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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA
GESLANE FIGUEIREDO DA SILVA SANTANA
PIERRE BOUTROUX E A REVOLUÇÃO NA MATEMÁTICA MODERNA
CUIABÁ
2011
GESLANE FIGUEIREDO DA SILVA SANTANA
PIERRE BOUTROUX E A REVOLUÇÃO NA MATEMÁTICA MODERNA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Instituto de
Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE EM EDUCAÇÃO,
Área de Concentração: Teorias e Práticas
Pedagógicas da Educação Escolar, Linha de
Pesquisa Educação em Ciências e Matemática,
sob orientação do Professor Dr. MICHAEL
FRIEDRICH OTTE.
CUIABÁ
2011
GESLANE FIGUEIREDO DA SILVA SANTANA
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profa. Dra. Tânia Maria Mendonça Campos
Examinadora Externa (UNIBAN)
_______________________________________________
Profa. Dra. Gladys Denise Wielewski
Examinadora Interna (UFMT)
_______________________________________________
Prof. Dr. Michael Friedrich Otte
Orientador (UFMT)
DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT
Ao meu esposo, minha família e meu
orientador, sem eles nada disso seria possível.
AGRADECIMENTOS
Ao meu Deus, pai obrigado por soprar em meu jardim e por tudo
mais.
Ao Professor Dr. Michael Otte, por compartilhar o seu mundo
comigo, por todos os ensinamentos, pelo entusiasmo e paixão em
relação ao nosso trabalho, pelo carinho e por todos os bombons.
À Professora Dra. Tânia Campos, por atender ao convite para
participar da Banca Examinadora.
À Professora Dra. Gladys Wielewski, pelo acompanhamento e
orientação.
À Professora Dra. Luzia Palaro, pelo incentivo e orientação antes e
durante o curso de mestrado.
Aos Professores Me. Vinícius, Dra. Andréia, Dr. Sérgio, Dra. Marta,
pelas discussões, pelos livros e pela amizade.
Aos Professores Dr. Geraldo e Dr. Igor, pela ajuda para o meu
ingresso no curso de mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT, e em
particular a Mariana, Luíza e Jeison.
À CAPES, pela bolsa, sem a qual seria difícil a realização desta
investigação.
Aos colegas de mestrado: Izolda, Eliana, Kécio, Gilvane, Vanessa,
Edna, Aparecida, Izabel, Leonardo, Daltron, Adriani e Aparecido,
pela amizade, carinho e ajuda com artigos e burocracias do
programa.
Aos colegas do doutorado: Demilson, Alexandre, Raul e Humberto,
pelas correções e discussões que foram de fundamental importância
para a conclusão desta dissertação, em especial ao Demilson e
Alexandre pela amizade.
À toda a minha família e amigos, e em particular a Angelita (tia),
Gilberto (tio), Lerice (avó), Jaime (avó), Nair (tia), Fátima (tia),
Daniel (tio), Sandra (amiga), Damaris (amiga), que mesmo estando
longe não deixaram de me ajudar.
Aos meus irmãos em Cristo, Vital e Maria, por todo carinho. .
À Juslei e Elenilson (meus maninhos) Adriely e Greyson (meus filhos
do coração) pelo apoio e visitas nos momentos em que eu precisava
de um descanso.
Aos meus queridos pais, Nildo e Lindinalva, pela amizade, amor e
por minha formação.
Ao meu amado esposo, Jackson, pelo amor, amizade e encorajamento
ajudando-me a chegar até aqui.
A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para que
este trabalho se tornasse realidade.
Meu carinho
A Autora
Para aprofundar os conceitos matemáticos, assim como para
estudar os problemas da vida, é necessário que o espírito se
violente, é necessário fazê-lo, querendo ou não, entrar em um
molde, que não é feito para receber uma realidade refratária.
Pierre Boutroux.
O fato matemático é independente do vestuário lógico ou algébrico
sobre o qual nós procuramos representá-lo. De fato, a ideia que
temos é mais rica e mais plena que todas as definições que
podemos dar, que todas as formas ou combinações de signos ou de
proposições pelas quais nos é possível exprimi-la.
Pierre Boutroux.
RESUMO
A revolução na Matemática Moderna foi apresentada e analisada, por Pierre Boutroux (1880-
1922), de forma peculiar, em sua obra escrita em 1920, o L'idéal scientifique des
mathématiciens: dans l'antiquité et dans le temps modernes. O matemático Pierre Boutroux
foi filósofo e historiador da Matemática, ele nasceu na França e era filho do filósofo Émile
Boutroux (1845-1921), e ainda sobrinho de Jules Henri Poincaré (1854-1912), um importante
filósofo, matemático e físico francês. É importante destacar que os escritos de Boutroux
seguiram as ideias de Poincaré. Nosso principal objetivo, nesta dissertação, é estudar o
referido livro de Boutroux, que não possui tradução na língua portuguesa, e extrair deste,
importantes contribuições para a Educação Matemática, além de estudar um relevante período
da história e filosofia da Matemática, situado no início do século XX, no qual tem-se o
princípio da evolução da Matemática Moderna. Em sua obra, Boutroux, conta a história da
Matemática não se preocupando apenas com a vida e obra dos matemáticos ou somente em
contextualiza-lá na história da humanidade, mas descreve esta história delineando quais
pensamentos e correntes filosóficas moveram as pesquisas dos matemáticos em cada época.
Desta forma, o autor se propõe a escrever sobre a evolução dos conceitos e ideias ao longo da
história da Matemática. O seu trabalho se torna muito rico, porque faz o leitor meditar acerca
da evolução dos conceitos matemáticos o levando a refletir sobre as práticas do professor em
sala de aula e ainda o impelindo a pensar a respeito do processo de formação do
conhecimento. Em 1908, Boutroux iniciou sua carreira de professor e quando escreveu seu
livro, também estava preocupado com a Educação Matemática e os desafios que o professor
encontrava para ensinar. O autor divide a História da Matemática em períodos e os classifica
entre sintético e analítico. Historicamente a discussão sobre analítico e sintético é bem antiga,
pois está ligada à formação do conhecimento, ela se encontra até mesmo nos escritos de
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). No século XVIII esta discussão recebeu atenção especial na
Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant (1724-1804), que classificou o conhecimento
matemático como sintético a priori. Boutroux, de certa forma, concorda com Kant, pois
afirma que até no século XIX a pesquisa Matemática era sintética. Ocorre então uma
revolução e ruptura, na qual a Matemática, enquanto pesquisa, torna-se analítica. O fio
condutor para este acontecimento foi o conceito de função. Até o fim do século XVIII, vários
tipos de funções matemáticas foram estudas e usadas para as construções de teorias da física e
da química. Mas ainda não existia um conceito geral que explicasse o que era uma função
matemática. Durante o século XIX a Matemática do ensino superior evoluiu tendo como fio
condutor o desenvolvimento do conceito da função e pelas mãos de matemáticos como
Fourier (1772-1837), Cauchy (1789-1857), Riemann (1826-1866), Borel (1871-1956),
Lebesgue (1875-1941), Poincaré (1854-1912) e outros. No início do século XX a reforma da
didática da Matemática idealizada por Felix Klein (1849-1925), teve como slogan o conceito
de função. Deste modo, a definição do conceito de função que até hoje gera dificuldades, foi
vista como solução para a Educação Matemática no século XX. Boutroux acreditava que,
diferentemente da pesquisa, o ensino da Matemática no século XX ainda era sintético e
deveria torna-se analítico. Com esse estudo espera-se contribuir com a Educação Matemática.
Palavras-chave: História da Matemática. Filosofia da Matemática. Epistemologia. História
da Educação. História do conceito de função matemática.
ABSTRACT
The profound revolution in Modern Mathematics which began around 1800 was presented
and analyzed by Pierre Boutroux (1880-1922), in a peculiar way, in his work written in 1920,
L'idéal scientifique des mathématiciens: dans l'Antiquité et dans le temps modernes. The
mathematician Pierre Boutroux was also a philosopher and historian of Mathematics. He was
born in France as the son of the philosopher Émile Boutroux (1845-1921), and the sister of
Jules Henri Poincaré (1854-1912). The writings of Boutroux followed the ideas of Poincaré,
which is important to note. Our main objective in this dissertation is to study Boutroux book,
which has no translation in Portuguese, and draw from this, important contributions to
Mathematics Education, in addition to studying a relevant period of history and philosophy of
mathematics. In his work, Boutroux, tells the story of mathematics but not concerned only
with the life and work of mathematicians or just contextualizes the history of humanity there,
but describes this history outlining what thoughts and philosophical currents moved the
research of mathematicians at particular period . Thus, the author outlines the evolution of
mathematical concepts and ideas throughout the history of Mathematics. His work is very
rich, because the reader think about the evolution of the leading mathematical concepts, and
to reflect on the practices of the teacher in the classroom and still takes to think about the
process of knowledge formation. In 1908, Boutroux began his teaching career and when he
wrote his book, was also concerned with Mathematics Education and the challenges that
teachers. The author divides the history of Mathematics in periods confronted according to the
analytic/synthetic distinction. Historically the discussion thus distinction is very old, it relates
to the generation of knowledge, it is even to be found in the writings of Aristotle (384 BC-322
BC). In the eighteenth century this thread has received special attention in the Critique of Pure
Reason by Immanuel Kant (1724-1804), who classified mathematical knowledge as synthetic
a priori. Boutroux somewhat agrees with Kant, because he says that even in the nineteenth
century Mathematics was synthetic research. Then there occurred a revolution and disruption,
in which Mathematics became analytical. The common thread for understanding this event
was the concept of function. Until the late eighteenth century, various types of mathematical
functions were studied and used for the construction of theories of physics and chemistry. But
there was still no general distinction and concept nobody lonew to explain what a
mathematical function is. During the nineteenth century Mathematics in higher education has
evolved as if guided by the development of the concept in function in the hands of
mathematicians such as Fourier (1772-1837), Cauchy (1789-1857), Riemann (1826-1866),
Borel (1871-1956), Lebesgue (1875-1941), Poincare (1854-1912) and others. Felix Klein
(1849-1925) reform of Mathematics Education was organized around thus concept of
function. Thus, the definition of function that creates difficulties today, was seen as a solution
for Mathematics Education in the early twentieth century. Boutroux believed that unlike
research, the teaching of Mathematics in the twentieth century was still synthetic and should
become analytical. With this study we hope to contribute to Mathematics Education.
Key-words: History of Mathematics. Philosophy of Mathematical. Epistemology. History of
Education. History of the concept of Mathematical function.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
CAPÍTULO I ....................................................................................................................... 18
O LEGADO DE BOUTROUX: O IDEAL CIENTÍFICO DOS MATEMÁTICOS .................. 18
1.1 BIOGRAFIA DE PIERRE BOUTROUX ............................................................... 18
1.2 PANORAMA DO LIVRO: O IDEAL CIENTÍFICO DOS MATEMÁTICOS........ 20
1.3 A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E AS GRANDES CORRENTES DO
PENSAMENTO MATEMÁTICO .................................................................................... 22
1.4 A CONCEPÇÃO HELÊNICA DOS MATEMÁTICOS ......................................... 25
1.5 A CONCEPÇÃO SINTÉTICA DOS MATEMÁTICOS......................................... 27
1.6 O APOGEU E O DECLÍNIO DA CONCEPÇÃO SINTÉTICA ............................. 29
1.7 O PONTO DE VISTA DA ANÁLISE MODERNA ............................................... 32
CAPÍTULO II ...................................................................................................................... 63
BOUTROUX: O HOMEM E A CIÊNCIA EM SUA ÉPOCA .............................................. 63
2.1 A CIÊNCIA NA ÉPOCA DE PIERRE BOUTROUX (1880-1922) ........................ 63
2.2 O PRINCÍPIO DE CONTINUIDADE E O PROBLEMA DA GENERALIZAÇÃO
NA CIÊNCIA DA MODERNIDADE............................................................................... 65
2.3 A DISTINÇÃO ENTRE O PROCESSO ANALÍTICO E SINTÉTICO NA
FORMAÇÃO DO CONHECIMENTO FUNDAMENTADA POR KANT ....................... 73
2.4 A DISTINÇÃO ENTRE ANALÍTICO E SINTÉTICO NA MATEMÁTICA
MODERNA SEGUNDO BOUTROUX ............................................................................ 80
CAPÍTULO III .................................................................................................................... 83
A EDUCAÇÃO E A TRANSFORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO
SÉCULO XIX...................................................................................................................... 83
3.1 INTRODUÇÃO: FATOS QUE EVIDENCIAM A REVOLUÇÃO E A RUPTURA
NA MATEMÁTICA ALTERCADA POR BOUTROUX ................................................. 83
3.2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A EDUCAÇÃO ............................................. 84
3.3 HUMBOLDT (1767-1845): A UNIÃO DA PESQUISA E DO ENSINO NA
ALEMANHA ................................................................................................................... 86
3.4 GERSTELL: A GRANDE EXPLOSÃO NA PRODUÇÃO MATEMÁTICA NA
ALEMANHA ................................................................................................................... 88
3.5 DIRICHLET (1805-1859): O PENSAMENTO CONCEITUAL NA MATEMÁTICA90
3.6 FELIX KLEIN (1849-1925): A DISCUSSÃO ENTRE MATEMÁTICA PURA E
APLICADA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA ALEMANHA ................................ 91
3.7 DURKHEIM (1858-1917): O PROBLEMA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
SE TORNA A LUPA CENTRAL DO CONHECIMENTO .............................................. 95
CAPÍTULO IV .................................................................................................................... 98
A HISTÓRIA DA ANÁLISE NO SÉCULO XIX COMO HISTÓRIA DO
DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE FUNÇÃO MATEMÁTICA ............................... 98
4.1 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DO TERMO FUNÇÃO NOS DIAS ATUAIS ....... 98
4.2 HISTÓRIA DA FUNÇÃO DE LEIBNIZ ATÉ EULER: O PERÍODO DA
DICOTOMIA ................................................................................................................. 100
4.3 A TRANSFORMAÇÃO DE IDEIA DA FUNÇÃO DURANTE O SÉCULO XIX102
4.4 A TEORIA DA INTEGRAÇÃO DE CAUCHY E RIEMANN À LEBESGUE .... 108
CONSIDERAÇÕES .......................................................................................................... 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 119
12
INTRODUÇÃO
Pierre Boutroux (1880-1922) em sua obra L’Idéal sientífique des mathématiciens:
dans l’antiquité et dans les temps modernes, escrita em 1920, discorre sobre a natureza da
Matemática Moderna, de forma simultânea, em termos matemáticos, históricos e
epistemológicos. Seu trabalho, neste sentido, é uma preciosidade rara e desconsidera que no
século XVII houve uma grande revolução científica na Matemática.
Boutroux olha para Platão, Euclides, Newton, Leibniz e Descartes e afirma que eles,
em suas pesquisas matemáticas trabalharam utilizando a mesma visão da Matemática e o
mesmo método, e ainda mais, ele classifica o método destes matemáticos como sintético, ou
seja, sua perspectiva sobre a distinção entre analítico e sintético é epistemológica e não
fundamentalista ou ontológica. Leibniz, por exemplo, caracterizou as proposições
matemáticas como verdadeiras em todos os mundos possíveis e disso concluiu que a
matemática pura é analítica, ou seja, ele fez uma caracterização ontológica e não
epistemológica. Boutroux, assim como Kant e alguns lógicos modernos como Frege e Peirce,
adotou uma perspectiva epistemológica e concluiu que toda a Matemática antes de 1800 foi
sintética.
Pierre Boutroux não tem por propósito apenas narrar a história da Matemática ou
destacar acontecimentos e relatos sobre a vida e as obras dos matemáticos e também não
conta esta história procurando associá-la apenas ao contexto histórico. Mas intenta
desenvolver um livro sobre a história e filosofia da Matemática, quer descobrir quais ideias,
pensamentos e correntes filosóficas impulsionaram os matemáticos a realizarem suas
pesquisas.
Professor, matemático, historiador e filósofo francês intuicionista, esse foi Boutroux,
filho do filósofo Émile Boutroux (1845-1921) e sobrinho de Jules Henri Poincaré (1854-
1912) que foi um importante matemático, físico e filósofo intuicionista. Boutroux iniciou seu
trabalho como professor em 1908 em Poitiers, também trabalhou na Universidade de
Montpellier, Universidade de Nancy em Princeton nos Estados Unidos e no Collège de
France.
O período no qual Boutroux está inserido, na virada do século XIX para o século XX,
é marcado por uma enorme produção na Matemática. Neste tempo iniciaram-se os congressos
13
matemáticos internacionais que procuravam discutir assuntos relacionados à Matemática
enquanto pesquisa e ensino.
A Revolução Industrial gera a necessidade de uma grande demanda de profissionais
qualificados em Matemática (engenheiros e matemáticos) com isto iniciou-se um crescimento
enorme de atividades matemáticas nas universidades e nas escolas politécnicas.
Com a Revolução Industrial, grandes massas são atraídas para as áreas urbanas e aos
poucos se torna prioridade que estas pessoas recebam alguma instrução para saberem
manusear as máquinas etc. Um tempo mais e germinam os primeiros movimentos para que
todos recebessem educação, especialmente as classes mais baixas, e ainda, que esta educação
fosse de responsabilidade do estado e gratuita.
O objetivo desta pesquisa, é estudar a revolução na Matemática Moderna altercada por
Pierre Boutroux em sua obra L’Idéal sientífique des mathématiciens: dans l’antiquité et dans
les temps modernes, escrita em 1920.
Neste âmbito os problemas que nos desafiam são: Quais são as contribuições de Pierre
Boutroux para a compreensão da evolução da Matemática fundamentada no final do século
XIX e início do século XX? Por que Boutroux afirma que houve uma revolução e ruptura na
Matemática no início do século XIX?
A presente dissertação está dividida em quatro capítulos, os quais são apresentados a
seguir por meio de um breve resumo.
O capítulo I intitulado O legado de Boutroux: o ideal científico dos matemáticos,
procura apresentar Pierre Boutroux e a sua obra ao leitor, para tanto, é mencionado um
pequeno resumo da biografia de Boutroux.
Para estudar sua obra e entender seus principais anseios e expectativas, apresenta-se
um resumo de sua introdução A história das ciências e as grandes correntes do pensamento
matemático, onde Boutroux esclarece que seu objetivo é estudar as grandes correntes que
influenciaram os matemáticos de cada época.
O autor divide seu trabalho em cinco capítulos. Esta pesquisa apresenta uma resenha
dos capítulos I, II e III, pois são relevantes para a compreensão do quarto capítulo que
constitui-se o foco principal deste estudo. Quanto ao quinto capítulo, sua essência encontra-se
no desenvolvimento de toda a dissertação. E devido à importância do trabalho de Boutroux e
seu fascinante desenvolvimento das ideias, apresenta-se a tradução integral do capítulo IV O
ponto de vista da Análise moderna, sem cortes, sem comentários, simplesmente em sua
integra, proporcionando ao ledor a oportunidade de viajar durante a sua leitura, de forma que
14
o mesmo não venha se prender apenas às considerações redigidas nesta dissertação, mas que
possa ampliar sua visão em relação à tese de Boutroux.
No primeiro capítulo A concepção helênica dos matemáticos, Boutroux, discorreu
sobre os pensadores gregos como Platão, Aristóteles e Euclides, e classificou a Matemática
produzida por eles, como sendo sintética e ainda assegurou que havia uma harmonia pré-
estabelecida entre o objeto e o método.
No seu segundo capítulo A concepção sintética dos matemáticos, ele destaca Newton,
Leibniz e Descartes (1596-1650), considerando-os como matemáticos que desenvolveram um
cálculo e uma álgebra sintética. Para Boutroux os três trabalharam usando o mesmo método, o
sintético.
No terceiro capítulo O apogeu e o declínio da concepção sintética, Boutroux afirma
que quando os métodos algébrico-lógicos já não conseguiam explicar tudo, então surgiram os
limites dos métodos que dominaram a Matemática até o final do século XVIII. O grande
problema apareceu no momento em que os pensadores começaram a compreender que os
conceitos matemáticos são essencialmente indeterminados ou vagos e por consequência se
encontram em oposição aos conceitos da lógica e da álgebra.
Então ficou claro que não existia um sistema de conceitos elementares e bem
determinados que pudesse integrar todos os conceitos possíveis, de tal forma que fosse
concebível sempre combiná-los de modo a torná-los cada vez mais complexos, como até
então os matemáticos haviam trabalhado.
Finalmente o mais importante é o quarto capítulo O ponto de vista da Análise
moderna. Neste, Boutroux relatou sobre a evolução da Matemática Moderna no início do
século XIX, onde ocorre uma revolução e ruptura na Matemática que deixa de ser sintética e
torna-se analítica. O objetivo dos matemáticos passa a ser aprender e forçar um objeto que lhe
resiste como, por exemplo, um problema que aparentemente não tem solução. Assim, não se
buscava fazer um trabalho belo, mas somente chegar a um resultado desejado, empregando
para isso os meios e os artifícios mais variados. A pesquisa científica não era como outrora
apenas consequência de uma contemplação passiva, mas era uma indústria ativa que utilizava
todos os processos gerados pelos progressos dos métodos algébricos e lógicos que se
colocavam a disposição dos matemáticos ela ainda ganhava inspiração dos novos campos de
matematização como o eletromagnetismo e a termodinâmica.
No Capítulo II, desta dissertação, denominado Boutroux: o homem na sua época, o
foco não é apenas oferecer o contexto do desenvolvimento da ciência até a época de
Boutroux, o texto diz muito mais e procura relembrar as turbulências do princípio da
15
continuidade entre o racionalista Leibniz e o empirista Hume, porém estes fatos são escritos
baseando-se nos comentários do filósofo Cassirer.
Desde a época de Leibniz, Hume, Kant, uma pergunta que já inquietava era: como o
homem aprende? E para fundamentar esta discussão apresenta-se também, nesta dissertação,
as contribuições de Kant, que na verdade foi a confluência entre racionalistas e empiristas.
Kant afirmava que o conhecimento não se desenvolve apenas do modo como os racionalistas
e os empiristas pregavam, mas ele acreditava que o conhecimento tem duas fontes, a saber,
intuições e conceitos.
Seguindo esta trajetória histórica, que obviamente não ocorreu de forma linear, os
modernos continuaram esta discussão, contudo a pergunta foi: como ocorre a generalização na
ciência? Então se desenvolve neste trabalho o enredo desta indagação com as contribuições de
Piaget e do intuicionista Poincaré, o tio de Boutroux. Destaca-se nesta discussão a doutrina
intuicionista, corrente que emergiu da obra A Crítica da razão pura de Kant, e na qual
Boutroux está inserido.
Boutroux afirma que no final do século XIX ocorreu uma ruptura na pesquisa
matemática, antes ela era totalmente sintética e após se torna analítica. Mas os métodos
analítico e sintético, ao longo da história, já ganharam muitas definições, porém as grandes
discussões foram desencadeadas por Kant, por isso, veio a importância de escrever sobre a
distinção entre analítico e sintético fundamentada por Kant, para somente depois discorrer
sobre a distinção entre analítico e sintético definida por Boutroux, encerrando assim o
capítulo II.
O Capítulo III A Educação e a transformação da Matemática no século XIX, percorre
pelo contexto da educação no século XIX na França e Alemanha, partindo da Revolução
Industrial e suas consequências para a Educação. Na Alemanha o ministro da educação
Humboldt (1767-1845) iniciou um projeto procurando unir pesquisa e ensino, ele foi
impulsionado pelo movimento da Revolução Francesa. A partir de então são instaladas mais
universidades, o que gerou uma explosão de matemáticos na Alemanha. Gerstell escreveu um
artigo intitulado A grande explosão na produção matemática na Alemanha, onde destacou o
grande número de matemáticos neste período comparado ao pequeno número em outros
tempos anteriores.
Destaca-se ainda o desenvolvimento do pensamento conceitual na Matemática e o
matemático alemão Dirichlet (1805-1859) que trouxe valiosas contribuições neste sentido.
16
Na Matemática o pensamento conceitual substituía cálculos cegos, como indicava
Boutroux, sinalizando a importância da intuição intelectual e a preocupação com os conceitos
da Matemática.
Felix Klein (1849-1925) iniciou a discussão entre a matemática pura e a aplicada na
Educação Matemática na Alemanha. Seu objetivo foi realizar uma reforma na educação da
Alemanha, ele trabalhou intensamente com propostas que tratavam da mudança do ensino
secundário para o superior, tendo como slogan o conceito de função.
A revolução da Matemática, que ocorreu no século XIX, registrada por Boutroux, é
perceptível também na sociedade em geral. Nos escritos do sociólogo Émile Durkheim, o
homem no século XIX deixa de ser o centro da Educação e as grandes preocupações da
ciência passaram a estar inseridas dentro do próprio ensino e do conhecimento.
No Capítulo IV, A história da Análise no século XIX como história do
desenvolvimento da noção de função matemática, destaca-se a importância do conceito de
função. Para Boutroux o conceito de função matemática é “um dos mais importantes
conceitos da análise moderna” (BOUTROUX, 1920, p. 164, tradução nossa). Constata-se que
o desenvolvimento do conceito de função no século XIX foi marcado por duas influências
diferentes.
Primeiro, libertou-se do estreito conceito de função analítica, no sentido de Leibniz
(1646-1716), Euler (1707-1783) e Lagrange (1736-1813), e reconheceu a importância
fundamental da continuidade de uma função. Em segundo lugar, o conceito de função foi
estendido das funções de um ponto até as funções cujos argumentos foram os conjuntos,
como por exemplo, áreas. Desde Bernoulli (1667-1748), era comum definir a integração como
o reverso da diferenciação. Assim, a integral indefinida foi considerada como o conceito
fundamental e o cálculo integral como apêndice do cálculo diferencial.
Fourier (1768-1830) foi o primeiro a mudar essa visão e para o desenvolvimento das
funções mais gerais em séries de Fourier, foi necessário um olhar mais detalhado no
significado do conceito da integral definida. Por isso, Riemann (1826-1866) começou sua
famosa dissertação de habilitação, questionando o significado do conceito de integral.
Lebesgue (1875-1941) seguiu a obra de Riemann considerando a integral definida como um
caso especial do termo de medida ou medição em geral.
Então, historicamente, partiu-se das funções contínuas, as quais foram essenciais para
Fourier, Cauchy e Riemann até chegar às funções gerais de conjuntos que levaram a uma
axiomatização da teoria da medida de Lebesgue.
17
Ao escrever esta dissertação a intenção não foi construir um fio vermelho ou uma
linha, na qual o leitor possa desde a introdução até as considerações segui-lá, e sendo desta
forma totalmente conduzido em sua leitura por um único caminho.
O desejo é inteiramente reverso e está definido nas palavras de Bicudo ao apresentar o
livro de Michael Otte O formal, o social e o subjetivo:
Ele pensa com „imagens‟, à maneira de uma aquarela. Como se tivesse diante de si um espaço em branco e ali colocasse „borrões‟ de tinta, aparentemente
„jogados‟, os quais, trabalhados em forma e cor, compõem o quadro. O texto
construído por ele também é assim: suas ideias são lançadas em termos opostos e,
então, o texto é construído como uma estrutura entre essas ideias. [...] Antes, são
„aquarelas‟ que podem tocar o leitor, levando-o a construir seus próprios
significados (in OTTE, 1993, p. 8, 9).
Como esse trabalho é também multidisciplinar devido às exigências postas na obra de
Boutroux, o pensamento no texto não se apresenta de forma linear, conduzindo o leitor a uma
compreensão interpretativa, levando-o a concluir um único pensamento. Por isso, não é uma
estrutura que surge segundo uma lógica sequencial e linear, contudo avança por saltos, em
busca de compreensões mais iluminadoras e abrangentes.
Desenvolvendo assim, uma investigação onde o ledor possa ir além do que foi possível
propor em palavras. Por isso, pode ser factível, ao terminar cada capítulo ou cada subtítulo,
ter-se a impressão de quebra, ruptura em um dado momento, e em outro, sentir que as ideias
estão tão entrelaçadas que parece impossível separá-las.
A obra de Boutroux é repleta de deslumbramentos e visões únicas, contudo a
fascinação primária de seu trabalho é como o autor desenvolve o seu texto, utilizando uma
metodologia totalmente diferenciada. Percebe-se em toda a obra três perspectivas
devidamente combinadas: a Filosófica, a Matemática e a historiográfica. É nesta combinação,
tão bem ajustada e interligada, que encontra-se a raridade da obra de Boutroux.
Esta dissertação foi desenvolvida procurando seguir os passos de Boutroux,
dedicando-se com perseverança para fazer uso da mesma metodologia utilizada por Boutroux.
18
CAPÍTULO I
O LEGADO DE BOUTROUX: O IDEAL CIENTÍFICO DOS MATEMÁTICOS
1.1 BIOGRAFIA DE PIERRE BOUTROUX
O matemático e também filósofo e historiador da Matemática Pierre Léon Boutroux
nasceu em seis de dezembro de 1880 em Paris, na França e faleceu em quinze de agosto de
1922.
Provindo de uma família de grandes intelectuais, seu pai Émile Boutroux (1845-1921),
foi um famoso filósofo espiritualista da ciência e historiador da filosofia francesa, enquanto
sua mãe Aline Catherine Eugénie Boutroux era a irmã mais nova de Jules Henri Poincaré
(1854-1912) que foi um importante matemático, físico e filósofo. Outro membro de destaque
foi seu primo Raymond Poincaré que foi presidente da França durante a Primeira Guerra
Mundial (BOYER, 1968, p. 418), e foi um importante membro da Academia francesa.
Boutroux foi educado em Paris, na École Normale Supérieure e recebeu sua
licenciatura com a tese, que foi publicada pela Universidade de Paris, L'imagination et les
Mathématiques selon Descartes (A imaginação e os matemáticos de acordo com Descartes),
logo após foi nomeado professor de Matemática na Universidade de Montpellier. Em 1908 se
tornou professor de Cálculo Integral em Poitiers, onde ocupou uma cadeira por doze anos, de
1908 a 1920, entretanto, passou a maior parte de sua vida profissional em outras instituições.
Em 1909 trabalhou como professor visitante na Universidade de Nancy, onde
apresentou palestras no Collège de France, sobre funções que são as soluções de equações
diferenciais de primeira ordem.
Logo após foi para os Estados Unidos, onde ocupou a cadeira matemática em
Princeton no período de 1913 até 1914 e se tornou presidente do departamento de graduação
em Matemática em 1914. Porém, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial Boutroux
retornou para a França a fim de se juntar ao exército.
Boutroux serviu o exército francês durante a guerra. No final da guerra ele não
retornou aos Estados Unidos, mas decidiu ficar na França. Em 1920 se demitiu do cargo que
19
ocupava em Poitiers e aceitou o cargo de professor de História da Ciência no Collège de
France. Infelizmente veio a falecer em 1922 sendo ainda bem jovem com 41 anos. “Muitos
historiadores da ciência sentiram pela sua morte” (O‟CONNOR; ROBERTSON, 2000a).
O trabalho de Boutroux na Matemática consiste principalmente em alargar e esclarecer
o trabalho de outros pensadores, em particular de Paul Painlevé (1863-1933), Poincaré e
Émile Picard (1856-1941). Ele trabalhou com funções multiformes e juntamente com
Painlevé sobre as singularidades de equações diferenciais. Embora, os seus trabalhos nestas
áreas tenham trazido uma considerável contribuição, Boutroux se destacou mais no campo da
história e da filosofia da Matemática. Nesta linha, o autor publicou um trabalho extremamente
importante Les Principes de l'analyse mathématique (Os Princípios de Análise Matemática),
em dois volumes, um em 1914 e o outro em 1919. Sobre este trabalho Calinger escreveu que
estes volumes contêm uma visão abrangente de todo o domínio da Matemática, na segunda
década do século XX, tanto como um corpo de conhecimento quanto como um modo de
pensamento. Boutroux parte da gama de tópicos dos números racionais para uma análise do
conceito de uma função. À luz do método histórico usado pelo autor, ele poderia ter melhor
intitulado o livro por "Uma análise da evolução do pensamento matemático” (CALINGER
apud O‟CONNOR; ROBERTSON, 2000a).
Contudo o trabalho mais importante de Boutroux é o L'idéal scientifique des
mathématiciens dans l'antiquité et dans les Temps Modernes (O Ideal Científico dos
Matemáticos na Antiguidade e nos Tempos Modernos). Sua tese principal neste trabalho é
analisar a ruptura que ocorreu no século XIX, a passagem de um ideal sintético a uma
concepção analítica da Matemática. Nesta obra, Boutroux defende a unidade da história da
ciência argumentando que esta só pode ser compreendida quando considerada como um todo
e não por exames detalhados das peças. Ele esclarece que não existe uma única forma de
abordagem de um problema, mas é a própria natureza do problema que sugerirá a melhor
maneira de abordá-lo.
Boutroux produziu uma edição das obras de Blaise Pascal (1623-1662), que foi
publicada a partir de 1908, com uma segunda edição após a sua morte em 1929. Boutroux
também contribuiu para produzir um volume sobre as obras científicas e filosóficas de
Poincaré. Em outro trabalho estudou sobre a dinâmica desenvolvida antes de Isaac Newton
(1643-1727) e que foi melhorado por Pierre Duhem (1861-1916), e ainda fez uma análise do
trabalho de Paul Tannery (1843-1904) que foi publicada em 1938, dezesseis anos após a
morte de Boutroux (O‟CONNOR; ROBERTSON; 2000a).
Suas principais obras são:
20
L'imagination et les Mathématiques selon Descartes (A imaginação e os matemáticos de
acordo com Descartes) 1900;
Sur quelques propriétés des fonctions entières (Sobre algumas propriedades das funções
inteiras) 1903;
Œuvres des Blaise Pascal publiées suivant l‟ordre chronologique avec documents
complémentaires introductions et notes par Léon Brunschvicg et Pierre Boutroux. (Obras
de Blaise Pascal publicada em ordem cronológica com documentos complementares,
introduções e notas por Léon Brunschvicg e Pierre Boutroux) 1908;
Leçons sur les fonctions définies par les équations différentielles Du premier ordre
professées au Collège de France (Lições sobre as funções definidas por equações
diferenciais de primeira ordem, professada no Colégio de França) 1908;
Les Principes de l‟analyse mathématique exposé historique et critique (Os Princípios de
Análise Matemática, a apresentação e a análise histórica (2 volumes) 1914 e 1919;
L‟Idéal scientifique des mathématiciens: dans l‟antiquité et dans les temps modernes (O
Ideal Científico dos Matemáticos: na Antiguidade e nos Tempos Modernos) 1920;
Les mathématiques (Os matemáticos) 1922;
1.2 PANORAMA DO LIVRO: O IDEAL CIENTÍFICO DOS MATEMÁTICOS
O trabalho mais importante de Boutroux é a sua obra escrita em francês no ano de
1920, L'idéal scientifique des mathématiciens: dans l'antiquité et dans le Temps Modernes (O
Ideal Científico dos Matemáticos: na Antiguidade e nos Tempos Modernos), que foi traduzida
para o alemão em 1907, porém não possui tradução na língua portuguesa. Está escrita em 274
páginas e apresenta o seguinte sumário:
INTRODUÇÃO
A história da ciência e as grandes correntes do pensamento matemático.
