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Universidade Estadual de Santa Cruz Reitora: Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro Vice-Reitor: Evandro Sena Freire
Departamento de Letras e Artes Diretor: Samuel Leandro Oliveira de Mattos Vice-Diretora: Lúcia Regina Fonseca Netto Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16 Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/dla/index.php Fone/Fax: 55 73 3680-5088
EID&A Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação ISSN 2237-6984 Editores Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio Ferreira Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/revistas/eidea
EID&A: Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação Departamento de Letras e Artes – Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16, Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil [email protected] Editores Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira Comitê de Leitura Ana Maria Di Renzo (UNEMAT) Ana Zandwais (UFRGS) Anna Flora Brunelli (UNESP) Carlos Piovezani (UFSCar) Christian Plantin (ICAR/CNRS) Cristian Tileaga (U.Loughborough) Christiani Margareth de Menezes e Silva (UESC) Eduardo Chagas Oliveira (UEFS) Edvânia Gomes da Silva (UESB) Eliana Alves Greco (UEM) Emília Mendes Lopes (UFMG) Eugenio Pagotti (UFS) Evandra Grigoletto (UFPE) Fabiana Cristina Komesu (UNESP) Fabiele Stockmans de Nardi (UFPE) Galia Yanoshevsky (U.Tel-Aviv) Gilberto Nazareno Teles Sobral (UNEB) Grenissa Bonvino Stafuzza (UFG) Guylaine Martel (U. Laval) Helena Nagamine Brandão (USP) Isabel Cristina Michelan de Azevedo (UFS) Ivo José Dittrich (UNIOESTE) John E. Richardson (U.Newcastle) José Niraldo de Farias (UFAL) Juan Eduardo Bonnin (UBA) Juan Marcelo Columba-Fernández (UPEA) Juciane dos Santos Cavalheiro (UEA) Leonildo Silveira Campos (UMESP) Lineide Salvador Mosca (USP) Luciana Salazar Salgado (UFSCar) Luciano Novaes Vidon (UFES) Manuel Alexandre Júnior (U.Lisboa) Marc Angenot (U.MacGill) Márcia Regina Curado Pereira Mariano (UFS) Maria Adélia Ferreira Mauro (FOCSP)
Maria Alejandra Vitale (UBA) Maria Amélia Chagas Gaiarsa (UCSAL) Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago (UFG) Maria Eliza Freitas do Nascimento (UERN) Maria Emília de Rodat de A. Barreto Barros (UFS) Maria Helena Cruz Pistori (PUCSP) Maria Rosa Petroni (UFMT) Maria Teresinha Py Elichirigoity (UFRGS) Marianne Doury (CNRS) Marie-Anne Paveau (U.Paris XIII) Marinalva Vieira Barbosa (UFTM) Marisa Grigoletto (USP) Maurício Beck (UFF) Nelson Barros da Costa (UFC) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP) Pedro Luis Navarro Barbosa (UEM) Ricardo Henrique Resende de Andrade (UFRB) Rui Alexandre Grácio (U.Nova de Lisboa) Ruth Amossy (U.Tel-Aviv) Ruth Wodak (U.Lancaster) Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP) Sírio Possenti (UNICAMP) Sophie Moirand (U.Paris III) Soraya Maria Romano Pacífico (USP) Thierry Guilbert (U. Picardie) Valdemir Miotello (UFSCar) Valdir Heitor Barzotto (USP) Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC) Viviane Cristina Vieira Sebba Ramalho (UnB) Viviane de Melo Resende (UnB) Wander Emediato de Souza (UFMG) William Augusto Menezes (UFOP) William M. Keith (U.Wisconsin) Zilda Gaspar Oliveira de Aquino (USP)
Revisores Denise Gonzaga dos Santos Brito • Roberto Santos de Carvalho Capa e logotipo Laurenci Barros Esteves
Diagramação Eduardo Lopes Piris
SUMÁRIO
ARTIGOS INÉDITOS
05 A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault Alex Pereira de Araújo
22 Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais Clarice Lage Gualberto
42 As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook Cláudio Henrique de Souza Pires & Daglécia dos Santos Pinto
56 Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara Dorgelès Houessou
74 A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local Flávio Passos Santana & Márcia Regina Curado Pereira Mariano
89 O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise Franciele Graebin
108 A ambiguidade dos letrados e o ensino da língua materna no Brasil João Wanderley Geraldi
122 Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo Marcio da Silva Oliveira
137 Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado Marie-Anne Paveau
162 O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso Melliandro Mendes Galinari & Marcos Vieira de Queiroz
180 Pietà, de Bellini, e Pietà with Courtney Love, de Lachapelle: uma análise discursiva e comparativa Renata Aiala de Mello
199 Argumentação e cena da enunciação em televangelhos Sarah Menoya Ferraz
218 Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria Soraya Maria Romano Pacífico
TRADUÇÕES
235 A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico Emmanuelle Danblon
248 Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica María de los Angeles Manassero
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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A “NOÇÃO DE FÓRMULA” DE KRIEG-PLANQUE SOB A ORDEM DO
DISCURSO DE FOUCAULT
Alex Pereira de Araújoi
Resumo: Este artigo empreende uma discussão acerca da noção de fórmula discursiva nos trabalhos de Krieg-Planque e de um possível diálogo com o trabalho desenvolvido por Foucault, sobretudo, a partir do modo como o filósofo percebe o discurso, uma vez que ambos pertencem a uma tradição epistemológica francesa. Dessa forma, vamos adentrar pelo percurso de lapidação da noção de fórmula, tomando, para isso, a entrevista que Krieg-Planque concedeu a Philippe Schepens do Laboratoire de Sémio-linguistique, didatique e informatique (LASELDI) e do livro A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico, trabalhos que representam para nós brasileiros uma espécie de introdução à discussão sobre a noção de fórmula proposta por Krieg-Planque no campo da Escola Francesa de Análise do Discurso (AD). Nessa discussão, vamos perceber que toda fórmula discursiva traz consigo uma densidade histórica apoiada em pré-construídos que estão voltados para as novas construções, tal qual propunha Foucault acerca das práticas e das materialidades discursivas em sua arqueologia do saber e em sua genealogia do poder.
