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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA
MAURECI MOREIRA DE ALMEIDA
IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO NAS TELENOVELAS BRASILEIRAS
CUIABÁ-MT
2015
MAURECI MOREIRA DE ALMEIDA
IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO NAS TELENOVELAS BRASILEIRAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade
Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Comunicação e Mediações
Culturais.
Orientador: Prof. º Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues
CUIABÁ-MT
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
A447i Almeida, Maureci Moreira de.
Ideologia do branqueamento nas telenovelas brasileiras / Maureci
Moreira de Almeida. – 2015.
159 f. ; 30 cm.
Orientador: Francisco Xavier Freire Rodrigues.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2015.
Inclui bibliografia.
1. Ideologia do branqueamento. 2. Racismo. 3. Telenovelas -
Racismo. 4. Telenovelas brasileiras - Negros. I. Título.
CDU 323.14(=414):792.097(81)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099
Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer primeiramente à minha esposa Cristina Peixoto, pois, sem sua
dedicação, apoio e incentivo esta pesquisa seria mais difícil de ser realizada. Além disso,
forneceu-me as bases matérias fundamentais do cotidiano, para que eu pudesse escrever com
concentração e com entusiasmo. Por outras inúmeras vezes, trocamos ideias sobre o tema que
estava pesquisando, revendo alguns conceitos ou argumentos em busca de um melhor
entendimento.
À minha Mãe, meus irmãos e, especialmente, minha irmã Divina Elecir e seu esposo
Antônio Silva, pelo amparo logístico durante o período de cumprimento dos créditos. Com as
idas e vindas de Pontes e Lacerda-Cuiabá, Cuiabá-Pontes e Lacerda, sempre contribuíram
com o meu deslocamento para a rodoviária durante às noites.
Aos meus familiares de Cáceres (minha sogra, sogro e as minhas cunhadas), pelo
incentivo e acolhimento no período em que estive hospedado na residência deles. Pois, parte
da escrita deste trabalho também foi realizada por lá, com o advento do nascimento de meu
filho Arthur Aparecido.
Ao meu orientador Prof. Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues, intelectual,
pesquisador da realidade brasileira e sociólogo do esporte de primeira grandeza. Sem
mencionar que é um colorado roxo e apaixonado pelo seu time de alma e coração: o
Internacional Futebol Clube. Obrigado, professor, pelas suas orientações, pelas conversas
instrutivas e por contribuir com minha formação intelectual. Quanto maiores as capacidades
intelectuais, maior é a responsabilidade social. Isso está expresso em sua atuação no mundo
acadêmico e científico.
À Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso - SEDUC/MT, por ter-me
concedido o afastamento para que eu pudesse realizar com dedicação esta pesquisa. Pois,
acredito que a mesma poderá contribuir com uma educação antirracista, no diagnóstico da
ideologia do branqueamento, bem como na reflexão da problemática racial existente em nossa
sociedade.
Aos meus colegas do CEFAPRO de Pontes e Lacerda, que contribuíram comigo
incentivando e destacando a importância da realização desta pesquisa na temática racial para a
educação.
À FAPEMAT – Fundação de amparo à pesquisa do Estado de Mato Grosso pela bolsa
concedida para a realização desta pesquisa.
Às professoras Dr.ª Maria Thereza de Oliveira Azevedo, Dr.ª Patricia Silva Osório
(UFMT) e ao professor Dr. José Jairo Vieira (UFRJ) pela avaliação precisa na qualificação de
minha dissertação, cujas as arguições contribuíram para enriquecimento deste trabalho.
Ao professor Dr. Paulo Alberto dos Santos Vieira pela avaliação e participação em
minha banca de defesa.
Aos professores do ECCO/UFMT, cujas aulas ministradas foram importantes para
pensar meu objeto de pesquisa e melhorar as argumentações e ampliando as referências
teóricas.
Aos meus colegas de estudo do ECCO/UFMT/2013, em especial a Lairce Aleluia
Campos, Elisana Alves, Jordan Antônio, Renata Vilela, meu amigo decolonial Daniel
Peligrini, Juliano Batista, Neemias Souza, grande designer gráfico, e Caroline Christine,
filósofa cuiabana.
Ao amigo Wuldson Marcelo, pelas conversas em torno da problemática racial e pela
revisão de meus textos.
RESUMO
Esta investigação tem como foco a questão do racismo no Brasil que ressoa nas telenovelas
brasileiras, por meio da ideologia do branqueamento. Procuramos compreender o porquê da
pouca presença negra no contexto e no enredo das telenovelas brasileiras. À vista disso, esta
pesquisa busca discutir como as telenovelas representam os negros, e quais as possíveis
consequências disso no processo de identificação racial desse grupo. Uma vez que, sempre se
acreditou na ideia de que não haveria problemas raciais no Brasil. Por outro lado,
reconhecemos que a cultura afro-brasileira, mesmo que muitas vezes negada e tratada de forma
estereotipada, está presente nas telenovelas, mas sem o problema do racismo ser abordado
abertamente. De acordo com isso, imaginamos que a ideologia do branqueamento seja um mote
necessário de discussão na educação escolar, sobretudo no ensino médio. Nesse sentido, a
presente pesquisa busca, a partir do que é veiculado pelas telenovelas, refletir sobre o alcance
do mito da democracia racial. Este último, ao longo da história social do Brasil, fora usado
como artimanha de manutenção dos privilégios e status quo das elites brancas. A realização
dessa pesquisa teve como metodologia uma revisão bibliográfica na temática racial, na
ideologia do branqueamento e na Lei 10.639/2003. Analisamos também a novela da Rede
Globo “Lado a Lado”, de 2012, como uma produção que destacou a história do negro na
cultura brasileira. Mesmo assim, esta produção não deixou de ser branqueada. Percebemos,
desse modo, que a ideologia do branqueamento talvez seja uma das principais características do
racismo à brasileira difundido pela televisão, sendo veiculada pelo principal produto
audiovisual incorporado à cultura nacional, que são as telenovelas. Com isso, suspeitamos que
as novelas sejam uma das formas de manutenção dessa ideologia, que, fragiliza a consciência
de pertencimento racial da população negra telespectadora das telenovelas nacionais.
PALAVRAS-CHAVE: Ideologia do Branqueamento. Racismo. Telenovelas. Educação.
RÉSUMÉ
Cette recherche porte sur la question du racisme au Brésil, qui résonne dans les feuilletons
brésiliens, par l'idéologie du blanchiment. Chercher à comprendre le peu de présence noire dans
le contexte et l'intrigue des téléromans brésiliens. Nous cherchons également à étudier
comment se produit la prédominance de l'idéologie de blanchiment dans la consolidation du
mythe brésilien de la démocratie raciale. En outre, cette recherche discute comment feuilletons
télévisés représentent les Noirs, et quelles sont les conséquences possibles dans les processus
d'identification raciale de ce groupe. Depuis, toujours cru en l'idée qu'il n'y aurait pas de
problèmes raciaux au Brésil. D'autre part, nous reconnaissons que la culture afro-brésilienne,
même si souvent nié et traités de manière stéréotypée, est présent dans les feuilletons, mais sans
le problème du racisme être abordée ouvertement. Ainsi, nous proposons une réflexion sur
l'image des Noirs dans les feuilletons, et savoir la raison de sa rare présence en eux, il serait
peut-être l'un des effets de blanchiment, qui valorise plus l’esthétiques et les valeurs morales
des personnages phénotypiquement blancs. De cette façon, nous imaginons que l'idéologie de
blanchiment peut être une devise de discussion dans l'éducation par l'intermédiaire de l'école,
en particulier à l'école secondaire. Par conséquent, cette recherche vise, à partir de ce qui est
véhiculé par les feuilletons, réfléchir un peu sur l'étendue du mythe de la démocratie raciale. Ce
dernier, le long de l'histoire sociale du Brésil, a été utilisée comme une ruse pour maintenir le
statu quo et privilèges des élites blanches. Pour la production de cette recherche, a été adoptée
comme méthode une revue de la littérature sur la question raciale, l'idéologie du blanchimentet
et la Loi 10.639 / 2003. Nous analysons également le téléroman "Lado a Lado" de chaîne Rede
Globo, produit en 2012, comme une production qui soulignait l'histoire des Noirs dans la
culture brésilienne. Cependant, cette production n'a pas manqué d’être blanchi. Nous nous
rendons, par consequente, que l'idéologie de blanchiment, peut-être soi une des principales
caractéristiques de le racisme brésilienne diffusé à la télévision. Cette idéologie est véhiculée
par le principale produit audiovisuel intégrée dans la culture nationale, qui sont les feuilletons.
Nous pensons qu'il ya un processus de maintenance, qui peut être intentionnelle ou non, qui
affaiblit la conscience de l'origine raciale des hommes et des femmes noires téléspectateurs des
feuilletons télévisés nationaux.
MOTS-CLÉS: Idéologie de Banchiment; Racisme; Feuilletons Télévisés; Éducation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................10
CAPÍTULO I - Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça .......................20
1.1 A ideia de classe social como justificativa das desigualdades e hierarquias
raciais........................................................................................................................................20
1.2 Raça: um conceito controverso ..........................................................................................35
CAPÍTULO II - Televisão e telenovelas: breve introdução teórica ..................................54
2.1 A Escola de Frankfurt ........................................................................................................54
2.2 Os Estudos Culturais ..........................................................................................................57
2.3 A televisão: efeitos sociais .................................................................................................60
2.4 A telenovela brasileira e sua origem ..................................................................................70
2.5. Radionovela como precursora das telenovelas ...............................................................................74
2.6. As telenovelas e as temáticas sociais ................................................................................76
2.7. Ideologia do branqueamento: teorias raciais e as telenovelas .........................................88
2.8. Branqueamento: entre os dados oficiais e a influência ideológica-moral....
.................................................................................................................................................100
CAPÍTULO III - Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela “Lado a Lado”
como um caso emblemático .................................................................................................107
3.1. Especificações e breve resumo da novela “Lado a Lado” ..............................................108
3.2. Ideologia do branqueamento e a telenovela “Lado a Lado”: expressões da cultura afro-
brasileira .................................................................................................................................115
CAPÍTULO IV – Lei 10.639/2003 ......................................................................................141
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................151
10
INTRODUÇÃO
O Brasil é considerado o país com maior população negra fora do continente africano
(PEREIRA e WHITE, 2001), sendo que a Nigéria é o único país da África a comportar uma
população de mais de 170 milhões de habitantes. Mesmo assim, o racismo contra a população
negra e a problemática racial sempre marcaram o desenvolvimento, a formação histórica e as
dinâmicas sociais no Brasil. As interpretações e os diversos estudos envolvendo essa
problemática, apesar de antigos, pautaram-se, com raras exceções, na crença e no discurso
proferido por muitos estudiosos do assunto, embora conservadores e racistas, de que por aqui
não haveria conflitos raciais (SANTOS, 1984) tão graves que merecessem cuidados
específicos. Em conformidade com esta crença, grande parte da sociedade brasileira parece
acreditar que as “raças” existentes em solo nacional interagem harmonicamente, mantendo
contatos sociais tranquilos e sem hostilidades. Desse modo, estabelecendo um “verdadeiro”
exemplo positivo das relações raciais para outros lugares no mundo, onde o problema racial é
aberto, conflituoso e declarado. Segundo Santos, “[...] a ideia de que ‘aqui não temos desses
problemas’ está profundamente enraizada em nossas cabeças” (SANTOS, 1984, p. 42 [grifos
do autor]). Para sustentar esta negação, foi introjetado na mentalidade dos brasileiros, ao
longo da história, o mito de que imperava uma fantástica democracia racial no país. No
entanto, parece-nos, de acordo com os estudos dos autores e especialistas no assunto que
analisamos, a democracia racial nunca existiu de fato. Sugerindo assim, que nada mais era do
que (e continua sendo) uma artimanha de manutenção por parte das elites brancas em fazer
permanecer o status quo, os inúmeros privilégios e os muitos interesses econômicos, políticos
e sociais vinculados, desde sempre, ao segmento racial branco no Brasil.
Inteiramente ligada ao mito da democracia racial está a ideologia do branqueamento,
que se desenvolveu no final do século XIX e início do século XX, configurando-se como
fonte de desejo das elites de branquear a nação brasileira, e livrá-la do problema negro,
principal obstáculo, segundo alguns políticos e intelectuais da época, a impedir o país de
alavancar-se em seu projeto econômico e de modernidade.
Assim, a ideologia do branqueamento é a mais contundente marca do racismo à
brasileira. Apesar de transcorrido todo esse tempo, o desejo de branqueamento do brasileiro
ainda não se apagou. Parece estar expresso e representado, agora de maneira mais perspicaz e
contagiante, nos meios de comunicação de massa, em especial na programação da televisão
brasileira e difundido pelo principal produto audiovisual incorporado à cultura nacional, que
são as telenovelas.
11
Pelo que aparentam, as telenovelas brasileiras talvez sejam, ao menos no campo da
cultura audiovisual, as principais inspiradoras do atual desejo de branqueamento junto à
população telespectadora. A plausibilidade da afirmação tem por base o destaque que as
exibições novelísticas oferecem ao fenótipo branco, associando-o a ideia de beleza, de
riqueza, de prosperidade e de comportamento virtuoso, e relacionando o negro quase sempre a
pobreza, ao insucesso, a criminalidade, a sensualidade e ao aspecto estético depreciativo. Isso
parece desfavorecer a percepção identitária dos afro-brasileiros de forma mais afirmativa,
induzindo-os a acreditar ideologicamente na supremacia branca. Em decorrência disso,
sugerimos que podem suceder dois fatos: a dificuldade do reconhecimento de muitos
afrodescendentes como negro e o desprestigio do fenótipo negro por esse próprio segmento
racial, que assiste e se entretém com as telenovelas estruturadas na ideologia do
branqueamento.
As telenovelas na cultura contemporânea brasileira recebem demasiada influência do
sistema capitalista, cujo interesse é a obtenção de lucro e manutenção dos privilégios dos que
estão na situação de dominantes, como no caso das elites brancas. As telenovelas brasileiras
são um produto da indústria cultural, sendo a própria expressão dos valores euro-norte-
americano, que estão estritamente vinculados ao sistema econômico vigente. Esses valores
ancoram-se em uma visão de mundo judaico-cristão-ocidental, que, por sua vez, parece
reforçar um único padrão de referência fenotípica de pessoa, o leucodérmico, ou branco
europeu (MOORE, 2007), ao que é atribuído os sucessos e as virtudes necessárias para
transformar e fazer avançar o mundo.
Os filósofos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), nesse sentido,
aparentam estar em sintonia com o que foi exposto anteriormente, ao argumentarem que a
indústria cultural é alimentada pelas concepções e visão da realidade conforme a sociedade na
qual está inserida, mantendo uma relação dialética de troca. Por exemplo, quando os
produtores das telenovelas brasileiras se inspiram na história e no sofrimento que foi a
escravidão que ocorreu no Brasil, para produzirem e organizarem o enredo de suas novelas,
como no caso de “Xica da Silva” (1996, Rede Manchete), acabam escondendo inúmeros fatos
que constituíram esse episódio de nossa história, acreditando que não fariam sucesso junto ao
público telespectador se abordados.
Essa forma de produzir as telenovelas brasileiras favorece o ideário do
branqueamento, pois nega, incutindo habilmente, a severidade e o drama que foi a escravidão
no Brasil, disseminando uma concepção de conhecimento e valores corrompidos e
romantizados desse acontecimento. Contribuindo, assim, para estabelecer uma noção de vida,
12
cultura e comportamento na sociedade brasileira que propicia a desconsideração quanto à
diversidade racial do Brasil, realizando a manutenção dos preconceitos em relação à
alteridade.
Dessa maneira, a indústria cultural, com seus produtos audiovisuais
predominantemente embranquecidos, fragiliza a identidade negra. E, de que modo as
telenovelas tornam ativa esta fragilização? Há uma abordagem da identidade negra na trama
novelística? Quais são os estereótipos em relação ao negro recorrentes nas telenovelas? Estas
são algumas questões importantes, pelo menos a nosso ver, que perpassam a compreensão do
racismo à brasileira. Pois, a identidade negra veiculada pela teledramaturgia sempre foi virtual
e distanciada do componente real da cultura negra brasileira. Os estereótipos criados em
relação ao negro, de que é um ser carregado de energia sensual, de malandragem e de força
física, são os exemplos desse distanciamento fomentado por esses rótulos raciais.
Esse procedimento da televisão e das telenovelas revelam um pouco da situação racial
brasileira, deixando evidente a negação da representação na ficção da maior parte da
população, constituída por negros, que possivelmente fragilizam suas identidades.
Nessa perspectiva, Joel Zito Araújo (2004) enuncia que o sistema de classificação e a
ideologia do branqueamento dificultam o desenvolvimento do sentimento de pertencimento
racial da população negra, que a televisão parece acentuar através das telenovelas.
Araújo (2004) também alerta para outro problema na formação da identidade negra
brasileira: a ideologia da mestiçagem, que é difundida pela televisão e inserida nas novelas
como uma das grandes características do Brasil. Pelo que sugere o autor, essa ideologia,
principal pano de fundo estruturante das relações raciais brasileiras, parece ter auxiliado na
criação e na manutenção do mito da democracia racial. Sendo que a mestiçagem sempre foi
concebida pelos cientistas, políticos e intelectuais brasileiros, especialmente os do início do
século XX, como uma espécie de passagem, em que as “raças” inferiores se purificariam ao
sofrer o processo de miscigenação, diluindo os aspectos fenotípicos do negro, incorporados e
apagados no fenótipo da população branca (ARAÚJO, 2006).
Diante dessas conjecturas, como a telenovela brasileira atuaria na difusão da ideologia
da mestiçagem e do mito da democracia racial? A resposta para esta indagação, de acordo
com que estamos concebendo, ao tratar da representação do negro e da ideologia do
branqueamento nas telenovelas, é apresentada por Araújo (2006) da seguinte maneira:
E hoje, os mitos da “raça cósmica”, ou do “mulato inzoneiro” que resultaria
na formação de um homem novo ideal nas Américas, revelam-se apenas
13
como celebrações discursivas do passado, e caem por terra quando
observamos as telenovelas brasileiras, mexicanas, colombianas,
venezuelanas, ou produzidas em qualquer parte da América Latina, que
funcionam como os melhores atestados de que sempre prevaleceu à
ideologia da branquitude como formadora do padrão ideal de beleza e, ao
mesmo tempo, como legitimadora da ideia de superioridade do segmento
branco. A escolha dos galãs, dos protagonistas, celebra modelos ideais de
beleza europeia, em que quanto mais nórdicos os traços físicos, mais
destacado ficará o ator ou atriz na escolha do elenco (ARAÚJO, 2006, p.
76).
Esses apontamentos do autor revelam que o tipo físico celebrado e idealizado pelos
telespectadores de telenovelas serão os modelos fenotipicamente brancos, cuja ideia de beleza
é sempre associada ao seu biótipo. Em relação aos atores e as atrizes negros e mestiços
brasileiros “[...] independente da fusão racial a que pertencem [...]” (ARAÚJO, 2006, p. 77) se
aparentam traços acentuadamente não brancos, serão vitimados pelos estereótipos dos papéis
que interpretarão nas telenovelas.
Dessa maneira, quando o negro e o indígena aparecem nas telenovelas trazem consigo
os vestígios dos estereótipos que a condição racial brasileira impõe a esses grupos:
subalternidade, malandragem, aspecto estético negativo, sensualidade e ingenuidade. Esse
estratagema dificulta a afirmação de uma identidade racial mais positiva da população negra.
Aquelas identidades que social e historicamente sempre foram esquecidas,
desprestigiadas e negadas, por exemplo, a negra, na teledramaturgia é condicionada a se
manifestar de forma apagada e fragmentada. Desencadeando uma percepção social do
segmento negro estereotipado e deslocado virtualmente das suas raízes culturais. Isso pode,
em certa medida, inviabilizar e gerar uma crise na questão do reconhecimento da pertença
racial.
Entretanto, seria bom ressaltar que as telenovelas não são capazes sozinhas de
produzir este efeito, já que a discriminação racial, o racismo e a ideologia do branqueamento
são construções sociais forjadas ao longo da história da formação do país. O que buscamos
refletir e discutir, por meio desta pesquisa, é que as telenovelas, possivelmente, fortalecem a
crise da concepção de pertencimento racial na população negra no Brasil. Em conformidade
com isso, Bauman (2005) aponta que o mundo contemporâneo passa por uma crise de
identidade. Sendo que as culturas subalternizadas pelas elites dominantes eurocêntricas, estão
com as formas de se ver e de representar comprometidas e fragmentadas. Nesse sentido, as
telenovelas exerceriam uma função ideológica, intencional ou não, subalternizando os
segmentos étnicos com menor poder de representação política, cultural e social. Assim, o
14
brasileiro cuja ascendência seja negra (pretos ou pardos) encontra dificuldade de se
reconhecer como negro. É lhe imposto a todo o momento, no convívio social e pelos meios de
comunicação de massa, sobretudo pela televisão e em particular pelas telenovelas, que seu
modo de ser deve se aproximar e se identificar com a cultura euro-norte-americana, ou seja,
com as bases ideológicas que compõem a mentalidade da elite branca brasileira.
Por esse prisma, os produtores das novelas, querendo ou não, ajudam a camuflar, junto
aos telespectadores, a percepção mais detalhada dos problemas sociais, por exemplo, a
questão do racismo no Brasil, ao enfatizarem, nos enredos novelísticos, à subordinação do
negro em relação ao branco. Na lógica racista da sociedade brasileira, as telenovelas parecem
exercer um papel terrível ao reforçarem, como naturais, as posições sociais e os lugares
ocupados pelos negros e pelos brancos. Em um detalhe sutil, sugerem que a fonte de
inspiração, para a ocupação dessas posições sociais, estaria alicerçada em uma suposta
hierarquia das raças, que insistem em destacar ideologicamente, sem tratar disso abertamente.
Saber, portanto, em que estrutura ideológica está fundada, por exemplo, o conteúdo
das novelas brasileiras, pode contribuir no desenvolvimento de uma consciência mais crítica
em relação aos produtos audiovisuais exibidos nos canais abertos.
A ideologia do branqueamento, nesta perspectiva, faz parte da estrutura dos produtos
audiovisuais, apresentando o negro quase sempre de modo estereotipado, e com sua
identidade fragilizada por concepções preconceituosas, abstratas e separadas da identificação
com a cultura negra. Desconsiderando assim, o forte hibridismo dessa cultura (CANCLINI,
1990) na sociedade brasileira.
Por esse ângulo, pode-se perceber como está sistematizada a indústria cultural
brasileira, sendo inspirada e influenciada pelos modelos euro-norte-americano. A telenovela,
dessa maneira, se torna [...] “não só o elemento-chave do desenvolvimento industrial da
televisão brasileira e latino-americana, como também o programa mais legítimo nas
preferências populares” (ARAÚJO, 2004, p. 19). Por fazerem parte dessas preferências, as
telenovelas têm grande acesso aos lares brasileiros. Nesses discursos, linguísticos e visuais,
um modelo estético dominante de pessoa é construído ao apresentar o branco sempre em
primeiro plano nas telenovelas, branqueando a referência identitária e fragilizando a
autoafirmação de outros grupos étnicos, como os afro-brasileiros.
A telenovela é um formato moderno dos antigos folhetins, e carrega forte carga
simbólica, transmitida pela televisão aberta do Brasil com grande audiência, inclusive
exportada para países da América Latina, africanos e europeus. Ela é o principal produto da
indústria cultural brasileira. “E, a partir dos anos 70, ao lado do telejornal, adquiriu o status
15
definitivo de programa de maior audiência e de sucesso com o público” (ARAÚJO, 2004, p.
19).
A telenovela brasileira exibe temas inspirados e originados na trama social, levando as
pessoas, por muitas vezes, a se identificarem com as narrativas e os diversos debates inseridos
em seus conteúdos. Entretanto, como a telenovela é um produto da cultura industrializada, há
um ar de semelhança que a caracteriza, próprio da seriação dos produtos feitos para serem
vendidos. Desse modo, os clichês são recorrentes e determinantes para o sucesso da
audiência. Por exemplo, em quase todas as novelas os mocinhos e mocinhas, os heróis e
heroínas são aqueles que espelham descendência europeia. Os serviçais, como cozinheiras,
babas, faxinheiras, na sua maioria, são negros e com pouca participação na trama da novela.
Para quem assiste em outros países as novelas brasileiras, fica a impressão de que o
Brasil é constituído por uma maioria branca, podendo concluir que não há em solo nacional
problemas raciais, que vivemos em uma genuína democracia racial, pois as novelas dizem
implicitamente um pouco de como a sociedade brasileira é organizada social e racialmente.
Nas telenovelas, em uma simples observação do telespectador mais interessado e
antento as questões raciais, será possível perceber que o negro tem pouca participação e
completa ausência em alguns programas televisivos, princiapalmente, como apresentador de
destaque, ou mesmo como ator protagonista em alguma novela das principais emissororas de
televisão do país.
Nenhum dos grandes atores negros parece ter escapado do papel de escravo
ou serviçal na história da telenovela brasileira, mesmo aqueles que quando
chegaram à televisão já tinham um nome solidamente construído no teatro
ou no cinema, como Ruth de Souza, Grande Otelo, Milton Gonçalves e
Lázaro Ramos (ARAÚJO, 2008, p. 979).
A teledramaturgia nacional reservou aos atores negros papéis subalternos, como se
coubessem a eles apenas à representação do flagelo e humilhação que o terror da escravidão
infligiu aos africanos a mais de três séculos no Brasil. Diante disso, quando o negro atua nas
telenovelas apenas incorporando personagens submissos e inferiorizados socialmente (como
de pessoa escravizada, empregada doméstica, pobre, favelado), atribuem-lhe um signo, uma
marca que faz com que o público telespectador o identifique como negro.
Tendo em vista esse enfoque, Guimarães, com base nos estudos de Gomes (2003) e
Barth (2004), elabora sua crítica acerca de discriminação e signos.
16
Para discriminar, as pessoas reconhecem quem é negro e quem é branco,
mas desconhecem essas diferenças quando é para incluir, afirma Nilma
Gomes (2003). Não são as diferenças objetivas que fazem com que os seres
humanos se diferenciem etnicamente. São alguns signos que são escolhidos
como emblemáticos, enquanto outros são ignorados. É por meio desses
emblemas que as pessoas afirmam, constroem, realçam e exibem uma
identidade comum (BARTH, apud HOFBAUER, 2004). A cor da pele é um
desses traços emblemáticos. E é pela categoria cor que o IBGE mostra as
significativas diferenças existentes entre os grupos compostos pela cor
branca e os grupos de cor negra (GUIMARÃES, 2010, p. 84).
O meio pelo qual esses signos são reafirmados, posicionados com evidência e
transmitidos como emblemas de uma categoria racial, no caso dos meios de comunicação de
massa, teria o poder ideológico de reforçá-los. Realçando dessa forma a crença de que a cor
da pele negra é inferior à cor da pele branca, ao conceder maior visibilidade em seus produtos
audiovisuais, como nas telenovelas, a presença hegemônica do fenótipo caucasiano.
No imaginário da maioria da população negra, talvez, isso possa fomentar uma “[...]
identidade racial negativa [...] reforçada pela indústria cultural brasileira, a qual insiste
simbolicamente no ideal do branqueamento, sendo um dos corolários do desejo de euro-norte-
americanização [...]” (ARAÚJO, 2004, p. 25) de grande parte dos brasileiros. As pessoas que
não se encaixam nesse padrão podem se sentir inconscientemente inferiorizadas. Para citar um
exemplo disso, salientamos a questão do cabelo, tão valorizado pelas mulheres. O cabelo
crespo tem uma tímida representação afirmativa nas novelas exibidas diariamente. Pois, em
sua maioria, as personagens negras são forçadas, pelo menos aparentemente, a negarem sua
negritude, alisando seus cabelos para se enquadrar ao padrão de referência branco.
Assim, as telenovelas difundem o ideal de branqueamento introjetando na população
negra (na classificação do IBGE a categoria negro envolve os pretos e pardos), o mal-estar de
pertencer a um grupo étnico-racial com uma rica cultura, mas que reiteradamente é negada,
sonegando o direito de sua representação de maneira não estereotipada e mais afirmativa.
Subjetivamente, as telenovelas reforçam o racismo à moda brasileira, ao propagarem,
por meio da sua dramaturgia, a estética branca como único padrão de referência de beleza dos
brasileiros. De modo que há nas telenovelas, um apagamento da cultura e da identidade afro-
brasileira. Segundo Santos (2011), a questão da identidade, da cultura negra, e como os
diferentes povos africanos foram trazidos para cá, contribuindo com seu suor, sangue e
lágrimas para a formação da sociedade brasileira, parecem não receber o devido valor perante
as produções audiovisuais. As telenovelas, nesse sentido, cooperam de modo muito
17
prejudicial, reforçando esses aspectos de negação da importância dos africanos e seus
descendentes na consolidação do país como uma nação forte e etnicamente diversa.
[...] a grande contribuição do negro à cultura brasileira ou era folclorizada ou
era reduzida ao passado, à história “o negro deu o vatapá, o índio trouxe o
gosto pelas lendas, - sempre as formas verbais pretéritas” (SANTOS, 1988,
prefácio, apud SANTOS, 2011, p. 6).
Nesse passado histórico, séculos XVI a XIX, no qual o Brasil utilizou de mão de obra
de pessoas escravizadas, é sempre retomado pelas telenovelas que, persistemente, se portam,
por exemplo, no caso da Abolição, como se tivesse sido tão somente o resultado do esforço do
branco, desconsiderando as revoltas e as resistências encampadas pelos africanos e afro-
brasileiros que viveram nesse período de horrores imensuráveis.
Assim, novelas como “A Escrava Isaura”, de 1977, e “Sinhá-Moça”, de 1986, ambas
produzidas pela Rede Globo (ARAÚJO, 2004), reproduziram em relação à Abolição, e aos
negros escravizados, os estereótipos da passividade, da dependência e submissão ao senhor de
engenho, da resignação da condição na qual viviam e da esperança de serem libertados por
um herói branco, como representado na novela “Sinhá-Moça” (1986) pelo Irmão do
Quilombo. Apesar de terem sido produzidas em um contexto social e histórico diferentes,
(pois o Brasil na década de 1970 estava mergulhado na ditadura militar, e já em meados da
década de 1980 estava saindo dessa ditadura, em um momento de redemocratização do país,
sendo que as questões raciais, mesmo com as pesquisas patrocinadas pela UNESCO nos anos
1950 e sua repercussão, parecem que não estavam na agenda política e social como prioridade
nesses dois momentos de nossa história), essas telenovelas, que trataram da Abolição,
independentemente das condições históricas ou sociais na qual foram produzidas, sempre
realçaram a figura das personagens brancas, apresentando-as com maior ênfase e relevância
no conjunto dos capítulos e na distribuição dos papéis, em detrimento das personagens negras.
Talvez, isso possa introjetar psicológica e ideologicamente nos telespectadores o
branqueamento em seus diversos aspectos (tanto nos hábitos, quanto nos costumes dos afro-
brasileiros), fragilizando a percepção positiva da herança africana na cultura brasileira. Isso,
provavelmente, confirma que na concepção e no pensamento das elites dominantes, que
acabam influenciando não apenas a sociedade em geral, mas também os produtores das
telenovelas, criando um senso comum, o negro, assim como o indígena, contribuíra de
18
maneira quase que irrisória para a consolidação da população brasileira. Tal pensamento
parece residir no imaginário brasileiro, estimulado, em grande parte, pelas telenovelas.
Diante disso, aventamos que a ideologia do branqueamento nas telenovelas, auxiliaria
na formação de um imaginário depreciativo da cultura, da religião, do fenótipo negro, da
capacidade intelectual e moral da população negra. Assim, para investigarmos estas questões
e realizar a pesquisa, cuja intenção principal é contribuir para reflexão teórica acerca da
problemática racial brasileira, do conceito de raça, e dos possíveis efeitos da ideologia do
branqueamento na sociedade, nos servimos de uma metodologia em que buscou-se fazer um
levantamento bibliográfico minucioso, respaldado em literatura especializada na questão
racial e na ideologia do branqueamento, bem como na observação e na análise de novelas
exibidas nos canais abertos brasileiros. No entanto, por existirem um número muito grande de
novelas já produzidas, fizemos a opção por escolher apenas uma especificamente, para
aprofundarmos um pouco mais as questões que apontamos anteriormente. Dessa maneira, a
telenovela selecionada foi “Lado a Lado”, de (2012), que será analisada empiricamente, e do
ponto de vista de um recorte racial. Procuramos relacionar as teorias raciais com o conteúdo
dessa novela, ilustrando como as concepções racistas perpassam a sociedade brasileira.
Destacamos que essa novela talvez seja um exemplo de como deveria ser afirmada a história
da população negra no Brasil. Apesar de considerarmos que ela está ainda inserida na lógica
da ideologia do branqueamento da cultural audiovisual brasileira. No entanto, esta telenovela
indica caminhos possíveis de como se poderia tratar a cultura negra de maneira menos
estereotipada nos produtos televisivos. Esse seria um dos motivos pelos quais optamos por
analisar a novela. No terceiro capítulo, apontaremos com mais detalhes o porquê dessa
escolha.
Por fim, nas considerações finais, realizaremos uma breve discussão no âmbito da
educação, em que apontamos uma possível intervenção de enfretamento da ideologia do
branqueamento e do racismo, a partir de uma educação antirracista no ensino médio, com
base na Lei 10.639/2003.
Assim, a proposta desta pesquisa é contribuir para a reflexão, a análise e a
compreensão da ideologia do branqueamento nas telenovelas e sua repercussão na sociedade.
Para tal empreendimento, organizamos a dissertação em três capítulos, distribuídos da
seguinte maneira:
O Capítulo I, intitulado “Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça”, irá
discutir acerca do racismo e sua problemática na sociedade brasileira. Também abordaremos a
ideia de classe social, usada como justificativa por muitos intelectuais para explicar as
19
desigualdades e as hierarquias raciais existentes no Brasil. O conceito de raça será examinado
como uma categoria analítica com muitas controversas, cujo debate realizado por alguns
estudiosos da problemática racial não chegaram a nenhum consenso. Desse modo,
apontaremos nesse capítulo as discussões existentes em torno das diferenças na concepção de
raça e de etnia como categorias importantes para se compreender a dinâmica racial brasileira.
No Capítulo II, denominado de “Televisão e telenovelas: breve introdução teórica”,
realizaremos inicialmente uma discussão sobre a televisão e as telenovelas, tendo como
embasamento as concepções da Escola de Frankfurt e dos Estudos Culturais acerca das
produções da indústria cultural e sua influência no gosto popular. Apresentaremos uma
reflexão sobre os possíveis efeitos sociais da televisão e de sua origem no Brasil. Esse
capítulo também toca na questão das radionovelas como antecessoras das telenovelas.
Falaremos, de modo geral, sobre as novelas e as temáticas sociais que foram desenvolvidas
como conteúdo de seus enredos, contribuindo, desse modo, para o debate de muitos temas
relevantes para sociedade brasileira, como a homossexualidade e a AIDS, cuja presença é uma
constante nas telenovelas. Por outro lado, o mesmo não acontece com a temática em torno das
relações raciais.
Nomeamos o Capítulo III de “Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela
“Lado a Lado” como um caso emblemático”, no qual fazemos uma análise mais empírica
dessa telenovela, trazendo alguns diálogos das principais personagens como exemplo para
fundamentar nossos pressupostos. Também nesse capítulo, discute-se que essa novela talvez
tenha acabado apenas reproduzindo os estereótipos difundidos na sociedade sobre o negro. No
início do capítulo, justificamos o porquê da escolha dessa telenovela para a nossa análise
empírica. Salientando que, pelo menos nos últimos anos, foi uma produção ficcional
emblemática, que mais evidenciou a figura do negro e de sua história no Brasil. Não obstante
a esse destaque dado a participação da população negra na consolidação da cultura e na
formação do povo brasileiro, a novela “Lado a Lado” parece não ter escapado aos estereótipos
raciais que estão impregnados na sociedade. Tratando a cultura negra de forma essencializada,
ao realçar, por exemplo, o negro como o bom de bola, o capoeirista habilidoso, o malandro
safo e a mulher negra cheia de sensualidade. Assim, sugerimos que “Lado a Lado” seja uma
telenovela interessante para se discutir a ideologia do branqueamento no âmbito educacional,
sendo que essa discussão poderá ser acionada pelas disciplinas de filosofia e sociologia do
ensino médio.
20
CAPÍTULO I
Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça
Os estudos e as pesquisas concernentes ao racismo no Brasil, são considerados pela
academia um tema antigo, pois remonta ao século XIX. Há muitas pesquisas na área e
diversas publicações sobre o assunto. Mas, a problemática do racismo na vida social ainda
persiste. Agora, mais complexo e diluído nas dinâmicas sociais. Certamente que a
problemática do racismo não é um tema fácil de ser tratado, sobretudo em um país como o
Brasil, onde a sociedade não considera, de modo geral, que há um racismo instalado
estruturalmente. Há uma negação, uma cegueira generalizada, certo tabu e equívocos (estes
últimos provocados pela ideologia do branqueamento e pelo mito da democracia racial), que
as pessoas reproduzem quando estimuladas a falar do racismo, mesmo que informalmente.
Considerando isso, suscitamos as seguintes indagações: quando é que surge o
racismo? Ele tem uma história? E no Brasil, o racismo teria quais resquícios históricos? Estas
são questões preliminares que apresentamos para direcionar, pelo menos em parte, a reflexão
sobre o racismo e seu desdobramento, cujo caso brasileiro teve como uma das consequências
a ideologia do branqueamento. Porém, por hora vamos abordar a problemática do racismo e o
conceito de raça. Em linhas gerais, esta é a proposta preambular desse primeiro capítulo. De
modo que, para marcar o lugar teórico de nossas concepções, de antemão anunciamos que a
posição adotada aqui, em relação ao conceito de raça, está relacionada em um sentido
analítico, já que está mais do que provado (histórico e biologicamente) que raça, quando se
refere a classificação da diversidade humana, não existe. Raça, na perspectiva assumida nesta
pesquisa, se refere à cor da pele ou ao fenótipo das pessoas.
1.1 A ideia de classe social como justificativa das desigualdades e hierarquias raciais
A partir do século XX, os estudos e as concepções de classe social parecem querer
justificar as desigualdades raciais existentes (GUIMARÃES e MACEDO, 2008). Guimarães
(2002) afirma que o conceito de classe foi usado nos estudos sobre as sociedades ocidentais
industrializadas, principalmente pela filosofia moral, no sentido de privilégio e honra social,
sobretudo no domínio aristocrático e no ancien régime (antigo regime aristocrático social e
político francês que esteve em vigor nos séculos XVI e XVIII). Karl Marx (século XIX) seria,
21
de certa forma, o responsável por incorporar este termo à moderna ciência social. Mas foi
Max Weber (século XX) que concedeu ao termo classe uma noção mais precisa, ao separar e
distinguir, de maneira mais clara, tudo aquilo que estava ligado ao termo classe, que se referia
à honra e aos privilégios. Esta separação, que, segundo Guimarães (2002), é analítica,
possibilitou a problematização do termo classe, desvinculado “[...] da distribuição econômica
de riquezas, a continuidade, nas sociedades modernas, dos fenômenos de distribuição da
honra e do prestígio social” (GUIMARÃES, 2002, p. 43).
Assim, no pensamento sociológico persistiu “[...] a associação das “classes sociais” a
ordens competitivas, a relações sociais abertas, ao capitalismo e à modernidade”
(GUIMARÃES, 2002, p. 43). A concepção inglesa de classe social em seu uso vulgar
permaneceu, sobretudo, na Inglaterra e nos Estados Unidos.
No caso do Brasil, a questão da discriminação racial vinculada à ideia de raça e cor,
“[...] são amplamente consideradas, pelo senso comum, como discriminações de classe, o
sentido pré-sociológico do termo nunca deixou de ter vigência” (GUIMARÃES, 2002, p. 43).
A noção antiga do termo classe, e seu uso para justificar as desigualdades brasileiras, “[...]
pode ser compreendido como pertencendo à ordem das desigualdades de direitos, da
distribuição da honra e do prestígio social, em sociedades capitalistas e modernas [...]”
(GUIMARÃES, 2002, p. 43). Nessas sociedades, permaneceu em termos razoáveis e
inalterados, certa ordem ou organização hierárquica em que os privilégios foram mantidos.
A partir dos anos 1990, a lacuna teórica acerca da concepção de classe começa a ser
abordada. O preenchimento dessa lacuna tem início, como sugere Guimarães (2002), nos
escritos do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que aponta a existência de uma ordem
social brasileira que é herdeira da colonização portuguesa, uma sociedade altamente
hierarquizada.
[...] no seio de um sistema hierarquizado, não está em ter alguma
característica que permita diferenciar e assim inferiorizar, mas em não ter
relações sociais. Uma vez que tais relações são estabelecidas, todos ficam
dentro de um sistema totalizante e é sempre por meio dele que as diferenças
entre os grupos são resolvidas (DAMATTA, 1987, p. 76-77).
Guimarães esclarece que DaMatta compreende que “[...] a chamada sociedade de
classe [...] não pressupõe uma ordem social igualitária e relações sociais abertas”
(GUIMARÃES, 2002, p. 43-44). Para Guimarães (2002), DaMatta se inspirou em
interpretações clássicas sobre o racismo e a igualdade (tais como a do antropólogo americano
22
Marvin Harris e de concepções como as do antropólogo francês Louis Dumont), para levantar
a hipótese de que a “[...] ‘quase rígida estrutura de classes’ brasileira [teria sido] a responsável
pela relativa ausência de discriminação racial no país” (GUIMARÃES, 2002, p. 44). Desse
modo, toda confusão em torno da ideia de discriminação de classe e discriminação racial
parte, em princípio, de uma postura ideológica e da imprecisão semântica dos “[...] três
significados do termo “classe” – grupo identitário, associação de interesses e sujeito político e
histórico” (GUIMARÃES, 2002, p. 43-44).
O termo classe, mesmo quando utilizado na sua perspectiva sociológica, se conecta de
maneira explícita em uma relação de ordem, de direitos e igualdade (EDER, 2001). Isso
presume uma “[...] desigualdade de direitos que o termo vulgar e pré-sociológico sugere”
(GUIMARÃES, 2002, p. 44), pois ao “[...] dizer que não é racial a discriminação que, no
Brasil, sofrem os negros, equivale a silenciar o que deveria ser dito: que se encontra ativo, na
nossa ordem de classe, o princípio de desigualdade de direitos individuais” (GUIMARÃES,
2002, p. 44). Nesse sentido, e se valendo das ideias do cientista político José Murilo de
Carvalho, Guimarães chama “[...] a atenção para o fato de que a noção de cidadania, no
Brasil, refere-se mais propriamente à igualdade de direitos políticos que à igualdade de
direitos civis” (GUIMARÃES, 2002, p. 44).
Guimarães indica que grande parte dos escritos e pesquisas na área da sociologia atual,
e que se dedica a investigar a questão da exclusão e os limites da cidadania das classes não
hegemônicas ou populares, está relacionada diretamente ao campo de estudos das classes
sociais. Estes estudos investigam, portanto, a “[...] ordem estamental, a ação de grupos, a sua
hierarquia e a formação de comunidades, mesmo quando distante da problemática econômica
das classes” (GUIMARÃES, 2002, p. 44).
O desafio do momento presente, é conseguir relacionar os estudos que tratam da
desigualdade entre os indivíduos e as desigualdades de classes.
[...] dialogar tradições que refletem sobre: a) as heranças patrimonialistas e
autoritárias; b) a ideologia da desigualdade brasileira, sob a forma mitológica
de democracia racial; c) a prática cotidiana da desigualdade, através da
violência física e simbólica; d) a formação de atores coletivos e sua política;
e) a inserção econômica destes atores e a sua dinâmica produtiva
(GUIMARÃES, 2002, p. 45).
Os estudos e as discussões sobre as questões raciais giram em torno, para alguns, da
ideia de classe social, pois não haveria um problema genuinamente racial no Brasil.
Guimarães (2002) destaca que esta visão está enraizada nos argumentos de marxistas, tais
23
como Pierson (1945; 1948; 1971), Pinto (1945), Willems (1947; 1947) e Florestan Fernandes
(2007). Esses autores asseveram que a discriminação racial brasileira seria ocasionada pela
desigualdade existente entre as classes sociais.
[...] a expansão urbana, a revolução industrial e a modernização ainda não
produziram efeitos bastante profundos para modificar a extrema
desigualdade racial que herdamos do passado. Embora “indivíduos de cor”
participem (em algumas regiões segundo proporções aparentemente
consideráveis), das “conquistas do progresso”, não se pode afirmar,
objetivamente, que eles compartilhem, coletivamente, das correntes de
mobilidade social vertical vinculadas à estrutura, ao funcionamento e ao
desenvolvimento da sociedade de classes (FERNANDES, 2007, p. 67).
Essa mentalidade está representada imageticamente nas telenovelas, nas quais os
negros estão sempre em posição subalternizada, dando a ideia de que há um problema social
de desigualdade no Brasil, mas que esta desigualdade é desencadeada pela tensão produzida
nas relações de classe. Esse seria um ponto importante, embora falso, em que gira a discussão
racial no Brasil. Certamente que esta perspectiva enfrenta forte refutação de intelectuais, a
exemplo do sociólogo Guimarães (2002; 2008), que procuram evidenciar que a discriminação
racial que os negros brasileiros sofrem não teria origem nas relações de classe.
Sobre esta questão, as considerações do sociólogo Jessé Souza1 (2005) nos apontam
uma perspectiva distinta da origem da desigualdade social, principalmente a enfrentada pela
população negra no Brasil. Em seu texto “Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira”, o
autor argumenta que “[...] será a noção de disciplina e controle do corpo e de suas emoções e
necessidades, que passará a diferenciar imperceptivelmente, classes sociais, gênero, etnias,
etc.” (SOUZA, 2005, p. 50). À vista disso, onde se localizaria o ponto inicial dessa
diferenciação imperceptível?