CAPÍTULO I A concepção helênica dos matemáticos
I. A ciência contemplativa;
II. Os diferentes aspectos da matemática grega;
III. O estudo das grandezas matemáticas;
21
CAPÍTULO II
A concepção sintética dos matemáticos
I. Origem, objeto e método da Álgebra;
II. A Álgebra cartesiana;
III. A síntese infinitesimal
CAPÍTULO III
O apogeu e o declínio da concepção sintética
I. A síntese algébrico-lógica;
II. Os limites da lógica; III. Os limites da Álgebra;
CAPÍTULO IV
O ponto de vista da análise moderna
I. A evolução da Análise Matemática no século XIX;
II. A objetividade dos fatos matemáticos;
III. A doutrina intuicionista;
CAPÍTULO V
A atual missão dos matemáticos
I. Os matemáticos e a filosofia; II. A direção das pesquisas;
III. O ensino da Matemática; (BOUTROUX, 1920, p. 273, 274, tradução nossa).
Nesta obra o Boutroux procura descrever as grandes correntes do pensamento
matemático. Seu trabalho consistiu em pesquisar como as grandes descobertas matemáticas
foram conduzidas e qual o significado destas para as próximas pesquisas que viriam.
Boutroux acredita que na história da Matemática aconteceram duas revoluções, porém ele
atribui maior ênfase à segunda revolução, onde houve também uma ruptura ocasionando a
transformação da matemática sintética para a analítica.
O trabalho de Boutroux consistiu, em grande parte, em registrar os fatos históricos que
ocorreram na Matemática e que eram contemporâneos a sua época. Este período foi visto por
ele como um momento de transição de um ideal sintético a uma concepção analítica da
Matemática.
Para Boutroux um pesquisador trará um ensinamento precioso se à luz de sua
experiência, ele interpretar as ideias ou as diferentes fases do pensamento científico
realizando um estudo histórico, pois por meio deste estudo, têm-se maiores possibilidades de
descobrir os fundamentos e a direção do pensamento científico.
O mesmo pensamento pode ser observado por Cournot (1801-1877) quando escreveu:
“só a observação dos fatos históricos podemos ensinar corretamente como a renovação
gradual das ideias resulta da substituição imperceptível de uma geração por outra”
(COURNOT apud SAINT-SERNIN, 1998, p. 69). A história da Matemática contém “algumas
descontinuidades e algumas rupturas; mas o imenso trabalho desempenhado pela lembrança e
22
pelo esquecimento lhe proporcionam movimentos que se assemelham aos das marés, com
avanços, recuos e retornos” (SAINT-SERNIN, 1998, p. 69).
Esta pesquisa traz o CAPÍTULO IV da obra de Boutroux traduzido integralmente para
a língua portuguesa. Enquanto a Introdução, Capítulo I, Capítulo II e Capítulo III, apresenta
uma resenha.
1.3 A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E AS GRANDES CORRENTES DO PENSAMENTO
MATEMÁTICO
A seguir, realizou-se um resumo, constituindo-se uma produção sucinta dos pontos
mais importantes da introdução L’histoire des sciences et le grands courants de la pensée
mathemátique, do trabalho de Boutroux O ideal científico dos matemáticos.
Na ciência em geral para se determinar as características essenciais do
conhecimento científico é necessário primeiramente estudar quais pensamentos
produziram-na. Esta verdade se verifica principalmente na Matemática pura, pois esta
não é, nem guiada pela experiência, nem suscitada pelos acontecimentos da vida. Depende
mais de qualquer outra disciplina de invenção e dos conceitos de seus criadores.
Para tanto, procura-se responder as seguintes perguntas: Qual é a ideia que o
matemático faz sobre a sua ciência? Quais são as ideias? Quais são os princípios que guiam
suas atividades? Qual o farol que orienta suas pesquisas?
Mas as respostas para estas indagações não podem ser encontradas nas metafísicas de
profissão e muito menos nos escritos metafísicos filosóficos dos matemáticos. Pois se tratam
de questões exclusivamente concernentes à gênese e ao desenvolvimento da ciência.
As buscas para as soluções destes questionamentos devem ter início nos trabalhos dos
técnicos puros. Contudo, o problema persiste, pois estes técnicos fornecem poucas
contribuições em seus escritos. Na realidade eles se esforçam em apresentar as teorias
completamente concluídas, de modo que em suas obras omitem retratar o caminho do seu
pensamento, se preocupam apenas em apresentar as conclusões de suas pesquisas com as
demonstrações justificadas de tal forma que suas concepções e os princípios da pesquisa
permanecem impenetráveis aos seus sucessores aparentando assim como os geômetras de
certas escolas antigas, que estes grandes inventores querem esconder ao comum o segredo de
seu poder.
23
Contudo, o verdadeiro mistério, deveria se dissipar, pois atualmente tem-se acesso aos
trabalhos dos matemáticos e ainda pode-se perguntar diretamente a eles.
No entanto, nem mesmo os matemáticos mais qualificados conseguem responder as
estas questões, pois lhes é necessário um grande esforço de abstração e de reflexão para tratá-
las de uma maneira objetiva e destacá-las da massa das observações banais.
Então destes fatos surgem outras indagações: porque os matemáticos, em particular,
hesitam tanto em formular ou expressar suas ideias norteadoras em termos gerais? Será que
eles desconfiam destas ideias? Observando que as ideias têm seu lado forte na criação de
novos conhecimentos, mas têm também seu lado fraco porque são imprecisas e oferecem
desvantagens se mostrando mais como uma fraqueza, que os matemáticos não querem
mostrar?
Os cientistas são levados a temerem os perigos da visão filosófica antes mesmo de
reconhecerem as suas dificuldades e logo procuram preservar-se destas dúvidas.
Todavia, mesmo que nada impeça o homem da ciência à afastar-se das discussões,
sobre a origem e a natureza da matéria que ele estuda e ainda que não seja obrigado a ter uma
opinião sobre as controvérsias metafísicas, ele poderá ignorar qualquer princípio. Mesmo que
este não seja um princípio filosófico, ou ainda extra-científico será em todo caso extra-
técnico.
Na verdade o cientista e, sobretudo o matemático precisa de uma intenção ou meta e
uma visão geral para guiar suas pesquisas. Também é claro que a atividade intelectual do
cientista, ou seja, todo o seu esforço de uma vida inteira concentrada sobre os objetos mais
imateriais e mais distantes das preocupações correntes da humanidade, exige um ponto de
apoio, um suporte estimulante, que não pode ser outra coisa além das ideias gerais que são
descritas nesta obra L'idéal scientifique des mathématiciens dans l'antiquité et dans les temps
modernes .
Sem dúvida, não é fácil determinar exatamente os fundamentos da crença dos
cientistas. Como qualquer conquistador, o homem da ciência é tentado a acreditar em sua
estrela. O cientista sente que é impossível fazer trabalhos de valor sem ser talentoso e idealiza
conscientemente esta obscura noção de dom até produzir uma espécie de inspiração. E então
se percebe porque ele não tem que fazer regras objetivas, concepções sistemáticas para
conduzir e para justificar seu trabalho. Ele se dirige pelo instinto, acreditando que no homem
inspirado as descobertas emergem sob os seus passos sem que saibam como e nem o porquê.
Frequentemente dizem que no momento em que menos se espera, quando se está muito aflito,
vagueando e considera-se definitivamente perdido, a verdade se revela bruscamente a seus
24
olhos. Nessas condições os progressos da ciência não poderiam se explicar por um milagre
perpetuamente renovado.
Os matemáticos raramente vão expressar seus pensamentos desta maneira extrema.
Estas convicções intuitivas que se busca, neste texto, pôr em palavras existem apenas no
estado de tendências de sentimentos. Contudo, não é verdade que tais sentimentos são,
frequentemente, analisados de modo imperfeito e que eles incitam o homem a agir e manter
seus esforços?
Seja o que for e de pouca importância, o que se quer atribuir para esses recantos da
alma científica que tem-se apresentado sob traços bem finos com a finalidade de torná-los
mais claros, uma coisa é certa, é quase impossível determinar por investigações as concepções
que dirigem as pesquisas científicas; essas concepções tornam-se aquelas que inspiram os
princípios da ação e da vida, são combinadas por elementos pessoais para que possam ser
estudadas objetivamente. Incidentemente esta observação esclarece uma aparente contradição
que pode explicar as atitudes de certos cientistas. De um lado, eles se declaram indiferentes a
toda teoria da ciência, acreditando que a visão filosófica não poderia ter nenhuma repercussão
sobre os trabalhos técnicos. E, por outro lado, se mostram tão agregados às suas próprias
ideias sobre a ciência que suportam com dificuldade vê-las serem colocadas em questão.
As condições indispensáveis para as suas atividades científicas são, efetivamente,
essas ideias às quais não lhes são atribuídas nenhum valor científico. Os matemáticos têm
medo de que a análise leve a afetar as fontes de sua energia. Sentimento muito natural e muito
respeitável, mas que mostra como é necessário ser prudente quando se busca interpretar certas
testemunhas, ou seja, alguns cientistas.
Deve-se cuidar para não atribuir às observações registradas aqui um sentido que não
possuem. Pelo fato que é difícil aos cientistas em um trabalho científico analisar a gênese de
suas ideias, mas seria absurdo concluir que o julgamento do cientista deveria ser recusado nas
discussões relacionadas aos princípios da ciência. Deve-se reconhecer, ao contrário, que a
complexidade e a sutileza das questões debatidas exigem que sejam tratadas por homens que
estudam a ciência a fundo e que são capazes de praticá-la pessoalmente. Mas os especialistas,
quando entram em uma discussão, devem cuidadosamente evitar serem, ao mesmo tempo,
juiz e júri, pois não há condições de sair temporariamente de si mesmo. Isto é suspeito de
parcialidade, pois o especialista pode limitar-se a descrever sua própria experiência. Contudo
ele trará ao contrário um ensinamento precioso se à luz desta experiência, ele interpretar as
ideias ou diferentes fases do pensamento científico.
25
Para o estudo dos problemas enunciados acima, existe um único método e este método
é o método histórico. Os depoimentos individuais dos cientistas são quase sempre
demasiadamente subjetivos e raros em relação ao período passado, apenas resta tentar agrupar
os depoimentos, de maneira a compensar a insuficiência de cada um deles, pela consideração
do todo e pela comparação de uns com os outros. Assim a história da ciência, sendo bem
estudada oferece as melhores possibilidades para se descobrir os fundamentos e a direção do
pensamento científico.
1.4 A CONCEPÇÃO HELÊNICA DOS MATEMÁTICOS
Neste item apresenta-se uma resenha que sintetiza os fatos similares e fundamentais
para a melhor compreensão do capítulo II A concepção helênica dos matemáticos, da obra O
ideal científico dos matemáticos de Boutroux.
Enquanto os matemáticos do Oriente, disse Boutroux, foram guiados pelo utilitarismo
e estavam interessados apenas na Matemática aplicada, os Gregos “retornaram aos princípios
fundamentais e consideraram os problemas em termos abstratos e pelo pensamento puro”
(BOUTROUX, 1920, p. 32-33, tradução nossa).
Para se considerar “as fórmulas numéricas e as figuras geométricas como objetos de
uma ciência rigorosa e completamente racional” (BOUTROUX, 1920, p. 34-35, tradução
nossa), deve-se respeitar as ideias e estas representações como objetos verdadeiros da
Matemática.
Um objeto concreto poderia ser azul e branco, mas o azul nunca poderá ser branco.
Esta é a lei da não-contradição, sobre a qual está fundada a Matemática pura, onde as
verdades são verdadeiras apenas no universo das ideias puras. Por isso, Platão afirmou que “é
natural que os que não estão capacitados a compreender pensem que essas ideias nada
significam. Fora da utilidade prática, estes não vêem nestas ciências nenhuma outra vantagem
digna de atenção” (PLATÃO, 1997, p. 241).
Para Boutroux (1920) isso, de fato, caracterizava uma ciência contemplativa que não
se importava com os problemas pragmáticos do uso, da aplicação e do desenvolvimento da
ciência, mas concentrava-se, exclusivamente, nos problemas da fundamentação. Por isso, a
geometria grega limitava-se às construções e para isto admitia um número finito de passos em
cada construção e também permitia somente o uso de compasso e régua como instrumentos.
26
Na ciência dos números, segundo Boutroux, existia um contraste entre a logística,
como foi chamada e a aritmética, a primeira se preocupava com as grandezas e com as
operações numéricas aplicadas, já a segunda apresentava-se como uma ciência puramente
especulativa (BOUTROUX, 1920, p. 68, tradução nossa).
Outra característica da matemática grega mostra-se mediante à da ênfase nas provas
lógicas que eram consideradas indispensáveis, como critério da verdade. Existia “um
parentesco indisputável entre a lógica de Aristóteles e a geometria de Euclides”
(BOUTROUX, 1920, p. 53, tradução nossa). Mas isso parecia, para Boutroux, ser uma
evolução contra o trabalho de Platão e contra o jogo livre das ideias. De fato houve duas
épocas na Matemática grega que se diferenciaram pela noção de prova. Para Boutroux (1920)
enquanto num primeiro período a epagoge ou indução foi admitida como método de prova,
logo após uma prova deveria ser estritamente dedutiva.
Durante a primeira fase da matemática grega havia uma prova que consistia em
mostrar ou em fazer visível a verdade de uma indicação. Este era o método epagoge. “Esta
primeira fase foi seguida por uma fase apagoge ou dedutiva. Durante esta fase a evidência
visual foi rejeitada e a matemática grega transformou-se em um sistema dedutivo”
(KOETSIER, 1991, p. 180, tradução nossa). A prova epagoge primeiramente verifica e a
prova apagoge generaliza no sentido em que o significado de uma indicação é avaliado em
relação a um sistema inteiro de indicações.
Epagoge é traduzido geralmente como a indução, mas não é exatamente deste modo
que se desenvolve o pensamento neste trabalho, mas na realidade faz-se uso de apenas um
indivíduo como prototípico uma espécie para toda. Indução é um método de generalizar, de
um conjunto de indivíduos para uma espécie geral. Para Russell é fácil entender que uma
proposição como todos os homens são mortais não pode ser deduzida de fatos empíricos. Pois
mesmo conhecendo todos os seres humanos e, sobretudo que são mortais não é suficiente.
Precisaríamos ainda saber que os homens que conhecemos são todos os homens possíveis
(RUSSEL, 1949). Aristóteles escreve no que diz respeito ao epagoge:
O exame da semelhança é útil tanto para os argumentos indutivos como para
os raciocínios hipotéticos, bem assim como para a formulação de definições. É útil
para os argumentos indutivos, porque é por meio de uma indução de casos
individuais semelhantes que pretendemos por em evidência o universal; e isso não é
fácil quando ignoramos os pontos de semelhança. É útil para os raciocínios
hipotéticos porque, entre semelhantes, de acordo com a opinião geral, o que é
verdadeiro de um é também verdadeiro dos demais (ARISTÓTELES, 1987, p. 21).
27
Para Boutroux (1920) em contraste com Pitágoras e Platão os lógicos se ocupavam
com a estrutura e a didática da ciência.
1.5 A CONCEPÇÃO SINTÉTICA DOS MATEMÁTICOS
A seguir redigi-se uma resenha do capítulo II A concepção sintética dos matemáticos,
contido no livro de Boutroux O ideal científico dos matemáticos. Com a intenção de
descrever os aspectos considerados relevantes desta passagem.
Em analogia com a história da cultura ocidental, que provém de duas fontes diferentes,
o helenismo grego de um lado e a cultura judaico-arábica do outro lado, a Matemática dos
tempos modernos também surgiu da confluência de duas tradições, a da Grécia e da Índia e
Arábia (BOUTROUX, 1920, p. 81, tradução nossa).
As novas características que se destacaram, na concepção sintética, são as seguintes:
um interesse pelos processos algorítmicos e pela língua simbólica que é econômica e facilita a
velocidade das operações. Simon Stevin (1548-1620) introduziu, por exemplo, o sistema
decimal de numeração. Depois o próximo grande passo para a álgebra deve-se a François
Vieta (1540-1603) e principalmente a Descartes (1596-1650). A matemática cartesiana é um
claro exemplo de como o homem avança pela construção de mecanismos ou sistemas que
aumentam suas capacidades e possibilidades de fazer coisas anteriormente impossíveis.
Imagine, por exemplo, o sistema de transporte antes da construção das rodas.
A álgebra é um sistema formal e multifuncional desse tipo, onde a sintaxe é mais
importante que a semântica. Mas, até o século XIX a álgebra era considerada uma linguagem
analítica, como Condillac (1714-1780) havia definido.
Condillac fala não de uma álgebra matemática, mas de uma álgebra
universal, como uma linguagem geral, analítica, capaz de analisar estrutura e
relações entre quaisquer objetos em qualquer campo de conhecimento. A álgebra é uma linguagem que privilegia as relações (CORRÊA, 2008, p. 55).
Este formalismo apresentava uma desvantagem, pois trazia a dificuldade para se
generalizar e a Matemática sem as possibilidades de generalizar não passa de um jogo de
xadrez.
28
Neste contexto, surge a obra de Descartes como revolucionária, a sua interpretação
geométrica não apenas criou uma nova física à base de uma definição do mundo em termos de
grandezas geométricas e um novo método de uma força e universalidade até então
desconhecido na Matemática, mas também abriu a possibilidade de mudar as regras da
álgebra (BOUTROUX, 1920, p. 104-107, tradução nossa).
Neste tempo perguntava-se, por exemplo, se o produto algébrico deveria ser sempre
comutativo. O cálculo vetorial e a álgebra linear surgiram quando pensadores como
Grassmann criaram o produto vetorial anti-comutativo. Outro exemplo é a criação de novos
números através da interpretação geométrica dos números imaginários, que recebeu
importantes contribuições de Johann Carl Friedrich Gauss (1777-1855).
Boutroux não acreditava que os procedimentos da análise de Newton e Leibniz
trouxeram um aspecto radicalmente novo, nesse quadro da matemática algébrica. Pois ele
tinha em mente a historiografia tradicional da Matemática, que se preocupava em explicar o
desenvolvimento matemático relacionado à noção de infinito.
A Matemática era denominada geralmente como a ciência do infinito. Então, pode-se
perguntar: por que Boutroux deixou Descartes e Leibniz no mesmo barco? Para Boutroux,
não há uma diferença essencial a ser observada entre a álgebra finita de Descartes e a álgebra
do infinito de Leibniz. Em suas palavras:
Assim nos parece que a oposição verdadeira entre a obra de Leibniz e da
Descartes reside em partes entre palavras. Estas duas obras, na realidade procedem
de uma concepção própria, ou seja, a concepção sintética da ciência. Quais são,
portanto exatamente as características que se distinguem uma da outra? É aqui que
se faz necessário observar para não confundir as visões filosóficas de dois
pensadores com suas ideias propriamente matemáticas. Sobre a natureza e a objetividade dos conceitos científicos, sobre os princípios mecânicos e da filosofia,
sobre as condições do conhecimento matemático e sobre o papel da intuição [...].
Descartes e Leibniz têm doutrinas, diferentes. Mas estas doutrinas – que excedem
infinitamente o campo onde se move a Matemática do século XVII e do nosso
próprio tempo – não têm exercido influência direta sobre a construção de seus
sistemas algébricos. Estes sistemas distinguem-se principalmente através das
circunstâncias técnicas que trabalham, pois um trabalha sobre combinações infinitas
e o outro sobre o finito. Mas isto é, do ponto de vista técnico, uma diferença
essencial? Como a álgebra cartesiana, a de Leibniz se apóia sobre a representação
geométrica de funções em relação aos eixos das coordenadas; um e outro estudam
praticamente as mesmas operações e raramente estudam os problemas da resolução
de certas equações; um e outro procedem em combinação de sinais algébricos e têm por consequência e por base, um sistema de escrita simbólica. (BOUTROUX, 1920,
p. 126-128, tradução nossa).
O autor ainda explica que:
29
O cálculo de séries não é – do ponto de vista técnico – de uma outra natureza
diferente do cálculo algébrico elementar; somente não nos conduz diretamente a
tarefa, porque nos fornece o que buscamos de uma maneira aproximada. Mas a ideia
de aproximação – quase tão antiga, como recordamos, quanto à geometria e a
aritmética grega – não tem nada a ver com o dinamismo. A menos que, entretanto,
não se queira admitir que a existência do fato matemático obtido por aproximação é
o próprio resultado desta aproximação. Mas esta é uma visão que o próprio Leibniz
não adotou (BOUTROUX, 1920, p. 128, tradução nossa).
O último ponto de vista apareceu somente quando Cantor (1845-1918) definiu os
números reais como séries convergentes de números racionais. A ideia não era mais para
aproximar-se de uma determinada quantidade, mas para estabelecer um novo tipo de número,
por meio de um conjunto de números elementares, ou seja, os objetos são construídos e não
dados independentemente da atividade. Então, por exemplo, tornou-se desnecessário pensar
nesta construção em termos de medição de uma quantidade pré-determinada. No último ponto
de vista, por exemplo, poderia ser o tradicional um, como um número real, um fração decimal
etc., contudo de modo algum seria uma determinação aproximar-se dessa quantidade. Os
construtivistas, como Kronecker (1823-1891), também tentaram fundamentar a série contínua
de números reais, em uma última análise sobre os inteiros, dizendo que estes números são
regras ou leis, que efetivamente determinam cada termo em uma infinita sequência para este
fim. Cantor, porém, argumenta que Kronecker nunca poderia fornecer a quantidade de
símbolos e descrever completamente os números reais, pois este conjunto não é enumerável
(CANTOR, 1980, p. 384), ou seja, as construções de Cantor são indistintas e baseadas em um
uso livre de quantificadores, e isso causou os paradoxos de Russel.
A essencial descontinuidade ou revolução assim surgiu, de acordo com Boutroux,
junto com a introdução do infinito atual ao pensamento matemático.
1.6 O APOGEU E O DECLÍNIO DA CONCEPÇÃO SINTÉTICA
Neste subtítulo descreve-se uma análise crítica e breve do capítulo III, do livro L'idéal
scientifique des mathématiciens: dans l'antiquité et dans le temps modernes.
No início do capítulo III, Boutroux apresenta um resumo do desenvolvimento da
Matemática até o século XVIII:
Os resultados obtidos pelos algebristas do século XVIII eram propriamente
para justificar a robusta confiança que estes pensadores tinham na excelência de seu
30
método. A álgebra elementar – saindo do período das tentativas – tinha claramente
reconhecido a extensão exata do seu poder e havia fixado seus processos. O cálculo
de derivadas, integrais e o cálculo de séries tinham sido codificados e formaram
desde então um conjunto bem ordenado e do mesmo modo preciso como a álgebra
propriamente dita. A geometria cartesiana aperfeiçoando cada vez mais seu
mecanismo tinha decididamente suplantado os métodos gregos da demonstração. A
mecânica se constituiu como ciência analítica tomando a geometria como modelo.
Mesmo onde os cálculos algébricos pareciam obrigados a ceder aos outros
processos, era ainda o espírito e o ponto de vista da álgebra que dirigia o
pensamento dos matemáticos. Podemos perceber isto, considerando a história da
geometria, a qual se mostra neste ponto de vista particularmente instrutiva (BOUTROUX, 1920, p. 132-133, tradução nossa).
Boutroux afirma que mesmo os métodos da geometria projetiva no sentido de Poncelet
(1788-1867) e Von Staudt (1798-1867) são nada mais do que uma álgebra disfarçada
(BOUTROUX, 1920, p. 135, tradução nossa), pois estas geometrias não tratam de figuras e
suas características, mas sim de relações e estruturas relacionais e introduzem noções como
variável e função na geometria.
Quando Boutroux escreve que o método de Poncelet é nada mais do que “o método da
álgebra aplicado num objeto diferente do cálculo” (BOUTROUX, 1920, p. 136, tradução
nossa) ele mostra que este método na verdade é o método axiomático no sentido de Peano
(1858-1932) e Hilbert (1862-1943) que apareceu explicitamente e claramente apenas no final
do século XIX.
No século XIX também surgem os limites dos métodos algébrico-lógicos que
dominaram a Matemática até o final do século XVIII. O problema consistia no fato que os
conceitos matemáticos são essencialmente indeterminados ou vagos e por isso eles estão em
oposição aos conceitos da lógica e da álgebra. Não existe um sistema de conceitos
elementares e bem determinados que consiga constituir todos os conceitos possíveis em
termos de combinações que se tornam cada vez mais complexas. Boutroux escreve ainda:
“Vamos perceber mais precisamente esses fatos através de um exemplo: vamos considerar um
dos mais importantes conceitos da análise moderna, o conceito de função matemática”
(BOUTROUX, 1920, p. 164, tradução nossa). O conceito de função para Boutroux foi o
maior agente responsável pelo declínio da concepção sintética.
O problema da definição desse conceito foi muito discutido. Otte afirma que:
[...] Na própria Matemática se revelava a necessidade de avançar além das
concepções do século XVIII e resolver a conexão entre o conceito de função e sua
representação simbólica ou descrição estrutural. Lobatschewskj (1793-1856), por
exemplo, escreve, em 1834: „A definição geral exige que uma função de x seja um
número para cada x dado, e que ela varie progressivamente com x. O valor de uma função pode ser dado por uma expressão analítica, ou por uma condição que forneça
um meio de verificar todos os números e escolher um entre eles; finalmente, pode
31
existir dependência, mas permanecendo, todavia desconhecida‟. Digno de nota nesta
descrição definitória, e apenas aparentemente supérflua, é a enumeração das
diferentes modalidades, pelas quais uma correspondência funcional poderia ser dada.
O problema de relativização dos meios pela introdução do conceito da função se
expressa também, claramente, na forma como Felix Klein cita Dirichlet (1805-
1854). „Se para cada valor de x num intervalo é associado, por qualquer meio [o
grifo é meu], um certo valor y, então y deve ser chamado uma função de x‟. Que o
conceito deve ser caracterizado apenas por uma relação input-output, ou seja, que
sua identidade seja vista no fato de que aos inputs ou argumentos iguais
correspondem outputs ou valores da função iguais, trouxe muitas dificuldades e mal-
estar na matemática ao longo de todo o século XIX. Hermann Hankcl (1839-1873) escreveu em 1870, após apresentar a definição dc uma função geral: „Esta definição
puramente nominal, que a seguir chamarei de definição de Dirichlet, [...] não é
suficiente para as necessidades da análise, pois funções desse tipo não possuem
propriedades gerais, e assim são suprimidas todas as relações de valores funcionais
para diferentes valores do argumento‟. Esta concepção conceitualmente abstrata de
função, que acabamos de citar, transforma de início o próprio conceito num objeto
completamente desconhecido, pois funções que são idênticas numa certa área dc
input podem ser bem diferentes em outras. De certa forma, não é possível antecipar
o comportamento „futuro‟ de uma tal função, ou seja, antecipar o resultado de sua
aplicação a argumentos nos quais ela ainda não foi aplicada (1993, p. 231-232).
As diferentes definições apresentadas neste trecho em relação ao conceito de função
ratificam a ideia de Boutroux, para ele o grande responsável pelo declínio da concepção
sintética foi o conceito de função.
Devido à importância do capítulo IV intitulado: O ponto de vista da Análise moderna,
de Boutroux, apresenta-se neste próximo tópico a tradução integral do mesmo, objetivando
que o ledor tenha condições de realizar uma leitura mais clara das ideias de Boutroux.
Esta obra ainda não possui tradução na língua portuguesa, na margem direita o leitor
perceberá um número que corresponde ao número da página original da obra L'idéal
scientifique des mathématiciens: dans l'antiquité et dans le temps modernes. Esta marcação
irá auxiliá-lo a fazer uma leitura mais dinâmica, pois sempre que desejar poderá consultar a
obra original, sem grandes dificuldades para encontrar as páginas correspondentes.
Todas as citações no rodapé, as palavras grifadas e em itálico, bem como as frases
entre parênteses e entre hífens são correspondentes as do autor, conforme original. A seguir a
tradução:
32
1.7 O PONTO DE VISTA DA ANÁLISE MODERNA
CAPÍTULO IV
O PONTO DE VISTA DA ANÁLISE MODERNA
I. - A evolução da Análise Matemática no século XIX
Seguindo o desenvolvimento do pensamento matemático depois da Grécia antiga
até o início do período contemporâneo, vimos predominar1 sucessivamente dois pontos
de vista, duas tendências diferentes.
No início o pensador se limitava a constatar. Ele observa ao seu redor, – dizia
Platão – não com seus olhos, cuja visão é rude e limitada aos objetos sensíveis, mas com
uma capacidade de perceber intelectualmente, que corresponde ao espírito, e que lhe
permite aprender as verdades matemáticas essenciais. Deste modo foram percebidas as
harmoniosas propriedades do mundo dos números e do mundo das figuras, também
aquelas de grandeza mensuráveis, nas quais operam as sínteses da quantidade e da
figura, a reunião da aritmética e da geometria.
Com a difusão da álgebra, contudo, realiza-se uma mudança. A ciência que era
contemplativa se faz construtiva. Esta revolução resulta em um método e num ponto de
vista inteiramente novo.
Compor, a partir de elementos simples, a união cada vez mais complexa e
construir assim das peças, sua própria indústria, o edifício da ciência, esta parecia ser a
tarefa do matemático daí em diante. A faculdade criativa do cientista encontrava-se a tal
ponto exaltada, dentro deste novo período, que, do modo como era, logo se transformou
em seus próprios objetivos. Deixando aos práticos o cuidado de interpretar e utilizar
1 Diz-se que as tendências que buscamos coexistem sempre em oposição, em qualquer grau, nos períodos de
grande atividade matemática, não somente em cientistas de escolas diferentes, mas frequentemente em um
mesmo indivíduo. Quando então nós distinguimos nos tempos estas tendências, vemos simplesmente dizer que
tal ou tal dentre elas é responsável em um momento em dar e caracterizar o ideal científico de uma época.
182
181
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suas teorias, o matemático da escola algebrista atribui menos valor às teorias
construídas a aos resultados adquiridos que ao método pelo qual se realiza. Seu objetivo
principal não é mais conhecer novos fatos, mas aumentar seu poder criativo e seus
recursos para aperfeiçoar seus procedimentos.
Contudo, até mesmo o progresso da matemática algébrica causou o surgimento
de certas dificuldades e ocasionou uma reação. Antes mesmo que esta matemática
tivesse terminado de desenvolver seus métodos e de construir sobre as bases lógicas
rigorosas o edifício da ciência (o que ocorreu, aproximadamente, por volta da primeira
metade do século XIX) uma ligeira indisposição se manifestou.
Tentando entender a concepção algébrica da Matemática, penetrando tão
profundamente como possível ao seu princípio, nós tínhamos chegado ao seguinte: a
Matemática ideal se reduz a uma síntese algébrico-lógica, esta se faz, essencialmente, à
base de regras que são arbitrárias. Ora, por diversas razões, os matemáticos do fim do
século XIX não podiam mais concordar, com esta fórmula.
É bem evidente, primeiramente, que o matemático não constrói conhecimento
dentro do vazio. Para ele é importante que suas teorias sejam aplicáveis à geometria e à
física. Ora, as necessidades destas ciências obrigam o cientista a estudar relações
matemáticas que não se reduzem apenas a combinações algébricas, há muito mais que
isto. No próprio interior da “Análise Matemática”, nós podemos realizar progressos e
chegar ao fundo dos conceitos que estudamos apenas se transcendemos um pouco os
limites da álgebra. Acrescentamos que para justificar e hierarquizar as teorias, para
discutir as hipóteses sobre as quais elas são fundadas, para aperfeiçoá-las e enriquecê-
las, nós devemos necessariamente usar outras operações do espírito do que a pura e
simples combinação lógica.
Encontramo-nos forçados a conceder a isso muito mais que o triunfo da nossa
faculdade de combinação lógica. Sentindo a possibilidade de construir fictícias ciências
infinitamente variáveis e observando suas definições e postulados arbitrários, nos
encontramos paralisados por excesso próprio de nossa potência. Nós compreendemos
que uma escolha é necessária entre as inúmeras construções que nós podemos realizar.
E por isso, das duas partes das quais se compõem ordinariamente o trabalho da
Matemática. – seleção de ideias e demonstrações, – a primeira toma novamente um
importante papel em relação à segunda.
Estas são as observações que representam um resumo dos estudos que fizemos
nos capítulos anteriores. Mas até agora elaboramos apenas uma conclusão negativa: elas
184
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nos mostraram que a concepção sintética dos matemáticos deveria ser abandonada. Para
saber se esta concepção foi substituída por outra, com novas ideias diretoras e se novos
princípios de pesquisa se desenvolveram dentro do espírito dos cientistas, temos que
analisar mais de perto o padrão atual da Matemática.
Isto que nos aparece primeiramente quando comparamos a Matemática de nosso
tempo com aquela da época anterior, é a extraordinária diversidade e o aspecto
imprevisto das vias e dos rodeios onde esta ciência está empregada, esta desordem
aparente dentro da qual ela executa suas marchas e contramarchas são as suas operações
e mudanças de frente contínuas. A bela unidade que Euclides tinha dado à geometria e
que Descartes queria conferir para a álgebra parece irremediavelmente perdida. E é isto
que um observador do movimento científico hoje é mais tentado a admirar no trabalho
de um matemático, não é a harmonia dos resultados, nem a segurança e a simplicidade
do método, mais antes de tudo o engenho, a flexibilidade que o matemático deve a todo
instante implantar para atingir seus fins.
Consideremos por exemplo a teoria das equações algébricas de grau n:
(I)
O problema fundamental que estas equações colocam é buscar as resoluções.
Ora, sabe-se que no início do período moderno este problema se encontrava
comprometido em um impasse. Todos os esforços feitos pelos algebristas para resolver
as equações de grau superior a 4 tinham lamentavelmente encalhado. O fracasso, cujo
qual, podia se surpreender quando acreditava-se na onipotência da álgebra, os modernos
explicam facilmente. O que significa afinal “resolver uma equação”, no sentido da
álgebra elementar? Isto é, por definição, encontrar uma expressão algébrica das raízes
como uma função dos coeficientes da equação. Ora é correto afirmar que se pode
efetuar sobre os coeficientes de uma equação, qualquer combinação de operações
algébricas que forneça as raízes da equação2? A priori, evidentemente, não existe
nenhuma razão para que isto ocorra e quanto a possibilidade acidental para as equações
dos quatro primeiros graus não podemos concluir nada. De fato, a proposição seguinte,
2 É que faz observar Leibniz ao seu amigo Tschirnhaus, que fazia esforços desesperados para transformar as
equações gerais de quinto e do sexto grau em equações suscetíveis de serem resolvidas.