Palavras-chave: Discurso. Fórmula Discursiva. Lugares Discursivos. Ordem do Discurso.
Abstract: This article wages a discussion about the notion of discursive formula in the work of Krieg-Planque and a possible dialogue with the work of Foucault, especially from the way the philosopher sees the discourse, since both belong to a epistemological French tradition. Thus, we enter the trajectory of the notion of formula based on the Krieg-Planque interview granted to Philippe Schepens the Laboratoire de Sémio-linguistique, didatique e informatique ( LASELDI ) and the book The notion of formula discourse analysis: theoretical and methodological framework, which represents for Brazilians a kind of introduction to the discussion of the notion of formula proposed by Krieg-Planque in the field of French School of discourse Analysis (DA). In this discussion, we will notice that all discursive formula brings a historical density that materialized in his movement based on pre - built that aim new constructions, just like the way Foucault proposed materiality of discourse in his archeology of knowledge and in his genealogy of power.
Keywords: Discourse. Discursive Formula. Places Discursives. Order of Discourse.
i Doutorando pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Brasil. E-mail: [email protected].
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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Introdução
Este artigo apresenta uma discussão acerca da noção de fórmula
discursiva tomada por Krieg-Planque, em suas análises, e de um possível
diálogo com as noções de discurso e de prática discursiva que foram
apresentadas por Foucault em suas pesquisas empreendidas ao longo de mais
de vinte anos. Nesta discussão, buscamos evidenciar que há relações entre a
noção de fórmula discursiva reelaborada por Krieg-Planque com o trabalho de
Foucault por meio do caráter social e político que permeiam as noções e os
conceitos operados por estes autores em suas análises.
Inicialmente, buscamos tratar do percurso epistemológico da noção de
discurso ainda no Estruturalismo1 em uma breve história para, em seguida,
tratar do trabalho de Foucault e da inscrição de Krieg-Planque no campo da
Escola Francesa de Análise do Discurso. Mas o objetivo principal desta
discussão é mostrar como o trabalho de Foucault influenciou e continua
influenciando os estudos realizados pela Análise do Discurso, ou seja, que a
noção de fórmula discursiva é tributária das questões do discurso levantadas
por Foucault.
Dessa forma, tomamos como ponto de partida a primeira metade do
século XX, quando, sob a égide do Estruturalismo Francês “tudo se torna
discurso” - assim explicava Jacques Derrida, em sua célebre conferência na
Universidade de Johns Hopkins (Baltimore) ao falar sobre A estrutura, o signo
e o jogo no discurso das ciências humanas, ao público americano. Sem dúvida,
“este momento foi aquele em que a linguagem invadiu a problemática
universal” (DERRIDA, 1995, p. 232).
Nesta perspectiva, podemos dizer que, ao colocar o discurso como
centro das suas discussões, o estruturalismo conseguiu penetrar nas
Humanidades, ou seja, na antropologia, na crítica literária, na psicanálise, no
marxismo, na história, na teoria estética e nos estudos da cultura popular,
transformando-se em um poderoso e globalizante referencial teórico para a
análise semiótica e linguística da sociedade, da economia e da cultura, vistas
agora como sistemas de significação (Cf. PETERS, 2000).
Mas é apenas na segunda metade do século XX, com Michel Foucault,
filósofo francês, que se conhece qual a ordem do discurso. Dessa forma,
1 Não fazemos diferenciação entre Estruturalismo e Pós-Estruturalismo nessa discussão por conta do espaço.
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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Foucault se notabilizou e fez seu discurso2 se notabilizar ao desenvolver uma
arqueologia do saber num momento em que se buscava ora escapar da força
da égide do estruturalismo francês, ora revisar métodos e teorias usados nas
análises históricas, de até então. Foucault vai tomar o discurso como objeto
em todas as suas análises.