A concepção de mundo exportada para a periferia do capitalismo é [:] [...]
controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais, interiorização
progressiva de todas as fontes de moralidade e significado e entronização
concomitante das virtudes do autocontrole, autorresponsabilidade, vontade
livre e descontextualizada e liberdade concebida como autorremodelação em
relação a fins heterônomos. É precisamente esta noção historicamente
construída, altamente improvável e culturalmente contingente de
personalidade e de condução da vida, que se constituiu na Europa ente os
séculos XVII e XVIII, que passa a ser o núcleo duro da hierarquia valorativa
incrustada de forma opaca e intransparente no funcionamento destas
1 Professor da Universidade Estadual Norte Fluminense (UENF), com diversos livros publicados, como “Ralé
brasileira: quem é e como vive”, 2009, pela Editora UFMG.
24
instituições fundamentais. Em outras palavras e weberianamente: o
protestantismo ascético, que constrói essa noção contingente e única de
agência humana, passa a ter agora como suporte secular à lógica impessoal
de mercado e Estado que reproduz, através de estímulos empíricos como
dinheiro e coerção legal, o mesmo tipo de indivíduo que antes a fé produzia
(SOUZA, 2005, p. 57).
Os valores criados a partir de uma mentalidade com fundo religioso-moral, ligada às
formas de produção da vida material, irão estabelecer uma hierarquia valorativa de como se
deve comportar para obter sucesso, tanto no mercado de trabalho como no Estado, com suas
funções de gestão e cargos públicos.
Para explicar o que foi dito, Souza (2005) se utiliza do conceito de habitus de
Bourdieu, mas ampliando este conceito. Assim, acrescenta o habitus primário para elucidar a
formação das classes médias e o domínio que exercem sobre as classes inferiores.
Sugestivamente, sua interpretação do preconceito contra o negro (e também em relação ao
branco pobre, seja urbano ou rural) estaria nesse habitus primário, que, segundo Souza, é
formação sociocultural sólida e não apenas condições econômicas, como argumentam os
marxistas sobre a divisão e a luta de classes, que estabeleceriam inicialmente a desigualdade
entre as classes sociais.
Desse modo, a população negra, sobretudo a brasileira, não teve um ponto de partida
consoante a um habitus primário que garantisse o sucesso no mercado e no Estado.
[...] é a reprodução de um “habitus precário” a causa última da inadaptação e
marginalização desses grupos, como o próprio Florestan parece acreditar,
pelo menos na parte inicial de seu livro, não é “meramente a cor da pele”,
como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasileira
tendem, hoje, a interpretar. Se há preconceito neste terreno, e certamente há,
e agindo de forma instransparente e virulenta, não é, antes de tudo, um
preconceito de cor, mas sim um preconceito que se refere a certo tipo de
“personalidade”, ou seja, de um habitus específico, julgada como
improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo (SOUZA, 2005, p.
59).
Souza (2005; 2009a) defende que não são os fatores economicistas que determinam as
desigualdades entre as classes sociais (ou coloca o negro em situação de subalternidade na
sociedade contemporânea). De acordo com o autor, os fatores mais fortes e determinantes no
estabelecimento dessa desigualdade são os valores imateriais. Aquilo que se aprende na
intimidade familiar, e que é transmitido naturalmente, por meio do capital cultural, para os
filhos e filhas como valores fundamentais para obter sucesso na vida (SOUZA, 2005; 2009a).
25
Diante do posicionamento de Souza, podemos inferir que o racismo e a discriminação racial
também se aprenderiam nas relações sociais primárias, como a da família, por exemplo.
Souza (2005; 2009a) argumenta que o racismo seria produzido somente entre as classes,
assim tecendo uma crítica a autores como Florestan Fernandes e Guimarães, sobretudo a este
último, em que entende a desigualdade social no Brasil pelo viés racial, como já expomos
anteriormente.
Na visão de Souza (2005; 2009a), de maneira sumária, a discriminação racial ainda
continua sendo acionada pela classe social. O diferencial da análise de Souza (2005; 2009a) é
que há toda uma pré-condição sociocultural para que o racismo continue existindo. Como
revela o autor, o racismo é uma reunião de conceitos que podem ser aprendidos nas relações
familiares com seus valores morais, estéticos e capitais culturais, e que sustentam a
discriminação racial e alargam a desigualdade entre brancos e negros.
O que o mercado, o Estado, uma “ciência” e um senso comum dominantes
— mas dominados por uma perspectiva conservadora, acrítica e quantitativa
— nunca “dizem” é que existem precondições “sociais” para o sucesso
supostamente “individual”. O que todos escondem é que não existe o
“talento inato”, o mérito “individual” independentemente do “bilhete
premiado” de ter nascido na família certa, ou melhor, na classe social certa.
O indivíduo privilegiado por um aparente “talento inato” é, na verdade,
produto de capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos por
mecanismos de identificação afetiva por meio de exemplos cotidianos,
assegurando a reprodução de privilégios de classe indefinidamente no
tempo. Disciplina, capacidade de concentração, pensamento prospectivo
(que enseja o cálculo e a percepção da vida como um afazer “racional”) são
capacidades e habilidades da classe média e alta que possibilitam primeiro o
sucesso escolar de seus filhos e depois o sucesso deles no mercado de
trabalho. O que vai ser chamado de “mérito individual” mais tarde e
legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que “cai do céu”, mas é
produzido por heranças afetivas de “culturas de classe” distintas, passadas de
pais para filhos. A ignorância, ingênua ou dolosa, desse fato fundamental é a
causa de todas as ilusões do debate público brasileiro sobre a desigualdade e
suas causas e as formas de combatê-la (SOUZA, 2009a, p. 22-23).
O pensamento de Souza (2009a) manifesta que as desigualdades sociais no Brasil não
são de caráter racial, anunciando que o problema racial brasileiro não seria solucionado
apenas atendendo as necessidades econômicas e materiais dos segmentos marginalizados. Não
é resolvendo simplesmente a questão econômica da população negra, ou tão somente
inserindo-a no mercado, que a desigualdade desapareceria, como declara Souza (2005;
2009a), em resposta à argumentação de Florestan Fernandes. As condições socioculturais
26
estabeleceriam uma precariedade (histórica) nas relações sociais da vida dos negros,
dificultando sua ascensão social.
Ao invés da oposição clássica entre trabalhadores e burgueses, o que temos
aqui, numa sociedade perifericamente moderna como a brasileira, como
nosso “conflito central”, tanto social quanto político e que subordina em
importância todos os demais, é a oposição entre uma classe excluída de todas
as oportunidades materiais e simbólicas de reconhecimento social e as
demais classes sociais que são, ainda que diferencialmente, incluídas
(SOUZA, 2009a, p. 25).
Pode ser que estas concepções de Souza (2005; 2009a) explique, por exemplo, o que
foi discutido em páginas anteriores, a respeito da hipótese de que o racismo brasileiro esteja
relacionado diretamente com a questão da aparência. Para tratar desse aspecto, vamos nos
fundamentar, a partir de agora, na percepção e no estudo das obras de estudiosos e
pesquisadores do racismo, especialmente do racismo que ocorre no Brasil, que apontam a
discriminação e o preconceito racial no Brasil relacionados diretamente com o fenótipo
(aparência das pessoas), pois, quanto mais pigmentação escura a pessoa tiver, mais sentirá a
discriminação racial independente da classe ou da condição social.
Entretanto, na discussão racial dos últimos sete ou oito anos, um grupo de intelectuais,
antropólogos e sociólogos, tais como Yvonne Maggie (2005-2006), Peter Fry (2005), Simon
Schwartzman (2007) entre outros, posicionaram-se contra as cotas raciais nas universidades,
alegando que no Brasil o problema racial era superficial. Esses autores defendem seus
posicionamentos teórico e político, ponderando que as questões que envolvem as
desigualdades entre as classes sociais e a baixa qualidade da educação básica quanto da
educação superior seriam as causas principais da falta de oportunidade da população negra
para ingressar em outras esferas das relações sociais (SCHWARTZMAN, 2007). Apontam
ainda que as cotas raciais (políticas de Ação Afirmativa) são um engano que provavelmente
irá racializar e dividir o país.
Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e
etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível
alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e
precisamos participar (SCHWARTZMAN, 2007, p. 110).
Não concordamos inteiramente com esse argumento. Pois, ao se valorizar a cultura
afro-brasileira, não significa que se deva abandonar e desprezar o que o Ocidente produziu
culturalmente, e que é aceito como cultura universal. Mas, de dar oportunidade de se
27
conhecer, sem estereótipos, as culturas de matrizes africanas e indígenas que deram origem à
sociedade brasileira. Compreender que essa sociedade já nasceu racializada. Os indígenas
foram os primeiros a sofrer com o racismo dos colonizadores. Em seguida, foram os negros
transplantados pelos europeus, diretamente de algumas regiões da África, em terras brasileiras
para servi-los como escravos.
Dessa forma, apontamos outra hipótese em relação ao racismo existente no Brasil,
com base em autores como Guimarães (2002; 2008; 2012) DaMatta (1986) e Barros (2009),
que sinalizam que a estrutura histórico-social da formação da sociedade brasileira contribuiu
para que o racismo se potencializasse. A maneira como os negros foram inseridos na história
do Brasil e os desdobramentos sociais de suas culturas e identidades evidenciam uma
hierarquia na sociedade brasileira. No caso do antropólogo Roberto DaMatta (1986), as suas
concepções sobre o racismo estão alicerçadas em uma noção que afirma a organização social
brasileira como herdeira de uma sociedade rigidamente hierarquizada, a portuguesa, em que
não se permitia, por exemplo, o intermediário entre o branco e o negro. Este argumento
procura destacar que o racismo à brasileira ocorre justamente porque a sociedade não se vê
como hierarquizada. Pois “[...] o fato contundente de nossa história é que somos um país feito
por portugueses brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada
dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios” (DAMATTA, p. 39, 1986). Os
portugueses já tinham organizado um conjunto de leis que estabeleciam processos
discriminatórios em relação a mouros, judeus e negros, anteriores a chegada às terras
brasileiras.
A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social
contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão
profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a
problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o
Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da
democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada,
que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre
o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de
classificação. Assim, podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo
dinheiro. Pelo poder que detêm ou pela feiura de seus rostos. Pelos seus pais
e nome de família, ou por sua conta bancária. As possibilidades são
ilimitadas, e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora
inabalável confiança no credo segundo o qual, dentro dele, “cada um sabe
muito bem o seu lugar”. É claro que podemos ter uma democracia racial no
Brasil. Mas ela, conforme sabemos, terá que estar fundada primeiro numa
positividade jurídica que assegure a todos os brasileiros o direito básico de
toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei! Enquanto isso não for
descoberto, ficaremos sempre usando a nossa mulataria e os nossos mestiços
como modo de falar de um processo social marcado pela desigualdade, como
28
se tudo pudesse ser transcrito no plano do biológico e do racial
(DAMATTA, 1986, p. 39-40).
Na mentalidade da sociedade parece pairar os fundamentos dessa mistura que ocorreu
nos primórdios da formação do povo brasileiro. Mas, isso é uma fábula, introjetada ao longo
do tempo por um processo mitológico. Pois, este processo alimentou a criação do mito de
origem dos brasileiros. Sendo, no fundo, “[...] uma forma sutil de esconder uma sociedade que
ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação”
(DAMATTA, 1986, p. 39-40). Assim, a fábula das três raças une o entendimento popular,
mais vulgar, e as elaborações eruditas, em formulações sofisticadas de nossa cultura, em que
uma representa o vivido (popular) e a outra o concebido (erudito) (DAMATTA, 1986).
A ideia transmitida por meio dessa fábula foi a de uma mescla e de uma triangulação
das raças. Subjetivamente, na mentalidade brasileira, isso possibilitou conceber e
compreender o surgimento dos intermediários (mulatos, cafuzos e mamelucos). Isso não
ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, onde há uma linha (racial) que se estabeleceu
social e historicamente, impondo os limites das relações entre negros, brancos e indígenas.
Demarcando os limites das relações sociais das pessoas negras, indígenas e brancas.
Aparentemente uma estratégia colonizadora para não pôr em risco os direitos daqueles que
são iguais. De modo que não há uma triangulação de raças nos Estados Unidos. No Brasil,
esta noção é amplamente aceita no entendimento do senso comum, incorporado por diversas
pessoas, tanto pelo povo quanto por políticos, intelectuais e acadêmicos de qualquer
posicionamento político-partidário-ideológico (DAMATTA, 1981). Então por que está fábula
das três raças é tão aceita socialmente? Em que base ela está arregimentada? Quais os são os
pressupostos?
De acordo com DaMatta (1986), Portugal tinha uma estruturada hierarquia social
estabelecida em decretos e leis. Não é como se imagina, ou como é difundido por alguns
escritos históricos sobre Portugal, que o país era uma nação desestruturada. Pelo contrário,
havia uma ordem social rígida. As leis formuladas na Portugal medieval e pré-moderno
decretava não haver uma igualdade entre as categorias sociais, normatizando quem deveria ser
tratado adequadamente segundo sua posição social. Fundando uma hierarquia das relações
sociais em que cada um sabia do seu lugar social (DAMATTA, 1986).
Como base nisso o racismo brasileiro apresenta uma diferença importante, pois nos
Estados Unidos, após a guerra civil, foram estabelecidos os direitos de igualdade e de
individualidade para todos. Mas, ao mesmo tempo, esta igualdade impossibilitou que negros e
29
brancos mantivesse relações mais próximas, como a formação de pares, que propiciasse o
nascimento de mestiços ou dos intermediários. Estes últimos eram condenados pelos teóricos
do racismo norte-americano, considerados como fracos e degenerados, assim, não
merecedores dos direitos que negros e brancos possuíam. Já no racismo brasileiro, está em
funcionamento algo diferente. Primeiro que cada um sabe de seu lugar social, herança da
cultura e da legislação portuguesa, como já dissemos anteriormente. E depois, as relações
raciais brasileiras, conforme a tese de DaMatta (1986), se pautou ideologicamente pelo
encontro das raças, em que o posicionamento tanto do negro, do branco quanto do indígena
era de uma relação frente a frente. Enquanto que os norte-americanos concebiam que brancos
e negros estavam em realidades raciais estanques, individualizadas, fechadas em si mesmas,
posicionadas lado a lado, sem que jamais pudessem entrar em contato umas com as outras de
maneira sincrética, no Brasil, as raças estariam relacionadas de maneira complementar,
formando uma espécie de triângulo racial, possibilitando diversos cruzamentos e gradações
raciais, tornando mais complexa e intrincada a classificação referente ao fenótipo ou a cor
(DAMATTA, 1986). Porém, caso a pessoa seja negra e possuir algum status social, seja
econômico, intelectual ou mesmo um ator famoso de alguma telenovela ou ainda um
esportista de alto rendimento, este indivíduo passará, virtualmente, pelo processo de
branqueamento. Veja o caso dos jogadores de futebol que são negros: boa parte deles se
relacionam com mulheres brancas e loiras. As mulheres brancas brasileiras comuns de classe
média, pelo que se constata, preferem homens brancos para se relacionar. Mas, se um negro
está em uma posição social de destaque, como a de famoso jogador de futebol, a hipótese é de
que elas acabariam dando menos destaque para o fenótipo do atleta, não o enxergando mais
como negro, relativizando sua cor. Isso pode provoca a ilusão de que o racismo à brasileira
seja um problema de classe social.
No entanto, o que pontua a situação do negro no Brasil não é apenas à sua posição
social. Supostamente à sua cor diz de onde ele veio e o que seria capaz de fazer. A cor da
pele, então, funciona como um referencial, que marca as relações de preconceitos vividas
pelos negros brasileiros. Nessa perspectiva, o sociólogo Oracy Nogueira (1998; 2006) afirma
que as relações raciais no Brasil são pautadas pela marca da cor. E não a de origem, como
ocorre nos Estados Unidos. Estas afirmações foram decorrentes de uma pesquisa patrocinada
pela UNESCO nos anos 1954, que procurou averiguar a situação racial do Brasil. Ao referido
sociólogo coube investigar as relações raciais em um município do interior do Estado de São
Paulo, Itapetininga (NOGUEIRA, 1998).
30
Os resultados a que Nogueira (1998; 2006) chegou sobre o racismo no Brasil é que a
discriminação racial é marcada pelo fenótipo da pessoa, pois, quanto mais escura a pessoa e
maior forem os traços africanos, mais ela será vitimada pelo preconceito racial. Por outro
lado, se a pessoa tiver a cor da pele menos escura, em geral, será considerada branca, e não
sentirá tanto os efeitos da discriminação racial. O racismo brasileiro não leva em conta a
origem étnica da pessoa. Não importa sua ancestralidade. Já nos Estados Unidos, o ponto
central é a ancestralidade. A pessoa pode ser branca, com olhos azuis e cabelos lisos
esvoaçantes, mas se tiver um bisavô de pele escura ou mesmo um parente distante na árvore
genealógica, pela ancestralidade será considerado negra (NOGUEIRA, 2006). Apesar dos
estudos de Oracy Nogueira terem aproximadamente 60 anos de sua realização, continua sendo
atual o quadro comparativo que promove entre o racismo à brasileira e o praticado nos
Estados Unidos. Um exemplo dos diversos que cita nesse quadro comparativo, é a tendência
do intelectual brasileiro (em geral fenotipicamente branco) de subestimar o racismo no Brasil,
negando sua existência como algo realmente importante para se discutir e debater. Os
problemas raciais são sempre esquecidos ou deixados para depois. Estes problemas não são
tratados abertamente, e no plano das relações sociais, esta preterição diz respeito ao
esquecimento e a recusa dos seus efeitos na sociedade (NOGUEIRA, 2006, p. 293). De outro
modo, o racismo brasileiro é implícito. Nos Estados Unidos, pelo contrário, é explicito e
declarado. Contudo, os negros nesse país têm acesso aos mesmos direitos que a população
branca. Claro que após a abolição, e, sobretudo, até a segunda metade do século XX, houve
leis segregacionistas terríveis nos Estados Unidos impondo limites das relações sociais e
raciais entre negros e brancos. Entretanto, a luta pelos direitos civis é uma conquista para a
população negra norte-americana que garante, perante a constituição, igualdade de acesso aos
bens públicos e privados para todos. No caso do Brasil, não há leis segregacionistas
institucionalizadas. O que há é uma forma de racismo sutil e, ao mesmo tempo, muito
presente nas relações sociais. Apesar de ter como referência a época (década de 1950) que
realizou seus estudos, Oracy Nogueira cita um exemplo bastante emblemático que ilustra o
que estamos afirmando:
[...] um clube recreativo, no Brasil, pode opor maior resistência à admissão
de um indivíduo de cor que à de um branco; porém se o indivíduo de cor
contrabalançar a desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em
inteligência ou instrução, em educação, profissão e condição econômica, ou
se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso,
“abrindo uma exceção”, sem se obrigar a proceder da mesma forma para
31
com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou mesmo, mais leves
(NOGUEIRA, 2006, p. 293).
Por não ser violento em alguns casos, o racismo à brasileira, ao ser comparado com o
dos Estados Unidos, parece menos dramático, conforme a asseveração do senso comum. No
fundo, há apenas uma diferença de postura. No Brasil, o negro tem que provar que é capaz e
inteligente (e não uma inteligência qualquer). Além disso, deve ser muito perseverante para
compensar a desvantagem da cor. Mesmo assim, sofrerá os efeitos do racismo. Por exemplo,
não vemos com frequência atrizes e atores negros de telenovelas, por mais talentosos que
sejam, recebendo prêmios por suas atuações. Até porque são poucos os personagens de
destaques que eles interpretam. Mas, pela perseverança dos movimentos sociais,
principalmente do movimento negro, a realidade nas telenovelas está lentamente passando por
mudanças (ainda muito tímidas, diga-se de passagem).
De acordo com as afirmações de Nogueira (2006), o preconceito de marca no Brasil
toma como referência o fenótipo ou a aparência racial do indivíduo. Talvez, seja por isso que
aqueles que não são brancos são preteridos na mídia de modo geral.
Nos Estados Unidos é a origem étnica do indivíduo que marca sua situação racial.
Desse modo, há um fenômeno norte-americano muito curioso para enfrentar e driblar o
racismo: o passing. Expressão inglesa para designar o indivíduo que tenha uma origem ou
uma filiação negra, mas que se passa por branco (NOGUEIRA, 2006). Mesmo que seja
fenotipicamente branco, ainda será considerado negro, já que no racismo norte-americano se
considera mais a origem do que a aparência. E a aparência diz objetivamente em que grupo de
pertencimento racial o indivíduo se enquadra na sociedade norte-americana. No entanto, no
caso do passing, se um negro, mesmo fenotipicamente branco, esconder suas origens, será
recriminado socialmente, tanto pelos negros como pelos brancos.
No Brasil, não teria sentido o fenômeno do passing, pois que o indivíduo,
sendo portador de traços “caucasoides”, será considerado branco, ainda que
se conheça sua ascendência negra ou o seu parentesco com indivíduos
negroides [sic] (NOGUEIRA, 2006, p. 294).
Isso é considerado normal em nosso país. Há muitos mestiços, mulatos ou pardos que
são considerados brancos pela sociedade. No caso dos Estados Unidos, “[...] a fuga do
passing somente é possível a negros de tal modo brancos que sua filiação racial apenas pode
ser conhecida através de documentos de identidade e provas circunstanciais” (NOGUEIRA,
2006, p. 294). Nesse sentido, mais de 90% dos brasileiros seriam considerados negros nos
32
Estados Unidos. Obviamente que a sociedade brasileira não se considera formada por uma
maioria negra. No censo de 2010, realizado pelo IBGE, pretos e pardos teriam aumentado.
Pretos e pardos, conforme o IBGE e o movimento negro, estariam dentro de uma categoria, a
negra. Os negros, portanto, constituíram maior parte em relação aos brancos. Além disso, há a
questão da carga afetiva no racismo, que no Brasil, se manifesta de forma mais intelectiva e
estética (NOGUEIRA, 2006). No preconceito de marca um indivíduo branco pode ter grande
afetividade por uma pessoa negra, que sua relação não será inviabilizada, “[...] especialmente
numa pessoa por quem se tem amizade, simpatia ou deferência” (NOGUEIRA, 2006, p. 296).
Contudo, a cor da pele, subjetivamente, acaba sendo uma espécie de defeito, causando
[...] pesar, do mesmo modo por que o causaria um “defeito” físico. Desde
cedo se incute, no espírito da criança branca, a noção de que os
característicos negroides [sic] enfeiam e tornam o seu portador indesejável
[...] (NOGUEIRA, 2006, p. 296).
Nessa perspectiva, a família, a escola e os meios de comunicação, como a televisão,
sobretudo por meio de suas telenovelas, teriam responsabilidades por transmitir estas noções
afetivamente racistas para seus membros, criando no imaginário dos indivíduos negros e
brancos que ser melanodérmico é algo negativo e ruim. Por isso que, intelectiva e
esteticamente, suspeitamos que há uma preterição em relação ao negro, gerado pelo
preconceito de marca, que o excluí não por força de uma lei, mas inconscientemente, dando
preferência para o grupo hegemônico.
Na sociedade norte-americana, o racismo tem uma relação mais direta com aspectos
mais emocionais e irracionais. Esses aspectos do racismo norte-americano têm forte
antagonismo dos brancos em relação aos negros, e destes em relação aos brancos. Porém, o
sistema e a estrutura social e racial fariam com que os negros fossem segregados intencional e
conscientemente, apesar das mudanças ocorridas nos últimos tempos por lá, sobretudo após as
conquistas dos direitos civis a partir da segunda metade da década de 1960.
Estes são alguns pontos, para efeito de comparação, das duas modalidades de racismo
existentes entre o Brasil e os Estados Unidos.
O preconceito racial é visto como um elemento cultural intimamente
relacionado com o ethos social, isto é, com o modo de ser culturalmente
condicionado que se manifesta nas relações inter-individuais [sic], tanto
através da etiqueta como de padrões menos explícitos de tratamento
(NOGUEIRA, 2006, p. 304).
33
No caso do Brasil, a etiqueta das relações inter-raciais é um mecanismo do modo de
ser cultural, regulando o comportamento do indivíduo ao se referir à pigmentação da pele de
alguém.
[...] não é de bom tom “puxar o assunto da cor”, diante de uma pessoa preta
ou parda. Evita-se a referência à cor, do mesmo modo como se evitaria a
referência a qualquer outro assunto capaz de ferir a suscetibilidade do
interlocutor – em geral, diz-se que “em casa de enforcado, não se fala em
corda” (NOGUEIRA, 2006, p. 299).
De certa forma, os brasileiros se sentem constrangidos em tratar da questão da cor.
Preferem lançar mão de eufemismos, tais como moreno claro, mulata ou morena cor de
jambo, quando a pessoa é parda; e moreno escuro, quando na realidade a pessoa é preta. Esta
última locução é evitada o quanto possível no tratamento interpessoal. Entretanto, em uma
contenda, ou em um momento de conflito, o primeiro aspecto a ser realçado, se a pessoa for
negra, é sua cor, tornando-se vítima de palavrões e despautérios, sendo classificada como algo
inferior.
Os estudos de Nogueira (1998; 2006) apontaram que a etiqueta racial norte-americana
tinha (talvez, isso continue ainda hoje) como base relações assimétricas entre negros e
brancos. Ou seja, há uma desigualdade na etiqueta de tratamento entre ambos. Enquanto que o
branco exige que o negro o trate por mister (pronome de tratamento formal em inglês) usando
o sobrenome, o negro é chamado pelo primeiro nome, sem o uso dessa expressão
(NOGUEIRA, 2006). É muito frequente também a expressão boy (garoto ou menino) no
tratamento que os brancos dispensam aos negros, e isso pode ser percebido especialmente em
filmes que abordam o racismo. Ela indica à suposta infantilização do negro norte-americano e
serve para rebaixá-lo a mera criança, sem responsabilidades e ingênua. Esta é mais uma
estratégia do racismo para silenciar e enfraquecer o negro.
No Brasil, por conseguinte, falar da cor da pele é um tabu. Pretos e pardos brasileiros
(negros, na classificação do IBGE) teriam pouca consciência racial. Em alguns casos, o negro
no Brasil somente é despertado para a problemática racial em uma situação de conflito, ou ao
sofrer diretamente o peso do racismo, como ao procurar um emprego, quando é preterido por
um não negro.
Por outro lado, esse preconceito racial pode não ser sentido pelo negro, pois vivendo
em uma comunidade onde a maioria seja negra, e não tendo contado com outras pessoas
estranhas ao seu círculo familiar, acaba não percebendo, de maneira imediata, o racismo. Não
34
estamos nos referindo apenas às comunidades distantes das cidades ou dos grandes centros
urbanos. Esse sentimento pode ocorre também nos bairros periféricos das grandes cidades.
Por exemplo, um jovem negro poderia discursar contra as políticas de Ações Afirmativas
porque nunca foi vítima de racismo, e acredita que estas ações poderiam provocar o racismo.
E, se o mesmo vive circunscrito em um bairro de maioria negra, e esta tem pouca consciência
racial, sem dúvidas que o suposto jovem também não sentirá os efeitos da problemática racial
consciente e diretamente. Entretanto, quando esse mesmo jovem negro começa a sair da sua
jurisdição comunitária ou bairrista, dirigindo-se para outras áreas com maior concentração de
diversidade de pessoas, pode ser que sinta mais as impressões do racismo.
À medida que aumenta a frequência dos contatos secundários, se torna mais
constante, para o indivíduo de cor, o risco de ser tratado em função dos
traços raciais – e, portanto, de um estereótipo – pelo menos nas situações de
contato categórico (NOGUEIRA, 2006, p. 300).
O contrário parece ocorrer nos Estados Unidos, onde o negro, desde cedo, tem a
consciência racial despertada pela sua comunidade e pelo preconceito que enfrenta. A
identificação racial do negro norte-americano é constante, permanente e de preocupação
contínua.
[...] envolve três tendências que se interpenetram: 1. uma preocupação
permanente de autoafirmação [sic]; 2. uma constante atitude defensiva e 3.
uma aguda e peculiar sensibilidade a toda a referência, explícita ou implícita,
à questão racial (NOGUEIRA, 2006, p. 300).
No entanto, a construção social da cor é algo que marca o racismo à brasileira,
dificultando, a nosso ver, a formação de uma consciência racial. José D’Assunção Barros
(2009) evidencia como a composição da diferença da cor foi estruturada desde o período
colonial no Brasil. Segundo o autor, o tráfico negreiro do colonizador europeu categorizou as
diversas populações africanas em negras, aplainando suas diferenças (BARROS, 2009). O
africano de qualquer etnia ao ser capturado pelo colonizador europeu, ou por uma tribo
inimiga, e vendido, ao chegar às mãos do comerciante de escravos, perdia sua identidade
étnica originária. O traficante europeu atribuía-lhe uma identidade étnica fundamentada em
outros parâmetros, como o geográfico. Mas, todos eram considerados negros, mesmo antes de
chegarem à colônia, constituindo uma demarcação da diferença entre negros e brancos
efetivada pela cor da pele. Com o processo de miscigenação, ao longo da história da
35
população brasileira, o que se pode constatar é que o preconceito racial, principalmente em
relação aos negros mais escuros, está assentado nessa diferenciação, pois para o mestiço,
como para o mulato, esse preconceito é mais relativo e escamoteado. No Brasil, quanto mais
uma pessoa tiver concentração na epiderme de melanina, tanto mais sofrerá os efeitos do
racismo.
Mas a diferença entre o negro e o mulato terá vida longa, o que confirma o
fato de que o mulato não pode ser pensado como gradação entre o negro e o
branco – embora este seja o seu discurso – e sim como nova diferença
(BARROS, 2009, p. 98).
Na política de branqueamento, o mulato, sobretudo no final do século XIX e início do
século XX, seria o elemento com maior aceitação e a “esperança”, na mentalidade política e
intelectual da época, da nação se tornar mais branca.
Este ideário do branqueamento, ao que tudo indica, ainda persiste no imaginário de
grande parte dos brasileiros. Os colonizadores conseguiram instituir e colonizar não apenas as
terras do novo mundo, mas também implantaram uma forma de percepção da diferença negra
como inferioridade e subalternidade. O efeito desse ideário pode ser notado nos meios de
comunicação de massa, que são predominantemente embranquecidos. Em uma sociedade
como a brasileira, na qual mais da metade da população é constituída por negros (pardos e
pretos), estes meios estão colonizados ideologicamente pela estética e cultura eurocêntrica,
regidos por uma norma branca.
1.2 Raça: um conceito controverso
O racismo parece ser um fenômeno social que faz parte de todos os agrupamentos e
povos humanos. E, apesar do racismo contra os judeus e indígenas, por exemplo, também ser
notório e ter uma fonte abrangente de estudos, o que comprova que raça é um conceito muito
importante para ser retomado filosófico e sociologicamente, proponho nesta seção discutir o
racismo praticado contra o negro. Mesmo que já tenha sido debatido e esmiuçado por vários
autores, ao tratar do racismo e da ideologia do branqueamento, o conceito de raça se apresenta
como fundamental para a compreensão do racismo no Brasil e nas telenovelas produzidas no
país.
De acordo com Kabengele Munanga (2004), raça tem sua etimologia na palavra razza,
de origem italiana, que, por sua vez, deriva do latim ratio, que designa categoria, espécie e
36
sorte. Conforme Cashmore (2000a, p. 448), “[as] mudanças no uso da palavra ‘raça’ refletem
as mudanças na compreensão popular das causas das diversidades físicas e culturais”. O
conceito de raça foi utilizado inicialmente nas ciências naturais, precisamente na zoologia e
na botânica, no século XVI, pelo naturalista sueco Lineu (Carl Von Linné), para a
classificação de animais e plantas (MUNANGA, 2004) em 24 raças ou classes de plantas.
Esta classificação, de acordo com Munanga (2004), atualmente foi completamente
abandonada. Na língua latina da Idade Média, a concepção do termo raça referia-se a
linhagem ou descendência a que um grupo de indivíduos pertencia, sendo portadores de
alguns traços fenotípicos comuns. O antropólogo, médico e viajante francês François Bernier,
em 1684, utiliza o conceito de raça em uma perspectiva moderna para se reportar a
diversidade de tipos físicos humanos, considerando a aparência dos indivíduos (MUNANGA,
2004). Mas, somente no início do século XIX “[o] termo ‘raça’ passou a ser usado no sentido
de tipo, designando espécies de seres humanos distintos, tanto pela constituição física quanto
pela capacidade mental” (CASHMORE, 2000a, p. 448-449).
No entanto, na França dos séculos XVI e XVII, a ideia de raça desempenhava um
papel determinante nas relações sociais, em que estabelecia os vínculos de poder e o lugar da
nobreza francesa, identificada com os Francos (grupos de origem germânica), e o lugar da
plebe, constituída pelos Gauleses de origem local (MUNANGA, 2004). Os Francos arrogam
para si a atribuição de uma raça “pura” e superior a dos Gauleses, considerando que poderiam
até mesmo submetê-los à escravidão. Entre estes grupos a única diferença concerne às
condições sociais, pois na perspectiva biológica ou fenotípica, não apresentavam distinção.
Todos eram brancos. A concepção de raça superior ou “pura” sofreu um deslocamento da
Zoologia e da Botânica para justificar a relação de poder entre dois grupos situados em classes
antagônicas. Uma, com maior poder político e econômico, subjugou a outra, que apresentava
menos recursos políticos e econômicos (MUNANGA, 2004). Isso dentro de uma realidade e
quadro europeu. Quando as incursões marítimas europeias encontraram outros povos
(sobretudo os do Novo Mundo), a partir do século XV, situados em uma realidade distinta da
Europa, Munanga (2004) aponta que o conceito de humanidade, estabelecido nos limites do
pensamento ocidental, sofreu um abalo, o que causou certa desorientação. Mas passando os
instantes iniciais e recobrando-se da surpresa do ineditismo, logo os europeus agarraram-se as
antigas crenças, com mais força do que antes.
Com isso, entendemos que as crenças científicas da época ganharam mais vigor, já que
havia sido descoberto um Outro, mais distante geograficamente, diferente fenotipicamente,
para ser comparado e julgado pela sua diferença cultural e fenomênica (aparência). O
37
fundamento para explicar e suavizar o abalo sofrido por esses europeus dos séculos XV e
XVI, estava assentado nas ideias teológicas, nas Escrituras e em uma visão eurocêntrica do
mundo, que, diga-se de passagem, perdura até hoje. Por outro lado, os filósofos iluministas
estavam colocando em xeque a ordem estabelecida e questionando a histórica como algo
cíclico, alicerçada mais nas fábulas do que na verdade dos fatos (MUNANGA, 2004).
Mediante esta ideia, Voltaire, um influente filósofo iluminista do século XVI, elucida que
“[...] a fábula cresce e a verdade diminui com o passar do tempo. Daí o motivo de todas as
origens dos povos serem absurdas” (VOLTAIRE, 2004, p. 267). Dessa forma, a história para
os iluministas era cumulativa e linear, regida por um progresso irreversível. Na estrutura de
pensamento desses pensadores, para saber e estabelecer uma compreensão acerca dos povos
recém-encontrados, não caberia como fonte de explicação à visão do mundo antigo, e muito
menos a interpretação das Escrituras, da teologia, dos mitos ou das fábulas. Utilizaram como
mecanismo operacional a ciência fundada no pensamento racional. Para os filósofos
iluministas, a razão, isenta da influência dogmática da Igreja ou do domínio dos Príncipes,
seria capaz de dizer quem era esse Outro. Conforme Munanga (2004), eles lançaram mão do
que as ciências naturais haviam criado, a classificação das raças.
Dialogando com essas concepções, o filósofo ganense Kwame Anthony Appiah
(1997) revela que se fosse realmente possível tal classificação dos indivíduos em raças
biológicas, não teria validade, pois o critério utilizado por esta ciência, que estava em seu
início, fundamentava-se mais no fenômeno, ou seja, na aparência, do que em algo mais
profundo, como os conhecimentos relativos aos genes. Certamente que a distância temporal
nos possibilita afirmar que os cientistas do passado estavam errados. Porém, naquele
contexto, a classificação humana em raças era um fato inconteste. Ao passo que a lógica da
classificação é um atributo do pensamento humano, em que opera um mecanismo de
organização daquilo que pretende conhecer. Munanga (2004) alude para o fato de que,
praticamente todas as pessoas, em dado momento de suas vidas, já fizeram alguma
classificação daquilo que acreditavam ser necessário organizar para ter um acesso mais rápido
e eficaz ao seu conteúdo, sendo que tal classificação, seria apenas uma maneira de organizar o
espaço e a realidade para melhor se relacionar com ela. Nessa perspectiva, é que o conceito ou
a ideia de raça teria sido útil, mesmo que provisoriamente, para classificar e mapear a
pluralidade humana. Lamentavelmente, este conceito acabou orientando a falsa noção de uma
hierarquização das raças que revestiu os discursos do racialismo (MUNANGA, 2004). Por
outro lado, Appiah (1997) nos fornece uma crítica, que não deixa de ser interessante, à noção
de raça.
38
Falar de “raça” é particularmente desolador para aqueles de nós que levamos
a cultura a sério. É que, onde a raça atua – em lugares onde as “diferenças
macroscópicas” da morfologia são correlacionadas com “diferenças sutis” de
temperamento, crença e intenção –, ela atua como uma espécie de metáfora
da cultura; e só o faz ao preço de biologizar aquilo que é cultura, a ideologia
(APPIAH, 1997, p. 75).
Appiah (1997) defende que o conceito de raça não seria um termo apropriado para
falar das diferenças humanas. Podemos depreender dos argumentos do filósofo que o conceito
não serviria as ciências humanas por sua falta de precisão ou por sua controvérsia. Mesmo
assim, o conceito de raça continua sendo utilizado, seja nas ciências sociais ou no imaginário
de classificação dos indivíduos, pelo senso comum. Talvez isso possa, em parte, se justificar
pelo passado histórico da construção do conceito. No século XVIII, de acordo com Munanga
(2004), a cor da pele era um critério central para se distinguir as diferentes raças existentes.
Então, raça era uma noção biológica classificatória formatada para designar os diversos
fenótipos dos povos espalhados pelo globo terrestre.
Por isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estanques que
resistem até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica: raça
branca, negra e amarela. Ora, a cor da pele é definida pela concentração da
melanina. É justamente o degrau dessa concentração que define a cor da
pele, dos olhos e do cabelo. A chamada raça branca tem menos concentração
de melanina, o que define a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a
negra que concentra mais melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais
escuros e a amarela numa posição intermediária que define a sua cor de pele
que por aproximação é dita amarela. Ora, a cor da pele resultante do grau de
concentração da melanina, substância que possuímos todos, é um critério
relativamente artificial (MUNANGA, 2004, p. 19-20).
Munanga afirma que bem menos de 1% dos genes que fazem parte do conjunto
genético de um indivíduo são responsáveis pela transmissão dos caracteres físicos visíveis,
tais como a cor da pele e dos olhos, a espessura do cabelo, o tamanho dos lábios. Os
autóctones (aborígenes australianos) também são negros, mas nem por isso possuem
parentesco genético tão próximo com os negros africanos. “Da mesma maneira que os
pigmeus da África e da Ásia não constituem o mesmo grupo biológico apesar da pequena
estatura que eles têm em comum” (MUNANGA, 2004, p. 20). Somando-se ao critério da cor,
como maneira de classificação racial, no século XIX a ciência acrescenta os aspectos
morfológicos, como o formato do nariz, as características dos lábios, do queixo, o tamanho e a
39
forma do crânio, a angulação facial entre outros aspectos, que visavam aprimorar a
classificação por raça.
O crânio alongado, dito dolicocéfalo, por exemplo, era tido como
característica dos brancos “nórdicos”, enquanto o crânio arredondado,
braquicéfalo, era considerado como característica física dos negros e
amarelos. Porém, em 1912, o antropólogo Franz Boas observara nos Estados
Unidos que o crânio dos filhos de imigrados não brancos, por definição
braquicéfalos, apresentavam tendência em alongar-se. O que tornava a forma
do crânio uma característica dependendo mais da influência do meio, do que
dos fatores raciais (MUNANGA, 2004, p. 20).
Os progressos alcançados com o estudo da genética humana no século XX fortaleceu o
consenso entre os estudiosos das ciências biológicas que o conceito de raça, para classificar os
indivíduos, não teria validade, pois as pesquisas empenhadas na comparação entre as raças
concluíram que dois indivíduos e seus respectivos patrimônios genéticos podem ser
classificados como pertencentes. Assim, um indígena do grupo Nambiquara (pertencente aos
Estados de Mato Grosso e Rondônia) pode ser mais próximo geneticamente de um
descendente direto de alemães (no sul do Brasil) e mais distante geneticamente do grupo
indígena Bororo (também do estado de Mato Grosso).
Os biólogos e geneticistas modernos concluíram que o termo raça não implica em uma
realidade biológica capaz de classificar os indivíduos humanos, recomendando, segundo
Munanga (2004), o seu uso apenas no campo conceitual, na perspectiva cientifica, sem efeito
para “[...] explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estanques. Ou seja,
biológica e cientificamente, as raças não existem” (MUNANGA, 2004, p. 21).
[As] críticas ao termo raça e as revelações de sua redundância como
construção analítica desestabilizaram e desmembraram a sua compreensão
como um critério com sentido nas ciências sociais e biológicas, mas
enquanto as conversações contemporâneas continuarem a incluir a palavra,
seu potencial persistirá. Isso ocorre porque o termo “raça” propõe descrever
algo, mas inclui simultaneamente a diversidade (CASHMORE, 2000b, p.
452).
Diante disso, podemos lançar mão de uma provocação: por que a noção de “raça”
continua sendo empregada para se referir aos diferentes grupos de indivíduos que partilham
traços fenotípicos comuns? Se tanto os intelectuais como os estudiosos das relações raciais e
dos estudos culturais criticam seu uso na compreensão de muitas sociedades.
40
Na visão do antropólogo britânico Paul Gilroy (2001), os estudiosos e intelectuais
negros (e brancos também) contemporâneos sucumbem, com frequência, ao engano de
[...] concepções românticas de “raça”, “povo” e “nação”, encarregando a si
mesmos, em lugar do povo que supostamente representam, das estratégias de
construção da nação, formação do estado e elevação racial (GILROY, 2001,
p. 91).
Pelo que Gilroy (2001) sinaliza, esses intelectuais são seduzidos por uma visão
essencialista de raça. Em certo aspecto, consideramos que Munanga (2004) concordaria com
isso, pois, segundo ele, não se deve pensar em raças estanques, fechadas biologicamente em
um grupo, como se houvesse uma pureza racial. Nada mais falso, enganoso e perigoso do que
tal interpretação.
Gilroy, na análise de Guimarães (2002), não acredita que a manutenção do termo raça
contribua efetivamente para o enfretamento da problemática do racismo.
1) no tocante à espécie humana, não existem “raças” biológicas, ou seja, não
há no mundo físico e material nada que possa ser corretamente classificado
como “raça”; 2) o conceito de “raça” é parte de um discurso científico
errôneo e de um discurso político racista, autoritário, antiigualitário e
antidemocrático; 3) o uso do termo “raça” apenas reifica uma categoria
política abusiva (GUIMARÃES, 2002, p. 48-49).
O fato é que o termo raça evoca no imaginário das pessoas uma hierarquia racial.
Gilroy destaca que os antirracistas justificam o argumento da necessidade do conceito de raça
(GUIMARÃES, 2002) considerando que o conceito é uma categoria única que carrega a
possibilidade de auto identificação referente às pessoas que sofreram os efeitos de um sistema
opressor (o escravista e o racista), cujas identidades e solidariedades foram forjadas à custa de
categorias (como negro, inferioridade racial, subalterno racialmente etc.) impostas por aqueles
que os oprimiam. A novidade da crítica de Gilroy (GUIMARÃES 2002) é que os discursos
que se apropriam da noção de raça são anacrônicos, pois, atualmente, a negritude, em muitos
setores, como no mundo do entretenimento televisivo, cinematográfico e, principalmente, em
alguns esportes de alto rendimento, em que o negro é considerado com mais aptidão do que o
não negro, pode significar prestígio em vez de inferioridade ou repulsa.
Guimarães (2002) acrescenta que Gilroy afirma que o antirracismo sempre foi uma
forma política que acabava negando o racismo existente, mas que não propunha efetivamente
uma política afirmativa de enfrentamento ao racismo. Provavelmente, este antirracismo fique
41
mais no plano discursivo, e não se converta em ação. A posição de Gilroy está fundamentada
na perspectiva de que os antirracistas estão comprometidos com o enfrentamento das
desigualdades e diferenças estabelecidas a partir do conceito de raça; e que não há mais
necessidade da identidade racial tendo como enfoque um fundamento histórico, para avançar
na compreensão do racismo e suas consequências. Por isso, não haveria mais utilidade o
termo raça, seja do ponto de vista biológico ou mesmo social.
Alguns dos pressupostos de Gilroy são também pressupostos meus. Se eles
estão corretos, a pergunta decisiva é: quando os anti-racistas (sic) negros
podem prescindir da ideia de “raça” que os unifica? Essa é uma pergunta
política e, portanto, concreta, que não pode ser respondida em termos
genéricos. Afinal, se a raça biológica não existe, também não há uma única e
universal maneira de construir a categoria social de “raça”, a qual deve
diferir de sociedade para sociedade, ainda que obedeça a certa matriz
universal, informada por um modo de produção, uma estrutura planetária de
trocas e por tecnologias específicas (GUIMARÃES, 2002, p. 50).