185
35
apresentada por Gauss, foi demonstrada com todo rigor pelo matemático norueguês
Abel3: é impossível representar as raízes da equação geral de quinto grau
em termos de expressões algébricas dos coeficientes.
Este teorema de Abel encerrava definitivamente uma questão debatida por muito
tempo. Havia encerrado, entretanto, como se poderia esperar, o capítulo da ciência que
trata da resolução de equações? Foi o contrário que aconteceu. A plena proposição em
questão foi estabelecida, a teoria das equações, graças ao trabalho de Evariste Galois 4 e
do próprio Abel, repercutiria em novas direções e teria uma importância maior como
jamais teve. Foi suficiente para ele transmitir este impulso de modificar o enunciado do
problema posto, e “atacar de lado” a dificuldade que ele não podia abordar de frente.
Em vez de procurar uma expressão algébrica das raízes das equações, ele se esforça em
isolar certas famílias ou classes de equações tais que as raízes das equações de uma
mesma classe se exprimem por meio de fórmulas algébricas em função umas das outras:
assim todas as equações de uma classe seriam - si ele resolve uma - resolvidas ao
mesmo tempo, fato do qual o matemático tira consequências mais interessantes e úteis
do que aquelas que poderia conduzir o cálculo efetivo dos valores das raízes. Adotando
um ponto de vista um pouco diferente, ainda se poderia perguntar quais são os números
que seriam necessários associar aos números “ordinários” (números racionais e
números calculáveis por radicais) para que as raízes de equação possam ser exprimidas
por fórmulas algébricas, por meio dos números ordinários e dos números adjuntos.
Desta forma bem imprevista, que foi dada aos problemas das equações é que nasceu
uma teoria extremamente fecunda.
O estudo do problema da integração nos sugere observações semelhantes.
Sabe-se que o cálculo das integrais definidas
3 Determinação da Impossibilidade da resolução algébrica das equações gerais que passam do quarto grau (1826)
[Obra. De Abel, Ed. Sylow-Lei, t. I,p.66]. 4 A memória fundamental de Galois (morto aos vinte anos em 1832) que foi publicado em 1846 no Jornal do
Liouville: “Memória sobre as condições de resolução das equações por radical”. As vias que conduziram as
descobertas de Galois haviam sido preparadas por Lagrange, Abel, Cauchy. Estas descobertas continuaram em
outros trabalhos de Hermite, Jordan, Klein e de novos autores analistas. Ct. M. Winter, o Método na Filosofia
das Matemáticas, p. 146 e seq.
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36
só pode ser efetuado em termos da álgebra elementar quando os polinômios são de grau
1 ou 2 (n igual a 1 ou 2). Se n é maior que 2, este cálculo torna-se tão impossível como
a resolução de uma equação algébrica de quinto grau. Reconhecendo-se esta
impossibilidade, precisa-se renunciar ao estudo mais profundo das integrais y e z nas
quais n tem-se o valor 3? De modo algum, porque se descobriu uma espécie de atalho
que permite penetrar no coração de suas propriedades. Quando z é igual a integral
x é inversamente uma certa função de z, que se chama p(z). Ora constata-se que esta
função é fácil de construir e goza de propriedades extremamente notáveis. Ela pertence
à família das “funções elípticas” que são parecidas com as funções trigonométricas, mas
que são, entretanto, mais gerais e a isso, se deve nossa maior dificuldade. Em vez de
atacar diretamente a integral que fornece o valor de z, poder-se-ia tentar entender as
propriedades da função p(z). – Constata-se por outro lado, que a integral definida
encontra-se como uma função (função elíptica) de z, que pode ser considerada como
conhecida quando se conhece p(z); mas geralmente, a teoria das “funções elípticas”
permite estudar as integrais de todas as funções de x que são funções racionais de x e
dependem de um polinômio em x do terceiro ou do quarto grau5.
Quando, nas integrais y e z acima, o grau n é superior a 4, o método das funções
elípticas recusa seus serviços. Estamos excedendo os limites de seu campo de ação. Mas
isto não é um problema, tomemos outro caminho nos desviando ainda mais.
Retornemos ao estudo das integrais y e z, contudo, não mais diante da consideração de
5 Integrais de força onde R é uma função racional de duas quantidades x e u e onde P
como polinômio em x do terceiro ou quarto grau.
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uma função, de uma variável p(z), mas ao estudo simultâneo de funções de várias
variáveis, funções de um tipo notável, ditas funções abelianas.
Agora, se deixarmos o capítulo das integrais definidas e passarmos às equações
diferenciais – um dos conteúdos mais importantes da Análise Moderna – nós veremos
se multiplicar e se diversificar cada vez mais os métodos de pesquisa.
Tem-se estudado com sucesso certos tipos de equações diferenciais, pertencentes
à família das equações lineares, mais nesta ordem de ideias chega-se em um ponto no
qual parece não haver mais progresso. O que poderia ser feito? Pesquisando-se em uma
parte das matemáticas extremamente afastada das equações diferenciais surge um novo
instrumento do cálculo: a função automorfo, fuchsiana ou kleineana6, cuja definição
repousa sobre a teoria de grupos de substituições e que generaliza uma função particular
deparando-se com um problema relativo ao das funções elípticas.
Na teoria das equações diferenciais não-lineares, aparecem dificuldades maiores
ainda, tornando todo progresso impossível; porque, além de se ter uma pequena parte
desse número de equações imediatamente integráveis, em outras, nenhuma propriedade
conhecida aparece. Mas nesta floresta fechada, se apresenta uma pista inesperada.
Constata-se que há uma estreita correlação entre os diversos caracteres científicos das
equações diferenciais e a natureza de seus pontos singulares. Desta ideia Sr. Painlavé
retira uma classificação de equações diferenciais que ele conduz a notáveis descobertas.
Estes exemplos, escolhidos entre muitos outros, serão, sem dúvida, suficientes
para fazer ressaltar a variedade de pontos de vista que caracterizam a matemática
contemporânea. Quanto mais observamos, mais nos impressionaremos com a
abundância de recursos disponíveis. Porém, constataremos, ao mesmo tempo, que esta
riqueza tem por consequência certa ausência de ordem e de coerência. As teorias
parecem mal delimitadas, se cruzam e sobrepõem-se umas sobre as outras, são
introduzidas de uma maneira abrupta sem razões aparentes, depois são abandonadas e
depois novamente retomadas sem que se saibam os princípios que presidem a sua
formação e a sua conexão.
De um lado, resulta que o plano do edifício matemático não aparece claramente
e, por outro lado as regras, que gerenciam o trabalho de pesquisa, os métodos que
permitem a ciência se desenvolver parecem ser mais contingentes e incertos.
6 A existência das funções foi demonstrada por Henri Poincaré em 1881. – Poincaré estudava uma série de
artigos, as propriedades as quais elas gozam e as aplicações que se pode fazer estudando as equações diferenciais
lineares.
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38
Isto nos chama a atenção às reflexões, muitas vezes citadas, feitas por Galois que
pronunciou, por volta de 18307, inspirado pela experiência de sua breve e brilhante
carreira matemática:
De todos os conhecimentos, sabe-se que a análise pura é a mais
imaterial, a mais eminentemente lógica, e a única que não exige nada das
manifestações dos sentidos. Muitos concluem daí que a Análise é a mais
metódica e a mais bem ordenada. Mas isto é um erro [...]. As pessoas que
consideram a Matemática como sinônimo de algo regular se surpreenderão
bastante. Todavia, aqui como em geral, a ciência é uma obra do espírito
humano, que é muito mais destinada a estudar do que a conhecer, a buscar do
que a encontrar a verdade. Entendemos que um espírito que teria a força de
perceber com um só lance a totalidade das verdades matemáticas [...] poderia
deduzi-las regularmente e instintivamente de uma maneira regular e de acordo com os métodos uniformes [...]. Mas as coisas não são assim, a tarefa
do pensador é mais penosa e, portanto mais bela, o progresso da ciência é
menos regular: a ciência progride por uma séria de combinações onde o acaso
tem um papel importante; a vida da ciência não é orgânica, mas é semelhante
àquela dos minerais que crescem por justaposição. Isso se aplica não somente
a ciência que é resultante do trabalho de uma série de cientistas, mas também
às pesquisas particulares de cada um deles. Os analistas queriam disfarçar,
em vão, pois eles não deduziam, mas combinavam, comparavam e quando
chegavam a verdade, certamente, a alcançavam por meio de desvios e por
acaso.
O método de pesquisa descrito aqui por Galois é, como se vê, o método
experimental. Para superar os obstáculos que barraram o caminho da lógica, o analista
usa recursos, que são, em geral, tão artificiais quanto os do físico ou do naturalista.
Se o matemático encontra-se, assim, obrigado a utilizar vários meios para
conduzir suas pesquisas, pelo menos, ele sabe com toda precisão desejável o que está
procurando ou para onde quer ir?
A concepção sintética da ciência era – como foi visto anteriormente – conduzida
pela ideia de que as teorias matemáticas podem ser construídas arbitrariamente,
contanto que elas obedeçam a certas regras formais e convencionais. Usando sua
liberdade o matemático, naturalmente, começa estudando as teorias fáceis, quer dizer,
aquelas às quais a linguagem da álgebra se adapta perfeitamente. Mas se estas teorias
não são suficientes devemos mantê-las até que ponto, e em qual sentido temos que
superá-las?
Poderia se responder que o matemático será guiado na sua marcha pelo desejo de
chegar aos resultados interessantes e fecundos. Tanto na Matemática, como na Física, é
o sucesso que justifica a pesquisa e que determina a tarefa final. Mas, o que é
7 Manuscritos em papiros inéditos de Galois, publicado por J. Tannery. Boletim de Ciências matemáticas. 1906,
p.259-60.
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exatamente o sucesso? Pois está claro, que se nós permanecemos nos domínios da
Análise pura, o sucesso não se manifesta como na física, em termos de uma
conformidade até certo ponto grande da teoria com os dados da experiência.
De fato, o matemático não conhece nenhum princípio, nenhum critério objetivo
que lhe permita decidir se vale ou não a pena dispensá-lo para poder construir uma
teoria. Ele é, para dirigir sua atividade, forçado a contar com sua perspicácia e a sua
inspiração, esperando que lhe surja uma nova visão. Émile Borel8 escreve:
O que é necessário e esta é uma ideia feliz, é se ter a introdução de tal
noção que permite agrupar os fatos conhecidos e em seguida descobrir novos
fatos [...]. A invenção propriamente dita, a invenção verdadeiramente fértil
consiste, tanto na Matemática como nas outras ciências, em descobertas com
um ponto de vista novo para classificar e interpretar os fatos.
Observa-se que a tarefa do matemático esta longe de ser claramente traçada e
envolve embaraços em que o inventor, frequentemente, parece encontrar-se. Se as
observações que temos apresentado são corretas, poder-se-ia buscar explicar estes
embaraços por dois motivos diferentes e à primeira vista, totalmente opostos. O
matemático moderno é tomado de surpresa, porque dispõe de um poder criativo muito
grande; podendo construir uma infinidade de teorias, podendo se orientar por uma
infinidade de direções, ele nem sabe qual escolher. Mas permanece igualmente
embaraçado, porque, os conceitos e as propriedades que estuda resistem aos seus
esforços e curvam-se apenas imperfeitamente a sua vontade; ele sente que os conceitos
não são uma construção totalmente sua, não podendo mais igualmente ao algebrista do
século XVIII considerar a ciência como sendo o resultado puro e simples de suas
construções.
Esta última observação põe em destaque uma característica geral, um traço que
revela claramente a obra do matemático contemporâneo e que caracteriza bem a
fisionomia desta obra em relação às especulações dos antigos geômetras e dos
algebristas.
Entre a concepção grega da Matemática e a contrária concepção dos algebristas
sintéticos havia uma semelhança. Tanto uma como a outra pressupõe certa harmonia
pré-estabelecida entre a tarefa e o método da ciência matemática, entre os objetos que
esta ciência pesquisa e os procedimentos que lhes permite atingir estes objetos.
8 Lógica e intuição em Matemática, Revista de Metafísica, maio 1907, p. 281.
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Assim, na geometria euclidiana servem as mesmas belas e harmoniosas
propriedades que são pesquisadas tanto como objetos como instrumentos para pesquisar
outras propriedades mais remotas; todo teorema é ao mesmo tempo um objeto e um
instrumento de pesquisa.
Semelhantemente, em toda a ciência algébrica os objetos estudados, unicamente
compostos ou agregados aos elementos, não contém nem mais e nem menos que os seus
próprios elementos e o fim que possuíam se encontram, por consequência, determinado
pelos meios que empregam em seu trabalho. – Assim, por exemplo, depois de haver
estudado algebricamente as curvas do segundo grau (ou seções cônicas) Descartes,
convida-nos a elevar progressivamente as curvas cada vez mais “compostas” (grau cada
vez mais elevado). O problema assim exposto e moldado na forma sobre a qual opera-
se a composição algébrica, propõe-se a estudar, entre todas as curvas, aquelas que
correspondem as equações polinomiais e as considera na mesma ordem, segundo as
quais, as equações correspondentes procedem umas das outras. – Semelhantemente,
quando se define a função analítica transcendente como a soma de uma série
convergente, procura-se constituir uma teoria onde objeto e instrumento de
demonstração se fundem um no outro, pois objetivo dado ao cálculo de séries é
exatamente o estudo das propriedades destas expressões.
Se voltarmos nosso olhar para a ciência contemporânea, então o que veremos? A
harmonia da qual falamos está quase completamente desaparecida. Quando nos é
proposto um problema é impossível prever quais são os procedimentos –
frequentemente muito indiretos – que permitem a resolução. Inversamente, qualquer que
fosse a familiaridade em relação aos mecanismos de sua arte, o matemático nem sempre
percebia com clareza em quais problemas ele deveria aplicar esta arte. Segue que, hoje
em dia, este não é necessariamente o mesmo homem que era, na Matemática, um
inventor original e um hábil técnico. Parece que as características, que o faziam um
inovador perspicaz apto para descobertas e o outro um mestre de demonstração,
cessaram e já não são as mesmas.
Em outros termos, um dualismo se manifesta no seio da matemática pura. As
técnicas de provas, por um lado, deveriam satisfazer a certas condições determinadas e
possuir certas características próprias, que são as mesmas que pusemos em destaque nos
dois capítulos precedentes (porque, no que concerne à demonstração, o ideal da escola
algebrista e sintética em nada foi mudada pelas gerações modernas). Mas, por outro
lado, os fatos que a Matemática estuda atualmente parecem depender de condições
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diferentes àquelas das demonstrações. Não apenas porque estes fatos não são resultados
de combinações algébricas, mas porque estão em contraste com a álgebra e se deixam
encaixar apenas imperfeitamente nas suas fórmulas algébricas. Os progressos realizados
pela Análise parecem que só podem ser adquiridos ao preço de uma luta, cuja marcha é
incerta e a saída sempre duvidosa.
II. - A objetividade dos fatos matemáticos
Para explicar as características e as tendências das matemáticas contemporâneas,
fomos conduzidos a empregar certas expressões, as quais nos haviam servido, quando
nós considerávamos a Matemática grega, mas, estudando o período algébrico da ciência
temos a todo possível procurado evitá-las. Falamos de conceitos, de objetos
matemáticos ou de fatos matemáticos. Expressões convenientes, mas ambíguas. Deveria
ser atribuído a elas apenas um valor metafórico, ou pode-se, ao contrário, empregando-
se do ponto de vista da ciência atual dar-lhes uma significação precisa e positiva?
Independentemente do que se pense a respeito desta questão, em todo caso, há
um ponto que parece certo, se estas expressões existem nas fórmulas e nas deduções
matemáticas de conceitos objetivos, estes conceitos não são de origem empírica.
Observe que não fizemos nenhuma alusão, no curso desta obra, às doutrinas que por
vários motivos e com argumentos diversos, têm buscado fundar o sistema das
matemáticas sobre os dados experimentais. Mesmo que estas doutrinas tenham um
grande papel no desenvolvimento das ideias filosóficas, elas não parecem ter influência
de uma maneira notável ao pensamento dos matemáticos. Os fundadores da ciência
grega ficaram afastados o máximo possível do empirismo. Descartes, Leibniz, eram do
mesmo modo opostos ao empirismo. Os algebristas puros, por outro lado,
permaneceram fiéis aos princípios de sua arte, se desinteressavam da natureza dos
elementos que combinavam, de modo que eles não tinham interesse em tomar partido
entre o empirismo e as doutrinas contrárias. Quando enfim, no fim do século XIX,
certos matemáticos têm apresentado tendências filosóficas que buscam traçar um ponto
de vista cientificamente rigoroso, em relação à questão da origem dos conceitos
matemáticos, isto foi para refutar – ao que parece definitivamente – a doutrina dos
empiristas.
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Não temos necessidade de reproduzir os argumentos já foram elaborados contra
esta doutrina, argumentos aos quais os matemáticos do nosso tempo, quase que,
unânimes a aderiram. Estes argumentos encontraram-se expostos notadamente nas obras
filosóficas de Henri Poincaré. Consideremos, como admitido, que os conceitos
matemáticos não são emprestados do mundo sensível, onde jamais se encontram
perfeitamente realizados; eles também não são um produto de abstração, porque são
livres de todas as características que formam nossa percepção dos objetos reais; enfim,
as proposições matemáticas não poderiam ser olhadas como objetos em um sentido
empírico da palavra, porque nenhuma experiência física poderia jamais demonstrar a
verdade ou a falsidade de seus postulados.
Sem dúvida, não é possível concluir, contudo, que a nossa ciência Matemática
seja independente da experiência. Depois de Henri Poincaré, ao contrário, a maior parte
de nossas teorias é em última análise determinada por considerações de origem
experimental. Mas, isto não ocorre em razão de uma necessidade fundamental e sim
unicamente por motivos acidentais. A fim de obter uma Matemática que possa ser
aplicável aos estudos da Física e que, por outro lado, seja de acordo com as condições
comuns ao conhecimento humano, nós devemos entre uma infinidade de sistemas de
postulados teoricamente possíveis escolher estes e não aqueles, e nossa escolha é guiada
pela experiência de nossos sentidos; mas esta não é a escolha que deveria conferir aos
postulados e aos conceitos de nossa ciência uma característica de objetividade.
Nota-se, como nesta teoria da ciência certos pensadores podem arrastar-se para a
doutrina neo-nominalista que Sr. Edouard Le Roy9 tem desenvolvido, há vinte anos, em
uma série de notáveis artigos. Sr. Le Roy defendeu-se de ser nominalista, e esta
qualificação não convém, de fato, à sua filosofia; mas ele não deveria se surpreender ao
ver que esta caracterização foi aplicada na sua concepção das ciências matemáticas e
físicas. Seguindo uma fórmula de Le Roy, Henri Poincaré10
tem discutido longamente
em O cientista cria o fato. Em outro lugar disse: “que os fatos são talhados pelo espírito
na matéria amorfo do dado11
”. “A ciência racional não se dá a tarefa de responder a
uma necessidade exterior que já se encontra pronta e escondida na realidade; sua missão
é fabricar a própria verdade, que ela pesquisa12
”. No que concerne, especialmente, a
Matemática ela é “resultante inevitável dos postulados anteriores admitidos nos
9 Henri Poincare tem pronunciado, quanto a ele, em termos categóricos contra a doutrina néo-nominalista. 10 Ciência e filosofia, Revista de Metafísica, 1899 e 1900. 11 Revista de Metafísica, 1899, p.517. 12 Ibdi. p. 559.
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discursos; ela parece superficial quando os postulados que a determinam não são
explicitamente desempenhados13
”. “O que há basicamente em um fato matemático é a
atividade regular do espírito do mesmo modo que esta trabalha para o estabelecimento
do discurso”.
Interpretada literalmente esta tese seria apenas uma forma particularmente
explícita e categórica da mesma natureza que resulta da concepção algébrico-sintética
da ciência a qual nós escrevemos acima. Os argumentos dos pensadores e os fatos sobre
os quais se guiam estes argumentos são nada mais que uma combinação artificial de
elementos moldados por nosso espírito. A ciência é inteiramente obra do homem que
permite dar à gênese das teorias uma explicação pragmática muito mais absoluta que
esta, cujo Henri Poincaré havia feito a interpretação. O fato científico – escreve Sr. Le
Roy14
– “não é a realidade, como ela aparece para nossa intuição imediata, mais é uma
adaptação do real aos interesses da prática e as exigências da vida social”.
Doutrina perfeitamente coerente e de onde se obtém uma definição muito clara
da ciência a qual satisfez numerosos cientistas. Mas o destino desta doutrina está ligado,
se não nos enganamos, ao das concepções e das visões científicas, a qual em um
capítulo precedente nós constatamos a insuficiência. As razões que nos faz acima
renunciar em considerar a Matemática como um vasto sistema algébrico-lógico,
deveriam igualmente nos impedir de vê-la como uma construção convencional, uma
simples criação do espírito humano. A doutrina nominalista não saberia explicar nem
mesmo sobre a característica indeterminada da natureza insondável dos conceitos
matemáticos, nem sobre o vestígio da incompletude, nem sobre a impotência que as
teorias nos dão para alcançar o seu propósito e muito menos ainda saberia explicar sobre
a deformidade da harmonia, ou seja, sobre a oposição que temos levantado entre o
objeto de pesquisa do matemático e os métodos que ele utiliza.
É verdade que se o nominalismo não é exatamente preciso pelo menos a doutrina
pragmatista fornece uma explicação fácil do papel capital que desempenha a escolha na
edificação das teorias matemáticas; isto é, diz-se, que graças a uma série de escolhas
sucessivas entre várias construções possíveis é que obtemos uma ciência adaptada às
nossas necessidades práticas. Mas ao reportar-se a isto, que acima temos dito, a respeito
das condições na qual se exerce a escolha do matemático, constata-se que esta
explicação não é o suficiente para todos os porquês. A escolha intervém não somente na
13
Revista de metafísica, 1900, p. 45. 14Art. cit., Revista de Metafísica, 1889, p.379.
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determinação das definições e dos postulados, mas também e especialmente, nas teorias
as mais derivadas e as mais elevadas das matemáticas (que são aquelas onde a estrada a
seguir é a mais incerta). Ora, pode-se pensar que os postulados – aqueles de Euclides,
por exemplo – são escolhidos com a intenção de constituir uma ciência cômoda e
prática, não se saberia apoiar a mesma tese aos propósitos de teorias que de nenhum
modo podem ser relacionadas aos fatos experimentais. Não é próprio do matemático
que uma teoria abstrata possua um valor próprio e que seja solidamente conveniente
fora das aplicações nas quais ela pode dar lugar. Como, por consequência, fazer
depender deste valor a discriminação que nos permite perceber utilitárias
considerações?
Se a Matemática tem-se adaptado até certo ponto às condições experimentais,
este fato não é em virtude de suas propriedades intrínsecas, mas por causa de
circunstâncias contingentes. Mostrar que uma ciência relativamente simples permite
explicar os fenômenos da natureza. Este é um acaso feliz que poderia não se apresentar.
Se o sistema solar, no lugar de ser isolado se encontrasse próximo de estrelas grandes e
numerosas, cuja atração sobre o nosso mundo viria a aproximar-se àquela do sol, o
estudo do movimento da terra por intermédio das equações e da mecânica racional
tornar-se-ia praticamente impossível.
Principalmente, quando se sustenta que a nossa ciência é “cômoda” e “adaptada
às nossas necessidades”, este fato tanto é devido a um acordo da ciência com a
experiência que os pragmáticos nominalistas têm em vista, quanto ao fato que antes de
tudo, a ciência é conforme a natureza de nosso espírito e bem adaptada às condições nas
quais se exerce nossa atividade intelectual. – Neste sentido, a tese pragmatista nos
parece ser desmentida pelas conclusões que já discorremos. Nós reconhecemos que o
matemático visa constituir uma ciência que seja tão “cômoda” quanto possível; mas
constatamos igualmente que esta não foi atingida ou mais exatamente, que apesar de sua
potência e riqueza a matemática cômoda não poderia nos ser suficiente. O melhor
método matemático adaptado as nossas necessidades intelectuais é, com efeito,
indubitavelmente, aquele da álgebra. Ora, nós cremos que existe contradição entre as
exigências deste método e certas especulações que se impõem ao espírito do
matemático.
Assim, estamos atribuindo uma importância cada vez maior a este conflito
interior à ciência matemática, ao qual buscamos acima pôr em evidência, – conflito que
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os matemáticos profissionais talvez não precisem explicar, mas ao qual eles têm, em
muitas ocasiões, um sentimento muito nítido e muito vivo.
Ora, existe uma observação notável, se ao invés de concentrarmos nossa visão
no Sr. Le Roy sobre as teorias matemáticas, porque não consideramos o conjunto de sua
doutrina para encontrarmos nesta a indicação de um conflito analógico. Sr. Le Roy
admite, também que o espírito humano não age livremente, mas que ele é comprimido
em suas criações e é obrigado a dar conta das necessidades que lhe são desconhecidas.
Ele pensa como nós, que há um desacordo irredutível entre a matéria e o instrumento de
nosso conhecimento. Mas Sr. Le Roy coloca de uma maneira diferente da nossa o corte
que divide o domínio do conhecimento discursivo dos dados objetivos. Para Sr. Le Roy
a ciência inteira pertence ao primeiro domínio e a filosofia sozinha tem o privilégio de
entrar em contato com a realidade e com dado primitivo. Sem dúvida “há nos fatos um
resíduo misterioso de objetividade15
”. Sem dúvida, se o conhecimento humano é por um
lado “construção”, ele o é, por outro lado, recorte, “retaliação” de uma matéria. Mas a
ciência, “ocupa-se somente da retaliação característica de seu ponto de vista”, não
considerando esta matéria. Esta é a crítica filosófica que cabe a ela resgatar. Ora,
quando observamos rigorosamente as condições nas quais trabalham os matemáticos
modernos somos conduzidos, assim como eles foram a uma conclusão diferente. Com
efeito, esta luta do espírito com uma matéria rebelde, que descreve Sr. Le Roy e depois
Sr. Bergson, se manifesta, não somente no exercício do conhecimento filosófico, mas no
próprio seio dos matemáticos puros. E esta é a distinção feita por Sr. Le Roy que é
como a separação que a opinião comum costumeiramente faz entre – simplificando a
ideia de Pascal – o espírito sutil e o espírito geométrico. A diferença existe,
incontestavelmente, mas não é entre a ciência matemática e outro domínio; esta
diferença é entre dois aspectos de nosso pensamento que se encontram em quase todos
os nossos atos intelectuais, já nas matemáticas como se observa frequentemente, o
espírito sutil desempenha um considerável papel. Semelhantemente, certos matemáticos
não acreditam que há entre o pensamento matemático e o pensamento vivo ou filosófico
uma diferença tão radical como Sr. Bergson ou certos discípulos de Sr. Bergson dizem.
É neste sentido que é necessário interpretar as dúvidas ou mal entendidos que a teoria da
ciência proposta pela “Evolução criativa16
” tem feito no espírito de certos analistas.
15 Art. Cit., Revista de Metafísica, 1899, p. 518 16 Cf. E. Borel. A evolução da inteligência geométrica, apud Revista de metafísica, 1907, p. 747 e seguinte.
Discussão: Revista de metafísica, 1908, p. 28 e p. 246.
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Para aprofundar os conceitos matemáticos, assim como para estudar os
problemas da vida, é necessário que o espírito se violente, é necessário fazê-lo,
querendo ou não, entrar em um molde, que não é feito para receber uma realidade
refratária. Com a finalidade de resolver esta resistência da matéria matemática que é
oposta à vontade do pensador, somos obrigados a supor a existência de fatos
matemáticos independentes da construção científica; somos forçados a atribuir uma
verdadeira objetividade aos conceitos matemáticos: objetividade que chamamos
intrínseca por indicar que não se confunde com a objetividade relativa ao conhecimento
experimental.
Qual significado metafísico convém atribuir em matemática pura, a palavra
“objetividade” e também aos termos realidade, matéria e existência? Esta é uma
questão a qual o matemático não sabe responder a si mesmo. Ele se limita a exprimir –
em termos que lhe parecem responder melhor ao estado da ciência matemática – o
resultado das constatações e reflexões o qual conduz o exercício desta ciência.
Então, tentaremos resgatar, resumindo e agrupando as observações já feitas, os
caracteres matemáticos dos fatos e conceitos estudados pelos geômetras e pelos
analistas de nossa época.
O fato matemático é independente do vestuário lógico ou algébrico sobre o qual
nós procuramos representá-lo. De fato, a ideia que temos é mais rica e mais plena que
todas as definições que podemos dar, que todas as formas ou combinações de signos ou
de proposições pelas quais nos é possível exprimi-la. A expressão de um fato
matemático é arbitrária e convencional. Em contrapartida, o fato em si mesmo, a
verdade que o contém, está fora de toda convenção e se impõe ao nosso espírito. Assim,
não se pode dar conta do desenvolvimento das teorias matemáticas, se queres ver nas
fórmulas algébricas e nas combinações lógicas os próprios objetos aos quais, o
matemático continua a estudar. Ao contrário, todos os caracteres destas teorias se
explicam facilmente admitindo-se que a álgebra e as proposições lógicas não são mais
do que a linguagem na qual se traduzem um conjunto de conceitos e fatos objetivos.
Os algebristas e os lógicos têm razão de olhar a Matemática como um sistema
algébrico-lógico. Isto é, sobre esta forma se apresentam na realidade as teorias já
adquiridas e é igualmente sobre esta forma que esforçam-se para exprimir os novos
fatos que se vê incorporar na ciência. Tomamos e desmontamos uma parte qualquer do
edifício matemático: não encontramos nada mais que um sistema de definições e de
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postulados enunciados na linguagem da lógica e da álgebra, associados de acordo com
as regras destas duas artes.
Mas se buscarmos discernir as razões que no trabalho da pesquisa têm
determinado a escolha do matemático, logo nós observaremos que as características
mais impressionantes dos objetos pesquisados, parecem que são praticamente incomuns
às qualidades formais da teoria algébrico-lógica. (Nesta afirmação estamos tentando
abstrair, da melhor maneira possível, a forma da exposição e dos instrumentos da
demonstração, fazemos esta abstração apenas olhando para os próprios objetos,
comparando uns com os outros e considerando-os sobre todas as perspectivas, os
resultados que conduzem as teorias e os objetos para os quais são conduzidos).
Quais são, de fato, as qualidades às quais se reconhece a beleza e a solidez de
uma teoria? Elas residem, por uma parte, na simplicidade e na precisão – a compreensão
bem determinada – das definições e dos postulados e, de outra parte, no encadeamento
rigoroso e na boa ordenação das deduções e das construções. Ora, nós vimos que os
próprios fatos matemáticos, são totalmente indiferentes da ordem em que são obtidos;
não se poderia fixar exatamente sua compreensão sem de certa forma empobrecê-los; e
seria evidentemente insensato fazer seu valor depender de uma simplicidade que talvez
não exista relacionada a nós e aos hábitos de nossa inteligência.
Não há nada que possa nos surpreender se assumirmos uma concepção que
compara a teoria com uma tradução. Do mesmo modo como as diversas línguas faladas
sobre a terra têm cada uma o seu caráter, seu espírito próprio e não permitem a tradução
literal, não deveríamos nos surpreender, que os fatos matemáticos possam ser apenas
imperfeitamente apresentados a uma linguagem algébrico-lógica. Esta linguagem tem
suas exigências e suas elegâncias. Tudo o que apresentamos em uma língua não pode
ser perfeitamente exposto em outra língua. Outras exigências que mantenham as
características dos fatos expressos devem, com efeito, ser satisfeitas.
Buscamos, no entanto, fornecer um resultado mais exato da natureza destes
fatos, em quais condições se determina e se orienta a pesquisa matemática, de qual
forma podemos abordá-las e possuí-las. Vamos ainda procurar esclarecer nossas ideias
considerando alguns casos específicos.
Nós nos esforçamos em mostrar acima que o conceito de função matemática não
pode ser reduzido a uma combinação quantitativa, nem aos princípios lógicos
elementares. O que existe, pois na realidade, no interior deste conceito? Pode ser que
façamos uma ideia se voltarmos à origem primeira do conceito de função e se
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considerarmos esta concepção como se apresenta primitivamente ao nosso espírito,
antes de toda elaboração algébrica e lógica.
Conceber uma função de uma variável – uma correspondência entre duas
variáveis matemáticas – isto é, definitivamente, admitir que entre dois termos variando
simultaneamente exista uma relação sempre idêntica a ela própria, isto é postular que,
sob a mudança aparente do antecedente e do consequente, existe alguma coisa de
constante. Ora, este postulado nós conhecemos bem. Isto é o que preside da parte
superior à inferior da escala, em todas as ciências físicas e naturais. Este é o conceito
geral da lei.
As dificuldades que se encontram nos estudos de funções matemáticas, não são,
aproximadamente, da mesma ordem que aquelas com as quais lutam os físicos? Sendo
dada uma conjetura que existe uma relação, como por exemplo, uma ação recíproca de
duas moléculas eletrizadas colocadas em certo dielétrico, onde o físico buscará traduzi-
la por meio de uma relação quantitativa. Na própria análise: temos antes todo o trabalho
da concepção de função y(x), isto é dizer, uma intuição da lei matemática após a qual,
quando escolhemos um valor arbitrário de x, encontra-se certo valor de y para o mesmo
desígnio e só depois esforçaremos para obter equações que exprimam de uma maneira
menos mal possível, esta estranha relação das duas variáveis x e y.
A correspondência matemática não é uma consequência das operações
algébricas, é o próprio objeto que as determina. Por detrás deste sistema de símbolos
que nós acrescentamos indefinidamente uns aos outros, – como faz um hábil equilibrista
que se agrada em acumular as dificuldades nos seus exercícios, – há leis únicas e
indecomponíveis, cuja fórmula adequada nos escapa, mas que, contudo pressentimos
que nós ingenuamente a traduzimos na nossa linguagem algébrico-lógica. Aquele que
olharia o andaime poderia imaginar que os matemáticos não têm, com efeito, outra coisa
além de um edifício habilmente construído, cujas partes ajustam-se bem umas as outras.
Mas este poderia esquecer-se que para dirigir tantos esforços é necessário um objetivo
para o qual converge um modelo que tendem a realizar.