Nesse seu projeto, apresentou-nos de forma contundente uma descrição
empírica que se alternava com uma análise teórica. E o conceito (ou
conceitos) de discurso produzido(s) por ele estava(m) a serviço de suas
pesquisas de descrição empírica e das análises teóricas quando buscava
desarmar a ordem dos discursos. Nessa perspectiva, todo discurso tem uma
ordem que pode ser (des)armada (FOUCAULT, 1996); e, por que não
pensarmos também nas fórmulas discursivas, isto é, nas questões que
emergem do trabalho de Krieg-Planque (2003; 2010; 2011), como algo dentro
dessa ordem que se pretende desarmar? Mas uma questão precede a esta
enunciada, por que aparentemente parece que o discurso já está sob o nosso
domínio e esquecemos de que sempre é preciso voltar à questão inicial: o que
é mesmo o discurso?
A pergunta não é tão simples quanto parece. Se pudéssemos fazê-la a
Michel Foucault, certamente ele nos apresentaria uma série de movimento
acerca daquilo que ele fez com o discurso e daquilo que ele chamou de
discurso. Mas podemos pensar no discurso a princípio como uma produção
“ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
É a partir dessa noção de discurso que Foucault apresenta em sua aula
inaugural no Collège de France qual a ordem do discurso3 e, ao mesmo tempo,
2 Em Arqueologia do saber, Foucault afirmou que pouco a pouco teria multiplicado os sentidos de discurso: ora no domínio geral de todos os enunciados, ora grupo individualizável de enunciados, ora como prática regulamentada dando conta de certo número de enunciados (FOUCAULT, 1987, p. 90), é dessa forma que podemos dizer seu(s) discurso(s), já que em seus gestos desarmou os jogos de discurso.
3 A ordem do discurso é o título da célebre aula inaugural proferida por Michel Foucault no dia 2 de dezembro de 1970 quando tomava posse de uma cátedra no Collège de France, uma aula que se tornaria livro no ano seguinte, pela editora Gallimard na França. No Brasil, o livro foi publicado duas décadas mais tarde, em 1996, pelas Edições Loyola, tendo Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. Nessa sua aula, o filósofo pôde mostrar ao público presente que, em uma sociedade como a nossa, o discurso tem em sua ordem três tipos de procedimentos de controle: externos (a interdição, a difusão e a oposição entre verdadeiro e falso); interno (o comentário, o autor e a organização das
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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apresenta seu projeto de pesquisa naquela célebre instituição que ele acabara
de tomar posse para os próximos anos numa cátedra dedicada à História dos
Sistemas de Pensamento. Em todos seus trabalhos, o discurso aparece como
palavra de ordem. O seu interesse pelo discurso, visto como algo que não
pode ser analisado fora do tempo que se desenvolveu, norteou todos os seus
trabalhos, mostrando, com isso, seu comprometimento com uma
epistemologia ligada a uma certa tradição francesa que pensa “que a filosofia
possui uma dimensão histórica”. E esses gestos nada mais são do que as
análises que promoveu antes e durante sua permanência no célebre Collège de
France.
Ele tinha consciência de que praticava uma análise do discurso diferente
daquela que, em A verdade e as formas jurídicas, ele vai dizer ser fruto de “uma
tradição recente, mas já aceita nas universidades europeias, uma tendência a
tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por
regras sintáticas de construção” (FOUCAULT, 2005, p. 9). Talvez seja essa
tradição de que fala Dominique Maingueneau, em Novas tendências de análise
do discurso, logo na introdução (cf. MAINGUENEAU, 1995), quando busca
fazer uma breve história do percurso dessa tradição. É nessa mesma obra que
Maingueneau vai nos apresentar as contribuições de Jean-Jacques Courtine
através da Revista Langage, edição de número 62, e da discussão sobre “qual o
objeto para a análise do discurso” feita com Jean-Marie Marandin num
colóquio realizado na Paris X sobre as materialidades discursivas no ano de
1980 (cf. COURTINE ; MARANDIN, 1981), o que, de certa forma, já apontava
para uma renovação de interesse sobre a materialidade do discurso.
Vale a pena lembrar que Jean-Jacques Courtine é quem vai afirmar que a
memória discursiva é que torna possível a constituição de qualquer formação
discursiva e ela é que permite, na rede de formulações que constitui o
intradiscurso de uma Formação Discursiva (FD), o aparecimento, a rejeição ou
a transformação de enunciados pertencentes a formações discursivas
historicamente contíguas. Lembremos também aqui que Courtine pertenceu
ao grupo de pesquisa de Michel Pêcheux no CNRS. De acordo com Gregolin
(2008), “J. J. Courtine tem papel central nesse desenvolvimento da noção de
FD, na medida em que ele estimula a interlocução entre a obra de Pêcheux e
as propostas de Foucault”, ou seja, é Courtine que vai colocar para Escola
disciplinas) e regularidades de acesso (o ritual, as sociedades de discurso, as doutrinas e a apropriação social).