A posição que Guimarães (2002) adota está na contramão da crítica de Gilroy. Para
Guimarães (2002; 2012), o conceito de raça não é apenas um marcador de resistência política
que serve para organizar o enfrentamento ao racismo, mas uma categoria de análise
imprescindível para se compreender este fenômeno. Os argumentos de Gilroy estão baseados
em uma realidade europeia, e que talvez caiba apenas ao continente. No caso do Brasil, ainda
há a necessidade da categoria raça para o enfrentamento, político e teórico, da problemática
racial. Quando, então, se poderia prescindir do conceito de raça?
[...] quando já não houver identidades raciais, ou seja, quando já não
existirem grupos sociais que se identifique a partir de marcadores direta ou
indiretamente derivados da ideia de raça; [...] quando as desigualdades, as
discriminações e as hierarquias sociais efetivamente não corresponderem a
esses marcadores; [...] quando tais identidades e discriminações forem
prescindíveis em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a afirmação
social dos grupos oprimidos (GUIMARÃES, 2002, p. 50-51).
Enquanto esta mudança não ocorrer, Guimarães direciona a imprescindibilidade do
uso do termo raça em um sentido analítico. A justificativa para tal uso seria que o conceito,
mesmo suprimido do discurso erudito e popular entre os anos 1930 e 1970, e interditado por
uma etiqueta racial muito sofisticada, contribuiria para discutir a desigualdade, a
discriminação e as queixas de preconceito em relação à cor da pele que aumentavam no país
durante esse período. As vozes abafadas pela negação do racismo se viram obrigadas a
42
intensificar um discurso que promovesse a afirmação identitária, revigorando-se ao
possibilitar uma atualização do discurso étnico e cultural de parte da população negra.
A despeito desse movimento de luta na efetivação de uma marca identitária negra, a
etiqueta racial permanece como uma forma de tratamento dispensado ao negro, característico
do racismo à brasileira.
Esta etiqueta racial, dispensada ao negro, relativizando sua cor, de acordo com
Teixeira (2011), tem sua origem na ideologia do branqueamento, no status socioeconômico e
nas relações de amizade e afeto entre as pessoas. No caso das relações de afeto e amizade, a
pessoa que tem amigo negro, quando vai se referir à cor dele, se comporta de tal maneira que
acaba negando os traços e a cor de sua pele. Realiza essa negação usando expressões como
“você não é negro não, é moreno achocolatado” e “você pode até ser meio preto, mas tem a
alma branca”. Um caso que pode ser citado é a do ex-governador de Mato Grosso Júlio
Campos, que governou o estado nos anos 1980, e que, quando deputado federal pelo
DEM/MT, durante um discurso na bancada de seu partido em março de 2011, em que
defendia a prisão especial para autoridades, se referiu ao então ministro do STF (Supremo
Tribunal Federal) Joaquim Barbosa como “moreno escuro”, ao salientar que esses processos
poderiam cair em suas mãos (TEIXEIRA, 2011). O que fica explícito nesse acontecimento, é
o modo como está constituída a mentalidade preconceituosa do brasileiro, ao não admitir por
razões afetivas, econômicas e hierárquicas a negritude do outro. E até mesmo aqueles que são
negros, muitas vezes, por força e influência dessa mentalidade, negam seu pertencimento e
seu próprio ser sob a influência dessa etiqueta racial. Há ainda certa recusa na opinião pública
brasileira em se falar em raça, mesmo que seja em um sentido analítico, quando se refere à cor
da pessoa. Apesar disso, segundo Guimarães (2002), “[...] continuamos a nos classificar em
raças, independente do que nos diga a genética” (GUIMARÃES, 2002, p. 52).
Muitos pesquisadores, segundo Munanga (2004), que estudam as questões raciais,
usam o conceito de raça para analisar e explicar o racismo.
[...] na medida em que este fenômeno continua a se basear em crença na
existência das raças hierarquizadas, raças fictícias ainda resistentes nas
representações mentais e no imaginário coletivo de todos os povos e
sociedades contemporâneas. Alguns fogem do conceito de raça e o
substituem pelo conceito de etnia considerado como um lexical mais
cômodo que o de raça, em termos de “fala politicamente correta”. Essa
substituição não muda nada à realidade do racismo, pois não destruí a
relação hierarquizada entre culturas diferentes que é um dos componentes do
racismo (MUNANGA, 2004, p. 29).
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Nesse ponto, o pensamento de Munanga (2004) converge com o de Guimarães (2002),
quando julgam que hoje muitos dos pesquisadores prescindem do conceito de raça, por
acreditarem que o racismo que se pratica nas diversas sociedades contemporâneas não
necessita mais do conceito de raça para ser compreendido.Nas formulações de Munanga
(2004), o conceito de raça se reconfigurou em outras noções que tomam como base a etnia, a
diferença cultural e os processos identitários. “[...] Mas as vítimas de hoje são as mesmas de
ontem e as raças de ontem são as etnias de hoje” (MUNANGA, 2004, p. 29). De fato, o que
mudou foram os conceitos ou os termos, mas a representação ideológica que conduz à
exclusão e à dominação continua ilesa. “[...] É por isso que os conceitos de etnia, de
identidade étnica ou cultural são de uso agradável para todos: racistas e antirracistas (sic)”
(MUNANGA, 2004, p. 29). Cada um manipula ou faz o uso do termo raça conforme a
posição ideológica assumida no plano das ideias. O que permanece no mundo real é o
racismo.
De modo que, enquanto a ideia de raça tem uma referência morfológica e biológica,
atrelado mais aos aspectos fenotípicos, o conceito de etnia, por exemplo, diz respeito a um
conteúdo sociocultural, histórico e psicológico.
Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente,
têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião
ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo
território (MUNANGA, 2004, p. 28-29).
O autor, dessa maneira, além de pensar o termo etnia como não muito apropriado para
tratar do racismo, distancia-se também da concepção analítica do conceito de raça proposta
por Guimarães (2002) e por autores norte-americanos, como Cashmore (2000a). Em seus
textos, Munanga (2004) usa os conceitos de “negro” e “branco” em sentido político-
ideológico, em vez de “raça negra” ou “raça branca”.
[...] os conceitos de “População Negra” e “População Branca”, emprestados
do biólogo e geneticista Jean Hiernaux, que entende por população um
conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de
casamento e que, ipso facto, conservam em comum alguns traços do
patrimônio genético hereditário (MUNANGA, 2004, p. 30).
O uso duplo do conceito de raça e de etnia, segundo Munanga é inteiramente
manipulável e cria certa confusão, sobretudo para o iniciante que procura estudar as questões
raciais. Esta confusão configura-se precisamente na utilização não muito evidente dos
44
conceitos de raça e etnia, “[...] que se refletem bem nas expressões tais como as de
“identidade racial negra”, “identidade étnica negra”, “identidade étnico-racial negra” [...]”
(MUNANGA, 2004, p. 30), como se fossem fixos e não constituídos cultural e
historicamente. Conforme Munanga (2004), os povos (descendentes dos ancestrais africanos –
que foram transplantados forçosamente de seu continente – e europeus, que chegaram e se
encontraram com os povos indígenas de maneira nada amistosa) no que hoje denominamos de
Brasil, não poderiam ser mais considerados como raças, simplesmente porque a ciência
biológica assim estabeleceu, em um passado não muito distante. O autor sugere que estes
povos não sejam mais classificados de raças ou etnias, mas de populações (MUNANGA,
2004). Munanga justifica a nomenclatura defendendo que estes povos continuam a se misturar
pelos processos endogâmicos proporcionados pelas regras culturais, por mais que alguns
estivessem ou procurassem fechar-se em seus circuitos socioculturais, ocorreu um aumento da
população mestiça.
Por um posicionamento político, social, ideológico e histórico, colocou-se
coletivamente os brancos no cume da pirâmide social, delegando aos mesmos o comando e o
poder, que independe de suas raízes culturais e étnicas. Por um sintoma da ideologia racista,
que vincula uma relação inerente entre o biológico e o cultural, ou ainda entre a raça e a
cultura, ficou estabelecido uma relação equivoca ao considerar a população branca como
sendo da mesma etnia. Assim, segundo Munanga (2004), dizer que há uma “cultura branca”
ou uma “etnia branca” é incorrer em erro e gerar mais confusão nesse intrincado campo de
estudos das relações raciais. Do mesmo modo, seria enganoso dizer que há uma “cultura
negra” ou uma “etnia negra”, estabelecido por um posicionamento político, social, ideológico
e histórico que situou coletivamente os negros como grupo na base da pirâmide social.
A ideia central do autor, portanto, é que a classificação de todos os brancos na “etnia
ou cultura branca”, independentemente se são descendentes de alemães, ucranianos ou
italianos, é dúbia e equivocada. Visto que as etnias não são unidades fixas, há um constante
processo de identificação e mudança, que acabam por gerar outros aspectos étnicos que
diferem do original. Por exemplo, muito da cultura alemã no Sul do Brasil já não é algo que
se vê praticado na Alemanha. No caso do idioma alemão, houve certa mestiçagem com a
língua portuguesa: por exemplo, a palavra alemã es regnet (chover) foi modificada em alguns
casos por choviert (que significaria também chover), mas que na realidade está
aportuguesada, pois choviert não existe no idioma alemão como designação de chuva.2
2 Todas estas informações sobre a língua alemã e a cultura germânica no sul do Brasil foram adquiridas
informalmente, em contato com amigos e palestras que abordavam a questão da dinâmica cultural.
45
Estas são referências às culturas particulares que, segundo Munanga (2004),
esquivam-se da cultura globalizada se posicionando de forma resistente ao estabelecimento da
globalização. Todas estas culturas particulares se edificaram diferentemente tanto no conjunto
da população branca como da população negra.
É a partir da tomada de consciência dessas culturas de resistência que se
constroem as identidades culturais enquanto processos e jamais produtos
acabados. São essas identidades plurais que evocam as calorosas discussões
sobre a identidade nacional e a introdução do multiculturalismo numa
educação-cidadã, etc. Olhando a distribuição geográfica do Brasil e sua
realidade etnográfica, percebe-se que não existe uma única cultura branca e
uma única cultura negra e que regionalmente podemos distinguir diversas
culturas no Brasil. Neste sentido, os afro-baianos produzem no campo da
religiosidade, da música, da culinária, da dança, das artes plásticas, etc. uma
cultura diferente dos afro-mineiros, dos afro-maranhenses e dos negros
cariocas (MUNANGA, 2004, p. 32).
Munanga (2004) acrescenta que, no nível político, o termo raça (em um sentido
sociológico e político-ideológico, sendo que se aproxima novamente das concepções de
Guimarães), a partir da conscientização da exclusão provocada pela discriminação racial,
pode constituir uma unidade identitária negra, apesar das diferenças culturais e regionais de
cada lugar. Esta é uma mobilização organizada e fundada na ideia de raça, na perspectiva de
que todos os negros, levando-se em consideração as diferenças históricas e culturais existentes
entre eles, são discriminados e subalternizados pelo segmento branco.
Sendo assim, tal “identidade racial negra” ou uma “identidade étnica racial negra”
deve ser compreendida como um marcador político-ideológico de enfrentamento teórico, ou
mesmo político, do racismo. O que resta verificar é se todos estão a par do conteúdo político
dessas expressões, para evitar que se caía em um biologismo, ao pensar que os negros
produzam cultura ou identidade como a mangueira produz a manga ou o abacateiro produz o
abacate (MUNANGA, 2004).
Segundo o autor, o uso dos termos raça, etnia, “identidade racial negra” e “identidade
étnica racial negra” são terminologias que buscam efetivar uma transformação da situação do
negro no Brasil. Elas estão em oposição ao discurso dominante da identidade mestiça, que
legitima a ideologia da democracia racial, que interessa ao conservadorismo e ao status quo
dominante.
Nesse emaranhado debate que se encontra a discussão racial, a antropóloga Lilian
Schwarcz (2007), por outro lado, destaca em suas pesquisas às teorias que estruturavam o
pensamento racial europeu. Estas teorias ganhariam solo brasileiro, principalmente no final do
46
século XIX, tendo como porta de entrada as Faculdades de Direito, de Medicina e os círculos
militares da época, sendo que no começo do século XX, houve uma intensificação do debate,
teórico e político, em torno da noção de raça. De acordo com Schwarcz (2007), “[...] o
interessante é que, para a confirmação da identidade, a raça teve que ser positivada: assim
como no Império você positiva o indígena, no século XX, positiva-se a mestiçagem”
(SCHWARCZ, 2007, p. 14). Dessa maneira, a mestiçagem, de concepção negativa, converter-
se em uma virtude do povo brasileiro, em que há uma aceitação e oficialização da capoeira
como prática cultural, a descriminalização do candomblé, o futebol torna-se um esporte de
negros e a Nossa Senhora Aparecida é vista como uma santa mestiça, transfigurando-se em
símbolo nacional (SCHWARCZ, 2007). Assim, nos anos 1930, o discurso em torno da raça é
um discurso positivado, constituindo um elemento que compõe a nacionalidade e a cultura
brasileira, misturada e racialmente integrada. Na mentalidade de muitas pessoas desse
período, o Brasil havia conseguido uma “boa mistura” e uma “boa raça”. Ainda, ao que
parece, somos herdeiros dessas concepções. Basta notarmos os discursos conservadoramente
raciais que fazem a mídia e o senso comum, ao especularem acerca da identidade nacional e
da classificação dos brasileiros. No que diz respeito à mídia, e no caso específico das
telenovelas, o discurso em torno dos negros é de que eles estão perfeitamente integrados as
classes sociais, ao evidenciar seu lugar de “costume” na hierarquia social. Esta integração,
em parte, se deve a “tão celebrada” democracia racial, que o Brasil ostenta orgulhosamente.
Sobre a expressão democracia racial, Schwarcz (2007) aponta que Arthur Ramos, um
importante intelectual do início do século XX e estudioso das questões raciais e da identidade
brasileira, foi o primeiro a usá-la. Entretanto, a autora nos diz que Gilberto Freyre ficou com a
fama de ter criado a terminologia, pois a temática racial estava na agenda do país naquele
momento. Isso repercutiu no ideário político do Estado Novo (1937 a 1945), chamando a
atenção de muitos países no exterior, em que até mesmo a UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), na década de 1950, fomentou uma
pesquisa para verificar o grau da propagada democracia racial brasileira. A pesquisa da
UNESCO queria evidenciar o Brasil como um caso exemplar de interação harmoniosa entre
as raças. Na realidade, de acordo com Schwarcz (2007), a ideologia do mito da democracia
racial é muito forte, criando um imaginário com grandes repercussões na forma de se enxergar
o Brasil, assimilada principalmente pelos próprios brasileiros e inculcada nos estrangeiros.
Nesse sentido, a autora apresenta algo que parece controverso, ao apresentar o mito da
democracia racial não como uma mentira, pois pensar nele significa procurar compreender
47
mais o que ele tem a revelar do que a esconder. “[...] É preciso levar a sério o mito, porque ele
já foi desmontado muitas vezes e continua presente” (SCHWARCZ, 2007, p. 15).
E o que significaria levar o mito a sério? Na concepção da antropóloga, realmente não
há uma democracia racial no Brasil.
Praticamos uma política perversa de exclusão e de discriminação. Então, não
há a tal democracia social ou racial, mas também não acho que devemos
apostar em modelos de fora, análises que dicotomizam a realidade entre
negros e brancos (SCHWARCZ, 2007, p. 15).
Ou seja, modelos de análises das relações raciais empreendidos em países como os
Estados Unidos ou a África do Sul, em que negros e brancos convivem quase que em um
regime de castas, não serviriam para compreender analiticamente o racismo no Brasil. O mito
da democracia racial, nesse caso, afirma que as relações raciais brasileiras são diferentes por
congregar as raças sob o signo da mestiçagem.
[...] A mestiçagem é uma realidade, mas o problema não é a constatação da
mestiçagem, mas a qualificação positiva sempre da mestiçagem. Mestiçagem
não é sinônimo de igualdade. Mestiçagem não é obrigatoriamente sinônimo
de ausência de discriminação. É esse vácuo que me incomoda
(SCHWARCZ, 2007, p. 15).
A ideia da mestiçagem é usada para ratificar o panorama racial brasileiro. Ela é um
engodo, conforme argumenta a autora, que serve para dissimular o preconceito racial e fazer
com que as pessoas no Brasil acreditem, que não exista racismo.
De acordo Schwarcz, a raça seria uma noção e uma construção perversa, que
estabelece uma relação de hierarquia. Isso se aproxima das concepções de DaMatta (1986),
quando argumenta que a sociedade brasileira é hierarquizada, favorecendo o racismo à
brasileira. Na visão de Schwarcz (2007), o conceito de raça sempre foi empregado para pensar
a identidade no Brasil e o racismo à brasileira, que tem um caráter privado. Compreendemos
com isso, que a autora revela o racismo no Brasil funcionando como algo velado,
subentendido ou mesmo camuflado. “Esse racismo à brasileira é de caráter privado, por não
se manifestar no corpo da lei e por não se manifestar nas estâncias mais oficiais”
(SCHWARCZ, 2007, p. 15). Esse racismo tem também como característica a de jogar no
Outro a culpa de se ser preconceituoso ou racista. Por exemplo, quando se acusa os peruanos
de racistas no caso em que o jogador de futebol do Cruzeiro Tinga, em um jogo pela Copa
Libertadores da América (fevereiro de 2014), em que toda vez que tocava na bola a torcida do
48
time adversário, Real Garcilaso, imitava gestos e sons de macaco direcionados ao jogador.
Houve grande repercussão desse episódio no Brasil, sobretudo pelas redes sociais e pela
imprensa. Com efeito, “as pessoas negam e jogam no Outro o racismo que na verdade é de
cada um” (SCHWARCZ, 2007, p. 15). Assim, é comum no Brasil apontar a falha do Outro
sem se perceber como portador da mesma falha. Ou seja, criticar o racismo de outros países e
não dar muita importância ao racismo existente em solo doméstico.
Por conseguinte, o conceito de raça contribuiria para discutir e pesar a problemática do
racismo à brasileira que envolve não apenas o Outro, mas todos os indivíduos.
O conceito de raça, quando se trata de pessoas, não pode ser usado como conceito
biológico, como já argumentado anteriormente, uma vez que não existem raças humanas.
Schwarcz (2007) pensa na perspectiva de que o termo raça é uma construção social acionada
constantemente pelo imaginário. Tratar do racismo à brasileira, pensando-o a partir do
conceito de raça, talvez seja necessário para desvelar e diagnosticar suas entranhas, para
enfrenta-lo efetivamente. Nesse sentido, não é descartando o conceito de raça, como sugeriu
Paul Gilroy (2001), ao falar das relações raciais, que se estará diminuindo a problemática
racial.
No terreno movediço, complexo e árido dos estudos da problemática racial
apresentamos, para fazer uma contraposição ao que viemos refletindo até agora, os
argumentos de outro autor, Peter Fry, que, em certa medida, divergem das premissas de
Munanga e Guimarães, quando pensa o conceito de raça.
De início, é necessário dizer que Fry (2005) não considera o racismo inexistente no
Brasil. Considera-o, na realidade, muito complexo, diferente quando comparado ao racismo
norte-americano. Enquanto Munanga (2004), Guimarães (2002) e Moore (2007) têm um
posicionamento político mais evidente e, de certo modo, atuante no enfrentamento da
problemática racial, Fry (2005) parece sustentar que isso não resolveria o racismo existente no
Brasil. E descarta, de maneira sutil em seus argumentos, o conceito de raça como necessário
para se compreender o racismo. O autor enfatiza que certos sociólogos, filósofos e
antropólogos, ao pensarem e analisarem o racismo brasileiro, se aproximam da concepção da
divisão bipolar entre negros e brancos com raízes na taxonomia racial norte-americana. Para
Fry (2005), o Brasil é um caso único de entrelaçamento das raças, embora considere a
discriminação racial algo muito evidente no Brasil. O autor não acredita que o conceito de
raça seja suficiente para a compreensão, ou mesmo disciplinar, o universalismo que os
brasileiros usam para classificar a cor da pele.
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É possível argumentar que o estilo múltiplo é mais coerente, menos ambíguo
e até menos racista que o bipolar dos Estados Unidos. O estilo múltiplo
efetivamente utiliza um sistema de percentagens não-quantificadas: assim,
“cabelo bom”, “nariz chato”, “lábios finos” e “cor clara” são descrições que
acabam reconhecendo a herança genética africana e européia (sic). O
racismo surge quando os mais próximos da “Europa” são vistos como
superiores (FRY, 2005, p. 198).
O argumento de Fry (2005) parece inclinar-se (talvez essa seja a intenção maior do
autor?) para uma relativização do racismo brasileiro. Na prática e no cotidiano, o pensamento
racial (brasileiro e norte-americano) opera fazendo uso de conceitos como o de raça. No caso
do Brasil, ele serve para dizer a cor e classificar as pessoas fenotipicamente; e, no caso dos
Estados Unidos, a classificação das pessoas está relacionada mais diretamente com sua
origem ancestral (NOGUEIRA, 2006).
Nesse sentido, Fry (2005) argumenta que a ideologia da democracia racial, cujo
conceito de raça, de acordo com sua posição teórica, não faz sentido se a relação entre as
pessoas de todas as cores e fenótipos ocorrem de forma festiva e harmoniosa. Esta constatação
do autor não é a mesma de outros antropólogos e sociólogos como Moore (2007), Schwarcz
(2007), Guimarães (2002) e Munanga (2004), para quem o conceito de raça ainda é necessário
analítica (Guimarães; Schwarcz) e politicamente (Munanga; Moore), já que a construção do
racismo é um fenômeno sociocultural e não biológico. Ninguém nasce racista, se aprende a
ser racista. Para analisar um fenômeno tão complexo, principalmente no caso particular do
Brasil, o conceito de raça poderia contribuir mais efetivamente para o enfrentamento teórico e
político do racismo. Sendo a educação e a escola lugares/espaços privilegiados para tratar do
racismo, combatendo-o por meio de uma educação antirracista. Para isso será fundamental
formar os professores. Esta formação pode partir da própria escola, nos espaços reservados ao
estudo e formação continuada, através da Sala de Educador (espaço destinado aos professores
e funcionários das escolas estaduais do Estado de Mato Grosso, para a formação continuada
com temas selecionados pelos próprios participantes, com a contribuição/orientação dos
Cefapro’s3 da Secretaria de Educação - MT).
Desse modo, para voltarmos à discussão do conceito de raça, Fry (2005) se aproxima
das concepções de teóricos como Gilroy e Appiah, os quais discordam do uso do termo raça
para se pensar e enfrentar o racismo. Mas, como afirmamos antes, o uso do termo raça é
3 “Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica (CEFAPRO) [e tem] como objetivo
[...] desenvolver projetos de formação continuada nas unidades escolares estaduais, [do Estado de Mato Grosso]
subsidiando professores nas discussões e reflexões coletivas sobre os diagnósticos levantados e orientando-os
nas intervenções necessárias para a melhoria do processo de ensino.” Cf. em: Sílvia Bezerra e Cristiane
Cespedes. Disponível em: http://www.congressohistoriajatai.org/anais2011/link%209.pdf
50
corriqueiro tanto na linguagem do senso comum quanto na linguagem de intelectuais e
eruditos brasileiros. Como descartar um conceito que as pessoas utilizam frequentemente para
classificar hierarquicamente o lugar de brancos, indígenas e negros na sociedade?
Telles4 (2004) usa as diferenças da estrutura racial entre Brasil e Estados Unidos para
destacar que o conceito de raça é amplamente usado em ambos os sistemas. Seus argumentos,
de certo modo, vêm ao encontro do que pensam Nogueira (2006), Guimarães (2002),
Munanga (2004) sobre a questão racial brasileira, pois entende que a noção de raça no Brasil
tem fundamentos na cor da pele e na “[...] aparência física e não na descendência africana”
(TELLES, 2004, p. 2), como é o caso nos Estados Unidos. Sendo que os dois sistemas de
relações raciais se orientam pelas raízes ideológicas da supremacia branca, porém constituídos
de modos diferentes. No caso dos Estados Unidos, a segregação racial marcou as fronteiras
nitidamente entre negros e brancos. Já no caso brasileiro, Telles alega que as relações raciais
são mais fluidas, não tendo uma fronteira rígida e tão nítida como no norte-americano. Esta
fluidez está relacionada à ideologia da mestiçagem, que enfatiza a mistura racial brasileira
como um pilar central para se discutir e destacar (diante dos próprios brasileiros como perante
a comunidade internacional) as supostas relações raciais pouco conflituosas.
A miscigenação, embora inicialmente tenha provocado inquietação e medo
entre a elite, há muito tempo tem servido como metáfora definidora da nação
brasileira. Embora a mistura racial não reflita necessariamente a realidade do
comportamento social brasileiro, esse conceito tem sido fundamental para
compreender as relações raciais em termos brasileiros (TELLES, 2004, p. 4).
A ideia de raça entre os brasileiros, defende o autor, vincula-se irredutivelmente à
noção de mistura e miscigenação racial. E, em relação aos países latino-americanos “[...]
como o Brasil, muitos outros [...] defenderam suas ideologias de mestizaje, termo espanhol
equivalente à mistura racial” (TELLES, 2004, p. 4), para assegurarem ideologicamente o
sucesso da miscigenação na criação de raças híbridas.
A concepção de mestizaje na América Latina está fundamentada na ideologia da
supremacia branca (TELLES, 2004), e que muitos defensores dessa concepção não enxergam
4 Edward E. Telles “[...] é professor no Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Los
Angeles, e, além de pesquisador da realidade sociológica do Brasil há pelo menos uma década, publicou
inúmeros artigos sobre o tema, especialmente em revistas norte-americanas, tendo várias passagens pelo Brasil,
incluindo uma estadia no Rio de Janeiro onde trabalhou como Assessor de Programas em Direitos Humanos do
escritório da Fundação Ford”. Cf. em: Jacqueline Britto Pólvora Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ha/v10n21/20631.pdf
51
(ou não querem enxergar?). Sabe-se que a miscigenação, o hibridismo e a mistura entre as
culturas é um fato, não existindo de maneira alguma uma cultura ou povo essencialmente
puros. Mas a miscigenação, “de fato”, não impediu que as injustiças raciais cessassem. Estas
injustiças têm se revelado cada vez mais acentuada na região latino-americana. Diversos
cientistas sociais estão chegando a um consenso de que a mistura racial apenas representa
uma metáfora (TELLES, 2004) que explica as relações entre os povos e as pessoas, seus
conflitos e encontros.
Nesse sentido, a televisão brasileira, e em particular as telenovelas, celebram a
miscigenação por meio de um discurso simbólico e ideológico, enfatizando que as relações
raciais no Brasil não seriam tensas, pois cada um saberia seu lugar social. No entanto, na
prática as injustiças raciais, como afirma Telles (2004), continuam atuando fortemente e de
maneira crescente. Talvez, seja por isso que muitos autores, principalmente os que
fundamentam nosso trabalho, defendem a manutenção do termo raça para analisar o racismo
no Brasil e seus desdobramentos.
Com base nisso, nos ocorrem as seguintes questões: como as telenovelas poderiam
tornar efetiva esta precarização do processo de identificação da população negra? Há uma
abordagem da identidade negra nas tramas novelísticas? Quais seriam, por outro lado, os
estereótipos em relação ao negro que são recorrentes nas telenovelas? Haveria também nas
telenovelas algum hibridismo cultural? Estas são questões que perpassam a compreensão do
racismo que se vive no Brasil, pois a identidade negra veiculada pela teledramaturgia sempre
foi virtual e distanciada do componente real da cultura negra brasileira. Os estereótipos
criados em relação ao negro são os exemplos desse distanciamento.
Pode ser que seja importante, tendo em vista as questões que esboçamos no parágrafo
anterior, pensar sobre o termo raça sem pré-conceitos. Sendo assim, Pinho (2008) nos ajuda a
compreender que o termo raça é uma categoria analítica e um conceito êmico5, que está nos
debates cruciais e na busca da compreensão em torno da problemática racial, não apenas no
Brasil e nas ciências sociais, mas no mundo e na vida pública.
Já o antropólogo Andreas Hofbauer6 (2006) convenceu-se de que não poderia
prescindir de termos como negro e branco para falar do racismo, assim como de noções como
5 “Termo utilizado na antropologia para descrever categorias e valores internos próprios às sociedades e grupos
em estudo, e tomados segundo a lógica e coerência com que aí se apresentam; o termo tem origem na linguística,
mas atualmente é utilizado predominantemente na antropologia”. Cf. em:
http://www.nossalinguaportuguesa.com.br/dicionario/%eamico/ 6 Antropólogo austríaco radicado no Brasil e professor “[...] assistente doutor da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho, [em Marília, estado de São Paulo]. Atua principalmente nos seguintes temas: racismo e
52
raça, identidade e cultura “[...] como conceitos-chave de discursos de inclusão e exclusão,
desenvolvidos primeiramente no mundo ocidental” (HOFBAUER, 2006, p. 15).
Hofbauer (2006) defende que as palavras e os conceitos são produções histórico-
culturais que manifestam intenções individuais e coletivas, ligadas consequentemente a
construção da realidade cultural e social. O conceito de raça está relacionado a esta
construção.
Embora a maioria dos especialistas em “assuntos raciais” [...] afirme
enfaticamente que noção de raça é um conceito historicamente construído,
muitos destes autores tratam as “variedades fenotípicas” como um dado
biológico neutro, como mera constatação sem valoração nem conteúdo
ideológico (HOFBAUER, 2006, p. 17).
O antropólogo inglês Peter Wade, conforme Hofbauer (2006), chama a atenção para
fato de que no campo dos estudos raciais ainda é praticado tendencialmente, por certos
especialistas na questão racial, a naturalização do conceito de raça. Ainda de acordo com
Hofbauer, Wade, constatou que há uma transferência naturalizada do conceito de raça para o
fenótipo. Isso inviabilizaria a noção de que raça é uma construção social, pois a pigmentação
da pele negra continuaria a ser considerada um elemento da natureza e não uma argumentação
ideológica.
Para Hofbauer, Wade faz um importante alerta sobre o uso de categorias como raça,
fenótipo e cor: elas não devem ser entendidas como um dado objetivo da realidade, “[...] mas
muito mais como partes integrantes de discursos específicos sobre o mundo empírico”
(HOFBAUER, 2006, p. 18).
Desse modo, a perspectiva de investigação e análise de Hofbauer (2006), parte de uma
orientação que historiciza a problemática racial, enfatiza um elemento importante na
compreensão do racismo existente no Brasil, a construção sociocultural da noção de
branqueamento. Os termos raça, fenótipo ou cor estão ligados a este campo de construção
ideológica. Entendemos que o autor aponta para uma compreensão da problemática racial e
do racismo a partir da história desses fenômenos.
Enfim, usaremos o conceito de raça na elaboração dos nossos argumentos no texto,
para descrever e analisar como o racismo e a ideologia do branqueamento estão subjacentes
no conjunto da sociedade, sobretudo na televisão e nas telenovelas. No caso da televisão, a
antirracismo, identidade e etnicidade, cultura afro-diaspórica, religiosidade afro-brasileira, teoria antropológica e
pós-colonialismo”. Cf. em: http://andreashofbauer.wordpress.com/2011/08/30/hello-world/
53
evidência desse comportamento branqueado é explícita. Quando, por exemplo, vemos o
número superior de personagens brancos no elenco de uma telenovela ou nas bancadas dos
telejornais, ou ainda apresentadores loiros quase albinos, na apresentação de programas
sabatinos e domingueiros das transmissões televisivas.
Hoje, as mídias funcionam como nossas próteses, “permitindo” uma onisciência da
realidade e o que acontece nela, principalmente no aspecto cultural, tecnológico e social. Elas
nos dizem o que está acontecendo no mundo à nossa volta. Mas carregam uma carga
ideológica, escondendo ou mantendo velados alguns discursos, como o racial. Dessa maneira,
provavelmente interferindo na compreensão da questão da raça no Brasil, já que raça é uma
concepção controversa. Talvez por isso o movimento negro, para facilitar e mobilizar ao
mesmo tempo o enfrentamento ao racismo, tenha bipolarizado a cor ou a raça dos brasileiros
em branco e negro (sem desconsiderar os indígenas e outros povos que vivem aqui, como os
japoneses, de raça ou cor amarela). No entanto, será que essa bipolarização realmente
facilitaria o enfretamento da problemática racial? Ou apenas acentuaria o problema, deixando-
o mais intrincado?
CAPÍTULO II
Televisão e telenovelas: breve introdução teórica
54
A produção e a realidade da comunicação de massa, de acordo com as análises do
sociólogo e ex-professor de técnica da linguagem radiotelevisiva Mauro Wolf (2009), são
compostas por muitos aspectos diferentes. Segundo Wolf, esses aspectos envolvem desde
regulamentações legislativas, operações financeiras, crises e triunfos das produções,
polêmicas eventuais que dizem respeito à influência que a mídia exerceria sobre as crianças,
“[...] entusiasmos e alarmes pelas novas tecnologias e pelos cenários prefigurados por elas”
(WOLF, 2009, p. IX). Os meios de comunicação de massa, desse modo, formam um grande
setor de produção industrial que tem muita relevância, especialmente na consolidação de
universos simbólicos consumidos amplamente e que constitui “[...] investimento tecnológico
em contínua expansão, uma experiência individual cotidiana, um terreno de conflito político,
um sistema de mediação cultural e de agregação social [...]” (WOLF, 2009, p. IX) e um modo
de gastar o tempo livre.
Ainda conforme Wolf (2009), nas produções televisivas os produtores exercem total
autoridade sobre os roteiristas e atores. Por conseguinte, os produtores estão subordinados as
decisões e interesses dos diretores das redes de televisão, para os quais os programas são
produzidos. Estes programas estão inseridos na lógica e na exigência dos patrocinadores e dos
índices de audiência. Nesse caso, “o produtor sente-se [...] obrigado a movimentar-se entre
constantes negociações, tanto em relação à equipe quanto à rede, para chegar a um produto
aceitável por todos” (WOLF, 2009, p. 184). Com base nesses argumentos, entendemos que os
meios de comunicação deteriam uma lógica e uma dinâmica de produção industrial que a
Escola de Frankfurt analisou com muita propriedade, nos escritos de Adorno e Horkheimer,
nas primeiras décadas do século XX. Os Estudos Culturais, por sua vez, ampliaram o rol de
análise iniciado pela teoria critica frankfurtiana, interessando-se por investigar, por exemplo,
a questão da recepção dos telejornais e das telenovelas junto ao público. Produções televisivas
que a academia vinculava ao pensamento mais tradicional e não dava muita importância.
2.1 A Escola de Frankfurt
O avanço e aprimoramento dos meios de comunicação ocasionaram duras críticas a
respeito de seus efeitos na sociedade, sobretudo em meados do século XX. Uma dessas
críticas era formulada pela corrente teórica vinculada à denominada Escola de Frankfurt7, a
7 A expressão Escola de Frankfurt, na realidade, seria apenas um cognome para o Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt, na Alemanha, que surgiu em 1924 sob a direção de Carl Grünberg, que ficou no cargo até os anos
1927. Sendo que com a ascensão do nazismo em 1933, e para fugir de seus ataques, o Instituto se transferiu
55
qual tinha como principais representantes os filósofos alemães Theodor Adorno, Max
Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, apenas para citar alguns. Os pensadores
frankfurtianos acreditavam que a indústria cultural exercia um domínio extremamente
eficiente sobre os indivíduos e a sociedade. O termo indústria cultural surgiu na obra
“Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos”, produzida a quatro mãos por Theodor
Adorno e Max Horkheimer, em 1947. Mas, segundo Martino (2009), talvez esta expressão
tenha sido “[...] usada pela primeira vez em um ensaio de Horkheimer intitulado “Arte e
cultura de massa” de 1940” (MARTINO, 2009, p. 47), sendo aprofundada e desenvolvida
com maior precisão na obra “Dialética do Esclarecimento”. O termo foi concebido pelos
filósofos em substituição a expressão cultura de massa, que consideravam inapropriado para a
realização de uma crítica da produção cultural em série, com objetivos meramente
econômicos. Conforme alegavam Adorno e Horkheimer, o termo cultura de massa poderia
trazer alguns problemas (como a ideia falsa de que a massa criaria de forma espontânea uma
cultura e arte popular) que serviriam como vantagem nas mãos dos defensores e
aproveitadores da industrialização cultural em larga escala.
Na visão de Adorno e Horkheimer (1985), a cultura contemporânea é regida, e está
vinculada intimamente, pela ideologia capitalista, cujo objetivo principal é o benefício
material do lucro. De modo que o cinema, a televisão, o rádio e a internet, em uma atualização
da crítica dos filósofos frankfurtianos, hibridizaram-se aumentando a oferta, a facilidade de
acesso e o consumo de seus produtos.
Segundo os autores, a perda gradativa do suporte que era ofertado pela religião, os
instantes finais do pré-capitalismo, a diversidade técnica “[...] e social e a extrema
especialização levaram a um caos cultural” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 113).
Desencadeando assim o rompimento de um mundo velho e atrasado para dar lugar a uma
infinidade de coisas novas que brotaram e surgiram a partir do antigo e do arcaico. O sistema
primeiramente para Genebra, depois, Paris, e, finalmente, para Nova York. Após a derrota do regime nazista e
com o fim da segunda guerra mundial, o Instituto volta à sua terra natal. Tendo um caráter interdisciplinar que
envolvia a sociologia, a psicologia social e a filosofia, a Escola de Frankufurt era composta por intelectuais,
como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, entre outros que mantinham
tendências teóricas voltadas mais para as concepções marxistas, realizando importantes críticas sociais,
denominadas de “Teoria Crítica”, que influenciaram toda uma geração de estudiosos e intelectuais do século
passado e que repercutem ainda hoje no campo da filosofia, da psicologia e da sociologia. Para o leitor
interessado em conhecer um pouco mais sobre a história da Escola de Frankfurt, sugerimos as seguintes obras:
“Textos Escolhidos”, da coleção os pensadores da editora Abril, de 1980. E a obra do estudioso dessa corrente
teórica, Rolf Wiggershaus, intitulada “A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação
política”, de 2006, publicado pela editora DIFEL.
56
que emergiu do velho tem exigências próprias e regras duras quando a finalidade é o lucro
material. De modo que o capitalismo se expandiu, estabelecendo suas regras, dominando e
exercendo sua influência na subjetividade dos indivíduos, moldando seus interesses e
perspectivas da realidade. Tanto a política, a economia, a cultura quanto a arte obedecem às
suas normas (ADORNO e HORKHEIMER, 1985).
As produções no campo cultural, como argumentam Adorno e Horkheimer (1985), em
suas bases estruturais teriam um mesmo molde para a produção, por exemplo, de filmes ou de
telenovelas (é preciso deixar claro que os filósofos não trataram das telenovelas em sua obra).
Na realidade, esses produtos, sejam filmes, músicas ou as telenovelas, devem agradar
ao público consumidor. A semelhança desses produtos seria o resultado de uma fórmula que
deu certo. Reproduzir esta fórmula seria garantia de sucesso e, consequentemente, lucro.
De acordo com a crítica dos autores alemães, os entusiastas da indústria cultural defendem
que o processo de produção cultural da música e de obras de arte, de maneira geral, se
diferenciaria das produções da cultura produzida em larga escala. Todavia, não é isso que
ocorre. Para Adorno e Horkheimer (1985), todas as produções estão cooptadas pela indústria
cultural, revelando-se na seriação.
Haveria, então, uma falsa alternativa de escolha produzida ideologicamente pela
indústria cultural ao disponibilizar filmes, músicas e novelas por meio do cinema, da
vendagem de CDs e das produções televisivas para o público em geral.
A indústria cultural, apontam Adorno e Horkheimer (1985), detém estratégias, como a
seriação de filmes formatados em um esquema de mocinhos e bandidos, que facilitam a ação
contínua na formação do gosto e do interesse dos consumidores. Esta ação facilita memorizar
a sucessão do filme que gerou uma enorme bilheteria. Nos filmes, de modo geral, já se pode
identificar, por meio de sua estrutura elementos que indicam como será o final do mocinho,
que no desenrolar da aventura ou do drama é temporariamente vencido, para que na sequência
conquiste o posto de herói que suplantou todas as adversidades e obstáculos.
Na coleção de textos “Adorno: Sociologia” (1986), organizado por Gabriel Cohn,
Theodor Adorno expõe que o consumidor não é o sujeito, mas o objeto dessa indústria, sendo
permanentemente retroalimentado pela sua própria mentalidade e gosto, que são trabalhados
por ela, “[...] as massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta
última não possa existir sem a elas se adaptar” (ADORNO, 1986, p. 93).
Por consequência, o que é concebido como diversão no capitalismo, nada mais é do
que a continuação do trabalho das massas (ADORNO, 1986). O autor explica que mesmo em
um trabalho pesado, mecânico ou em um mais leve, como de um escritório de administração,
57
o trabalhador não está isento da ação ideológica do sistema. De ampla maneira, o lazer e a
felicidade do trabalhador enquanto descansa, são submetidos a imagens, por exemplo, de
filmes ou de propagandas que o adverte o tempo todo, mesmo não percebendo isso
claramente, de seus deveres como trabalhador.
A crítica de Adorno e Horkheimer a indústria cultural tornou-se um clássico na teoria
da comunicação e nas ciências sociais ao estudarem os mass media. Ainda são atuais e
pertinentes seus apontamentos e análises críticas, mas certamente há mais a ser visto e
analisado em relação aos meios de comunicação de massa. E, suas críticas se encerram na
ideologia da produção capitalista que domina todos os outros meios, inclusive a indústria
cultural. Outra corrente teórica (possivelmente mais complexa que a frankfurtiana, por
envolver um campo interdisciplinar) avançou na análise da recepção desses produtos da
cultura industrializada. Os Estudos culturais representam as pesquisas que estabeleceram um
novo olhar, com maior flexibilidade e abertura, para a compreensão da relação entre
comunicação e cultura.
2.2 Os Estudos Culturais
Luís Mauro Sá Martino (2009) assegura que a história dos Estudos Culturais está
associada ao nascimento do CCCS – Centre for Contemporary Cultural Studies – na década
de 1950, sediado no Reino Unido, na Universidade de Birmingham. Os nomes mais
importantes ligados ao centro de estudos são Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward
Palmer Thompson e Stuart Hall, que se vincula ao grupo mais tarde.
A televisão estava se consolidando no período em que o Centre for Contemporary
Cultural Studies se estruturava como um campo de estudos da cultura, logo, o Centro
acompanhou o desenvolvimento desse meio de comunicação, que faz parte da vida das
pessoas como um artefato de informação e transmissão cultural de muita influência.
Os Estudos Culturais fizeram uso das concepções de Marx, aliando-a ao
Estruturalismo Francês, encabeçada pela crítica de Roland Barthes, a partir da leitura
realizada por Gramsci, Althusser e Lukács. Além de ter sido agregadas as concepções de
filósofos como Michael Foucault e Jacques Derrida, e de semiólogos como Ferdinand de
Saussure e Charles Sanders Peirce (MARTINO, 2009).
O caminho adotado pelos Estudos Culturais, conforme Martino, tinha como finalidade
alinhar ideias e práticas culturais que a academia, grosso modo, não se interessava, ou mesmo
não via como objetos de estudos. “[...] Elegeram como objeto temas negligenciados pelas
58
práticas acadêmicas de sua época, da cultura popular à cultura de massa” (MARTINO, 2009,
p. 241).
O posicionamento teórico e político dos Estudos Culturais abriu um leque de
possibilidades de compreensão dos meios de comunicação em diferentes perspectivas.
Diferente da teoria crítica frankfurtiana, os Estudos Culturais não relegaram a televisão a
mero aparelho tecnológico a serviço da elite dominante e dos interesses do capital.
[...] a “cultura da televisão” passou a ser compreendida de uma maneira
crítica. Não faz sentido condenar a televisão ao esquecimento de milhões de
pessoas acompanham (sic) diariamente novelas, programas de auditório e
telejornais (MARTINO, 2009, p. 242).
Os produtos culturais, tais como a literatura popular, a música pop, os diversos vídeos
musicais, as telenovelas e os filmes hollywoodianos, “[...] não eram mais um terreno fora das
preocupações dos estudiosos por se tratar de ‘cultura de massa’ ou serem ‘populares’”
(MARTINO, 2009, p. 242). E porque não estudar esses produtos sendo que o principal espaço
de apropriação é o “popular”, e as manifestações das culturas tradicionais, bem como da alta
cultura, continuam vigorosas, existindo “[...] nas mais diversas formas” (MARTINO, 2009, p.
242).
Configurou-se, dessa maneira, por meio dos Estudos Culturais, um discurso que deu
abertura para que se pensasse analiticamente o que estava acontecendo, por exemplo, com as
minorias sociais, tais como as étnicas, nacionais e sexuais (MARTINO, 2009). Esse campo de
estudo possibilitou que os grupos mais à margem da sociedade (postos aí pelo pensamento da
elite dominante branca e sexista) tivessem maior visibilidade, ganhando legitimidade no
mundo acadêmico, e, portanto, firmando-se como elementos culturais e sociais fundamentais
da sociedade, “[...] no caso das culturas negras, isso significou o reconhecimento de um
espaço novo e aberto para a luta política pelo campo cultural” (MARTINO, 2009, p. 246).
Passando, dessa forma, a fazer parte do “[...] cenário cultural como manifestação em um
espaço simbólico de luta” (MARTINO, 2009, p. 246).
De acordo com Hall, como mostra-nos Martino (2009), o espaço cultural é marcado
pelo conflito e pelo deslocamento. A leitura de uma telenovela é diferentemente realizada por
quem a produz e por aqueles que a assistem, mesmo ambos fazendo parte de uma única
cultura.
O receptor é um ser social e histórico, e sua maneira de ver televisão ou ler
uma revista está ligada a seu desenvolvimento nesse sentido. Esse é o tipo de
59
questionamento dos Estudos Culturais. Como uma adolescente negra, por
exemplo, se vê diante dos padrões de beleza da mídia? Como ela convive
com o fato de que nenhuma novela tem uma protagonista negra – e, quando
tem, é estereotipado? (MARTINO, 2009, p. 246).
