das manifestações que utilizam táticas de violência acabam sendo criminalizados;

decorre de tal enfrentamento a perda do apoio popular; em consequência, há uma antipatia por

associação de todos actantes políticos em jogo. Em outras palavras: o antagonismo entre

manifestações e ordem é constitutivo da própria condição de polarização do conflito, que

favorece os dispositivos de poder.

Há algo que beneficia uma unidade imaginária quando os actantes populares declaram

um inimigo comum. Vimos como na alegoria de Antão essa disposição do imaginário foi

prática recorrente da cristandade medieval, aonde o medo de criaturas odientas – produto de

certo dispositivo ideológico – possibilitava a unidade e a integração da comunidade. Mas o

axioma da igualdade deve exigir mais: precisa provocar o fim da própria segregação entre

uma identidade política e uma alteridade “perversa” dos poderes; precisa contar que a

verdadeira universalidade deve assumir uma radical equação da indiferença, como forma de

igualitarismo e justiça social:

[...] a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à

exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo [...] A

única forma de evitar isso é não organizar o campo social a partir da equação das

diferenças (SAFATLE, 2012, pág. 29)

Ao buscar instituir esta esfera de universalidade, torna-se objeto de questionamento a

própria capacidade de luta dos actantes políticos. Assim, a questão central deve levar em

conta o diagnóstico realizado por Giorgio Agamben, de tentar imaginar a emulação de uma

pretensa ação “inimiga”, como forma de desativar o espiral vicioso que enquadra as ações

populares em dispositivos securitários:

É preciso abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente

destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e precipitada na

espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do

Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte

constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos.

(AGAMBEN, 2014, pág. 26).

Um diagnóstico, diríamos até, que corrobora com Rancière na própria afirmação de

uma distinção entre a política e a guerra: “A política é uma maneira de incluir o inimigo.”

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(RANCIÈRE, 2014, online). Ou com Slavoj Zizek – que não foi leitura central aqui, apesar de

seus textos serem recorrentes nos debates em torno dos sentidos derivados das manifestações

deste século –, quando coloca a tarefa de não destruir o tirano, mas transformar a sociedade

que o engendrou – sob o eterno prejuízo de garantir apenas a manutenção das mesmas

instituições: “É por isso que toda revolução precisa ser repetida: é somente depois que a

primeira unidade entusiástica se desintegra que a verdadeira universalidade pode ser

formulada” (ZIZEK, 2013, online).

Curioso como tal episódio das manifestações expandiu seus efeitos para os limites

destas terras antoninas e pôde surpreender os governantes locais. Toda a dinâmica política que

se encontrava normalizada – precipitada pelo jogo de alguns poucos grupos que governam a

cidade a pelo menos três décadas –, foi suspensa por um processo desencadeado a partir de

uma disputa em torno de tarifas de ônibus de um lugar distante como São Paulo. E a querela

se estendeu sob os olhos de Antão, que assistiu algumas centenas de pessoas insistirem, de

repente, na proclamação do seu próprio governo.

Na fotografia acima, vemos o lastro dessa contingência. Os manifestantes pareciam

querer ocupar o próprio planalto, como naquela imagem emblemática das jornadas de junho,

cujas sombras dos protestantes assombravam a parede côncava do congresso nacional. Esse

episódio local estava tão imbricado com todo o processo geral do país, que os “opinadores” da

cidade buscaram, em vão, notícias nacionais que pudessem responder o que estava

acontecendo assim tão perto.

Na fotografia de ocupação do pátio em frente à prefeitura, as agendas difusas evocam

aquela mesma querela: tão singular em São Paulo, como nos grandes centros do país, ou nas

grandes manifestações deste século, e até na litigiosa democracia grega antiga. Todos dizem:

“reivindicamos a nossa parcela do comum.” Dessa maneira, de singularidade em

singularidade, temos a mesma superfície de um fenômeno que é atravessado pelos mesmos

saberes e práticas visuais nomeadamente políticos.

Não nos causaria estranhamento, embora talvez surpresa, que um livro escrito na

década de 1990, por Jacques Rancière, pudesse enunciar a legenda dessa fotografia em frente

à prefeitura: “Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A

manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os

assuntos da comunidade.” (RANCIÈRE, 2006, pág. 373). Assim, no intervalo entre essa cena

primeira, imaginada pelo filósofo francês, e a fotografia materialmente apresentada aqui,

podemos ver o mesmo gesto: indivíduos que imaginaram outra comunidade possível, e de

repente saíram para as ruas, untados por esse desejo transformador.

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Essa narrativa de origem, portanto, apresenta cenas de um mesmo filme anacrônico –

que apesar de tudo insiste em ser exibido –, no qual aquela fotografia é apenas o vestígio de

um frame – que passou despercebido pela história, embora tentemos em vão recuperá-lo.

Todavia – e se é que a materialidade da fotografia carrega as potencialidades de uma

imaginação política – mais do que registrar a querela, a imagem nos impele a refletir aquele

mesmo questionamento de Agamben no seu ensaio os seis minutos mais belos da história do

cinema: o que fazer com nossas imaginações?

De muitos a memória das jornadas sofrerá o dissabor do recalque histórico ou do

esquecimento; de outros, por outro lado, lidará com um amor destrutivo, tal qual Dom

Quixote rasgando a tela do cinema no remake de Orson Wells.57

Mas o fato é que todo aquele

sentimento em relação à lembrança das jornadas – seja na sua representação ou na

materialidade visual de uma fotografia – se mostrará descontente, pois ali restou pouco além

que imaginações. Entretanto é só aí, depois da imagem embargada, que recolheremos a lição:

“Mas quando no final se revelam vazias, insatisfeitas, quando mostram o nada de que são

feitas, só então (importa) descontar o preço da sua verdade” (AGAMBEN, 2007, pág. 73).

6.1 Legitimação estética da razão consensual

Se considerarmos a tese de Rancière de que a política se cumpriria enquanto uma

violência ao curso ordinário da história, então é razoável pensar que da tensão dialógica entre

uma lógica dissensual e o jogo normal da dominação, derive outro tipo razão: que assentaria o

princípio de dominação numa nova ideia de política. O autor nos sugere olhar para o balanço

após as catástrofes totalitárias. Qual prática governamental triunfou sobre os escombros da

barbárie?

Assistimos a proclamação da vitória de um sistema de instituições que afirmou

garantir a soberania popular. O que só foi possível a partir de uma deslegitimação dos Estados

totalitários, que operavam pelo jogo de sujeitos fictícios como classe, proletário, luta de

classes, povo, revolução. Mas se é que toda ação política implica necessariamente em um

jogo de aparências, que lhe é intrínseca, então a ruína dos grandes mitos expressa, entre outras

coisas, o declínio da própria política.

Platão, que, segundo Rancière, enxergou com mais justeza os fundamentos da

democracia do que qualquer democrata apologista, compreendia que a impossível equação

que identificava a liberdade do demos ao próprio nome da polis, é o erro de cálculo fundador

57

O filme Dom Quixote de Orson Wells, é central no ensaio referido.

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da política. E, ao passo que a democracia é a subjetivação do político, temos que a aparência

da igualdade e liberdade do povo “arruína, em cadeia, toda a dedução das partes e títulos que

constituem a polis” (RANCIÈRE, 1996, pág. 25).

Contemporaneamente, os enunciados que justificaram nosso sistema institucional

fundados, entre outros, num desvendamento dos problemas reais da sociedade e dos espectros

que orbitaram as “revoluções” no período totalitário, celebram também um triunfo sobre a

própria democracia em seu sentido clássico.

A falência dos chamados Estados totalitários é de fato uma falência em relação ao

que era sua legitimação última: o argumento de eficiência, a capacidade do sistema

para fornecer as condições materiais de uma comunidade nova. Resulta daí uma

legitimação reforçada do chamado regime democrático: a ideia de que ele garante

num mesmo movimento as formas políticas da justiça e as formas econômicas de

produção de riqueza [...] Mas é também, ao que parece, uma vitória da democracia,

como prática do político a seus próprios olhos (RANCIÈRE, 1996, pág. 99).

Trata-se de um novo conjunto de instituições que desmistificou a aparência de povo, e

com isso, valorizou formas democráticas que superdeterminam as populações – no lugar

daquele sujeito de Rousseau e Marx, emergem as etnias, os imigrantes, a pluralidade, etc. Ou

seja, discute-se a otimização do corpo social e a individualização de suas necessidades,

espantando as mitologias que condenaram a humanidade. A ironia é que esse modelo

democrático só parece ser efetivo ao preço de esvaziar o seu próprio significado: “O discurso

oficial da democracia triunfante, por sua vez, só reabilita a „forma‟ enquanto forma

desobrigada correspondente a um conteúdo evanescente” (RANCIÈRE, 1996, pág. 102). É a

legitimação de uma democracia após o demos, que renuncia, portanto, à soberania do povo –

considerado falsa aparência.

O desaparecimento do dispositivo de aparência é acompanhado de uma redução da

política a um sistema de relações sociais. Teríamos chegado a um estado ideal: onde há

concordância racional dos indivíduos e dos grupos sociais, a partir da pressuposição de que o

diálogo é preferível ao conflito. E “a esse estado idílico do político dá-se geralmente o nome

de democracia consensual” (RANCIÈRE, 1996, pág. 99).

A prática consensual atua no apagamento das formas do agir verdadeiramente

democrático. Não se trata de um tipo pós-moderno, mas de uma razão do consenso que se

torna hegemônica. Esse sistema é possível através de uma ciência da opinião, caracterizada

pela capacidade de tornar o cidadão representável sem realmente sê-lo: pesquisas de opinião

pública, sistemas de sondagens, simulações, estatísticas, etc. O povo “está sempre a um só

tempo, totalmente presente e totalmente ausente. Está inteiramente preso numa estrutura do

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visível que é aquela em que tudo se vê e em que não há, portanto, mais lugar para a

aparência.” (RANCIÈRE, 1996, p. 106).