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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Francesa de Análise do Discurso o conceito foucaultiano de formação
discursiva que durante duas décadas figurou como ferramenta indispensável
ao trabalho do analista do discurso, sobretudo, entre nós brasileiros (cf.
GREGOLIN, 2008; MILANEZ, 2012). Mas como surge o trabalho da
pesquisadora Alice Kreig-Planque, filiada ao Centre d’Étude des Discours,
Images, textes, Écrire, Comunication (CÉDITEC) na França? Como ela se insere
nessa tradição recente de que fala Michel Foucault e Dominique
Maingueneau?
1 As palavras e as fórmulas e a questão das imagens no discurso
Inscrita numa perspectiva pluridisciplinar, fortemente ancorada nas
Ciências da linguagem, Alice Krieg-Planque tem desenvolvido suas análises,
interessando-se, sobretudo, por discursos políticos, midiáticos e institucionais,
mobilizando principalmente as noções de fórmula e lugares discursivos. Ainda
em sua tese de doutoramento, defendida em 2000, ela começa a aprimorar a
noção de fórmula, advinda do trabalho do filósofo Jean-Pierre Faye sobre a
fórmula “Estado total” e sobre as pesquisas de Pierre Fiala e Marianne Ebel,
em particular sobre as fórmulas “Überfremdung” (influência e
superpopulação estrangeira) e “xenofobia”, que se inscrevem explicitamente
na perspectiva de Faye, como nos lembra a própria Krieg-Planque em
entrevista concedida a Philippe Schepens do Laboratoire de Sémio-linguistique,
didatique e informatique (LASELDI), ligado à Maison des Science de l’Homme
Claude-Nicolas Ledoux (cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 13).
No percurso que trilhamos aqui não podemos nos esquecer de que a
noção de fórmula, que Krieg-Planque vem desenvolvendo, é essencialmente
uma noção discursiva, como ela própria enfatiza (cf. KRIEG-PLANQUE, 2010).
Ao longo dessa discussão vamos perceber que seu trabalho não está
dissociado da velha tradição francesa epistemológica, ou seja, as
considerações apresentadas se inscrevem numa certa tradição acadêmica de
fazer análise do discurso de que se referiu Foucault em A verdade e as formas
jurídicas.
Em relação ao trabalho de Foucault, podemos dizer que todas essas
pesquisas desenvolvidas recentemente têm, de certa forma, ligações com os
deslocamentos e usos que o autor de As palavras e as coisas provocou no
campo das Humanidades ao tratar o discurso como algo que não pode ser
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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analisado “fora do tempo em que se desenvolveu” (FOUCAULT, 1987, p. 226).
É justamente em As palavras e as coisas que Foucault vai nos apresentar a
questão da representação enquanto traço de uma época chamada por ele de
clássica (séculos XVII e XVIII) em que existia a coerência entre teoria da
representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor, e,
ao mesmo tempo, apresenta-nos a mudança inteiramente de configuração
que ocorre a partir do século XIX, quando “a teoria da representação
desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; a
linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das
coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres,
desvanece” (FOUCAULT, 1981, p. XX).
É nessa nova ordem que o homem aparece “pela primeira vez como esta
figura estranha do saber e que abriu um espaço próprio às ciências humanas”
(idem, ibidem). É a partir daí que podemos pensar nos processos de
subjetivação que tornam os seres humanos em sujeito, sobretudo, pela via do
discurso quando “o sujeito humano é colocado em relações de produção e de
significação”, e, “é igualmente colocado em relação de poder muito
complexas” (FOUCAULT, 1995a). E isso tem implicações com os processos de
identificação, uma vez que “a história da ordem das coisas seria a história do
Mesmo – daquilo que, para nossa cultura, é ao mesmo tempo disperso e
aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e recolhido em
identidades” (FOUCAULT, 1981, p. XXII). Mas o que isto tem a ver com a
questão da fórmula discursiva proposta por Krieg-Planque? Mais adiante
veremos como isso é mobilizado por Krieg-Planque, com mais detalhes.
2 O nascimento da fórmula
Inicialmente, é preciso compreender a noção de fórmula que Krieg-
Planque desenvolve a partir de seu livro Purification ethnique: une formule et
son histoire para refazermos seu percurso e percebermos como a autora foi
aperfeiçoando essa ferramenta tão cara ao seu trabalho analítico, resultante
das reflexões advindas de sua tese de doutoramento. Nessa obra, a autora
explica que:
Em um momento do debate público, uma sequência verbal, formalmente demarcável e relativamente estável do ponto de vista da descrição linguística que pode fazer dela, põe-se a funcionar nos discursos produzidos no espaço público como uma sequência tão partilhada quanto problemática. Empregada
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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em usos públicos que a investem de questões sociopolíticas por vezes contraditórias, essa sequência conhece, então, um regime discursivo que faz dela uma fórmula: um objeto descritível nas categorias da língua e cujo destino – ao mesmo tempo invasivo e continuamente questionado – no interior dos discursos é determinado pelas práticas linguageiras e pelo estado das relações de opinião e de poder em um momento dado no seio do espaço público (KRIEG-PLANQUE, 2003, p. 14).