É na recepção (teoria que interpreta como os indivíduos fazem as leituras do que
assistem e ouvem na televisão, cinema, rádio, mídia impressa, internet) que acontece todos os
processos de comunicação.
Douglas Kellner (2001) está em sintonizar com a argumentação de Martino, ao dizer
que os Estudos Culturais percebem a cultura em um “[...] contexto sócio-histórico no qual está
promove dominação ou resistência, e critica as formas de cultura que fomentam a
subordinação” (KELLNER, 2001, p. 49). Kellner enfatiza, desse modo, que os Estudos
Culturais caracterizam-se por possuir um discurso que está na oposição das teorias idealistas,
textualista, extremistas ou essencialista que valorizam somente as formas linguísticas de
organização da cultura e da subjetividade. No caso dos Estudos Cultuais, o posicionamento é
outro. Estão fortemente ligados ao materialismo, por conceberem que é importante prestar
atenção às origens e aos efeitos materiais produzidos pela cultura. Assim, compreendendo
como ela se envolve no processo de dominação e de resistência, se opondo as forças
hegemônicas que imperam nas sociedades.
Este modelo teórico necessita de uma teoria social capaz de analisar, de maneira mais
complexa, o sistema capitalista e sua estrutura. Considerando, por exemplo, o estudo da
recepção de produtos televisivos como parte dos sistemas de dominação, sendo que isso
contribui para compreender como ela ocorre e como as forças de resistências operam.
[...] os estudos culturais (sic) veem a sociedade como um sistema de
dominação em que certas instituições como a família, a escola, a igreja, o
trabalho, a mídia e o Estado controlam os indivíduos e criam estruturas de
dominação contra as quais os indivíduos que almejam maior liberdade e
poder devem lutar (KELLNER, 2001, p. 48).
A proposta teórica dos Estudos Culturais tem pontos convergentes com teoria crítica
da Escola de Frankfurt, ao pensar o relacionamento entre a economia, o Estado, a sociedade, a
cultura, vida diária e os meios de comunicação de massa. Mas distancia da teoria crítica ao
subverter a hierarquia entre cultura superior e cultura inferior, pois, assim, dão mais
importância a temas culturais relacionados ao cinema, a televisão, a música popular, as
telenovelas, que eram sempre alijadas pelas abordagens teóricas mais ortodoxas. Por outro
lado, os Estudos Culturais dispensaram e ignoraram os estudos sobre a cultura superior.
60
Os estudos culturais (sic) britânicos, porém, em geral deixaram de tratar do
modernismo ou de outras formas de cultura superior, e, desse modo,
deixaram de ver o potencial de contestação de subversão, assim como a
ideologia, de obras que alguns de seus expoentes deixaram de lado por
considerarem cultura elitista (KELLNER, 2001, p. 50).
Kellner, desse modo, manifesta a ideia de que a principal inovação e novidade dos
Estudos Culturais foram justamente dar importância e visibilidade para o que estava sendo
produzido nos meios de comunicação de massa, principalmente pela televisão. Investigando
como ela e a mídia estão configuradas nas formas de dominação e de resistência. Os Estudos
Culturais britânicos desenvolveram uma abordagem investigativa da cultura que evitou a
dicotomia e a divisão no “[...] campo da mídia/cultura/comunicações em alto e baixo, popular
e elite, e nos possibilitou enxergar todas as formas de cultura da mídia e de comunicação
como dignas de exame e crítica” (KELLNER, 2001, p. 53).
Assim, o posicionamento deste trabalho está mais afinado com os Estudos Culturais
do que com o pensamento dos teóricos frankfurtianos, já que a proposta é fazer uma análise
crítica da televisão, realizando um recorte nas telenovelas para abordar a questão do racismo e
seus desdobramentos no branqueamento e no preconceito racial.
2.3 A televisão: efeitos sociais
Segundo a afirmação de Ellis Cashmore (1998), a televisão provoca fascinação. Não
em termos otimistas ou pessimistas, visto que há sempre uma relação dicotômica entre
admiradores e críticos ao se falar da televisão. Na realidade, até impera certo maniqueísmo ao
refletir sobre ela. “Alguns a veem como um instrumento de crescimento educacional e como
um estímulo à imaginação [...]” (CASHMORE, 1998, p. 11). Também há aqueles que a
percebem como um incentivo a práticas e comportamentos belicosos e doentios
(CASHMORE, 1998). Nossa intenção é acompanhar e refletir em conformidade com o
pensamento do autor sobre a televisão e, posteriormente, desdobrar-nos sobre nosso objeto de
estudo, as telenovelas e a questão racial. Escapando, assim, de fazer julgamento de valores
sobre ela. Pois, como argumenta Cashmore (1998): “[...] a televisão fascina porque
corporifica a cultura que representa. Num sentido genuíno, a televisão é a cultura hoje:
caprichosa, sem moderação e absorvida por uma devoção quase religiosa ao consumo”
(CASHMORE, 1998, p. 11). Todos consomem os produtos televisivos. Podem ser tanto das
TVs por assinatura (os consumidores desses produtos pagos, sobretudo os mais
61
“intelectualizados”, acreditam que estão isentos da ideologia televisiva ao não assistirem a
programação da televisão aberta), como da televisão comercial e aberta a todos os públicos.
Desse modo, a televisão representou “[...] a invenção que refletiu, moldou e recriou a cultura
do século XX” (CASHMORE, 1998, p. 11). Já em pleno século XXI, ela continua a mostrar a
força de sua presença, mesmo com avanços sofisticadíssimos no campo das comunicações e
das novas tecnologias, como a internet e o cinema 3D. Na realidade, ela hibridizou-se com a
internet, por meio da Smart TV, apelido para se referir a sua função e capacidade de conexão
direta com a Web 2.0. Esse tipo de televisor, compreendidos em alguns modelos, oferece,
além desse recurso, as imagens em 3D, antes somente visto nas salas de cinema.
Dessa maneira, de acordo com as concepções de Cashmore (1998), a televisão se
popularizou, inserindo-se na vida de milhões de famílias nos diversos países do mundo, pois
constitui-se em uma forma, relativamente barata, na qual as pessoas podem encontrar
entretenimento e informação. A televisão parece que nos mudou de uma maneira que não
podemos medir ou avaliar (pelo menos em relação a nós consumidores) com precisão seus
efeitos. Entretanto, a televisão, como ferramenta tecnológica, não surgiu em um passo de
mágica. Ela teve um longo processo de desenvolvimento e um conjunto de experimentos e
procedimentos que possibilitou seu nascimento desde meados do século XIX. Na concepção
de Cashmore (1998), foi o rádio o responsável em preparar o campo para o nascimento da
televisão. Estabelecendo as primeiras bases da comunicação de massa, envolvendo não apenas
os territórios nacionais, mas também territórios internacionais (CASHMORE, 1998). De
acordo com o autor, populações inteiras reagiram muito bem a novidade, “[...] a ideia de se
envolver com um meio que era anônimo, remoto, e, ao mesmo tempo, pessoal e próximo”
(CASHMORE, 1998, p. 23).
Assim, a partir do rádio, a história da televisão começa a se configurar lentamente. O
desenvolvimento desse invento se deve aos estudos de físicos, químicos e matemáticos
interessados em transmitirem imagens a longas distâncias. Em 1817, o químico sueco Jakob
Berzelius descobriu o selênio, elemento químico capaz de transformar energia luminosa em
energia elétrica. Estava instituída as bases fundantes para as transmissões televisivas. Porém,
somente em 1920 teremos as primeiras transmissões a partir do empenho do engenheiro
escocês John Logie Baird, que baseado no invento mecânico do técnico alemão Paul Jullius
Gottlieb Nipkow, denominado de Disco de Nipkow, realizou as primeiras irradiações de
imagens. No entanto, na mesma década de 1920, outro experimento semelhante estava sendo
realizado pelo russo Wladimir Zworykin, que desenvolveu estudos em relação a transmissão
de imagens. Esse pesquisador acabou patenteando seu invento, sendo convidado pela empresa
62
RCA – Radio Corporation Of America –, em 1945, para produzir os primeiros tubos de
televisões, batizados de Orticon, em larga escala.8
Nesse sentido, a televisão apropriou-se desse espaço iniciado e produzido pelo rádio,
ganhando adesão e força, principalmente com o passar do tempo, cuja melhoria em sua
estrutura tecnológica conquistou o gosto e a simpatia da audiência, estabelecendo discursos e
difundindo imagens que agradassem os diferentes públicos. Esses discursos e imagens
constituem o que Bourdieu (2003) conceitua como poder simbólico. Conforme o autor, o
poder simbólico é um poder invisível, que somente pode ser exercido se tiver a cumplicidade
dos que são sujeitados a ele, e daqueles que o exercem.
Os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento (ciência) e comunicação
(língua, cultura), apenas operam um poder estruturante, porque já são estruturados por esses
sistemas. Bourdieu (2003) explica que o poder simbólico, regente desses sistemas, é o
responsável pela produção da realidade, ao mesmo tempo em que formata a percepção dos
indivíduos, estabelecendo um sentido para o mundo, especialmente o mundo social e as
relações nele existentes. Nesse sentido, é produzido uma concepção de tempo, de espaço, de
causa, de número, que torna possível uma concordância ou aceitação da realidade que são
impostas aos indivíduos como uma norma. Dificilmente as pessoas negariam que o tempo
passa, que o espaço está vazio ou cheio, que o número estabelece uma relação de quantidade.
Um dos instrumentos do sistema simbólico, que estrutura essas percepções, é o conhecimento
ou a ciência. Por esse motivo, os símbolos são instrumentos, dispositivos ou mesmo
mecanismos que propiciam a integração social, justamente por serem modos de conhecimento
e comunicação, ciência e linguagem. Isso viabiliza o consenso do sentido do mundo social,
que por sua vez contribui delineando a paisagem da ordem social. Assim, uma integração
lógica (conhecimento, ciência) é uma condição para a integração moral (língua, costumes,
cultura).
Bourdieu argumenta que as tradições marxistas deram mais destaques, no sistema
simbólico, as funções políticas nelas implicadas, do que toda a estrutura lógica e gnoseológica
(conhecimento e as formas de dar sentido ao mundo), para explicar as produções simbólicas
da classe dominante como resultado de seu interesse, por aquilo que deseja produzir como
uma norma a ser seguida. Exemplo disso, é em relação a música. Há determinadas músicas,
segundo os valores da classe dominante, que são consideradas sérias, arte genuína, como as
8 Cf. essas ideias em “A história da televisão: da sua invenção ao início das transmissões em cores”. Disponível
em:http://minhateca.com.br/Anima/Hist*c3*b3ria/A+Hist*c3*b3ria+da+televis*c3*a3o,48543060.pdf Acessado
em: 30 Set. 2014.
63
óperas, as músicas clássicas. As que fogem dessa norma, dessas concepções simbolicamente
instituídas pelos dominantes, muitas vezes não são consideradas como arte. Isso é uma das
formas de produção ideológica e política da classe que está no topo da hierarquia social.
Assim, as ideologias são o resultado e o efeito de um processo coletivo e apropriado pela
coletividade, que servem a interesses particulares, como de uma determinada classe que tem o
poder de influenciar e divulgar suas produções e ideias, transmutando isso em interesses
universais, fazendo com que todos aceitem o que está sendo posto, como no exemplo da
música considerada séria, genuína. Desse modo, a classe dominante contribui para a
integração real de seus membros, fazendo com que haja uma comunicação imediata entre eles
e se percebam distintos da conformação das outras classes sociais. Por meio de seu sistema
simbólico, faz acreditar que há uma integração social (ficticiamente produzida) e isso
desmobiliza as classes dominadas, gerando uma falsa consciência sobre si mesmas, que
acabam ratificando a ordem inculcada, instituindo uma distinção hierarquicamente assumida e
legitimada. Por exemplo, na ordem social estabelecida é vista com normalidade, e certa
aceitação, a vinculação das populações negras à criminalidade, baixa condição de estudo e
pobreza. Na realidade, pobreza, pelo menos no Brasil, é sempre relacionada a população
negra.
De acordo com Bourdieu, esse efeito ideológico produz uma distinção das
consideradas subculturas em relação a cultura dominante.
[...] a cultura dominante [dissimula] a função de divisão na função de
comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a
cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções
compelindo todas as culturas [inferiores] a definirem-se pela sua distância em
relação à cultura dominante (BOURDIEU, 2003, p. 11).
Assim, o erro interacionista reduz a compreensão das relações de forças existentes nas
sociedades aos aspectos das relações de comunicação. Essas relações são inseparáveis na
forma e no conteúdo do poder material ou simbólico acumulado pelos indivíduos ou
instituições que fazem parte dessas relações. Os sistemas simbólicos, como instrumentos de
comunicação e de conhecimento estruturados e estruturantes, exercem politicamente a função
de dominação, pois, por meio desses instrumentos impõem e legitimam a dominação de uma
classe sobre a outra, domesticando os dominados (BOURDIEU, 2003).
O campo da classe dominante constitui uma luta dos principios que hierarquizam o
mundo social. O poder dessa classe está assentado no capital econômico, que acaba forçando
64
a legitimidade da sua posição social respaldado na produção simbólica, como a forma de se
vestir, se comportar, de consumir bens culturais e na ação dos ideólogos conservadores, como
os intelectuais e artista, que são, segundo Bourdieu (2003), uma fração dominada que
estabelece os princípios de hierarquização, colocando os valores, sejam cultural, moral, ético
e estético da classe dominante no topo.
Bourdieu (2003) expõe que as ideologias são estruturadas a partir das condições
sociais de suas produções e circulação. Elas cumprem suas funções mais específicas “[...] em
primeiro lugar, para os especialistas em concorrência pelo monopólio da competência
considerada (religiosa, artística, etc.) e, em segundo lugar e por acréscimo, para os não-
especialistas” (BOURDIEU, 2003, p. 13). Nesse sentido, a ideologia é duplamente
determinada. Ou seja, as características mais específicas dependem não apenas das classes
dominadas ou das frações de classes, que justificam por meio de narrativa uma sociedade tal
como é (Bourdieu denominou isso de “sociodicéia”), mas também estão relacionadas aos
interesses daqueles que produzem essas ideologias e na lógica dos campos específicos onde
elas foram produzidas, tais como o religioso, o científico ou artístico.
Diante disso, o poder simbólico exerce seu poder se for reconhecido pelos dominantes
e dominados como natural e ignorado como arbitrário, isto é, um efeito da divisão das classes
sociais, estabelecido pela qual tiver mais força ideológica e os instrumentos necessários para
realizar a dominação. Desse modo, o poder simbólico está na crença do poder das palavras e
na confiança naqueles que as pronunciam como sendo a verdade.
Nessa perspectiva, a representação do branco na televisão ou nas telenovelas é tomada
como natural, pois ele é o modelo de beleza e moralidade considerado e visto como a norma.
Assim, podemos elaborar uma relação do conceito de poder simbólico desenvolvido por
Bourdieu com a questão da ideologia do branqueamento. A própria classe dominada, reificada
por essa ideologia, também ignora que há uma diversidade racial no Brasil, e que
frequentemente não se percebe como negra, mas reconhece que há um padrão étnico (branco)
a ser copiado, admirado, almejado e seguido como referência estética e moral.
Bourdieu (1997) examina detalhadamente os mecanismos que promovem a censura
por trás das imagens e dos diversos discursos veiculado pela televisão. Para o sociólogo, a
televisão tem uma série de mecanismos que faz com que coloque em ação uma maneira
particular e danosa de violência simbólica, “(...) a violência simbólica é uma violência que se
exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a
exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-las”
(BOURDIEU, 1997, p. 22). A informação, e aquilo que é veiculado nos telejornais, e também
65
nas telenovelas, por exemplo, é uma das formas de produzir a violência simbólica. Sendo a
televisão para muitas pessoas a única fonte de informação sobre o mundo e seus
acontecimentos, ela tem um monopólio de fato na formação das cabeças e ideias de grande
parte da população (BOURDIEU, 1997). Além disso, “a televisão convida à dramatização, no
duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera lhe a importância, a
gravidade, e o caráter dramático, trágico” (BOURDIEU, 1997, p. 25), como a violência
promovida pelo tráfico e pelo Estado, que ocorre nos morros do Rio de Janeiro ou a
problemática do aquecimento global, que desesperou algumas pessoas mundo afora quando
divulgadas. A televisão dramatiza estes fatos que são muito sérios em nome da audiência. “A
televisão se torna o árbitro do acesso à existência social e política” (BOURDIEU, 1997, p.
29).
Bourdieu (1997) postula que a sociedade precisa cada vez mais da televisão para dar
visibilidade às suas reivindicações e necessidades, sejam de cunho político, social, cultural ou
econômico. No entanto, isso não quer dizer que a televisão se interessará por todas essas
demandas sociais. Mas aqueles que se manifestam sem o auxílio, vamos dizer assim, da
televisão, por acreditarem que basta se manifestar, como argumenta Bourdieu (1997), correm
o risco de errar o alvo. “[...] É preciso cada vez mais produzir manifestações para a televisão,
isto é, manifestações que sejam de natureza a interessar às pessoas de televisão [...]”
(BOURDIEU, 1997, p. 30), garantindo sua eficácia na produção da verdade sobre os fatos.
Por que a televisão cobriria uma manifestação? Quais os interesses ideológicos por
trás de sua ação?
Através da pressão do índice de audiência, o peso da economia se exerce
sobre a televisão, e, através do peso da televisão sobre o jornalismo, ele se
exerce sobre os outros jornais, mesmo sobre os mais “puros”, e sobre os
jornalistas, que pouco a pouco deixam que problemas de televisão se
imponham a eles. E, da mesma maneira, através do peso do conjunto do
campo jornalístico, ele pesa sobre todos os campos de produção cultural
(BOURDIEU, 1997, p. 81).
Podemos inferir, de acordo com o pensamento de Bourdieu (1997), que questões como
como manifestações em algum morro do Rio de Janeiro contra a violência ou a problemática
racial no Brasil envolvem discussões políticas que muitas vezes são desgastantes e
complicadas por envolverem diferentes interesses. A televisão não se ocuparia disso em sua
programação, a não ser tratando as questões de maneira superficial, conservadora e muito
recortada para ajustarem-se ao tempo de um telejornal exibido em horário de grande
audiência.
66
Em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação
de divertir a qualquer preço, a política está condenada a aparecer como um
assunto ingrato, que se exclui tanto quanto possível dos horários de grande
audiência, um espetáculo pouco excitante, ou mesmo deprimente, e difícil de
tratar, que é preciso tornar interessante (BOURDIEU, 1997, p. 133).
Discutir questões complexas, mas com a necessidade de discuti-las – como a política
ou a problemática racial –, acaba sendo desencorajada, pois não haveria um ponto de apoio na
televisão que fomentasse essas discussões tão relevantes.
[...] o jogo político [ou as discussões raciais pertenceriam somente ao campo
dos Movimentos Negros e de alguns intelectuais] é um jogo de profissionais,
para encorajar, sobretudo nos menos politizados, um desengajamento
fatalista evidentemente favorável à manutenção da ordem estabelecida
(BOURDIEU, 1997, p. 142).
Kellner (2001), sintonizado com Bourdieu (1997), propõe que a estética da televisão
comercial é regida predominantemente pelo realismo representacional, constituída por
imagens e histórias que permitem a fabricação do real, produzindo assim um efeito de
realidade.
A televisão comercial é constituída como um instrumento de entretenimento,
e está claro que seus produtores acreditam que o público se diverte mais com
histórias, com narrativas que contenham personagens, argumentos,
convenções e mensagens familiares e reconhecíveis, e com gêneros bem
conhecidos. Essa pobreza estética do meio provavelmente foi responsável
pelo desprezo com que tem sido ele tratado pelos teóricos eruditos e pela sua
designação como um vasto “ermo intelectual” por parte daqueles que têm
outros gostos e valores estéticos (KELLNER, 2001, p. 301).
Kellner (2001) defende que os críticos da pós-modernidade não percebam que a
televisão, e os outros modos da cultura da mídia, desempenha uma influência muito
significativa na reelaboração das identidades contemporâneas, assim como na constituição de
maneiras e formas de pensar e de se comportar na dinâmica social. Identidades certamente
fragmentadas e marcadas pela influência dos meios de comunicação de massas, especialmente
pela televisão, que produz uma forma particular de compreender o real a partir do realismo
assumido, gerado e imaginado por ela.
Cashmore (1998) revela que as novelas representam o real por meio do realismo, ou
seja, um simulacro ou uma imitação do real. À vista disso, um personagem de uma novela é
ficcional, específico e tem sua existência circunscrita no mundo criado pela telenovela. Dado
67
sua atitude e comportamento, as pessoas que assistem podem perceber uma relação direta com
a realidade social. Cashmore assegura que não há nada de real referente ao realismo, pois que
ele não corresponde objetivamente à maneira como vemos o mundo e o modo como o
pensamos (CASHMORE, 1998). Esse realismo que se fundamenta no real, mas que não é o
real, constitui “[...] aquilo que esperamos dos esforços da televisão para reconstruir a
realidade” (CASHMORE, 1998, p.87).
Os telespectadores sentem-se felizes com os casamentos exibidos em telenovelas. No
oposto, ficam chocados com a morte e manifestam raiva e desprezo pelos vilões ficcionais. A
televisão faz, desse modo, a mediação entre o que acontece no mundo real transformando
geralmente em caricatura, e de forma fantástica e absurda, aquilo que ocorre na vida diária.
Ela solicita de nós a suspensão da “[...] descrença e que mergulhemos na TV como uma
representação autêntica e natural do modo como as coisas são, muito embora tenhamos
consciência de que não é assim” (CASHMORE, 1998, p.87). Cashmore explica que
(provavelmente) “estamos preparados para acreditar na televisão. Isto parece ser uma coisa
condicional; enquanto ela não exigir demais de nós, e, nesse caso, ela se torna forçada,
absurda, ou apenas irreal” (CASHMORE, 1998, p. 87).
Provavelmente isso se justifica porque, por mais que a televisão brasileira seja
branqueada (com uma maioria quase absoluta de apresentadores, repórteres e atores brancos,
em um país em que há uma maioria negra9), as pessoas nas relações sociais continuem a
estabelecer relacionamentos entre as diferentes raças (de acordo com que argumentamos no
primeiro capítulo). Certamente elas não acreditam realmente (pelo menos intuitivamente) que
haja tão somente um padrão estético de beleza e de comportamento (eurocêntricos), que a
televisão simbolicamente insiste em representar. Esse modo de resistência, mesmo que
inconsciente, encontra respaldo em diversos núcleos de relações sociais, entre eles, em
especial e mais antigo, a família. Em conformidade com isso, Martín-Barbero (2009) assinala
que a televisão, no continente latino americano, tem na família uma unidade que é básica para
a audiência.
[...] representa para a maioria das pessoas a situação primordial de
reconhecimento. E não se pode entender o modo específico que a televisão
emprega para interpelar a família sem interrogar a cotidianidade familiar
enquanto lugar social de uma interpelação fundamental para os setores
populares (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 295[grifos do autor]).
9 Isso de acordo com os dados do IBGE. Cf. em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-aponta-aumento-
de-brasileiros-que-se-declaram-pardos-ou-pretos,748620
68
A família, de acordo com Martín-Barbero (2009), mostra-se um espaço interessante de
leitura e codificação da televisão. “[...] A mediação que a cotidianidade familiar cumpre na
configuração da televisão não se limita ao que pode ser examinado do âmbito da recepção,
pois inscreve suas marcas no próprio discurso televisivo” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.
295). As relações estreitas e relações próximas, que são as características da família, são
forjadas pela televisão, mesmo que artificialmente, “a simulação do contato e a retórica do
direto” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 295). O autor compreende por retórica do direto, o
dispositivo e os elementos que tornam um programa mais próximo de seu público,
diferentemente das produções cinematográficas em que há o predomínio da distância e a
mágica da imagem. As produções televisivas é um espaço dominado pela magia do ver, do
olhar, constituída “[...] por uma proximidade construída mediante uma montagem que não é
expressiva, e sim funcional, sustentada na base da ‘gravação ao vivo’, real ou simulada”
(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 297). De maneira que os rostos na televisão devem
apresentar-se amigáveis. Esses rostos não devem ser misteriosos ou encantadores demais.
Devem ter uma proximidade com as personagens (idealizadas pelo senso comum e pelo
núcleo familiar) brancas e que inspirem desejo de identificação. O negro, nesse sentido, não
seria uma personagem que inspira desejo de identificação, já que seria posto na categoria de
rosto vulgar e não amigável. Provavelmente isso explique, pelo menos em parte, porque a
televisão no Brasil sofreu o processo de branqueamento com resultados quase que
inquestionáveis. Buscar compreender estas relações da televisão com o público é importante
para uma pesquisa que deseja explicar quais os prováveis efeitos sociais e raciais de uma
televisão embranquecida. No entanto, no mundo acadêmico há muito pouco interesse em se
discutir o tema, sobretudo quando se pensa em estudar ou refletir sobre a televisão.
Nos últimos anos, a crítica à televisão se exacerba a partir de todos os
ângulos, ofícios e disciplinas. E não é que faltem motivos para a crítica de
uma televisão que, ao se pluralizar, permanece, não obstante, demasiado
parecida consigo mesma. Mas o que cansa, e até irrita, porque – como a
própria televisão – quase nunca sai do circuito fechado do óbvio, é a
exasperação da queixa (MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p. 23).
Muitos intelectuais e acadêmicos estão arregimentados nas concepções da Escola de
Frankfurt, como já apresentamos logo acima, para realizar a crítica à indústria cultural e à
televisão. Porém, acabam deixando de lado o estudo e a crítica dos efeitos da televisão no
69
cotidiano das pessoas, por acreditarem que basta desligar a televisão para cessar seus efeitos.
Entretanto, esses críticos da televisão não consideram ou não percebem que esse meio de
comunicação é um instrumento consolidado. Não tem como pôr fim à televisão simplesmente
ignorando o que se passa nela. As pessoas, a despeito do que os intelectuais asseveram,
continuarão a ver e a apreciar seus conteúdos.
Pois, encante-nos ou nos dê asco, a televisão constitui hoje,
simultaneamente, o mais sofisticado dispositivo de moldagem e deformação
do cotidiano e dos gostos populares e uma das mediações históricas mais
expressivas de matrizes narrativas, gestuais e cenográficas do mundo
cultural popular, entendido não como as tradições específicas de um povo,
mas a hibridação de certas formas de enunciação, de certos saberes
narrativos, de certos gêneros novelescos e dramáticos do Ocidente com as
matrizes culturais de nossos países (MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p.
26).
É necessário conhecer as demandas sociais para que se possa compreender o que a
televisão faz às pessoas. Não é interrompendo o processo de comunicação que se eliminará os
efeitos televisivos.
Sendo assim, “na América Latina, é nas imagens da televisão que a representação da
modernidade se faz cotidianamente acessível às grandes maiorias” (MARTÍN-BARBERO e
REY, 2004, p. 41). Esta modernidade está fundada em alicerces eurocêntricos. As imagens
televisivas parecem obedecer, portanto, aos padrões europeus. A televisão é branqueada. A
lógica do branqueamento faz parte do dispositivo que garante o sucesso das telenovelas,
produto com ampla aceitação e consumo na região.
Martín-Barbero e Rey (2004) enfatizam que a televisão cooptou as mídias de massa (embora
os autores citem o disco e o vídeo, atualmente podemos falar do CD, DVD e da internet),
convertendo-as em poderosos agentes que disseminam uma cultura-mundo, dissolvendo as
particularidades regionais e as identidades locais. Essa cultura-mundo propaga a estética e os
valores da cultura hegemônica eurocêntrica, por exemplo, ser belo tem que estar de acordo
com o padrão de referência europeu. Negros, indígenas e obesos não configuram modelos de
beleza nesse cenário da cultura-mundo, por uma televisão que difunde comportamentos e
sugere ideologicamente uma única cultura, tratando as outras como exóticas e fora do padrão
de normalidade. Desse modo, as telenovelas representariam um dos meios, dentro da
programação televisiva, que reforçaria padrões de comportamento e referências estéticas e
culturais.
2.4 A telenovela brasileira e sua origem
70
A história da televisão no Brasil também é, de certa forma, a história das telenovelas,
já que estão intimamente relacionadas, fazendo parte da outra, como em uma expressão
popular, “unha e carne”, unidas desde o nascimento. Nesse aspecto, as histórias da telenovela
e da televisão acabam se entrecruzando, operando como sinônimo uma da outra. A origem da
telenovela remonta a um passado em que o rádio não existia e nem se cogitava a existência da
televisão. Os folhetins, como os protótipos das novelas nesse passado remoto, eram
veiculados pelos jornais impressos na Europa dos séculos VXIII e XIX. Desse modo, nesta
seção, vamos discutir as bases da origem da novela e da telenovela, como um gênero ficcional
de grande interesse popular.
Renato Ortiz (1991a), aponta o desenvolvimento da imprensa, a revolução industrial, o
nível de educação, sobretudo na Europa, e particularmente na França, como contribuições
importantes para a disseminação do romance-folhetim, entendido como um dos precursores
das telenovelas. Precursores porque esses romances-folhetins eram seriados, ou seja, estavam
toda semana, ou até mesmo diariamente, sendo publicados, como parte dos jornais que
circulavam por diversas regiões da França e eram facilmente distribuídos, principalmente em
decorrência dos avanços das ferrovias. Diante de todos esses eventos ocorridos no século
XIX, Ortiz assegura que o folhetim era um contemporâneo das transformações que estavam
acontecendo na França. Os meios de divulgação e a formação de um público leitor garantiram
uma boa aceitação do folhetim.
Não deixa de ser interessante observar que esta narrativa vem desde o seu
início marcada pelo signo do entretenimento. O próprio vocábulo feuilleton
denota esta dimensão: no início a palavra designa um lugar específico da
página do jornal, o rodapé, espaço visualmente demarcado dos outros temas,
e no qual são tratados os faits divers, os crimes, as crônicas mundanas, e por
fim o romance-folhetim, publicado em pedaços (ORTIZ, 1991, p. 14).
Ortiz argumenta que o jornal La Presse, de Émile Girardin, no ano de 1836, publicou
um romance do grande escritor francês Honoré de Balzac. Houve uma boa repercussão dessa
publicação no jornal, aumentando assim o interesse pelo folhetim. Segundo o autor, os
maiores jornais franceses do século XIX com fortes características empresariais, tais como La
Presse e Le Siècle, possibilitaram o desenvolvimento do romance-folhetim, ao observarem
que poderiam, dentro do espaço do jornal, render economicamente.
No entanto, o romance-folhetim não era muito popular, pois circulavam apenas na
pequena e média burguesia. “Os meios populares somente começaram a ler regularmente os
71
diários no final do Segundo Império, quando foi possível adquiri-los nas ruas [...]” (ORTIZ,
1991, p. 15). Isso porque jornais, como o Le Petit Journal, o maior jornal popular da época,
fundado em 1863, consolidou nas classes populares urbanas o interesse pelo folhetim, sendo
também levado, mais no final do século XIX, aos camponeses e às províncias mais distantes
da França (ORTIZ, 1991).
O desenvolvimento do folhetim no Brasil sucedeu-se concomitante ao da França. No
ano de 1838, um jornal do Rio de Janeiro, o “[...] Jornal do Comércio [...] publica Capitão
Paulo de Alexandre Dumas, série que é iniciada em Paris, no Echo [...]” (ORTIZ, 1991, p. 15
[grifos do autor]). Na realidade, o folhetim publicado no Brasil no século XIX, em sua
maioria, eram traduções de autores franceses. Assim, enquanto um folhetim era publicado na
França, quase que simultaneamente era lançado no Brasil. “Tudo indica que a aceitação do
novo gênero literário, como tudo que vinha da França, se fez sem maiores problemas”
(ORTIZ, 1991, p. 15). Entretanto, o autor aponta uma diferença entre o folhetim francês e o
brasileiro. Os escritores franceses estavam relacionados a uma lógica e ao ritmo da imprensa
comercial da época para produzir os folhetins, tinham que se adequar a dinâmica da demanda
comercial e à assimilação do público leitor. Ou seja, havia ajustamentos no processo da
escrita do folhetim. As narrativas das “estórias” sofriam com os interesses externos, do lado
comercial e da recepção.
No Brasil, o folhetim seguia outro ritmo. De acordo com Ortiz (1991), na produção do
folhetim brasileiro, pelo menos aqueles que não eram traduções francesas, “[...] tem-se a
impressão de que os romances são escritos antes, para em seguida serem publicados na forma
seriada” (ORTIZ, 1991, p. 16). O autor destaca também que os escritores brasileiros tinham
como forma de divulgar seus trabalhos as publicações nos jornais. De modo que suas
produções eram veiculadas em pedaços, porém, possuindo um caráter diferente do folhetim
francês. Esses escritores utilizavam “[...] estrategicamente o único meio de expressão que lhes
é disponível do que propriamente produzindo uma literatura folhetinesca de entretenimento”
(ORTIZ, 1991, p. 17). Mas o folhetim não floresceu, em termos comerciais no Brasil, porque
a sociedade brasileira, além de ter um comércio incipiente, era precisamente escravocrata no
período em que o folhetim nascia na França. E quem possuía acesso e condições de consumo
de jornais e livros era uma pequena minoria da sociedade brasileira.
[...] porque a imprensa, a linguagem escrita numa sociedade escravocrata, é
um bem da elite dominante não atingindo a massa analfabeta da população.
Na verdade a tiragem dos jornais e revistas brasileiras pode, no máximo, ser
comparada à distribuição dos bens restritos na Europa (ORTIZ, 1991, p. 17).
72
Por conseguinte, o folhetim como um meio de entretenimento e de divulgação dos trabalhos
dos escritores chegou ao Brasil, marcando um estilo de produção seriada, que narrava
“estórias” romanceadas. Não podemos afirmar, dessa forma, que as telenovelas sejam
exclusivamente uma herança do romance-folhetim francês. Remontamos à história do
folhetim, para tratar da telenovela, simplesmente pelo fato que há um núcleo comum entre ele
e a moderna telenovela: esse núcleo comum é justamente a seriação. Ortiz (1991) nos diz que,
além do romance-folhetim francês, também se deve somar nessa matriz geradora da
telenovela o rádio, mais precisamente a radionovela; as “óperas de sabão”, ou soap opera
norte-americanas, que eram destinadas a fazer propaganda dos produtos de limpeza para as
donas-de-casa, em um período de forte recessão econômica nos Estados Unidos. De acordo
com Silva (2005), podemos elencar outros antecedentes da telenovela, como o melodrama
teatral, o romance europeu do século XIX, o romance folhetim (por entrega e em fascículos),
a fita-em-série norte-americana, as histórias em quadrinhos e a fotonovela (SILVA, 2005). De
todos esses antecedentes, o melodrama é o gênero narrativo incorporado pelas telenovelas que
mais caracteriza o seu formato.
Conforme Martín-Barbero (2009), esta maneira de narrar os fatos surge especialmente
na França e na Inglaterra desde 1790, pois é um “[...] espetáculo popular que é muito menos e
muito mais que teatro” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 163). O melodrama está mais
próximo dos modos e espetáculos de feira, mais circense e com as formas da literatura oral,
sobretudo os contos de medo e de mistérios que fazem referência ao terror (MARTÍN-
BARBERO, 2009). O melodrama tem uma forma de encenação muito própria, em que as
emoções são sempre mais exageradas, com gestos expansivos e comoventes, tanto para o riso
quanto para a tristeza ou o choro. Dessa maneira, os críticos de teatro dos séculos XVIII e
XIX, conforme Martín-Barbero (2009), ficavam escandalizados com o melodrama, já que
essa expressão não dava muita importância à palavra, mas aos efeitos sonoros e visuais. Os
gestos e a dança são privilegiados. Mantém, por outro lado, uma relação em torno do bem e
do mal, do excesso estético, dos juízos de valores morais, do sentimentalismo, das virtudes e
vícios contrastantes das personagens, sobretudo dos heróis e dos vilões (SILVA, 2013).
Há que se destacar também, que esse melodrama está no contexto da Revolução
Francesa (1789-1799), período de intensa movimentção nos campos políticos, sociais e
culturais. Nesse sentido, Silva (2013) ratifica a ideia que a chamada estética melodramática
surgiu no burburinho revolucionario da França do século XVIII.
73
Na estruturação do melodrama pode-se encontrar todas essas características elencadas
que repercutem até hoje no cinema e nas telenovelas. Claro que com algumas atualizações,
mudanças e sofisticações tecnológicas. No entanto, em relação aos personagens, o esquema
ou a estruturação continua a mesma do melodrama “original”. Segundo Martín-Barbero
(2009), há um núcleo estrutural do melodroma formado por quatro personagens: o Traidor
(que seria o vilão da história), a Vítima (heroina que encarnar a inocência e a virtude, na
maior parte das vezes é uma mulher), o Justiceiro (herói, sempre do gênero masculino, que no
último instante salva a vítima e castigo o traidor) e o Bobo, que se encontra fora da tríade dos
protagonistas (MARTÍN-BARBERO, 2009). Nessa perspectiva, o Bobo, tanto no cinema
quanto nas telenovelas, tem sempre uma atuação marginal. Não aparece com frenquência no
enredo, e quando surge é somente para despertar o riso, por meio da sua representação do
rídiculo.
Em uma sociedade racista, assim como a brasileira, a estrutura do melodrama
televisivo espelhará esta formação das personagens com a diferença de que os protagonistas
serão sempre, ou quase sempre, brancos. O Bobo, que representa os papéis subalternos, será
sempre, ou quase sempre, reservado ao negro.
[...] nenhum outro gênero consegiu agradar tanto nesta região quanto o
melodrama, nem mesmo o de terror – e não por falta de motivos – ou o de
aventuras – ainda que não faltem selvas e rios (MARTÍN-BARBERO, 2009,
p. 305).
Martín-Barbero (2009) defende que esse gênero expresso nas telenovelas, de certo
modo, nos unifica enquanto latino-americanos, reafirmando as mestiçagens da qual somos
resultados.
Como nas praças de mercado, no melodrama está tudo misturado, as
estruturas sociais com as do sentimento, muito do que somos – machistas,
fatalistas, supersticiosos – e do que sonhamos ser o roubo da idendidade, a
nostalgia e a raiva (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 305).
Além disso tudo, Martín-Barbero aponta que é precisoressaltar também o aspecto
racista, pois o melodrama, principalmente o televisivo representa de forma predominante a
estética branca como a detentora quase que absoluta das virtudes da beleza e da moralidade.
2.5 Radionovela como precursora das telenovelas
74
Segundo a historiadora Lia Calabre (2007), o rádio chegou oficialmente ao Brasil em
1923, despertando muitas paixões. Paixões estas que Edgar Roquete Pinto, considerado o pai
da radiodifusão no Brasil, e Henrique Morize, engenheiro industrial francês naturalizado
brasileiro, alimentavam com a esperança de ter, nesse veículo de comunicação, um meio de
enfrentar o analfabetismo e a falta de informação que afetavam o país naqueles tempos. Sem
falar nos empreendedores, como Renato Murce, que vislumbrava grandes vantagens
comerciais com o advento do rádio. Entre as décadas de 1940 e 1950 houve uma expansão
vertiginosa das emissoras de rádio, com uma vasta programação, do radiojornalismo,
comerciais às radionovelas. Este período é conhecido como os “anos dourados do rádio
brasileiro”. As radionovelas constituíam destaque nessa época, ocupando o horário nobre da
programação (CALEBRE, 2007).
No entanto, as radionovelas, como menciona Ortiz (1991), somente chegaram ao
Brasil em 1941. “[...] Ano em que são lançadas A predestinada pela Rádio São Paulo e Em
busca da felicidade pela Rádio Nacional” (ORTIZ, 1991, p. 25). Estas radionovelas eram
destinadas a um público específico, as mulheres, sobretudo as donas de casa, e tinham como
base de inspiração a soap opera norte-americana.
[soap] relacionava-se aos anunciantes, patrocinadores de sabão, e opera liga-
se ao romantismo desse gênero musical, trazendo em seu conteúdo dramas
domésticos voltados para classe média em uma perspectiva feminina
(CHAVES, 2007, p. 24).
Os principais patrocinadores das radionovelas nos Estados Unidos eram os fabricantes
de produtos de limpeza domésticos e de higiene pessoal. E quem cuidava dos afazeres do lar?
Quem estava mais horas presente em casa? As mulheres. Desse modo, o alvo principal do
rádio e das radionovelas era o público feminino.
Chaves (2007) revela que Cuba foi uma grande fonte de inspiração e exportação de
radionovelas para o Brasil, pois, em Havana, nos anos 1930, havia proporcionalmente mais
emissoras de rádio do que em Nova York.
A radionovela tinha forte influência no cotidiano da nação, não apenas por fomentar o
comércio nacional, mas também por ter um conteúdo voltado para as questões da vida dos
brasileiros, “[...] com tramas envolventes e, consequentemente, ocupavam os melhores
horários de transmissão, assim como boa parte da programação das emissoras” (CHAVES,
2007, p. 40).
75
Ortiz (1991), nesse sentido, afirma que antes, no início da sua inserção no Brasil, as
radionovelas eram importadas; porém, com o passar do tempo, os autores nacionais
desenvolveram os próprios enredos das novelas, abordando temáticas e questões que os
brasileiros teriam mais afinidades identitárias. Acumularam um know-how da literatura
melodramática que depois foi transferida para as telenovelas (ORTIZ, 1991).
Contudo, a transferência foi lenta. A televisão chegou ao Brasil somente em 1950. A
primeira telenovela a ser exibida foi em 1951, “Sua vida me pertence”, na TV Tupi de São
Paulo, cujo autor foi Walter Foster. “É o início de uma produção que permanece até 1963 com
o advento da telenovela diária” (ORTIZ, 1991, p. 28). Segundo Ortiz, durante toda a década
de 1950 as telenovelas eram transmitidas duas vezes por semana, em um curto espaço de
tempo, cerca de vinte minutos cada capítulo. A televisão era uma aquisição muito recente para
o país, e não se sabia como explorá-la adequadamente, havendo certa insegurança em seu uso
comercial, além da pressão do passado radiofônico, que produziu toda uma maneira especifica
de interpretação que diferia das exigências das novelas exibidas na televisão.
Com o tempo as telenovelas ganharam um espaço que acabou por deixar lentamente
a radionovela para trás. Nesse período, a telenovela ainda sofria com a precariedade financeira
e empresarial, pois a televisão brasileira em seus primórdios era marcada pela improvisação e
problemas econômicos, “[...] cuja gestão se fazia nos moldes dos ‘capitães de indústria’, como
Chateaubriand, e não segundo os parâmetros de uma administração racional e moderna”
(ORTIZ, 1991, p. 33).
Outro aspecto das telenovelas que se iniciavam no Brasil, é seu caráter esporádico,
sendo exibidas duas ou três vezes por semana, ao vivo. Ortiz (1991) aponta que, além de
transmitir as telenovelas, a televisão brasileira exibia os teleteatros que gozavam de mais
prestígio que as telenovelas, pelo menos entre os atores, que percebiam as novelas como algo
menor, ficando incomodados quando eram escalados para encená-las.
Nesses primeiros momentos das telenovelas, os textos eram produzidos por autores
nacionais, depois houveram adaptações de autores consagrados da literatura internacional,
assim como adaptações do cinema, como “E o vento levou” e “Sublime obsessão”. No caso
da literatura tem-se Vitor Hugo, Júlio Verne, Alexandre Dumas, Rafael Sabatini, entre outros,
em que seus textos foram adaptados para o vídeo.
[os] diretores das telenovelas incursionam inclusive pelo terreno de uma
escrita mais erudita, escolhendo livros como César e Cleópatra, de Bernard
Shaw; Um lugar ao sol, de Theodor Dreiser; ou Coração inquieto, de
76
Stephan Zweig. Um padrão que se distancia do melodrama cubano, calcado
nas peças lacrimosas de Felix B. Caignet (ORTIZ, 1991, p. 36).
Percebe-se que houve uma tentativa de inserir um conteúdo mais sofisticado nas
telenovelas, baseado em uma literatura estrangeira, que muitas vezes não tinha muita relação
com as questões da cultura brasileira. “Ao se apropriar da literatura internacional, a novela se
afastava do melodrama, compensando de alguma forma o desequilíbrio que a herança
radiofônica insistia em perpetuar” (ORTIZ, 1991, p. 45).
Desse modo, as telenovelas brasileiras nascem inspiradas em grande parte nas
adaptações de escritores estrangeiros, que contam suas estórias a partir de um mundo
diferente da realidade brasileira.
A temática que é abordada nas telenovelas, pelo menos em seu início, está fundada na
literatura francesa e inglesa, e no cinema norte-americano hollywoodiano. Somente um pouco
mais tarde, na década de 1960, que a televisão usa mais os autores nacionais, tais como
Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado e Érico Veríssimo, para discutir e
apresentar estórias em um contexto brasileiro.
Com isso, podemos aventar a hipótese de que a televisão e as telenovelas sejam
branqueadas, justamente por influência da literatura europeia e dos filmes hollywoodianos. As
temáticas sociais eram construídas a partir da cultura europeia e norte-americana. Com o
tempo, claro que isso sofreu mudanças significativas. No entanto, a matriz de representação
ou o arquétipo dos personagens continuaram brancos. Por isso, as temáticas sociais que as
telenovelas abordam são importantes pontos de provocação da reflexão, já que tratam de
algumas de maneira mais aberta e declarada e outras de maneira incipiente e fragmentada. Por
exemplo a questão da homossexualidade é discutida de forma bem evidente, já a questão
racial não é tratada abertamente.