Uma vez que o consenso dissolve o litígio político, um modo particular de direito

torna-se arché da comunidade: submetendo a ação legislativa e a política estatal ao poder

jurídico. Acontece que as formas jurídico-políticas esvaziam a representação parlamentar ao

ampliar os poderes políticos de instâncias jurídicas – comissões, peritos, juízes, etc. Eis que o

Estado consensual realiza, através do direito, o exercício de uma capacidade de desapossar a

iniciativa política que legitimaria o povo.

Nessa perspectiva, as ações de “inconstitucionalidade” são antes de tudo a

deslegitimação da manifestação pública do litígio. O argumento legalista de

“inconstitucional” encontra em cada lei indesejável uma contradição com o princípio de

igualdade da constituição, transformando o litígio político em problema jurídico. Ou seja, o

Estado se legitima juridicamente ao tornar impossível a política. Temos aqui, um processo

que identifica crescentemente o real ao racional, o jurídico ao científico, o direito a “um

sistema de garantias que são acima de tudo as garantias do poder do Estado, a garantia sempre

reforçada de sua infalibilidade, da impossibilidade de que seja injusto" (RANCIÈRE, 1996 p.

114).

A sabedoria democrática consensual nos ensina, desse modo, que não se trata de

fortalecer as instituições que garantiriam a soberania popular por meio da representação, mas

de uma adequação do exercício político ao modo de ser de uma sociedade, considerando suas

necessidades e interesses – um regime que se fundamenta na adequação de suas formas a uma

filosofia da necessidade. 58

Em suma, a ausência de uma subjetivação dos atores políticos se

afirma na identificação entre um Estado de Direito e um Estado gestionário – atributo de um

governo em que uma filosofia da necessidade se apresenta diante da estrutura econômica

mundial e em que o povo está perfeitamente representado em suas formas, sem precisar ser

consultado.

A pós-democracia, para tornar o demos ausente, deve tornar a política ausente, nas

tenazes da necessidade econômica e da regra jurídica, até o ponto de unir uma e

outra na definição de uma cidadania nova na qual a potência e a impotência de cada

um e de todos venham se igualar (RANCIÈRE, 1996 p. 112).

Mas o que esperar dessa nova cidadania, cuja razão dissensual entrou em colapso? Se

é que o velho princípio de dominação e o acidente do político tencionam-se numa relação

dialógica para engendrar uma nova lógica – consenso –, então é de se esperar que da

58

E a ironia maior é que a proclamação de uma vitória neoliberal se realizou sobre um marxismo vulgar, na

assunção da tese de que um mercado internacional limita as margens de manobra dos governos.

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supressão da razão política não resulte o irracional: mas “o face-a-face entre as duas lógicas

de dominação: a lei da riqueza e o princípio da diferença no nascimento” (RANCIÈRE, 2006,

pág. 381). Parece haver, na verdade, uma correspondência entre um princípio tradicional de

domínio direto e certa lógica de dominação moderna.

Essa razão, com efeito, não é a razão dos estados, não é a dos indivíduos ou grupos

que buscam se entender para otimizar seus interesses respectivos. É a razão de atores

ocasionais e intermitentes que constroem aquelas cenas singulares em que o próprio

conflito é que produz uma comunidade. Essa razão está assim cercada de abismos,

sempre ameaçada de desaparecer, seja sob a forma da ultrapolítica, a guerra, seja sob

a forma da infrapolítica, a gestão estatal dos interesses compostos dos grupos

sociais. (RANCIÈRE, 2006, pág. 381).

Coube até aqui reconhecer a configuração sensível que assenta as relações de poder e

seus princípios de legitimação e ordenamento. Mas perfilhá-lo não é suficiente para uma

análise stricto sensu das condições de aparecimento e dinâmica do saber político, é

necessário, também, entender aquilo que o eclipsa. Acontece que Rancière não se ocupa do

modo como a comunidade se configura sensivelmente, e não lhe apetece um aprofundamento

em torno dos dispositivos e técnicas de dominação – da tradição de estudos biopolíticos.

Dispositivo, conforme colocado aqui, é uma noção decisiva para o pensamento

foucaultiano, e que Giorgio Agamben toma emprestado para pensar não apenas essas

tecnologias de poder, mas um termo geral, mais amplo: “não simplesmente esta ou aquela

medida de segurança, esta ou aquela tecnologia do poder, e nem mesmo uma maioria obtida

por abstração [...]: „a rede que se estabelece entre esses elementos‟” (AGAMBEN, 2009, pág.

33-34). Sendo assim, um aprofundamento em torno dessas tecnologias de poder parece

necessário à compreensão das práticas governamentais que deslegitimam as ações políticas.

7. IV

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Esta imagem contém uma iconografia curiosa: apresenta uma prática aparentemente

religiosa, realizada em frente ao prédio da prefeitura de Vitória de Santo Antão. Seu contexto

sucede as jornadas de junho na cidade, em que uma comissão a pedido do secretário de

cultura foi formada para iniciar um diálogo com o prefeito. Todavia, na data marcada, o

governante se ausenta alegando doença, e o grupo, por sua vez, se devota em oração: pedindo

saúde ao prefeito, para que o mesmo logo pudesse voltar à atividade pública e atender as

angústias populares.

O fato é que essa querela com o poder público remete àquela antiga pergunta

provocada diante de uma profusão de reivindicações: “o que vocês querem?”. É a mesma

questão que fez a paisagem das manifestações de junho de 2013 e que muitos pesquisadores

ainda tentam compreender. Ambos remontam perfeitamente a um problema que Slavoj Zizek

ressaltou após a ocupação de Wall Street:

A reação de Bill Clinton aos protestos em Wall Street é um exemplo perfeito de

clinch político; Clinton acha que os manifestantes são, “no final das contas, algo

positivo”, mas se diz preocupado com a nebulosidade da causa: “eles precisam

apoiar algo específico, e não somente ser contra, pois, se você é simplesmente

contra, alguém acaba preenchendo o vazio que você criou”, disse ele. [...] Nesta

etapa, devemos resistir precisamente a uma tradução assim apressada da energia das

manifestações para um conjunto de demandas pragmáticas “concretas”. Sim, os

protestos realmente criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia

hegemônica –, e será necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira

apropriada posto que se trata de um vazio que carrega um embrião, uma abertura

para o verdadeiro Novo. (ZIZEK in Harvey et al, 2012, pág.18)

Zizek explicita a operação daquela razão consensual – que eclipsa o dissenso –,

conforme também pôde ser testemunhado nas terras antoninas, onde nossos governantes

imprimiram um sistemático esvaziamento da interlocução: que começou pela exigência de

definição de pautas concretas e escolha de um grupo representante dos manifestantes; depois

houve o caso da ausência do prefeito à primeira reunião; e, finalmente, numa sala fechada a

equipe discursou sobre a inviabilidade burocrática de cada uma das agendas arroladas. Após o

59

A autoria é do blogueiro local Danilo Coelho, que estava cobrindo a notícia e fez o favor de fotografar o

episódio, uma vez que a imagem serviria como instrumento de pressão para os manifestantes.

REF. Oração para o prefeito

(Danilo Coelho59

. Vitória de Santo Antão – PE, 2013).

Descrição

Após as jornadas de junho de 2013 em Vitória, o prefeito, através do

secretário de Cultura, promete dialogar com os manifestantes. Porém,

falta à primeira reunião sob o pretexto de estar acamado e doente. Pela

falta de aviso prévio – e desconfiança em relação à notícia –, o grupo

que se dispunha a dialogar com o prefeito decide realizar uma oração,

em tom irônico, desejando melhoras para o governante.

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desaquecimento natural dos protestos no país e na cidade, o poder público quis deixar na

memória coletiva que fez de tudo para responder às ruas – como naquele abraço púgil. 60

Assim, no episódio da fotografia, a espetacularização de um rito de oração é uma clara

provocação do “rebanho eleitoral”, ou no mínimo uma insistência de diálogo mediante a

ausência do prefeito – justificada por uma conveniente enfermidade. Ora, é evidente o ar de

zombaria na foto, que contraria a ideia de qualquer compromisso real de devoção – ainda

mais para uma solicitação de indulto ao faltante.61

Além do que, se sabe que o prefeito é

conhecido por ser católico e, inclusive, suas campanhas eleitorais frisam este aspecto.

Rancière, já foi muitas vezes dito, coloca a política como portadora de uma razão

dissensual que insistirá sempre numa querela, naquelas cenas litúrgicas onde pelo menos um

dos interlocutores não está legitimado a ter voz. A democracia implicou sempre a fragilidade

de uma parcela interlocutora da população, ainda que a voz seja aparentemente estendida a

todos. Isso acontece porque a elocução não tem garantia de sua eficácia, quer dizer, “a

possibilidade de mentira é inerente à linguagem” (AGAMBEN, 2011, pág. 14). Por isso, em

O sacramento da linguagem, Agamben trata dessa inconfiabilidade dos homens em serem

fiéis à própria palavra, mas ressalva: “tem a ver com a própria linguagem, com a capacidade

das palavras de se referirem às coisas, e a dos homens de se darem conta da sua condição de

seres que falam” (AGAMBEN, 2011, pág. 15).

Mediante isso, ressalta a necessidade política e litúrgica do juramento. A expressão

“eu juro” decorre de uma valoração jurídico-religiosa, que significa garantir que a fala se

torne ato – ter fé de que o proferido se concretizará. Assim é que professa: “falar é, antes de

mais nada, jurar, crer no nome” (AGAMBEN, 2011, pág. 64). Trata-se de condicionar o

juramento não a uma simples garantia de verdade, mas à própria natureza do homem

enquanto animal falante.