Poderíamos dizer que essa noção que a pesquisadora apresenta tem
ligações com a discussão feita por Foucault acerca das práticas discursivas e
da ideia de instituição4 pensada por ele à medida que se admite que a fórmula
possa ser vista enquanto referente social (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2010, p 53), e,
neste caso, só poderá sê-lo na medida em que se instaura um processo de
identificação, ligado a subjetivação de que fala Foucault, além da ordem do
discurso que está sujeita às instituições. E tais processos não se dão, a não ser
pela via das relações de poder, dos dispositivos usados para produzir sujeitos.
Depois, o fato de a palavra estar ligada a uma historicidade, já que se admite
que “o acesso de uma palavra à condição de fórmula é parte integrante da
história dos usos dessa palavra” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 19), implica em
admitir que isso se dá por meio de práticas discursivas que ganham corpo nas
instituições e são difundidas aí mesmo (cf. FOUCAULT, 1997).
Portanto, a noção de fórmula concebida enquanto uma noção discursiva
é, de certa forma, tributária da noção de discurso apresentada por Foucault
em sua aula inaugura no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, quando
enunciou que, em toda sociedade, a produção discursiva é “ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”
(FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
Daí, podemos pensar que a circulação de uma fórmula não se dá fora
desse controle, que faz parte da ordem de qualquer discurso, uma vez que se
admite que:
Ela [a fórmula] põe em jogo a existência de pessoas: ela põe em jogo modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisões do regime político do qual os indivíduos dependem, seus direitos, seus deveres, as relações de igualdade ou desigualdade entre cidadãos, a solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas fazem da nação de que se sentem membros (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100).
4 Para Foucault (1995b, p. 247), “todo social não discursivo é uma instituição”.
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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Contrariamente a Krieg-Planque, diríamos que a fórmula é posta no jogo
do discurso, tornando-se parte dele na medida em que faz parte do discurso,
já que é tida enquanto noção discursiva, logo está sob a ordem do discurso, o
qual, como vimos, em Foucault, é produção de sociedades de discurso, e isso
tem a ver com aquilo que dissemos inicialmente com Derrida (1995), quando
afirmou que “tudo se torna discurso” nas discussões promovidas pelas
Humanidades, ou seja, estamos lidando com sujeitos, não simplesmente com
falantes, no sentido restrito da Linguística ou mesmo da Sociolinguística, ou
ainda do dialogismo bakhtiniano de que a autora conhece por ter frequentado
os cursos de Jacqueline Authier-Revuz.
Nesse gesto de infidelidade ou de crítica, diríamos também que uma
fórmula é em si mesma um jogo dentro de outro jogo. Mas a noção de fórmula
apresentada por Krieg-Planque é coerentemente compatível com a noção de
referente social de Fiala e Ebel. É justamente aí que podemos ver uma
aproximação com aquilo que Foucault chamou de discurso. É justamente
nesta perspectiva que vamos nos voltar para entrevista que Krieg-Planque
concedeu a Philippe Schepens para compreendermos melhor o debate sobre a
questão da noção de fórmula e um possível diálogo com os estudos realizados
por Michel Foucault, ou seja, vamos buscar discutir sobre as análises
desenvolvidas por Krieg-Planque, seus métodos e posições teóricas através do
seu percurso para tornar precisa algumas etapas desse trabalho inscrito na
tradição francesa da análise do discurso ou das análises de discursos conforme
advoga Maingueneau (cf. MAINGUENEAU, 1995), mas sob as lentes de
Foucault.
Ao propor uma caracterização da noção de fórmula, Krieg-Planque diz
que seu objetivo era precisá-la para analisar um conjunto de discurso que se
refere principalmente às guerras iugoslavas dos anos de 1990. Para isso, a
autora se valeu do trabalho de Jean-Pierre Faye para desenvolver uma
ferramenta própria para sua análise. Dessa forma, Krieg-Planque reconhece
que seu trabalho deve muito à obra heurística de Faye, mas que em dado
momento precisou ser infiel ao trabalho do filósofo, que, para ela, “tem em
mãos a pena do poeta que ele também é em alguns momentos”. O
desenvolvimento dessa ferramenta acabou tornando possível compreender
outras formulações possíveis como “direito de ingerências”, “mundialização”,
“globalização”, “choque de civilização”, “exclusão”, “fratura social”,
“desenvolvimento sustentável”, “comércio justo”, “governo responsável”,
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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“patriotismo econômico”, como podemos ver na explicação dada na
entrevista que concedeu a Schepens do LASELDI (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p.