2.6 As telenovelas e as temáticas sociais
Pelo que se pode constatar, a telenovela está alicerçada em dois eixos estruturantes que
permitem o desenvolvimento da estória que será narrada. Um desses eixos é o romance, que
desencadeia um relacionamento amoroso com seus altos e baixos, frustrações, conflitos,
desencontros, e reencontros. O outro eixo está fundado em uma temática social, seja ela
política, como a questão da corrupção, ou de saúde pública, como ao enfatizar os transplantes
de órgãos um alerta sobre a AIDS, sua prevenção ou o preconceito que se tem aos portadores
do vírus. Além desses temas, pode-se destacar na área do comportamento, a homoafetividade:
77
relações homossexuais entre homens ou entre mulheres. Discussão que está sempre presente
nas telenovelas.
As temáticas sociais, a nosso ver, evidenciadas pelas telenovelas constituem pautas
importantes de debates veiculadas pela televisão. Na realidade, elas compõem um espaço para
a discussão e a reflexão de fatos sociais apresentados aos telespectadores para serem
examinados. As telenovelas realizam de modo satisfatório essa tarefa (pelo menos do ponto
de vista de provocar o redirecionamento do olhar das pessoas para o fato ou temática social
em evidência). Claro que algumas temáticas, como as raciais, nunca foram discutidas de
forma tão aberta e recorrente como a homossexualidade, que ocupa, nos últimos tempos, o
enredo das telenovelas com muita frequência, possibilitando a reflexão social sobre essa
questão, trabalhando os preconceitos e fomentando a tolerância quanto à sexualidade humana.
Cashmore (1998) chama a atenção para o fato de que as telenovelas (em relação às
caracterizações que executam nas tramas que desenvolvem nos enredos), “são as formas mais
‘realistas’ de toda a televisão. [Assim] [...] Aborto, dislexia, estupro e desemprego são grãos
para o moinho que comprime os debates do dia nas crises pessoais” (CASHMORE, 1998, p.
145). Elas conseguem dar vida a muitos mundos artificiais em que os espectadores podem
estabelecer vínculos identitário. “Por quê? Porque os contextos não são importantes; o que
importa são as relações humanas” (CASHMORE, 1998, p. 145-146). As telenovelas ao usar
temáticas de amplitude social, inspiradas nos dramas e nos problemas de pessoais concretas,
segundo Cashmore, acabam transcendendo os contextos sociais, sejam culturais, econômicos
ou políticos, tornando-se populares nas diferentes classes sociais por possibilitar uma
identificação das pessoas com os sofrimentos, dramas e amores que são comuns à vida
humana. Por exemplo, a telenovela “Lado a Lado”, da Rede Globo, exibida entre setembro de
2012 e março de 2013, discutiu, entre outras questões, a emancipação feminina no início do
século XX, na cidade do Rio de Janeiro, cuja sociedade era conservadora e permeada por
diversos preconceitos em relação à mulher.
Algumas feministas elogiam as novelas por serem o único gênero que mostra
mulheres em papéis ativos e fortes. Outros as criticam por perpetuar o
estereótipo sexista das mulheres-corajosas, sempre presentes nos momentos
de crise (CASHMORE, 1998, p. 146).
Independente do posicionamento político, o fato é que esta telenovela apresentou a
história de algumas mulheres que lutaram pela sua emancipação. Possibilitando repensar o
papel da mulher no contexto contemporâneo. Além disso, os papéis que as mulheres assumem
nas telenovelas tem forte interesse comercial.
78
As mulheres, especialmente as jovens, são o grupo mais procurado pelos
programadores. Elas interessam aos anunciantes, pois têm a maior parte do
controle sobre a renda disponível e assistem mais TV. Por extensão,
interessam aos programadores que precisam dos negócios com os
anunciantes. Nesse sentido, as mulheres são o oposto das minorias étnicas,
às quais os anunciantes têm sido indiferentes, pelo menos até há pouco. A
lógica é irresistível. Mas os resultados quase não ajudaram a dissolver os
estereótipos dos quais os dois conjuntos de minorias têm reclamado por
décadas. Apesar das grandes modificações no decorrer dos anos, as mulheres
e as minorias étnicas continuam a insistir em que nenhuma quantidade de
reformulação pode compensar adequadamente as injúrias (CASHMORE,
1998, p. 153).
No caso da novela “Lado a Lado”, a intenção talvez tenha sido enfatizar que a mulher
não está satisfeita com o lugar que ela ocupa na hierarquia social, sendo representado como
mera dona de casa.
Dessa maneira, o Cashmore apresenta um argumento que não estamos totalmente em
sintonia, mas que vale a pena ressaltar.
Se as mulheres mantiverem a rédea curta no orçamento doméstico e as
minorias étnicas mantiverem ou melhorarem sua posição no mercado, suas
posições nos programas de TV irão melhorar, especialmente nos dramas.
Tudo isso faz com que o conteúdo da televisão pareça redutível aos
imperativos do mercado e dos anunciantes que buscam manipulá-la
friamente (CASHMORE, 1998, p. 154).
Veja que ele reduz tudo a uma questão de mercado. Se, por exemplo, as mulheres
continuarem a manter o domínio da economia doméstica, os anunciantes continuarão a exigir
no elenco das telenovelas as mulheres. Em relação aos negros, o argumento é parecido. Se
eles tiverem uma posição no mercado de destaque, os produtores e anunciantes os recrutaram
mais vezes e em maior quantidade. Este argumento parece problemático, pois as questões
raciais não se reduzem aos ditames do mercado.
Nessa maneira de pensar, parece ser mais fácil culpabilizar o mercado, ou o
capitalismo, do que admitir o sexismo, o machismo e o racismo da sociedade e também das
pessoas envolvidas no processo de produção das telenovelas, sendo que elas se inspiram e são
influenciadas pelo contexto da sociedade na qual fazem parte.
Ortiz e Ramos (1991), ao que tudo indica, estão em sintonia Cashmore (1998), ao
assegurarem que o mercado e os anunciantes “[...] delimita a autoridade dos produtores de
cultura; sua força provém do êxito junto ao grande público” (ORTIZ e RAMOS, 1991, p.
79
158). Parece que o mercado somente aprova ou desaprova de acordo com a quantidade da
audiência do produto televisivo. As questões políticas, como a discriminação e o preconceito
enfrentados pelas minorias, não constituiriam uma preocupação para o mercado. O interesse
está centrado na obtenção do lucro.
Para o público telespectador as demandas do mercado também não interessam muito.
Os produtores das telenovelas gravitam em torno da ideia de entretenimento. O objetivo
principal é cativar o público, magnetizar e prender sua atenção na estória que está sendo
contada para as amplas faixas de possíveis consumidoras e consumidores (ORTIZ e RAMOS,
1991).
Ortiz e Ramos (1991) citam o produtor de televisão e escritor norte-americano Steven
Ronald Bochco para enfatizar o caráter apolítico da telenovela estadunidense.
Eu não penso que eu tenha a responsabilidade de apresentar um ponto de
vista abalizado. Isto é propaganda, não entretenimento. Eu sou realista. Eu
sei que atuo num meio que não é um meio artístico. Não é nem mesmo
fundamentalmente um meio de entretenimento. É basicamente um meio
comercial (BOCHCO apud ORTIZ e RAMOS, 1991, p. 159).
Esta concepção da produção televisiva, principalmente das telenovelas, guia e orienta,
pelo menos por certo tempo, os autores brasileiros. Os jornais e as revistas especializadas no
gênero tecem críticas, afirmando que as telenovelas deveriam ter uma postura mais de
vanguarda. Aguinaldo Silva, telenovelista brasileiro, autor da novela “Duas Caras” exibida no
horário da 20h, afirma, de acordo com Ortiz e Ramos (1991), que a televisão é um negócio
que tem como fonte de exploração o capital privado, dependente assim de anunciantes. Mas,
captando uma sutileza do texto de Ortiz e Ramos, percebemos que, independente da vontade
ou determinação do anunciante, os autores telenovelistas têm livre poder de criação das
novelas, abordando temática diversa e em conformidade com que desejam expressar por meio
de os seus posicionamentos políticos e ideológicos.
Ortiz e Ramos (1991) afirmam que, enquanto os escritores, de modo geral, das soap
opera norte-americanas se preocupam em fazer um produto para o simples consumo e
entretenimento televisivo, desvinculado de qualquer posicionamento político e social, os
novelistas brasileiros são mais engajados politicamente. Mesmo recebendo influência das
produções norte-americanas, as telenovelas brasileiras teriam escritores que se contraporiam à
visão amenizada dos problemas sociais, se preocupando mais com as questões nacionais e
com a cultura popular. Estas preocupações, assim como o ideário nacional-popular, foram
80
difundidas nos anos 1950 e 1960, tornando-se politizado e com intencionalidade
revolucionária e que “[...] vai direcionar a ação de um grupo de escritores no interior da
televisão” (ORTIZ e RAMOS, 1991, p. 161). Os autores prosseguem ao argumentar que:
Sua crença [dos escritores] é a possibilidade de se trabalhar junto a um
gênero popular, visando a uma “conscientização” mais elaborada,
ultrapassando as “lições de vida”, o que seria alcançado através da conexão
dos conteúdos das novelas com as questões mais amplas do processo cultural
e político. Lauro Cézar Muniz, cuja trajetória como escritor inicia-se nos
anos 60 [do século XX], quando ainda atuava no movimento teatral,
polarizado pelos grupos Arena e Oficina, enfatiza tanto o caráter catártico da
novela com a possibilidade de ali criar um espaço para reflexão (ORTIZ e
RAMOS, 1991, p. 161).
De modo geral, os escritores brasileiros, como apontam os autores, sempre têm como
pano de fundo, em suas produções telenovelísticas (depois de superada aquela fase em que
concebiam as telenovelas apenas como mero entretenimento), questões sociais de interesse
nacional. A ficção desencadeia não apenas momentos de entretenimento, mas também
momentos de reflexão.
Segundo Motter (2003), a televisão de sinal aberto no Brasil, apesar da baixa
qualidade de sua programação, tem na ficção televisiva, sobretudo nas minisséries e nas
telenovelas, uma zona de qualidade. Ela sugere que esta ficção, leva ao público discussões
que provocam a reflexão de assuntos fundamentais.
[...] homossexualidade, reforma agrária, crianças desaparecidas, alcoolismo,
leucemia foram postos em pauta nas últimas telenovelas e construídos com
clareza e aos poucos no curso dos cerca de seis meses de duração da história
(MOTTER, 2003, p. 77).
Na telenovela, “O Clone” (2001-2002), da autora Glória Perez, retratou-se a
dependência química (MOTTER, 2003) por meio da personagem Mel, ou Melissa Ferraz,
interpretada pela atriz Déborah Falabella, desencadeando uma campanha contra as drogas, em
que, ao final de cada capítulo da novela, era apresentado depoimentos dramáticos dos
familiares e dos pacientes que estavam em tratamento. Isso provocou na época um aumento
do interesse por tratamento e orientação de especialistas junto às pessoas envolvidas nesse
drama.
Motter defende que as telenovelas têm grande influência na opinião pública, bem
como nas instituições, pois fomenta a reflexão e desperta para a necessidade de certas ações
para enfrentar as possíveis falhas na organização, por exemplo, da distribuição de terras. No
81
entanto, é importante destacar que as telenovelas são apenas ficções. A leitura ou a recepção
que o público faz foge ao controle daqueles que a produzem.
[...] se a ficção televisiva pode tocar tantos ao mesmo tempo e discutir,
dentro dos limites da ficção, questões delicadas, difíceis e cruciais [...] cabe-
lhe tratar desses problemas não como documentário ou com o didatismo de
uma lição (MOTTER, 2003, p. 78).
De modo que se as telenovelas romper a fronteira da realidade, retratando com muito
realismo o que se propõe mostrar os aparelhos de televisão serão sintonizados em outros
canais, ou simplesmente desligados (MOTTER, 2003).
O factual, ou a realidade, só se toma um objeto desejável por se oferecer, na
telenovela, na embalagem do sonho, do devaneio, do descompromisso. Não
se deve cobrar dela nada além da responsabilidade social que lhe cabe como
líder de audiência. A finalidade da televisão continua sendo entretenimento e
informação. Nós insistimos em cobrar dela um propósito educativo e lhe
atribuímos esse papel, o que é possível, sobretudo no âmbito da ficção onde
a mediação de autores com responsabilidade social existe e é de suma
importância (MOTTER, 2003, p. 78).
A autora alerta que não pode se esperar da ficção as transformações de
responsabilidade das ações concretas da política e das instituições sociais.
“A ficção pode fazer muito pela realidade, pode desenhar mundos, pode apontar caminhos. Só
não pode fazer a mágica de transformar, por si só, o que historicamente é resistente à
mudança, o que cabe aos agentes sociais concretos”. (MOTTER, 2003, p. 79).
Argumentando nesse mesmo sentido, Esther Hamburger (1998) postula que a televisão
ofereceria vasta informação, difundida, principalmente, por meio da ficção. Esta última
acessível a todos os públicos e camadas sociais, independente do pertencimento identitário, de
classe social ou mesmo localização geográfica. “Ao fazê-lo, ela torna disponíveis repertórios
anteriormente da alçada privilegiada de certas instituições socializadoras tradicionais como a
escola, a família, a Igreja, o partido político, a agência estatal” (HAMBURGER, 1998, p.
442).
A autora destaca ainda que a ficção televisiva, sobretudo a difundida pelas telenovelas,
são responsáveis, juntamente com as instituições sociais, ou provavelmente até mais do que
estas, por atualizar a noção de ser contemporâneo, já que os diversos personagens das
telenovelas disseminam essa noção ao fazerem uso de telefones celulares de última geração,
82
computadores sofisticados, helicópteros, aviões, modelos de roupas recentemente lançadas e
padrões de comportamentos entre homens e mulheres.
A novela estabelece padrões com os quais os telespectadores não
necessariamente concordam, mas que servem como referência legítima para
que eles se posicionem. A novela dá visibilidade a certos assuntos,
comportamentos, produtos e não a outros; ela define uma certa pauta que
regula as interseções entre a vida pública e a vida privada (HAMBURGER,
1998, p. 443).
Os telespectadores, desse modo, não são determinados pelas telenovelas. É bem
possível que estas últimas possam induzir a modelos ou padrões de referência para o
comportamento social das pessoas. Nessa perspectiva, gostaríamos de dar um exemplo,
considerando o que foi dito por Hamburger (1998). A estética das pessoas na sociedade
brasileira tem como modelo o branco, sendo referência de beleza, virtude e dignidade. No
entanto, no cotidiano da vida e dos relacionamentos, a maioria das pessoas, ao manterem suas
interações sociais, por mais que recebam a influência, intencional ou não, desse modelo
propagado pelas telenovelas, não necessariamente escolhem suas parceiras e parceiros para se
casarem tendo como parâmetro exclusivo a questão racial, como a cor da pele ou os traços
fisionômicos (cabelo, nariz, lábios). De forma que o branco não se casa somente com uma
branca, ou uma negra apenas com um negro. Há na realidade social brasileira uma forte
mistura pigmentar. Não quer dizer, de forma alguma, que isso seja ruim ou bom. Apenas
demonstra que as pessoas de todas as cores se encontram e se enamoram, por mais presente
que esteja o racismo classificando o que é belo ou o que é feio. Até porque o Brasil é o país
com a maior população negra fora da África.
O exemplo citado serve para evidenciar que o racismo existente no país não é um
fenômeno que ocorre eventualmente. Na realidade, ele é estrutural, pois está na raiz histórica
da formação do Brasil, impregnando de ideias falsas a mentalidade dos brasileiros ao
introjetar ideologicamente que a beleza física das pessoas somente tem valor (seja moral,
estético, cultural e material) quando ela se enquadra no modelo de referência leucodérmico
(MOORE, 2007). As telenovelas brasileiras acabam reforçando essa percepção, ao exibir no
conjunto de seus personagens uma maioria branca. Isso explicar também a pouca frequência
de negros10 nas propagandas e nos intervalos comerciais das telenovelas. Evidentemente, se
10 Aqui usamos o termo negro de acordo com a concepção do IBGE, em que pardos e pretos constituem a
categoria negra. Já falamos disso também no primeiro capítulo.
83
compararmos há trinta ou vinte anos atrás, houve avanços da presença negra na televisão. Mas
há que se considera que isso ainda é uma mudança tímida.
Os padrões de comportamentos exibidos nas novelas, de certa forma, tocam as
pessoas, convocando posicionamentos e atitudes em seu grupo social. Isso gera discussões,
principalmente no seio familiar ou no círculo de amigos, em relação aos costumes, moda,
consumo, economia e política adotados pelos personagens. Como efeito colateral, as
telenovelas podem realçar preconceitos e atitudes discriminatórias enraizadas no senso
comum. No entanto, esse caráter ambíguo da telenovela que expomos logo acima, não é o
mais importante a se destacar, pois as telenovelas, em diferentes graus, influenciam a opinião
das pessoas e de suas atitudes. Segundo Hamburger, a política ganhou grande audiência e
repercussão junto aos telespectadores, recrutando-os a pensar sobre as demandas que
envolvem a corrupção, os Sem Terra e a política nacional. Essas telenovelas são denominadas
pela autora de novelas de intervenção (HAMBURGER, 2005). Ou seja, produções que, além
de trazerem as marcas comuns do melodrama e do folhetim, procuram desenvolver temáticas
sociais que possam mobilizar opiniões e despertar reflexões em torno de assuntos
considerados importantes para o debate público.
Quando telespectadores se envolvem no debate sobre um assunto – seja no
âmbito público, privado, ou em ambos os contextos –, eles mobilizam sua
condição de membros de um grupo, determinado não pelo conteúdo
ideológico dominante de uma “mensagem”, mas pelo estabelecimento de
pautas. Ao definir cenários, pautas e enquadramentos, as novelas tomam
parte na delimitação de coletivos imaginários e expandem os limites do que
é e do que não é considerado assunto legítimo para discussão pública. As
novelas expressam as peculiaridades de um espaço político perversamente
saturado de fofocas, intimidades e registros morais que escapa das teorias e
práticas que procuram explicar os universos contemporâneos nos marcos de
disciplinas e domínios estreitos (HAMBURGER, 2005, p. 147).
Ou seja, assuntos que muitas vezes ficam restritos ao campo de especialistas,
acadêmicos ou de estudiosos do comportamento humano acabam se tornando acessíveis a um
público bem mais amplo, pelo fato das telenovelas apresentarem os temas de maneira mais
ilustrativa e fazendo referência sempre ao senso comum, acessando diretamente o imaginário
das pessoas, suas convicções e suas visões de mundo. Por outro lado, não se pode esperar uma
determinada recepção do público, como em uma equação matemática, em que dois mais dois
são quatro. A justificativa para isso, de acordo com Hamburger (2005), é que não se consegue
prever com muitos acertos a reação do público em relação a determinado assunto que está
sendo apresentado em uma telenovela. Como as críticas que a novela “Amor à Vida” sofreu
84
ao não conseguir emplacar as intervenções sociais com êxito. Por exemplo, a questão da
AIDS, do preconceito em relação à pessoa gorda, o problema do alcoolismo, não tiveram
repercussões significativas perante os telespectadores. Mas é sempre difícil averiguar com
precisão as reações do público. Sabemos que, de algum modo, ocorreu a recepção. Podemos
inferir, hipoteticamente, que as pessoas foram influenciadas e sensibilizadas, por exemplo, no
caso da AIDS, em que a personagem da atriz Raquel Villar, a auxiliar de enfermagem Inaiá
Seixas, não sabia que era portadora do vírus HIV, e que tinha começado a desenvolver o
quadro da doença.
[...] é uma forma de conhecer melhor, através das interpretações e do
julgamento que as pessoas fazem das personagens, as percepções,
pensamentos e sentimentos destas pessoas a respeito de algumas de suas
relações sociais (JUNQUEIRA, 2009, p. 19).
De acordo com Junqueira, as telenovelas, sendo um dos principais produtos culturais
da América Latina e do Brasil, detêm umas das formas mais efetivas de comunicação com o
público, e não podem ser fixadas e vistas apenas com as funções de entretenimentos e da pura
dominação ideológica (JUNQUEIRA, 2009). A autora ainda assevera que “questões relativas
à percepção, sentimento e à moral ligadas à vivência das desigualdades sociais na sociedade
brasileira são tratadas pelas telenovelas e lançam verdadeiras pautas de discussão nacional”
(JUNQUEIRA, 2009, p. 20). É bom ressaltar, no entanto, que as telenovelas não partem
diretamente para as discussões dos temas sociais, como se fossem o objetivo principal.
Sempre apresentam um motivo comum em sua estrutura narrativa que é facilmente
reconhecível em todas as novelas.
[...] a telenovela trata de histórias de amor e ascensão social contadas e
recontadas a partir de tecnologia e estética que a transformam num dos
produtos mais rentáveis da indústria do audiovisual, especificamente, da
televisão brasileira” (WEBER e SOUZA, 2009, p. 142).
Weber e Souza afirmam que a teledramaturgia é um campo de conhecimento que
serve de objeto de pesquisa e estudo às diversas áreas do saber.
No caso da telenovela, pode-se dizer que é um objeto que causa
estranhamento devido a sua extrema simplicidade (aparência) e
complexidade (compreensão). Um objeto paradoxal. Se por um lado se
mostra passível de enquadramentos nas categorias que explicam a literatura,
o cinema, o rádio e o teatro, por outro, estas não são suficientes, pois a
85
telenovela é um produto serializado ficcional híbrido que transmuta a
literatura, o cinema, o rádio e o teatro (WEBER e SOUZA, 2009, p. 142).
Weber e Souza (2009) esclarecem que as telenovelas estão formatadas em uma
estética própria (ou seja, racialmente branqueada, pelo menos no caso brasileiro) e que
seguem a lógica da televisão que embaralha realidade e ficção. As autoras apontam que, para
chamar a atenção do telespectador, além das histórias de amor e de ascensão social, as
telenovelas estão a meio caminho da informação jornalística, da propaganda e de outros
diversos produtos televisivos de entretenimento.
[...] entre a informação jornalística, a propaganda e outros produtos do
entretenimento televisivos, a telenovela fascina na combinação do tempo,
histórias, personagens em imagens que simulam o tempo real num tempo
próprio da televisão e da narrativa ficcional, distante do tempo humano
necessário à imaginação individual estabelecida a partir da leitura de um
livro ou da apreciação de um filme. Na telenovela, o acordo está no próprio
desenrolar e a imaginação pretende ser saciada aos poucos,
fragmentariamente, a partir de uma história que combina interesses mútuos –
dos contadores de estórias, das emissoras, dos telespectadores e de tantos
outros. Tudo isso transforma a telenovela contemporânea brasileira em lugar
de passagem, de significações, emoções, reafirmações e produção de
sentidos (WEBER e SOUZA, 2009, p. 143).
As temáticas da violência infantil, do tráfico humano, da educação, dos menores
desaparecidos e dos transplantes de órgãos “[...] são inseridas sob a marca da responsabilidade
social da empresa (o marketing social que se torna merchandising social)”11 (WEBER e
SOUZA, 2009, p. 144). Há uma maior aceitação do público em relação a estes assuntos mais
comuns da vida real, em que o consenso é maior. No entanto, temas mais complexos, que
causam polêmicas, e que geram menos consenso positivo na sociedade, tais como a
homossexualidade, a religião, o aborto e o incesto, também fazem parte (apesar de causar
controvérsias apaixonadas) do escopo do merchandising social das telenovelas. Esses temas
obedecem aos parâmetros ficcionais e narrativos convencionais estabelecidos pelas novelas.
Diante disso, vale a pena salientar que a questão do racismo não é um merchandising social
tão frequente assim nas telas da televisão. Assim, Weber e Souza (2009) alegam que a
emissora, os autores e os criadores das telenovelas são reconhecidos pela postura
11 Conforme Junqueira “o termo merchandising social é utilizado para definir uma inovação feita pelos autores
nas novelas da última década, na qual problemas sociais são tratados a fundo nas tramas. Uma trama pode ser
inteiramente dedicada a determinado problema ou ainda apresentar depoimentos de pessoas comuns atingidas
por este problema nas novelas. O merchandising social, [por exemplo,] é bastante explorado nos trabalhos de
Manuel Carlos” (JUNQUEIRA, 2009, p. 24).
86
emancipatória e por se envolverem em debates na esfera pública por meio do merchandising
social, indicando pautas de discussões no campo das relações sociais.
[...] Explode Coração [1996, Globo, 21h/ Glória Perez] que passa a abordar
a questão de crianças desaparecidas e suscita ações sociais e a participação
de instituições públicas e privadas nessa cruzada (HAMBURGER, 2005) e
Páginas da Vida (2006, Globo, 21h/ Manoel Carlos) que complexifica a
ordem ficcional ao introduzir a “verdade” documental como complemento,
entrelaçando o tema central do capítulo com o tema central dos depoimentos
de pessoas comuns ao final de cada um deles, num enquadramento cênico e
estético diferenciado (WEBER e SOUZA, 2009, p. 157).
Para Rocha (2009), a realidade ficcional tem uma repercussão no mundo social, como
no debate e na apresentação da questão da homossexualidade veiculada nas telenovelas, que
produzem posicionamentos contra ou a favor, atitudes preconceituosas, manifestação dos
fundamentalismos religiosos e toda uma expressão negativa de parte do público telespectador.
Mas, por outro lado, e talvez isso seja o mais importante, as telenovelas que trataram
dessa questão possibilitaram o debate em torno da sexualidade. E, no limite, as telenovelas
promoveriam o germe da tolerância, da compreensão e do respeito perante a
homossexualidade, pois ainda o senso comum a percebe como se fosse uma anomalia.
Entretanto, na questão racial as telenovelas não foram tão incisivas. O que vemos é
uma televisão branqueada e racista que sonega a presença do negro de maneira mais efetiva.
Os atores brancos das novelas brasileiras compõem mais de oitenta por cento das
personagens.12 Não há um debate aberto, franco e frequente sobre o racismo nas telenovelas
como uma temática social. Quando aparecem são, pelo menos a nosso ver, fragmentados e
estereotipados.
Apesar disso, Junqueira (2009) aponta que
Na década de 2000 podemos perceber uma inovação geral no discurso sobre
as desigualdades. O ponto forte é o enfrentamento das desigualdades de
classe no Brasil, da violência simbólica de uma classe sobre a outra, que
passa a ser retratada nas novelas. A obra de Aguinaldo Silva [autor das
novelas Senhora do Destino de 2004 e Duas Caras de 2007] é o motor desta
tendência. Os negros, as favelas, os pobres e seus problemas passam a
integrar a pauta de discussão, além disso o merchandising social permite
12 Este é um dado que coletamos fazendo uma pesquisa nos sites oficiais das telenovelas brasileiras. Há uma
presença muito forte de atores brancos. Os negros, talvez representem menos de dez por cento do elenco. E isso
em uma sociedade em que de acordo com os dados do IBGE do censo de 2010 pretos e pardos que estão na
categoria de negros, somados, representam mais de 50,7 por cento da população brasileira. Cf. em:
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-aponta-aumento-de-brasileiros-que-se-declaram-pardos-ou
pretos,748620
87
incluir outras exclusões e discriminações como as relativas a doenças e
vícios que afligem a sociedade brasileira (JUNQUEIRA, 2009, p. 25-26).
Conforme a autora, a multiplicidade das tramas secundárias e as modificações
ocorridas no interior das telenovelas, a partir das inovações dos anos 2000, deixam de ter
como ponto central e único a trama que gira em torno do melodrama fundamentado nas
relações românticas das personagens (JUNQUEIRA, 2009). Esse destaque das tramas
secundárias possibilita leituras que se distanciam dos padrões convencionais das novelas,
focadas anteriormente apenas no romantismo e nas relações amorosas com suas frustrações,
sucessos e promessa de felicidade eterna. Os telespectadores a partir dessas transformações
passam a ter um leque mais amplificado em que tem a possibilidade de se identificar com os
personagens. Junqueira, nesse sentido, destaca que “a partir daí os usos das telenovelas se
expandem extraordinariamente, embora permaneçam dentro dos limites do socialmente
aceitável, ou seja, dentro da moral estruturada de cada classe social” (JUNQUEIRA, 2009, p.
26). Isso porque, de acordo com a autora, as classes subalternizadas relacionam a ética à
estética, julgando assim os personagens a partir da natureza moral de suas ações, com base na
dimensão do que se convencionou chamar de certo ou errado nas relações sociais; ou
julgamentos atrelados à uma visão maniqueísta do mundo, como se houvesse realmente uma
luta perene entre o bem e o mal. Já as classes médias apreciam e consideram os personagens
por um prisma inteiramente psicológico, cuja avaliação e justificativa de seus
comportamentos têm como base seus atos (JUNQUEIRA, 2009).
Ao falar das telenovelas, os indivíduos fazem naturalmente a passagem para
experiências pessoais e de pessoas conhecidas, fazem observações,
julgamentos, além de identificações e projeções com os personagens, e
tentam a partir deles conhecer, entender ou apresentar novas formas de
pensar e sentir suas experiências de vida e da sociedade em que vivem
(JUNQUEIRA, 2009, p. 26).
A autora afirma que o valor desses discursos está justamente na possibilidade que eles
abrem para “[...] conhecer os fundamentos afetivos das disposições sociais, já que o tema e a
linguagem principais da comunicação entre telenovelas e telespectadores situam-se no
universo emocional” (JUNQUEIRA, 2009, p. 26). Com isso, é possível estudar e pesquisar as
desigualdades sociais não se limitando aquilo que emerge do público como uma reação a
determinado tema abordado pela telenovela.
88
As questões raciais, portanto, são demandas que podem ser estudadas e analisadas pelo
viés que as telenovelas apresentam (por exemplo, os estereótipos de subalternidade, visível
sempre como coadjuvante, e a pouca presença de personagens negros no enredo das
telenovelas), Apesar da problemática racial não emergir do público como uma necessidade de
se debater seus efeitos sociais de exclusão e sofrimento de suas vítimas, como no caso das
crianças abandonadas ou da pedofilia, em que há um consenso das pessoas de que é algo
muito ruim, e aceitam isso como um debate legítimo que a telenovela propõe, estamos em
sintonia com a autora quando ratifica que: “[...] estes processos dão às telenovelas, sobretudo
as brasileiras um caráter político que não se encontra em nenhum outro tipo de ficção no
mundo” (JUNQUEIRA, 2009, p. 26). Por isso acreditamos que a questão racial pode ser
abordada a partir do estudo e da análise da telenovela brasileira que tem, como a autora
aponta, um forte caráter político. O estudo das questões raciais é também marcado pelo viés
da política (está última no seu sentido mais original, tais como negociação, gerenciamento de
interesses, relações de poder e organização das relações sociais).
2.7 Ideologia do branqueamento: teorias raciais e as telenovelas
A ideologia do branqueamento talvez seja a mais entranhada das ideologias racistas
que já vigorou na sociedade brasileira desde o final do século XIX. Agora atualizada, mais
sutil e perfeitamente acomodada no pensamento e comportamento dos brasileiros. Mas, afinal
de contas, o que é a ideologia do branqueamento? Em que consiste? E como se constituiu?
Em quais matrizes teóricas está fundamentada? Estas são algumas questões que podem
emergir quando se procura compreender a ideologia do branqueamento, principal
característica do racismo à brasileira. Tendo em vista estas questões, nos serviremos delas
para guiar a reflexão acerca dos possíveis efeitos da ideologia do branqueamento que está
amplamente incorporada na sociedade brasileira.
Para compreendermos a ideologia do branqueamento é necessário remontar ao século
XIX, no qual o Brasil acolheu algumas concepções e teorias raciais produzidas na Europa,
que influenciaram principalmente a visão das elites brancas sobre o povo, a cultura e a
percepção racial dos brasileiros. Essas concepções se apoiavam em teorias e correntes
filosóficas, tais como o darwinismo social, o positivismo, as teorias evolucionistas, a eugenia
e a antropologia criminal, amplamente aceitas na Europa nesse momento, e que acabaram
contagiando os brasileiros, sobretudo os intelectuais, os cientistas e os políticos. Esse
conjunto de correntes teóricas marcaram o pensamento social brasileiro de maneira acentuada,
89
especialmente na primeira República, sendo utilizadas como parâmetros para se pensar a
identidade nacional. Tudo indica que essas teorias e correntes filosóficas contribuíram para o
surgimento da teoria do branqueamento no Brasil, no final do século XIX e início do século
XX. Um exemplo interessante da influência exercida por essas teorias é a obra de arte “A
redenção de Can”, de 1895, do artista plástico espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos y
Gómez, que é bastante emblemática ao reproduzir esse ideal (MAIO e SANTOS, 2004). O
quadro traz quatro personagens: uma senhora idosa negra, que parece agradecer a Deus pela
sua filha mulata clara (que já carrega os traços do branqueamento, pelo menos do ponto de
vista ideológico) que tem o filho branco no colo. E, mais ao fundo, um homem branco,
provavelmente representando um imigrante europeu (MAIO e SANTOS, 2004). Maio e
Santos apontam que em 1911, o quadro foi usado pelo médico e antropólogo João Batista de
Lacerda para ilustrar suas memórias mestiças do Brasil. A referida obra foi apresentada pelo
médico antropólogo no I Congresso Mundial das Raças. Ele representava o governo brasileiro
e sua “[...] memória defendia que o Brasil estava no caminho do ‘branqueamento’: por meio
da mestiçagem, seria possível resolver o problema racial brasileiro” (MAIO e SANTOS,
2004, p. 62). No prognóstico de Lacerda, em 2010, aproximadamente, não haveria mais
negros no Brasil (MAIO e SANTOS, 2004).
O sociólogo brasileiro Carlos Hasenbalg defende que mesmo sendo difícil determinar
se o contínuo de cor no Brasil teve como consequência as políticas dos colonizadores
portugueses ou ainda um mecanismo social que evoluiu de modo não intencional, a partir dos
efeitos e do limites da colonização, o ideal de branqueamento e a democracia racial brasileira,
“[...] são muito claramente os produtos intelectuais das elites dominantes brancas”
(HASENBALG, 1979, p. 238).
O denominado contínuo de cor, conforme Hasenbalg (1979), seria uma tênue divisão
no aspecto racial entre brancos e negros. Mas foi justamente isso que fez com que ocorresse
uma fragmentação da identidade negra. O autor argumenta que a diminuição da solidariedade
entre os não-brancos (HASENBALG, 1979), a pouca consideração de cada indivíduo em
relação a sua negritude,
[...] e a cooptação social de lideranças potenciais receberam um maior
reforço quando o ideal de branqueamento tornou-se parte do projeto das
elites dominantes para transcender o subdesenvolvimento brasileiro
(HASENBALG, 1979, p. 238).
90
As elites brancas acreditavam que um dos problemas que impediam o Brasil avançar
estava na mestiçagem e na herança africana. Mesmo no pensamento abolicionista, movimento
político e social que lutava contra o regime de escravidão e buscava a liberdade das pessoas
negras escravizadas, o branqueamento já era um ideal almejado (HASENBALG, 1979). No
período compreendido entre o final do século XIX e início do século XX, as elites brancas
fomentaram racionalmente, por meio de estudos teóricos e suposições científicas, o desejo de
transformar o Brasil negro e mestiço em uma nação racialmente mais clara, sem a presença do
fenótipo negro, considerado uma raça inferior.
Assim, entre essas teorias estava, por exemplo, a eugenia apoiada em pressupostos
científicos. Esta teoria diz respeito ao “aperfeiçoamento” de determinada espécies por meio da
seleção artificial, foi criada pelo antropólogo e matemático inglês Francis Galton no século
XIX.
[...] um conjunto de ideias e práticas relativas a um “melhoramento da raça
humana” ou, como foi definida por um de seus seguidores, ao
“aprimoramento da raça humana” pela seleção dos genitores tendo como
base o estudo da hereditariedade (MACIEL, 1999, p. 121).
As concepções desenvolvidas pela teoria eugênica obtiveram grande sucesso e
repercussão mesmo depois de terem sido questionadas como ciência. Por muito tempo, elas
foram usadas como justificativas nas práticas racistas e discriminatórias (MACIEL, 1999).
[...] ganhou vulto nas primeiras décadas do século XX, pois seus
pressupostos forneciam uma explicação para a situação do País (que seria de
um “atraso”) e, ao mesmo tempo, indicava o caminho para a superação dessa
situação (MACIEL, 1999, p. 121).
A hipótese do pensamento eugênico era que a hereditariedade se constituiria em uma
alegação para justificar e determinar a vida e o destino dos indivíduos.
[...] [Ou] seja, as condições de [...] vida [dos indivíduos] já estariam dadas de
antemão [sendo que o futuro já estaria traçado e estabelecido desde o
nascimento], segundo a classificação de determinados critérios que o
colocavam numa categoria “inferior” ou “superior” (MACIEL, 1999, p.
121).
Fundamentado nessas noções, a eugenia defendia que as condições de vida dos
indivíduos, tanto cultural quanto social, estavam relacionadas diretamente as condições
biológicas de cada um, dentro de um quadro de hereditariedade. De acordo com Maciel
91
(1999), a “melhoria da raça” era o objetivo primordial do movimento eugenista, pois seus
membros acreditavam que na sociedade haveriam pessoas com características “indesejáveis”,
por exemplo, as com propensão a atos criminosos e com doenças mentais, que deveriam
deixar de existir nas gerações futuras por meio de determinadas práticas de intervenção da
eugenia. A eugenia, no entanto, visava algo mais amplo, que, na realidade, parece ser o seu
objetivo maior: melhorar os aspectos raciais das sociedades. Pelo que pode ser depreendido
do pensamento eugênico, e podemos inferir isso sem muita hesitação, tanto os problemas
mentais, quanto os impulsos criminosos seriam resultados dos cruzamentos raciais
inapropriados. As hierarquias sociais seriam organizadas de acordo com as hierarquias raciais.
Esta organização de antemão estabelecia as características raciais das pessoas. Se a pessoa
fosse branca, tenderia a se comportar de maneira mais racional e equilibrada. Se a pessoa
fosse negra, teria atitude menos racional, mais emotividade no comportamento e nas relações
sociais.
Maciel faz um alerta: embora o ideário eugênico esteja em desuso, deve-se ter cuidado
em afirmar que estas concepções despareceram por completo do mundo contemporâneo
(MACIEL, 1999). Há aqueles que a defendem de diversas maneiras, por exemplo, os
geneticistas modernos e os racistas radicais neonazistas, ainda que, em muitos casos, não seja
com os mesmos pressupostos do passado. A autora expõe que isso é um dos aspectos dos
resquícios da eugenia, que também contaminou o
[...] senso comum e [que implicou em] comportamentos cotidianos
discriminatórios, o que envolve a problemática da apropriação e utilização
do saber científico (ou tido como científico) pela sociedade (MACIEL, 1999,
p. 122).
Então, desse modo, a eugenia serviria de base teórica para a ideologia do
branqueamento? Parece-nos que sim. Maciel afirma (1999), em conformidade com Lilia
Schwarcz, “[...] a eugenia foi introduzida no Brasil [...] em 1914, na Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, com a tese de Alexandre Tepedino” (MACIEL, 1999, p. 129). Mas, foi nos
1920 que a proposta da eugenia conquistou um público diverso, espraiando-se para além do
meio médico, fazendo discípulos “[...] também entre educadores, jornalistas, escritores e
outros” (MACIEL, 1999, p. 129). É curioso notar que em 1920, como enfatiza Maciel
(1999), enquanto os argumentos justificadores da eugenia na Europa haviam sido
completamente desqualificados e destruídos, no Brasil, ela reaparecia “[...] de forma ainda
mais radical, como programa político-institucional” (MACIEL, 1999, p. 129).
92
Um dos principais articulista, propagandista e defensor da eugenia no Brasil foi o
médico Renato Kehl, que seria também o “[...] fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo
(1918), do Boletim de Eugenia (1929) e da Comissão Brasileira de Eugenia (1932) [...]”
(MACIEL, 1999, p. 129).
Na afirmação de Robert Wegner (2011), essas instituições que Renato
Kehl fundou “[...] tiveram um papel central na promoção das idéias
(sic) eugênicas no país” (WEGNER, 2011, p. 2). A fonte de inspiração
para Renato kehl, como parece sugeri o autor, para a divulgação do
programa eugênico, de modo geral, estava alicerçado sob a “[...]
influência das discussões que os eugenistas norte-americanos, alemães
e ingleses vinham desenvolvendo desde o início do século XX”
(WEGNER, 2011, p. 2).
Assim, o médico e ativista político da eugenia no Brasil, Renato Kehl buscou na
Europa as bases teóricas e fundamentação empírica para alegar e defender a eugenia como
“remédio” para curar a nação dos problemas da hereditariedade, da degeneração moral e
intelectual (MACIEL, 1999; WEGNER, 2011). A partir da propagação das ideias desses
intelectuais e cientistas que a teoria do branqueamento ganhou mais força e adeptos,
convertendo-se em ideologia amplamente aceita, não apenas por alguns setores da
intelectualidade, mas também por grande parte da população brasileira.
Para explicar essa relativa aceitação popular e de parte da intelectualidade brasileira
em relação à ideologia do branqueamento, Andreas Hofbauer (2003) revela que essa ideologia
foi constituída historicamente e em contextos econômicos e sociais específicos. Para elucidar
isso o autor enuncia que:
O ideário do “branqueamento” – que me parece uma característica
importantíssima do “racismo brasileiro” – tem “atuado” como “suporte
ideológico” de relações de poder de tipo patrimonial que aqui se
estabeleceram e se firmaram desde a Colônia (HOFBAUER, 2003, p. 68).
Hofbauer (2003) argumenta que já no final do século XIX, o ideário do
branqueamento converteu-se em um pretexto discursivo de parte da elite brasileira formada
por políticos e cientistas, que almejavam por mudanças econômicas, mas que não queriam
alterar as velhas estruturas de poder do Brasil, baseada no patrimonialismo colonial. Esse
ideário, segundo o autor, tem como fonte discursiva as análises do tipo cultural-antropológica
e sociológica, que surgiu em um período de incertezas e inseguranças, ganhando, assim, mais
força, justamente em um contexto histórico e político em que a sociedade brasileira deixava
93
de ser escravista para adentrar em outro modelo econômico, o capitalista (HOFBAUER,
2003). De acordo com as análises cultural-antropológica e sociológica, as teorias raciais tidas
como clássicas, e que tinham muita influência na Europa e nos Estados Unidos do século
XIX, e que recriminavam a miscigenação, não ajudava na “[...] viabilidade do projeto de
modernização do país” (HOFBAUER, 2003, p. 68), pois, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos havia uma destacada segregação racial. No caso do Brasil do final do século XIX e
XX, essa segregação racial nos moldes norte-americano não seria, provavelmente, possível de
ser implantada exatamente porque era altamente miscigenada a sociedade. É interessante
notar, tendo como perspectiva o pensamento do autor, que as análises cultural-antropológica e
sociológica concebiam que “[...] a ideia do “branqueamento” serviu como uma saída
ideológica para este momento crítico de transformações na política e na economia”
(HOFBAUER, 2003, p. 68), sendo útil também para reforçar o discurso das elites políticas e
econômicas brasileiras para promover a campanha em torno da imigração da mão de obra
europeia. Isso acometeria os negros que não seriam integrados (marginalizando-os) na nova
sociedade de classe que se desenvolvia nos principais centros urbanos do Brasil
(HOFBAUER, 2003).
Para Hofbauer (2003), nas análises cultural-antropológica e sociológica, a ideologia
(ou teoria) do branqueamento seria genuinamente brasileira. Isso porque o que ocorreu com as
teorias raciais europeias foi uma adequação ao caso específico do Brasil referente à
problemática racial. Diante disso, Guimarães (1995) contribui, ao complementar as
argumentações de Hofbauer (2003), ratificando que a particularidade do racismo no Brasil
reside na importação de teorias racistas da Europa. Mas essas teorias tiveram dois princípios
importantes excluídos: o caráter inato das diferenças raciais, ou seja, a hierarquia racial, em
que o branco seria o superior e os outros grupos humanos, especialmente o negro, estariam em
um patamar de inferioridade, integrando uma raça inferior. O outro princípio excluído seria a
concepção de que a mistura poderia levar a degenerescência racial. Guimarães propõe que
“[...] [o] núcleo desse racialismo era a ideia de que o sangue branco purificava, diluía e
exterminava o negro, abrindo assim a possibilidade para que os mestiços se elevassem ao
estágio civilizado” (GUIMARÃES, 1995, p. 37). No racismo brasileiro, a segregação não era
algo pensado como uma solução, como ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul.
Parece-nos que isso ficou como uma marca indelével na consciência racial da população
brasileira.
94
A ideia de “embranquecimento” foi elaborada por um orgulho nacional
ferido, assaltado por dúvidas e desconfianças a respeito do seu gênio
industrial, econômico e civilizatório. Foi, antes de tudo, uma maneira de
racionalizar os sentimentos de inferioridade racial e cultural instalados pelo
racismo científico e pelo determinismo geográfico do século XIX
(GUIMARÃES, 1995, p. 37-38).
Hofbauer (2003) parece não concordar inteiramente com Guimarães e com Schwarcz,
quando afirmam que a ideologia do branqueamento seria uma consequência do momento
histórico daquele período.
De acordo com as concepções de Hofbauer (2003), a compreensão do racismo
brasileiro está relacionada analiticamente à interpretação que se faz em torno da ideia de raça
e de negro que se desenvolveu no Brasil. Diante das análises vigentes, como no raciocínio de
Guimarães e Schwarcz, em que procuram demonstrar como a ideologia do branqueamento
surgiu tendo como principal causa o fim da escravidão e a consequente miscigenação, em que
o branqueamento e a escravidão se excluem. Hofbauer (2003) declara “[...] que ‘escravidão’ e
‘'branqueamento’ podem ser melhor entendidos como fenômenos que se complementavam
(HOFBAUER, 2003, p. 69). Nesse sentido, o autor aponta que a ideia de negro e de branco
localizam-se anteriormente ao discurso racializado que se estabeleceu na modernidade. Pelo
que Hofbauer enfatiza, as duas cores de pele, negra e branca, não estavam relacionadas
diretamente a um mundo natural, que poderia ser facilmente explorado e observado
objetivamente. Mas estavam, historicamente, associadas aos ideais de moralidade e
religiosidade.