Religião e direito não preexistem à experiência performativa da linguagem que está

em jogo no juramento; no entanto, eles é que foram inventados a fim de garantir a

verdade e a confiabilidade do logos através de uma série de dispositivos, entre os

quais a tecnicização do juramento em um "sacramentum" específico - o "sacramento

do poder" - ocupa um lugar central (AGAMBEN, 2011, pág. 69).

O elemento que singulariza a linguagem humana não reside no seu instrumento em si,

já que ela não é mais eficaz do que qualquer outra troca comunicativa estabelecida entre

outros animais. O seu prestígio se encontra, na verdade, no lugar conferido ao ser que fala,

“enquanto disponibiliza dentro de si uma forma de vazio que o locutor toda vez deve assumir

60

O clinch é uma técnica no boxe de se livrar de uma sequência de ataques, imobilizando os braços do oponente,

como uma espécie de abraço. 61

Some-se a isso a evidência empírica: o fato de eu ser um dos participantes da oração.

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para falar” (AGAMBEN, 2011, pág. 82). A relação ética se estabelece porque o homem é um

animal que para falar deve dizer eu, e nesse jogo pode bendizer, maldizer, jurar e perjurar.

É desse modo que religião e direito aparelham a experiência da palavra e da maldição,

enquanto instituições históricas que decidem entre a verdade e a mentira. De fato, o juramento

tem um poder sacralizante – de importância decisiva para a história política do ocidente – que

faz com que a linguagem consiga utilizar a religião e o direito como instâncias avaliadoras

dos procedimentos linguísticos.

A "força da lei" que rege as sociedades humanas, a ideia de enunciados linguísticos

que impõem estavelmente obrigações aos seres vivos, que podem ser observadas ou

transgredidas, derivam dessa tentativa de fixar a originária força performativa da

experiência antropogenética, sendo, nesse sentido, um epifenômeno do juramento e

da maldição que a acompanhava (AGAMBEN, 2011, pág. 81).

Talvez vivamos hoje, infere Agamben, um período em que a experiência da palavra é

cada vez mais vã, pois aquele vínculo do juramento que anexava o homem à sua palavra,

nunca esteve tão fraco. Trata-se do rompimento do nexo ético que une palavras, coisas e

ações: “assiste-se realmente a uma proliferação espetacular, sem precedentes, de palavras vãs

de um lado, e, de outro, de dispositivos legislativos que procuram obstinadamente proliferar

sobre todos os aspectos daquela vida” (AGAMBEN, 2011, pág. 81). Essa mudança no vínculo

do juramento, portanto, acarreta em transformações das formas de associação política.

Mas a contenda que se configurou na fotografia não encontrava embargo de qualquer

instituição religiosa ou legislativa, de modo que o prefeito se deu o direito de violar a

confiança dos manifestantes – conforme o entendimento dos mesmos. Sendo assim, mediante

a impunidade da dissolução do contrato estabelecido oralmente, o soberano não estava sujeito

a um sacramentum. E se é que o poder age sobre o corpo através das palavras, seu corpo

político não poderia sofrer formalmente qualquer consequência de uma voz popular: “a

política não pode senão assumir a forma [...] de um governo da palavra vazia sobre a vida

nua” (AGAMBEN, 2011, pág. 83).

Mesmo assim, a imagem exibe um gesto que quer acusar o governante de perjúrio,

sacramentar o seu corpo político – ainda que seu ato se faça soberano em relação à palavra

inútil. A oração genérica da fotografia, que solicitava a Deus um indulto, nos alerta, na

verdade, sobre essa falsidade da linguagem no litígio encenado. Mas para isso, acolhe a

gramática visual de uma benção, “bem-dição”, nomeação em que a palavra é plena, em que há

“correspondência entre significante e significado, entre palavras e coisas” (AGAMBEN,

2011, pág. 80); ainda que o intuito seja uma “mal-dição”, caso em que existe “entre o

semiótico e o semântico, um vazio e uma separação” (AGAMBEN, 2011, pág. 80).

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Assim a imagem tem em seu lastro, na pequena querela antonina, por um lado, um

desejo de acusar a infiel palavra dada e diante disso sacralizar o corpo soberano; mas por

outro, traz a performance de uma suposta liturgia de devoção, que finge se consagrar ao poder

de uma divindade vingadora para conseguir indulto, mas só caso transgrida a palavra

proferida. Entretanto a palavra conduzida por uma ação política já nasce transgredida.

O caso é que temos ao menos três semânticas de devoção. Vejamos a de um antigo rito

romano, que era cumprido antes da batalha numa situação em que o soberano devotava-se

solenemente aos deuses, como uma forma de consagrar sua própria vida para salvar a cidade

de alguma ameaça eminente. Em 340 a.C., um episódio parecido aconteceu quando o exército

romano se encontrou em situação de ameaça, e o cônsul Públio Décio pediu ao pontífice Tito

Mânlio que desse assistência à realização de um determinado rito. Lívio foi quem descreveu:

O pontífice lhe ordena que vista a toga pretexta e, estando o cônsul de pé sobre uma

lança [...] faz com que ele pronuncie as palavras: [...] eu vos rogo e suplico para que

concedais ao povo romano dos Quirites a força e a vitória e leveis a morte e terror

aos inimigos do povo romano de Quirites [...] assim voto e consagro. [...] monta a

cavalo em armas e se lança em meio aos inimigos, e parece a ambas as fileiras bem

mais venerável que um homem, semelhante a uma vítima expiatória mandada aos

céus para aplacar a ira divina (LÍVIO in AGAMBEN, 2007, pág. 104).

A consagração do dovotus implica o cumprimento de um complexo ritual, cujo

estatuto do corpo do imperador parece não conviver mais com os vivos, excluindo-se tanto do

mundo profano quanto sagrado. Ou seja, torna-se sacer: cuja vida é um penhor sujeito a uma

simbiose com a morte. Esta vida exposta a tal violência, diz Agamben, tem “desde o início um

caráter eminentemente político”, pois expõe sua ligação com o campo em que se funda o

poder soberano. É como se o imperador tivesse duas vidas e sendo uma delas sacra, nua,

residual, irredutível, não era permitido que ele habitasse a cidade. Esse duplo pode encontrar

analogia no estatuto jurídico-político, pois a morte do soberano constitui algo mais que um

caso legal de homicídio ordinário, contando que sua vida é inviolável – a decapitação de Luís

XVI, por exemplo, não se submeteu a um juízo comum. 62

Por outro lado, a devoção ordinária se ligava àquela dimensão de protetorado – que

não deixa de expressar elementos dessa mesma dominação originária –, cujos termos já

desenhamos sumariamente. Como explicado em O Homem Medieval, organizado por Le

Goff, “uma simples invocação, seguida de um voto que implique a promessa de uma

oferenda, bastará para criar entre o fiel e seu protetor celeste uma relação que permitirá àquele

beneficiar-se da intercessão deste” (VAUCHEZ in LE GOFF, 1989, pág. 226).

62

Hodiernamente, temos que no Estado moderno os casos de Impeachment, um tipo de cassação do chefe de

Estado – pois não está sujeito às leis ordinárias –, tem sua semântica de penitência não aparentada a uma pena

judicial, mas a uma deposição do ofício.

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Mas há ainda uma devoção que Agamben sugeriu ser qualitativamente diferente, que é

aquela realizada pelos primeiros padres do deserto. Na idade média, o ato pelo qual o asceta

se obrigava a uma relação com Deus, tem algo como a forma da lei, mas não o seu conteúdo,

pois nada mais era que a obrigação de se ligar espontaneamente ao divino. Assim, enquanto

na devoção pagã o devoto entregava aos deuses sua vida biológica, o voto cenobita não traz

objeto, pois “tem como único conteúdo o produzir-se de um habitus na vontade, cujo

resultado último será certa forma de vida comum” (AGAMBEN, 2014, pág. 67).

Qualquer que seja a resposta que se dê a tal pergunta, é certo que o paradigma da

ação humana que nela está em questão, estendeu progressivamente sua eficácia para

muito além do monasticismo e da liturgia eclesiástica em sentido estrito, penetrando

na esfera profana e influenciando duradouramente tanto a ética quanto a política

ocidental. (AGAMBEN, 2014, pág. 70).

É justamente referente a esta que se reporta a imagem dos devotus de Santo Antão –

assim como na alegoria de Antão que comporta em sua semântica a prática de uma vida

comum. De modo que o voto em favor do prefeito não trazia um conteúdo – já que se tratava

somente de uma consagração genérica e performativa dos manifestantes –, mas a exigência de

uma comunidade. Temos assim, o fingimento de um prefeito que concorda em reunir-se com

os manifestantes, sem comprometer-se com o dito – arbitrário e livre de sacramento; bem

como uma devoção performática – que finge rezar sua recuperação apenas para denunciar o

perjúrio – politicamente transgressora, pois comporta uma pressuposição de igualdade.

7.1 Entre o poder e a vida nua

No livro A história da sexualidade, em seu primeiro volume, A vontade de saber,

Foucault discute sobre a gênese formal do poder soberano, localizando-o no velho patria

potestas romano: um direito que concedia ao pai de família retirar algo que de antemão já

havia oferecido: a vida de seus filhos e escravos. Tal direito de “vida e morte” deixa um

legado para a formulação clássica de soberania, cujo ser jurídico explicitava o mesmo poder,

mas de maneira atenuada, ou seja, enquanto mecanismo de subtração: fisco material dos

súditos, apreensões do tempo, dos corpos, da vida.

Ora, a potência de morte do soberano – conforme a teoria contratualista dos cientistas

políticos modernos – era legitimada pelo direito fundamental de defesa do Leviatã diante de

ameaças, contra as quais ele poderia dispor da vida de seus súditos. O curso da história,

porém, marca um profundo deslocamento das exigências desse poder baseado no confisco,

para um poder que age positivamente sobre a vida:

[...] a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito

profunda desses mecanismos de poder. O “confisco” tendeu a não ser mais sua

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forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de

reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe

são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e condená-

las mais do que a barra-las, dobrá-las ou destruí-las (FOUCAULT, 1999, pág. 128).