13). Portanto, Krieg-Planque parte do termo fórmula pensado por Faye para
caracterizar a noção que usará em suas análises, o que significa dizer que tal
noção é cara às pesquisas por ela desenvolvidas, mas admite, contudo, que
seu gesto acaba traindo a obra de Faye, pois precisava avançar em algumas
questões que permaneciam paradas para dar conta de suas análises. Ela fala
sobre a influência de Faye em sua pesquisa no capítulo O trabalho heurístico de
Jean-Pierre Faye: a fórmula “Estada total” no livro A noção de fórmula em
análise do discurso: quadro teórico e metodológico (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2010).
Ao falar sobre seu percurso acerca da redefinição da noção de fórmula
discursiva, Krieg-Planque também confessou que não se valeu apenas da
crítica feita por Pierre Fiala e Marianne Ebel ao trabalho de Faye, mas também
das análises realizadas pelos dois pesquisadores quando eles colocam em
funcionamento a noção de fórmula centrada particularmente na análise feita
em torno de textos legislativos, artigos publicados em jornais suíços
francófonos, cartas de leitores, textos sindicais, entrevistas de autores
referentes a três campanhas de votação na Suíça. Foram eles, segundo Krieg-
Planque, que “introduziram na análise das fórmulas categorias úteis para a
análise de discurso” (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2011), ao buscar analisar as
unidades lexicais “Überfremdung” e “xenofobia”. O trabalho desses autores é
tão importante para Krieg-Planque que ela também dedicou um capítulo no
livro A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico,
a exemplo que fez com Faye, intitulado A análise de Marianne Ebel e Pierre
Fiala.
É nesse capítulo que a autora vai tratar da análise realizada por Fiala e
Ebel, no momento em que eles vão afirmar que uma fórmula é um referente
social na medida em que “Überfremdung” e “xenofobia” são referentes
sociais, pois neles os pesquisadores encontraram manifestações na paráfrase
e na circulação. Esta última está diretamente ligada à noção de referente
social apresentada por Fiala e Ebel e usada nas análises desenvolvidas por
Krieg-Planque. É justamente através dessa noção de referente social que Krieg-
Planque vai estabelecer uma relação com espaços públicos (Cf. KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 53) aprimorando a noção de fórmula, ou seja, à medida que
uma fórmula é tida como referente social, já que é partilhada por um grupo
social ou grupos ao indicar algo, ela torna-se, ao mesmo tempo, um signo que
ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.
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entrou num espaço público por meia da difusão que se dá nos processos de
publicidade através da mídia, principalmente da impressa, rádio, televisão etc.
Para desenvolver essa ideia de espaço público, Krieg-Planque também
lançou mão dos trabalhos de Habermas e Ferry. Mas é preciso estar atento
para o fato de que a mídia não é responsável pela criação e invenção das
fórmulas discursivas, uma vez que, para Krieg-Planque, o papel da mídia é de
atuar como “operadora da circulação”, o que não quer dizer que a mídia não
seja capaz de realizar seleções e filtragem, transformando, com isso, os
discursos, e não apenas os transmitindo passivamente sem sua intervenção
(KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 212). Aqui vale a pena ressaltar que uma fórmula
não pode ser caracterizada apenas por sua unanimidade; muito pelo contrário,
é pelo que ela representa (reapresenta), num dado momento, uma passagem
obrigatória.
Quanto à manifestação de paráfrase de que falávamos anteriormente
presente no trabalho de Fiala e Ebel (1983), ela se manifesta principalmente
durante as campanhas do referendo que pediam aos cidadãos suíços que
escolhessem entre o sim e o não pela proposta da limitação da imigração,
quando aí se observou que duas fórmulas se condensaram numa massa
discursiva, ou seja, “Überfremdung” e “xenofobia”,
[...] estes dois termos se condensaram numa massa considerável de discursos na qual eles serviam de equivalentes semânticos. Enunciar um ou outro era pôr em circulação significações múltiplas, contraditórias, referindo-se à existência de séries de enunciados parafrásticos, bem comprovados, dos quais os dois termos se encontram definidos (FIALA; EBEL, 1983, p. 173 [tradução minha]).5
Como exemplo disso, tomemos dois enunciados parafrásticos
apresentados por Fiala e Ebel (1983): “Os estrangeiros são uma carga pesada
para nossas instituições sociais” e “Eles nos tomam nossas moradias”. Dessa
forma, podemos pensar a partir do exemplo dado por Fiala e Ebel na questão
da circulação das fórmulas, ou seja, se elas circulam é porque as pessoas as
5 Tradução a partir do original : ces deux termes ont, durant cette période, condensé en eux une masse considérable de discours, auxquels ils servaient d’équivalents sémantiques. Enoncer l’un ou l’autre, c’était mettre en circulation des signi-fications multiples, contradictoires, renvoyant à l’existence de séries d’énoncés paraphrastiques bien attestés, par lesquels les deux termes se trouvaient définis (FIALA ; EBEL, 1983, p. 173). Optamos aqui pela entrevista no original em língua francesa e pelo texto de Fiala e Ebel, porque na tradução brasileira a página citada não confere com o original e ainda é apresentada como comentário do entrevistador com as iniciais de seu nome e sobrenome (PS), quando, na verdade, trata da continuação da discussão que Krieg-Planque faz acerca da questão feita por Philippe Schepens (cf. SCHEPENS, 2011, p. 15-16; KRIEG-PLANQUE, 2006, p. 23-24).