Desde os primórdios das línguas indo-europeias, o branco representava o
bem, o bonito, a inocência, o puro, o divino, enquanto o negro era associado
ao moralmente condenável, ao mal, às trevas, ao diabólico, à culpa. Na Idade
Média, o grande paradigma de inclusão e exclusão era a filiação religiosa, e
não ainda a cor de pele (HOFBAUER, 2003, p. 70).
É importante pontuar que estas noções assinaladas pelo autor, ainda que falsas, estão
vigentes, sobretudo no sistema racial brasileiro. Talvez isso justifique, pelo menos em parte, o
porquê de os negros serem minorias nas telenovelas das principais emissoras nacionais.
As concepções morais e religiosas, e toda a simbologia atribuída ao branco como puro
e divino e o negro como impuro, pagão e pecador, auxiliava na justificação das investidas e
dominações coloniais. Além disso, para reforçar o argumento da dominação, como aponta o
autor, os medievais concebiam como negros todos os grupos populacionais que estavam
distantes do continente europeu.
95
Hofbauer (2003) destaca também, para que se possa compreender melhor a história do
racismo (e ele enfatiza que isso é de suma importância), um trecho do Velho Testamento,
contido na Gênese: IX, em que Noé lança uma maldição sobre seu filho, e nesse ponto
aparece pela primeira vez a palavra “escravo”. Nesse trecho das Sagradas Escrituras, Noé
condenou seu neto Canaã por causa do comportamento imoral de seu filho, Ham (ou Cam).
Pinar (2008) explica o que houve para que Noé amaldiçoasse o filho de Cam.
Noé (do famoso dilúvio) planta um vinhedo, produz vinho, embriaga-se e
desmaia nu, na sua tenda. Seu filho Cam – Noé tem dois outros filhos, Sem e
Jafé – entra na tenda e, mais tarde, a deixa. Depois de passado algum tempo,
Noé aparece: “E Noé acordou do seu vinho, e percebeu o que seu filho mais
novo tinha feito a ele” (Gênesis 9: 24). Noé não maldiz Cam, mas Canaã,
filho de Cam: “um servo de servos fará dele um seu irmão” (Gênesis 9: 24)
(PINAR, 2008, p. 36).
Pinar (2008) observa ainda que não há menção ao termo raça na passagem desse texto.
Não há nenhuma referência explícita à “raça” nessa passagem. Embora se
tenha aceitado que Cam (equivocadamente) tenha a conotação de “escuro”
no hebreu antigo, parece que os donos de escravos e segregacionistas
produziram completamente a associação entre raça e a fúria de Noé (PINAR,
2008, p. 36).
Hofbauer analisa que foram os textos dos exegetas israelenses que, presumivelmente
entre os séculos V e VI, introduziram inicialmente uma relação mais direta entre a maldição
de Ham (Cam) e a pigmentação da pele escura. Os árabes muçulmanos logo acolheram esta
interpretação do Velho Testamento, com a intenção de justificar a dominação e a escravização
dos povos que ficavam ao sul do Saara (HOFBAUER, 2003). Mas, de acordo com o autor,
nos dogmas do islamismo todo aquele que se convertia aos seus preceitos era considerado um
fiel. Assim, não poderia ser escravizado, pois a doutrina islâmica proíbe rigorosamente fazer
escravo um irmão de fé, mesmo que esta conversão tenha sido recente. Essa concepção estaria
em consonância com os textos sagrados. “Posteriormente, este discurso ideológico seria
também adotado pelos cristãos ibéricos e ganharia, no contexto do tráfico transatlântico, uma
nova relevância política” (HOFBAUER, 2003, p. 71).
Um ponto significante destacado por Hofbauer é que a construção ideológica da
escravização pendia a relacionar o “[...] “ser escravo” com a ‘cor negra’” (HOFBAUER,
2003, p. 71). No entanto, essa relação não era atribuída para referenciar somente os povos da
África. Quando os colonizadores europeus aportaram no Novo Mundo, dominando os povos
96
indígenas e os escravizando designava-os de negros. Não eram como, a princípio, se imagina
no senso comum, qualificados como índios ou gentios.
Conforme a análise de Hofbauer (2003), na visão universal do cristianismo, a
humanidade teria sua gênese a partir do mítico casal Adão e Eva, um casal, sem dúvida
alguma, branco. A humanidade, portanto, em sua origem, seria branca. Toda cor de pele que
fenotipicamente desviava desse padrão seria explicada pelos cristãos como uma falha moral
dos povos com pele mais escura.
No século VXII, e daí por diante, a variação da cor da pele começou a ser explicada
em decorrência da influência do clima. Nos sermões proferidos pelo padre Antônio Vieira, a
justificativa para a cor da pele negra era atribuída aos descendentes de Cam que mudaram
para a Etiópia.
Mas, ao mesmo tempo, o padre jesuíta ligava, recorrentemente, a cor negra
com a ideia de uma vida cheia de pecado que, segundo ele, predominava em
África: uma vida na escuridão, sem presença de Deus (cf. VIEIRA, 1940, p.
26-109 apud HOFBAUER, 2003, p. 72).
A vida escrava era justificada pelos cristãos da época como uma chance e um caminho
para se chegar ao reino de Deus, sendo que no começo do empreendimento colonial no
mundo árabe muçulmano da Idade Média, e na península Ibérica, a conversão à fé que os
cristãos denominavam de verdadeira eram no fundo um processo de clareamento e de
embranquecimento dos colonizados a nova cultura dominante (HOFBAUER, 2003)
Nos parece que a argumentação de Hofbauer (2003) procura destacar como o racismo
e o branqueamento nasceram e se desenvolveram alicerçados pela mitologia cristã que
dominou por séculos as concepções de mundo, sendo que essa visão de mundo se impregnou
na ciência da Idade Moderna.
[...] a força simbólica das cores “negro” e “branco” – que, durante muito
tempo, foram associadas a valores religiosos - morais – seria agora projetada
em novas visões a respeito do “mundo” e do “ser humano” (HOFBAUER,
2003, p.73-74).
A ciência do século XVIII pensava o homem como uma das partes da physis
(natureza). Não o dissociava dessa natureza, que para ser compreendida, necessitava de
critérios e métodos objetivos e que a metafísica religiosa não cooperasse tanto. “Mesmo
assim, explicações de cunho mais religioso - moral e outras já mais ‘naturalizadas’ a respeito
97
das diferenças humanas deviam – ainda por muito tempo – conviver lado a lado [...]”
(HOFBAUER, 2003, p. 74), e também sobrepondo-se uma a outra.
Tendo em vista essa perspectiva, as características e a diversidade dos fenótipos
humanos seriam explicadas, a partir desse período, como uma atribuição de forças externas,
por exemplo, as condições de vida e as determinações climáticas e geográficas. Para muitos
autores dessa época, essas determinações ainda eram a expressão da vontade Divina
(HOFBAUER, 2003).
[cientistas] importantes, como Georges Louis Leclerc de Buffon, descreviam
a cor de pele escura como uma decorrência do ambiente e, portanto, como
um fenômeno “acidental” e perfeitamente “reversível”. Assim, explica-se
também que vários pensadores da virada do século XVIII para o XIX
contavam ainda com a possibilidade de uma mudança de cor de pele dentro
de uma única “raça”, caso um determinado grupo migrasse para uma região
mais quente ou mais fria. Buffon chegou a propor que se levasse um grupo
de africanos (do Senegal) para Dinamarca, a fim de estudar quantas gerações
demoraria até que a cor de pele deste grupo fosse totalmente transformada
em branco. Ele estipulou um período de 8 a 12 gerações, tempo que,
segundo ele, deveria ser o suficiente para “branquear uma raça” [...]
(HOFBAUER, 2003, p. 74).
Essa crença na transformação do negro em branco, ou de branco em negro, era
alimentada por muitos pensadores europeus entre os séculos XVIII e XIX, que vaticinavam
essa mudança em um prazo ainda mais curto: quatro gerações seriam suficientes para tal
transformação. Isso porque a base para essa transformação seria os “[...] casamentos
controlados entre representantes da ‘raça branca’ com representantes da ‘raça negra’”
(HOFBAUER, 2003, p. 74 [grifos do autor]).
Nesse sentido, gostaríamos de destacar que a recepção dessas teorias raciais europeias
no Brasil do final do século XIX e início do século XX foram vistas como verdades que
apontavam para a solução da desigualdade racial existente. E a transformação de negros em
brancos foi uma teoria (ou ideologia) aceita com grande entusiasmo por alguns intelectuais
desse momento histórico. A exemplo de Renato Kehl (WEGNER, 2011), João Baptista de
Lacerda (1846-1915) foi outro grande divulgador e entusiasta de teorias raciais e,
consequentemente, do branqueamento no Brasil. Médico e intelectual de renome, foi
escolhido pelo governo brasileiro, para representar o país no Congresso Universal das Raças,
na Inglaterra, na cidade de Londres, de 26 a 29 de julho de 1911 (SCHWARCZ, 2011).
98
Lilia Moritz Schwarcz (2011nos esclarece que, além de todas as palestras realizadas
no evento abordando aspectos peculiares, como os culturais e sociais, dos países convidados a
participar desse Congresso Universal das Raças, haviam temas complexos e intensos.
[...] “O problema da raça negra nos EUA”, “A posição mundial do negro e
do negroide”, “O destino da raça judaica”, “A consciência moderna e os
povos dependentes” e “As raças sob o ponto de vista sociológico”
(SCHWARCZ, 2011, p. 226).
Conforme a autora, mesmo sendo realizado no início do século XX, esse congresso
das raças estava profundamente tomado pelas concepções raciais dos séculos anteriores. Os
modelos deterministas e os fenômenos ontológicos e finais da compreensão da ideia de raça
que orientavam os discursos e as visões de cientistas e intelectuais no passado estavam ainda
muito presentes nas falas dos participantes desse evento (SCHWARCZ, 2011).
Em meio às visões deterministas da ideia de raça, o Brasil figurava-se no congresso
como algo particular. Isso não demonstra, como aponta Schwarcz (2011), que a situação do
país era vista de forma positiva.
Por um lado, a participação brasileira não deve ser entendida de maneira
desavisada. Naquele momento o país era conhecido como um ‘laboratório
racial’, sobretudo pelos viajantes europeus e norte-americanos que por aqui
estiveram em busca do espetáculo da natureza e dos homens. O Brasil servia
como um exemplo do cruzamento extremado de raças, algo que, no período,
era visto como extremamente negativo: representávamos um exemplo de
degeneração, obtida pelo efeito perverso da mistura de raças (SCHWARCZ,
2011, p. 226).
A concepção científica de João Baptista de Lacerda se colocava de maneira menos
dramática e determinista, sobretudo em relação aos cruzamentos raciais extremados que
ocorriam no Brasil. Isso não quer dizer que ele era menos racista. Mas tinha uma importância
grande no cenário científico brasileiro da época, o que possibilitou que fosse ouvido com mais
atenção no congresso de 1911, pois, além de médico, também era membro correspondente de
diversas sociedades científicas na Europa e nos Estado Unidos, “[...] professor honorário da
Faculdade de Medicina da Universidade do Chile e, sobretudo, [...] diretor do Museu
Nacional do Rio de Janeiro” (SCHWARCZ, 2011, p. 226). Lacerda afirmava que o Brasil
acomodava grupos que estavam no início do processo civilizador. Essa tese fundamentava-se
através das diversas pesquisas que realizou com o grupo indígena Botocudo. O resultado foi
99
publicado nos arquivos do Museu Nacional, e confirmavam “[...] a inferioridade do grupo,
que [estaria] na ‘infância da humanidade’”. (SCHWARCZ, 2011, p. 227).
Com esse currículo e autoridade científica João Baptista de Lacerda, provavelmente,
teria convencido os participantes do Congresso Universal das Raças (e também no Brasil) ao
argumentar que a mestiçagem brasileira era transitória e benéfica, sendo que não deixaria
qualquer tipo de marca ou rastros (SCHWARCZ, 2011).
Mais ainda: era preciso demonstrar como nos portávamos de maneira
alternativa, até mesmo em relação aos EUA. Se por lá grassara um sistema
escravocrata violento, no Brasil o processo teria sido marcadamente pacífico.
Além do mais, se na América do Norte vigia uma ampla gama de
preconceitos, por aqui a característica mais marcante seria a ausência de
padrões de exclusão. Como se vê, bem no começo do século [XX], João
Baptista de Lacerda defendia uma espécie de melting pot, se não presente, ao
menos futuro e assegurava ao Brasil uma identidade positiva, obtida pela
contraposição que estabeleceu não só com os outros países da América do
Sul, mas também com a América do Norte (SCHWARCZ, 2011, p. 227
[grifos da autora]).
Assim, João Baptista de Lacerda reforçava o valor positivo da mestiçagem destacando
que ela era uma saída para o progresso do Brasil. A miscigenação e o cruzamento racial de
problema passavam a ser solução (SCHWARCZ, 2011). Lacerda defendia a mestiçagem
como um fator de redenção que teria êxito a partir de determinadas políticas públicas que
incentivassem a imigração europeia. Essas políticas estavam sintonizadas com algumas
convicções da ciência da época. Por exemplo, a seleção dos fenótipos brancos, como sendo os
mais fortes para mudar o panorama racial brasileiro. Conforme Schwarcz (2011), a tese de
Lacerda realmente era abusada. Ele pressagiava que dentro de um século, mais ou menos em
três gerações, seriamos uma nação de brancos caucasianos. “Lacerda havia chegado a essa
conclusão a partir dos dados levantados por Edgar Roquette - Pinto (1884-1954), o qual
trabalhara, por sua vez, com estatísticas de 1872 e 1890” (SCHWARCZ, 2011, p. 228).
Roquette-Pinto, na época um jovem antropólogo, e mais tarde também considerado o pai da
radiodifusão no Brasil, tinha constatado que a população negra e indígena estava lentamente
em declínio.
100
João Baptista de Lacerda afiançava essas ideias, anunciando em tom panfletário na sua
comunicação13 no Congresso Universal das Raças em Londres, que o Brasil ofereceria um
exemplo ao mundo.
[...] mostraríamos uma redenção e ‘redução’ étnica, bem no alvorar do novo
século. A raça negra desapareceria entre os brasileiros e, junto com o
incentivo à imigração europeia, a nação seria definitiva e finalmente branca.
Com essa etapa alcançada, o país estaria pronto e preparado para
transformar-se num dos “principais centros civilizados do mundo”, na
mesma condição que os EUA e os “povos Anglo-Saxões do Velho
Continente”. Enfim, uma nova Europa! (SCHWARCZ, 2011, p. 231).
Empiricamente essa “redenção étnica”, e o consequente branqueamento da população
anunciada e desejada, não apenas por Lacerda, mas também por grande parte das elites
brasileiras, não se efetivaram. As relações étnico-raciais são mais complexas e mais ricas que
os vislumbres prognósticos dos cientistas do início do século XX.
Sobre a temática do branqueamento dentro das discussões que tratam do racismo à
brasileira, seria bom pontuarmos, consoante as considerações do historiador e professor da
Universidade Federal de Sergipe, Petrônio José Domingues (2002; 2003), o qual se alinha aos
argumentos de Andreas Hofbauer, que o branqueamento é uma categoria analítica, que vem
sendo utilizada pelo menos em dois sentidos.
O primeiro, de acordo com Domingues (2002; 2003), “[...] é visto como a
interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu
ethos de matriz africana” (DOMINGUES, 2002, p. 565-566). O outro sentido indicado pelo
autor diz respeito ao processo de embranquecimento da população brasileira que foi
registrado pelos censos oficiais e pelas previsões estatísticas realizadas no final do século XIX
e no início do século XX (DOMINGUES, 2002; 2003). Apesar da importância da
diferenciação desses dois sentidos do branqueamento para se compreender melhor a
problemática racial do Brasil, não queremos em nosso trabalho aprofundá-lo demasiadamente.
No entanto, a seguir, vamos, de maneira sumária, discorrer sobre esses dois sentidos do
branqueamento que Domingues (2002) destaca.
2.8 Branqueamento: entre os dados oficiais e a influência ideológica-moral
13 Cf. o discurso de João Baptista de Lacerda para o Congresso Universal das Raças no texto de Lilia M.
Schwarcz (2011), “Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco” onde ela
apresenta na integra a comunicação do autor.
101
Domingues (2002; 2003) se alinha as concepções de Hofbauer (2003) e Schwarcz
(2011) ao considerar que no pós-abolição (a partir dos anos finais do século XIX) o fenômeno
do branqueamento era percebido como algo irreversível. “Pelas estimativas mais “confiáveis”,
o tempo necessário para a extinção do negro em terra brasilis oscilava entre 50 a 200 anos”
(DOMINGUES, 2002, p. 566). Essas estimativas eram endossadas e difundidas pelos
documentos oficiais do governo, como no caso do censo de 1920, em que o sociólogo e jurista
fluminense Oliveira Viana, por meio do texto de apresentação do referido censo, realçava
esses dados declarando-os como verdade irrefutável. Segundo Domingues (2002; 2003), esse
texto era a prova conclusiva de que o governo brasileiro era avalista do branqueamento14.
Assim o ideal de branqueamento da população paulista da virada do século XIX para o XX
era correspondido, pelo menos de forma aparente, pelos dados estatísticos.
Pelo censo de 1872, os negros (pretos e mulatos) correspondiam a 37,2% da
população da cidade de São Paulo. Já em 1893, o percentual era de 11,1% e,
pelas estimativas de 1934, esse percentual declinava para 8,5%. Portanto, o
desaparecimento do negro, ou branqueamento da população, era um dos
fenômenos estatísticos mais evidentes do quadro racial de São Paulo
(DOMINGUES, 2002, p. 566).
Certamente que esses dados entusiasmavam os racistas, não apenas de São Paulo, mas
também os do Brasil como um todo na primeira metade do século XX, que acreditavam no
branqueamento como solução para o problema negro do país. Esses dados estatísticos
parecem que influenciaram também os estrangeiros que viajavam por terras brasileiras. É o
caso, como explica Domingues (2002), do viajante inglês Maurício Lamberg, que relatou em
seu diário que o negro no Brasil estava progressivamente desaparecendo. Já outro viajante, o
francês Pierre Denis, que esteve em São Paulo no início do século XX, confirmava a tese do
branqueamento, ao constatar empiricamente que “apesar de não haver estatísticas, parece
certo que a população [negra] está hoje em plena regressão no estado de São Paulo. O fim da
escravatura levou à eliminação rápida do operário negro” (DENIS apud DOMINGUES, 2002,
p. 567). Domingues (2003) aponta que outro francês Louis Couty (1854-1884), médico e
professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, fez grande publicidade das ideias racistas.
Conforme Domingues (2003), Louis Couty “[demonstrando] falta de familiaridade com a
cultura de herança africana, [...] foi um dos mais importantes propagadores do racismo
científico no Brasil” (DOMINGUES, 2003, p. 49). Os relatos e a percepção desses
14 Para aprofundar esta questão, em conformidade com Domingues (2002), sugerimos o texto de Carlos Vainer
“Estado e Raça no Brasil. Notas Exploratórias” (1990), que discute de maneira mais detalhada esta questão da
conivência do governo brasileiro do início do século XX com as ideologias racistas.
102
estrangeiros que estiveram no país, bem como os que residiam por aqui, como no caso de
Louis Couty, estavam impregnados pela influência da imprensa local e pelo contexto racial do
Brasil daquele momento. Apesar da sua grande presença na sociedade brasileira, o negro era
(e é ainda) descaradamente invisibilizado e sonegado pelos mecanismos raciais de
discriminação, dos quais a ideologia do branqueamento seria o mais perverso.
O fato é que havia nesse Brasil dos anos 1900 (e isso não é muito diferente nos dias de
hoje) toda uma estrutura racista e ideológica que realizava a manutenção dos mecanismos de
discriminação. Por exemplo, na área da saúde havia a crença de que o negro se dirigia para o
seu desaparecimento completo. De acordo com Domingues (2002), Alfredo Ellis Júnior,
político, formado em direito, professor de sociologia e história prognosticava em seu livro
“Populações Paulistas” que “[...] o negro estava caminhando à extinção, num prazo de 40 ou
no máximo 50 anos” (DOMINGUES, 2002, p. 569). A justificativa para tal extinção dos
negros, segundo Alfredo Ellis Júnior, era de natureza fisiológica decorrente da deficiência
étnica dos negros. Assim, o professor paulista apontava como causa dessa suposta extinção
negra a acentuada diminuição da natalidade, o aumento da mortalidade, o clima e a altitude,
principalmente do estado de São Paulo. Sem contar que doenças como a tuberculose e a sífilis
eram, conforme Ellis Júnior, muito presente no meio das pessoas negras, cuja resistência e a
taxa de sobrevivência eram menores que nas pessoas brancas (DOMINGUES, 2002).
Alfredo Ellis se equivocou em suas análises, por que as razões do saldo
vegetativo negativo do negro não era sua pretensa inferioridade biológica,
mas uma decorrência dos problemas sociais que assolavam este povo, dos
quais os principais eram: as condições desumanas de moradia, as doenças, o
desemprego, o alcoolismo, o abandono do menor, dos velhos, a mendicância,
subnutrição, criminalidade e a mortalidade infantil (DOMINGUES, 2002, p.
572-573).
Esses dados estatísticos oficiais, que Ellis Júnior usava para avaliar a situação do
negro no Brasil e em São Paulo, mesmo que equivocados, nutriam o imaginário social ao
justificar o desaparecimento do negro e o consequente branqueamento do país. No entanto, a
força política e a persistente publicidade desses dados oficiais fizeram com que o
branqueamento de ordem ideológica-moral inserisse na mentalidade social brasileira a suposta
inferioridade do negro. Infelizmente essa ordem parece ter atingido alguns negros
profundamente, sobretudo os mais elitizados. Entre estes haviam intelectuais e jornalistas que
escreviam mais diretamente para o público negro. Entretanto, de antemão, é importante
enfatizar que, na realidade, essas pessoas foram cooptadas pelo sistema racista daquele
103
momento, pois, “todos” pareciam estar convencidos da inferioridade negra e da supremacia
branca, que servia de norma e modelo a ser seguido. Diante dessas afirmações, Domingues
(2002) compreende que “[a] “raça branca” precisa que as demais raças e grupos étnicos,
inclusive os negros, assimilem seus valores e passem a se comportar, pensar, sentir e agir
conforme sua ideologia racial” (DOMINGUES, 2002, p. 573). Consideramos que hoje essa
estrutura de pensamento está também nas telenovelas, em que o ator negro e as personagens
que representa são tratados como se fizessem parte de um país onde haveria apenas pessoas de
pigmentação branca, sendo os negros percebidos com inferioridade e uma raça intrusa “no
mundo branco”. Em decorrência deste entendimento, nos surge uma questão: essa estrutura de
pensamento racial, que supomos refletir também nas telenovelas, talvez possa acabar
convencendo a população negra de que ela está realmente em lugar errado, sustentando por
meio de um discurso moral e estético a ideia de subalternidade em relação aos brancos? Ao
pensarmos uma resposta para essa questão, Domingues (2002; 2003) nos auxilia a esclarecer
que no início do século XX a ideologia moral pregada contra os negros estava impregnada na
imprensa negra, como já destacamos em linha anteriores. De modo que antigos jornais da
imprensa negra do início do século passado, como “O Alfinete”15, atacava a postura dos
negros que frequentavam os bailes públicos, denominados de “freges”, em que se dançavam o
maxixe16 (DOMINGUES, 2002). O autor revela que a imprensa negra investia contra esses
bailes justamente por pressupor que lá estava reunida “[...] a ‘escoria’ da sociedade: negros e
brancos das camadas populares, vadios, gatunos, prostitutas, cáftens” (DOMINGUES, 2003,
p. 283). Além disso, nesses lugares “[a] bebida, a licenciosidade, o despudor, a descontração e
libertinagem reinavam. Daí a veemência com que estes bailes eram reprovados”
(DOMINGUES, 2002, p. 574). O autor destaca ainda que
15 Um importante jornal de São Paulo que “[...] foi um periódico dedicado a noticiar os ideais da comunidade negra por meio de textos opinativos sobre a defesa de padrões a serem seguidos pelos leitores. Além dessa proposta, era ainda característica dessa folha a publicação de eventos sociais e, sobretudo, de “mexericos” sobre a vida das pessoas da comunidade. Leite, um dos mais expressivos líderes da Imprensa Negra define O Alfinete como um jornal que publicava fofocas, mas não de cunho ideológico, “as alfinetadas [eram] no sentido de corrigir a moral, denunciar pessoas que aparentemente tinham dignidade, mas escorregavam”” (BARBOSA e BALSALOBRE, 2008, p. 3). 16 Esta dança “[apareceu] na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Resultou da fusão da tabanera
pela rítmica, e da polca pelo andadura, com adaptação da síncopa africana. Outros o fazem uma prolação do
lundu, mescla do com a toada. Era dança de salão, de par unido, exigindo extrema agilidade pelos passos e
figuras rápidas, mobilidade de quadris [...]. Foi por algum tempo expoente da nossa dança urbana, tendo cedido
lugar ao samba [...]” (CASCUDO apud DOMINGUES, 2002, p. 594).
104
[na] ótica dos negros branqueados social e moralmente, o salão Lyra era um
desses antros de depravação na cidade, devendo ser evitado pelas mulheres
negras: “a nossa raça deve procurar outra convivência...” [essa era uma
reportagem que constava no jornal o Alfinete de março de 1919]. Elas
deviam se recusar a frequentar espaços cujos bailes executavam músicas de
“preto”, como o maxixe (DOMINGUES, 2002, p. 575).
Esses eventos eram criticados por uma pequena parcela dos negros em São Paulo que,
de acordo com Domingues (2002; 2003), estavam moral e ideologicamente branqueados.
Condenavam acintosamente esses bailes, destacando o caráter grotesco, bárbaro e selvagem
desses ritmos e danças. Esse pequeno setor de mentalidade branqueada da comunidade negra
em certos momentos negava as referências ao éthos cultural da ancestralidade africana.
[...] formas típicas de andar, falar, dançar, gingar, forma de se vestir, estilo
de cabelo, tradições culturais religiosas. O repúdio [dessa minúscula elite
negra e intelectualizada] a tais valores era um recurso de diferenciação social
da plebe negra (DOMINGUES, 2003, p. 285).
O autor ressalta que a assimilação dos valores morais e sociais da ideologia do
branqueamento por parte dessa elite negra, na realidade, resultava das representações
instituídas negativamente pelos brancos.
Era necessário ser um “negro da essência da brancura”. Por isso, eles
desenvolveram certo desprezo em relação às raízes da negritude. Aliás, a
recusa da herança cultural africana e o isolamento do convívio social com os
negros da “plebe” eram duas marcas distintivas dos negros “branqueados
socialmente” [...] (DOMINGUES, 2003, p. 285).
Marx e Engels (1999), nessa perspectiva, apesar de não abordarem diretamente a
questão racial em sua obra, “A Ideologia Alemã”, talvez possam oferecer uma das chaves
para compreender a cooptação da ideologia do branqueamento, ao descrevem as relações de
poder entre a classe dominante e a dominada. Assim, pois, para estes filósofos
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os
pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material
dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual.
A classe que dispões igualmente dos meios de produção material dispõe
igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o
pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual
está submetido igualmente à classe dominante. (MARX e ENGELS, 1999, p.
63).
105
Esses pensamentos dominantes, como apontam Marx e Engels (1999), dizem respeito
ao domínio das relações materiais. Condição primordial para quem está com o poder
econômico de produzir e exercer, também em forma de ideias, o domínio cultural e social
sobre as outras classes.
Diante desses argumentos de Marx e Engels (1999), podemos, sob o amparo de suas
ideias, compreender como a classe dominante brasileira, do final do século XIX e início do
século XX, persuadia todos os segmentos sociais com a produção e a reprodução das teorias
raciais, a ponto de parte da intelectualidade negra mais elitizada reproduzir as ideias racistas
da classe branca dominante, fazendo crer que eram os próprios negros que praticavam
racismos contra si mesmos, pois o sistema de poder, de produção e os inúmeros privilégios
estavam nas mãos dos brancos, tornando fácil a imposição ideológica dos valores morais e
estéticos de seu segmento racial. No entanto, não estamos afirmando que o racismo e a
ideologia do branqueamento, principalmente no Brasil, sejam exclusivamente em decorrência
dos fatores econômicos. Parece-nos que, independentemente da desigualdade das classes
sociais, o racismo continua a atuar.
Para retomarmos brevemente as reflexões de Marx e Engels (1999), e relacioná-las
diretamente com que afirmarmos anteriormente, Marilena Chaui (2003), nos elucida que essa
imposição ideológica “[...] não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno
objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos
indivíduos” (CHAUI, 2003, p. 72).
A elite negra do século passado reproduzia, portanto, inconscientemente, os efeitos do
branqueamento acreditando que os valores das classes brancas eram a verdade e o caminho a
ser trilhado.
Essa elite negra branqueada aconselhava os demais negros a adotar uma conduta moral
condizente com a cultura e o poder hegemônico, pois esta seria a norma, mesmo que
ideologicamente falsa.
Ao destacarmos a submissão, no início do século XX, de parte da elite
negra aos ditames perversos das relações raciais brasileiras vigentes
no país naquele período, a ideologia do branqueamento está em
primeiro plano de investigação. Não poderíamos compreendê-la
melhor deslocada de um pano de fundo histórico, “[...] o ideário de
transformar ‘negro’ em ‘branco’ perpassou longos períodos históricos,
em que o ideal do branco tem sido (re)semantizado constantemente”
(HOFBAUER, 2006, p. 27).
106
No caso do Brasil há toda uma estrutura subjetiva e objetiva que foi constituída
historicamente, como revela Hofbauer (2003; 2006), que induz os indivíduos a quererem se
aproximar do ideal de branqueamento. Se os antigos jornais impressos do século XX, tanto da
imprensa branca quanto da imprensa negra, postulavam a supremacia dos valores morais e
estéticos brancos, hoje isso está atualizado de maneira sofisticadíssima nos diversos
programas exibidos pela televisão. O ideal de branqueamento veiculado pela televisão talvez
seja mais persuasivo e penetrante no imaginário das pessoas, ressaltando os valores
hegemonicamente brancos, do que os antigos jornais da imprensa branca ou negra, que se
reportava diretamente a comunidade negra sugerindo a esta última costumes e atitudes.
De maneira semelhante, a televisão brasileira, principal veículo de comunicação do
país, é inteiramente branqueada. Ela valoriza e propaga o ideário do branqueamento por meio
de sua programação. Isso está explicitamente posto, por exemplo, nas telenovelas, em que o
ideário do branqueamento é celebrado constantemente. Por outro lado, isso não quer dizer que
não haja negros atuando nas telenovelas, mas o protagonismo das personagens negras é
diminuto.
A ideologia do branqueamento faz acreditar que o Brasil seja constituído por maioria
fenotipicamente caucasiana. Da perspectiva política, parece-nos que isso dificulta enfrentar o
racismo de forma mais eficaz, fomentando uma consciência racial entre brancos e negros
fragmentada. O branco, com características europeias, aparece nas telenovelas como a norma
e o padrão de referência de beleza. O negro como o inverso de tudo isso.
As telenovelas, dessa forma, constituem elemento de significado muito influente na
cultura brasileira, que talvez sejam pouco exploradas, cujas relações raciais estão presentes na
maneira de negação do negro como protagonista da ficção televisiva dos canais abertos.
Entretanto, seria interessante acentuar que as coisas mudaram um pouco no próprio
percurso histórico de desenvolvimento das telenovelas em relação a participação de negros
em seus enredos. Assim, no próximo capítulo, vamos analisar a novela da Rede Globo “Lado
a lado”, de 2012, que é relativamente um marco da teledramaturgia brasileira ao destacar à
presença negra de maneira afirmativa, abordando a importância e as contribuições da cultura
afro-brasileira para a história do Brasil.
107
CAPÍTULO III
Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela “Lado a Lado” como um caso
emblemático
Depois de discorrermos a respeito do racismo, da origem das telenovelas e acerca da
ideologia do branqueamento, a intenção é fazer agora uma análise da novela “Lado a Lado”,
cuja produção enfocou a questão da cultura negra no Brasil. Infelizmente, essa novela, no
fundo, acabou apenas reproduzindo alguns estereótipos veiculados e aceitos socialmente sobre
o negro. No entanto, antes de passarmos a análise dessa produção televisiva, é importante
justificar o porquê de escolhermos esta telenovela. Primeiramente, seria bom ressaltar que
“Lado a Lado”, pelo menos nos últimos tempos, foi uma produção ficcional emblemática, que
destacou a figura do negro e de sua história no Brasil. Apesar disso, não escapou aos
estereótipos raciais impregnados na sociedade, abordando a cultura negra de forma
essencializada ao dar destaque ao negro como o bom de bola, ao capoeirista versátil e ágil, a
mulher negra como uma mulata sensual. Além disso, enfatizou o negro como um ser
inclinado a indolência, a malandragem, com forte gosto pela dança, pelo samba, pelos ritos
religiosos de matriz africana e pelas práticas de curandeirismo. Os autores dessa novela não
conseguiram escapar desse senso comum racialmente constituído e que está colado à imagem
do negro. Por isso, essa novela, a nosso ver, representa um objeto de análise interessante,
pois, ao mesmo tempo em que procura evidenciar a história da população negra brasileira,
reproduz simultaneamente aquilo que, provavelmente, poderia evitar: os estereótipos em
relação à contribuição dos negros na formação da identidade brasileira.
Diante desses pontos um tanto quanto negativos, ainda assim “Lado a Lado” serve de
ilustração para se refletir sobre a questão do negro na sociedade brasileira do passado e do
presente. Desse modo, mesmo dando maior ênfase na história do negro, a novela permaneceu
embranquecida. É justamente isso que nos chamou a atenção. Por que será que os produtores
da novela não formaram um elenco exclusivamente de atores e atrizes negros? Quais seriam
os motivos pelos quais não se optou por essa escolha? Apesar da trama da novela girar em
torno da amizade de Isabel e Laura, e do romance delas com seus amados, Zé Maria e Edgar
Vieira, o cenário de fundo, o contexto histórico e social era voltado para a narrativa da cultura
negra. Entretanto, qual é a narrativa central no enredo da novela? Parece-nos difícil de
responder de forma imediata. Mas, ao observar o quadro do elenco da novela, pode-se
perceber onde estaria essa ênfase. Por esse prisma, “Lado a Lado”, mesmo tendo como
108
proposta apresentar a história e o drama da população negra no início do século XX, parece
permeada pela ideologia do branqueamento.
Desse modo, metodologicamente para analisar essa novela, optamos por uma
observação empírica ao assistirmos a mesma quando ela foi exibida no ano de 2012. Também
realizamos consultas e investigações sistemáticas no próprio site oficial da novela, que ainda
está no ar, de modo pormenorizado, cuja importância foi buscar elementos detalhados dessa
produção para fundamentar nossa pesquisa.
Assim, para explorar a dimensão empírica e discutir mais sobre a problemática racial,
trazemos transcritos alguns diálogos de personagens negros e brancos, disponíveis em vídeos
no site da novela, que compõem o drama novelístico, e relacionamos esses diálogos com
aspectos históricos, sociais e culturais enfrentados pela população negra no período a que se
refere. Dessa forma, podemos chamar a atenção para a história de Chico, jogador de futebol
negro, que para conseguir jogar no time do clube em que trabalhava, teve que se pintar com
pó-de-arroz. Essa história é baseada em um fato real que ocorreu no início do futebol no
Brasil.
Destacamos também a ação política de Zé Maria, a dança de Isabel e as práticas
religiosas e a solidariedade de tia Jurema. Por isso, a escolha da novela “Lado a Lado” nos
pareceu importante para uma análise mais detalhada, considerando-se seu recorte racial, pois,
ao possibilitar ver na televisão, principalmente em telenovela, a história do negro, ela acabou
essencializando sua trama. Talvez, nesse aspecto, “Lado a Lado” serva de modelo para se
estudar a ideologia do branqueamento, a discriminação racial e os diversos preconceitos em
relação ao negro, no âmbito escolar, fundamentado na Lei 10.639/2003, com o objetivo de
desconstruir essas noções, afirmando a identidade negra. Mas, está discussão não será abordar
nesse capítulo porque não é seu escopo principal. Apenas tocaremos, de maneira breve sobre
isso, nas considerações finais. Sugerimos está reflexão, acerca do conteúdo dessa novela,
somente como uma possibilidade de aplicação no campo educacional. A seguir, nos próximos
itens, vamos analisar a telenovela enunciada.
3.1. Especificações e breve resumo da novela “Lado a Lado”
“Lado a Lado” é uma novela da Rede Globo de Televisão, exibida no horário das 18
horas, no período de 10 de setembro de 2012 a 8 de março de 2013, com 154 capítulos.17 Teve
17 Cf. em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/lado-a-lado/lado-a-lado-fontes.htm
e também em: http://gshow.globo.com/novelas/lado-a-lado/index.html
109
uma audiência média de 18,3 pontos. Escrita em parceria pelos autores João Ximenes Braga e
Claudia Lage, esta novela contou com cinquenta e seis personagens. Desse total, dezesseis
eram negros (pretos e pardos). As outras quarenta personagens eram brancas, conforme
demonstrado no quadro 1.
Quadro 1 – Elenco e as personagens da novela “Lado a Lado”
Total de atores/atrizes brancos e seus
personagens – 40
Total de atores/atrizes negros e seus
personagens – 16
Ator/Atriz Personagem Ator/Atriz Personagem
Thiago Fragoso Edgar Vieira Lázaro Ramos Zé Maria dos
Santos
Marjorie Estiano Laura Assunção Camila Pitanga Isabel Nascimento
Patrícia Pillar Constância Assunção Sheron Menezzes Berenice
Emílio de Mello Carlos Guerra Milton Gonçalves Afonso
Nascimento
Caio Blat Fernando Vieira Zezeh Barbosa Tia Jurema
Cassio Gabus Mendes Bonifácio Vieira Marcello Melo Jr. Caniço
Alessandra Negrini Catarina Laís Vieira Etelvina
Maria Clara Gueiros Neusinha Rui Ricardo Diaz Percival
Paulo Betti Mário Cavalcanti Ana Carbatti Zenaide
Tuca Andrada Frederico Martins César Mello Chico
Rafael Cardoso Albertinho Assunção Cauê Campos
(Ator mirim)
Elias
Maria Padilha Diva Celeste Jorge Amorim
(Ator mirim)
Olavo
André Arteche Luciano Jurema Reis Gilda
Isabela Garcia Celinha Zeca Gurgel
(Ator mirim)
Tião
Werner Schünemann Dr. Assunção Ana Luiza Abreu
(Atriz mirim)
Madá
Klebber Toledo Umberto Marcio Rangel
(Ator mirim)
Vilmar
Daniel Dalcin Teodoro _ _
110
Bia Seidl Margarida _ _
Guilherme Piva Delegado Praxedes _ _
Débora Duarte Dona Eulália _ _
Susana Ribeiro Teresa _ _
Beatriz Segall Madame Besançon _ _
Maria Eduarda Eliete _ _
Cláudio Tovar Padre Olegário _ _
Álamo Facó Vasco
Queirós(Quequé)
_ _
George Sauma Jonas _ _
Christiana Guinle Carlota Passos _ _
Priscila Sol Sandra _ _
Juliane Araújo Alice Passos _ _
Maria Fernanda
Cândido
Jeannete Dorleac _ _
Rhaisa Batista Esther _ _
Tião D'Ávila Isidoro _ _
Romis Ferreira Luiz Neto _ _
Luisa Friese Matilde _ _
Ana Paula Lopes Luzia _ _
Rogério Freitas Haroldo _ _
Eliz David
(Atriz mirim)
Melissa _ _
Marcos Acher Rodrigues _ _
Daniel Marques Paiva _ _
Thiago Amaral Gustavo _ _
Antes de passarmos a outros detalhes da novela, seria importante salientar que, de
acordo com o quadro 1, a quantidade de atores e atrizes brancos é mais do que o dobro dos
atores e atrizes negros.
111
Em relação a história principal da novela, gravita em torno das personagens Isabel
Nascimento (negra), interpretada por Camila Pitanga, e Laura Assunção (branca), animada
pela atriz Marjorie Estiano. Tanto Isabel Nascimento quanto Laura Assunção buscam um
futuro de igualdade em um contexto histórico (início do século XX) marcado pelo machismo,
pelas desigualdades sociais e raciais. Ambas as personagens vivem os encontros e
desencontros dos seus amores: Isabel com José Maria dos Santos (Lázaro Ramos) e Laura
com Edgar Vieira (Thiago Fragoso). Enquanto que para Isabel, o amor de Zé Maria era uma
certeza, para Laura, ainda não estava muito certo o que ela sentia por Edgar Vieira, pois o
casamento com ele poderia frustrar sua necessidade de liberdade. É ao redor desses acertos e
desacertos amorosos, que João Ximenes Braga e Claudia Lage construíram a trama amorosa
da novela. O pano de fundo dessas histórias de amor é uma época (início do século XX) em
que havia uma forte influência europeia, sobretudo francesa, na sociedade brasileira mais
elitizada, rica e branca (LADO A LADO, 2012). Assim, as personagens estão imersas nas
tendências desse período histórico, como o charme da Belle Époque, as confeitarias, os cafés,
as esperanças de uma modernidade que estava em transformação, em que as mulheres
lutavam por liberdade individual e a cultura negra por afirmação identitária.
A trama da novela se desenvolve no Rio de Janeiro, no ano de 1904, onde o fim da
monarquia prenunciava mudanças profundas para o Brasil.
Nesse cenário de transformações, um jovem casal de negros se destaca em uma roda de
samba de raiz na zona portuária do Rio de Janeiro. Eles são Isabel e Zé Maria. Ela empregada
doméstica. Ele auxiliar de barbeiro. Estão muito apaixonados e envolvidos naquele momento
de dança e alegria. Nem se lembram das dificuldades financeiras e planejam se casar (LADO
A LADO, 2012).
Em outro ponto da cidade do Rio de Janeiro, em uma bela mansão localizada em
Botafogo, encontra-se Laura Assunção, noiva de Edgar Vieira, preparando o vestido de
casamento. Ela irá se casar no dia seguinte, mas não com o mesmo entusiasmo de Isabel.
Laura almeja uma vida mais independente, pois é inteligente, idealista e pretende trabalhar,
coisa que não era bem vista pela sociedade da época. Entre essas coisas também sonha em ser
escritora. A mãe, dona Constância, interpretada por Patrícia Pilar, se opõe a essas ideias da
filha (LADO A LADO, 2012).
O noivo de Laura, Edgar Vieira, apesar de ser advogado acabou indo para o
jornalismo. O pai dele, o senador Bonifácio, representado pelo ator Cássio Gabus Mendes,
tem outros planos para o jovem advogado e jornalista. Quer que ele assuma os negócios da
empresa da família guiando os seus rumos (LADO A LADO, 2012).
112
Já no caso de Isabel e Zé Maria, a vida não está nada fácil. O cortiço onde moram está
ameaçado pela modernização da cidade. Corria um boato de que a polícia pretendia invadir o
cortiço, expulsar seus moradores e demoli-lo para a realização do projeto de modernização.
Segundo Bardanachvili (2012a), o presidente da república na época incumbiu o engenheiro e
prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, mais o médico sanitarista e diretor do
Serviço de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, de liderar firmemente as reformas propostas de
higienização da cidade. A polícia nesse evento chegava sem avisar e muitas vezes, durante à
noite, enxotando os moradores dos cortiços. Popularmente esse despejo compulsório ficou
conhecido como “bota abaixo”.
Entretanto, mesmo sabendo disso, Isabel e Zé Maria adiam por alguns dias a
preocupação com o despejo. E afirmam para o pai de Isabel, o seu Afonso, vivido pelo ator
Milton Gonçalves, que está muito preocupado com a situação do “bota abaixo”, que após se
casarem pensarão em novo lugar para morarem (LADO A LADO, 2012).
Outro episódio importante na trama é que Zé Maria esconde do seu Afonso e da Isabel
o fato de ser um capoeirista conhecido como Zé Navalha. Ele esconde isso porque naquele
tempo a capoeira era extremamente marginalizada. Não era vista como esporte, mas como
uma arma usada por marginais (LADO A LADO, 2012). Mas, depois que descobre essa
identidade oculta de Zé Maria, Isabel de, certa maneira, procura mudar sua opinião em relação
a capoeira. O quadro 2 traz um diálogo de Zé Maria e Isabel, cuja discussão gira em torno da
importância da capoeira.
Quadro 2
Descrição da cena: Em uma cena exibida em setembro de 2012, Isabel e Zé Maria
conversam na casa de tia Jurema sobre seu relacionamento e a capoeira, e como ela é
marginalizada, sempre ligada à ideia de malandragem e bandidagem.
Isabel: Aqui a gente vai poder conversar com mais calma. Tia Jurema disse que a Berenice
está longe.
Zé Maria: Estou com uma saudade danada de você!
Isabel: Zé... Eu tenho uma coisa importante para te dizer.
Zé Maria: Tá! Antes, eu queria somente te explicar umas coisinhas que tenho obrigação.
Todo esse mal entendido, a culpa é minha. Eu sei que você pensou mal de mim, por causa
da capoeira, por eu não ter te contado nada.
113
Isabel: Eu encontrei a fantasia de diabo nas suas coisas. Era você mesmo?
Zé Maria: Hum!! Era. Mas eu coloquei aquela fantasia para brincar. Brincar, meu amor.
Aí depois, um anjo apareceu na minha frente e me apaixonei, ali, de primeira.
Isabel: Zé! Por que você não me contou isso antes?
Zé Maria: Ah, meu amor, era que você era sempre tão firme quando falava de capoeira,
que no início do namoro achei melhor a gente se conhecer mais até eu puder te contar. E
depois, o tempo foi passando, foi passando, e não te contei, nem sei porque.
Isabel: Encontrei o chapéu nas suas coisas, Zé. Você era um Guaiamum! Um bando de
bandido!