E aqui se acha um paradoxo: apesar dos dispositivos de poder centralizarem-se na

gerência da vida, foi a partir do século XIX que a engenharia de morte dos Estados mostrou

sua face mais sangrenta. Acontece que as tecnologias de destruição que garantem a existência

de uma parcela da população só são eficientes ao passo que expõem outra parte à destruição.

Esse é um axioma capital dessa mudança na sustentação das táticas de combate modernas: o

princípio de fazer morrer para deixar viver mudou o foco para fazer viver e deixar morrer.

O ponto chave de compreensão desse princípio de matar “para fazer viver” está no

próprio deslocamento do significado de vida. Se o genocídio é consequência da potência

estatal de aniquilamento, é porque tal poder se exerce ao nível da espécie biológica e da raça.

Por questão de arguição, faz-se necessário retomar a linha fundadora da polis, sugerida

por Aristóteles: a existência helênica se constituía nas dimensões zoé – dimensão biológica - e

bios – exerce-se na polis. Mais uma vez, é o humano o único vivente capaz de operar uma

passagem da zoé para a bios, dessa maneira, um animal político. Todavia é importante

ressaltar que, longe de estender essa discussão novamente em torno do logos – que para

Rancière explicitava a dimensão estética legitimadora da política –, objetiva-se compreender

como os dispositivos de poder incluem essa dupla funcionalidade da vida em seus cálculos.

A partir do sec. XVII o Estado passou a estabelecer uma relação de poder centrada na

reificação do homem: “no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de

suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em

sistemas de controle eficazes e econômicos” (FOUCAULT, 1999, pág. 131). Após o século

XVIII, essa relação se aprofundou, focando-se na própria espécie biológica: “a proliferação,

os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas

as condições que podem fazê-los variar” (FOUCAULT, 1999, pág. 131).

Ora, é verdade que a fome e as doenças que fustigavam diretamente a vida das

populações passaram a ser abrandadas com o avanço do conhecimento acerca de técnicas

agrícolas e da medicina. Mas, de maneira inversa, o saber adquirido sobre o ser humano

também foi incluso nos cálculos do poder, num processo de sujeição do indivíduo ao controle

estatístico, à saúde individual e coletiva, à ampliação da autoridade do discurso científico, etc.

Em suma, os dispositivos de poder sobre a vida passaram a se organizar em torno das

técnicas de disciplinarização, complementadas pelas estratégias de gestão das populações, a

que Foucault batizou de biopoder.

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Esse bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao

desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção

controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos

fenômenos de população aos processos econômicos (FOUCAULT, 1999, pág. 132).

Merece destaque essa conexão curiosa entre tais relações de poder e o surgimento da

economia moderna. Com efeito, o princípio da liberdade de comércio, Laisser Faire, é

consequência teórica da doutrina fisiocrática inglesa, que defendia a liberdade da circulação

de cereais durante o século XVIII. Os fisiocratas, naquela altura, arguiam que o mecanismo de

segurança ideal para o controle da escassez de alimento era o da livre circulação de grãos.

Foucault apontou um texto de Louis-Paul Abeille, Carta de um negociante sobre a

natureza do comércio de cereais, como de importância considerável para a compreensão do

programa fisiocrático e sua relação com o biopoder. Tal escrito operou uma desqualificação

moral dos problemas da oscilação na demanda de alimentos, considerando-os uma quimera da

natureza, de modo a aceitar sem culpa a fome e os males que da desregulamentação do

mercado derivem. Abeille refletiu que, a partir do momento que o povo, os fornecedores e os

comerciantes se conscientizassem da liberação, uma série de mecanismos limitadores do

problema seria desencadeada. Nesse caso, o problema da escassez-carestia deveria centrar na

gestão de seus efeitos e não de suas causas, em prol de assegurar a sobrevivência da maior

parcela da população – ainda que significasse a morte ou a fome de outra.

Não é por acaso que a genealogia dos dispositivos de segurança contemporâneos

remonta o próprio Laisser Faire. A inversão do procedimento de gestão da carestia-escassez

é para Giorgio Agamben, conforme apontou em artigo para Le Monde Diplomatique Brasil,

um axioma de importância fundamental para a compreensão das sociedades contemporâneas:

é custoso e vão governar as causas, mas é útil e seguro governar as consequências.

Ele rege nossas sociedades, da economia à ecologia, da política externa e militar às

medidas internas de segurança e polícia. É ele também que permite compreender a

convergência antes misteriosa entre um liberalismo absoluto na economia e um

controle de segurança sem precedentes. (AGAMBEN, 2014, pág. 25).

Sucede que a história dos dispositivos de segurança contemporâneos é, na verdade, a

biografia da correlação entre diversas técnicas que se aperfeiçoam e os sistemas jurídico-

legais, disciplinares e de segurança que se tornaram mais complexos. Os aparatos biométricos

de hoje são emblemáticos nesse sentido. Eles surgiram na França no início do século XX, pelo

criminologista Alphonse Bertillon e seu método do “retrato falado”. De outro lado, o inglês

Francis Galton, um pouco mais tarde, desenvolveu o artifício das impressões digitais. Tais

técnicas serviram para que o Estado interviesse contra crimes que já haviam sido cometidos

por reincidentes, marginais e estrangeiros – e nisto o axioma fisiocrata resplandece. Contudo,

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na segunda metade do mesmo século esses conjuntos de técnicas antropométricas se

espalharam para as carteiras de identidade, passaportes, controles de entradas em bancos,

escolas, cantinas e sempre em processo de aperfeiçoamento.

A ironia é que tais mecanismos de identificação, voltados para indivíduos ditos

perigosos e reincidentes, hoje se dirige perversamente contra todo cidadão – que por sua vez

aceita como perfeitamente normal qualquer relação de suspeita advinda do Estado: “todo

cidadão é inocente até que se prove o contrário”, se torna “todo cidadão é suspeito até que se

prove o contrário”. O que é ainda mais importante, é que essa generalização dos sistemas de

segurança incide diretamente na conceituação política.

O estatuto da condição de pertencimento à cidade, como vimos em Aristóteles,

encontrava uma forma institucional baseada em títulos econômicos de nobreza ou religiosos –

legitimados por expressar o logos. A cidadania era, desse modo, uma atividade exercida no

domínio da polis – domínio de um espaço público livre – distinto das atividades privadas da

casa – oikos. Contudo, esse exercício cotidiano de cidadania, que figurava um sujeito social,

acabou se limitando a um estatuto jurídico cada vez mais reduzido a seus dados biológicos –

sobre os quais é impossível manter qualquer relação que não a de resignação e fatalidade.

Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade, determinam

minha identidade, então a construção de uma identidade política se torna

problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer com minhas impressões

digitais ou com meu código genético? (AGAMBEN, 2014, pág. 26)

Sendo assim, para além do fomento dessa nova moral cínica que nasce de certa

tradição teórica do pensamento liberal, outro fenômeno parece ainda mais relevante: um

deslocamento da vida biológica, zoé, para o centro da vida política. Tal identificação desnuda

o cidadão, estreitando a relação entre o poder e um corpo biológico despolitizado.

Um contrassenso se impõe: se a vida do homem limita-se a um estatuto jurídico, por

que a luta pela ampliação dos nossos direitos – liberdade, segurança, felicidade, saúde – por si

só não garante a vida? Vimos que a lógica do poder estatal só faz preservar a vida de uma

parcela da população, ao passo que sujeita à morte outra. Mas este “racismo de Estado” só é

eficiente na medida em que a máquina jurídico-política ocidental mantém o seu centro vazio.

Sobrevém que, as instituições sociais processam um tipo de separação entre a prática

humana e seu exercício concreto e isso implica, em grande parte, o problema da aplicação na

teoria jurídica. Devido a uma referência a doutrina kantiana, o juízo pressupõe pensar o

particular como estando contido no geral: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas

ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2007, pág. 59). Similarmente,

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a aplicação de uma norma jurídica de um referente virtual, estabelece uma relação direta

lógica com um caso particular concreto.

Essa passagem do semiótico para o semântico deveria contar a pluralidade de sujeitos

e casos: “A aplicação de uma norma não está de modo algum contida nela e nem pode ser

dela deduzida, pois, de outro modo, não haveria necessidade de se criar o imponente edifício

do direito processual” (AGAMBEN, 2004, pág. 62-63). Portanto, entre uma lei e sua

aplicação existe um espaço, que torna impossível a união entre norma e realidade.

Tal lacuna desloca o grave problema do direito para o seu exercício: num vazio, o

executor pode preencher soberanamente. Trata-se de um problema filosófico, a que Agamben

propõe pensarmos a aplicação da norma no âmbito da práxis e não da lógica. Mas esse

axioma interessa para ponderarmos sobre a produção da exceção em toda identificação entre

uma potência de norma e seu ato de aplicação: “para aplicar uma norma, é necessário, em

última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção” (AGAMBEN, 2004, pág. 63).

Nesse sentido, a exceção e a regra podem tornar-se indiscerníveis, fazendo-se possível

uma violência que não carece de roupagem jurídica – como é o caso dos decretos

presidenciais, por exemplo, que deveriam ser um procedimento factual, mas acabam se

tornando um artifício comum regulamentado por lei; ou ainda, da violência contra pessoas em

estado de vulnerabilidade, em que os policiais decidem soberanamente se preservarão ou não

a cidadania alheia. Entre direito e anomia, portanto, existe uma secreta solidariedade. Ora, é

através da produção de anomia que o Estado expõe a vida do homem ao direito, no sentido

mais preciso da palavra biopolítica.