O problema mais geral ao qual se ocupa a Análise Matemática permitiria, nós
acreditamos, se definir assim: é necessário formar a ideia geral da lei matemática que
encontramos em nosso espírito, as diversas formas algébricas concretas que nós temos
condições de dar-lhes. Aprofundando esta questão, descobrimos que abordando o
conceito geral de relação funcional esta comporta determinadas particularidades
notáveis; a função pode permanecer ou não finita, ser contínua ou descontínua, ter ou
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não ter uma derivada em um ponto. Agora nos limitaremos, provisoriamente, às funções
contínuas com uma derivada. Deslocando em um plano a variável independente x,
observamos que a função y(x) geralmente perderá suas propriedades de continuidade
em certas regiões do plano: estas regiões podem ser os pontos ou as linhas ou as
superfícies; de onde resulta uma particularização cada vez maior do conceito intuitivo
de função. Em outros termos, uma classificação de funções. Qual é então, a
representação analítica das diversas famílias de funções? Qual conexão se tem com as
outras funções mais simples? Quais são os signos distintivos aos quais sabemos
reconhecer? São muitos problemas, que os analistas devem resolver. Destes problemas,
alguns têm solução, outros ainda esperam, mas mesmo estes são postos de uma forma
necessária. Objetivamente: não devemos, nem podemos nos esquivar.
Transportamo-nos – para tornar nossa conclusão mais clara aplicando a um caso
mais simples e especial – para o terreno da geometria. O que é, propriamente falando
uma curva geométrica, uma elipse, por exemplo?
Sob a palavra “elipse” não se deve ver um reenvio de uma definição dada em
termos lógicos, tal como segue: “chama-se elipse à curva em que o lugar dos pontos
cuja soma das distâncias a dois pontos fixos desse plano é constante”? Esta maneira de
ver não é aceitável, porque uma definição qualquer de elipse não é, evidentemente, uma
propriedade particular da curva, escolhida arbitrariamente entre uma infinidade de
outras: Ora, temos dito desde já que é o conjunto das propriedades da elipse e não
somente uma delas que constitui um ser matemático.
Por uma razão semelhante não deveríamos identificar o conceito de elipse com a
“equação da curva”. – Tentemos então caracterizar a elipse por sua figura olhando para
ela, por exemplo, como um conjunto de pontos, que estão subjugados em certas
condições? Mas apresentar a elipse como um conjunto de pontos é evidentemente uma
perspectiva artificial. Uma elipse é um todo que não é composto por partes; é uma
espécie de mônada leibniziana. Esta mônada contém todas as propriedades da elipse;
com isso quero dizer que estas propriedades estão contidas no conceito de elipse e
fazem parte do conceito de elipse – mesmo que elas não possam ser explicitamente
representadas (e elas não poderiam ser, visto que, são em número infinito) –. Nossa
tarefa consiste então em dissecar tudo o que nos é oferecido com a finalidade de fazer
aparecer os elementos que prestam melhor clareza do comportamento e dos caracteres
da curva. É assim que a análise ou a decomposição da curva em seus elementos nos
conduz a caracterizar a curva por sua tangente ou por sua “curvatura” em um ponto
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qualquer. Com o mesmo espírito sulcamos a área da elipse por retas paralelas aos eixos
de simetria, ou por retas saindo do centro e por arcos de círculos, e do comprimento
destas aberturas deduzimos a grande área da curva e de suas partes. Logo consideramos
a elipse como intersecção de um cone com um plano, como a projeção ortogonal de um
círculo ou como o lugar de pontos que gozam de tal ou tal propriedade. Infinitamente
numeroso é o viés por onde se pode abordar o estudo da elipse. Como disse Platão17
:
“Mas estamos em uma situação crítica, onde é uma necessidade considerar os objetos de
todos os lados para sondar a verdade”.
Os caracteres que somos, assim, conduzidos a atribuir aos fatos matemáticos nos
explicam as dificuldades contra as quais os cientistas, que buscam o conhecimento, se
debatem. É necessário conquistar uma matéria rebelde e impor a esta matéria uma forma
que não lhe convém. Por causa das indagações, as hesitações, os artifícios aos quais
temos falado acima, e que são os incidentes dos acontecimentos ou da investida, pelas
quais se reduzem os conceitos à primeira vista inconquistáveis. Quais são, aliás, os
meios utilizados neste conflito? Saber-se-ia evidentemente tomar posse dos conceitos
importantes apenas ao preço de certos sacrifícios. Para fazer a realidade matemática se
encaixar no molde algébrico-lógico, é necessário decompor, dividir, é necessário
renunciar para não penetrar particularmente em certo ângulo, quitar e atacar em seguida
outro lado. Por causa da variabilidade, a indeterminação e o aspecto sempre provisório
das teorias. Para analisar completamente um fato matemático, seria necessário estudar
uma infinidade de ponto de vista diferente, multiplicar sem limites o número de
combinações algébrico-lógicas a qual se serve. Sr. Painlevé, professor de Mecânica no I
Congresso Internacional de Filosofia,18
disse que ciência é um método convergente que
por aproximações sucessivas tende para a realidade.
Vemos como o ponto de vista do cientista que compreende assim sua missão
afasta-se do ponto de vista sintético dos lógicos e dos algebristas.
Sem dúvida, o trabalho do matemático conduz sempre a uma síntese; contudo, a
síntese é relegada para o segundo plano na ordem das preocupações dos pensadores. O
que é atualmente visto como essencial no trabalho das descobertas é a análise, como já
dissemos no começo deste capítulo, – mas a análise passa a ser entendida num sentido
novo. Após ter sido desde o século XVI ou século XV – pelo menos, após ter sido,
sobretudo – o matemático tornou-se uma espécie de inspetor, um construtor, um
17 Théétête 18 Ct, Revista de Metafísica, 1900, p. 588
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generalizador que analisa à maneira de um químico, uma matéria estranha e
infinitamente complexa. É também, se quiser, um explorador, com a tarefa de se
orientar em um continente desconhecido, e que busca descobrir as riquezas, as regiões
“interessantes”, sem, aliás, saber qual lado deve exatamente avançar e dirigir sua
pesquisa para atingir seu objetivo.
Assim, ao curso do século XIX, o julgamento do matemático considera as
diferentes partes da ciência que parecem ser reversa a ele. O que costumava ser mais
interessante, era a demonstração, os processos e o sucesso dos cálculos; os resultados e
as combinações obtidas podiam, evidentemente, divergir em todos os sentidos e serem
multiplicados ao infinito, não havia espaço para vincular um grande valor a sua
enumeração; a unidade que perseguia a ciência não podia ser uma unidade de método.
Atualmente, ao contrário, isto é o que conta, é o resultado que fornece ao trabalho sua
unidade; os artifícios da demonstração são apenas um trabalho da arte sem os quais, nós
que não sabemos voar, estaríamos fora do estado de superação das dificuldades e dos
acidentes do terreno que se encontra em nosso caminho.
Mas, diz-se que esta concepção matemática não pode ser vista como nova. É, ou
pelo menos deveria ser aproximadamente aquela concepção de Platão e dos geômetras
contemplativos da Grécia. A reversão da atitude dos cientistas só teria o efeito, então, de
reconduzir às doutrinas da Antiguidade?
Buscando definir acima essas características que os modernos atribuem aos fatos
matemáticos abstivemo-nos de fazer aproximações históricas que podem dar lugar a
equívocos. Certamente as conclusões que nos levaram aos argumentos que nós temos
desenvolvido, a própria linguagem a qual servimo-nos nas páginas que precedem,
sugerem naturalmente tal aproximação. Apoiamos que as verdades matemáticas são
fatos objetivos, independente de nós e que descobrimos e analisamos, de certa maneira,
exteriormente. Ora esta é uma ideia essencialmente grega. Inclinamo-nos, por outro
lado, a ver na demonstração o instrumento e não o fim da ciência. Assim com faziam os
geômetras helênicos.
Portanto, existe entre nossas concepções e as dos pensadores gregos, uma
diferença fundamental que temos, desde já, destacado no primeiro parágrafo do presente
capítulo.
Para os gregos, a ciência matemática é, sobretudo, expressão de unificação e
harmonia. A dualidade que há atualmente, entre a oposição da matéria e a forma sobre a
qual repousa nossa ideia de objetividade, não podia ser admitida pelos antigos. Vimos o
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sistema de Euclides, precisamente, tender em direção ao surgimento de um acordo que
predomina entre a verdade perseguida pelos matemáticos e os meios empregados para
atingir estas verdades. Assim, de acordo com os gregos, os conceitos matemáticos que
estudamos são as imagens fiéis das ideias que representam. Isto é que é o mais perfeito
para nós e ao mesmo tempo o mais perfeito em si. Disto provém a espontaneidade, a
facilidade e a passividade da contemplação na ciência antiga, como diz G. Milhaud19
–:
“Inteligibilidade e surpreendente facilidade do progresso, eis as características que
miraculosamente se reúnem, por meio da Matemática, graças ao fato que ela fica,
exclusivamente, atrás da ideia única e muito pura que o geômetra quer manejar”. Disto
provém, do mesmo modo, a crença de que para orientar seus trabalhos em boa via o
matemático precisa apenas pesquisar aquilo que é simples e aquilo que é “belo”.
Os modernos, ao contrário, – não crêem mais em uma harmonia pré-
estabelecida entre a matéria e a forma das teorias – o trabalho do pensamento
matemático toma um caráter totalmente diferente. O objetivo é de agarrar e de forçar
um objeto que nos resiste. Assim, não se buscará fazer um trabalho “belo”, mas somente
chegar a um resultado desejado, empregando para isso os meios e os artifícios mais
variados. A pesquisa científica não será por consequência mais uma contemplação
passiva, mas sim, uma indústria ativa, que utiliza todos os processos que os progressos
dos métodos algébricos e lógicos possam colocar à nossa disposição.
III. - A doutrina intuicionista
Nós temos visto como a investigação das teorias modernas da Matemática nos
conduz a atribuir-lhes, um certo caráter de objetividade. Mas essa maneira de ver é
apenas resultado indireto de um raciocínio que faz o matemático refletir sobre sua obra
já completa? Ou é apenas uma hipótese inventada sem importância alguma, com a
finalidade de perceber as dificuldades da Análise Moderna? Ou será que podemos,
talvez, realmente constatar uma contradição que parece se manifestar entre o objeto e as
formas das teorias?
19 G. Milhau. Os Filósofos Geômetras da Grécia, p.7.
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Estas são questões que o técnico, como dissemos, pode fortemente desistir de
fornecer respostas. Mas mesmo assim, é interessante conhecer sua opinião a respeito
disto. Muitos pensadores parecem ter consciência desta dicotomia, cuja qual, nós temos
falado. Eles pensam que podem delimitar a separação entre esses dois elementos da
ciência que constituem a teoria.
Claramente, pelo menos até certo grau, também poderia ser diferente admitindo-
se que uma teoria matemática é comparável a uma construção, ou melhor, uma
reconstrução de um conjunto de fatos objetivos? Pois, como uma construção dessa
maneira seria possível se não houvesse certo conceito e certa ideia dos objetos sobre o
qual se refere? Sem dúvida alguma, esse conhecimento dos objetos poderia ser
extremamente vago e indeterminado; dever-se-ia determinar no decorrer do trabalho e a
medida que a construção avança, pois antecipadamente seria impossível compreender as
operações sintéticas do matemático, se não existe uma ideia do objeto, mesmo que seja
de uma maneira confusa.
Além disso, é um fato da experiência do matemático, que permanentemente no
decorrer de suas atividades de pesquisa certas ideias e certas verdades se mostram em
sua mente muito antes que ele possa proceder às deduções e sínteses, que forneçam um
conhecimento exato dessas verdades. Muitas vezes existe um tipo de pressentimento
que permite adivinhar os resultados que serão conduzidos por uma corrente de provas, e
após longo tempo e mesmo que ainda haja qualquer justificativa lógica, essa visão
espiritual das idéias é frequentemente mais intensa, mais pertinente e fértil em sugestões
do que uma teoria completa.
Esses são os motivos que guiam os matemáticos modernos a pressuporem, como
os platonistas de antigamente, que poderia existir duas maneiras diferentes para se
chegar aos conceitos matemáticos, que seriam pela intuição ou pela dedução. A intuição
precede a prova, é ela que estimula e guia nossos trabalhos nos mostrando de uma
maneira, até mesmo confusa, quais são os fatos e as características que podem e devem
ter o objeto de nosso estudo. Por outro lado, somente a prova é admitida nas teorias
científicas, pois sem dedução, não há construção lógica e nem teoria que seja válida ou
possível.
Antes de prosseguir nós gostaríamos de chamar atenção e esclarecer que o
sentido da palavra intuição pode gerar um equívoco. Certos matemáticos preocupados
com a representação abstrata do pensamento matemático opõem-se aos que utilizam a
ajuda da imaginação afirmando que é necessário fazer um apelo à intuição no ensino da
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ciência. Esses pensadores querem falar da intuição dos sentidos, como sendo aquela que
ocorre quando se interpreta por imaginação ou por outras figuras concretas as
proposições teóricas da ciência. Ao contrário disto, a operação da mente que se opõe ao
conhecimento lógico, sob o nome de intuição, não está relacionada à nossa concepção
dos conceitos e nem a forma sob a qual esta se representa em nossa imaginação, mas
esta é uma intuição pura ou supersensível. Nós empregamos a palavra “intuição”, neste
segundo consenso, cujo uso parece noutro lugar se generalizar entre os matemáticos
contemporâneos20
.
Feitas essas observações, somos obrigados a reconhecer que a doutrina
intuicionista levanta objeções bem graves. Se, como acreditamos, as regras da síntese
algébrico-lógica exprimem as condições próprias do conhecimento científico poderia
existir um tipo de conhecimento, no qual estas regras não são respeitadas? Por outro
lado, temos que considerar que se os conceitos matemáticos podem ser percebidos
instintivamente, então estes conceitos não são apenas independentes de nossos
raciocínios (suspendendo o significado que nós temos dado até aqui a palavra
objetividade), mas existem individualmente como em um mundo de ideias puras: a
crença cuja crítica filosófica crê ter feito justiça e que é, aliás, diretamente contrária às
concepções da realidade matemática que nós temos formado acima.
A estas objeções o matemático não se sente obrigado a responder, pois são
direcionadas contra suas afirmações e o matemático quando se declara intuicionista não
as compreende como sendo de sua responsabilidade. O matemático não estuda o
problema metafísico do conhecimento e por consequência, não tem que explicar como
podem existir várias maneiras de conhecimento. E ainda, o matemático não é obrigado a
saber qual tipo de realidade pode-se atribuir aos conceitos ideais. Ele não forma um
juízo dessa questão em nenhum sentido. Mas ele constata que entre todas as doutrinas
que foram propostas para dar conta do desenvolvimento da ciência, apenas a doutrina
intuicionista permite explicar todas as características e todas as circunstâncias essenciais
20 Henri Poincaré, em seus primeiros escritos, emprega de preferência a palavra intuição no sentido “de intuição
sensível”; assim tem dito, Klein é um intuitivo porque ele precisa da ajuda do gesto para pensar; ele vê, ele busca representar ao espírito. Hermite, ao contrário, está ao lado dos lógicos como Méray e Weierstrass. (Cf, O valor
da Ciência, p.27). Mais tarde, em contrapartida, Henri Poincaré restringe ao nome intuição a intuição
supersensível e ele foi, então, conduzido a modificar sua classificação primitiva dos matemáticos; ele fez
transpor Hermite entre os intuitivos como sendo um dos pensadores que mais têm exercido esta faculdade de
visão intelectual direta que chamamos “intuição” (Cf. A lógica do infinito, apud Revista de Ciência, Juillet
1912). – Nós mesmos temos buscado reabilitar o sentido cartesiano da palavra intuição em vários estudos,
particularmente em um artigo sobre A objetividade intrínseca da Matemática publicada em 1903, (Revista de
Metafísica) – Félix Klein tem diversas vezes, estabelecido uma distinção entre “intuição ingênua” e a “intuição
refinada”, distinção que corresponde até a certo ponto a este que nós fazemos aqui.
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das descobertas matemáticas. Para o matemático tudo se comporta de uma maneira
como se a doutrina intuicionista fosse verdadeira.
Por isso, não é por acaso que os principais defensores dessa doutrina, em todos
os tempos, foram filósofos que também eram matemáticos. Tanto em Platão como em
Descartes a doutrina da intuição, não é mais que uma transposição metafísica sugerida
por pensadores por meio de seus estudos matemáticos.
Indicamos acima o papel que a intuição tinha na concepção platônica da ciência.
Os gregos, sem dúvida, fizeram uma ideia totalmente diferente da nossa em relação à
especulação matemática, visto que, de acordo com a suposição deles o contato entre a
mente e o fato científico ocorre espontaneamente, sem esforços, pressupõem que entre
ambos existe um tipo de harmonia pré-estabelecida. Entretanto, Platão encantado pela
análise filosófica olhava para além do horizonte científico que limitava a ciência de sua
época reconhecendo, claramente, as consequências resultantes da doutrina intuicionista.
Para ir à extremidade desta doutrina, a Matemática – a nossa pelo menos – perderá o
caráter de ciência perfeita que os primeiros geômetras e aritméticos da Grécia haviam
lhe atribuído. De fato, o sistema do matemático é fundado, aceitando esta hipótese,
sobre um conhecimento discursivo que é inferior em relação à noêsis. Por isso, o
platonismo, após de ter sido conduzido à consideração das ideias por meio dos estudos
de figuras matemáticas21
, é por fim obrigado a estabelecer uma divisão entre essas duas
ordens de princípios. A ciência verdadeira das ideias deixaria de ser uma matemática
humana, mas seria um tipo de meta-matemática cujo método seria puramente
intuitivo22
. Essa consequência, contudo era contrária a tendência dos matemáticos
helenistas, tão forte que não pôde ser aceita. Do mesmo modo a metafísica platônica –
priva-se, no momento em que se aprofunda na teoria das ideias, do apoio que a ciência
positiva havia lhe fornecido – obscurece-se, extravia-se e finalmente cai em
contradição. Este é um ponto que o Sr. Brunschvicg destacava em sua recente obra As
etapas da filosofia matemática. Mas parece que Sr. Brunschvicg pensava que para
escapar dessas dificuldades que impediram o desenvolvimento do platonismo, seria
suficiente trazer a filosofia para o estudo dos princípios rigorosamente determinado pela
ciência. Neste caso, a dualidade entre os números e as ideias, – empenhando-se numa
falsa via era obrigada a se acentuar cada vez mais – não teria uma razão de ser. Não
saberíamos subscrever esta conclusão, pois não é exatamente àquela que foi considerada
21 Cf. Gaston Milhaud. Os Filósofos Geômetras da Grécia passim. 22 Cf. Primeiro capítulo, p. 64.
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por Platão, o dualismo na ciência matemática, não é aos nossos olhos menos que um
fato positivo que procura explicar e não driblar.
Abandonada durante longos séculos, a doutrina intuicionista renasce e se
moderniza na filosofia de Descartes.
Circunstância notável é que Descartes foi de fato o promotor principal, em sua
época, da Matemática sintética, na qual encontramos a teoria do conhecimento que
parece se adaptar melhor às modernas concepções científicas.
Descartes 23
disse:
Eu entendo por intuição como não sendo a crença na prova dos sentidos ou dos julgamentos enganosos da imaginação, mas na concepção de
uma mente sadia e atenta, tão clara e tão distinta que não resta nenhuma
dúvida sobre o que compreendemos, ou é a mesma coisa que a concepção
firme que nasce [...] somente à luz da razão.
Precisamente em seu pensamento na 5ª Meditação, Descartes esboça uma teoria
análoga àquela relembrança, e ele acrescenta.24
:
Eu encontro dentre de mim uma infinidade de ideias sobre os diversos
objetos que não poderiam ser considerados como nada, embora possa ser que
eles não tenham uma existência fora do meu pensamento, e que também não
são inventados por mim, embora eu tenha a liberdade de pensar ou de não
pensar neles, mas que são naturalmente aceitos como verdadeiros e
imutáveis. Como por exemplo, quando eu imagino um triângulo, ainda que
fora do meu pensamento não exista em nenhum outro lugar do mundo tal figura e que jamais tenha existido, mesmo assim não deixa de ter uma certa
natureza, forma ou essência determinada desta figura que é imutável e eterna,
que não foi inventada por mim e que de nenhum modo é dependente da
minha mente.
Estes são praticamente os mesmos termos que um dos analíticos, mais profundo,
do século XIX Charles Hermite se exprime numa nota coletada por G. Darboux25
:
Existe, se eu não me engano, um mundo inteiro que é o conjunto de
verdades matemáticas, no qual temos acesso através da inteligência, do
mesmo modo como existe o mundo das realidades físicas e tanto um como o
outro são independentes de nós, ambos têm origem em Deus [...].
O conhecimento intuitivo de acordo com Descartes é um tipo de experiência,
mas uma experiência não sensível (supersensível), a qual não faz parte da nossa
23 Regras para a direção do pensamento, III, Obra. ed. Adam-Tannery, t. X, p.368. 24 Obra, t. IX, p.51. 25 G. Darboux, A vida e a obra de Charles Hermite, apud Revista do mês, 10 Janeiro 1906, p.46.
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220
57
imaginação e dos nossos sentidos, diz ele26
: “A mente, pode agir independente do
cérebro, porque é certo que o cérebro não pode ajudar o espírito quando se trata de
produzir uma ação de um conhecimento puro”. As duas características essências da
intuição são as seguintes, por um lado, no lugar de decompor a realidade em partes e a
verdade em proposições (como faz o conhecimento racional) a intuição abrange o todo
em única olhada27
, por outro lado a intuição é imediata, instantânea e age fora do tempo.
Ao contrário do conhecimento demonstrativo, – que geralmente Descartes chama de
dedução, mas que normalmente na matemática pura, se apresenta sobre a forma
algébrica, ou seja, numa forma sintética – que se desenrola no tempo e é resultado de
um movimento da imaginação e do pensamento. Assim a demonstração introduz na
verdade matemática uma ordem que é artificial e relativa: “as coisas consideradas de
acordo com a ordem que o nosso pensamento as atribui apresentam-se de maneira
diferente quando as consideramos como se elas realmente existissem” 28
.
Mas o que são essas “ideias”, essas “essências imutáveis e eternas”, que nós
temos na nossa intuição? Para ajustar a definição, Descartes se eleva acima da área da
ciência e a partir disto começam as dificuldades.
Descartes é levado, de acordo com seus princípios a atribuir às “ideias” uma
realidade, uma existência individual. Ele diz: “Pela realidade objetiva de uma ideia, eu
entendo a entidade ou o ser de uma coisa representada por essa ideia, com tanto que
essa entidade esteja contida dentro dessa ideia”29
. Por outro lado – e é aqui que vemos
reaparecer o ponto de vista sintético – ele deseja que os conceitos intuitivos postos à
base do edifício científico sejam de natureza simples, podendo ser objetos de
combinações. Mas quais são os conceitos simples? Descartes, escreveu em Regras –30
“Nós só chamamos simples esses conceitos, cujo conhecimento é tão claro e tão distinto
que a mente não pode decompor em um maior número de elementos, cujo conhecimento
seja ainda mais distinto”. Definição bem insuficiente e que implica em um círculo
vicioso do raciocínio, assim nunca se poderia saber o quanto o Cartesianismo aceita a
natureza simples. As Regras apresentam um número bem pequeno como a figura,
26 Respostas as 5ª objeções, Obras, t.VII, p.358. 27 “Com respeito a percepção de um quiliágono é bem certo que entendemos claramente, embora, ao mesmo
tempo não possamos imaginar claramente”. Respostas as 3ª objeções, Obras, t. VII, p. 385. 28 Aliter spectandas esse res singulas in ordine ad cognitionem nostram quam si de iisdem loquemur prout re ver
existunt, Regras XII, Obra., t.X, p.418. 29
Respostas as 2ª objeções, Obra., t.VII, p. 161 30 Regras XII, Obra. t. X, p.418.
221
58
extensão e o movimento,31
mas indicam que existem outros. Por outro lado, Descartes
parece admitir que o triângulo, o quadrado e o quiliágono – que são complexos do
ponto de vista da dedução – são simples ao olhar da intuição, haveria, portanto uma
infinidade de natureza simples. De fato, Descartes não se decide e disto vem a fraqueza
do seu sistema, uma fraqueza que se mostra ainda mais clara na obra de seus sucessores.
Um deles é Malebranche, para ele a teoria da natureza simples se transforma num
realismo estático32
um tipo de atomismo matemático no qual o próprio progresso da
ciência quase imediatamente deveria se arruinar. O realismo concebido assim é de fato
inseparável das concepções mecanicistas que caracterizam a física de Descartes. Ora,
essa física foi abandonada nos tempos de Leibniz.
Contudo, por motivos que nós já desenvolvemos nesta obra não acreditamos que
os princípios introduzidos por Leibniz e Newton tenham transformado tanto quanto se
disse,33
o curso do pensamento dos matemáticos; por isso, não podemos ver no
mecanismo de Descartes a principal fonte das dificuldades que comprometem a sua
doutrina matemática. Para nós estas dificuldades têm claramente outra causa: elas vêm
do fato que Descartes está propondo ao mesmo tempo, uma filosofia da intuição que
permanecia firmemente agregada à concepção sintética da ciência.
A concepção sintética supõe a possibilidade de pôr a priori, semelhante a
elementos separados e concebidos distintamente, um conjunto de entidades simples.
Esta concepção também nos força a admitir que estas entidades poderiam ser bem
discernidas sem dificuldades, pois – esta é uma ideia que está no coração de Descartes –
o trabalho científico deve, de acordo com esta concepção, ser puramente mecânico e
não poderia consistir em descobertas ou em análise de conceitos. Ora, efetivamente, nós
temos visto que a intuição é segundo Descartes, essencialmente “fácil e distinta”, em
outro lugar34
ele diz que as entidades simples são conhecidas por certo tipo de avanço
“por uma luz inata”; ele específica35
“elas são resultado do fato que não é necessário
nenhuma penalidade para conhecer estas entidades simples, porque elas são bem
conhecidas por si próprias”. Partindo dessas afirmações Descartes, em Regras, conduz
diretamente para a sua teoria da ciência. “Toda ciência humana consiste somente em ver
31 Cf. Regras VI, Obra. t.X, p.383, e Princípios da Filosofia IV, Obra. t. VII, p.326. 32 Para Malebranche, a ciência matemática traz “relatórios das ideias entre elas, as ideias que ele tem estudado os
números numeráveis com suas prosperidades e extensão inteligível com todas as linhas e figuras que se pode
descobrir”. Cf. Brunschvicg, as Etapas da Filosofia Metafísica, p.130 e suiv. 33 Ver Cap. II, § III. 34 Regras, XII, Obra. t. X, p. 419 e passim. 35 Regras, XII, ibid., p.425.
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223
59
claramente como as entidades simples se conduzem diretamente à composição de outros
objetos” 36
. A ciência deveria combinar os conceitos conhecidos, e não criar novos
conceitos, e este é um prejuízo que “toda as vezes que um pensador se propõe a
examinar alguma dificuldade a maior parte se suspende sobre o limiar, persuadidos a
acreditar que é necessário procurar uma nova entidade que lhes é incomum”. Sem
dúvida, Descartes quer nos deixar entender – ele toma como exemplo o estudo dos imãs
– que a ciência sintética talvez não possa nos dar um conhecimento perfeito e completo.
Mas essa ciência é a única que é acessível ao homem. Por isso, aquele que possui essa
ciência sintética “pode afirmar categoricamente que ele tem reconhecido a verdadeira
natureza do imã, do mesmo modo que o homem pode encontrá-la por meio da
experiência dada”.
Entretanto desde o tempo de Descartes, nossas ideias sobre a ciência têm se
modificado. Nós não acreditamos mais que esta poderia progredir à base de operações
puramente mecânicas. Parece-nos que a tarefa principal do matemático – a mais difícil e
a mais fértil – é o trabalho da análise que precede a construção das teorias. Assim não
podemos mais acreditar que as entidades simples nos sejam dadas a priori, nem mesmo
que elas existam individualmente, como antes, quando eram retalhadas pelo pensador.
Não assumimos mais que o conhecimento direto dos fatos tenha por principal caráter ser
claro e distinto; nós o consideramos muito mais como uma visão confusa, imprecisa,
bem repleta e profunda. Pascal37
caracterizou a intuição melhor do que Descartes
quando ele escreveu:
Nós conhecemos a verdade não somente pela razão, mas também pelo
coração, e é por essa maneira que conhecemos os primeiros princípios de
modo que se torna inútil e o raciocínio que não tem nenhuma participação esforça-se para combatê-lo. E é sobre esses conhecimentos do coração e do
instinto que a razão deve se apoiar e fundamentar todo o seu discurso.
O pensador moderno, de todas as formas, não busca explicar a si mesmo, não
pretende compreender completamente em que consiste e sob quais condições pode agir
a intuição. As suas definições, na maioria dos casos, ficam negativas. As verdades
matemáticas, para o pensador moderno, não são nem as consequências de fatos
experimentais, nem resultados de construções ou deduções lógicas: então elas supõem
um modo de apercepção que não se confunde, nem com a experiência dos sentidos, nem
36 Ibid. p. 427. 37 . 282. – Cf. Brunschvicg, as etapas da filosofia matemática, p. 170.
224
60
com o raciocínio. Deste modo de apercepção – acrescenta o pensador moderno – nós
temos, instantaneamente consciência do que nós a praticamos (no trabalho criativo) e
constatamos que ela não tem nenhuma semelhança com o conhecimento demonstrativo;
nós constatamos que quando procuramos isolá-la conseguimos notar algumas de suas
características; entretanto, deveríamos reconhecer que esta permanece misteriosa e se o
matemático reconhece a realidade ele põe uma pergunta ao filósofo para que o filósofo
o ajude a resolver.
Embora limite, deste modo, suas afirmações – e, às vezes, pode ser por esta
razão – a doutrina intuicionista dos matemáticos modernos foi objeto de numerosas
críticas. Os lógicos a julgaram como sendo uma abordagem contrária aos seus
princípios, pois eles afirmam que somente a lógica é juiz da verdade e permite, por
consequência, fundamentar uma ciência rigorosa e certa. E advertem que não se deve
constestar a exatidão desta observação, eles emitem a ideia que se a doutrina
intuicionista não pretende favorecer a lógica, então ela perde toda a razão de ser.
Couturat escreveu em seu último artigo38
: “Mas então não vemos mais nada que separe
Poincaré dos lógicos; pois, é bem evidente, que estes nunca pretenderam suprimir ou
degradar a intuição intelectual.” – Sr. Brunschvicg, por outro lado, opõe-se fortemente a
visão metafísica dos lógicos, levantado objeções de uma ordem diferente contra os
intuicionistas.
De acordo com o Sr. Brunschvicg39
o intuicionismo nas mãos dos matemáticos
tem, sobretudo, sido uma arma de combate. A importância que lhe foi atribuída é
acidental e tem circunstâncias que se viu nascer. Os matemáticos, sentindo a
necessidade de reagir contra o formalismo da aritmética e da lógica, buscaram um
refúgio em uma nova forma de empirismo, o “empirismo intuicionista”. Aplicando-se,
contudo, a resgatar o sentido que os matemáticos modernos atribuem a ideia de intuição,
Sr. Brunschvicg descobre que, este nome, não compreende outra coisa que “o profundo
trabalho da inteligência”. Mas ele diz que, por consequência das circunstâncias, se
encontra estabelecido entre inteligência e intuição uma oposição que não é fundada na
realidade. Ele foi surpreendido pela diferença que existe na Matemática, entre a ordem
da invenção e a ordem da dedução lógica e concluiu que a intuição e a inteligência
dedutiva caminham em sentidos opostos. Portanto, diz Sr. Brunschvicg40
:
38 Logística e intuição, apud Revista de Metafísica, março de 1913, p.268. 39 As Etapas da Filosofia Matemática, capítulo XX. 40 Loc. cit., p.500.
225
226
61
Se a Matemática altera o sentido da dedução especificamente lógica,
deveria afirmar também, que ela inverte o trabalho natural e normal da mente? Ou ela não se opõe antes a uma primeira inversão, ditada pelas
necessidades da pedagogia, muito antes que pelas exigências da filosofia e
que tinha por consequência, desde então, reverter a ordem natural do
pensamento? Ela não marca um retorno aos primeiros passos da inteligência
humana?
A estas questões Sr. Brunschvicg responde41
:
[...] A filosofia matemática tem, até aqui falhado em relação ao
problema da verdade. Presumindo uma inversão de sentido entre a ordem
psicológica da invenção e a ordem lógica da exposição, ela admite implicitamente que a preocupação com o rigor no raciocínio é estranho a
invenção, a qual a colocação em forma lógica é indiferente à matéria da
verdade. Pelo contrário, a filosofia resolve o problema, ou melhor, ela mostra
que o saber científico tem resolvido o problema, eficazmente, só se sabe
atribuir um mesmo objetivo ao esforço do inventor e ao trabalho do lógico: a
extensão progressiva das operações matemáticas.
A extensão progressiva das operações matemáticas é citada em diversas
passagens da obra de Sr. Brunschvicg, o que permite supor que é necessário entendê-la
como uma progressão contínua, sem discordância, o resultado do movimento natural da
mente. Ora, interpretado assim, a conclusão de Sr. Brunschvicg, nos parece difícil
conciliá-la com a concepção atual da Análise, pelos menos em relação ao que os
matemáticos desenvolvem em sua obra.
Parece haver, no seio da Matemática, um conflito. Uma oposição sobre a qual
temos longamente insistido neste capítulo. Sr. Brunschvicg parece pensar que este
conflito é artificial, e em razão de um acidente histórico, devido a popularidade
passageira da aritmetização de Kronecker e a da lógica de Russel e Couturat. Por
conseguinte, deve-se supor que os matemáticos, independente de toda teoria filosófica,
têm consciência da dualidade dos vários pontos de vista, entre o quais eles devem
partilhar e reconciliar – deve-se supor que estes pensadores são puramente e
simplesmente vítimas de uma ilusão.
Acreditamos que os matemáticos que buscam determinar as características da
intuição de modo algum pretendem opor-se à “inteligência”. Por outro lado, admitimos
voluntariamente junto com Sr. Brunschvicg42
que a ordem lógica deve ser distinguida
41
Loc. cit., p.500. 42 Este é um ponto ao qual nós voltaremos (Cap. V, III).
227
228
62
da ordem pedagógica. Mas que, mediante esta distinção pode-se acabar com toda a
discordância entre intuição e lógica. Isto é o que não nos parece possível manter.