Zé Maria: É ... Isabel. O meu pai, era um Guaiamum. E eu tenho muito orgulho dele. Meu
amor, quando os jornais e a polícia falam que a capoeira é bandidagem, é porque é coisa
de preto. Mas, essa foi a única maneira que o nosso povo encontrou, na época da
escravidão, para poder se defender da violência dos Capitães do Mato. Eu sei, eu sei, que
muitos viraram bandidos. Mas mesmo assim, quando os brancos proibiram a capoeira, é
porque eles estavam com medo que nosso povo se juntasse para lutar contra essas
injustiças. Meu amor, eu não... A escravidão já acabou. Mas, ainda falta muito para gente
conquistar respeito, uma vida digna.
Isabel: Mas, não é com briga de rua que a gente consegue isso.
Zé Maria: É! Mas, capoeira não é uma briga. É uma luta também. Ah! Os brancos de Bota
Fogo, não adoram esses esportes que vêm da Inglaterra?! Então, porque o que é nosso não
pode ser considerado esporte também?
Isabel: Você está certo. Você está certo. Quem sabe se você tivesse me dito isso antes, eu
não ia achar que você era bandido quando descobri da capoeira. Quem sabe se a Berenice
não tivesse passado a perna na gente. Se eu tivesse recebido o recado. Vai ver se você
tivesse da... Se você não tivesse dado o nome falso na delegacia, a gente tinha se
encontrado. Zé, isso é um monte de talvez. O que aconteceu de verdade? Ah, isso é tão
difícil para mim.
Está cena evidencia que Isabel começa a compreender a importância histórica da
capoeira na cultura do povo negro, e como ela foi inicialmente usada para defender os negros
escravizados no período escravocrata. A referida cena enfatiza a capoeira como um elemento
cultural de significativa presença na formação da identidade nacional brasileira, que é plural e
diversa.
Voltando ao caso de Isabel e Laura, apesar de estarem em posições sociais opostas, se
conhecem na igreja, no dia do casamento, em seus trajes de noivas. Mas Isabel tem o
casamento atrasado por um motivo inesperado: Zé Maria não aparece à cerimônia. Mas isso
não significa que ele abandonou à noiva. O que ocorreu foi que, a caminho para a igreja, Zé
Maria encontra Caniço, interpretado pelo ator Marcelo Melo Júnior, avisando-o que o cortiço
114
está preste a ser derrubado. Caniço e um grupo de capoeirista intenciona impedir a ação da
polícia. Zé Maria vai à luta com Caniço e o grupo de capoeiras, e é preso no final do conflito.
Perde assim o casamento com Isabel, deixada no altar (LADO A LADO, 2012). Laura, a outra
noiva, apesar da indecisão, casa-se com Edgar Vieira com toda pompa.
Com o casamento frustrado, Isabel e seu pai, ao chegarem ao cortiço, descobrem que
não tem mais onde ficar, pois “o bota abaixo” deixa-os desabrigados. Isabel e seu Afonso
encontram solidariedade nos vizinhos, de alguns amigos e juntos mudam-se para o Morro da
Providência, na zona portuária.
Zé Maria, depois de um lapso de tempo, é solto e vai ao encontro de Isabel. Esse
encontro é permeado pela suspeita e hesitação. O capoeirista elucida o que aconteceu e a
situação se resolve com Isabel e os dois voltam a ficar juntos. Porém, algo aconteceu nesse
entremeio da prisão de Zé Maria. Isabel manteve um relacionamento passageiro com o irmão
de Laura, Albertinho Assunção, interpretado pelo ator Rafael Cardoso. Zé Maria descobre o
que aconteceu e se separa de Isabel.
Laura deixa de ter dúvidas em relação ao casamento com Edgar, e se tornam um casal
apaixonado. Entretanto, o relacionamento entre eles sofre um abalo quando Laura fica
sabendo que Edgar irá viajar para Portugal. Ele vai de qualquer maneira, mas pede para Laura
aguardá-lo e ter confiança no que está fazendo (LADO A LADO, 2012).
Decepcionada e triste, por conta da separação do auxiliar de barbeiro, Isabel consegue
um emprego de camareira no Teatro Alheira. Esta era uma companhia de comédia dirigida
por Mario Cavalcanti, personagem do ator Paulo Betti. Nessa companhia a expectativa está
em torno da chegada de uma dançarina francesa Mlle. Dorleac, interpretada pela atriz Maria
Fernanda Cândido, que será a maior atração da temporada. Ao chegar à cidade do Rio de
Janeiro, a dançarina francesa conhece Isabel e se encanta pela sua dança de raízes afro-
brasileiras. Mlle. Dorleac convida Isabel para acompanhá-la até Paris. O problema é que
Isabel ainda nutre esperanças de voltar com Zé Maria.
A outra protagonista, Laura, também toma uma decisão revolucionária. Imaginando
que Edgar Vieira nunca a amou realmente resolve pedir o divórcio. Edgar, não satisfeito com
essa decisão, procura a todo custo reatar o relacionamento e fazer Laura mudar de ideia. Mas
não consegue.
Isabel também perde as esperanças de reestabelecer o relacionamento com o ex-noivo.
Principalmente quando descobre que Zé Maria decide se alistar na Marinha. Ele fez isso
porque ficou sabendo que sua vida corria risco, pois Caniço espalhou entre os capoeiristas
rumores de que Zé Maria os havia traído. A melhor opção era ingressar na Marinha naquele
115
momento para se proteger. Isabel, ao ficar sabendo que Zé Maria está longe, decide ir embora
com a Mlle. Dorleac para Paris.
Após o embarque de Isabel e o fim do relacionamento de Laura e Edgar, a novela terá
um lapso de tempo de seis anos, em que os dois casais irão se encontrar continuando a trama
de suas relações (LADO A LADO, 2012).
Após esta sucinta sinopse da telenovela que consideramos importante para situar o
leitor, passaremos a analisar não as estórias amorosas. Mas como essa telenovela contribuiu
para se pensar a história do negro no Brasil e a afirmação da cultura afro-brasileira.
3.2 Ideologia do branqueamento e a telenovela “Lado a Lado”: expressões da cultura
afro-brasileira
A principal ênfase das telenovelas brasileiras, independente da emissora que as
produzem, é o branqueamento e sua ideologia como norma estética, moral e cultural. Isso
pode ser observado pelo telespectador mais atento ao assistir as novelas, pois há um destaque
muito acentuado nas personagens brancas. O número de atores brancos em relação aos atores
negros é desproporcional nas telenovelas brasileiras. Essa desproporcionalidade parece se
repetir há muito tempo. Assim, enquanto que na novela “Geração Brasil” (2014), da Rede
Globo, o elenco total soma sessenta e oito atores, apenas dez desse total são negros. Essa
mesma desproporção podia ser verificada na novela “Vidas Cruzadas” (2000), produzida pela
Rede Record, em que dos trinta e cinco atores do elenco somente quatro ou cinco eram
negros. Todas as telenovelas têm essa ênfase na estética branca. Talvez a novela “Lado a
Lado” (2012) seja uma das únicas que diminuiu um pouco essa desigualdade na composição
do elenco, ao procurar enfatizar um pouco a história dos povos africanos trazidos para o
Brasil, como na cena em que Laura deseja escrever um artigo sobre a cultura do negro.
Ilustramos a cena no quadro 3.
Quadro 3
Descrição da cena: No capítulo exibido em janeiro de 2013, Laura e Isabel estão juntas
com tia Jurema. Laura tem interesse em escrever sobre a cultura negra. Isabel está
entusiasmada com a ideia. No entanto, esta cena nos parece reafirmar os estereótipos em
relação ao negro que são frequentes na sociedade, como se fossem um segmento racial
realmente apartado da nacionalidade brasileira. Esse diálogo sugere certo romantismo do
período escravista no Brasil.
116
Isabel: Pediram para Laura escrever mais um artigo.
Tia Jurema: Que bom!
Isabel: Só que ao invés de falar de meu espetáculo, é para ela falar da cultura de nosso
povo.
Laura: Só que eles não sabem que foi eu quem escrevi. Tive que, eu tive que assinar com
nome de homem, porquê de mulheres eles só publicam receitas e assuntos domésticos. Eu
não queria correr o risco de o texto não ser publicado.
Isabel: A gente pede segredo, Tia.
Tia Jurema: Segredo dado...
Isabel: A gente pede para contar sobre nossa história também. A senhora viu tudo. Viu o
batuque na senzala.
Tia Jurema: Ah, eu me lembro disso toda vez que escuto o atabaque no meu quintal. Desde
menina, sabe, quando eu dormia no chão de terra batida, dormia ouvindo a cantoria.
Laura: E vocês dançavam e cantavam, mesmo depois de um dia inteiro na lavoura?!
Tia Jurema: Ah! Um dia inteiro na lavoura, com um carrasco ou capataz com um chicote
atrás da gente. Pouca água, pouca comida. Muito escravo no tronco. E por isso mesmo que
a gente cantava e dançava. Que era a única coisa que a gente podia fazer, que era da
gente. Que não tinha se perdido em Navio Negreiro e nem debaixo da chibata.
Laura: Posso escrever sobre isso?
Tia Jurema: Claro que pode. Agora, não sei porque uma moça branca iria querer falar
sobre a gente, não é?!.
Isabel: A Laura é diferente, Tia.
Laura: Não, mas não deveria ser Isabel. A senhora está certa em estranhar. Mas nada disso
é indiferente para mim. Eram meus pais, meus avós que estavam lá na Casa Grande. Eram
de lá que eles mandavam erguer o tronco, entregavam o chicote na mão do capataz. Essa
história é importante para mim também.
Tia Jurema: Que bom que você pensa assim. Aliás, o que não falta é história para contar
sobre meu povo (risos). Uma vez...
Dessa maneira, os estereótipos em relação ao branco são constantemente apresentados
nas telenovelas carregados de positividades, tais como papéis de destaque na trama, como
pessoa rica e bem sucedida, loiro ou loira insinuando subjetivamente que o belo é apenas
atributo dos brancos. Sem mencionar que a formação do elenco das novelas privilegiam esses
atores. Já os estereótipos em relação ao negro quase sempre são negativos, como
117
malandragem, preguiça, vadiagem e excluído social. Além disso tem pouca representação de
sua estética nas telenovelas. Mas, o que seriam os estereótipos? Como são criados? O que de
fato eles representam? Nessa perspectiva, Luís Mauro Sá Martino (2009) nos auxilia a
responder essas indagações sobre as características dos estereótipos.
Estereótipos são imagens mentais criadas pelo indivíduo a partir da
abstração de traços comuns a um evento previamente vivido. A partir da
experiência com alguma pessoa ou ambiente constrói-se um estereótipo ou
representação que permite identificar situações semelhantes – e aplicar a elas
a representação anterior. Os traços comuns da experiência anterior são
mantidos na memória e comparados com os da experiência atual, garantindo
a identificação. Nesse sentido, o estereótipo é um conhecimento imediato e
superficial, ganhando em tempo o que perde em profundidade. Essa
representação, quando utilizada por um grande número de pessoas, tende a
ganhar status de verdade (MARTINO, 2009, p. 21).
Os estereótipos seriam criados então pela sua repetição. Isso possibilita, de acordo com
Martino (2009), condições de interpretar a realidade de maneira mais rápida, identificando
com maior velocidade a situação. “O resultado facilita as relações sociais, bem como a vida
em sociedade – os estereótipos explicam o que está diante dos olhos, permitindo formulação
rápida de estratégias de ação em uma situação” (MARTINO, 2009, p. 21). A não presença de
estereótipo implicaria em maior gasto de tempo para se compreender uma dada situação ou
evento.
Quando uma pessoa vê outra se aproximando em um lugar deserto, de noite,
com um canivete na mão e olhando feio, não precisa pensar muito para
entender o que vai acontecer: o estereótipo “assalto” vem à mente. Sem
estereótipos, ela seria a pessoa armada e se perguntaria: “O que será que ela
quer?”, com evidente prejuízo (MARTINO, 2009, p. 21-22).
Martino (2009) afirma que um olhar puro, sem estereótipos seria impossível e não
teria sentido. O que o estereótipo representa de seu objeto não estaria totalmente errado.
Entretanto, seria uma representação caricatural. O seu sentido positivo está relacionado à
conscientização de seus limites. A telenovela “Lado a Lado” cria (pelo menos em parte, pois
não é tanto branqueada em relação as outras produções) estereótipos mais positivos das
personagens negras que compõe seu enredo. Na história atual das telenovelas brasileiras,
“Lado a Lado”talvez tenha sido uma das que mais concentraram personagens negras. No
entanto, a que marcou a história e gerou muita polemica foi a novela “A cabana do Pai
Tomás”, de 1969, produzida pela Rede Globo.
118
A cabana do Pai Tomás, embora tenha sido a novela que teve o maior
número de personagens negros até então, provocou uma das primeiras e
maiores polêmicas sobre a questão racial na televisão brasileira. Liderados
pelo ator e autor teatral branco, Plínio Marcos, uma série de protestos foram
realizados em São Paulo contra a escolha de um ator branco, Sérgio
Cardoso, para interpretar papel de um personagem negro, Pai Tomás. O ator
foi pintado de preto e usava rolhas no nariz e atrás dos lábios para aparentar
uma pessoa negra de nariz largo e beiçudo. Conforme depoimento [do ator]
Milton Gonçalves, a pressão foi tamanha que criou uma situação
constrangedora para Sérgio Cardoso, que também escreveu boa parte da
novela, e preocupou o alto escalão da Rede Globo (ARAÚJO, 2004, p. 91-
92).
Esta novela contava com um núcleo de atores negros importantes, como Ruth de
Souza, Isaura Bruno, Jacyra Silva, Gésio Amadeu, Jorge Coutinho e Haroldo de Oliveira.
Entretanto, o ator escolhido para fazer o papel principal, Pai Tomás, foi um ator branco.
Mesmo sabendo do talento e desempenho de Milton Gonçalves na época, os produtores da
novela preferiram um ator branco para fazer o papel de um sábio negro. Segundo Araújo
(2004) “[no] Brasil, representar outras raças, tais como negros e índios, sempre foi uma
prerrogativa unilateral dos atores euro-brasileiros, e não dos atores afro-brasileiros [...]”
(ARAÚJO, 2004, p. 95).
Contudo, as produções e a escolha do elenco nas telenovelas brasileiras mudaram ao
longo do tempo. Os estereótipos negativos em relação ao negro diminuíram. Infelizmente não
o suficiente ainda, mas não se pode negar que houve avanços. Como no caso de “Lado a
Lado”, em que um dos pares românticos protagonistas da trama era representado por
personagens vividas pelos atores negros Lázaro Ramos e Camila Pitanga. Além disso, o
personagem de Lázaro Ramos, o versátil Zé Maria, encarnava o herói engajado politicamente,
que lutou contra a demolição dos cortiços para a construção da Avenida Central, juntamente
com seu ex-companheiro capoeirista Caniço. Eles estiveram juntos nos últimos capítulos da
novela, embora em caminhos diferentes, pois não eram mais amigos, lutando na Revolta da
Vacina, ocorrida no início do século XX. A novela se vale de fatos históricos para discutir a
situação do povo negro nesse período. Essa vacinação obrigatória, ocorrida no ano 1904, era
contra a varíola e foi mais uma imposição governamental arbitrária infligida ao povo (REIS,
2012). Nesse sentido, havia um descontentamento e desconhecimento total por parte da
população sobre a verdadeira finalidade da vacina. A cena transcrita no quadro 4 ilustra isso.
Quadro 4
119
Descrição da cena: Nessa cena, que foi ao ar em outubro de 2012, tia Jurema, Etelvina, Zé
Maria e Percival, depois que estes dois chegaram de mais um confronto com a polícia,
falam sobre a obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Acreditam que ela foi feita para
exterminar de vez com o povo negro no Rio de Janeiro.
Etelvina: Há confusão de mais nessa cidade.
Tia Jurema: A gente não tem paz mesmo, não Etelvina?! Acaba um suplício, começa um
outro. Primeiro era a febre amarela. Depois, a doença dos ratos. Agora essa tal de varíola.
Mas é uma peste para cada dia.
Etelvina: Oh, Jurema! Será que o mundo está se acabando?
Tia Jurema: Ah! Se o mundo está se acabando, eu não sei. Mas que a coisa está boa, não
está não. Agora, estão invadindo as casas para obrigar o povo a tomar a vacina. Vão
metendo a agulha de qualquer jeito.
Etelvina: Deus proteja meus filhinhos!
Tia Jurema: Ah! ... Mas esse povo aqui não vem não. Essa gente da cidade nem lembra que
morro existe.
Tia Jurema: Zééé!
Etelvina: Percival! Homem de Deus! O que foi isso?! Machucou na obra, foi?
Zé Maria: Não! O quebra-quebra era bem outro, Etelvina.
Tia Jurema: Não me diga que foi na confusão da vacina?
Percival: O povo estava protestando, e a coisa ficou feia.
Etelvina: E por que você se meteu nisso, homem?!
Percival: Pelos nossos filhos, Etelvina! E também porque não sou homem de ficar parado
enquanto os outros estão na luta.
Zé Maria: Etelvina, eu sei que você não quer ver seu maridão machucado, mas a coisa é
séria.
Tia Jurema: Zé, você está sabendo de alguma coisa que a gente não está?
Zé Maria: Coisa ruim, Tia. A tal da vacina não é remédio, e nem cura varíola coisa
nenhuma. Eles injetam é doença na gente!
Etelvina: Valha-me!
Tia Jurema: Mas, por que, querem que todo mundo fique doente?
Zé Maria: De preferência que morra todo mundo junto de uma vez só!
Percival: Teve uma mulher que morreu na hora.
Tia Jurema: Primeiro acabaram com a casa da gente. Agora, querem acabar com a gente
120
mesmo de vez!
Zé Maria: É extermínio o nome disso! Querem matar os pretos e os pobres, para o Rio de
Janeiro ficar igualzinho a Paris.
De acordo com Reis (2012), a Câmara dos Deputados tinha aprovado a lei que
regulamentava a obrigatoriedade da vacinação. Impondo, assim, algumas sanções aos
cidadãos que não se vacinavam por exemplo, impedindo-os de fazer matrícula em escola,
conseguir emprego, viajar, casar e também de votar. Rapidamente os protestos ganharam as
ruas (REIS, 2012a). Na ficção, como no caso da telenovela “Lado a Lado”, Zé Maria enfrenta
a política para defender seu povo da obrigatoriedade dessa vacinação compulsória e massiva.
Os diversos enfrentamentos que o personagem realiza na novela, inspirados em contextos
sociais reais, afirma a presença, a importância e a contribuição dos negros na história do
Brasil.
Isabel como uma personagem negra e dançarina que se consagrou na França, destaca a
relevância da cultura afro-brasileira, ao mostrar, pelo menos ficticiamente, os primeiros traços
do surgimento do samba. A historiadora Bardanachvili (2013a) argumenta que Isabel não
dança ainda o samba, como nós o conhecemos hoje. Era apenas um embrião do samba que se
desenvolvia. Desse modo, ao chegar ao Brasil Isabel fez uma apresentação de sua dança que
gerou grande polêmica. Segundo Bardanachvili (2013a), as pessoas de diferentes classes
sociais, por uma questão moral, classificaram a dança de Isabel de vulgar. No jornal fictício
da novela, o “Correio da República”, o jornalista Luiz Neto, vivido pelo ator Romis Ferreira,
questionou a dança não sabendo como denominá-la, se maxixe ou samba, negando-lhe o
status de arte (BARDANACHVILI, 2013a). No entanto, a personagem Laura defende a dança
de Isabel e da cultura popular escrevendo sobre a apresentação da amiga. Bardanachvili
(2013a) aponta que, mesmo sendo uma ficção, “Lado a Lado” ilustra o universo cultural do
Rio de Janeiro no início do século XX. A sociedade da época estava sob a influência das
teorias raciais europeias, principalmente da teoria do branqueamento inserida intensamente na
mentalidade das pessoas. Possivelmente seja por isso que tudo que se referia à cultura africana
era recebido com certo desprezo e relacionado com sinônimo de inferioridade. No caso da
música, muitos intelectuais e ilustrados acreditavam que a “verdadeira” seria a erudita de
matriz eurocêntrica. A autora argumenta também que havia outros intelectuais e alguns
músicos que investiam e acreditavam em uma música brasileira. O olhar desse grupo estava
mais atento no que estava sendo feito no folclore, nas danças populares dos morros cariocas, e
no nascente samba. Gilberto Freyre e Mario de Andrade talvez fossem os principais
121
intelectuais envolvidos em disseminar a ideia de valorização da cultura popular brasileira.
Gilberto Freyre elogiava a mestiçagem como uma marca especial do país. Somente eram
possíveis os diferentes ritmos na música brasileira devido à mistura étnica e cultural. Essa
visão romântica da cultura brasileira favoreceu o predomínio de ideologias como a do
branqueamento. A novela “Lado a Lado” procurou destacar isso com a personagem de Isabel,
que, inicialmente, sofre o preconceito de dançar algo supostamente de culturas inferiores e
incivilizadas, pois as influências europeias na dança e na música eram intensas.
Para ilustrar esse aspecto do samba que está nascendo, no quadro 5, apresentamos um
diálogo de Isabel e tia Jurema sobre essa dança.
Quadro 5
Descrição da cena: Em janeiro de 2013, uma das cenas da novela, protagonizada por Isabel
e tia Jurema, fala brevemente do samba que será apresentado a uma artista francesa. Esta
cena retoma o estereotipo do negro como tendo uma aptidão quase que inata para o samba e
para as festas.
Isabel: Vim aqui para te mostrar coisa bonita e acabei me desmanchando.
Tia Jurema: O que filha!
Isabel: Olha aqui. Acho que a senhora vai gostar. Eu e a artista francesa no jornal.
Tia Jurema: Isabel você está no jornal!
Isabel: É, mas só apareci porque estou dando uma de artista, né.
Tia Jurema: Ai, não, que belezura! E, está muito mais bonita do que a francesa.
Isabel: Vou trazer ela aqui.
Tia Jurema: Aqui! Aqui onde?
Isabel: Na sua casa, ora! Amanhã de noite.
Tia Jurema: Isabel não me faça passar uma vergonha dessa. O que vou oferecer para uma
francesa tão chique.
Isabel: O que ela me pediu: música e dança. A nossa dança Tia, samba. Música dos pretos,
dos filhos de escravo. Não aquela polca importada que o pessoal chique dança em Bota
Fogo.
Tia Jurema: Bom, se é assim, a madame que se prepare porque ela vai ter um festão como
ela nunca viu na terra dela. Vou fazer sabe o que: vou fazer acarajé, aquele molhinho...
122
Bardanachvili (2013b), informa que já no final do século XIX, nos diversos bailes e
salões que frequentado pela elite, dançava-se ao ritmo da valsa de Viena e da polca polonesa.
Além dessas danças, havia o sucesso do tango espanhol e a habanera cubana. A autora propõe
que esses ritmos estrangeiros passaram por um processo de hibridização, assimilando
elementos da cultura africana, tais como o lundu, que é uma dança sensual, e o batuque. Este
último, segundo Bastos (2007) é um “[...] termo genérico para músicas de dança com raízes
africanas no Brasil” (BASTOS, 2007, p. 17). Com tal influência, os dançarinos que
executavam a polca, a valsa e os músicos que tocavam canções europeias no Brasil foram aos
poucos deixando a “pureza” dessas expressões artísticas e incorporando elementos afro-
brasileiros. Isso abriu caminho para o nascimento, por volta de 1870, do tango brasileiro, do
maxixe e do choro (BARDANACHVILI, 2013b).
Mas foi o samba que marcou profundamente a cultura brasileira. Porém, a sua origem
e formação é um pouco polêmica.
Os pesquisadores são unânimes em afirmar que a gestação do samba ocorreu
a partir das práticas culturais das classes mais baixas da população carioca
no início do século XX, num momento em que a cidade crescia através de
fluxos migratórios internos e externos e tinha sua geografia transformada por
reformas que alteraram substantivamente o panorama urbanístico e social da
capital (TROTTA, 2006, p.57).
O autor argumenta que o samba também teve autores brancos, tais como Noel Rosa e
Mário Lago.
O samba, então, não é negro, nem nacional, nem carioca, baiano, urbano, do
morro, do carnaval. Ele é um produto cultural que pode atuar como
deflagrador de uma identidade nacional, negra, carioca, etc. Todas essas
formas de identidade são apenas potencialidades, não necessariamente
realizadas ou realizáveis. Para que elas sejam evocadas e estabelecidas, é
necessário que o sujeito da ação se sinta pertencente a este ou aquele grupo
identitário e que utilize o samba para demarcar seu elo de identidade. É
preciso que esta música seja empregada como um recurso para dizer quem
você é e usada “para interpretar quem as outras pessoas são ou o que uma
comunidade aspira” (Seeger, 1992:3). Nesse instante, a narrativa de
identidade a partir da música estará evocando um sentimento de identidade
que pode se referir a componentes étnicos, geográficos, sociais ou nacionais.
No caso do samba e da grande maioria das músicas populares urbanas, a
construção identitária vai se tornando cada vez mais complexa e se
adaptando à medida que o samba vai ultrapassando as fronteiras culturais e
se tornando parte da cultura nacional, veiculado através do rádio e do disco
para a totalidade da população (TROTTA, 2006, p. 61-62).
123
De qualquer maneira, “Lado a Lado” enfatiza o samba que começa a nascer por meio
da dança de Isabel, como parte da identidade negra, afirmando a cultura afro-brasileira. As
pessoas, de modo geral, reconhecem o samba como uma contribuição africana na cultura
nacional. Apesar disso, Bardanachvili (2013b) e Trotta (2006) parecem evidenciar que a
indústria fonográfica da época e as diversas gravações dos ritmos do maxixe e do lundu
podem ter contribuído com a formação do samba como gênero musical, mais do que a própria
cultura negra. O caráter híbrido, miscigenado, e a ideologia do branqueamento na sociedade
brasileira sempre, ao longo da história, embranqueceram as raízes e o legado africano na
formação da cultura no Brasil.
Além do samba, no início do século XX, também o futebol recebeu influência afro-
brasileira. Apesar de ser um esporte cuja invenção é atribuída aos ingleses, no Brasil, ele
hibridizou-se com o componente africano. Não de forma pacífica, mas de maneira conflituosa,
dramática e permeada pelo racismo. “Lado a Lado” procura mostrar um pouco dessa história
por meio do personagem Chico, vivido pelo ator afro-brasileiro César Mello.
Segundo Ronaldo Helal e João Paulo Vieira Teixeira (2011), o futebol teria chegado
ao Brasil por volta da segunda metade do século XIX trazido pelos filhos de ingleses que
imigraram para o país. De maneira mais específica, a historiadora Luciene Reis (2013a)
complementa indicando que esse esporte chegou ao território nacional trazido por dois jovens,
Charles Miller e Oscar Cox. Eles conheceram o futebol em uma das temporadas de estudos
que tinham na Europa.
Inicialmente, o futebol era exclusivamente uma diversão praticada pela elite branca,
nos grandes Clubes aristocráticos. Era quase inacessível aos pobres e aos negros. Até porque
os materiais utilizados em sua prática eram muito caros. E as regras eram todas em língua
inglesa. Algo que os aristocratas faziam questão de preservar. No entanto, a partir do século
XX lentamente o futebol se popularizou, e os negros cada vez mais tendo acesso e um papel
importante para a consolidação desse esporte no Brasil, como foi exemplificado por meio do
personagem Chico na novela já mencionada.
Na realidade a história de Chico, pelo menos na telenovela, é polêmica e representa a
força que a ideologia do branqueamento exercia naquele momento no Brasil. No quadro 6, um
episódio que envolve Chico é bastante emblemático ao representar a atmosfera racista da
época.
Quadro 6
124
Descrição da cena: A cena, transcrita logo a seguir, foi exibida em fevereiro de 2013, e se
passa em um campo de futebol, com uma plateia relativamente grande. Albertinho pinta o
rosto, os braços e as pernas de Chico com pó-de-arroz, para que ele fique parecido com um
branco, e possa jogar sem problemas a partida de futebol. Assim, Fernando Vieira e
Umberto reclamam que a partida está preste a começar e Albertinho ainda não chegou.
Mas, quando chega, traz Chico todo maquiado com pó-de-arroz.
Fernando Vieira: Onde diabos Albertinho se enfiou, hein! Se ele não chegar agora o juiz
vai cancelar a partida e dar a vitória para o outro time.
Umberto: Olha quem está vindo ali!
Fernando Vieira: Então, é esta sua ideia brilhante. Pintar um negro de pó-de-arroz.
Albertinho: Foi a única forma dele parecer branco.
Fernando Vieira: Parecer bran...!
Umberto: Isso não vai dar certo!
Albertinho: Deixem de ser medrosos. É a única maneira da gente ganhar o jogo. De longe
ninguém vai perceber. Joga na frente comigo.
A cena continua evidenciando a admiração das pessoas pelo futebol daquele jogador,
diferente e muito habilidoso. Edgar Vieira e Carlos Guerra, estão assistindo à partida de
futebol e admiram as jogadas, mas acham a cor do rosto dele muito esquisita. Nesse
momento, Zé Maria entra no campo de futebol para retirar o amigo daquela situação que
considera humilhante. No entanto, isso acontece depois de algumas cenas mostrando
jogadas e os gols de Chico.
Carlos Guerra: Olha! Esse jogador Edgar, ele não estava na última partida?
Edgar Vieira: Não, não. O Theodoro se machucou durante o treino, e ele entrou para
substituí-lo agora. Foi uma excelente troca, porque, como joga o cidadão.
Carlos Guerra: Excelente!
Após mais algumas cenas mostrando jogadas de Chico, Edgar Vieira e Carlos Guerra
apontam que:
Edgar Vieira: Tem alguma coisa estranha com este jogador, hein!
Carlos Guerra: É, tem sim: um talento acima do normal.
Edgar Vieira: Não, não é isso. Tem alguma coisa estranha com ele. Com... O rosto dele
está esquisito. Olha!
Carlos Guerra: Tem razão Edgar. O que está acontecendo?
125
Logo em seguida, Zé Maria entra no campo de futebol abruptamente e vai ao encontro de
Chico.
Carlos Guerra: O que é que Zé Maria está fazendo ali?
Chico: O que você está fazendo aqui Zé?
Zé Maria: Vim cá salvar sua hora. Limpa essa cara irmão.
Fernando Vieira: Satisfeito Albertinho? Você chama um preto para jogar com a gente, e
logo vem outro atrás.
Zé Maria: Eu não tenho o menor prazer de estar aqui. Eu preferia estar no morro que é
lugar de gente decente sem preconceito.
Fernando Vieira: Faça isso! Pegue seu amigo e leva embora daqui antes que eu chame a
polícia.
Zé Maria: Foi justamente isso que vim fazer. Tirar meu amigo desse circo que esse imbecil
aqui armou.
Umberto: Cale sua boca!
Zé Maria: A Marinha inteira não me calou, e não vai ser um borra botas que nem você que
vai me calar. Vamos, Chico!
Albertinho: Ele fica! Ele é o melhor jogador de nosso time, e ele vai ficar.
Zé Maria: O Chico não vai participar dessa papagaiada. Vamos irmão! Chico, você vai se
sujeitar a uma humilhação dessas? Todo pintado de branco, que nem um palhaço pra todo
mundo rir de você.
Albertinho: Se for o problema... (Nesse momento tira a camisa e a oferece ao Chico)
Fernando Vieira: O quê que isso, Albertinho! O quê que isso, Albertinho!
Albertinho: Pega a minha camisa e tira esse pó-de-arroz do rosto.
Zé Maria: Não, não se faz de bom moço, porque você só está preocupado em ganhar o
jogo.
Albertinho: Claro! Sem ele a gente não tem chance. Pega, Chico! Tira esse pó-de-arroz do
rosto.
Chico, nesse momento, passa a camisa de Albertinho no rosto. Todos que estavam
assistindo ao jogo ficaram surpresos ao perceberem que o jogador estava com uma
maquiagem de pó-de-arroz.
Zé Maria: Não se curva Chico! A gente lutou tanto para acabar com a chibata na Marinha,
para deixar sua honra ser açoitada desse jeito irmão. Olha em volta. Olha! Esse mundo
não é nosso Chico. Eles não querem a gente aqui. O quê que você vai querer ficar fazendo
126
aqui, irmão?!
Chico: Você está certo Zé, está certo, está certo... Eu não devia ter vindo. Vamos embora!
Albertinho: Não! Fica!
Zé Maria: Não, espera aí, será que vou ter que dar algumas pancadas em sua cabeça para
você entender que ele não vai mais jogar.
Albertinho: Me escuta! Eu sei que foi uma ideia infeliz fazer ele passar pó-de-arroz no
rosto, mas foi a única maneira que encontrei dele não ser expulso. Ninguém iria aceitar
aqui um negro jogando futebol. Mas agora que todo mundo viu o talento de seu amigo, não
importa se ele é preto ou branco. Todo mundo só quer ver um futebol bem jogado aqui.
Zé Maria: Eu já falei o que eu acho, irmão! Por mim a gente iria embora daqui agora. Mas
o que você decidir está decidido.
Na cena seguinte, Chico decide ficar e expõe suas razões.
Zé Maria: Tem certeza que é isso que você quer?
Chico: Desculpa meu irmão. Desculpa! Eu sei, eu sei que futebol é esporte de branco, é
esporte de rico. Mas gosto tanto de jogar. Eu sei, claro, que tudo que você disse é muito,
muito importante. A gente tem mesmo é que se valorizar. Mas é que nesse momento, aqui,
agora, eu não vejo uma maneira melhor de mostrar o meu valor, do que continuar em
campo, e ensinar para essa gente como é que se joga.
Zé Maria: Então, boa sorte. Agora joga de cara limpa! Nunca mais esconda quem você é.
Zé Maria abraça Chico, vira as costas, e vai embora.
Fernando Vieira: Ótimo! Mas só vou voltar a jogar se o outro crioulo sair também.
Albertinho: Então, pode ir embora Fernando, porque entre você e o Chico, eu fico com ele.
Os jornalistas Carlos Guerra e Edgar Vieira comentam:
Carlos Guerra: Se eu não tivesse visto, eu não acreditava. Um jogador negro, que usa pó-
de-arroz para se passar por branco.
Edgar Vieira: Resta saber o que o juiz vai decidir.
Carlos Guerra: Pelo que eu saiba, não existe regra que proíba um negro de jogar futebol.
Carlos Guerra: Ah! O juiz teve bom senso.
Edgar Vieira: Quero saber o que Zé Maria achou disso tudo. Confesso que estou mais
curioso com isso, do que com o resultado do jogo.
127
Carlos Guerra: Eu também. Vamos atrás dele!
Edgar Vieira: Vamos, vamos!
Quadro 7
Descrição da cena: No capítulo exibido em fevereiro de 2013, Carlos Guerra e Edgar
Vieira interpelam Zé Maria sobre o ocorrido com Chico no campo de futebol.
Edgar Vieira: Então, foi para esse seu amigo que pedi emprego para o Fernando no clube.
Zé Maria: Desculpe, Edgar, mas nem me fala de seu irmão. Porque, o Chico já tinha
comentado comigo que ele era o pior dos racistas que tem por lá. Mas dessa vez senti na
pele.
Edgar Vieira: Oh, meu Deus! É desse nível?!
Zé Maria: É. Ele se comporta ainda como se tivesse na época da escravidão. Tem alma de
feitor.
Carlos Guerra: Oh Zé! Fala mais sobre seu amigo. Fiquei impressionado com o
desempenho dele no jogo. O homem é um ás no futebol.
Zé Maria: Chico é meu irmão. A gente já viveu muita coisa juntos nessa vida. A gente lutou
juntos na Revolta da Chibata. Ele sempre de cabeça erguida. Agora não entendi, porque
que ele se sujeitou a um papel desses. Mas é que tá, precisando de dinheiro, e fraquejou
pelo motivo que a gente sempre fraqueja, que é o que?
Carlos Guerra: Mulher!
Zé Maria: Mulher, por exemplo.
Edgar Vieira: Claro, claro!
Zé Maria: Está de namorada nova, está empolgado.
Carlos Guerra: Mas como eles chegaram a esse ponto de querer fazer ele passar por
branco.
Zé Maria: Você se surpreende realmente com isso Guerra? Futebol é esporte de rico.
Quem frequenta aquele clube lá é que nem o tal de Albertinho. Gente que foi filho de quem
foi dono de escravos. Bom, deixa eu ir que tenho encontro com anunciantes.
Carlos Guerra: Isso é importante.
Edgar Vieira: Até logo, Zé Maria.
Zé Maria: Até logo, Edgar.
Edgar Vieira: Ah, Guerra, eu estou, estou pasmo com as atitudes do Fernando, viu!
128
Carlos Guerra: Edgar, eu quero que você... Ou melhor, o Antônio Ferreira faça uma
matéria sobre isso.
A história de Chico contada na novela baseou-se em um fato real sucedido com o
jogador Carlos Alberto, nos anos 1914. Não era permitido aos negros (pretos e pardos) jogar
futebol nos Clubes da aristocracia, como o Fluminense, Flamengo, Botafogo, Bangu. Esse
esporte era marcadamente cultivado pela elite branca que frequentava esses espaços sociais
ricos e luxuosos. Para serem aceitos nesses clubes, os jogadores negros, como Carlos Aberto,
tinham que passar na pele o pó de arroz. Segundo Mario Filho (2003) era o momento que
Carlos Aberto mais receava.
[Carlos Aberto tinha] vindo do América, com os Mendonças, Marcos e Luís.
Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém
reparou que ele era mulato. Também Carlos Aberto, no América, não quis
passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em
exposição. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de
moças na arquibancada, parar um instante, levantar o braço, abrir a boca
num hip, hip, hurrah (FILHO, 2003, p. 60).
Mario Filho (2003) relata ainda que:
Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por
isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó de arroz, ficando quase
cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo
de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto
pó de arroz (FILHO, 2003, p. 60).
Nesse período inaugural do futebol brasileiro, o artifício e a estratégia de
branqueamento utilizado por Carlos Alberto não foram as únicas na história desse esporte no
Brasil. Mario Filho (2003) assinala outro caso de dissimulação e disfarce do fenótipo negro e
da identidade afro-brasileira, imposta pelo contexto racial da época, e que entrou para as
crônicas históricas do futebol. O caso de Arthur Friedenreich, jogador habilidoso, conhecido
como “Fried” ou “El Tigre”, filho de um comerciante alemão e uma lavadeira negra, que
também se passava por branco. Entretanto, conforme explica o autor, Friedenreich tinha olhos
verdes e um tom azeitonado no rosto moreno. Mas se não fosse os cabelos, podia-se passar
por branco. Assim, de acordo Filho, os cabelos de “Fried” eram fartos, mas muito duros. Ele
levava meia hora para amassar os cabelos.
129
[primeiro] untava o cabelo de brilhantina. Depois, com o pente, puxava o
cabelo para trás. O cabelo não cedendo ao pente, não se deitando na cabeça,
querendo se levantar. Friedenreich tinha de puxar o pente com força, para
trás, com a mão livre segurar o cabelo. Senão ele não ficava colado na
cabeça, como uma carapuça (FILHO, 2003, p. 61).
Para Friedenreich apenas o pente não bastava. Era preciso outras artimanhas para fazer
o cabelo assentar. Ele assim amarrava uma toalha na cabeça fazendo dela um turbante
(FILHO, 2003). Esperava por horas para que o cabelo ficasse do jeito que deseja: com aspecto
de liso. Mario Filho (2003) conta que Friedenreich era sempre o último a entrar no campo.
Não queria chamar a atenção, mas era quase impossível, porque primeiro entrava atrasado, e,
segundo, o visual de seu cabelo despertava olhares curiosos, pois parecia postiço (FILHO,
2003).
As crônicas de Mario Filho (2003), especialmente em sua obra sobre o negro no
futebol, podem parecer, em um primeiro momento, engraçadas, cômicas, mas no fundo
revelam o drama racial vivido pelos jogadores negros no Brasil no início do século XX. Mario
Filho não faz uma crítica contundente da situação racial do país. Na realidade faz apologia a
uma suposta democracia racial instalada no futebol nessa época. No entanto, Antônio Jorge
Soares (1999) faz uma crítica muito pertinente sobre a obra do jornalista pernambucano
radicado no Rio de Janeiro.
A crítica principal desse autor se refere à interpretação que muitos cientistas sociais
fazem ao estudar a origem, a história e as relações raciais no futebol brasileiro tendo como
referência incontestável a obra de Mario Filho. Soares (1999) justifica isso ao assegurar que
há um discurso politicamente correto na obra de Mário Filho, que continua sendo
reproduzido, pelo que o autor categoriza de novos narradores. Dessa maneira, eles se
respaldam em uma obra com um forte traço romântico e prosador. Pois, Mario Filho tinha
uma escrita eloquente que envolvia a todos, sobretudo ao ressaltar as qualidades e os dramas
vividos pelos negros no futebol brasileiro (SOARES, 1999). Com isso, o autor postula que a
obra de Mario Filho não seria uma fonte segura para estudar o futebol brasileiro e a
problemática racial no contexto histórico que o envolvia.
Por outro lado, o sociólogo Ronaldo Helal e o antropólogo Cesar Gordon Jr. (1999)
rebatem os argumentos de Soares, enunciando que o autor induz seus leitores, por meio de
suas concepções, a conclusões perigosas e precipitadas acerca do “O Negro no Futebol
Brasileiro” (HELAL, GORDON JR. 1999). A dupla aponta que as conclusões de Soares são,
desse modo, uma resistência ou até mesmo uma recusa de perceber a obra de Mário Filho do
ponto de vista historiográfico. Diante do que fora exposto, percebemos que a novela “Lado a
130
Lado”, mesmo sendo uma ficção, contribuiu, a exemplo da obra de Mario Filho, mas sem o
peso histórico e os detalhes desta última, com a narrativa da história do futebol e sua
assimilação pelos brasileiros. Em que inicialmente apenas a elite podia praticá-lo. Isso foi
ilustrado na novela pelos personagens Albertinho Assunção (Rafael Cardoso) e Fernando
Vieira, interpretado por Caio Blat. Na trama, ambos pertenciam à elite carioca. Wesley
Pereira Grijó (2013resume da seguinte forma o encontro do rico Albertinho Assunção e do
excelente, embora amador, jogador de futebol Chico.
Na trama, Chico era um exímio jogador de futebol, pois aprendeu quando
era marinheiro e morou na Inglaterra. Ele foi trabalhar no clube onde
Albertinho e seus amigos ricos praticavam o esporte. Ao perceber a
habilidade do empregado com a bola, Albertinho convidou-o para fazer parte
de seu time em troca de pagamento. Como negros não podiam praticar o
esporte, os outros rapazes ricos e brancos se opuseram à presença de Chico
nas competições. A solução encontrada foi passar pó de arroz no rosto do ex-
marinheiro para que assim pudesse competir junto com os atletas brancos.
Tal medida fez com que o jogador fosse alvo de preconceito pelas pessoas e
criticado por Zé Maria que pediu ao amigo que não se sujeitasse a tamanha
humilhação. (GRIJÓ, 2013, p. 12).
Essa situação exibida por meio do personagem Chico foi um episódio (que já
expusemos anteriormente com maiores detalhes) inspirado em acontecimento real ocorrido
com o jogador negro Carlos Aberto, no clube Fluminense, em que usava pó de arroz para
dissimular sua cor e entrar em campo (GRIJÓ, 2013). Mas, no caso de “Lado a Lado”, Zé
Maria tenta resgatar a dignidade do amigo interferindo na partida de futebol e procurando
retirá-lo daquela condição constrangedoramente racista. Novamente, Zé Maria aparece como
um militante negro consciente do racismo que a sociedade daquela época praticava em relação
aos negros. Afirmando assim, a identidade negra e o sentimento de pertencimento racial desse
grupo. “Lado a Lado” tratou essa questão abertamente, diferente de outras produções
novelísticas que simplesmente repetem os mesmos clichês raciais, reiterando a ideologia do
branqueamento.
Outro destaque importante da cultura e da identidade negra que “Lado a Lado”
proporcionou diz respeito às tias baianas e suas relações com a história do samba e com o
candomblé.
Em “Lado a Lado”, uma dessas tias foi protagonizada pela atriz Zezeh Barbosa. Ela
desempenhava o papel de tia Jurema, importante personagem no contexto da novela para a
manutenção da cultura afro-brasileira (GRIJÓ, 2013). Porém, é alvo de preconceito e
intolerância religiosa. No quadro 8 destacamos um diálogo que evidencia isso.
131
Quadro 8
Descrição da cena: Isabel trabalha na casa de Madame Besançon, uma senhora francesa,
que depois de um desentendimento com Isabel voltou para a França. Mas em uma das
cenas, Madame Besançon pede para Isabel se afastar de tia Jurema, por acreditar que ela
não é uma boa companhia para a moça, pois pratica bruxarias. Em uma cena exibida em
setembro de 2012, Isabel recebe aumento por trabalhar como empregada doméstica na casa
da senhora francesa e ouve as queixas dela em relação a tia Jurema.
Madame Besançon: Pronto! Conforme o combinado, está aqui com o aumento, noventa mil
reis.
Isabel: Isso é muito bom Madame. Muito obrigada!
Madame Besançon: Você merece! Olha Isabel, está uma coisinha (sic) que quero falar
para você já faz algum tempo, sabe. Aquela senhora, a sua amiga, a tal de Jurema.
Isabel: O quê que tem a tia Jurema?
Madame Besançon: Olha! Agora que nossa relação de trabalho está resolvida, eu gostaria
que você deixasse de ver aquela senhora, sabe.
Isabel: Deixar de ver a tia Jurema!? Mas por quê?
Madame Besançon: Não é uma pessoa adequada, sabe. Ela pratica certa sorcellerie aí...
Quer dizer, como é que chama isso? Bruxaria, sabe.