Devemos dizer que essa é uma ficção que governa o nosso tempo: estamos diante de

um processo de normatização da vida, que, no entanto, não se compromete com ela. Assim

sendo, é igualmente ficcional o que legitimava em última instância a potência de morte na

formulação teórica moderna de soberania: criação de um estatuto jurídico em caráter

preventivo contra o estado de natureza. Nunca existiu a vida como dado biológico natural,

nem há circunstância de anomia e, por isso, a articulação entre ambos é do tipo forçosa – no

modo que se encontram no direito. Vida e norma só coincidem na máquina biopolítica: “vida

pura e simples é um produto da máquina e não algo que preexiste a ela, assim como o direito

não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino” (AGAMBEN, 2004 pág.

132). Em suma, não é o contrato que funda o leviatã, mas sim a sobrevivência do estado de

natureza no seio do estado civil: o poder soberano produz o corpo biopolítico, normatiza a

vida, e por isso funda o Estado moderno.

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8. V

REF. Máscaras nas manifestações de junho

(André Carvalho. Vitória de Santo Antão – PE, 2013).

Descrição

Nas manifestações de junho de 2013, em Vitória de Santo Antão, este

retrato denuncia a presença de máscaras do Guy Fawkes, em contexto

semelhante aos protestos que ocorreram em todo o Brasil – e quiçá também

no mundo, contando a primavera Árabe, o Occupy Wall Street, etc.

Um espaço vigiado e controlado não se constitui mais como um lugar público, mas

algo análogo a uma prisão – cujos direitos políticos e democráticos estão suspensos. Trata-se

de uma inversão, onde os próprios cidadãos se sujeitam a uma relação de suspeita por parte do

Estado: “todo homem é livre, até que se prove o contrário”, se transforma em “todo homem é

suspeito, até que se prove o contrário”.

Acontece que as razões de segurança63

extraem parte do domínio político do Estado

Democrático de Direito. E os cidadãos, por sua vez, se deparam com dificuldade de forjar

ações de contestação de poder que possam usar da violência em alguma medida64

– simbólica,

discursiva, ou tais quais as práticas de ocupação contemporâneas. Ocorre que o paradigma da

segurança tenciona o significado de muitas das manifestações populares para dentro de um

discurso criminalizante.

As jornadas em junho de 2013 no Brasil sinalizaram entre outras coisas uma tentativa,

não muito acabada, de contornar tais dispositivos de segurança: os gritos de não violência, as

marchas gandhianas, que fizeram a paisagem de muitos dos protestos, são parte dessa

preocupação. Mas como engendrar democracia de fato num Estado de razão securitária

63

Usuais, por exemplo, nos discursos de policiais militares e civis, que contestam certo desrespeito da sociedade

para com o ofício sob o argumento de: “você saberá o valor da polícia quando um criminoso for violento com

você e sua família”. 64

Ao modo, por exemplo, das práticas dos partidos tradicionais e dos movimentos de esquerda de décadas

passadas.

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antidemocrática e como situar as práticas de anonimato nesse contexto? Estas parecem, num

primeiro momento, constituir um desejo de proteção do indivíduo diante da violência

corporal, vigilância policial e responsabilização estatal. Mas estamos inclinados a pensar que

as máscaras agenciam um conjunto de saberes e práticas mais problemáticos.

Em 2011, no período em que a chamada Primavera Árabe ganhou notoriedade, a

revista Time estampa na capa a Person of the year:

Fig. 3. Time, Person of the year, 2011.

O semblante zombeteiro do rosto de Guy Fawkes 65

, os respiradores, a touca ninja dos

Black Blocs, as camisas enlaçando faces, compunham um elemento gritante que mitificava a

figura dos manifestantes. No ícone das máscaras reside uma pluralidade de significados,

profundamente difundidos em nossa cultura: elementos de linguagem cênica, alterego de

heróis e vilões, carrascos, „terroristas‟, piratas, ninjas, e outros incontáveis exemplos. Na

verdade a generalização do emprego de tal adereço tem sua arché associada aos rituais

religiosos. Conforme coloca o sociólogo Roger Caillois, no livro Os jogos e os homens, tais

instrumentos foram usados inicialmente para celebrar deuses, espíritos, animais antepassados

e toda espécie de elementos sobrenaturais que o homem receia – para que este pudesse

encarnar as forças que o deixava impotente.

Por ocasião de um tumulto ou de um enorme burburinho, que se alimentam a si

mesmos e se caracterizam pelo seu excesso considera-se que a ação das máscaras

revigora, rejuvenesce, ressuscita a natureza, e a sociedade. A irrupção destes

fantasmas equivale às das forças que o homem teme e em relação às quais se sente

impotente. Assim, encarna temporariamente as forças assustadoras, imita-as,

identifica-se com elas, e, logo alienado, em estado de delírio, acredita que é

verdadeiramente o deus cujo aspecto quis assumir, através de um disfarce elaborado

ou pueril. A situação inverte-se: agora, é ele quem mete medo, é ele a entidade

terrível e inumana [...] Só depois de o ter nas mãos, e de servir dele para aterrorizar é

que o considera inofensivo, familiar e humano (CAILLOIS, 1967, 107-108).

A confecção do arquétipo mascarado é uma prática que se aproxima muito de uma

elaboração psicanalítica. A desconfiança em relação a um Estado que controla e coibi as

65

Soldado inglês que participou de uma conspiração na Inglaterra, em 1605, com o intuito de assassinar o rei

Jaime VI e o parlamento, durante a sessão. Tornou-se um símbolo popular depois do filme V de Vingança,

baseado nos quadrinhos de Alan Moore, publicado pela DC.

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manifestações consideradas violentas, é elaborada nesse ritual silencioso de trajar a máscara e

se dirigir para o combate: vestir o próprio medo.

Há, no entanto, certa batalha semiótica em torno do significado que carrega o adorno

nas manifestações. Os dispositivos de anonimato operam dentro de um campo de pressões, de

maneira análoga àquilo que Nietzsche chamava de casca vazia, quando se referia à

capacidade do poeta Homero em abarcar significados heterogêneos: “é evidente que aquela

era se sentia incapaz de abranger cientificamente uma personalidade e os limites de suas

expressões” (NIETZSCHE, online, pág. 14). Nessa medida, tal indumentária funciona como

um repositório de tensões, que contempla tanto discursos criminalizantes operados pelos

mecanismos deslegitimadores do poder, quanto são entendidos como uma estratégia

fundamental de defesa e ação política que viabiliza o uso de táticas mais agressivas.

A importante lição que Nietzsche desenvolve sobre o problema em torno da

personalidade de Homero, nos serve para a compreensão desses símbolos de anonimato nos

protestos: sua mitificação importa menos por aquilo que realmente são, do que pelos medos,

aspirações, esperanças, técnicas e desejos que eles agenciam. Se a mitificação da máscara é

alterego de um herói ou de um vilão, implica que a luta em torno do mito encarna ideias e

aspirações da identificação coletiva, conforme menciona José Murilo de Carvalho – em seu

livro A formação das Almas, onde tenta decifrar a mitologia e simbologia do sistema político

nacional, por trás dos heróis brasileiros:

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de

referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes

para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes

políticos [...] Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação. Tem de

responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de

personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo coletivamente

valorizado. Na ausência de tal sintoma, o esforço de mitificação de figuras políticas

resultará vão. Os pretendidos heróis serão, na melhor das hipóteses, ignorados pela

maioria e, na pior, ridicularizados (CARVALHO, 2005, pág. 55-56).

Portanto a ficção das máscaras compõe uma poderosa narrativa dentro de um

paradigma de governo de segurança, cujo cidadão é sempre um inimigo em potencial. Sua

iconografia costuma afirmar esses elementos, dramatizando atitudes heroicas de combate –

ainda que sua vilanização tenha sido um processo mais recorrente.

Em contraste, naquela fotografia dos mascarados vitorienses – onde também é possível

situar a presença fascinante de Guy Fawkes – não verificamos a sobrevivência desse espectro

que associa as máscaras aos ritos de combate: as roupas não acentuam a ficção heroica e até a

utilização dos óculos sobre a máscara exacerba certa estética kitsch; não havia qualquer

iminência de um conflito policial; a disposição dos corpos, não agressiva, condiz com uma

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performance ordinária de quem se dispõe a um retrato qualquer; enfim, elementos

iconográficos que não enunciam essa dimensão dramática da narrativa militante dos

mascarados – tão presente em outros protestos.

Então por qual razão esse ícone surge tão menos belicoso nas manifestações

vitorienses? Por que a insistência de um anonimato num contexto de protestos localmente,

absolutamente não violentos?

Quando Didi-Huberman explorava o modelo de historiografia warburguiana, no livro

A imagem sobrevivente¸ ele mencionou a decisiva influência do antropólogo Edward Tylor no

conceito de sobrevivência em Aby:

[...] as sobrevivências, segundo Tylor, designavam uma realidade mascarada: algo

persistia e atestava um estado desaparecido da sociedade, porém sua própria

persistência era acompanhada de uma modificação essencial – mudança de estatuto,

mudança de significação (dizer que o arco e a flecha das guerras antigas

sobreviveram como brinquedos infantis é dizer, evidentemente, que seu status e sua

significação se modificaram completamente). (DIDI-HUBERMAN, 2013, pág. 49).

Eis que as máscaras surgem anacrônicas naquela fotografia, contudo sua dinâmica de

uso é análoga a de um brinquedo ou de uma máscara de carnaval, que têm suas regras

transgredidas e seu uso ordinário expropriado. Digamos, talvez, que elas não serviam

exatamente a um dispositivo de anonimato, cuja intenção, entre outras, é uma fuga desse

espiral vicioso da violência estatal. Na verdade, a iconografia da foto revela um uso mais

simples do apetrecho: do ingresso de um objeto na esfera do fetiche, tornando-o

irreconhecível e até mesmo inquietante.