A necessidade de recortar no campo da intuição matemática uma série de
proposições deduzindo logicamente uma das outras, – obrigação, na qual nós temos que
fazer longos desvios, usar de enganos e meios de eventualidade para chegar a
demonstrar dolorosamente os resultados por uma mente capaz de ter uma visão
semelhante sobre a ciência, dominariam evidentemente as premissas a partir da qual
tiramos, em vez de sermos condicionados por elas, – a própria ideia de uma ordem
introduzida nas verdades científicas – todas essas condições, todos esses aspectos da
demonstração lógica parecem ser tão embaraçosos e com tantas barreiras que contraria a
onda da intuição; só podemos, parece-me, que são mestres desta onda empobrecendo-a
e canalizando-a. É inegável o fato que a ideia de intuição pura separada do
conhecimento lógico levanta dificuldade, e seria extremamente desejável poder suprimir
estas dificuldades, eliminando-as pela raiz. Mas a distinção de tendências opostas, no
trabalho matemático, parece ser mantida sobre uma e outra forma; não podemos
acreditar que foi imaginada unicamente pelas necessidades das discussões determinadas
pelos lógicos.
Sr. Brunschvicg responde, sem dúvida, que o próprio interior da inteligência
admite o dualismo ao qual fazemos alusão. Contudo, acreditamos que sua argumentação
tende, goste-o ou não, a atenuar este dualismo. Pesquisando as “bases da verdade
geométrica”, Sr. Brunschvicg é conduzido a chamar atenção para a “recíproca
adaptação da experiência e da razão”. Realmente, resulta de seus princípios que a
verdade da Análise supõe a adaptação do método algébrico aos fatos – por nós
“intuitivos”- estudados pelos falados analistas. Mas isto é o que importa ao homem da
ciência, saber se esta adaptação, que sempre preserva um caráter de compromisso, pode
ser efetivamente considerada como sucesso. Ora, quanto mais avançamos em Análise
parece mais difícil realizá-la. Isto porque, de acordo conosco, toda teoria que tende a
reconduzir as diferentes faces do pensamento matemático a uma unidade, não poderia
abranger toda a orientação da atual Análise, de modo completamente fiel.
229
63
CAPÍTULO II
BOUTROUX: O HOMEM E A CIÊNCIA EM SUA ÉPOCA
2.1 A CIÊNCIA NA ÉPOCA DE PIERRE BOUTROUX (1880-1922)
O ser humano sobrevive e cresce e por isso é levado pelo desejo de saber mais sobre si
e sobre o mundo. Nesta busca, o homem primitivo aperfeiçoou sua linguagem, inventou mitos
sobre as origens e natureza das coisas e a respeito de si próprio.
Portanto, havia uma harmonia entre a metafísica, a lógica e os conceitos científicos.
Boutroux (1920, p. 181-182) afirmou que:
No início o pensador se limitava a constatar e a observar ao seu redor, –
como dizia Platão – não com seus olhos, cuja visão é rude e limitada aos objetos
sensíveis, mas com uma capacidade de perceber intelectualmente, o que corresponde
ao espírito, e que lhe permite aprender as verdades matemáticas essenciais. Deste modo foram percebidas as harmoniosas propriedades do mundo dos números e do
mundo das figuras, também aquelas de grandeza mensuráveis, nas quais operam as
sínteses da quantidade e da figura, a reunião da aritmética e da geometria (tradução
nossa).
Mas esta simples contemplação não garantia um caráter de certeza à ciência em geral e
muito menos à Matemática. Pois a Matemática como uma ciência começou com a ideia de
prova e com a estrutura dedutiva apresentada na obra de Euclides, Os Elementos, que trouxe
esta estrutura com tanta perfeição a ponto de obter grande admiração até o século XIX.
As provas matemáticas são um tipo de apresentação ou comunicação. Um aspecto
social e comunicativo da Matemática Moderna se encontra na luta de Platão contra os sofistas,
depois do escândalo da morte de Sócrates, como Rogue descreveu:
A filosofia platônica nasce de um escândalo, o da morte de Sócrates em 399.
A obra inteira de Platão é posterior a essa data. O próprio Platão é apenas um entre a
vasta corte dos „socráticos‟ que, após a morte do mestre, procuraram perpetuar a sua
memória, na prática ou pela escrita. Mas Platão é, certamente, o mais célebre dos
socráticos (2007, p. 7).
Apenas na Renascença a técnica e natureza encontravam-se novamente como uma
força decisiva.
64
O edifício da ciência clássica, com suas grandes questões filosóficas foi estruturado na
época de Galileu (1564-1642), Descartes (1596-1650), Newton (1643-1727), Leibniz (1646-
1716) e Kant (1724-1804), entretanto foi abalado no início do século XX com a introdução
dos princípios da relatividade e da mecânica quântica pelos físico-matemáticos: Planck (1858-
1947), Einstein (1879-1955), Bohr (1885- 1962), Broglie (1892-1987), Heisenberg (1901-
1976) (SILVA, 1972, p. 6-7).
O fim do século XIX e início do século XX são marcados pelo alto número de
produções, devido à evolução da imprensa.
Ao longo de todo o século XIX, o número de revistas matemáticas não deixa de crescer regularmente, crescimento que se acelerará depois de 1920 com o
aumento do número de países em que se desenvolvem os estudos matemáticos para
atingir, desde 1950, uma verdadeira explosão [...]. Nas universidades alemãs, por
meados do século XIX, nasceu a prática dos „seminários‟ [...] (DIEUDONNÉ, 1990,
p. 25).
Em 1900 ocorreu o II Congresso Internacional dos Matemáticos em Paris, onde Henri
Poincaré, que era o presidente, apresentou o artigo “A Intuição e a Lógica na Matemática”
que mais tarde foi publicado como primeiro capítulo do seu livro “O valor da Ciência”,
enquanto David Hilbert apresentou os 23 problemas da Matemática, que considerava
importantíssimo para o progresso da Matemática de sua época. Essa diferença começava a
indicar o contraste que ficava cada vez mais patente entre o progresso da Matemática
avançada e as ciências exatas, contudo esta questão só foi retomada com força no Sputnik –
Skolch na reforma da chamada Matemática Moderna nos anos 60 e 70 do século XX que
começou pouco antes do II Congresso Internacional dos Matemáticos em Paris. Em 1905
aconteceu o Congresso Internacional na Europa em Meran sobre a reforma da Educação
Matemática impulsionado por Felix Klein.
Enquanto na física, Planck e Albert Einstein criaram novas teorias. Como Saint-Sernin
(1998, p. 69) descreve “Entre 1900, quando Planck fundou a mecânica quântica, e 1905,
quando Einstein criou a teoria da relatividade restrita, grandes mudanças se produziram
na física, graças às quais, no decorrer do século, modificou-se a nossa concepção do mundo”.
Neste período podem também ser notadas certas divergências na química, como por
exemplo, quando alguns químicos apresentavam certa resistência em aceitar as concepções
atômicas ou corpusculares da matéria. Silva (1972, p. 90-100), relata que:
Mesmo depois que Dalton, Gay-lussac, Berzelius e tantos outros haviam
mostrado a grande utilidade das teorias atômicas para explicar as leis de combinação
65
dos corpos, eminentes químicos como Ostwald, Duhem e outros, em pleno século
XIX e começo do século XX, relutavam em aceitar os princípios da teoria cinética
dos gases que resultavam, aliás, da aplicação da dinâmica newtoniana às partículas
elementares da matéria.
No campo da biologia os avanços não foram muitos até início do século XIX, devido à
interferência dos conceitos religiosos e morais. Contudo, em 1859, Charles Darwin publicou o
seu livro A origem das espécies, explicando a evolução dos seres vivos por meio da seleção
natural. Esta teoria trouxe grandes impactos não apenas para a Biologia, mas também para
outras ciência, inclusive para a Matemática e sua filosofia. De certa forma Darwin mudou o
pensamento do homem, apesar de no fim ele mesmo negar sua teoria e ainda desenvolver seu
projeto com plantas e não com animais.
Outro acontecimento que marcou os séculos XIX e XX foi a Revolução Industrial com
a sua tecnologia, o engenho a vapor, o motor, a substituição das ferramentas manuais por
máquinas, onde o homem é substituído pelas máquinas, com as péssimas condições de
serviço, a remuneração dos trabalhadores é baixa, toda a família é obrigada a trabalhar nas
indústrias inclusive as crianças para conseguirem sobreviver etc. Mas outro fator importante a
se notar neste período é a divisão entre mente e mão, isto é, a criatividade do homem. A
mente humana passou a se sentir mais livre e poderosa, pois o homem percebe que pode ter
domínio sobre o mundo das máquinas.
Neste contexto encontra-se o francês Pierre Boutroux, que na virada do século XIX,
tinha 20 anos e em 1908 iniciou sua carreira como professor de Cálculo Integral em Poitiers.
2.2 O PRINCÍPIO DE CONTINUIDADE E O PROBLEMA DA GENERALIZAÇÃO NA
CIÊNCIA DA MODERNIDADE
A ciência antiga foi baseada numa metafísica que concebeu o mundo observando um
ensemble de substâncias e suas características essenciais. A sua tarefa era descrever e
representar a estrutura do mundo. Ela foi formada por frases compostas por sujeito e
predicado, como por exemplo: Sócrates é bom! Ou seja, a bondade é uma característica
essencial de Sócrates.
66
A ciência da modernidade depois do conflito com a igreja na Idade Média e da
separação da teologia tinha a tarefa de buscar seus fundamentos e sua metodologia no seu
próprio campo e por seus pensamentos científicos.
A partir de então, o conhecimento foi concebido em termos de relações – cada lei da
natureza era expressa em termos de relações ou na forma de equações – e por isso se fez
necessário buscar um fundamento objetivo das relações. A crença baseada no princípio da
constância da realidade ou também chamado de princípio da continuidade foi concebida para
estas tarefas.
No pensamento do filósofo e matemático alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) o
princípio da continuidade garantia que não existem descontinuidades na hierarquia dos seres
“a natureza não dá saltos, assim como não há vazios no espaço, assim também não existem
descontinuidades na hierarquia do seres Leibniz afirma, por exemplo, que as plantas não
passam de animais imperfeitos” (CHAUÍ in LEIBNIZ, 1999, p. 5).
Esta concepção está associada ao cálculo infinitesimal, apoiando a ideia que as
diferenças podem ser infinitamente pequenas e sempre contínuas (PAPINEAU, 2009, p. 38-
39). Outra definição desenvolvida por Leibniz é o princípio da harmonia universal, neste
conceito Deus existe e toda substância ao ser criada por Deus é programada, no ato da sua
criação de tal modo que todos os seus estados naturais e suas ações futuras se realizarão em
harmonia universal com todos os estados naturais e ações de cada uma das outras substâncias
criadas.
Ernst Cassirer descreve em sua Filosofia do Iluminismo a filosofia de Leibniz:
Mesmo para Leibniz não existe, em última instância, nenhuma outra prova
conclusiva da constância da natureza, da harmonia das idéias e do real, do acordo
dos fatos e das verdades eternas, a não ser o recurso à unidade do princípio supremo donde provém o mundo dos sentidos, assim como o do entendimento. A fim de
justificar que os princípios fundamentais da análise do infinito sejam aplicáveis sem
restrição à natureza, que o princípio de continuidade possui não só uma significação
matemática abstrata, mas também uma significação física concreta, Leibniz parte do
fato de que as leis da realidade não podem afastar-se das leis puramente ideais da
Lógica e da Matemática (CASSIRER, 1992, p. 90).
Para Leibniz o conhecimento matemático é baseado nas verdades necessárias, as quais
são verdadeiras em todos os mundos possíveis. Leibniz (1999, p. 23) escreveu:
As verdades necessárias, quais as encontramos na matemática pura e,
sobretudo na aritmética e na geometria, devem ter princípios cuja demonstração
independe dos exemplos, e consequentemente também do testemunho dos sentidos,
embora se deva admitir que sem os sentidos jamais teria vindo à mente pensar neles.
67
Segundo Chauí, na consultoria de vida e obra de Leibniz, este filósofo não acredita
que as origens das ideias encontram-se apenas na experiência. Chauí parafraseando Leibniz,
escreveu:
Não se deve imaginar que se possa ler na alma, sem esforço e sem pesquisa
essas eternas leis da razão, como o édito do pretor é lido em seu caderno, mais é bastante que as descubramos em nós por um esforço de atenção, uma vez que as
ocasiões são fornecidas pelos sentidos (in LEIBNIZ, 1999, p. 9).
Mas o racionalismo de Leibniz foi questionado durante o século XVIII, na época do
iluminismo. A filosofia iluminista, em suma, esclarece uma situação que foi o resultado
metodológico do trabalho científico de dois séculos. Mas para tirar as consequências
filosóficas e políticas da revolução científica do século XVII um pouco mais foi necessário.
Como Cassirer (1992, p. 91-92) escreveu:
E esse preconceito, esse a priori lógico, não é tão contestável quanto poderia
sê-lo qualquer a priori metafísico ou teológico? Não nos contentamos em afastar,
um por um, os conceitos e juízos metafísicos do horizonte da ciência empírica.
Tenhamos a ousadia, finalmente, de percorrer o caminho até o fim: que se prive a
idéia de natureza do apoio da idéia de Deus. Que sucederá então à pretensa
“necessidade” da natureza, de suas leis universais, eternas, invioláveis? Existirá uma certeza intuitiva dessa necessidade, ou alguma outra prova dedutiva concludente?
Ou deveremos renunciar a todas as provas deste tipo e decidirmo-nos a dar o último
passo – reconhecer que o mundo dos fatos deve ser o seu próprio suporte, que
procuramos em vão para ele a firmeza de um outro apoio, de um “fundamento”
racional? Em toda essa problemática, anteciparmos o desenvolvimento que conduz
do fenômeno da física matemática ao cepticismo de Hume.
O escocês David Hume (1711-1776) era empirista e acreditava que os métodos
experimentais são os únicos meios de adquirir o verdadeiro conhecimento. Para explicar sobre
o conhecimento que parece não se justificar em termos da experiência, como por exemplo, a
Matemática, segundo Papineau (2009, p. 24-25) Hume defende que este conhecimento é um
conhecimento a priori e que não é realmente um conhecimento do mundo, mas apenas das
ideias e das relações entre elas e, assim, não precisava derivar diretamente da experiência.
Hume refutou a validade objetiva do princípio da continuidade e considerava todas as
relações extrínsecas, por exemplo, a proposição, Sócrates é bom! Poderia ser expressa em
forma de uma relação, como, Sócrates tem bondade! Hume considerava estas relações e
também outras como, Pedro é maior do que Paulo ou Febre é um sinal de inflamação etc.,
como sendo simplesmente empíricas e sem fundamentos objetivos.
68
Na realidade quando Hume nega o princípio de continuidade, ele abala a base da
ciência da natureza e toca diretamente na objetividade da indução empírica, como Monteiro
na introdução da obra de Hume descreve:
As idéias são representações da memória e da imaginação e resultam das
impressões como suas cópias modificadas; podem ser associadas por semelhanças,
contiguidade espacial e temporal e causalidade. Em suma, trata-se de um novo passo
em relação à teoria de John Locke, segundo a qual a mente é uma tabela rasa, uma
folha de papel em branco, em que são impressos caracteres através dos mecanismos
da experiência sensível (Monteiro in HUME, 2004, p. 8).
Portanto, pode-se concluir que para Hume a operação mental pela qual o sujeito infere
efeitos semelhantes de causas semelhantes é um processo que depende de um instinto ou de
uma tendência mecânica, a qual se manifesta primeiro no aparecimento da vida e do
pensamento, ou seja, este princípio tem por base as características do sujeito, e não do mundo
em si. A tarefa de Kant consistiu em esclarecer esta base subjetiva da construção do
conhecimento fornecendo-lhe um significado mais profundo.
A filosofia do alemão Immanuel Kant (1724-1804), por sua vez, é a confluência entre
o racionalismo e o empirismo (LEITE, 2007, p. 36). A epistemologia de Kant marca uma
ruptura com o racionalismo, pois o próprio Kant era um racionalista. Contudo, após entrar em
contato com a doutrina de Hume, Kant é tirado dos braços do racionalismo leibniziano, ou
como ele mesmo escreveu:
Confesso francamente, foi a advertência de David Hume que há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da
filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa [...] descobri que o
conceito de conexão de causa e efeito estava longe de ser o único mediante a qual o
entendimento concebe a priori relações das coisas (KANT, 1982, p. 17).
No início do século XVIII surgiam as dúvidas vinculadas à justificação da indução
empírica e da uniformidade ou constância da natureza. As exigências eram para que as
generalizações indutivas apresentassem validade objetiva.
Para exemplificar, se um pensador toma por base certas observações e fatos já
ocorridos, e por meio destes, prevê outros fatos que ainda não observou diretamente, este
estudioso está apoiando-se no axioma da uniformidade da natureza. Sem esse axioma e sem a
hipótese de que as leis que se descobre hoje na natureza vão manter-se e perdurar-se mais
tarde, toda a conclusão inferida do passado para o futuro sucumbiria manifestadamente no
vazio.
69
Neste sentido, a epistemologia de Kant – que pretendia responder a Hume de uma
nova forma, e não da forma que Kant considerara ingênua – marca uma ruptura com o
racionalismo ou dogmatismo de Leibniz e trilha em uma via média com o empirismo ou
cepticismo de Hume, como o próprio Kant afirma:
A crítica da razão indica aqui a verdadeira via média entre o dogmatismo,
que Hume combatia, e o cepticismo que ele, pelo contrário, queria introduzir, uma via média que, muito diferente das outras vias médias que se aconselham a por si
mesmo as determinar de certo modo mecanicamente (um pouco de uma, um pouco
de outra) sem que ninguém se esclareça sobre uma melhor, pode ser determinada
exactamente segundo princípios (KANT, 1982, p. 156).
O princípio de toda a ciência deixa então de ser fundamentado tanto nas ideias de
Platão como na uniformidade ou continuidade do mundo, e passa a basear-se nas condições e
estruturas da atividade do sujeito humano. O que Kant propõe é um tipo de experimentalismo
que caracterizava a física no sentido de Newton, tal como Piaget o caracterizou:
Com efeito, o acontecimento científico central, do qual o kantismo se esforçou para fornecer a interpretação de conjunto, nada tinha de uma simples cópia:
o grandioso sucesso da doutrina newtoniana da gravitação e sua extensão a domínios
de escalas variadas constituíam o retumbante testemunho de um reencontro, até nos
detalhes, entre a dedução lógico-matemática e a experiência. Tratava-se, pois, de
uma dupla prova, de um lado, que o sujeito epistêmico existe e que suas construções
constituem o próprio estofo do entendimento e, doutro, que a experiência é
estruturada e mesmo indefinidamente estruturável e não consiste nessa simples
coleção aditiva de fatos, registrados como tais, com os quais o empirismo se
contentava nas suas interpretações (PIAGET, 1995, p. 232).
Kant observou que: “Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas, com uma
aceleração que ele próprio escolhera, [...] foi uma iluminação para todos os físicos” (KANT,
1997, B XIII). Realmente o que Galileu fez foi escolher o ângulo da inclinação e com isso a
variação das premissas do experimento, acreditando que uma variação pequena dos
antecedentes resultaria em uma pequena variação dos efeitos. Esta foi uma nova forma do
princípio da continuidade em um novo contexto, ou seja, como um princípio do conhecimento
sintético ou como “uma nova lógica da ciência experimental” (CASSIRER, 2001, p. 93).
Nestes termos Kant descreveu os fundamentos do pensamento sintético que foi atuante
nas ciências exatas e na Matemática durante a época clássica, conforme classificou Foucault,
que vai de Galileu até o fim do século XVIII.
Galileu ainda pensou mais além e demonstrou que os espaços percorridos eram
proporcionais aos quadrados dos tempos. Assim, percebeu-se que a única coisa que a ciência
poderia fazer para conhecer a realidade seria descrever as relações invariantes a respeito das
70
variações contínuas. Por isso, o matemático e também historiador da Matemática Salomon
Bochner pôde dizer que: “as concepções de função e de continuidade evoluem
simultaneamente” (BOCHNER, 1974, p. 845).
Kant, em certo sentido, também negou a validade do princípio da continuidade, pois
aceitava este princípio apenas no campo das construções mentais, onde o princípio da
continuidade era concebido apenas em termos subjetivos, logo não existia distinção entre
fórmula e função, no sentido de uma relação objetiva. Esta distinção começou a surgir apenas
no século XIX com a análise clássica.
A base do pensamento matemático kantiano foi posteriormente chamado por Jean
Piaget de Abstração Reflexinonante (que foi um discípulo de Kant). Kant transportou todos os
problemas epistemológicos, problemas que estão ligados às relações entre sujeito e objeto
para o mundo interior ou mental do sujeito. Para ele, o conhecimento humano é uma
característica da mente humana e é definido por suas limitações.
Como explicou Ernst Cassirer (2005, p. 95-96):
Em sua Crítica do Juízo, Kant levanta a questão de saber se é possível
descobrir um critério geral com o qual possamos descrever a estrutura fundamental
do intelecto humano e distinguir essa estrutura de todos os demais modos possíveis
de conhecer. Após uma análise penetrante, ele é levado à conclusão de que tal
critério deve ser procurado no caráter do conhecimento humano, que é tal que o
entendimento está sujeito à necessidade de fazer uma distinção nítida entre a realidade e a possibilidade das coisas. É esse caráter do conhecimento humano que
determina o lugar do homem na corrente geral do ser. Uma diferença entre "real" e
"possível" não existe nem para os seres abaixo do homem, nem para os que estão
acima dele.
Agora, quais são as características da estrutura do pensamento humano que Kant
destacava? Foram duas: intuições e conceitos, Kant (1997, B 75) escreveu:
O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das
quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das
impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objeto mediante estas
representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira é-nos dado um objeto;
pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como simples
determinação do espírito). Intuições e conceitos constituem, pois, os elementos de
todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição que de
qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar um conhecimento [...]. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos
são cegas.
Contudo somente o pensamento dos séculos XIX e XX irá concluir esta transformação
da filosofia e da noção da objetividade do conhecimento, cujo processo teve início na ciência
71
aristotélica, a qual foi concebida em termos das características do objeto e do mundo objetivo,
e após Kant passa a se encontrar totalmente dentro da realidade social e espiritual do homem.
Porém esta intuição Kantiana foi desfeita de seus aspectos sensíveis e o seu sentido e
utilidade se tornaram obscuros, de tal forma que no século XIX, Pierre Boutroux (1880-1922)
chegou a escrever:
O pensador moderno, de todas as formas, não busca explicar a si mesmo, não
pretende compreender completamente em que consiste e sob quais condições pode
agir a intuição. As suas definições ficam na maioria dos casos negativas. As
verdades matemáticas, diz ele, não são nem as consequências de fatos experimentais, nem resultados de construções ou deduções lógicas: então elas
supõem um modo de apercepção que não se confunde, nem com a experiência dos
sentidos, nem com o raciocínio (BOUTROUX, 1920, p. 224, tradução nossa).
E Piaget (1995, p. 270) testificou que:
Com Kant o espaço é decididamente uma forma da sensibilidade e não do
entendimento, e os matemáticos do século XIX tendiam a fazer da geometria uma
matemática "aplicada" em oposição às matemáticas puras: álgebra, análise e teoria
dos números. No entanto, a descoberta das geometrias não-euclidianas e a
estruturação das geometrias segundo as formas abstratas da teoria dos grupos (de
Sophus Lie, etc., ao programa de Erlangen de F. Klein) mantinham muito viva a tendência a uma elaboração lógica e normativa da intuição geométrica. Com o
período contemporâneo a fenda terminou e a intuição geométrica, mesmo
permanecendo essencial do ponto de vista heurístico, perdeu seu valor de
conhecimento e de verdade em proveito desses dois componentes desunidos no
futuro: de um lado, uma geometria lógica, que nada mais tem de intuitivo (quanto às
demonstrações) e que se reduz a puras axiomáticas formalizáveis (com união da
topologia e da álgebra, etc.); e de outro, uma física geométrica, como a de Einstein,
que estuda o espaço dos corpos e não mais o do pensamento.
Poincaré assim como Kant acreditava que “[...] a lógica e a intuição têm cada uma seu
papel necessário. Ambas são indispensáveis” (POINCARÉ, 1995, p. 22-23). Mas
diferentemente de Kant, para Poincaré a lógica é o instrumento da demonstração e a intuição é
o instrumento da invenção. Em sua obra Ciência e Método, escreveu: “Demonstra-se com a
lógica, mas só se inventa com a intuição [...]. A faculdade que nos ensina a ver é a intuição”
(POINCARÉ, 1908, p. 137).
O objetivo de Poincaré era superar as limitações da sensibilidade e dos sentidos e
destacar a importância de uma intuição criativa e intelectual não uma intuição sensível, como
propôs Kant, pois para generalizar precisa-se da intuição e para ter uma intuição que não
engana ou não falha, se faz necessário que esta não esteja baseada nos sentidos, logo deve ser
uma intuição dos números. Todavia, essa intuição intelectual e criativa surge da
72
espontaneidade do espírito, por isso, parece assumir o papel do pensamento conceitual.
(POINCARÉ, 1995 p. 17-19).
Esta intuição baseia-se no número e nas operações com os números e revela-se, como afirma
Poincaré, no processo do raciocínio da demonstração por recorrência. A recursividade, de acordo
com este autor, não pode ser reduzida ao princípio da contradição, ou seja, à lógica, pois implica na
visão de uma infinidade de operações e por este motivo não é nem analítico e nem resultado da
experiência, mas é a “afirmação de uma propriedade da própria mente” (POINCARÉ, 1993, p. 14).
Em particular, a intuição reflete a infinidade da mente, porém a mente é a base de toda a ciência, pois
a ciência depende da generalização e para generalizar precisa-se da intuição. Como a lógica
sempre procede do universal para o particular precisa-se da intuição, pois as conquistas científicas
são efetuadas somente pela generalização (POINCARÉ, 1993, p. 27-29).
Para Poincaré a generalização é o cerne de toda a ciência, inclusive da Matemática que
é a ciência do geral. Poincaré disse: “O instrumento mais importante sobre a generalização é o
princípio da continuidade tanto nas ciências indutivas como na Matemática” (POINCARÉ,
1993, p. 22). Com essa aplicação geral de um único princípio, parece óbvio, ou pelo menos
não é um milagre, que não existe uma definição nítida e unânime a respeito da generalidade.
O princípio da generalização floresce tanto na teoria dos limites da Matemática quanto no
processo da indução, também aparece na geometria sob o nome de transformação, na
metodologia da ciência sob causas semelhantes têm efeitos semelhantes, e ainda na
Matemática, como na definição da função contínua ou analítica etc.
O processo da generalização está diretamente ligado à formação do conhecimento, que
surge do confronto entre sujeito e objeto. Agora como são os objetos da Matemática? São
como os objetos das ciências empíricas? Ao refletir sobre estas questões, automaticamente
remete-se à formação do conhecimento matemático, que engloba dois processos chamados de:
analítico e sintético.
Esses processos auxiliam na compreensão destas questões sobre os objetos da
Matemática, o próximo passo é compreender estes métodos. Faz-se então necessário, retornar
a Kant e sua Crítica da Razão Pura, para dialogar sobre estes procedimentos. Realiza-se este
percurso visualizando Kant, como um dos pilares para a construção do edifício da ciência
moderna.
A Matemática, diferentemente da lógica formal, fornece, por um lado, conhecimentos
específicos e novos, por isso ela deveria ser baseada em juízos ou proposições sintéticas e, por
outro lado, a Matemática é também considerada um conhecimento absolutamente necessário e
independente de qualquer consideração ou experiência empírica (KANT, 1982, p. 47-51).
73
Este é o grande enigma ou mistério da Matemática, como foi explicado por Kant há mais de
200 anos atrás.
2.3 A DISTINÇÃO ENTRE O PROCESSO ANALÍTICO E SINTÉTICO NA FORMAÇÃO
DO CONHECIMENTO FUNDAMENTADA POR KANT
Immanuel Kant apresenta um resumo do desenvolvimento da ciência em termos
epistemológicos na obra Crítica da Razão Pura, escrita em duas edições 1781 e 1787, na qual
reflete sob os defeitos e contradições da teoria do conhecimento dos racionalistas e dos
empiristas. Ambas correntes filosóficas concordavam que a formação do conhecimento surgia
do confronto entre o sujeito e o objeto, ou seja, uma separação entre sujeito e mundo. Diante
destes resultados, Kant (1997, B75) então definiu que o conhecimento humano provém de
duas fontes que são intuições e conceitos, conforme já foi mencionado no tópico anterior
E estas duas fontes se correspondem com dois tipos de lógica: a lógica geral ou formal
que rege os juízes analíticos, e a lógica transcendental que gerencia os juízos sintéticos.
Quando vemos um objeto, relatamos: vi uma capivara! Estamos mentindo, pois
capivara é um conceito que possui diversas representações em diferentes idiomas. A
formação do conhecimento ocorre quando vemos um objeto e por meio de nossas intuições
(percepção) e conceitos (construções mentais), definimos o objeto em nosso pensamento, por
isso o objeto capivara é como nós percebemos e não como é na realidade. Agora, neste
percurso de observar até se chegar ao ponto de afirmar: vi uma capivara! Ocorrem dois
processos denominados como analítico e sintético.
Existem muitas definições para as palavras analítico e sintético, contudo este trabalho
delimita-se a estudar as definições apresentadas por Kant e Boutroux. Escolhe-se Kant,
julgando que várias vias na epistemologia moderna têm a Crítica da Razão Pura como seu
ponto de partida. “[...] o kantianismo produziu uma terceira via, entre o positivismo (os
herdeiros de Newton) e o idealismo leibniziano, uma via da qual o Pragmatismo e o
Marxismo se originaram e, muito depois, também a Epistemologia Genética de Piaget”
(OTTE, 2008, p. 140).
A aplicação ou a percepção tem o problema de generalizar do individual para o geral
ou vice versa. Quando se enxerga alguma coisa, como no exemplo da capivara, este ato se
transforma num conhecimento apenas quando se percebe que o objeto visto é uma capivara.
74
Ou seja, a base dos conhecimentos concretos desse tipo não são apenas as percepções, mas
sim as interpretações ou os juízos perceptíveis. Aristóteles chamava esta generalização de
epagoge e acreditava que:
Só aprendemos por indução ou por demonstração. Ora, a demonstração faz-se
a partir de princípios universais, e a indução, de casos particulares. Mas é impossível adquirir o conhecimento dos universais por uma via diferente da indução [...] e
induzir é impossível para quem não tem a sensação (ARISTÓTELES apud
BLANCHÉ; DUBUCS, 1996, p. 79-80).
Assim, induzir a partir de Aristóteles é o ato sintético básico de criar conceitos.
Baseados em Aristóteles, Blanché e Dubucs (1996, p. 79) salientam:
Todo o conhecimento nos vem em última análise da sensação, mas a
sensação por si só não poderá fornecer-nos os princípios, porque só incide sobre o
singular, ao passo que temos realmente necessidade, no princípio dos silogismos,
dos universais. É pela indução que passamos do singular para o universal. A indução
fornece ao silogismo um meio de demonstração, e, por conseguinte, de ciência.
Assim, é de fato na sensação que todo o conhecimento tem a sua fonte, mas, a partir
daí, intervém o raciocínio, sob duas formas: primeiro, a indução para obter os
princípios, seguidamente, a demonstração para deles tirar as consequências por via silogística.
Esta demonstração é semelhante ao processo analítico. Analisar significa separar,
igualmente quando alguém analisa um quadro, logo começa a identificar que existe um ponto
vermelho, um traço azul etc. Leibniz e os racionalistas procuravam fornecer os conceitos
simples, com os quais se inicia a síntese, em geral, eles acreditavam que o processo de análise
é finito, porém na matemática pura é usualmente infinito. Nesse sentido, apenas Deus pode
saber as causas dos juízos empíricos e a Matemática tem a vantagem da análise finita conduzir
aos conceitos simples e aos axiomas (identidades básicas), como toda proposição tem a forma
q=B, ou seja, o predicado B faz parte do conceito do sujeito q, então os axiomas ou
proposições simples têm a forma A=B.
Mas tanto Aristóteles, Kant, Peirce como os empiristas, não acreditavam que a análise
tem fim, nem mesmo na Matemática por causa do contínuo, de modo que, jamais se poderia
determinar um objeto individual por meio de uma descrição exaustiva. Quando se mede uma
grandeza o resultado é sempre um intervalo de números e não apenas um número distinto, por
isso, há números reais que são representados por frações decimais infinitas. Para Kant o
contínuo é o espaço, como uma coisa subjetiva, e por este motivo a síntese vem primeiro. Ele
escreveu:
75
Toda a intuição contém em si um diverso que, porém, não teria sido
representado como tal, se o espírito não distinguisse o tempo na série das impressões
sucessivas, pois, como encerrada num momento, nunca pode cada representação ser
algo diferente da unidade absoluta. Ora, para que deste diverso surja a unidade da
intuição (como, por exemplo, na representação do espaço), é necessário,
primeiramente, percorrer esses elementos diversos e depois compreendê-los num
todo. Operação a que chamo síntese da apreensão, porque está diretamente
orientada para a intuição, que, sem dúvida, fornece um diverso. Mas este, como tal,
e como contido numa representação, nunca pode ser produzido sem a intervenção
de uma síntese. Assim, o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual
se funda todo o seu restante uso, e que é também totalmente independente de todas as condições da intuição sensível, é, pois, o princípio da unidade originária sintética
da apercepção. A simples forma da intuição sensível externa, o espaço, não é ainda
conhecimento; oferece apenas o diverso da intuição a priori para um conhecimento
possível. Mas, para conhecer qualquer coisa no espaço, por exemplo, uma linha, é
preciso traçá-la e, deste modo, obter sinteticamente uma ligação determinada do
diverso dado; de tal modo que a unidade deste ato é, simultaneamente, a unidade da
consciência (no conceito de uma linha), sό assim se conhecendo primeiramente um
objeto (um espaço determinado). A unidade sintética da consciência é, pois, uma
condição objetiva de todo o conhecimento, que me não é necessária simplesmente
para conhecer um objeto, mas também porque a ela tem de estar submetida toda a
intuição, para se tornar objeto para mim, porque de outra maneira e sem esta síntese o diverso não se uniria numa consciência. Esta síntese da apreensão deve também
ser praticada a priori, isto é, relativamente às representações que não são empíricas.
Pois sem ela não poderíamos ter a priori nem as representações do espaço, nem as
do tempo, porque estas apenas podem ser produzidas pela síntese do diverso que a
sensibilidade fornece na sua receptividade originária. Temos, pois, uma síntese pura
da apreensão. (KANT, 1997, B137-B138/A99-A100).
Considerando a geometria, percebe-se que existem duas maneiras de entender sua
objetividade. Por um lado podem ser considerados os objetos da geometria que são criados
através da epagoge e por outro lado pela construção. No primeiro caso, por exemplo, um
triângulo geral seria um contínuo de triângulos particulares, ou seja, uma coisa que não é
completamente determinada, enquanto no segundo caso a objetividade resulta das condições
objetivas de cada construção que são determinadas pela estrutura de sua época.