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usam ao falar delas, logo os lugares de surgimento se diversificam, e este fato
é que tornam as fórmulas um objeto partilhado do debate (cf. KREIG-
PLANQUE, 2006 p. 24).
No trabalho de Fiala e Ebel, o fenômeno da produtividade lexicológica
que resulta de neologismos também chamou a atenção de Krieg-Planque
juntamente com aquele da paráfrase que acabamos de ver nos exemplos
anteriores. Ela lançou mão desse fenômeno para tratar da fórmula
“purificação étnica” em sua análise, mostrando como os neologismos atestam
a proliferação das fórmulas, sejam eles criações voluntárias ou não, já que
também podem ocorrer neologismos por lapso. Para entendermos como este
fenômeno ocorre, tomemos a palavra “xenófobo” [xénophobo]. Ela vai dar
lugar a uma série de neologismo por derivação como “xénophomatique”
[“xenofomático”] ou “anti-xénophobe” [“antixenófobo”] que mostram
justamente uma produtividade lexicológica. Neste movimento, a circulação
acaba entrando em cena para desbancar a noção de produção, uma vez que:
P. Fiala e M. Ebel sustentam uma concepção contextual do sentido, e insistem nisso: se há de fato um significante comum em circulação (a coroa da “moeda”, para retomar a metáfora de Courtine), o significado (no caso, a cara) está em perpétua redefinição, em razão mesmo de sua circulação. Nem todos inscrevem a mesma coisa no lado cara da fórmula, e é exatamente por essa razão que esta é questão central nos debates (KRIEG-PLANQUE, 2006, p. 56).
Isto mostra como “fórmulas circulam e se impõem a todos com um
sentido, ou, antes, com sentidos que são determinados por outros, eles
invalidam a ideia de que discursos são fechados sobre si mesmos” (KRIEG-
PLANQUE, 2011, p. 17). Como podemos ver, o trabalho de Fiala e Ebel tem uma
repercussão muito grande nos gestos de aprimoramento da noção de fórmula
discursiva realizados por Krieg-Planque. Aqui nos propomos apenas a resumir
esse percurso para dar um pouco da dimensão de como as análises
desenvolvidas por eles foram importantes no percurso de Krieg-Planque. Por
conta do espaço, falamos de uns elementos que nos pareceram importantes,
outros ficaram para trás, como é o caso da dupla “de re”/ “de dicto” que
desapareceram em favor de categorias inspiradas naquelas que Jaqueline
Authier-Revuz propõe para pôr à luz as representações da heterogeneidade
enunciativa (cf. KRIEG-PLANQUE, 2006, 2011).
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3 Mobilização da fórmula discursiva na análise
Tomada como noção discursiva, a noção de fórmula apresentada por
Krieg-Planque (2006, 2010), como vimos até aqui, é vista como referente social,
portanto, trata-se uma noção que toma o discurso como objeto de pesquisa,
objeto tecido com “fios ideológicos”, cabendo ao analista do discurso
encontrar as pontas destes fios, assim “é exatamente o real que se encontra
no fim do percurso, já que os discursos são uma matéria constitutiva do real”
(KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 26). Dessa forma, ressalta a autora que temos “a
possibilidade de um processo de conhecimento que se opera pelo
estabelecimento e a ordenação de fatos do discurso. Trata-se de uma das
formas que a análise do discurso pode assumir” (idem, ibidem). E neste caso,
não podemos esquecer de que uma fórmula não é essencialmente linguística,
mas apenas possui uma forma linguística habitada pela polissemia, em termos
bakhtinianos.