Ora, trata-se da própria invasão da brincadeira na esfera da vida, enquanto dimensão

política. Em Profanações, Agamben sugeriu como no ato de brincar reside a potencialidade

de desativar os dispositivos, atribuindo-lhes outro uso ordinário:

A maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimonias sacras, de rituais

e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à esfera religiosa em sentido

amplo. Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola

reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas

oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. [...] As

crianças que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam

em brinquedos também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e

das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel,

uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em

brinquedos. [...] Fazer com que o jogo volte à sua vocação puramente profana é uma

tarefa política. (AGAMBEN, 2007, pág. 59-60).

As manifestações de junho resultaram imediatamente numa ampliação da esfera

democrática, da circulação de novas discussões, agendas adormecidas, etc., mas logo esse

espaço democrático das ruas foi esvaziado, tendo em paralelo o recrudescimento da ação

policial. Acontece que os dispositivos de segurança, a despeito das estratégias de anonimato,

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tenderam a polarizar o conflito – vilanizando os mascarados como alteridade do Estado,

personificação do caos –, e o rosto de Guy Fawkes tendeu a ir de um polo a outro do aparato:

marginalização-heroificação. Por sua vez, o deslocamento da máscara do V de Vingança para

fora de um campo real de combate, acaba dando novos usos e sentidos ao adorno, desativando

a dimensão guerreira do espaço de litígio: transmutando as vestes do medo em um traje da

práxis política ordinária.

Certamente esse caráter “carnavalesco” e seus elementos icônicos não foi

particularidade desse protótipo vitoriense dos protestos. E não cabe aqui alimentar o debate

sobre o quanto esse aspecto foi positivo ou não para o alargamento de uma sociedade

democrática. Mas nos interessa que os dispositivos de anonimato daquela paisagem de

protestos brasileiros – que acabou perdendo seu potencial de adesão popular diante dos

aparatos de biopoder – exibiram sua singularidade nas jornadas vitorienses. E aqui, sua ação

expôs um elemento estrutural de tantas outras mobilizações no mundo, que o próprio Slavoj

Zizek pôde verificar em outro contexto:

Quando a ocupação de Wall Street ecoou em São Francisco, em 16 de outubro de

2011, um rapaz dirigiu-se à multidão com um convite para ela participar do ato

como se fosse um acontecimento estilo hippie dos anos 1960: “Estão nos

perguntando qual é o nosso programa. Não temos programa. Estamos aqui para

curtir o momento”. Os carnavais saem barato – a verdadeira prova de seu valor é o

que permanece no dia seguinte, o modo como o nosso cotidiano se transforma.

(ZIZEK, 2012, pág. 15-16).

Agamben assegurou que, uma vez considerada a genealogia teológica dos dispositivos,

teríamos que certo “governo divino do mundo” moderno torna mais problemática a

profanação de seus dispositivos: “As sociedades contemporâneas se apresentam assim como

corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não

correspondem a nenhuma subjetivação real” (AGMABEN, 2009, pág. 48) – esse processo é

que eclipsou certo modelo que supunha sujeitos políticos como o operário, a burguesia, etc.

Mas o caso é que esse outro rito pandemônico ou, diria, menos aguerrido, apresenta uma

conexão com o tempo de um caráter profundamente profanador:

[...] o país dos brinquedos é um país em que os habitantes se dedicam a celebrar ritos

e a manipular objetos e palavras sagradas, das quais, porém, esqueceram o sentido e

o escopo [...] Brincando, o homem desprende-se do tempo sagrado e o esquece no

tempo humano. (AGAMBEN, 2008 pág. 85).

A brincadeira das máscaras – em vez dos disfarces de guerra – foi um breve gesto que

surgiu na cena litigiosa que se colocou entre a população e o poder público de Vitória. Talvez

tenha sido isso que a câmera, por acaso, viu: a brincadeira em sua potencialidade

verdadeiramente política.

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8.1 O excesso como dinamizador do político

A política foi eclipsada quando contaminada pelo direito, pois deixou de confrontar os

dispositivos que esvaziaram seu sentido – como a politização da vida biológica –, limitando-

se a um tipo que institui violentamente um direito ou, simplesmente, negocia dentro de seu

campo. Desse modo, todo actante que age à margem do Estado de Direito se coloca numa

posição soberana, pois não apenas se recusa a submeter-se à lei, como também a modifica

circunstancialmente. Essa posição é atribuída comumente a dois perfis: o criminoso, que viola

a norma jurídica e que, por isso, é constantemente enquadrado nos dispositivos securitários; e

os legisladores e executores das leis, que são capazes de suspender a norma sob a alegação de

exceção, crise ou razões de segurança.

No entanto, Giorgio Agamben menciona outra possibilidade de se colocar

soberanamente em relação à norma jurídica, sem atender a nenhuma das circunstâncias

mencionadas: “uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito” (AGAMBEN,

2004, pág. 24). Ele o faz, porém, em endosso a um enunciado do filósofo Jacques Derrida, em

seu livro Força de Lei:

Quero logo insistir, para reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que

não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o

direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode exigir o direito

quanto excluí-lo (DERRIDA, 2010, pág. 8).

Ora, trata-se da legitimação de atos extrajurídicos que se põem contra um Estado

ilegal. Lembremos que na tradição teórica moderna, mesmo na linha liberal de John Locke, já

se falava num direito a rebelar-se em situações onde um “tirano” usurpa o poder. A rebelião é,

nessas circunstâncias, justa, muito embora dissociada e arbitraria em relação ao direito.

Tal legalidade da resistência é uma garantia democrática fundamental prevista na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 – para muitos o documento

fundador da modernidade política: “Que todo indivíduo que usurpe a Soberania, seja

imediatamente condenado à morte pelos homens livres”, art. XXVII. É também possível de

ser lida, ainda que de maneira diluída, em diversos artigos da nossa constituição federativa: ao

tratar da objeção de consciência no art. 5°, VIII; greve política no art. 9°; e o princípio da

autodeterminação dos povos, no art. 4°, III.

Em uma passagem de um texto intitulado Do uso da violência contra um Estado

ilegal, o professor da USP Vladimir Safatle nos lembra que a ideia fundamental por trás desse

direito à resistência, é de que todo “bloqueio da soberania popular [...] deve ser respondido

pela demonstração soberana da força” (SAFATLE, 2010, pág. 248). Nesse sentido, mesmo

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em situações cujo Estado não é ilegal, o problema da dissociação entre justiça e direito

procede. São os casos em que o Estado de direito é rompido em torno de uma ideia mais

genuína de justiça.

Muito ilustrativo disso é o texto Antígona, de Sófocles, onde o rei de Tebas, Creonte,

proíbe, sob pena de morte, o sepultamento de seu sobrinho Polinices. Antígona, sobrinha do

rei, ao considerar injusta tal proibição, presta a seu irmão um enterro digno, desafiando o

poder do déspota; o que leva o Rei, por sua vez, a questionar os limites da própria autoridade

do Estado: o binômio “universalidade versus particularidade”, que deveria ser superado em

prol ou dos direitos subjetivos independentes ou dos direitos positivados. Em outras palavras,

Antígona desobedeceu às leis civis, expondo a arbitrariedade de Creonte que, enquanto rei,

era capaz de agir soberanamente diante do direito.

É preciso distinguir qualitativamente as duas ações de excesso: a primeira é do Estado,

na figura daquele que age arbitrariamente na execução de leis, o que pode desdobrar em

práticas totalitárias; e o segundo na figura do cidadão, que suspende as leis positivadas em

nome da justiça social e da soberania popular. A perturbadora lição a extrair disso –

encontrável em provisórias conclusões do livro Estado de Exceção de Agamben – é que o

direito, na tradição ocidental, funciona como um repositório de tensões que comporta uma

ambiguidade essencial: “uma que institui e que põe e outra que desativa e depõe”

(AGAMBEN, 2004, pág. 132).

Em oposição ao discurso comumente circulado de que toda violação contra o Estado

de direito é inaceitável, podemos colocar em consideração que a democracia, enquanto regime

do político, implica a possibilidade de desconstrução do direito para admitir a legalidade de

uma violência genuinamente política. São os casos, por exemplo: dos pacifistas que impedem

deslocamento de armamentos militares; de ambientalistas que seguem navios com lixo para

não serem despejados no oceano; dos trabalhadores que ocupam a fábrica para forçar uma

negociação em torno das melhorias de suas condições de trabalho; da família alemã que

tentou proteger a menina Anne Frank contra nazistas; das táticas de desobediência civil

propostas por Mahatma Gandhi; da proteção de imigrantes por parte dos cidadãos; dos

trabalhadores sem terra, que lutam por reforma agrária; da ocupação de prédios públicos em

nome de novas práticas estatais; das jornadas de junho, que tornaram as ruas um lugar de

discussão democrática.

E aqui Safatle, Agamben e Rancière, nos permitem um ponto de convergência teórica,

quando defendem que a política não tem a ver com uma violência física e simbólica contra

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um opositor – ação que faria jus, na verdade, às práticas estatais contra setores descontentes

ou simplesmente àquela violência depositora dos golpes de Estado.

[...] verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e

direito. E somente a partir do espaço que assim se abre é que será possível colocar a

questão a respeito de um eventual uso do direito após a desativação do dispositivo

que, no estado de exceção, o ligava à vida [...] A uma palavra não coercitiva, que

não comanda e não proíbe nada, mas diz apenas ela mesma, corresponderia uma

ação como puro meio que mostra só a si mesma, sem relação com um objetivo. E,

entre as duas, não um estado original perdido, mas somente o uso e a práxis humana

que os poderes do direito e do mito haviam procurado capturar no estado de exceção

(AGAMBEN, 2004, pág. 133).