Para exemplificar, o primeiro caso, pode-se observar o problema na geometria do
triângulo geral, partindo do fato que um diagrama apresenta apenas uma figura particular,
Berkeley se interrogou, se os leitores do Essay Concerning Human Understanding, escrito por
Locke, poderiam ter uma noção sobre qual descrição deveria corresponder à ideia de um
triângulo geral. Para essa impossibilidade lógica, Berkeley propôs uma solução semiótica,
dizendo que: “devemos reconhecer que uma ideia é considerada particular e torna-se geral
quando esta é utilizada para representar todas as outras ideias particulares do mesmo gênero”
(BERKELEY, 1975, p. 71, tradução nossa).
Jesseph caracterizou a filosofia de Berkeley em relação à geometria, pelo termo
generalização semiótica, onde o aspecto fundamental da alternativa de Berkeley é a afirmação
76
que se pode elaborar uma ideia para representar muitas outras, tratando-a como uma espécie
de representante (JESSEPH, 1993, p. 33-34, tradução nossa).
Neste sentido, um triângulo geral é uma variável livre, como nos termos das
descrições axiomáticas e não um conjunto de triângulos determinados, sendo assim esta é uma
ideia que governa e produz representações particulares, cujas propriedades são essenciais para
um triângulo geral, dependendo do contexto e dos objetivos.
Se, por exemplo, a tarefa é provar o teorema em que as medianas de um triângulo se
interceptam em um ponto, o triângulo cuja prova pode ser baseada é o triângulo equilátero,
sem perda de generalidade, pois o teorema em questão é um teorema da geometria afim e o
fato de que qualquer triângulo é equivalente a um triângulo equilátero sob transformações
afins facilita consideravelmente a realização da prova, devido à simetria elevada de um
triângulo equilátero. A objetividade de um triângulo geral neste sentido semiótico resulta do
fato de que somos capazes de provar teoremas sobre um tal triângulo (PEIRCE, CP 5.181).
Mas este não é o ponto de vista de Kant e também não é o de Newton que no prefácio
de sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica escreveu:
A geometria não nos ensina a traçar essas linhas, mas exige que sejam
traçadas, pois requer que primeiro que se ensine o aprendiz a descrevê-las com
exatidão, para que ele possa penetrar na geometria, e depois mostra como se podem
resolver problemas através dessas operações. Descrever retas e círculos são
problemas, mas não problemas geométricos. A solução desses problemas é exigida
da mecânica, e pela geometria se mostra o uso deles, quando assim solucionados; e a
glória da geometria é poder, a partir desses poucos princípios trazidos de fora,
produzir tantas coisas (NEWTON, 2002, p. 275).
Tanto para Kant como para Newton a exatidão da geometria é possível porque os
objetos da geometria são apenas construções ideais, logo ambos adotam a segunda maneira
para se entender a objetividade da geometria, que é por meio da construção. A ideia
apresentada por Kant estabelece que, primeiro é necessário construir os conceitos na intuição
realizando um processo sintético e à base deste método pode-se deduzir logicamente,
aplicando assim o processo analítico, ocorrendo que todo analítico depende de um processo
construtivo e sintético.
A dedução euclidiana é um experimento do pensamento [...] o maior
obstáculo para a aceitação da interpretação dos argumentos de Euclides como sendo
um experimento do pensamento é a crença de que tais argumentos não podem apresentar provas convincentes. Em particular, pode-se perguntar, de que maneira a
consideração de um único objeto pode estabelecer uma afirmação geral sobre todos
os outros tipos de objetos fornecidos. Parte da dificuldade é devida, penso eu, a
incapacidade de distinguir dois modos de interpretar indicações gerais como „em
77
todos os triângulos isósceles os ângulos da base são iguais‟ sob uma interpretação
refere-se à indicação de uma totalidade definida [...] e que diz algo a respeito de
cada um deles, sob outra interpretação nenhuma totalidade definida é pressuposta e a
sentença tem um caráter muito mais condicional – „Se um triângulo é isósceles, seus
dois ângulos da base são iguais‟. Uma pessoa que interpreta a generalização do
segundo modo pode apoiar que a frase „a classe de triângulos isósceles‟ não tem
sentido, pois o número de triângulos isósceles é absolutamente indeterminado
(MUELLER, 1969, p. 299-300, tradução nossa).
Existem então duas concepções da geometria e da Matemática em geral, que poderiam
ser chamadas axiomáticas e analíticas ou construtivas e sintéticas.
A formação do conhecimento matemático apresentado por Kant trouxe notável
influência sobre o pensamento matemático. Há muito tempo surgiram perguntas como: a
Matemática é uma ciência conceitual? A Matemática tem objetos próprios? O que é um
número? O número é um objeto ou um conceito criado para os seres humanos?
Historicamente o conhecimento matemático gerou muitas controvérsias, os empiristas
acreditavam que a Matemática era baseada nas abstrações e induções das observações
empíricas, enquanto os racionalistas como Leibniz consideravam a Matemática como um
conhecimento conceitual e analítico.
Kant acreditava que os empiristas estavam errados, pois não conseguiam explicar a
certeza e necessidade dos argumentos matemáticos, ao passo que, os racionalistas não eram
capazes de explicar porque o conhecimento matemático crescia diferentemente da lógica, que
permaneceu a mesma desde os dias de Aristóteles. Kant se propõe a explicar como o
conhecimento matemático é possível, ou seja, como a Matemática conseguiu encontrar o
caminho certo, ou melhor, como conseguiu produzir conhecimentos certos e ao mesmo tempo
novos?
Querendo unir certeza e objetividade do conhecimento, Kant tomou a ciência de
Newton como seu ponto de partida para uma análise epistemológica, como por exemplo, as
observações de Newton sobre a origem da precisão da Matemática levaram Kant a entender
que a fonte de conhecimento pode ser encontrada na atividade construtiva do sujeito, o que
implica que esta atividade não pode ser concebida apenas na dependência da vontade e
imaginação, mas deve estar objetivamente contida no sujeito (KANT, 1997).
Sendo assim Triângulo, para Kant, não é o nome de uma figura como os empiristas
acreditavam e também não pode ser aceito como uma ideia platônica, mas sim como uma
regra da construção. Um diagrama ou uma figura é apenas um experimento mental e não um
símbolo para um conjunto de figuras empíricas, por isso, na geometria é possível provar
teoremas universais e ao mesmo tempo novos. Kant propõe que a Matemática é universal e
78
necessária, para explicar sua teoria e responder sua pergunta ele definiu juízos analíticos e
sintéticos:
Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um
predicado (apenas considero os juízos afirmativos, porque é fácil depois a aplicação
aos negativos), esta relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao
sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está
totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. No primeiro caso chamo
analítico ao juízo, no segundo sintético. [...] Os primeiros poderiam igualmente
denominar-se juízos explicativos; os segundos, juízos extensivos; porque naqueles o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe
nos conceitos parciais, que já nele estavam pensados (embora confusamente); ao
passo que os outros juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um
predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer
decomposição. Quando digo, por exemplo, que todos os corpos são extensos,
enuncio um juízo analítico, pois não preciso de ultrapassar o conceito que ligo à
palavra corpo para encontrar a extensão que lhe está unida; basta-me decompor o
conceito, isto é, tomar consciência do diverso que sempre penso nele, para encontrar
este predicado; é, pois um juízo analítico. Em contrapartida, quando digo que todos
os corpos são pesados, aqui o predicado é algo de completamente diferente do que
penso no simples conceito de um corpo em geral. A adjunção de tal predicado
produz, pois, um juízo sintético.[...] Que um corpo seja extenso é uma proposição que se verifica a priori e não num juízo de experiência (KANT, 1997, B 11).
Pode parecer estranho o exemplo dos corpos, pois Kant pressupõe que não é possível
ver um corpo sem verificar que ele é extenso, ou seja, a distinção do analítico e sintético
depende da estrutura mental dos seres humanos, isto é, as duas fontes.
A Matemática, diferentemente da lógica formal, fornece conhecimentos específicos e
novos, por isso, deveria ser baseada em juízos ou proposições sintéticas e ainda deveria ser a
priori.
Então, Kant empenha-se em explicar: como é possível um conhecimento sintético e
mesmo assim à priori, ou seja, como é possível um conhecimento que não depende da
experiência empírica, mas de provas formais? Sua conclusão foi que uma prova matemática
não poderia ser simplesmente uma corrente de argumentos lógicos, mas deveria depender de
uma intuição reflexiva, pois “[...] as verdadeiras proposições matemáticas são sempre juízos a
priori e não empíricos, porque comportam a necessidade, que não se pode extrair da
experiência” (KANT, 1997, B15), os juízos ou as proposições matemáticas são baseados em
provas que não deixam dúvidas, significando que, a Matemática não pode ser fruto de uma
experiência empírica.
A Matemática pura, funda todos os seus conhecimentos e juízos no espaço e no tempo,
que são intuições puras e servem de fundamento a priori, de tal modo que, nunca podem ser
eliminadas, sendo classificadas por Kant como: “simples formas da nossa sensibilidade que
devem preceder toda a intuição empírica” (KANT, 1982, p. 51).
79
Esta faculdade da intuição a priori diz respeito à forma, espaço e o tempo do
fenômeno e não à matéria deste fenômeno, ela só é inteiramente compreensível se a tomamos
apenas como condições formais da nossa sensibilidade e os objetos como simples fenômenos.
Toda percepção é na realidade uma interpretação, antes de percebermos alguma coisa
precisamos de conceitos ou formas, pois sempre percebemos um objeto como uma coisa, não
percebemos objetos que não nos trazem um significado ou uma relação com algo já conhecido
(KANT, 1982, p. 49-52). Na realidade “tudo o que se pode apresentar aos nossos sentidos
(aos sentidos externos no espaço, ao sentido interno no tempo) é por nós percebido apenas
como nos aparece e não como é em si” (Ibid., 1982, p. 53).
A revolução da epistemologia inaugurada por Kant, no século XVIII, pressupõe a
objetividade do sujeito humano, onde centraliza o sujeito e suas atividades e não mais o
objeto do conhecimento. A partir de Kant novas teorias se desenvolvem durante os próximos
séculos, entretanto no século XIX a Matemática sofre consideráveis transformações. Tem-se
então o início da chamada Matemática Moderna, com novas teorias e diversas preocupações e
entre essas, encontra-se a Educação Matemática.
Pierre Boutroux foi uma testemunha destas mudanças e fez importantes considerações
em relação à formação do conhecimento que está diretamente ligado a distinção entre
analítico e sintético.
Boutroux, conta a história da Matemática sem se preocupar apenas com a vida e com
obra dos matemáticos, ou simplesmente contextualizá-la na história da humanidade, mas
descreve essa história delineando quais pensamentos e correntes filosóficas moveram as
pesquisas dos matemáticos em cada época. Desta forma, Boutroux se propôs a escrever sobre
a evolução dos conceitos e das ideias na história da Matemática.
Isto leva o leitor, do livro de Boutroux, a estudar mais sobre os principais problemas
que impulsionaram os matemáticos. Considerando que um ramo da ciência só se mantém vivo
enquanto oferece uma grande variedade de problemas, já a falta de problemas significa a sua
morte ou o fim do seu desenvolvimento (HILBERT apud DIEUDONNÉ, 1990, p. 176).
Dois problemas que se colocaram à frente dos matemáticos foram o princípio da
continuidade e a generalização na ciência da modernidade, que na perspectiva de Kant se
iniciou com Galileu.
80
2.4 A DISTINÇÃO ENTRE ANALÍTICO E SINTÉTICO NA MATEMÁTICA MODERNA
SEGUNDO BOUTROUX
No livro L'idéal scientifique des mathématiciens: dans l'antiquité et dans le temps
modernes, Boutroux procura delinear o desenvolvimento da Matemática como um todo,
objetivando trazer uma melhor compreensão sobre a história da Matemática. Para tanto, ele
divide essa história desde a Antiguidade até o século XIX, em três períodos, que podem ser
representados pelos seguintes nomes: I. Platão (429 a.C-348 a.C) /Euclides (300 a.C-260 a.C);
II. Descartes (1596-1650) /Leibniz (1646-1716)/ Kant (1724-1804); III. Bolzano (1781-1848)
/Cantor (1845-1918).
Boutroux separa esses três períodos em dois pontos de vista, o primeiro ocorre em I e
II que são dedicados a um ideal sintético da Matemática e caracterizados por uma harmonia
pré-estabelecida entre o objeto e o método, o autor escreve: “[...] supõem um tipo de harmonia
pré-estabelecida entre o objeto da ciência matemática, entre os objetos que esta ciência almeja
e os procedimentos que lhe permitem atingir estes objetos” (BOUTROUX, 1920, p. 193,
tradução nossa). Enquanto de II para III, acontece uma ruptura, uma revolução, uma quebra
entre os meios e os objetos da Matemática. Boutroux (1920, p. 184) explica:
O que primeiro nos chama a atenção, quando comparamos a Matemática de
nosso tempo àquela das épocas anteriores, é a extraordinária diversidade e o aspecto
imprevisto dos caminhos e os desvios nos quais esta enveredou-se, é a aparente
desordem em que ela executa suas idas e vindas, são suas manobras e mudanças de
frente contínuas. A bela unidade que Euclides havia dado a geometria e que
Descartes queria conferir à álgebra parece irremediavelmente perdida (tradução nossa).
Segundo Boutroux os matemáticos Descartes, Leibniz e Newton desenvolveram um
método sintético na Matemática. Este método sintético é um cálculo, portanto uma
combinação de signos, que reduzia a ciência a um trabalho de combinação mecânica.
Enquanto o método analítico, na Matemática, surge por volta da metade do século XIX, o
matemático desta época pode ser comparado com:
[...] um construtor, um generalizador, o matemático tornou-se uma espécie de
inspetor, que analisa à maneira de um químico, uma matéria estranha e infinitamente
complexa, é também, se quiser um explorador, com a tarefa de se orientar em um
continente desconhecido, e que busca descobrir as riquezas, as regiões
“interessantes”, sem aliás, saber qual lado deve exatamente avançar e dirigir sua
pesquisa para atingir seu objetivo (Ibid., 1920, p. 211, tradução nossa).
81
Boutroux chama a geometria analítica de Descartes, bem como a análise algébrica de
Leibniz de sintética. Porque ele faz isso? De onde vem esta diferença entre a percepção dos
próprios protagonistas e o historiador?
No livro 13 dos Elementos de Euclides o método analítico é descrito como o método
de procura para as condições de um problema, assumindo o procurado como já encontrado.
Igualmente na álgebra de Descartes o procurado é representado pelo famoso x e apenas depois
se escreve as condições para determinar as características desse número desconhecido x, por
exemplo, seja o procurado um número indeterminado x tal que x-5 = 0. Então qualquer
determinação ou definição contém uma garantia ou afirmação da existência do procurado.
Nos números imaginários é diferente, pois se pergunta: existe um x tal que x2 + 1 = 0?
Entre os números reais esse número não existe, na realidade pode-se postular a existência
como um elemento ideal ou imaginário, adicionar este elemento aos números reais e depois
verificar se o sistema de números tão alargado é logicamente consistente.
Hilbert apresentava este exemplo para explicar o que significa o novo método, o
método axiomático, no qual não há garantia de existência. Este método requerer apenas a
coerência lógica, portanto (por causa da falta de garantia de existência) o método axiomático é
analítico e o velho sintético. Para Boutroux o processo dedutivo de Euclides era chamado de
processo sintético, porque ele começava a construir novas verdades à base dos axiomas, que
eram as verdades básicas, ou seja, o procedimento sintético sempre começa com um objeto ou
fato dado e a partir desse desenvolve novas coisas.
Um axioma no sentido moderno é uma mera hipótese e suas consequências devem ser
desenvolvidas e testadas. A axiomática moderna não assume o objeto dado, mas os axiomas
são dados apenas como condições, na qual qualquer objeto da teoria em questão deveria
obedecer. Os axiomas são comparáveis às leis da natureza e as leis da natureza não produzem
conhecimento por conta própria, devem ser aplicadas (OTTE; PANZA, 1997, p. 262-263).
A principal diferença entre o método de Euclides e o método de Peano e Hilbert, é
perceptível por meio de questionamentos levantados em relação aos objetos. Os objetos da
geometria euclidiana são dados e descritos independentemente da teoria, ou seja, os objetos
são dados antes mesmo que a teoria comece a ser desenvolvida. Já os objetos na teoria de
Peano e Hilbert não existem independentemente da teoria e talvez nem poderiam existir,
como no caso em que o sistema de axiomas é inconsistente.
De certa forma, os objetos na teoria de Peano e Hilbert, são apenas apresentados em
termos de definições hipotéticas, ou seja, eles não são fornecidos, e a teoria opera somente à
82
base de conceitos ou definições (implícitas ou explicitas), por isso, Hilbert disse que o ponto
de vista que contém uma teoria axiomática, em poucas palavras, deve ser possível substituir
nas demonstrações geométricas todas as palavras como ponto, linha, plano por mesa, cadeira,
jarra (HILBERT apud REID, 1970, p. 246, tradução nossa). Por exemplo, no primeiro axioma
da lista de Hilbert está escrito que dois pontos distintos pertencem a uma e apenas a uma reta,
mas poderia ser escrito que duas mesas distintas pertencem a uma mesma cadeira e a uma só
(DIEUDONNÉ, 1990, p. 55).
Em certo sentido o sintético é a procura do contato com a objetividade e com os
objetos, em contrapartida o analítico é apenas um pensamento conceitual, que se estabelece
apenas em um nível teórico da linguagem, onde os objetos são desnecessários na realidade.
83
CAPÍTULO III
A EDUCAÇÃO E A TRANSFORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO
SÉCULO XIX
3.1 INTRODUÇÃO: FATOS QUE EVIDENCIAM A REVOLUÇÃO E A RUPTURA NA
MATEMÁTICA ALTERCADA POR BOUTROUX
Segundo Boutroux, todas as outras revoluções antes do século XIX não surtiram
grandes efeitos, tanto na ciência em geral quanto na Matemática. A grande revolução ocorreu
no século XIX. A partir da Revolução Industrial a matemática pura surge, como uma tentativa
de fortalecer o ensino e junto com ela veio a prova formal.
A introdução do formalismo se inicia com o conceito de função, que teve um papel
chave tanto no desenvolvimento puro e na aplicação como na Educação Matemática.
A revolução da Matemática, que ocorreu no século XIX, registrada por Boutroux, é
perceptível também na sociedade em geral. Nos escritos do sociólogo Émile Durkheim (1858-
1917), o homem no século XIX deixa de ser o centro da educação e as grandes preocupações
da ciência passam a estar inseridas dentro do próprio ensino e do conhecimento.
Outro fato importante a ser notado é que no século XIX, principalmente, na Alemanha
houve um notável aumento do número de matemáticos. Para explicar esse portento Gerstell
fez um apanhado geral da história da matemática na Alemanha e aponta o contexto educativo
que produziu esse prodígio.
Objetivando contextualizar Boutroux e entender o movimento que ocorreu na
Matemática no século XIX, será apresentando um breve relato sobre a história da educação.
Para tanto, o foco se fecha na França e Alemanha, cujos filósofos e professores
desenvolveram, no século XVIII, um importante papel na transformação social, política e
intelectual do mundo europeu, seus reflexos foram sentidos com mais intensidade no século
XIX, o qual se constitui o ponto central deste estudo.
84
3.2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A EDUCAÇÃO
Após a revolução agrícola global no terceiro milênio, em que “a agricultura manteve-
se como foco principal dos esforços humanos” (EVES, 1995, p. 514). O mundo participa de
uma nova revolução, a Revolução Industrial, que teve início no século XVIII na Inglaterra,
espalhando-se por todo o continente europeu e atigindo a América no século XIX. Com a
invenção das máquinas, tem-se a diminuição do trabalho braçal e “a época das plantas, dos
animais de tração e dos campos foi suplantada pela época das máquinas” (EVES, 1995, p.
514).
A Revolução Industrial não apenas mudou o mundo objetivo, mas também as culturas
e as ciências.
Esse processo de transformação do trabalho humano desloca massas inteiras da população não somente das oficinas artesanais para as fábricas, mas também dos
campos para as cidades, provocando conflitos sociais, transformações culturais e
revoluções morais inauditas [...] (MANACORDA, 2010, p. 327).
Com as revoluções tem-se o êxodo dos camponeses da zona rural para os grandes
centros urbanos.
Entretanto, à medida que a ciência moderna avançava e a tecnologia gerava
novas máquinas, tornava-se inevitável discutir a educação dessa nova classe de
trabalhadores. Por um lado, era necessário preparar o operário para o uso adequado
das novas máquinas, e isso só seria possível através da introdução do ensino de
alguns elementos básicos de escrita e matemática. Por outro lado, seria também
preciso formar técnicos especializados, que, através do conhecimento dos últimos
avanços da ciência, pudessem melhorar ainda mais as técnicas de produção. A
ampliação do ensino às classes trabalhadoras, ou seja, a universalização da educação, e a relação educação-trabalho passaram a ser, a partir desse momento, os
grandes temas das discussões educacionais (MIORIM, 1998, p. 51).
O antigo artesão passa a trabalhar nas indústrias, todo o seu saber deixa de ter valor,
suas atividades são todas mecânicas e monótonas, ou seja, o homem se torna um acessório da
máquina.
[...] os trabalhadores perdem sua antiga instrução e na fábrica só adquirem
ignorância. Em seguida, a evolução da “moderníssima ciência da tecnologia” leva a
uma substituição cada vez mais rápida dos instrumentos e dos processos produtivos
e, portanto, impõe-se o problema de que as massas operárias não se fossilizem nas
operações repetitivas das máquinas obsoletas, mas que estejam disponíveis às
mudanças tecnológicas, de modo que não se deva sempre recorrer a novos exércitos
de trabalhadores mantidos de reserva: isto seria um grande desperdício de forças
85
produtivas. Em vista disso, filantropos, utopistas e até os próprios industriais são
obrigados, pela realidade, a se colocarem o problema da instrução de massas
operárias para atender às novas necessidades da moderna produção de fábrica: em
outro temos, o problema das relações instrução-trabalho ou da instrução técnico-
profissional, que será o tema dominante da pedagogia moderna. Tentam-se, então,
duas vias diferentes: ou reproduzir na fábrica os métodos „platônicos‟ da
aprendizagem artesanal, a observação e a imitação, ou derramar no velho odre da
escola desinteressada o vinho novo dos conhecimentos profissionais, criando várias
escolas não só sermocinales, mas reales, isto é, de coisas, de ciências naturais: em
suma, escolas científicas, técnicas e profissionais (MANACORDA, 2010, p. 328-
329).
Ocorreu uma transformação de conhecimento, que colocava mais ênfase na
criatividade, no planejamento e na supervisão dos sistemas, do que na própria execução. Na
descrição de Joseph-Marie, encontra-se a frase: “construir uma máquina para tecer sem mãos”
(JOSEPH-MARIE, 2004, p. 37). Esta máquina de Jacquard era em sua época o mecanismo
mais complexo que existia (Ibid., 2004, p. 37).
O problema do método ou da didática é o fastidioso problema pedagógico
deste século e suas soluções não são isentas de pedanteria, também nos maiores
autores: mas como não ver que este é o problema real, decorrência inevitável da
evolução histórica? Desde o momento em que a instrução tende, embora lentamente,
a universalizar-se e a laicizar-se, mudando destinatários, especialistas, conteúdos e
objetivos, o “como ensinar” (até as coisas mais tradicionais, como a preparação
“instrumental” ou “formal” do ler, escrever e fazer contas) assume proporções
gigantescas e formas novas; tanto mais se o problema do método se entrelaça com o problema dos novos conteúdos da instrução “concreta”, que surgem com o próprio
progresso das ciências e com sua relativa aplicação prática. (MANACORDA, 2010,
p. 338).
Na França as camadas populares reivindicam mais saber e educação pública. “O
estado pela primeira vez, instituiu a obrigatoriedade escolar criando Escolas Normais.
Estabelecendo-se aqui uma grande revolução pedagógica nacional francesa, onde é discutida a
formação do cidadão” (PINTO; ZAITUNE; MARTIN, 2006, p. 1843). As Escolas Normais
eram as únicas acima do nível básico aberta ao povo.
Essas ideias foram impulsionadas pelos filósofos iluministas associados à Revolução
Francesa, que durante este período apresentaram planos para a organização de um sistema
nacional de educação.
Uma importante obra deste movimento foi a Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, com o primeiro volume publicado em 1751 e o segundo
em 1752 na França, que recebeu a colaboração de 160 escritores e ficou famosa na história
das ideias européias por ter dado origem ao movimento dos chamados Enciclopedistas. Já que
não era possível conhecer toda a ciência, era necessário optar por uma parte dela.
86
Os principais autores desta obra foram os filósofos D'Alembert (1717- 1783), Quesnay
(1694-1774), Turgot (1727-1781), Marmontel (1723-1799), Holbach (1723-1789) liderados
por Denis Diderot (1713-1784). Esta obra tinha por objetivo reunir o conhecimento em uma
única publicação e “[...] ao mesmo tempo em que inundaram o país com outras formas de
escritos para o povo, tais como curtas narrações literárias, textos de denúncia, adaptações de
grandes obras da ciência e da filosofia etc., voltadas a emancipá-lo de sua „menoridade‟
intelectual” (PIOZZI, 2007, p. 717).
Neste período surgiram correntes filosóficas que procuravam dar conta do ensino,
principalmente para camponeses. Logo as discussões fugiram do plano, até então esboçado, se
o povo deveria ou não ser instruído. A questão se tornou: de que forma regenerar pela
educação o novo homem produzido pela Revolução? Quais métodos políticos e pedagógicos
devem ser adotados e seguidos para atingir os objetivos estabelecidos pelas declarações de
direitos e pelas Constituições? Como educar o povo?
No século XIX, com a proliferação do sistema fabril que tornou o mundo urbano mais
feio, com sua estética cinzenta, da fumaça e das chaminés, juntou-se no mesmo espaço uma
enorme capacidade produtiva e uma grande miséria, que ativou uma intensa luta de classes e
uma contínua tensão social daí decorrente. A partir de então, geraram-se os primeiros projetos
socio-utópicos de Saint-Simon (1760-1825), de Charles Fourier (1772-1837) e de Robert
Owen (1771-1858), que foram extremamente críticos à extensão das máquinas em todos os
ramos da produção. Eles viram na máquina um inimigo capaz de extrair o sangue dos
operários industriais, ao mesmo tempo em que os atava a um sistema produtivo que não se
distanciava muito das condições sociais existentes na escravidão.
Essa posição foi amplamente assumida por Karl Marx (1818-1883) e Friederich
Engels (1820-1895), os pais do socialismo moderno.
3.3 HUMBOLDT (1767-1845): A UNIÃO DA PESQUISA E DO ENSINO NA
ALEMANHA
A união da pesquisa e ensino implica que os professores universitários foram
obrigados pela primeira vez fazer pesquisa (TURNER, 1971, p. 140-142) para isso foram
instalados seminários.
87
No entanto, pode-se dizer que em todos os países europeus, de vários modos
e em ritmos diferentes, se discutia, se legiferava e se trabalhava para criar escolas.
Enquanto vai desaparecendo o tradicional aprendizado da oficina artesanal,
controlado pelas corporações de artes e ofícios (na Inglaterra foi criado por lei em
1381 e, por lei, abolido em 1814), a instituição escola vai atingindo todas as classes
produtoras, recebendo novos conteúdos científicos e técnicos. Com base nesses
conteúdos renova-se também a universidade, na qual as ciências matemáticas e
naturais acabam separando-se definitivamente da velha matriz das artes liberais,
onde se situam durante milênios como philosophia naturalis ou phisica, e
constituindo-se como um corpo ou faculdade em si, destinado a tornar-se cada vez
mais complexo. Ao lado das universidades surgem as escolas superiores de engenharia. O renascimento da universidade, do qual a história da universidade
alemã, reformada por Humboldt, é um exemplo típico, consiste no fim do seu caráter
abstrato e universalístico e na assunção de todo um conjunto diferenciado de
especializações (MANACORDA, 2010, p. 348).
Wilhelm Von Humboldt foi um nobre prussiano rico, que viveu um período de abalos
sociais e definições políticas, resultante de uma sociedade elitista que viveu momentos de
libertação.
Ele tinha a visão de uma escola superior que haveria de realizar a união entre ensino e
pesquisa, proporcionando a todos os alunos uma abrangente formação humanista.
Na obra Os limites da ação do Estado, Humboldt descreve o conceito da pessoa
humana como um animal social que luta por cultivar e melhorar o contexto em que vive com
o apoio da sociedade (HUMBOLDT, 2004). Portanto, Humboldt se opunha à grandes
Estados, e acreditava que eles impediam o completo desenvolvimento dos cidadãos. Em suas
palavras:
El verdadero fin del hombre es el más elevado y proporcionado desarrollo de
sus fuerzas en um todo armónico. Y para ello, la condición primordial e inexcusable
es la libertad. [...] El provecho de tales uniones para la formación del hombre
depende siempre del grado en que se mantenga, dentro de la intimidad de la unión,
la independencia de lãs personas unidas. Es necesaria la intimidad, para que el uno
pueda ser suficientemente comprometido por el otro, pero hace falta también la independencia, para que cada uno pueda asimilar lo que haya comprendido del otro
en su propio ser. [...] Cuanto más aumente La variedad, a la par que la finura de la
materia, mayor será también su fuerza, porque será mayor, asimismo, la
concatenación. La forma parece fundirse en la materia y ésta en la forma. O, para
expresarmos sin metáforas: quanto más ricos en ideas sean los sentimentos Del
hombre y más pletóricas de sentimiento sus ideas, a mayor altura rayará ese hombre.
Esta eterna fecundación de la forma y la materia o de la variedad con la unidad es la
base sobre que descansa la fusión de las dos naturalezas asociadas en el hombre; la
cual es, a su vez, la base de la grandeza de éste. [...] Para mí, el supremo ideal en La
coexistencia de los seres humanos sería aquella sociedad en que cada uno de los
seres unidos se desarrollase solamente por obra de sí mismo y en gracia a él mismo. [...] Ahora bien, el hombre nunca considera tan suyo propio lo que posee como
aquello que él mismo hace, y el obrero que cultiva el jardín es tal vez más
propietario de él, en el verdadero sentido de la palabra, que el señor ocioso que lo
disfruta. [...] Pues bien; el estado que se preocupe de ejercer uma tutela positiva
como ésta a que nos referimos, sólo puede atender a los resultados y establecer
simplemente aquellas reglas cuya observancia es más conveniente para la perfección
de estos. [...] La tutela del estado en cuanto al bienestar positivo de los ciudadanos
88
entorpece el desarrollo de la individualidad y de la peculiaridad Del hombre en su
vida moral y en su vida práctica en general, en La medida en que se limite a
observar las reglas establecidas – las cuales se reducen a su vez, seguramente, a los
princípios del derecho – [...]. Sin seguridad, el hombre no puede desarrollar sus
fuerzas ni percibir los frutos de las mismas, pues sin seguridad no existe libertad.
Escritos Políticos (HUMBOLDT apud MILANI, 2006, p. 106).
Além dessa ênfase na individualidade da pessoa humana, Humboldt sustentava o
necessário enraizamento da pessoa na sociedade e na comunidade.
Através dos escritos Humboldt é possível perceber que ele recebeu forte influência da
Revolução Francesa:
Este país era, necesariamente, el primero en que tenía que producirse la
revolución, tras la cual no podía venir más sistema que el sistema de una libertad
moderada y, sin embargo, completa y absoluta, el sistema de la razón, un régimen de
estado ideal. La humanidad había caído en un extremo y tenía que buscar su
salvación en el extremo contrario (HUMBOLDT apud MILANI, 2006, p. 105).
Humboldt se preocupa principalmente com o ensino superior que nesta época
começava a se introduzir com um contexto de acirrados debates intelectual e político sobre os
nexos entre conteúdos teóricos e formação técnica, conhecimentos úteis e cultura
desinteressada e entre instrução e formação moral.
A didática da Matemática, desde então, ficava oscilando entre o reducionismo que
tentava explicar o avanço em termos do elementar, que foi caracterizado na época do
iluminismo no século XVIII, e entre a concepção da ciência no sentido de Humboldt, que
procurava abordar diretamente os aspectos fundamentais da Matemática avançada (conjunto,
conceito de função, método axiomático etc.).
3.4 GERSTELL: A GRANDE EXPLOSÃO NA PRODUÇÃO MATEMÁTICA NA
ALEMANHA
Em seu artigo Prussian Education and Mathematics (1975), Gerstell, escreve que a
partir do final do século XVIII, tem-se um explosivo crescimento de matemáticos,
especialmente na Alemanha. Observe o seguinte relatório apresentado pela autora, onde
consta o nascimento de matemáticos alemães:
89
Datas de nascimento Datas de nascimento
1556-65 1566-75 Kepler
1576-85 1586-95*
1596-05 1606-15
1616-25 1626-35
1636-45 1646-55 Leibniz, von Tschirnhaus
1656-65 1666-75
1676-85* 1686-95 Goldbach
1696-05* 1706-15
1716-25* 1726-35
1736-45 Wessel 1746-55 1756-65 1766-75
1776-85 Gauss,* 1786-95 Mobius,*
1796-05 Von Staudt, Feuerbach, Plicker, Jacobi, Dirichlet, *
1806-15 Listing, Grassmann, Kunumer, Weierstrass, **
1816-25 Heine, Seidel, Kronecker,**
1826-35 Riemann, Dedekind, **
1836-45 Hankel, Cantor, ***
1846-55 Klein, Frege, Lindemann, *
1856-65 Hilbert, *
1866-75 Hausdorff, Zermelo, *** (GERSTELL, 1975, p. 243-244, tradução nossa).
Para a autora esta explosão está relacionada ao contexto social na Alemanha. O ensino
da Matemática era importante para o comércio, indústria e para o próprio governo da
Alemanha que desejava superar a França de Napoleão. Os ministros da Alemanha, com o
apoio destas classes estabeleceram um programa de reformas.
O ministro da educação, Wilhelm Von Humboldt, fundou universidades, que
enfatizavam o ensino em Matemática. O objetivo de Humboldt, como já foi escrito, era unir
pesquisa e ensino, para tanto ele convidava grandes matemáticos para fazerem parte do
quadro de professores nas universidades.
Este contexto favoreceu o aumento do número de matemáticos:
Como as origens dos problemas matemáticos não estão diretamente
relacionadas à ciência, à indústria ou ao comércio, alguns escritores acabam
concluindo que a razão d‟être da Matemática é interna. Isto pode ser uma verdade
em relação aos próprios problemas, mas não é uma verdade que pode ser
direcionada aos homens que resolvem os problemas matemáticos. Pois a educação é
uma da várias maneiras pelas quais os governantes e as poderosas elites podem
influenciar a história intelectual, e eu não encontro um caso tão claro como o caso da
Alemanha, onde o fator educacional pode ser identificado com tão pouca distorção,
como uma causa singular na historiografia. (GERSTELL, 1975, p. 245, tradução nossa).