Isabel: Desculpe Madame. Não é bruxaria. É Candomblé, uma religião assim como a
nossa, o Catolicismo. E como toda religião merece nosso respeito.
Madame Besançon: Isabel, que tolinha você é! Comparar essa dança tribal, é assustadora,
como religião.
Isabel: Eu sou sua empregada, e tenho um imenso respeito pela senhora, mas minha vida
particular, prefiro eu mesma cuidar.
Madame Besançon: Mas eu prefiro que você tenha um conversar particular com o padre
Olegário. E, logo!
Em uma outra cena, tia Jurema é presa por causa de sua religião. No quadro 9
descrevemos esse episódio.
Quadro 9
Descrição da cena: Tia Jurema caminha pela rua com o senhor Afonso, quando de repente
132
são abordados pela polícia, que dá voz de prisão à ela. Na repartição policial, o delegado
Praxedes afirma que recebeu denúncia de que ela estaria praticando bruxaria, jogos de
adivinhação, e por isso deveria ser presa. Esta cena foi ao ar em janeiro de 2013.
Tia Jurema: Por aqui a gente chega mais rápido na Gamboa, cortar o caminho.
Afonso Nascimento: É, cortar caminho sim. Mas a gente corre o risco de esbarrar num
desses...
Polícia: A senhora está presa!
Afonso Nascimento: Que absurdo é esse?!
Polícia: Se a senhora não oferecer resistência não vai precisar ser algemada.
Tia Jurema: Deixa Afonso, deixa. Vou com eles até a delegacia. Tenho fé que tudo ficará
esclarecido. Vai ficar tudo bem.
Afonso Nascimento: Eu vou falar com Zé Maria e vou falar com Isabel. Eles vão ajudar a
resolver esta situação.
Depois dessa cena, aparece Isabel e Zé Maria conversando, enquanto ela prepara um jantar
especial que será oferecido ao filho que fora raptado quando criança. Até então eles não
sabiam da prisão de tia Jurema. Enquanto isso na delegacia, o delegado Praxedes acusa tia
Jurema de praticar feitiçaria. A cena se passa desta maneira:
Delegado Praxedes: Isso é feitiçaria!
Tia Jurema: O Candomblé é minha religião. Não tem nada a ver com feitiçaria. Eu tenho
muito orgulho na minha fé pelos orixás. Eles são a força que estão em tudo, na natureza, e
de tudo que está em nossa volta. O Candomblé, é a herança que minha gente trouxe da
África. Que não pode ser renegado e que ninguém tem direito de condenar.
Delegado Praxedes: Então a senhora confessa: os jogos de búzios, os banhos de ervas.
Tia Jurema: É a minha fé. Se me foi dado um dom, eu não posso renegar. É como se fosse a
minha força, um dom, uma benção.
Delegado Praxedes: Leva para cela, anda!
Tia Jurema: Mas estou sendo presa por quê?
Delegado Praxedes: Praticar jogos de adivinhação e magia, é contra a lei. E, não adianta
pedir clemência. A denúncia veio de um padre muito respeitado.
Tia Jurema: Eu não preciso pedir clemência porque não fiz nada de errado. O meu único
sentimento agora é de tristeza em ver tanta intolerância.
133
Tia Jurema, desse modo, encarna a figura das reais “tias baianas”, que viveram na
cidade do Rio de Janeiro no período encenado pela novela “Lado a Lado”. Ela representava,
como as reais “tias baianas”, um referencial de moralidade e de religiosidade, mantendo viva
as tradições de matriz africana, como uma genuína sacerdotisa conselheira e amiga. Além
disso, tia Jurema exercia uma força política, tal como ocorreu com as “tias” da vida real,
perante a comunidade do morro, que a respeitava como uma importante líder. Esse respeito e
poder de liderança de tia Jurema,
[ficaram evidentes] quando a polícia invadiu o morro para prendê-la e todos
os “capoeiras” do local se uniram, agrediram e expulsaram os policiais. Por
terem ligação com o samba e o candomblé, ambos proibidos naquele
momento, as casas das “tias” eram alvo de invasão da polícia que prendiam
todas as pessoas ali presentes sob o pretexto de crime de vadiagem e crime
contra a saúde pública (magia, espiritismo, cura de doenças) (GRIJÓ, 2013,
p. 11).
A historiadora Bardanachvili (2012b) revela também que, já no final do século XIX,
antes da Abolição, diversos negros da Bahia que eram alforriados ou libertos foram para o Rio
de Janeiro na esperança de melhorarem as condições de sobrevivência. Outros foram para o
Vale do Paraíba, onde a cultura do café ainda era forte. Com o colapso da cultura cafeeira e a
consolidação da Abolição, a migração de negros baianos para o Rio de Janeiro aumentou
(BARDANACHVILI, 2012b). Os que chegaram ao Rio juntaram-se aos que já estavam por lá
principalmente nas áreas próximas a zona portuária, como Gamboa, Saúde e Santo Cristo.
Muitos homens vinham procurar por trabalho nessa região, com “o bota abaixo”,
implementado pelo prefeito Pereira Passos, todos os residentes na zona portuária
compulsoriamente foram obrigados a procurar outros lugares para morarem. Estabeleceram-se
principalmente nos arredores do Campo de Santana e na Cidade Nova. Esses lugares
tornaram-se os refúgios das tias baianas (BARDANACHVILI, 2012b).
No Rio de Janeiro, uma dessas mulheres tornou-se muito conhecida e referência do
samba e do candomblé. Hilária Batista de Almeida, tia Ciata, nasceu em Santo Amaro da
Purificação, no início da segunda década do século XIX, na Bahia. Foi iniciada no candomblé
na cidade de Salvador. Depois migrou para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. A
ida de tia Ciata para o Rio se deveu, talvez, por ser lá a capital da Republica no início do
século XX com maiores oportunidades de sobrevivência.
134
A Abolição [engrossou] o fluxo de baianos para o Rio de Janeiro, liberando
os que se mantinham em Salvador em virtude de laços com escravos,
fundando-se praticamente uma pequena diáspora baiana na capital do país,
gente que terminaria por se identificar com a nova cidade onde nascem seus
descendentes, e que, naqueles tempos de transição, desempenharia notável
papel na reorganização do Rio de Janeiro popular, subalterno, em volta do
Cais e nas velhas casas no Centro (MOURA, 1995, p.61).
Esses fluxos internos em decorrência da Abolição, conforme aponta o autor, fez com
que o Rio de Janeiro crescesse rapidamente. Assim, assinala ainda o autor que: “[se] em 1890
o Rio de Janeiro tinha 522.561 habitantes, 15 anos após [...] já subira para 811.443, para
chegar ao primeiro milhão no final da Primeira Guerra Mundial, em 1917” (MOURA, 1995,
p.61). A capital da Republica vivia uma efervescência de pessoas e de culturas diferentes, pois
além do contingente de ex-escravos havia também os imigrantes europeus que por lá
aportavam (MOURA, 1995).
Era nesse ambiente social e cultural que tia Ciata se relacionava. Em “Lado a Lado”
procurou-se reproduzir de forma semelhante esse contexto histórico. Tia Jurema talvez tenha
sido inspirada justamente nessas Mães de Santos que contribuíram para a formação da cultura
popular no Rio de Janeiro, e na afirmação da religiosidade de matriz africana por meio do
candomblé.
Por exemplo, no último capítulo de “Lado a Lado”, tia Jurema realiza, depois de
encontros e desencontros, o casamento de Zé Maria e Isabel. A cerimônia é de acordo com os
ritos das religiões de matriz africana. A tia Jurema usa, nesse rito de casamento, elementos da
natureza para abençoar a união do capoeirista e da dançarina, como está descrito no quadro
10.
Quadro 10
Descrição da cena: Essa cena foi ao ar em março de 2013, na qual tia Jurema realiza o
casamento de Zé Maria e Isabel. A cerimônia é de acordo com os ritos das religiões de
matriz africana. Estão presente nessa cena, o padre Olegário, algumas personalidades da
cidade, e a comunidade do morro.
Tia Jurema: Meus amores. Eu ofereço a vocês o mel que traz a doçura. O sal, que traz a
verdade e dá sabor à vida. O azeite, que deixa a vida mais leve e fluída. E, a água limpa,
promessa de frescor e fertilidade.
Após a junção desses elementos em um pires, acompanhados com algumas folhas verdes,
Zé Maria e Isabel tocam o composto com o dedo indicador, e leva até os lábios, beijando-o.
Depois eles trocam as alianças, dizem algo um para o outro, e se beijam.
135
Isabel: Meu Zé. Meu marido para toda à vida.
Zé Maria: Minha Isabel. Minha mulher. Agora e sempre.
Geralmente, os lugares comuns no final das novelas da Rede Globo, são casamentos
celebrados em igrejas católicas, afirmando a ortodoxia cristã. “Lado a Lado” mostrou o que
seria os ritos de casamento das religiões de matriz africana, que comumente são negadas e
envoltas em muitos preconceitos.
Tia Jurema representa na ficção, a mulher negra guardiã dos saberes ancestrais, como
por exemplo, dos rituais necessários para realizar casamentos, salvaguardar os conhecimentos
míticos e os ensinamentos que devem ser repassados a gerações futuras.
Nessa perspectiva, Vanessa Soares da Silva (2010) contribui com nossas
argumentações.
As mulheres negras sempre estiveram à frente das religiões negro-brasileiras
e, com suas práticas de permanência e manutenção das tradições,
estabeleceram a integração de nossa cultura. Elas unem, ensinam, trocam,
protegem e guardam os segredos míticos. Os saberes e fazeres herdados da
diáspora tem-lhes possibilitado, nesse espaço do sagrado, assumir o poder e
a liderança frente a uma rede urbana patriarcal e machista que as alijam e as
subestimam do direito de pertença e do reconhecimento de sua influência.
Às vezes, de modo equivocado, quando olhamos à primeira vista as
mulheres negras do presente não conseguimos reconhecer as negras de
outrora, guerreiras, insubmissas, fortes e altivas. No entanto, ao chegarmos
perto vemos que essas mulheres continuam lutando e sobrevivendo a essa
ordem. A exclusão pela condição étnica e de classe fez com que essa mulher
[atualmente] esquecesse todas as estratégias que as emanciparam sem
necessariamente terem de assumir uma “consciência feminista” de padrões
herdados da cultura eurocêntrica que não foram e não são os nossos (SILVA,
2010, p. 57).
Tia Jurema, desse modo, afirma a identidade negra com sua postura altiva e repleta de
sabedoria ancestral. Essa personagem pode ter sido inspirada, além de tia Ciata, em mulheres
como tia Carmem, tia Amélia, tia Perciliana. De acordo com Rodrigo Cantos Savelli Gomes
(2010),
[essas] baianas estão entre personalidades consideradas mais importantes das
camadas populares na virada do século XX na cidade do Rio de Janeiro,
frequentemente proclamadas como ‘matriarcas do samba’, tidas como
influentes e poderosas (GOMES, 2010, p. 972).
136
O autor ainda considera que no Rio de Janeiro nesse período, nas camadas populares
especificamente, estava presente uma espécie de matriarcado regido pelas mulheres negras.
Elas assumem para si “[...] o papel central que garante a permanência das tradições africanas e
as possibilidades de sua revitalização [,] [...] como é o caso da cultura afro-brasileira [...]”
(GOMES, 2010, p. 972).
Em “Lado a Lado”, a matriarca da comunidade tia Jurema, retrata essas mulheres que
eram responsáveis pela manutenção da cultura negra, principalmente no campo religioso. As
tias Baianas seriam as responsáveis no início do século XX, por dar condições para que
houvesse uma estrutura propícia que facilitasse a execução dos ritos religiosos bem como das
festas e encontro musicais (principalmente do samba) que organizavam.
A personagem tia Jurema parece desempenhar esse papel na novela, enfatizando os
saberes e a cultura africana e afro-brasileira. Ela reforça, desse modo, a identidade negra.
Kathryn Woodward (2000) argumenta que “[...] uma das formas pelas quais as identidades
estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos”
(WOODWARD, 2000, p. 11). Assim, tias Baianas, como representada por tia Jurema,
motram-se os arautos da ancestralidade africana que a colonização europeia tentou apagar e
diminuir. Por outro lado, os africanos e seus descendentes ao procurarem reproduzir a herança
africana no Brasil buscando no passado seus antecedentes para justificar suas identidades
acabam produzindo novas identidades (WOODWARD, 2000).
A identidade é algo provisório, dinâmico, mutável. Não é fixo ou essencializado. De
acordo com Zygmunt Bauman (2005),” a identidade “[...] só nos é revelada como algo a ser
inventado, e não descoberto (BAUMAN, p. 21, 2005)”. Ela não pode ser descoberta porquê
de fato nunca existiu como uma marca evidente, por exemplo, de um determinado povo ou
etnia. Sempre foi frágil com um caráter provisório (BAUMAN, 2005).
Por estarem em um mundo totalmente adverso, talvez os africanos escravizados no
Brasil, reinventaram suas culturas ao procurar afirmar uma identidade africana corrompida
pelo escravismo. Tia Jurema, em “Lado a Lado”, não representa uma identidade africana
essencializada, mas sim o resultado da mistura, mesmo que forçada, dos colonizados e
colonizadores.
[...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado
sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em
processo’, sempre ‘sendo formada’ (HALL, p. 38, 2006).
137
Um exemplo desse processo de formação da identidade e da cultura afro-brasileira, e
que a telenovela “Lado a Lado” expos, foi o surgimento do samba. Estilo de dança e música
nascido no Brasil com forte influência da cultura africana. Mas, não se pode dizer que o
samba seria genuinamente africano. Houve um processo de hibridação, uma síntese de
elementos africanos e brasileiros que possibilitou tal nascimento. Assim, para esclarecer
melhor o conceito de hibridação, recorremos a Canclini.
As diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos
repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos
transnacionais geram novos modos de segmentação: dentro de uma
sociedade nacional, por exemplo, o México, há milhões de indígenas
mestiçados com os colonizadores brancos, mas alguns se ‘chicanizaram’ ao
viajar aos Estados Unidos; outros remodelaram seus hábitos no tocante às
ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nível educacional
e enriqueceram seu patrimônio tradicional com saberes e recursos estéticos
de vários países; outros se incorporaram a empresas coreanas ou japonesas e
fundem seu capital étnico com os conhecimentos e as disciplinas desses
sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por isso, mais do que levar-
nos a afirmar identidades autossuficientes, serve para conhecer formas de
situar-se em meio à heterogeneidade e entender como se produzem as
hibridações (CANCLINI, 2013, p. XXIII - XXIV, 2013).
A cultura afro-brasileira, desse modo, não seria apenas constituída por elementos
culturais de uma única nação africana, mas sim um híbrido de diversas culturas africanas
somadas com o caldo cultural existente no Brasil. Em “Lado a Lado” procurou-se evidenciar
essa mistura. Nas afirmações de Canclini (2013), estudar os processos de formação cultural
pode nos indicar como são produzidas as hibridações. Especialmente no caso do Brasil.
Talvez essas hibridações culturais e raciais, no decorrer da história do Brasil
contribuíram para composição do sentimento de uma identidade mestiça.
Igor Bergamo Anjos Gomes (2008) em sua dissertação de mestrado “A ameaça
simbólica das cotas raciais na mídia brasileira: o negro nas telenovelas” argumenta que esse
sentimento de brasilidade mestiça é expresso nas novelas brasileiras. Mesmo em “Lado a
Lado”, uma novela que apresentou uma forte discussão em torno da problemática racial e da
afirmação da cultura negra, o sentimento de uma brasilidade mestiça está implícito nas
principais personagens dessa telenovela. Isabel, Zé Maria, Chico e tia Jurema parecem ser no
enredo da novela, os representantes dessa mestiçagem. De fato o Brasil é mestiço. E qual
povo, comunidade ou população no globo terrestre não é mestiço?
138
Entretanto, Gomes (2008) assinala que há um ideal negativo veiculado pelas
telenovelas (“Lado a Lado” não seria diferente) de que o Brasil é uma nação mestiça, pois
assim:
[...] todos os brasileiros podem se sentir retratados nas telenovelas, não
necessitando inserir negros, e índios especificamente. Deste modo, as
telenovelas reforçam a temática da mestiçagem, legitimando a falácia de que
o Brasil é uma democracia racial, forjando a inexistência do racismo,
corroborando para a manutenção de um projeto de branqueamento
explicitado pela vigência de um paradigma de beleza branco, veiculado
como se fosse o espelho da nação (GOMES, 2008, p. 27).
Nesse sentido, “Lado a Lado” parece ter enfatizado, mesmo que sutilmente, o ideal da
democracia racial. A desigualdade existente entre negros e brancos parece surgir na trama
mais como uma questão social do que racial. Isso em uma novela que procurou trabalhar a
afirmação da cultura negra. Imagine nas outras telenovelas em que a presença do negro é
restrita a poucos personagens. Com base nisso Gomes (2008) pondera que a maior parte das
telenovelas temáticas, como por exemplo, as que tratavam da imigração europeia, como na
novela “Terra Nostra” (Rede Globo, 1999), mostra uma distorção do componente racial
brasileiro do século XIX (GOMES, 2008). Essa telenovela tratou da proletarização dos
imigrantes italianos e também destacou as condições de vida dos negros recém-libertos sem
aprofundamento. Pois, segundo o autor, dois terços da população brasileira nesse período
eram de negros. Os produtores de “Terra Nostra” parecem ter desconsiderado esse fato
(GOMES, 2008).
As telenovelas, por esse motivo, podem despertar, em sua recepção junto ao público,
esses equívocos em relação à composição racial brasileira. Dificultando a percepção do negro
como principal componente numérico da sociedade brasileira. Segundo dados do IBGE de
2010, a população que se autodeclara preta e parda (negra), corresponde a 50,7% de toda a
população brasileira, chegando a 101.923.585 habitantes. E já somos 201.032.714 habitantes
(AFROPRESS, 2013). No entanto, as telenovelas agem como se houvesse uma maioria de
brancos na população brasileira.
Em relação às novelas temáticas, especialmente aquelas que ressaltam culturas
europeias, como no caso de “Terra Nostra”, contribuem para o ideal de branqueamento. Pois,
evidenciam e valorizam a influência cultural desses povos na constituição da sociedade
brasileira. Fortalecendo a crença de que o legado cultural, social e histórico que deixaram no
Brasil, por exemplo, são maiores e mais importantes que a dos negros e dos indígenas.
139
Provavelmente essa crença ajude a robustecer o racismo estrutural existente no país,
justificando assim o porquê dos negros serem minoria no elenco das telenovelas.
Portanto, observa-se que a inserção do ator negro nas telenovelas, principalmente as da
Rede Globo de televisão, é mais frequente. No entanto, Gomes (2008) parece discordar dessa
afirmação.
A inserção dos atores negros nas telenovelas brasileiras se processa de forma
parcial e descontínua, centrada [...] em 3 estereótipos clássicos. O primeiro
está relacionado à imagem do negro passivo, focado na sexualidade (corpo)
e alegria (espírito). O segundo está relacionado com a violência,
criminalidade, revolta e marginalidade social. O terceiro e mais em voga
atualmente é o que retrata a imagem do negro enquanto um sujeito solitário,
definitivamente encaixado num ideal de branqueamento. Ou seja, nem
mesmo quando aparece como um profissional bem sucedido, ele deixa de
corroborar a imagem já estereotipada do negro passivo, cordial e
subserviente, com um perfil semelhante aos empregados domésticos e
trabalhadores braçais, reafirmando no senso comum o legado sócio-histórico
de escravidão (GOMES, 2008, p. 29).
Esta constatação de Gomes (2008) destaca os estereótipos em que os atores negros
sempre representam em telenovelas. Difícil ver nas tramas novelísticas um negro como
personagem central. Por exemplo, em “Lado a Lado” o protagonismo negro teve que ser
dividido com os protagonistas brancos: Isabel e Laura; Zé Maria e Edgar; tia Jurema e o padre
Olegário.
Para desmobilizar e desconstruir esses estereótipos dos negros na televisão e nas
telenovelas seria necessário um enfrentamento mais incisivo. Talvez isso já esteja ocorrendo
por meio das Ações Afirmativas, em que procuram possibilitar o acesso e a representação da
população negra em espaços onde ela quase completamente está ausente. Gomes (2008) nos
lembra de uma dessas ações que procurou inserir um determinado percentual de negros nos
meios de comunicação, mas que infelizmente não foi muito adiante.
[...] o Projeto de Lei encaminhado pelo Movimento pelas Reparações
(MPR), proposto pelo então Deputado Paulo Paim (PT/RS), e defendendo
uma reserva de cotas mínima de 20% para a participação de negros no
mercado audiovisual (programas de televisão, novelas, seriados e filmes) e
de 40% no mercado publicitário. O projeto foi vetado em 1998, e não foi
alvo de destaque pelos meios de comunicação (GOMES, 2008, p. 40).
Gomes (2008) pondera ainda que a Rede Globo tentou deslegitimar a política de cotas
junto à opinião pública, afirmando que não era necessária a aprovação de tal ação. “Um
exemplo disso foi o lançamento do livro de Ali Kamel (2006), que é diretor-executivo da
140
emissora, intitulado: ‘Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa
nação bicolor” (GOMES, 2008, p. 55). De acordo com Gomes (2008), no livro Ali Kamel age
como um porta voz dessa emissora de televisão, indicando supostas falhas na metodologia do
projeto de cotas, “[...] como, por exemplo, a adoção da categoria raça, para referendar o
acesso ao sistema” (GOMES, 2008, p. 55-56).
Kamel problematiza a utilização deste critério, em face de uma realidade de
miscigenação étnica da população brasileira. Nega a existência do racismo
no país e atribui às causas das desigualdades entre brancos e negros
unicamente a pobreza, que para ele atinge a todos os brasileiros, mas com
especial rebatimento sobre o segmento negro. Argumenta que o único
caminho racionalmente aceitável para equacionar esta problemática é
promover investimentos massivos na educação básica. Assim o autor insiste,
equivocadamente, na análise social e econômica das desigualdades raciais,
excluindo o enfoque preconceito/racismo, encastelando-se no entendimento
de que, em iguais condições, negros e brancos pobres ascenderão
socialmente (GOMES, 2008, p. 55).
As deduções de Kamel se coadunam com o pensamento de alguns intelectuais, como
Yvone Maggie, Peter Fry, Demetrio Magnolli, que parecem acreditar que o racismo existente
no Brasil é desencadeado pela desigualdade social, pela pobreza e a falta de oportunidade para
a população negra. Essas concepções certamente estão equivocadas. Se fosse assim, por
exemplo, atores como Zezé Mota, Milton Gonçalves, Lázaro Ramos, entre outros, estariam
fazendo papéis de maior destaque nas telenovelas, pois estes artistas têm uma formação e um
currículo invejáveis. Mesmo assim, a presença deles em atuações relevantes nas telenovelas é
diminuta.
Contra a ideologia do branqueamento, portanto, nos parece ser necessário fazer
intervenções aliadas as Ações Afirmativas. Infelizmente, os meios de comunicação de massa,
principalmente a televisão e as telenovelas, não farão essas intervenções. O propósito delas é
outro, qual seja, obter lucro. Parece-nos, que, no fundo, apenas reproduzem aquilo que as
pessoas desejariam ver nas telas de televisão, como uma espécie de espelho mágico, refletindo
a imagem embranquecida da população brasileira que ao longo da história foi sendo cooptada
e introjetada pela ideologia do branqueamento. A educação, à vista disso, seria um campo
muito importante de ação para enfrentar essa cooptação e introjeção. A filosofia e sociologia
pertencentes ao currículo do Ensino Médio, poderiam contribuir, apoiadas pela Lei
10.639/2003, na desconstrução da ideologia do branqueamento e do racismo que paira na
sociedade brasileira.
141
CAPÍTULO IV
Lei 10.639/2003
Parece-nos, nessa perspectiva, que saber em que estrutura ideológica estão respaldados
os conteúdos das novelas brasileiras podem auxiliar no desenvolvimento de uma consciência
mais crítica concernentes aos produtos audiovisuais, principalmente sobre as telenovelas. Mas
por onde começar? E, como fazer isso? Apoiado em que se poderia fomentar uma consciência
mais crítica em torno da problemática racial?
Diante dessas questões, talvez seja importante, para fomentar uma consciência crítica
em relação ao racismo e suas consequências sociais, uma educação interessada em
compreender este fenômeno e combatê-lo, sobretudo no ensino básico. À vista disso, a
educação brasileira tem a Lei 10.639/200318, que estabelece o ensino da história da África e
da cultura afro-brasileira, pois não basta apenas diagnosticar e apontar onde está o racismo,
como salientamos no caso das telenovelas. É preciso criar estratégias para desconstruí-lo. O
caminho mais eficiente, mesmo que os resultados demorem a aparecer, provavelmente seja de
fato pela educação. Uma intervenção educativa, com base na Lei 10.639/2003, contribuiria
para diminuir a força dos estereótipos em relação ao negro apresentado nas telenovelas e o
branqueamento que impera em sua estrutura.
Em conformidade com essas concepções, acreditamos que o currículo multicultural
pós-colonial, associado à Lei 10.639/2003, seria uma forma de estratégia bastante importante
de enfrentamento ao racismo. Como exemplo ilustrativo disso, sugerimos concentrar esforços
na elaboração de projetos pedagógicos de combate à discriminação racial, tendo como
perspectiva o espaço escolar e sua dinâmica. Por outro lado, não se deve perder de vista (para
não ser tomado por uma postura ingênua ou ficar desestimulado) a compreensão do espaço
escolar como algo muito complexo e contraditório. Mas, ao mesmo tempo, perceber suas
possibilidades para a transformação cultural, intelectual e ética dos estudantes. Consideramos
esta transformação provável, porque o currículo escolar é flexível, e de certo modo, no caso
brasileiro, em decorrência das Políticas de Ações Afirmativas, poderia estar relacionado a
algumas estratégias de ensino que visam à implementação e à execução das ações contra o
racismo. O desafio talvez seja elaborar um currículo que possa intervir na questão racial de
18 Está Lei foi publicada no Diário Oficial da União no dia 10 de janeiro de 2003, e se encontra publicada
também nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: DF, 2004.
142
maneira mais efetiva, visto que a própria Lei 10.639/2003, apesar de ser uma lei, não está
ainda plenamente em vigor. Um currículo pensado a partir de uma base antirracista facilitaria
o enfrentamento das ideologias discriminatórias dominantes, tais como o racismo e a
ideologia do branqueamento.
Concebemos que o espaço e o cotidiano escolar, de certa maneira, estão abertos, por
mais que estejam perpassados por uma gama de interesses e ideologias, como
posicionamentos conservadores, neoliberais, socialistas e crenças religiosas. Mesmo assim,
por meio da dinâmica e do cotidiano escolar, centrados em um currículo antirracista, é que se
teria a oportunidade de enfrentar e desmobilizar as discriminações raciais existentes na
sociedade. Nesse caso, parece-nos que seria crucial discutir estratégias de enfretamento à
discriminação racial em todos os níveis da Educação Básica, que engloba da pré-escola ao
ensino médio. A nosso ver, este último constitui uma fase importante de aprendizagem,
formação intelectual e moral dos jovens estudantes. Apesar de que o nível de ensino mais
sensível e menos rígido da estrutura do ensino básico é a educação infantil, pois as crianças
nessa fase estão mais acessíveis ao aprendizado. E, não por ser a fase melhor ou a mais fácil
para se trabalhar, mas por ser um período de socialização importante, em que a subjetividade
da criança não está cristalizada pelos valores, preconceitos e visões de mundo que
determinam sua formação intelectual e a percepção do outro. Talvez um currículo antirracista
favoreça a formação de sua personalidade em uma perspectiva de compreensão e valorização
da diferença, que pode ser adquirida e abortada justamente na interação e no contato com
outras crianças. No entanto, os jovens do ensino médio, até para prosseguir em uma educação
antirracista, precisariam manter contato com um conteúdo que aborda a problemática racial. A
sugestão que apontamos é que parte desse conteúdo poderia ser estudado pelas disciplinas de
filosofia e sociologia. Em relação a estas disciplinas, e suas possibilidades de abordagens
nesse processo, não iremos aprofundar aqui. Mas, vale a pena apontar que, esta formação
antirracista deveria inicialmente aprimorar as concepções e conhecimentos do professor que
atua no ensino básico, qualificando-o nas questões que envolvem a diferença e a problemática
racial. É necessário, então, que a primeira ação de combate ao racismo seja a formação do
professor que atua no ensino médio, principalmente nos conhecimentos que tratam da
diversidade cultural e étnica, tendo como recorte as relações raciais. Esta última deve ser
abordada na perspectiva da Lei 10.639/2003 com os estudantes desse nível educacional. Uma
dessas ações poderia ser debater sobre a questão do fenótipo. Por exemplo, mostrar aos jovens
que não há cabelo bom ou ruim, mas sim diferentes. Cada um com suas qualidades,
características e beleza. Desconstruindo, dessa maneira, o estereótipo e a hierarquização que
143
classifica e qualifica o cabelo crespo e liso, sendo que isso infelizmente está muito presente
nas telenovelas, reforçando a ideologia do branqueamento.
Há caminhos viáveis para realizar e implementar o combate à discriminação racial
utilizando os mecanismo e estratégias que o ato de educar oferece. Para tanto, se faz
necessário o estudo e o aprofundamento, especialmente da Lei 10.639/2003, pelos professores
que são diretamente envolvidos na relação ensino-aprendizagem. Esses profissionais devem
também aguçar seus olhares e sensibilidades para diagnosticar os atos de racismo e
discriminação presentes na sociedade, na mídia, nas telenovelas, para intervir de forma
significativa no enfrentamento dos preconceitos raciais que deixam marcas indeléveis em suas
vítimas.
Assim, em um país como o Brasil, de grande complexidade, com forte desigualdade
social e profundamente marcado pelo racismo, a televisão e as telenovelas seriam um reflexo
da realidade racial brasileira, em que retratam os lugares hierarquicamente ocupados por
negros e brancos na sociedade. Para minimizar os efeitos dessas desigualdades estabelecidas
pelas relações raciais, imaginamos que a escola seria um dos caminhos para enfrentar essa
problemática, sendo que a sociedade brasileira é extremamente branqueada e colonizada pelos
costumes e valores europeus. Percebe-se isso no “desdenho” pela cultura afro-brasileira e
indígena, cuja “valorização” é dada mais em épocas de carnaval, datas comemorativas e que
são ainda referenciadas de forma folclorizada nesses momentos festivos.
A cultura afro-brasileira, mesmo estando entranhada no comportamento dos brasileiros
e fazendo parte de sua identidade, quando é representada nas telenovelas, como na novela
Lado a Lado (2012), carrega ainda as marcas da ideologia do branqueamento e do mito da
democracia racial. Como a amizade de Isabel (Camila Pitanga) e Laura (Marjorie Estiano),
reforçando a ideia de que no Brasil as relações raciais entre negros e brancos seriam tranquilas
e isentas de preconceitos, dando a impressão que o principal problema brasileiro estaria
exclusivamente nas desigualdades sociais e econômicas.
Para não perpetuar essas crenças, veiculadas sobretudo pelas produções audiovisuais,
entendemos que a Lei 10.639 de 2003 (BRASIL, 2004) poderia contribuir para desmobilizar
essas ideologias raciais. Essa Lei possibilita aos professores do ensino fundamental e médio
compreenderem e conhecerem o papel da população negra, dos africanos e seus descendentes
na formação e consolidação da sociedade brasileira (EDUCAÇÃO E DIFERENÇA, 2009). A
referida Lei foi promulgada pelo ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, no dia
9 de janeiro de 2003. Ela altera a Lei 9.394 de 20 de novembro de 1996 que regula as
diretrizes e bases da educação nacional, para acrescentar no currículo oficial da educação
144
brasileira do ensino básico a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira.
(AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009; BRASIL, 2004). Esta Lei incluiu os Art. 26-A, 79-A e 79-B
na Lei 9.394. O Art. 26-A determina que os “[...] estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira” (AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009. p. 215). Nos parágrafos seguintes desse Artigo
está detalhado que:
§ 1º.O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (AÇÕES
AFIRMATIVAS, 2009. p. 215).
§ 3º. (VETADO)
O Art. 79-A foi vetado. E o Art. 79-B acrescenta no calendário escolar o dia 20 de
novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009).
Segundo Jesus (2013), “[apesar] de seu caráter sucinto (com apenas três artigos), a Lei
nº 10.639, de 2003 repercutiu de modo significativo no campo das relações étnico-raciais no
Brasil e, sobretudo, para o contexto das práticas pedagógicas escolares” (JESUS, 2013, p.
403).
Jesus (2013) destaca ainda que as atividades e as práticas pedagógicas para estabelecer
a Lei 10.639/2003 têm sido aplicadas com muitas contradições que passam pelas questões
administrativas e burocráticas e vai até as questões éticas, teóricas e metodológicas na
implementação da Lei.
A constatação de que boa parte dos trabalhos desenvolvidos nessas
instituições escolares fundamentava-se apenas, ou prioritariamente, no
conteúdo da Lei (cujo caráter sucinto não oferece orientações pedagógicas
aos educadores) coloca em risco a eficácia dessa legislação no que se refere
às modificações nos padrões de relações étnico-raciais atualmente vigentes
no país (JESUS, 2013, p. 403-404).
As atividades pedagógicas desenvolvidas nas instituições escolares para o
enfrentamento do racismo, da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial
apenas para ratificar o que já discutimos anteriormente, devem estar alicerçadas em uma boa
145
formação dos professores. Nesse sentido, a formação continuada seria um caminho viável
para aprofundar alguns conhecimentos em relação a problemática racial no Brasil e aprimorar
metodologias para se trabalhar os conteúdos da Lei 10.639/2003 em sala de aula. Em
conformidade com isso, o autor Rodrigo Ednilson de Jesus (2013) aponta que se o sistema de
ensino disponibilizar aos estudantes negros um professor bem formado e informado sobre o
racismo existente na sociedade brasileira, poderia contribuir para que os conhecimentos
aplicados em sala de aula dessem a base necessária de segurança para se orgulharem de sua
origem africana e da cultura afro-brasileira a qual pertencem. Ao mesmo tempo, para os
estudantes do seguimento racial branco sucederia um cenário favorável, desprovidos de
estereótipos, em que perceberiam “[...] as influências, [...] e a importância da história e da
cultura dos negros no seu jeito de ser, viver e [de] se relacionar com as outras pessoas,
sobretudo as negras” (JESUS, 2013, p. 404).
Infelizmente isso não está ocorrendo como imaginado. A escola tem muita resistência
em abordar a questão racial de modo aberto e esclarecedor.
[...] a escola tem sido considerada historicamente um espaço de repercussão
e reprodução do racismo. Como mostra sua história e revelam as dinâmicas
sociais produzidas nesse lócus, trata-se de uma instituição que dificilmente
consegue lidar com identidades forjadas num contexto de diversidade,
reconhecendo-as e tratando-as de forma igualitária e digna, e com saberes e
patrimônios culturais produzidos pelos grupos étnico-raciais do País
(GOMES, 2012, p. 24).
Por estar imersa em um sistema racial complexo como o do Brasil, a escola acaba
reproduzindo os estereótipos e os preconceitos que assimilou histórica e socialmente.
Kabengele Munanga (2005) acrescenta que o preconceito introjetado na mentalidade do
professor e seu despreparo profissional em trabalhar com a diversidade, mais o conteúdo
preconceituoso e estereotipado veiculado pelos materiais pedagógicos, especialmente o livro
didático, as relações de preconceito entre os alunos de ascendências étnicos-raciais diversas,
sociais, de gênero entre outras, “[...] desestimulam o aluno negro e prejudicam seu
aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do
alunado negro, comparativamente ao do alunado branco” (MUNAGNA, 2005, p. 16).
Nessa perspectiva, parece-nos que a Lei 10.639/2003 contribuiria para que os
professores discutam de maneira desmistificadora a história africana e a cultura afro-
brasileira, quase sempre ausentes do currículo escolar, repensando práticas inovadoras de
enfrentamento da questão racial. Assim, seria necessária uma formação voltada para os
146
professores, seja inicial ou continuada, em relações raciais, que favoreça a implementação de
ações efetivas na desconstrução dos estereótipos raciais vigentes.
Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da
população negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do
ponto de vista do “Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana.
Como escreveu o historiador Joseph Kizerbo, um povo sem história é como
um indivíduo sem memória, um eterno errante. Como poderia ele então
aprender com facilidade? As conseqüências (sic) de tudo isso na estrutura
psíquica dos indivíduos negros são incomensuráveis por falta de ferramentas
apropriadas (MUNAGNA, 2005, p. 16).
Não resta dúvidas de que esta Lei é aliada fundamental no enfrentamento do racismo.
Entretanto, Müller (2010) aponta que os professores, de modo geral, têm resistência em
discutir acerca dos processos de discriminação referentes aos estudantes negros. Sob o amparo
desta Lei, no entanto, os professores têm uma ferramenta substancial para ser usada no
combate aos mecanismos racistas que operam em nossa sociedade. Um deles seria o
desvelamento dos estereótipos que a televisão – e as telenovelas, de modo mais específico –
proporcionam, ao fragmentar a identidade negra no Brasil, exibindo em seus enredos o negro
sempre em posições subalternizadas.
Assim, o professor ao trabalhar a Lei 10.639/2003 junto a seus estudantes
possibilitaria que eles visualizassem a situação de preconceito racial na qual estão todos
imersos. Infelizmente, de acordo com nossas percepções, o brasileiro geralmente não tem
consciência da problemática racial em que está inserido há muito tempo. Desse modo, a
televisão e as novelas apenas refletem aquilo que a sociedade ainda carrega como marca de
sua formação social, histórica e ideológica.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O racismo no Brasil está tão presente nas relações sociais que as pessoas quase não o
percebem. Em decorrência disso, acabam aceitando como normal, relacionar, por exemplo,
pobreza à população negra, bandido aos negros, feiura aos negros, trabalho pesado e pouca
formação educacional aos negros, energia sexual potente e bom desempenho no esporte aos
negros. Certamente, no fundo, são esses os estereótipos que compõem o imaginário sobre os
negros que a televisão em geral reforça por meio de sua programação. De acordo com nossas
concepções, isso está difundido especialmente por meio das telenovelas. Transmitindo, assim,
esses estereótipos, ao insinuar, pela forte exposição e ênfase dada a estética branca, que esta
seria a única com as qualidades e virtudes dignas de serem valorizadas e imitadas por todas as
pessoas, independentemente da filiação racial. Assim, buscamos por meio desta pesquisa
refletir, com base em uma análise empírica da novela “Lado a Lado”, sobre como as
telenovelas exerceriam uma função de espelho da sociedade, abastecidas pelo pensamento
social e racialmente estabelecidos, sendo que, os estudos e as análises que realizamos,
apontaram que as novelas expressariam, mesmo que não de forma totalizante, o pensamento
social, os preconceitos, as discriminações e principalmente os estereótipos em relação aos
negros.
Por outro lado, as telenovelas isoladamente, como já foi argumentado anteriormente,
não teriam força e muito menos capacidade de influenciarem, ou mesmo determinarem, as
relações raciais existentes no Brasil. Mas, mesmo assim, seria interessante acentuar que os
autores e os produtores desse principal produto da indústria cultural brasileira, parecem
inspirar-se nos temas e dramas reais do cotidiano para que as novelas sejam aceitas, obtendo
uma boa audiência junto ao público telespectador. Diante disso, a impressão que obtivemos
por meio deste estudo, é que os autores e os produtores dessas telenovelas talvez “prefiram”
contar mais as histórias das personagens brancas do que das negras, ao recortar o cotidiano da
realidade brasileira, para ser retratado na ficção.
Nesta perspectiva, o racismo brasileiro acaba tornando-se mais exposto, quando nas
novelas não têm muita visibilidade e destaque às personagens negras, não apenas no que diz
respeito a uma participação mais protagonista dessa categoria racial, mas, sobretudo, referente
ao diminuto número de negros escalados no próprio elenco dessas telenovelas, como
procuramos evidenciar no capítulo III.
Diante dessa pouca presença negra nas novelas brasileiras, podemos supor que os
telespectadores de outros países, para onde essas novelas são exportadas, principalmente as da
148
Rede Globo, talvez fiquem com a impressão de que no Brasil a população existente seria
formada por uma maioria branca. Ou também fazer com que acreditem que no Brasil não
haveria problemas raciais, e que há uma harmoniosa democracia racial imperando nas
diversas relações sociais do dia a dia brasileiro. Provavelmente, seja um pouco disso que as
novelas transmitam implicitamente em seu conteúdo sobre a sociedade brasileira,
demonstrando como está organizada, ao situar, por meio da ficção, as relações raciais e sua
estrutura hierárquica.
Com isso, compreendemos que os produtos audiovisuais embranquecidos
desencadeariam uma fragilização na identidade negra brasileira ao ser enfatizado nas
telenovelas mais o seguimento racial branco e seus valores. Sugerindo que seriam os únicos
símbolos da perfeição moral e estética. Isso é uma forma de imperialismo.
Desse modo, durante a pesquisa, buscamos ressaltar que as telenovelas,
provavelmente, tornam um pouco mais frágil a identidade negra ao limitar a participação e o
protagonismo dos atores negros no conjunto do elenco das novelas exibidas a milhões de
telespectadores no Brasil.
Nesta pesquisa, discutimos que a ideologia do branqueamento também está associada
a uma persistente etiqueta racial. Embora não tenhamos aprofundado este ponto, até porque
não era o foco principal de nossos estudos, ela indica que o negro é sempre branqueado ao ser
rotulado de “bom caráter”, de “trabalhador” e de “honesto”, quando escapam aos estereótipos
negativos vinculados à sua imagem. As telenovelas, nesse sentido, parecem realizar com
eficiência e competência essa rotulação, pois difundem, ideologicamente em seus conteúdos,
o esforço pessoal e meritocrático como justificativas de progresso e crescimento pessoal das
personagens negras, sem considerar o espaço sócio-histórico-racial, no qual estão inseridas.
Com base nisso, talvez fique a impressão, criada a partir da trama novelística que as
conquistas e a prosperidade de alguma personagem negra aconteceram de maneira natural e
mediante seu próprio esforço, já que em nosso entendimento, as telenovelas negam os
entraves provocados pelo preconceito racial e pelo racismo no qual a personagem negra
poderia ter sido vítima, se fosse realmente inspirada na vida real, e que sucederam em seu
percurso até chegar ao patamar de destaque e êxito profissional, econômico ou cultural, em
sua posição no enredo da novela.
Nesse caso, pode ser que ao configurar a personagem negra, as novelas insinuem
ideologicamente, que não haveria problemas raciais no Brasil, enfatizando, por exemplo,
como o negro se relacionaria bem com o branco, sendo-lhe submisso, por meio da
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representação do empregado dócil, do amigo sempre fiel e bom conselheiro, e do protetor que
está sempre atento.
Percebemos em nossos estudos, que as telenovelas brasileiras constituem um novo
mecanismo de difusão do branqueamento. Este último surgiu inicialmente como uma teoria, e,
quase ao mesmo tempo, se converteu numa ideologia, que impregnou a sociedade brasileira
desde o final do século XIX e início do século XX. Na realidade brasileira atual, a ideologia
do branqueamento parece estar inserida na televisão, especialmente nas telenovelas que, ao
negar a participação do negro na sua programação de forma mais atuante, impossibilita uma
visão afirmativa da população negra em relação ao seu pertencimento racial. De outro modo,
ela fragmenta uma percepção mais nítida da composição social e racial da sociedade
brasileira. Assim, tanto a televisão quanto as telenovelas, agem de forma conservadora na
manutenção do status quo existente em relação à questão racial no Brasil, fazendo acreditar
que haveria uma democracia racial no país, pois, ao longo da história, o mito da democracia
racial se manteve como uma estratégia sempre usada pela elite dominante, para afirmar que
no Brasil as relações raciais seriam harmoniosas.
A concepção de mito está relacionada à narrativa da origem das coisas, bem como da
fixação de ideias e da explicação do mundo real, e no caso do mito da democracia racial
serviria como mecanismo de sustentação dos privilégios das elites dominantes no decorrer da
história do Brasil, sendo que o mito da democracia racial, o ideário do branqueamento e a
etiqueta racial são ideologias veiculadas e validadas pelo aparato audiovisual, que têm nas
telenovelas brasileiras um campo propício para a sua continuidade. Compreendemos, de
acordo com isso, que as telenovelas carregam simbolicamente a estruturação de como está
organizada a sociedade brasileira, com suas hierarquias e exclusões.
Assim, o branqueamento está presente no enredo televisivo como uma espécie de
norma padrão. Entretanto, há que se considerar, nesse aspecto, alguns avanços na questão
racial. Mas, apesar disso, as telenovelas prefiguram insinuar ainda o desejo e o ideário de que
a nação brasileira deveria ser efetivamente branca, ou, no mínimo, aparentar ser mais branca.
As telenovelas realizam muito bem esse jogo de aparência ao exibirem (como já
exposto em outras partes desse estudo), no conjunto de seu elenco, mais de 70% de atores
brancos.
Cabe, portanto, também à educação, por meio do ensino básico, recorrendo, como
mencionado, a Lei 10.639/2003, realizar o enfrentamento da problemática racial para que haja
uma transformação desse quadro que ainda, infelizmente, mostra como a sociedade brasileira
está racialmente organizada, pois, o racismo está tão presente na dinâmica social brasileira, de
150
forma tão profunda e imersa nas relações sociais do cotidiano, que se tornou transparente.
Consequentemente, muitas pessoas acabam não o percebendo, e negam veementemente a sua
existência, afirmando que é coisa da cabeça dos negros e de alguns estudiosos que se
debruçam no estudo da problemática racial. O brasileiro é míope em relação ao racismo
praticado no país. Talvez, isso seja os efeitos do mito da democracia racial, que está
internalizada no subconsciente das pessoas, e da ideologia do branqueamento que nos
acostumou a ver o branco e as referências estéticas desse grupo como sendo a normalidade
exigida.
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