A democracia, em suma, só poderia existir assumindo o excesso da política ante o

direito. Essa proposição ajuda a repensar aquela tradição que defende o fortalecimento das

instituições como garantia democrática. Ora, as chamadas crises de representação e os

protestos que ganharam as ruas nos últimos anos – 15M, indignados, Occuppy, jornadas de

junho, etc. – só denunciam que estamos longe de compreender essa social democracia

parlamentar como o paraíso dos regimes de governo. Muito pelo contrário, clama-se por uma

dinâmica de participação popular que parece querer a institucionalização daquele poder

instituinte intrínseco à política.

8.2 VI

REF. Pintura no chão em frente à Câmara dos vereadores

(André Carvalho. Vitória de Santo Antão – PE, 2013).

Descrição

Nas eleições municipais de 2012, pintura na frente da câmara dos

vereadores reflete o desejo de empoderamento de parte da população da

cidade, bem como o descontentamento com nossos governantes:

“demitiremos vocês”. Era difundida a ideia de que os vereadores não

vinham desempenhando um trabalho positivo para a cidade.

Na tese de livre-docência de Vladimir Safatle, Grande Hotel Abismo, o autor precipita

uma questão que estará presente no seu trabalho: o que significa decidir nas situações de

impotência da regra, em que não podemos mais apelar à normatividade? Nesses casos,

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coloca, devemos entender a questão de outra ordem potencial – que não desemboque em outra

regra –, pois estamos diante de uma escolha metafórica entre uma imagem “claramente

difusa” e outra “falsamente nítida”. Trata-se, na verdade, de uma “crítica da racionalidade

como determinação das condições de esclarecimento da normatividade” 66

(SAFATLE, 2012,

pág. 10). Estamos inclinados a pensar que na fotografia acima, em que consta a pichação

“demitiremos vocês”, está em jogo esse mesmo tipo de metáfora.

O caso é que essa foto foi realizada no mesmo período em que surge um movimento

em Vitória chamado Aposente um vereador vitoriense67

, que pretendia agenciar nas

campanhas eleitorais e num possível mandato de vereador práticas mais republicanas:

deslocamento e descentralização da instância de decisão, participação colaborativa,

mecanismos de transparência, releitura do modelo representativo, etc.; enfim, “demissão” de

um vereador para a ocupação de um grupo que pudesse eleger um candidato verdadeiramente

identificado com esse regime mais democrático de atuação político-social.

Em face disso o Aposente, ao se deparar com experiências de governos pouco

republicanos na história da cidade, se confrontou inevitavelmente com questões que

expuseram certa ineficiência da norma: quais as implicações institucionais de um mandato

colaborativo, da maneira que se propunham? Como buscar espaço comunicativo numa cidade

onde as três concessões de rádio e uma de televisão pertencem aos principais grupos no poder,

enquanto a internet lida com um público muito segmentado? Como formular uma organização

e prática política, que não recorra somente às práticas de denúncia e embate jurídico –

colocando em consideração a possibilidade real de ameaças à própria vida dos integrantes?

Como pensar fora dessa ação estritamente racionalista – que não seja também o seu pervertido

contrário? Essas questões têm cunho retórico – de modo que não temos a pretensão de

esvaziá-las –, portanto servirão para nortear nossa tentativa de iluminar o lastro visual de uma

singular ação política contida na fotografia “demitiremos vcs”. 68

Posto isto, incialmente poderemos ver na foto em discussão ao menos duas semânticas

de espaço público – de acordo com o horizonte de debate a que nos propomos. A primeira

talvez diga respeito a uma razão comunicativa – que Rancière costumava chamar de “acordo

racional entre as partes” –, da teoria do pensador alemão Jürgen Habermas. Para falar

brevemente de seu clássico livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, o autor define que a

66 Que inevitavelmente conduziria a repensar a categoria de sujeito na filosofia contemporânea. 67

O movimento começa em março de 2012, mas a pichação data do período das eleições no mesmo ano. 68

Nesse contexto, o episódio da pintura – provavelmente relacionado ao movimento – suscitou especulações de

parte da população que se questionava a respeito da autoria ou significado da mensagem em frente à Câmara de

vereadores.

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esfera pública é uma categoria mediadora entre o Estado e a sociedade, na qual o público se

organiza como portador da opinião pública, criando circunstâncias em que a vida social –

ideias, instituições e vários conteúdos de informação – é tratada abertamente, publicamente.

Queremos na verdade destacar a centralidade dessa noção de racionalidade – ainda

que não pretendamos aprofundá-la – que foi frutífera em grande parcela do pensamento

sociológico e influenciou fortemente os autores que discutiram as raízes da formação cultural,

social e política do Brasil.69

A título de exemplo, certa perspectiva de racionalidade em Marx

Webber é vertebral para o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque que, por sua vez,

influenciou várias gerações de estudiosos. Assim, esse domínio dos estudos históricos e

sociológicos brasileiros – em ampla medida nomeados “racionalistas” 70

– elaborou parte da

nossa sintaxe identitária: patrimonialismo, cordialidade, ética dúplice, estadania, etc.

Tentamos fazer notar que a fotografia em análise, a depender de uma leitura mais

“racionalista” da política – ou diria consensualista –, poderia suscitar reflexões

profundamente divergentes do que se edificou até aqui ou, quem sabe, legendas assim: “em

terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força

exterior respeitável e temida” (HOLANDA, 1986, pág. 4). Não interessa criticar – ou pelo

menos não sem ressalvas, já que cada autor imprime uma concepção singular de

racionalidade – esse importante patrimônio teórico do pensamento brasileiro. Mas, importa

colocar em confronto a percepção de duas imagens inquilinas naquela mesma fotografia: uma

que poderia situar-se confortavelmente no pensamento de autores como Roberto DaMatta,

Caio Prado, ou Sérgio Buarque de Holanda, por pensar certa sobrevivência de elementos

anárquicos, patrimonialistas, permissivos e até cínicos na plasticidade do nosso convívio; e

outra, que ao reconhecer a qualidade estética do dissenso social, permite reflexões sobre a

potência de uma ação humana que reivindique novos usos dos espaços comuns.

69

Por exemplo, a perspectiva dessa noção de racionalidade em Marx Webber é vertebral para o emblemático

livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda que, por sua vez, influenciou gerações de teóricos e

estudiosos da cultura nacional. 70

Segundo o historiador Ciro Flamarion Cardoso, há um grupo de críticas ao paradigma “iluminista” em seu

conjunto epistemológico que insere parte do pensamento filosófico e sociológico no âmbito do racionalismo

moderno. Podemos incluir aqui o pensamento kantiano, hegeliano, o weberianismo – ainda que com ressalva,

pois pretendeu mais uma “ciência da compreensão” do que da “explicação” –, algumas vertentes estruturalistas

e, principalmente, o marxismo. A escola de Frankfurt não está incluída aí, apesar da tendência marxiana, posto

que, talvez, estivesse em um paradigma pós-moderno. Contudo, queremos destacar no texto certo

distanciamento entre essas abordagens – e aí Habermas, apesar de filiado à escola de Frankfurt, contém parte

dessa dimensão racional, conforme Rancière apontou –, considerando os pontos de vista teóricos tão

distantemente demarcados como os de Nietzsche, Heidegger, Foucault, Deleuze e Derrida – nomeados

“irracionalistas” por Ciro Flamarion. Nesse sentido temos que, os principais autores utilizados nessa

dissertação são fortemente influenciados por este último conjunto – Rancière, Agamben, Didi-Huberman, etc.

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Para uma primeira imagem “falsamente nítida”, talvez o agir político deva operar a

partir de estruturas normativas capazes de estabelecer condições ideais reguladoras que

determinem certo conjunto de experiências e condutas. De fato aquela pintura podia ser

tipificada em lei, considerando que a pichação de edificações ou monumentos, desde que o

objetivo não seja sua valorização consentida, é considerada crime contra o ordenamento

urbano. 71

Assim a configuração dos espaços públicos, a ampliação da esfera pública e o

estabelecimento de um agir democrático se realizariam no fortalecimento de suas instituições

na disputa eleitoral partidária, no cumprimento ideal da lei, etc.

Em contrapartida a imagem claramente difusa não recusa tais elementos, mas coloca

em perspectiva a realidade dissensual da sociedade e certa insuficiência da norma. Nesse caso,

o problema que se impõe, conforme já questionado, é: como ficam os interlocutores se a

dinâmica sócio-política da cidade acomoda um regime de emudecimento dos atores sociais,

equilibrando o jogo na polarização entre dois grupos oligárquicos?

Assim, na segunda imagem está implicada a ideia de que a disputa não residiria apenas

no espaço institucional e normativo, mas também na admissão de certa legalidade da violação

política. A admissão dessa noção pode ser verificada no processo histórico de legitimação da

pichação, conforme relatos de alguns episódios datados: em maio 1968 na França onde a

pichação foi utilizada como linguagem de protesto contra as instituições universitárias e

manifestações pela liberdade de expressão; na década de 1960, quando o muro de Berlim

continha seu lado ocidental tomado por pinturas e grafites, expondo a discrepante divisão do

país; e já no século XXI, o debate se dirige muito no sentido de perceber as relações

epistemológicas entre as pichações e os espaços da arte e da cidade.

De fato estamos tratando da defesa de certa soberania política em relação à lei. Mas, o

que realmente queremos fixar é que no intervalo entre as duas imagens exibe-se uma tensão

entre duas possibilidades distintas de suspensão da norma: uma provocada por práticas

consideradas totalitárias, ainda que dentro da norma72

, sopesando certas imposições de

condições socioeconômicas e disciplinares aos cidadãos; e outra que, mesmo sem a pretensão

de destruir simbólica ou fisicamente o opositor, define-se numa experiência material e estética

de recusa daquelas prescrições, agenciando em sua ação formas comuns de participação.