Muitos matemáticos receberam uma formação inicial do novo sistema escolar, e isso
também justifica este exacerbado crescimento, pois “(...) para garantir que vários de homens
Cada asterisco representa um matemático que autora optou em não citar o nome.
90
se tornem matemáticos competentes e criativos basta educá-los em Matemática”
(GERSTELL, 1975, p. 240, tradução nossa). Logo as escolas alemãs traziam na carga horária
um considerável tempo para as disciplinas de Matemática e por esses motivos ocorre. Então
uma explosão na produção matemática.
3.5 DIRICHLET (1805-1859): O PENSAMENTO CONCEITUAL NA MATEMÁTICA
Johann Peter Gustav Lejeune Dirichlet foi um matemático alemão que estudou em um
colégio jesuíta e depois no Collège de France. Encorajado por Alexander von Humboldt, que
fez recomendações em seu nome, ele retornou à Alemanha, em 1826. Lecionou na academia
militar e na Universidade de Berlim. Em 1855, começou a trabalhar como professor de
Matemática em Göttingen (O‟CONNOR; ROBERTSON, 2000b).
Gauss (1777-1855) e Dirichlet foram os primeiros matemáticos modernos na
Alemanha. Após esses surgiram outros como Riemann (1826-1866) e Dedekind (1831-1916).
Dirichlet tinha um extremo cuidado com os conceitos. Para efetuar uma prova ele
explicava antes o que significava cada conceito, realizando assim um trabalho mais didático,
de forma que o leitor pudesse identificar cada símbolo ao ler seu trabalho. Koch descreve o
modo como Dirichlet desenvolvia suas provas matemáticas a ainda reforça a grande
importância deste matemático:
[...] importantes partes da Matemática foram influenciadas por Dirichlet. A
principal característica de suas provas é que sempre começavam com observações
surpreendentemente simples, seguidas por uma análise extremamente aguçada do restante do problema. Com Dirichlet inicia-se a idade de ouro na Matemática em
Berlim (KOCH, 1998, p. 33-40, tradução nossa).
Na Matemática o pensamento conceitual substituía cálculos cegos. Boutroux,
sinalizando a importância da intuição e a preocupação com os conceitos na Matemática,
escreveu que:
O fato matemático é independente do vestuário lógico ou algébrico sobre o
qual nós procuramos representá-lo. De fato, a ideia que temos é mais rica e mais
plena que todas as definições que podemos dar, que todas as formas ou combinações
de signos ou de proposições pelas quais nos é possível exprimi-la (1920, p. 203,
tradução nossa).
91
Portanto, pode-se notar que o pensamento matemático de Dirichlet caracteriza o
pensamento conceitual matemático.
A geometria e o pensamento intuitivo, que geralmente até Kant eram típicos da
Matemática, no início do século XIX são excluídos da matemática pura. A geometria e a
Matemática foram colocadas no mesmo patamar que a mecânica, mas para isso necessitou-se
que a matemática pura estabelecesse sua própria teoria dos objetos e sua própria ontologia.
Por isso, a teoria dos conjuntos foi tão interessante para os matemáticos de Bolzano (1782-
1848) à Cantor (1845-1919) e até mesmo nos dias atuais. A exclusão da geometria e da
intuição trouxe muitas discussões entre os matemáticos e os engenheiros das escolas
politécnicas. O trabalho de Felix Klein consistiu em ligar a teoria e a prática ou a pesquisa e
ensino da Matemática.
3.6 FELIX KLEIN (1849-1925): A DISCUSSÃO ENTRE MATEMÁTICA PURA E
APLICADA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA ALEMANHA
No século XIX grande parte das escolas alemãs ainda não havia remodelado o seu
sistema escolar e ainda apresentavam uma estrutura tradicional, onde se ensinava as línguas
clássicas e o ensino universitário era direcionado principalmente para a carreira eclesiástica,
para direito e administração (SCHUBRING, 1999, p. 39).
Na segunda metade do século XIX as escolas alemãs, com a preocupação de
acompanhar a Revolução Industrial, se organizam em três classes as Humanistiche
Gymnasiun, as Realschulen e as Volksschulen.
As Gymnasiun se dedicavam a filologia e ao ensino das línguas, eram as escolas
secundárias de maior prestígio, onde o ensino da Matemática era sintético voltado para a
geometria euclidiana e rejeitava-se o ensino de funções. Schubring destaca que: “Essas
escolas aperfeiçoaram-se rapidamente a partir de 1850 e adquiriram progressivamenteum
status próximo ao das universidades, até que por volta de 1900 já eram consideradas como
possuidoras de um status igual ao das universidades” (SCHUBRING, 1999, p. 39).
Enquanto nas escolas Realschulen ensinavam geometria elementar tradicional,
geometria descritiva e alguns elementos da geometria sintética. E por fim as Volksschulen
ensinavam o cálculo prático, ou seja, a Matemática sem provas, por isso nessas escolas não
havia o ensino da geometria.
92
Apesar de todas as mudanças, onde o foco da educação era voltado para as novas
demandas científicas tecnicamente treinadas para a indústria, o ensino de Matemática não
obteve progresso e não houve uma iniciativa de modernização por parte dos professores como
escreve Schubring:
Essa falta de iniciativa é tanto mais notável uma vez que uma associação de
professores, a Foerderverein fuer den mathematisch naturwissenschafi, tinha sido fundada em 1891. Seu interesse principal era manter o status do ensino de ciências e
Matemática nas escolas secundárias, mas nenhuma mudança no currículo foi
planejada (SCHUBRING, 1999, p. 41).
O problema da necessidade de mudanças na estrutura curricular do ensino da
Matemática foi observado primeiro no ensino superior relacionado ao processo de transição
das escolas secundárias para superiores. Depois vieram as transformações nos subsistemas das
escolas secundárias. O manche desta reforma no ensino da Matemática foi Felix Klein.
O matemático alemão Christian Felix Klein (1849-1925) foi assistente de Julius
Pluecker (1801-1868) o qual foi professor de Matemática e Física na Universidade de Bonn.
Klein atuou como professor de Matemática em diversas universidades e escolas técnicas
superiores e desenvolveu pesquisas sobre Teorias dos Grupos, Teoria das Funções e
Geometria Não Euclidiana.
Em 1888 Klein lançou a proposta de integrar as escolas técnicas superiores às
universidades, objetivando estabelecer um programa matemático na Alemanha que
valorizasse a geometria e as aplicações. O fracasso desta sugestão o fez enxergar que uma
simples reorganização do sistema de ensino restrita à educação superior não surtiria em uma
reforma fundamental na Matemática da forma como Klein ansiava. Pensando em outra
solução, Klein começou a trabalhar no aperfeiçoamento da formação de professores
procurando promover a instrução prática e estabelecer o desenvolvimento da intuição
espacial, porém esta tarefa não acarretou em grandes resultados como esperado.
Klein, então, atribui o problema às escolas técnicas superiores. Estas escolas tiveram
que aceitar professores formados nas universidades, porque eles mesmos não tinham direitos
acadêmicos, para estabelecer programas de pós-graduação ou programas de doutorado antes
de 1899. Esses professores, por sua vez tentavam desenvolver nas escolas técnicas a mesma
Matemática pura que estudaram nas universidades o que ocasionou em um enorme problema,
pois a Matemática concretizada e atestada por eles não contemplava as necessidades de seus
alunos engenheiros, que acabavam por desistir da disciplina, fazendo eclodir a ideia que os
93
próprios engenheiros deveriam ministrar as aulas de Matemática nos cursos de engenharia,
reduzindo assim o papel da Matemática.
A solução encontrada por Klein foi a tradicional. Em 1900, enviou sua nova proposta
ao ministro da instrução pública da Prússia (atual Alemanha), que consistia em introduzir, nas
escolas como no Gymnasiun os conteúdos do ensino preparatório para os cursos de
Matemática (geometria analítica e os elementos do cálculo diferencial e integral). Esta nova
proposta estabelecia a flexibilidade entre as três escolas secundárias e os dois tipos de
educação superior (SCHUBRING, 1999, p. 30-31).
A resposta que Klein recebeu em 1902, foi para que ele treinasse um grupo de
professores que atuariam em escolas selecionadas implantando a nova grade curricular. Deste
modo, a reforma iniciou conquistando primeiramente os professores. Então, Klein procurou
estimular os professores de Matemática das escolas, o seu slogan foi a noção do raciocínio
funcional. Segundo Schubring o assessor de Klein:
Lietzmann observou que o sucesso do movimento de reforma dependia de se
encontrar uma idéia fundamental que funcionasse como um ponto de convergência e
que ao mesmo tempo levasse o cálculo para o currículo do Gymnasium
automaticamente. Esse ponto básico de convergência foi o conceito de função, que, de acordo com o programa de Klein, já deveria ser introduzido nas classes iniciais.
(SCHUBRING, 1999, p. 44, grifo nosso).
Waltes Lietzmann (1880-1959), no doutorado foi orientado por Hilbert (1903), mas
sendo um educador dedicado e um autor prolífero de livros didáticos foi convidado por Felix
Klein para ser seu secretário nos assuntos acadêmicos. Alguns dos relatórios temáticos de
Klein foram elaborados por Lietzmann, por exemplo, o relacionado ao "rigor" na Matemática,
devido aos seus estudos sobre os fundamentos da geometria, na Itália.
Lietzmann elaborou em conjunto com Klein várias reuniões e congressos
internacionais, inclusive o IMUK (Internationale Mathematisque Unterrichtsommission/
CIEM – Commission Internationale de l‟Enseignement Mathemátique).
Em 1905, Klein organizou na cidade de Meran (alemão) ou Merano (italiano) na época
pertencente à Alemanha, um congresso de matemáticos internacional, na verdade este foi uma
preparação para a reforma da Educação Matemática.
Na ocasião um dos principais assuntos debatidos foi sobre a noção de função
matemática, direcionada para a organização de uma concepção mais ampla da noção de
função, ou seja, trabalhar com gráficos como queriam os engenheiros não só com fórmulas e
entender que a função tem outros aspectos além dos aspectos algébricos.
94
As ideias de Klein foram bem aceitas, exceto que o conceito de função compusesse
também as escolas humanistas.
O próximo Congresso Internacional de Matemática, que ganhou destaque, ocorreu em
Roma, na Itália, em 1908. Foi o quarto congresso de matemáticos, porém neste ocorre a
formalização do grupo IMUK, onde foi formada uma comissão para “fortalecer a organização
do ensino das matemáticas” (l‟Enseignement apud SCHUBRING, 1999, p. 35). Os três
matemáticos nomeados para compor esta comissão foram o alemão Felix Klein o mesmo foi
eleito o presidente, o suíço Henri Fehr (1870-1954) e o inglês George Greenhill (1847-1927).
O IMUK atuou como um agente de mudanças no ensino de Matemática.
Na sequência em 1910 o IMUK aconteceu em Bruxelas na Bélgica. Depois em Milão
na Itália em 1911 e em Cambridge na Inglaterra em 1912.
Contudo, o auge do IMUK foi o congresso que ocorreu em Paris em 1914. O tema que
mais chamou a atenção foi “a avaliação da introdução do cálculo nas escolas secundárias”
(SCHUBRING, 1999, p. 45). O segundo tema que ganhou destaque foi a preparação
matemática dos engenheiros, que de acordo com o relatório do assistente de Klein,
Lietzmann, os resultados foram satisfatórios, pois os engenheiros aceitaram serem ensinados
por matemáticos (SCHUBRING, 1999, p. 45).
O IMUK propôs-se a discutir sobre oito estudos comparativos:
1. A fusão dos diferentes ramos da Matemática no ensino das escolas (Milaõ, 1911);
2. O rigor no ensino de Matemática nas escolas médias (Milão, 1911);
3. O ensino teórico e prático de Matemática destinado aos estudantes de ciências físicas
e naturais (Milão, 1911);
4. A preparação matemática dos físicos na universidade (Cambridge, 1912);
5. A intuição e a experiência no ensino de Matemática nas escolas médias (Cambridge, 1912);
6. Os resultados obtidos na introdução do Cálculo Diferencial e Integral nas classes mais
adiantadas dos engenheiros nos diferentes países (Paris, 1914);
7. A preparação matemática dos engenheiros nos diferentes países (Paris, 1914);
8. A formação dos professores de Matemática para os estabelecimentos secundários.
(SCHUBRING, 1999, p. 45).
A maior parte dos temas propostos trata da mudança do ensino secundário para o
superior, do mesmo modo como Felix Klein trabalhou na reforma da Educação Matemática
na Alemanha.
Após a morte de Klein, em 1925, Lietzmann passou a presidir a subcomissão alemã.
Mas o papel de Heinrich Behnke (1898-1979) foi decisivo, pois ele, diferentemente de
Lietzmann, foi um Anti-Nazista e um amigo íntimo de Henri Cartan (1904-2008) a
95
“eminência parda” da Matemática em Paris. Isso o ajudou a reintegrar a matemática alemã na
comunidade internacional e, em seguida, a didática da Matemática.
A dissolução do IMUK, associada à primeira Guerra Mundial, pôs fim as suas ações
internacionais. Quando eles retomaram às suas atividades em 1928, Lietzmann foi eleito
membro do Comitê Central, e em 1932, vice-presidente da IMUK. Em 1936, participou da
ICM (International Congress of Mathematicians) em Oslo, Noruega, não apenas como chefe
da delegação alemã, mas também foi re-eleito como vice-presidente. Embora houvesse
poucos IMUK em atividades de 1928 em diante, e menos ainda depois de 1932, já em 1936
existia apenas um corpo nominal.
Em 1952 ocorreu o restabelecimento da IMUK como ICMI (International Commission
on Mathematical Instruction) e a reconstituição da subcomissão alemã. Behnke foi eleito
como presidente.
Klein conseguiu cumprir a parte do acordo que lhe foi incumbido, o ministério da
Prússia apoiou seu movimento e várias instituições aderiram o conceito de função em sua
grade curricular.
Felix Klein trabalhou, no início do século XIX, intensamente para que ocorressem
reformas no ensino de Matemática. Seus projetos ganharam força e atingiram a Educação
Matemática a nível internacional. Graças à Klein, aos poucos, o Cálculo ganhou espaço no
ensino superior.
3.7 DURKHEIM (1858-1917): O PROBLEMA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO SE
TORNA A LUPA CENTRAL DO CONHECIMENTO
Assim como ocorreu mudanças na educação da Alemanha, com Humboldt e
especialmente na Educação Matemática com Klein. Na França também ocorreram muitas
transformações. A educação se expandiu por toda a França, oferecendo educação as classes
menos favorecidas. O auge da crença no consenso social se encontra no pensamento do
sociólogo francês Émile Durkheim considerado um dos pais da sociologia moderna.
Durkheim acreditava que a sociedade era a materialização de uma consciência coletiva.
No ensino público e laico Durkheim não desenvolveu métodos pedagógicos, mas suas
ideias ajudaram a compreender o significado social do trabalho do professor, tirando a
96
educação escolar da perspectiva individualista. Neste sentido um importante trabalho de
Durkheim é L’Évolution Pédogogique em France, escrita em 1938.
Até 1789 o ensino na França estava sob a tutela da igreja, o foco principal era o estudo
das escrituras, na verdade era uma busca sobre o homem e o mundo. O ensino estava focado
nas ciências humanas e para todos era necessário estudar o latim e o grego.
Logo após, a escola torna-se responsabilidade do Estado, onde surge o projeto
Condorcet em 1792. A Revolução, em 1789, deu origem a todos os tipos de instituições
educativas. Onde o objetivo era a difusão da educação em todas as classes da sociedade.
Para Durkheim (1995, p. 151-152) até o século XIX o homem era o centro do ensino,
desde a época do ensino primitivo até o renascimento onde o ensino era marcado pelos traços
essenciais do espírito nacional, ou seja, a escola de espírito clássico. Na visão de Durkheim,
apenas no século XIX a educação toma outro rumo.
Vimos no último capítulo como a pedagogia revolucionária opunha-se, através de caracteres claramente marcados, àquela que a antecedera. Desde os
primórdios da nossa história escolar, desde a época carolíngia, o único objetivo do
ensino fora o homem, considerando ora sob seu simples aspecto lógico, ora, com as
humanidades, na integridade de sua natureza, e daí é que veio o formalismo do qual
a pedagogia não conseguia libertar-se. Jamais, eu acredito, o pensamento humano
levou tão longe o antropocentrismo. A pedagogia revolucionária norteia-se por um
sentido totalmente diferente; para fora, para a natureza é que se orienta. As ciências
que tendem a tornar-se o centro da gravidade do ensino (DURKHEIM, 1995, p.
151).
Para Durkheim o foco do ensino deixa de ser o homem e passa a ser a ciência, a partir
desta libertação a ciência, em geral, avança, mas este avanço não ocorre de forma harmoniosa,
contudo segue como Boutroux diz
As teorias parecem mal delimitadas e proporcionadas, se cruzam e
sobrepõem-se umas sobre as outras, são introduzidas de uma maneira abrupta sem
razões aparentes, depois são abandonadas e depois novamente retomadas sem que se
saibam os princípios que presidem a sua formação e a sua conexão (BOUTROUX,
1920, p. 189-190).
Assim como Boutroux acreditava que já não existia uma harmonia pré-estabelecida na
Matemática. Na sociologia Durkheim, enfatizava que um conceito não pode ser apenas
particular, mas geral, ele escreveu em seu livro As formas elementares da vida religiosa:
Se, como acontece geralmente, não se vê no conceito senão uma idéia geral,
o problema parece insolúvel (...). O geral só existe no particular; é o particular simplificado e empobrecido. O primeiro não poderia, portanto, ter virtudes e
privilégios que o segundo não tem (DURKHEIM, 2008, p. 510).
97
A perspectiva da sociologia de Durkheim conseguiu jogar luz em uma questão que
havia perturbado muitos filósofos desde Kant até os positivistas modernos. A grande questão
foi: como seria possível fazer progresso através de um pensamento positivamente conceitual?
Ou seja, como a Matemática podia ser analítica e mesmo assim produzir novos conceitos?
Para Durkheim (2008, p. 478-481), um conceito não poderia ser definido dentro de
uma harmonia pré-estabelecida, pois um conceito é uma representação impessoal, ou seja,
uma representação coletiva não é produto de uma só pessoa, mas de uma sociedade. Por isso,
pensar conceitualmente não é simplesmente isolar e agrupar características comuns a
determinado número de objetos, como em um processo sintético, mas é subsumir o variável
sob o permanente, o individual sob o social.
98
CAPÍTULO IV
A HISTÓRIA DA ANÁLISE NO SÉCULO XIX COMO HISTÓRIA DO
DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE FUNÇÃO MATEMÁTICA
4.1 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DO TERMO FUNÇÃO NOS DIAS ATUAIS
Para que a noção de função matemática chegasse ao conceito apresentado pelas atuais
instituições de ensino, percorreu-se uma longa jornada por meio dos séculos. “(...) a
compreensão dessa ideia e, consequentemente, sua generalização foram gradativas até atingir
seu atual significado” (PALARO, 2006, p. 109).
Contudo o conceito de função não parece ser mais um conceito específico da
Matemática. Otte (1993, p. 227, 228), escreve:
Inicialmente: o que é uma função? Quando se deseja conhecer alguma coisa, no caso o conceito matemático „função‟, torna-se evidente que o esclarecimento
desejado depende dos fundamentos de que se dispõe para a explicação. Na
Matemática de hoje, entende-se intuitivamente por „função‟ qualquer tipo de
correspondência entre duas classes exatamente um elemento da outra. Com a
linguagem da teoria dos conjuntos isto é precisado ao se definir uma função como
uma relação xRy unívoca à direita (unicidade à direita significa que xRy1 e xRy2
implicam a identidade y1=y2), ou seja, como o correspondente subconjunto dos pares
(x, y), pertencentes ao produto cartesiano AXB (isto é, xCEA e yCEB). Porém,
como foi dito, isto é apenas uma entre as possíveis formas de explicação, aquela que
reduz o conceito de função ao de conjunto. No sentido de uma tal redução aos
conceitos da teoria dos conjuntos, o conceito de função não parece ser mais, hoje em dia, um conceito central da Matemática. Nos léxicos modernos [...] o termo função
não surge mais com um título independente. O termo função foi e ainda pode ser
entendido de diversas maneiras, dependendo do domínio ao qual o conceito tenha
sido aplicado, observa-se o termo „função‟ na filosofia durante algumas décadas.
Abbagnano (2000) descreve que há duas significações fundamentais para o termo
função, que se classificam em operação e relação.
Para o primeiro significado, a operação, tem-se a palavra grega ergon a qual foi
empregada por Platão que disse: “a função dos olhos é ver, a função dos ouvidos é ouvir, que
cada virtude é uma função de determinada parte da alma e que a função da alma, em seu
conjunto, é comandar e dirigir” (PLATÃO apud ABBAGNANO, 2000, p. 472). Neste âmbito
99
a função é a operação própria da coisa, trazendo o sentido de ser aquilo que a coisa faz melhor
em comparação a outras coisas.
Aristóteles pensa em função da mesma maneira que Platão, quando em Ética e
Nicômaco, questiona qual é a função ou operação própria do homem como ser racional.
Aristóteles ainda escreve “a função é o fim, e o ato é a função” (ARISTÓTELES apud
ABBAGNANO, 2000, p. 472), ou seja, para o filósofo o termo função também tem um
caráter finalista e realizador.
A palavra função é usada frequentemente, com significado comum e científico. Em
um sentido geral, possui papel e determinadas características desempenhadas por um órgão
que envolve um conjunto cujas partes são interdependentes. Podendo ser este conjunto
mecânico, filosófico, psíquico ou social (LALANDE, 1999, p. 432).
Especificamente o termo função pode ser notado principalmente na filosofia, biologia,
psicologia e na sociologia.
A relação funcional está explícita desde a época em que o homem foi levado pela
necessidade de contar, onde se utilizava a associação de uma pedra a um animal, procurando
assim, ter controle sob seu rebanho. Os babilônicos construíram tabelas em argilas, onde eles
realizavam uma multiplicação do número da primeira coluna por uma constante, cujo,
resultado era escrito na segunda coluna. Igualmente os egípcios, porém, normalmente suas
tabelas eram escritas em papiros. Enquanto dos gregos tem-se a participação de Ptolomeu que
mesmo sem mencionar a palavra função, desenvolveu ferramentas matemáticas e utilizou
tabelas envolvendo a função da corda do arco x, ou crd x (BOYER, 1968, p. 112).
No século XIV o conceito de função matemática era relacionado à ideia de
dependência funcional, como Mora, escreve:
(...) sabe-se, com efeito, que há na natureza dependências tais que a mudança de uma
magnitude é condicionada pela mudança de outra magnitude de que a uma maior
força correspondente um maior efeito, que no movimento local o caminho
percorrido aumenta com o tempo, que o equilíbrio depende da magnitude (2001, p.
1157).
Neste mesmo século o termo função relacionado a retas, sistemas de coordenadas e
curvas, ainda não era bem conhecido do modo como é apresentado nos dias atuais. Na
Antiguidade, o estudo dos diferentes casos de dependência entre duas coisas não
proporcionou as noções gerais de quantidade variáveis e de funções, pois as relações de
dependência se basearam nas ideias de causa e efeito (PALARO, 2006, p. 111).
100
Nas ciências empíricas modernas a função é apresentada totalmente em termos
descritivos, sem se perguntar sobre as bases objetivas dessas relações. Agora, será que se pode
afirmar que existe realmente uma relação de tudo com tudo? É possível ver arbitrariamente
uma semelhança ou analogia em tudo?
A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam
como proposições nos sistemas discursivos. Os elementos das funções se chamam functivos. Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas
por funções ou proposições. É uma idéia muito variada, muito complexa, como se
pode ver já no uso que dela fazem respectivamente a Matemática e a Biologia;
porém, é essa idéia de função que permite às ciências refletir e comunicar. A
ciência não tem nenhuma necessidade da filosofia para essas tarefas. Em
contrapartida, quando um objeto é cientificamente construído por funções, por
exemplo um espaço geométrico, resta buscar seu conceito filosófico que não é
de maneira alguma dado na função (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153).
Deleuze e Guattari querem distinguir a filosofia das ciências e da Matemática por
meio desses dois lados da função: ideia (conceito) e conjunto (relação concebida em termos
descritivos).
O conceito de função encontra-se em várias áreas do conhecimento. Contudo, na
Matemática, este conceito é ainda muito complexo.
4.2 HISTÓRIA DA FUNÇÃO DE LEIBNIZ ATÉ EULER: O PERÍODO DA DICOTOMIA
No século XVII, o conceito de função apresenta considerável avanço por meio de
Descartes (1596-1650) e Fermat (1601-1665). Na mesma época, iniciaram-se os estudos sobre
o método analítico para introduzir relações, trabalhando com as equações indeterminadas
(várias soluções) envolvendo variáveis contínuas. Essa noção de variável foi fundamental
para o desenvolvimento do cálculo (COSTA, 2004, p. 22).
A história da Matemática, conforme Otte, de Descartes à Comte (1798-1857), é
descrita:
Pela universalização da comparação, sobretudo com a ajuda do conceito
matemático de função. O que existe de especial no conceito de função é que ele
pode ser ao mesmo tempo concebido como objeto e como operador, e que daí em
diante, de acordo com a interpretação, surgem diferentes formas de encadeamento
(1993, p. 274).
101
Na metade do século XVIII dão-se os prolegômenos para o início da ruptura na
Matemática mencionada por Boutroux que ocorreria no próximo século. Neste tempo surgem
Newton (1642-1727) e Leibniz (1646-1716), que são considerados como os grandes
expositores do Cálculo Diferencial e Integral. Segundo Pelho:
Newton quem estabeleceu pela primeira vez o termo específico para função, ao
utilizar o nome de „fluentes‟ para representar algum relacionamento entre variáveis. Ele descrever suas idéias de função ligadas à noção de curvas e a taxas de mudança
de quantidades que variam continuamente (2003, p. 20).
Enquanto Leibniz, o homem que por vezes é considerado como o último sábio que
possuiu o conhecimento universal “não é responsável pela moderna notação para função, mas
é a ele que se deve a palavra „função‟, praticamente no mesmo sentido em que é usada hoje”
(BOYER, 1968, p. 280).
Contudo, para esses dois matemáticos a principal finalidade era estudar curvas
geométricas, ou seja, os problemas que deram origem ao cálculo eram geométricos e
cinemáticos, eles não visavam exatamente às funções matemáticas no conceito moderno.
Apesar da gênese do conceito de função ser anterior a Leibniz e seus
contemporâneos (...) o termo função foi usado pela primeira vez por Leibniz, em
manuscritos datados de 1673 e, em particular, no La méthodo inverse des tangentes
ou au sujet des fonctions (O método inverso das tangentes ou sobre as funções), para
designar quantidades geométricas variáveis relacionadas a uma curva como, por
exemplo, coordenadas, tangentes, subtangentes, raios de curvatura, etc. (DAHAN-
DALMEDICO; PEIFFER apud PALARO, 2006, p. 110).
Boutroux, explica que a noção central da ciência de Descartes e Leibniz era o signo ou
o símbolo, onde a álgebra e a análise algébrica eram uma arte simbólica, principalmente por
este motivo é que atualmente a notação do Cálculo de Leibniz é mais utilizada do que a de
Newton, pois a simbolização à torna mais importante. Analisando por este prisma, tanto a
matemática de Descartes e Leibniz do século XVII e XVIII quanto à de Euler e Lagrange
(1736-1813) são baseadas na combinação de signos, ou seja, uma matemática sintética,
enquanto a matemática pura dos séculos XIX e XX como a de Cauchy é uma ciência de
conceitos, ou melhor, uma matemática analítica.
Mas quem foi Euler e quais as suas contribuições para o desenvolvimento do conceito
de função?
Leonhard Euler (1707-1783) nasceu na Suíça e em vida publicou cerca de 530
trabalhos entre artigos e livros. Otte afirma que Euler foi “o maior matemático do século
XVIII, uma personalidade como cientista que se sobressai na história da ciência pela
102
variedade e quantidade de sua produção científica” (OTTE, 1993, p. 228). Euler foi o
construtor das notações mais bem sucedidas de todos os tempos, entre estas se encontra uma
importante notação, que é a f(x) usada para uma função de x (BOYER, 1968 p. 305).
Para as exigências da Matemática do século XIX Euler não pensava em função de um
modo formal, mas na verdade confundiu a função com suas representações, sejam essas
representações uma curva traçada à mão livre sobre um plano ou “qualquer expressão
analítica formada daquela quantidade variável e de números ou quantidades constantes”
(BOYER, 1968, p. 306).
Este matemático escreveu um trabalho intitulado Introduction in Analysin Infinitorum
(Introdução à Análise Infinitesimal) em 1748; que nos dias atuais define a estrutura inicial da
Matemática nas universidades. Nesta obra Euler chamou de quantidades constantes as iniciais
do alfabeto a, b, c, etc. E de quantidades variáveis as últimas letras do alfabeto z, y, x etc.
(EULER, 1980).
Na referida obra Euler explica a diferença entre função contínua e função descontínua
segundo a sua visão, que logicamente, era baseada nos signos e na combinação de signos e em
fórmulas relacionadas à Matemática de sua época. Para ele, uma função é contínua quando é
formada por uma única expressão analítica. Enquanto as funções formadas por mais de uma
expressão analítica, mesmo que o gráfico fosse formado por apenas uma curva, eram
consideradas como funções descontínuas (PALARO, 2006, p. 115).
Na verdade não existia uma definição geral para o conceito de função, havia vários
tipos de funções, como funções trigonométricas, funções transcendentais, funções lineares
etc., que eram estudadas e definidas separadamente, sendo que algumas funções poderiam ser
classificadas como funções contínuas. O conceito geral de função como relação entre
conjuntos surgiram apenas no século XIX. Para tanto, foi necessário uma definição mais clara
e correta do conceito de continuidade.
4.3 A TRANSFORMAÇÃO DE IDEIA DA FUNÇÃO DURANTE O SÉCULO XIX
No início do século XIX floresce um novo movimento com um conhecimento
composto por novos objetos trazidos para o pensamento, onde a partir desses objetos eram
gerados novos conhecimentos. O conceito de função foi uma peça fundamental para que todas
essas ideias afluíssem. Otte afirma que este conceito “representa o verdadeiro núcleo da
103
famosa „revolução do rigor‟, introduzida em 1821 pelo Cours d’Analyse, de Cauchy. Tentava-
se reduzir o conceito de função ao discreto, à aritmética dos números naturais, e assim
eliminar a continuidade” (OTTE, 1993, p. 223).
Este século é conhecido como o século do rigor matemático. Para representá-lo Boyer
o destaca como: “o período do rigor na Matemática” (1968, p. 358) o autor ainda escreve:
Mais do que qualquer outro período, o século dezenove merece ser
considerado a Idade de Ouro na Matemática. Seu crescimento durante estes cem
anos é de longe maior que a soma total da produtividade em todas as épocas
precedentes. O século foi também, excetuado talvez a Idade Heróica na Grécia antiga, o mais revolucionário na história da Matemática (BOYER, 1968, p. 343).
Ocorreu um desligamento entre o conceito de função e as modalidades concretas e isto
traz hoje certas dificuldades cognitivas.
Essa transformação pode ser observada por meio da dificuldade que se apresentou no
desenvolvimento do conceito de função contínua, principalmente pela forma como Euler o
definiu, pois o conceito de função contínua é a peça fundamental para se entender o
desenvolvimento da Matemática e as suas principais mudanças no século XIX.
De acordo com Otte (1993) a identificação entre conceito e símbolo a qual fazia a
forma de representação simbólica da função uma característica fundamental da continuidade,
trouxe grandes dificuldades e imprecisões, pois a mesma função poderia ser caracterizada
como uma função contínua e também por representações descontínuas. Cauchy preocupado
com este problema, concebeu o conceito de função contínua, utilizada até os dias atuais.
Para o matemático Pierre Boutroux “um dos mais importantes conceitos da análise
moderna é o conceito de função matemática” (BOUTROUX, 1920, p. 164, tradução nossa). O
autor complementa:
Na própria análise: temos antes todo o trabalho da concepção de
função y(x), isto é dizer, uma intuição da lei matemática após a qual, quando
escolhemos um valor arbitrário de x, encontra-se certo valor de y para o mesmo desígnio, só depois esforçamo-nos para obter equações que
exprimam o menor mal possível desta estranha relação das duas variáveis x e
y (BOUTROUX, 1920, p. 206, tradução nossa).
Segundo Boutroux o mais difícil para entender era exatamente o fato que entre dois
termos variando simultaneamente existe uma relação constante. A dificuldade é sempre
distinguir entre representação, fato ou objeto representado.
104
Para os matemáticos é mais fácil aceitar o conceito de função contínua, entretanto, no
ensino esses problemas permanecem, pois o professor é seduzido a ensinar por meio de
exemplos, porém um exemplo só pode ser usado à base de uma representação, por isso, nos
dias atuais tem sido difícil concordar com esta concepção abstrata do conceito de função, que
transforma logo de início o próprio conceito num objeto completamente desconhecido.
Como afirmou Boutroux: “a correspondência matemática não é uma consequência das
operações algébricas, mas é o próprio objeto que as determinam” (BOUTROUX, 1920, p.
206, tradução nossa). Ou seja, existe uma relação objetiva, que não deveria ser confundida
com uma representação, mas que mesmo assim pode ser introduzida na atividade matemática
através de uma representação particular
Como já foi mencionado, em 1920 Boutroux escreveu o livro O ideal Científico dos
Matemáticos, neste trabalho o autor defende a tese de que houve não apenas uma revolução,
mas também uma ruptura na História da Matemática ocorrida no final do século XVIII, que
apresentou como base dois eventos. No primeiro evento, a Matemática deixa de ser uma
ciência sintética e torna-se uma ciência analítica, no segundo, houve uma quebra da harmonia
entre os meios e os objetos da Matemática.
Segundo a visão de Boutroux, a Matemática nos séculos XVII e XVIII era
propriamente sintética, os matemáticos se preocupavam com o caminho para se chegar aos
resultados e se interessavam pela maneira ou pelo método.