71

De acordo com o art. 65 da lei 9.605, que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de atividades

lesivas ao patrimônio público e ao meio ambiente. 72

Como foi o caso em janeiro de 2014, quando testemunhei um vereador fazer uso da Tribuna e do gozo de sua

imunidade parlamentar, para ameaçar um dos integrantes do movimento em plena Sessão da Câmara. Após o

episódio, o grupo solicitou a ata e o áudio como forma preventiva, mas não foi possível comprovar as ameaças,

tendo em vista que haviam sido apagadas da ata enquanto o áudio nem foi disponibilizado.

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Sendo assim, chama-se imagem “claramente difusa” porque reconhece a

indeterminação dos limites da norma e sua iconografia expressa esse enunciado político como

uma figuração perfeitamente possível. E “falsamente nítida”, porque nas vestes de uma

perspectiva racional, muitas vezes deixamos escapar justamente aquilo que desejamos

determinar: a configuração de um espaço comum.

Portanto, o campo de tensões que se abre entre as duas imagens parece expor àquela

mesma figuração da alegoria de Antão, cujas tentações servem a um aparelhamento

ideológico capaz de conduzir as ações humanas de um polo a outro do dispositivo cidadania-

contravenção; mas enquanto uma forma de vida comum – em cujas tentações do monge, havia

a vontade de construir a própria vida como uma liturgia incessante –, a alegoria também

expressa a legitimação desse gesto humano fora do direito: política.

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9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda não é tarde, diante de todo o percurso, para colocar que a própria noção de

imagem – tantas vezes evocada nesta pesquisa – é um elemento de um dispositivo maior de

visualidade, que cria certa percepção de realidade, regula estatutos e regimes de atenção, a

partir de nosso próprio sistema sensível. Quando recuperamos a alegoria de Antão, a obra

pictórica de Jheronimus Bosch, o conjunto de fotografias de Vitória, ou as imagens do Atlas

Mnemosyne, todos expuseram percepções de realidade, dispositivos e noções de comunidade.

Ou seja, essas imagens não contam narrativas somente, mas recriam relações entre

enunciados, discursos e dispositivos. Como Jacques Rancière colocou de uma maneira muito

clara, o problema não é saber se o real pode ser posto em imagens, mas “saber que espécie de

ser humano a imagem nos mostra e a que espécie de ser humano ela é destinada, que espécie

de olhar e de consideração é criada por essa ficção.” (RANCIÈRE, 2012, pág.100).

Dito isto, parte do nosso desafio foi construir o nosso próprio conjunto paradigmático

de fotografias e ainda esperar disso um efeito muito específico: honestamente não

aguardávamos esgotar a totalidade do enunciado político a que a pesquisa se propunha, mas

queríamos expressar um conjunto que, por esta mesma condição, poderia elucidar questões

que não seriam possíveis de outra maneira. Neste sentido, nos aventuramos num percurso

metodológico e analítico um pouco incerto, construído a partir da articulação entre autores

como Didi-Huberman, Giorgio Agamben, Michel Foucault, Aby Warburg, Jacques Rancière e

outros. Nossos estudos sugeriram, diante da necessidade de agrupar as imagens, a exibição de

uma fórmula patética que nomeasse o modelo e orientasse as fotografias selecionadas.

Alcunhar nossa pathosformel de tentações de santo Antão nos pareceu, a princípio,

uma tarefa arriscada para o propósito da pesquisa, mas de modo algum deliberada. Os

problemas sociais de Vitória, em grande medida provocados pela própria estruturação das

oligarquias73

, impuseram uma breve imersão nos meandros históricos da cidade, sua cultura,

seus saberes, seu processo de organização produtiva e urbana.

Mas o que frequentemente acontece com qualquer iniciativa arqueológica é que o

canteiro que se abre costuma mostrar um quadro ainda mais problemático que o inicial:

deparamo-nos com um aparato conceitual e sintático já formado dos estudos que lidam com

as dimensões patronais no processo de desenvolvimento estatal e político do país; encerramos

um conjunto de possibilidades epistemológicas e reflexões sobre a condição da imagem na

73

Vale dizer que nos ocupamos apenas de uma dimensão dessas estruturas, de modo que importava a reflexão

sobre uma ação política em detrimento dessas relações de poder configuradas. O que não significa que essas

oligarquias não tenham operado qualquer tipo de benefício social.

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produção de saber formal; esbarramos em saberes visuais atravessados pelas mesmas

estruturas estéticas e biopolíticas que condicionaram a insurgência de manifestações no país e

mundo afora – primavera Árabe, Occupy Wall Street, jornadas de junho, etc.; e outras

questões que atravessaram esta pesquisa.

Nesse sentido, a imaginação enquanto técnica analítica e interpretativa – conforme a

formulação de uma iconologia do intervalo, sugerida por Agamben –, se mostrou uma

operação frutífera para pensar esses conjuntos. De modo que desenvolvemos a ideia de que a

estruturação política e econômica da cidade, bem como as fotografias selecionadas, poderiam

ser iluminadas pela alegoria de Antão por agenciar em sua dupla semântica saberes e práticas

completamente diferentes: entre um dispositivo binário de arrebanho-abandono; e uma vida

que se apresenta como arte.

Cada imagem, cada semântica, precisou ser confrontada com a sua antípoda para que o

intervalo entre os dois sentidos pudesse abrir um campo de tensões fecundo ao pensamento. A

partir daí, as mais variadas figuras se expuseram nas fotografias: os devotus, as jornadas de

junho, a brincadeira, as máscaras, a memória das gerações passadas, os excessos da política, o

dissenso social. Noções que acabaram pondo em movimento essas imagos encantadas.

Agamben lembrou que os estudos de Warburg são contemporâneos ao surgimento do

cinema. Essa aproximação nos colocou em perspectiva a potencialidade cinética que anima as

imagens. Se considerarmos que a alegoria de Antão é feita de tempo, podemos imaginar que

as fotografias aqui estudadas compassam uma coreografia em torno dela. Como um fantasma,

que assombra a memória dos cidadãos, mas que também é a medida de sua própria luz.

Mas esse movimento, e aqui talvez resida o ponto mais assombroso nesses estudos, é

portador de uma memória histórica. Quer dizer que os saberes visuais são atravessados pelas

positividades – que estão entregues às relações entre os indivíduos e o elemento histórico –,

que por sua vez agem nas dinâmicas de poder. É por isso que o gesto da fotografia possui

qualquer coisa de escatológico:

O poder do gesto de condensar e convocar ordens inteiras de potências angélicas

constitui-se na objetiva fotográfica, e encontra na fotografia seu locus, sua hora

tópica. [...] Todas essas fotos contêm um inconfundível indício histórico, uma data

inesquecível e, contudo, graças ao poder especial do gesto, tal indício remete agora a

outro tempo, mais atual e mais urgente do que qualquer tempo cronológico.

(AGAMBEN, 2007, pág. 24)

É precisamente esse elemento histórico que é amplamente recusado nas tradições da

memória ocidental e que angustiou e impeliu Didi-Huberman a escrever Imagens apesar de

tudo: versar sobre a recusa de uma continuidade entre extrair imagens de Auschwitz –

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segundo o trecho Questões do estatuto político e epistemológico das imagens – e a tentativa

de se fazer história a partir delas.

Conforme visto nas Considerações epistemológicas, a civilização ocidental assistiu

certo enfraquecimento da capacidade política das imagens. Mas estas nunca foram armas de

combate, pois seu estatuto sempre disse respeito a certo trabalho de ficção, cuja tarefa é

recriar deslocamentos: novas formas de vida e afetos, outras configurações sensíveis,

reflexões sobre os dispositivos dos próprios regimes visuais, etc. Portanto, a genuína política

das imagens é, na verdade, a política de um regime mais amplo de visualidade, que exibe uma

tensão entre vários modos de representação.

No balanço geral, temos aqui apenas elaborações provisórias a respeito das

construções metodológicas e analíticas que foram articuladas. Isto decorre, acredito, por duas

razões principais. Primeiramente, a imagem – enquanto matéria prima destes estudos –

configurou um campo alargado de pesquisa, que expôs os termos de uma dinâmica dos

regimes visuais de saber, de maneira que o seu estatuto lacunar impediu um fechamento

completo a qualquer teoria ou pensamento. Muito pelo contrário, o seu regulamento nos

mostra que é apenas se abrindo a um objeto que as fotografias são capazes de iluminá-lo.

Por outro lado, iniciei esta pesquisa atormentado por uma inquirição de que as

imagens aqui selecionadas poderiam exibir uma ação que escapasse ao cômputo dos seculares

dispositivos jurídico-políticos, nesta cidade tão longamente assenhorada por grupos

oligárquicos há décadas estabelecidos. Uma empresa que talvez tenha começado cedo demais,

sem o amadurecimento devido. No entanto, essas inquietações precisaram ser refletidas – de

maneira hesitante, é verdade, pois exigiram reencontros, muitos recomeços e descaminhos. De

modo que naturalmente não seria possível ao final encontrar um trabalho exatamente acabado,

ainda que as fotografias e as construções teóricas apontem incessantemente para um conjunto

específico de gestualidade política.

Precisaria de mais tempo para poder considerar todos os conjuntos de implicações que

ainda pungem.74 Mas talvez essa seja a angústia de qualquer estudante, afinal de contas, pois

“se por um lado ele fica assim perplexo e absorto, se o estudo é essencialmente sofrimento e

paixão, por outro lado, a herança messiânica que ele traz consigo incita-o incessantemente a

prosseguir e concluir” (AGAMBEN, 1999, pág. 54).

74

Uma delas diz respeito a uma dimensão de visualidade na memória dessa figura de exclusão originária: Homo

Sacer. Pesquisa que pretendo desenvolver num eventual doutorado.

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