Enquanto que a concepção analítica da Matemática nos séculos XIX e XX não está
preocupada com o caminho, a tarefa ou a demonstração, mas com o próprio objeto. Boutroux
deixou bem claro isto quando afirmou:
O que costumava ser mais interessante, era a demonstração, que foi os
processos e o sucesso dos cálculos; os resultados e as combinações obtidas podendo
evidentemente divergir em todos os sentidos e ser multiplicado ao infinito, não se
tinha lugar para atar um grande valor a sua enumeração; a unidade que perseguia a
ciência não podia ser uma unidade de método. Atualmente, ao contrário, isto é que
conta é o resultado que dá ao trabalho sua unidade; os artifícios da demonstração são apenas trabalhos de arte sem os quais, nós que não sabemos voar, estaríamos fora do
estado de superar as dificuldades e os acidentes do terreno que se encontram sobre
nosso caminho [...]. As verdades matemáticas são fatos objetivos, independente de
nós e que descobrimos e analisamos, de certa maneira, exteriormente [...].
Inclinamo-nos, por outro lado, a ver na demonstração o instrumento e não o fim da
ciência (BOUTROUX, 1920, p. 211-212, tradução nossa).
Boutroux ainda exemplifica esta mudança quando relata sobre a teoria das equações
algébricas de grau n: anxn
+ an-1xn-1
+...+ ax + a0 = 0, onde a resolução de equação de grau
superior à quatro não tinha solução, até que Abel concluiu ser impossível representar as raízes
105
da equação geral de quinto grau, em termos de radicais. Mas, foi graças ao trabalho de Galois
que a teoria das equações repercutiria em novas direções.
Para Galois “foi suficiente transmitir este impulso de modificar o enunciado do
problema posto, e „atacar de lado‟ a dificuldade que ele não podia abordar de frente”
(BOUTROUX, 1920, p. 186, tradução nossa); desta forma, Galois não buscou uma expressão
algébrica, contudo, procurou isolar certas famílias ou classes de equações tais que as raízes
das equações de uma mesma classe se exprimem por meio de fórmulas algébricas em função
umas das outras, assim todas as equações de uma classe seriam resolvidas ao mesmo tempo.
O objetivo do matemático da modernidade é: “compor, a partir de elementos simples,
a união cada vez mais complexa e construir a partir das peças, sua própria indústria, o edifício
da ciência, esta parecia ser a tarefa do matemático daí em diante” (BOUTROUX, 1920, p.
182, tradução nossa), onde os objetos da Matemática se tornaram o próprio conceito. As
maiores evidências, sobre este assunto, podem ser constadas no trabalho de Cauchy.
Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), considerado um grande matemático da década
de 1820-30, estudou na École Polytechnique e na Écola des Ponts et Chaussées, formou-se em
Engenharia Civil. Cauchy seguiu a tradição de Lagrange se interessando por provas rigorosas
e pela matemática pura em forma elegante (BOYER, 1968, p. 353). Cauchy desenvolveu
estudos sobre o conceito de função, contudo a chave mestre para o desenvolvimento deste
conceito foi ainda a elaboração do conceito de função contínua.
Cauchy foi conhecido como um dos matemáticos do século XIX que buscavam o
rigor. Ele escreveu na introdução do seu Cours d‟Analyse de L‟Ècole Royale Polytechnique:
“Quanto aos métodos eu procurei lhes dar todo o rigor que se exige na geometria, de maneira
a jamais recorrer a argumentos deduzidos da generalidade da álgebra” (CAUCHY, 1899, p. ij,
tradução nossa). Cauchy destaca-se como o matemático que forneceu uma definição
satisfatória para o conceito de função contínua, ele definiu função da seguinte forma:
Quando quantidades variáveis estão ligadas entre si, de tal modo que, sendo
fornecido o valor de uma delas, pode-se obter os valores de todas as outras, concebe-
se normalmente estas diversas quantidades expressas por meio de uma dentre elas, que recebe, então, o nome de variável independente; e as outras quantidades,
expressas por meio da variável independente, são as que se chamam de funções
desta variável (CAUCHY, 1899, p. 31, tradução nossa).
Após definir função, Cauchy expõe uma definição para o conceito de limite e
infinitésimos, somente depois apresenta uma definição coerente para continuidade de uma
função. O próprio Cauchy relata: “Falando da continuidade das funções, eu não pude deixar
106
de apresentar as propriedades principais das quantidades infinitamente pequenas,
propriedades que servem de base ao cálculo infinitesimal” (CAUCHY, 1899, p. ij, tradução
nossa). Cauchy apresenta a definição de continuidade como segue:
Seja f(x) uma função da variável x, e suponhamos que, para cada valor de x
intermediário entre dois limites dados, esta função admita constantemente um valor
único e finito. Se, partindo de um valor x compreendido entre estes limites, atribui-
se à variável x um acréscimo infinitamente pequeno α, a própria função receberá por
acréscimo a diferença f(x+α)-f(x), que dependerá, ao mesmo tempo, da nova
variável α e do valor de x. Isto posto, a função f(x) será, entre os dois limites
atribuídos à variável x, função contínua desta variável, se, para cada valor de x
intermediário entre limites, o valor numérico da diferença f(x+α)-f(x), decresce
indefinidamente com aquele de α. Em outros termos, a função f(x) permanecerá
contínua em relação a x entre os limites dados, se entre estes limites, um acréscimo infinitamente pequeno dado, a variável produzir sempre um acréscimo infinitamente
pequeno da própria função. Diz-se ainda que a função f(x) é, na vizinhança de um
valor particular atribuído à variável x, função contínua dessa variável, todas as vezes
que ela é contínua entre dois limites de x, mesmo muito próximos, que contém o
valor do qual se trata (CAUCHY, 1899, p. 43, tradução nossa).
Cauchy destaca que: “Segundo a definição de Euler [...] uma simples mudança de
notação será suficiente, para transformar uma função contínua em descontínua e vice versa
[...]. Assim, a característica da continuidade de funções proposta sobre o ponto de vista ao
qual, os geômetras abordaram, é uma característica vaga e indeterminada” (CAUCHY, 1844,
p. 116-117, tradução nossa). Neste texto, Cauchy parece mostrar ter total clareza de que o
modo como Euler definia função contínua era incoerente (PALARO, 2006, p. 122).
Um perfeito exemplo da distinção de ideias a respeito da continuidade de função entre
Euler e Cauchy é apresentado por Belhoste:
A função f definida em por para e
para é descontínua no sentido de Euler, porque ela é
definida por várias expressões analíticas diferentes sobre , mas ela é
contínua no sentido de Cauchy (1985, p. 62, tradução nossa).
Cauchy não se satisfaz com o conceito de função de Euler baseado em símbolos, ele
pensa em função contínua a base do próprio conceito de contínuo, para tanto, ele escreveu
uma definição para função contínua, totalmente por meio de conceitos.
O conceito de função pode se dividir historicamente em duas concepções. A primeira
está associada ao período que antecede o século XVII, este fundamento desponta do conceito
de operação aritmética-algébrica, do conceito de algoritmo e das concepções gerais de
107
máquina, o mesmo está intimamente relacionado ao conceito de funcionalismo, que era
vinculada ao conceito de função das modalidades concretas.
No instante em que o homem não consegue mais controlar de um modo puro e
intuitivo, seus próprios rudimentos e seus métodos de trabalho, então, é preciso que estas
necessidades sejam entendidas e analisadas como realidades objetivas e regularmente
estruturadas. E foram por meio dessas dificuldades para se construir uma relação mútua entre
o estrutural e o funcional, que o desenvolvimento histórico do conceito de função se
caracterizou (OTTE, 1993).
A segunda concepção caracteriza a função apenas como uma lei de dependência entre
uma grandeza variável e outra qualquer, utilizada para as alterações de estado e de natureza
das coisas reais no tempo. Considerava-se a função exclusivamente como uma
correspondência entre valores do domínio e da imagem, procurava-se um número ou uma
grandeza desconhecida.
Em meados do século XIX, despertou-se um novo olhar para o conceito de função
matemática, associado a uma concepção abstrata e ao princípio de continuidade que consistia
em ver uma função como um objeto único e unitário.
Começaram a surgir diferentes maneiras para se definir o conceito de função,
Lobatschewskj (1793-1856), em 1834, escreveu:
A definição geral exige que uma função de x seja um número para cada x
dado, e que varie progressivamente com x. O valor de uma função pode ser dado por
uma expressão analítica, ou por uma condição que forneça um meio de verificar
todos os números e escolher um entre eles; finalmente, pode existir a dependência,
mas permanecendo, todavia desconhecida (YOUCHKEVITCH apud OTTE, 1993,
p. 231).
Suas palavras evidenciam esta pluralidade pela qual uma correspondência funcional
poderia ser apresentada, e ainda representam a indispensabilidade para se estabelecer a
ligação entre o conceito de função e a sua representação simbólica ou descrição estrutural.
Existia a necessidade de olhar para função não só como uma correspondência de valores, e em
1870 Hermann Hankel (1839-1873), escreveu:
Esta definição puramente nominal, que a seguir chamarei de definição
Dirichlet, [...] não é suficiente para as necessidades da análise, pois funções desse
tipo não possuem propriedades gerais, e assim são suprimidas todas as relações de
valores funcionais para diferentes valores do argumento (apud OTTE, 1993, p. 232).
108
Esta concepção abstrata apresentada como princípio da continuidade, possibilitou a
interação entre a função como operação ou regra e a função como uma regra preexistente.
Logo a formação da nova concepção de função é agregada ao princípio da continuidade. Estes
conceitos se unem formando um círculo, uma cadeia fechada onde ambos se completam. Para
Otte (1993, p. 232), isto surge como “uma circularidade que revela que significados
conceituais são processos que se desdobram na atividade epistemológica [...] indicado no
conceito de complementaridade”.
4.4 A TEORIA DA INTEGRAÇÃO DE CAUCHY E RIEMANN À LEBESGUE
No século XVIII a integração era considerada como a operação inversa da
diferenciação, Cauchy, no entanto, introduz o seu estudo sobre a teoria da integração
desassociando-a do Cálculo Diferencial, para isto, ele utiliza a ideia de soma, como segue:
Suponhamos que a função sendo contínua com relação à variável
entre dois limites finitos e , designa-se por novos
valores de x interpolados entre esses limites e que vão sempre crescendo ou
decrescendo do primeiro limite até o segundo. Podemos nos servir desses valores
para dividir a diferença em elementos
(1)
que serão todos de mesmo sinal. Isto posto, concebemos que se multiplique cada
elemento pelo valor de correspondente à origem desse mesmo elemento, ou
seja, multiplicamos o elemento por , o elemento por
e , finalmente, o elemento por ; e seja
(2)
a soma dos produtos assim obtidos. A quantidade S dependerá evidentemente 1º do
número n de elementos nos quais se dividirá a diferença ; 2º dos próprios
valores desses elementos e, portanto, do modo da divisão adotado. Contudo, é
importante observar que, se os valores numéricos dos elementos tornaram-se muito
pequenos e o número n muito grande, o modo da divisão terá sobre o valor de S
apenas uma influência insensível. É, efetivamente, isso que podemos demonstrar
como segue:
Se admitíssemos todos os elementos da diferença reduzidos a um
único, que seria essa própria diferença, teríamos simplesmente
(3)
109
Quando, ao contrário, consideramos as expressões (1) como elementos da
diferença , o valor de S, determinado nesses casos pela equação (2), é igual à
soma dos elementos multiplicada por uma média entre os coeficientes
[...]. Aliás, estes coeficientes sendo valores particulares da expressão
que corresponde aos valores de compreendidos entre zero e a unidade, provamos,
por raciocínio semelhante aos que usamos na sétima lição, que a média da qual se
trata é um outro valor da mesma expressão, correspondente a um valor de
compreendido entre os mesmos limites. Poderemos, portanto, substituir a equação
(2) pela seguinte
(4)
Na qual será um número inferior à unidade.
[...]. Portanto, quando os elementos da diferença tornam-se infinitamente
pequenos, o modo da divisão não terá mais que uma influência insensível sobre o
valor de S; e se diminuir indevidamente os valores numéricos desses elementos,
aumentando seu número, o valor de S terminará sendo sensivelmente constante ou,
em outros termos, ele alcançará um certo limite que dependerá unicamente da forma
da função por e dos valores extremos e atribuídos a variável . Este é o
que chamamos uma integral definida. (CAUCHY apud PALARO, 2003, p. 124-
126).
Desta forma Cauchy define a integral em termos de limite de somas. Cauchy mostra
que a derivada não existe num ponto em que a função é descontínua, mas a integral pode
existir, pois admite que mesmo, as curvas sendo descontínuas elas podem fornecer uma área
bem definida (BOYER, 1968, p. 356).
No século XIX “a integral exigia uma definição mais cuidadosa que a de Cauchy, que
fora conduzida em grande parte pelo sentimento geométrico sobre a área sob uma curva”
(BOYER, 1968, p. 388). Neste tempo, Riemann traz a definição conhecida como integral de
Riemann. Por isso Boyer escreveu sobre este ele: “honrando homem que deu condições
necessárias e suficientes para que uma função limitada seja integral” (1968, p. 388).
Georg Friedrich Bernhard Riemann (1826-1866), filho de um pastor de aldeia,
educado em condições modestas, um homem tímido de modos e fisicamente frágil, estudou
durante alguns semestres em Berlim, onde foi influenciado por Dirichlet e Jacobi obtendo um
excelente preparo matemático. Também estudou em Göttingen, onde obteve seu doutorado
110
com a tese sobre teoria das funções de variável complexa e onde Riemann adquire um bom
preparo em física com Wilhelm Weber, do qual ele foi assistente. Em 1854, tornou-se
Privatdozent (um título universitário próprio das universidades de lingua alemã na Europa) na
Universidade de Göttingen. Quando Dirichlet faleceu em 1859, Riemann assumiu o seu lugar
em Berlim (BOYER, 1968, p. 383-384).
Sua pesquisa e carreira se dividem entre Matemática a Física. Era um matemático de
interesses múltiplos e mente fértil, ofereceu importantes contribuições na área da geometria,
teoria dos números e análise. Em análise é lembrado por seu papel no refinamento da
definição de integral, pela ênfase que deu às equações de Cauchy-Riemann, e pelas
superfícies de Riemann (BOYER, 1968, p. 384).
Na tentativa de liberalizar as condições de Dirichlet para a convergência da série de
Fourier, Riemann acaba por desenvolver a definição da integral de Riemann e demonstrou
que “uma função pode ser integrável em um intervalo sem ser representável por uma
série de Fourier” (BOYER, 1968, p. 389).
Riemann publicou no volume 13 dos Anais da Sociedade Real das Ciências sua tese
Ueber die Darstellbarkeit einer Fuction durch eine trigonometrische Reihe (Sobre a
possibilidade de representar uma função por uma série trigonométrica), a qual foi submetida à
Universidade de Göttingen (PALARO, 2003, p. 130).
Na referida tese Riemann apresenta sua definição de integral e escreve:
Então, o que devemos entender por uma integral ?
Para responder essa questão, tomemos entre e uma série de valores
, ordenados por ordem de grandeza, após e e designemos para
abreviar por por por ; sejam, além disso,
números positivos menores que a unidade. É claro que o valor da soma
Dependerá da escolha dos intervalos e das frações . Se ela tem a
propriedade, de qualquer maneira que os e os possam ser escolhidos, de se
aproximar indefinidamente de um limite fixo A, quando os tendem a zero, este
limite se chama o valor da integral definida
Se a soma não tende a limite algum, a notação não pode ter
nenhum significado. Nós procuramos, entretanto nos vários casos conservar uma
definição precisa a esse signo, e entre as generalizações da noção de integral há uma
que recebeu a aprovação dos matemáticos. Se a função torna-se infinita quando
seu argumento se aproxima de um valor particular , compreendido no intervalo
(a, b), então evidentemente a soma , qualquer que seja o grão de pequenez
atribuído aos , pode tomar um valor qualquer: ela não tem, portanto nenhum limite
e o signo não teria, após o que precede, nenhum significado; mas se a
expressão se aproxima, desde que e , tornam-se
111
infinitamente pequenos, de um limite fixo, que designamos por
(RIEMANN, 1953, p. 239, tradução nossa).
O modo como Riemann trabalhou a condição de integrabilidade era mais amplo que
de Cauchy, mas ainda apresentava um procedimento bem tradicional. E por um bom tempo
sua definição de integral era a mais usada em quase todos os cursos universitários de cálculo,
sobre isso Otte, comenta:
Uma generalização adicional parecia inconcebível enquanto fossem
consideradas as somas de Cauchy-Riemann como a única possível aproximação para
a definição de integral. Porém, a visão de Riemann permaneceu fixa ao
procedimento tradicional de determinar ou calcular o valor da integral. No caso das funções contínuas, a variação do argumento x controla a oscilação da função e isto
nos permite avaliar a integral na base das somas habituais de Cauchy-Riemann
(2008, p. 118, tradução nossa).
No século XX, surgeram ideias revolucionárias que abriram caminho para novas
generalizações, e o conceito de integral passou por reformulações, a ponto de Boyer citar que
“a teoria da integração foi criação do século vinte” (1968, p. 431). Um dos nomes que mais se
destacou foi o de Lesbegue.
Henri Léon Lebesgue (1875-1941) nasceu na cidade de Beauvais na França, era de
família de origem modesta, seu pai foi tipógrafo e bibliotecário e a mãe professora de escola
primária, ingressou na Ècole Normale Supérieure em 1894 (PALARO, 2003, p. 21-22).
Segundo Boyer, suas ideias se tornaram conhecidas por meio de seus dois tratados
clássicos: Leçons sur séries trigonométriques (1903) e Leçons sur l’intégration et la
recherche des fonctions primitives (1904). Neste último, Lebesgue apresenta seis
propriedades para uma integral de função limitada sobre um intervalo :
1. Quaisquer que sejam temos
2. Quaisquer que sejam temos
3.
4. Se temos e , temos também
5. Temos
6. Se tende crescentemente para , a integral de tende para a
integral de . (LESBEGUE apud PALARO, 2003, p. 143).
Lebesgue começa a estudar o trabalho de Borel sobre conjuntos e nota que a definição
de integral de Riemann contém o defeito de ser aplicável apenas em casos excepcionais, pois
112
assume poucos pontos de descontinuidade para funções. Outros matemáticos da época
também perceberam esses problemas e escreveram:
Essa definição de integral, publicada por Riemann, precisada por Darboux, é
de um profundo interesse. É uma bela construção lógica. Mas ela oferece à Análise
um instrumento de fraco poder. Os teoremas gerais sobre a integração de séries
convergentes eram demonstrados apenas sob condições bastante restritas, limitando
exageradamente seu campo de aplicação. Os problemas fundamentais, [...] cujo
progresso estava parado por insuficiência da ferramenta de integração, eram
numerosos. Suas soluções eram obtidas apenas nos casos particulares, para as dadas [funções] contínuas ou afetadas de descontinuidades muito simples. (DENJOY,
FELIX, MONTEL apud PALARO, 2003, p. 136).
Havia a necessidade de um conjunto de funções integráveis com propriedades
adequadas, o operador de integral deveria estar sujeito a algum princípio de continuidade, ou
seja, o limite de uma série de funções integráveis f(x) deveria ser uma função integrável F,
contudo, era preciso que a medida usada fosse infinitamente aditiva, considerando que F pode
ter infinitos pontos de descontinuidade, mesmo que cada uma das f(x) tivesse um número
finito desses pontos de descontinuidades (OTTE, 1993).
Olhando para a história do conceito de função percebe-se como a partir do final do
século XVIII a Matemática cresceu e, sobretudo, sem um caminho estritamente traçado.
Quando as expectativas de muitos eram para a morte da Matemática, da forma como Diderot,
em sua obra Da interpretação da natureza e outros escritos em 1754, escreveu:
[...] eu quase ousaria assegurar que antes de cem anos não se contará três
grandes geômetras na Europa. Esta ciência acabará sem mais ninguém, tendo
deixado grandes nomes como os de Bernoulli, Euler, Maupertuis, Clairaut, Fonteine
e D‟Alembert. Eles terão edificado as colunas de Hércules. Não se irá além disso.
Suas obras subsistirão nos séculos por vir como as pirâmides do Egito, cujas massas
carregadas de hieróglifos despertam em nós uma idéia assustadora da potência e dos
recursos dos homens que as elevaram (DIDEROT, 1989, p. 32).
Então ocorre o inverso e cem anos após têm-se uma metamorfose na Matemática,
como uma borboleta que sai do casulo. O filósofo Boutroux, no início do século XIX procura,
então, descrever este momento ímpar na Matemática. Ele classifica a pesquisa matemática
como sendo totalmente analítica, onde o matemático trabalha em meio a uma floresta fechada,
na qual, lentamente vão surgindo pistas que guiam os matemáticos, rumo às novas
descobertas.
113
CONSIDERAÇÕES
Boutroux dividiu a história da Matemática em três épocas. Na primeira tem-se a
ciência antiga, ou a época da matemática grega, que era contemplativa. Platão acreditava que
os objetos estavam prontos e apenas era necessário descobri-los, existia uma harmonia pré-
estabelecida. Aristóteles acreditava que o conhecimento vem da intuição (epagoge) e da
dedução (apogoge). O foco era o objeto, como ponto, reta, plano etc. Euclides ainda pensava
em combinar e trabalhava de forma sintética. Predomina neste período o interesse pelo objeto
e pela ontologia.
A segunda época veio por meio da introdução da álgebra na Idade Média. Esta nova
época inicia-se com Descartes e com a invenção do cálculo por Newton e Leibniz. Descartes
introduziu uma concepção nova no lugar da demonstração euclidiana, um método novo que
envolvia a descoberta de propriedades geométricas pela ação indireta; isto é, pela aplicação de
métodos algébricos. Esta nova concepção do caráter da Matemática introduzido pelo trabalho
de Descartes, Newton e Leibniz é a ideia de síntese, ou seja, tem-se uma combinação de
símbolos e a noção de conceito segue a mesma ideia da sinterização.
[...] nós não acreditamos que os princípios introduzidos por Leibniz e Newton
tenham transformado tanto quanto se tem dito, o curso do pensamento dos
matemáticos; por isso, não podemos ver no mecanismo de Descartes a principal fonte das dificuldades que comprometem a sua doutrina matemática. Para nós estas
dificuldades têm claramente outra causa: elas vêm do fato que Descartes está
propondo ao mesmo tempo, uma filosofia de intuição que permanecia firmemente
agregada a concepção sintética da ciência. A concepção sintética supõe a
possibilidade de pôr a priori, semelhante a elementos separados e concebidos
distintamente, um conjunto de entidades simples (BOUTROUX, 1920, p. 222 – 223,
tradução nossa).
Neste sentido, o que realmente mudou e causou esta única revolução na Matemática
ocorrida no final do século XIX, apostatada por Boutroux, foi a transformação do conceito do
conceito. A noção sintética do conceito foi substituída por uma visão que se diferenciava
claramente entre conceito, objeto e representação. Como Boutroux destaca:
O fato matemático é independente do vestuário lógico ou algébrico sobre o
qual nós procuramos representá-lo. De fato, a ideia que temos é mais rica e mais
plena que todas as definições que podemos dar, que todas as formas ou combinações
de signos ou de proposições pelos quais nos é possível exprimi-la (BOUTROUX,
1920, p. 203, tradução nossa).
114
Neste sentido, Boutroux apresenta a mesma perspectiva do reputado filósofo neo-
kantiano Ernst Cassirer (1874-1945), que também considerava o desenvolvimento do conceito
como o fio vermelho na história da Matemática e das ciências exatas. Cassirer (1910) escreve
em sua obra Substanzbegriff und funktionsbegriff:
Toda tentativa de transformar a Lógica deve concentrar-se, acima de tudo,
sobre um ponto: todas as críticas da Lógica formal são concentradas na crítica da doutrina geral da construção de conceitos (formação de conceito) [...]. A Lógica
Aristotélica, em seus princípios gerais, é uma verdadeira expressão e o espelho da
metafísica aristotélica. Somente no contexto com a crença em que esta última se
assenta é que se pode entender em seus motivos peculiares. A concepção da natureza
e da ordem de apresentação determina a concepção das formas fundamentais do
pensamento. [...] Realmente, o significado que é atribuído à teoria do conceito
dentro da estrutura da Lógica, aponta para esta conexão. Modernas tentativas de
reformar a Lógica têm procurado a este respeito inverter a ordem tradicional dos
problemas, colocando a teoria dos juízos antes da teoria do conceito (p. 3-5,
tradução nossa).
Logo, neste período a Matemática se transformou em atividades construtivas, contudo
estas atividades eram soltas. Enquanto a Matemática na Antiguidade sempre foi governada
pela intuição das relações objetivas e pela intuição dos próprios objetos, neste segundo
período a Matemática se transformou em um jogo de combinações e de construções livres.
Iniciava-se com os elementos simples e os sintetizava até se chegar a elementos cada vez mais
complexos.
Então acontece, não apenas uma revolução, mas também uma ruptura dando início à
terceira época, no começo do século XIX e:
O pensador moderno, de todas as formas, não busca explicar a si mesmo, não
pretende compreender completamente em que consiste e sob quais condições pode
agir a intuição. As suas definições, na maioria dos casos, ficam negativas. As
verdades matemáticas, diz o pensador, não são nem as consequências de fatos
experimentais, nem resultados de construções ou deduções lógicas: então elas
supõem um modo de apercepção que não se confunde, nem com a experiência dos sentidos, nem com o raciocínio (BOUTROUX, 1920, p. 224, tradução nossa).
Esta terceira época é caracterizada pela análise. O matemático moderno é como
(...) uma espécie de inspetor, que analisa a maneira de um químico, uma matéria
estranha e infinitamente complexa. É também, se quiser um explorador, com a tarefa
de se orientar em um continente desconhecido, e que busca descobrir as riquezas, as
regiões “interessantes” sem, aliás, saber em qual lado deve exatamente avançar e
dirigir sua pesquisa para atingir seu objetivo (BOUTROUX, 1920, p. 210 – 212,
tradução nossa).
115
Esta época é caracterizada então por um reconhecimento sincero das limitações da
lógica. Outra atividade intelectual, além da mera lógica, é necessária para que haja novos
progressos. Essa atividade é, sobretudo, o reconhecimento do poder da intuição e da
criatividade. O matemático moderno deve ser construtivo no domínio das ideias, não um mero
mecânico que apenas une elementos simples que já existem. O progresso da ciência exige o
desenvolvimento de novos pontos de vista para classificar e interpretar os problemas que se
apresentam.
Boutroux apresenta vários exemplos que caracterizam essa terceira época, a partir do
conceito de função e explica que:
[...] o conceito de função matemática não pode ser reduzido a uma
combinação quantitativa, nem aos princípios lógicos elementares. O que existe, pois
na realidade, no fundo deste conceito?(...). Conceber uma função de uma variável –
uma correspondência entre duas variáveis matemáticas – isto é, definitivamente, admitir que entre dois termos variando simultaneamente existe uma relação sempre
idêntica a ela própria, isto é postular que, sob a mudança aparente do antecedente e
do consequente, existe alguma coisa de constante. (BOUTROUX, 1920, p. 205,
tradução nossa).
Neste período tem-se um equilíbrio, a complementaridade entre objeto e sujeito, ou
seja, o conhecimento passa a representar uma relação entre sujeito e objeto e a harmonia que
havia entre o método e o objeto deixa de existir. Assim como a concepção sintética deixa de
existir dando lugar a concepção analítica.
A partir destes estudos, pode-se perguntar: a Educação Matemática tem que ser
platônica ou tem que ser lógica e formal? Boutroux responde:
Se como os gregos, julgamos que o interesse principal da especulação
matemática tem a beleza das propriedades numéricas ou geométricas consideradas,
devemos evidentemente requerer do professor que ele instrua seus alunos a uma
abordagem muito mais perfeita destas propriedades, incitaríamos, por exemplo, a
fazer-lhes conhecer as mais belas proposições da teoria dos números ou da teoria
dos poliedros regulares, sem se preocupar em saber se estas proposições têm ou não
qualquer utilidade prática e se elas fornecem, por outro lado, exposição suficiente da potência dos métodos empregados pelos analistas. Se pensarmos ao contrário, que as
teorias matemáticas valem principalmente para a forma lógica sob as quais se
apresentam, então, sobretudo teríamos que familiarizar os principiantes com os
métodos da demonstração colocando-os perante os sistemas lógicos perfeitamente
construídos e rigorosamente entrelaçados. Em certa medita é possível conciliar este
segundo ponto de vista com o anterior. Isto é o que, os gregos haviam buscado fazer
em seus tratados didáticos e os Elementos de Euclides nos fornecem a respeito disto
um admirável modelo de uma longa sequência de generalizações rigorosamente
examinadas. Graças ao ensino euclidiano, o aluno pode em um mesmo momento se
habituar às exigências do pensamento e adquirir conhecimento dos fatos
geométricos mais notórios. Mas este ensino não seria suficiente na nossa época. Com efeito, por um lado, os fatos sobre os quais leva, atualmente, não ocupam mais
na ciência o lugar privilegiado que tinham anteriormente e alguns dentre esses
116
aparecem ao contrário como muito especiais; por outro lado, a geometria euclidiana
nos fornece uma ideia incompleta dos métodos da demonstração e dos processos do
cálculo cujo uso é desenvolvido nas teorias modernas (BOUTROUX, 1920, p. 263-
264, tradução nossa).
Platão não generalizava, pois para ele não havia novidade. Diferentemente da moderna
teoria de Galois, onde de certa forma, não existia solução, mas foi encontrada ou construída.
Para Platão todo o conhecimento já existe, apenas era necessário lembrar e a ciência tinha a
obrigação de olhar para o mundo e desenhar, retratar, representar como o mundo era estático e
perfeito. Logo, em um cosmo assim tão harmônico não havia novidade tanto no mundo como
também no conhecimento.
Mas como o mundo está em desenvolvimento, em transformação, em catástrofe, em
idas e voltas, então obviamente o conhecimento tem que acompanhar tudo isso e por esse
motivo é absurdo restabelecer o ideal aristotélico da ciência nos tempos modernos. Neste
tempo de tanta dinâmica, isto é impossível.
Bolzano acreditava que a ciência poderia retornar à ciência aristotélica, acreditava que
Deus fez o mundo uma vez e que só é preciso revelar esse mundo. Mas, Boutroux diz que o
crescimento da ciência é anorgânico e abrupto à vida da ciência.
Mas como é o ensino na escola e na universidade? O problema da Educação
Matemática é um problema apenas psicológico e social?
Para Boutroux a pesquisa na Matemática Moderna é analítica, como nas teorias de
Peano e Hilbert, enquanto o ensino da Matemática ocorre de forma sintética e deveria ser
analítica. A ciência moderna descreve um problema, pois como o progresso da vida, da
ciência e da Matemática é tão imprevisível acaba gerando um abismo dentro da própria
Matemática entre o progresso ou a invenção, que é totalmente irregular, e a prova que deveria
ser regular.
A Matemática tem ainda esse ideal de mostrar que o conhecimento é irregular no
sentido objetivo em termos de provas rigorosas e de argumentos bem estabelecidos, então isso
realmente começa a caracterizar a Matemática Moderna, o contraste entre progresso e
fundamentação, entre intuição e lógica, por isso, Kant é importante pois percebeu que há duas
fontes, às vezes, duas fontes marcam um contraste. Este contraste também se encontra na
educação diariamente, Boutroux (1920, p. 271-272) relatou:
Assim como nos métodos das descobertas e por razões análogas, o professor
deve dar ao aluno uma exposição da realidade, que é extremamente complexa e
densa, na qual o pensador aplica-se a introduzir uma ordem lógica. Ora, de que
maneira alcançar este objeto, se não empregando juntamente com os diferentes
117
métodos os diversos pontos de vista? Assim o professor só poderá aproveitar em
suas disciplinas a dupla característica, que de fato para nós é o preço da ciência
matemática: a potência e a flexibilidade do método, a verdade e a riqueza da matéria
(tradução nossa).
Na verdade de um lado o que o professor ensina são as provas e os argumentos, mas o
que deveria ser ensinado ao aluno são formas de resolver problemas criativamente. Em vez de
só provar teoremas que já existem, deve-se mostrar como é a própria natureza da Matemática
Moderna, da ciência moderna e da Educação Matemática, pois o problema da educação não é
apenas um problema social e psicológico, mas é um problema dentro do próprio
conhecimento.
Antigamente não se tinha a diferença entre lógica e ontologia, como atualmente, mas
para Leibniz e Aristóteles a lógica era baseada na estrutura do próprio mundo, por isso
Leibniz afirmou que as verdades matemáticas são verdadeiras em todos os mundos possíveis
(SILVA, 2007, p. 78). O conceito era baseado na mesma estrutura do mundo ou das ideias
como para Platão. A geometria que fornecia o conhecimento mais seguro sobre o mundo era
totalmente à base da lógica, por isso, Os elementos de Euclides constituiu-se a primeira obra
matemática logicamente organizada.
Na modernidade essa relação entre ontológica ou lógica, é invertida, Cantor e Hilbert,
por exemplo, afirmavam que a consistência lógica é significante para a existência de objetos
matemáticos. Esta nova perspectiva surge com o ponto de vista do sujeito, isto é,
epistemológico. A preocupação então passou a ser: como o ser humano alcança o
conhecimento? Diferentemente da Antiguidade onde se perguntava: como o conhecimento é
baseado no ser dentro do mundo?
O aspecto ativo do conceito é o fato que ele é um instrumento importantíssimo para o
sujeito ganhar novos conhecimentos.
A revolução e ruptura mencionada por Boutroux ocorreu porque o conceito do
conceito mudou, e isto aconteceu graças à mudança do ponto vista ou da perspectiva sobre a
Matemática, saindo de um ponto vista ontológico para um ponto de vista epistemológico.
Na verdade na revolução na filosofia de Kant o importante é entender como o homem
chega ao conhecimento e não o conhecimento em si. Preocupando-se em saber como o
homem chega ou, para os educadores, o importante é como o aluno chega ao conhecimento.
Por isso, o estudo deste ponto de vista moderno é importantíssimo para a educação.
E o ponto chave para essa transformação de perspectiva e para entender a história da
Matemática é o conceito do conceito.
118
Ainda, o grande obstáculo epistemológico para os educandos é a noção do conceito,
mas muitas vezes esta noção não lhe é apresentada, pois ainda há professor com uma visão
platônica que se interessa em levar o aluno a conhecer as belas proposições como a “da teoria
dos números ou da teoria dos poliedros regulares, sem se preocupar em saber se estas
proposições têm ou não qualquer utilidade prática e se elas fornecem, por outro lado,
exposição suficiente da potência dos métodos empregados pelos analistas” (BOUTROUX,
1920, p. 263, tradução nossa).
Outros professores se prendem a visão sintética, conduzido o aluno a familiarizar-se
com [...] os métodos da demonstração colocando-os perante os sistemas lógicos perfeitamente
construídos e rigorosamente entrelaçados (BOUTROUX, 1920, p. 263, tradução nossa). Nas
duas concepções se perde o essencial para o educando chegar ao conhecimento matemático
que é entender o conceito.
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