Mas como operacionalizar isto através da noção de fórmula? Como
mobilizar tal noção? Antes de responder estas questões, é preciso pensar na
fórmula como um conjunto de variantes, um bom exemplo é o caso da
fórmula “purificação étnica”. Ela reúne um conjunto de variantes como
“limpeza étnica”, “depuração étnica”, “etnicamente puro”, “etnicamente
puras”, “pureza étnica”, “impurezas étnicas”, “depuraram etnicamente”,
“teriam etnicamente purificado” etc. Aí temos, de acordo com Krieg-Planque
(2006, 2010, 2011), variantes que associam um elemento do campo
derivacional dos radicais “pur-” e “limp-” ou “depur-” e um derivado de
“etnic-”. Com estes exemplos, surge mais uma questão: como escolher e
identificar uma fórmula? Primeiramente, podemos pensar com Krieg-Planque
que “o acesso de uma palavra à condição de fórmula é parte integrante da
história dos usos dessa palavra” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 19). E neste caso é
preciso pensar na questão da noção de cristalização que a autora desenvolver
como condição para que se identifique uma unidade ou sequência verbal
como fórmula. Nesta perspectiva, a noção de cristalização será crucial porque
vai figurar como primeiro passo para que se tome uma palavra ou expressão
na qualidade de uma fórmula. Mas antes é preciso estar com os ouvidos
plugados nas fontes de informações e os olhos pregados nos jornais para que
se tenha um corpus saturado de enunciados atestado (KRIEG-PLANQUE, 2010,
p. 89). Para daí então realizar a coleta de candidata a fórmula. A fase seguinte
seria aquela advinda da questão da demarcação e contagem das ocorrências
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que para a autora é fascinante porque essa questão retoma a questão do
papel da interpretação na construção do corpus. “Ela mostra que, desde o
início do trabalho, precisam entrar em ação a interpretação e a inteligência
humana para tratar dos dados” (cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 27). Nesta
perspectiva, podemos pensar que:
[...] um cientista – acho que vale para todas as ciências humanas e sociais, e possivelmente para as outras ciências – tem uma espécie de sensibilidade anormalmente atenta a seu objeto. Ele percebe ruídos escondidos, vibrações, finas estrias e pequenos instrumentos que outros não veem.. (...) todos que trabalham com a língua ou com o discurso são levados a fazer o esforço de considerar a si próprios como interpretantes razoáveis, a fazer de conta que não
veem o fato o fato veem (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 30).
Nessa mobilização da fórmula, ou seja, do seu emprego, vista como
trabalho de pesquisa de quem faz ciência, surge outra noção, a de
“interpretante razoável”, para lidar com a questão “da identificação de um
objeto discursivo e precisamente a da identificação da presença de uma
fórmula através das ocorrências de unidades lexicais” (KRIEG-PLANQUE, 2011,
p. 29). Aqui vemos uma rigorosidade teórica no trabalho desenvolvido pela
autora, a exemplo daquele que Foucault expõe em Arqueologia do Saber. E em
todos esses movimentos que a autora faz, lembra-nos dos gestos da
arqueologia foucaultiana e até mesmo da genealogia desenvolvidas pelo
filósofo arquivista. Ou seria uma prática da intelectualidade francesa? De certa
forma, sim, sobretudo no que diz respeito a uma busca constante pelo
aprimoramento das noções a partir de debates e de uma prática que vai
desenhando à medida que os procedimentos vão surgindo a cada nova
análise, a cada novo corpus. Como nesses gestos, diria Foucault:
[...] a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia , da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar as perturbações da continuidade, enquanto que a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos (FOUCAULT, 1987, p. 6)
Nessa perspectiva, o debate histórico que se estabelece, na discussão,
traz consigo esse movimento em gestos para repensarmos a própria história a
partir do discurso em suas diversas materialidade como as midiáticas que
marcam a nossa época, ou seja, “a vida política e os funcionamentos
midiáticos” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 22). Daí, podemos falar nesse trabalho
de mobilização da noção de fórmula discursiva dos lugares discursivos
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tomados na análise enquanto “materialidades nas quais os comentadores se
apoiam para atribuir posições, a si mesmo e aos outros, os lugares pelos quais
os locutores circulam, imprimindo sua marca de passagem”. Dessa forma,
caberá “ao pesquisador assinalar esse colorido no terreno do corpus, e, antes
de mais nada, avaliar se ele lhe resta interessante” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p.
23), ou seja, “trata-se de fazer a escolha de um modo de selecionar corpora
pelas materialidades que os comentadores tomam emprestado para pôr em
ordem discursivamente sua visão de mundo” (idem, ibidem). Com isso,
podemos dizer que as questões da mobilização das fórmulas são variadas, já
que são variados os modos como os comentadores se posicionam no discurso.
Parece-nos que isso tem a ver com aquilo que Foucault discute a respeito da
formação dos objetos quando afirma que “alguns [elementos] constituem
regras de construção formal, outros, hábitos retóricos (...), alguns são
característicos de uma época, outros têm uma origem longínqua e um alcance
cronológico muito grande” (FOUCAULT, 1987, p. 66). Neste caso, parece-nos
que Krieg-Planque (2011, p. 17) tentou mostrar na análise da fórmula
“purificação étnica” o excelente fundamento de uma tal descompactação das
formações discursivas. Do ponto de vista formal, os lugares discursivos
“podem ser textos (ou, mais frequentemente, o que há neles, como o título,
por exemplo), unidades lexicais simples ou complexas”. Já no plano de suas
funções discursivas, “os lugares discursivos podem fazer o papel de textos-
chave, de provas autentificadoras, de índices de historicidade, de slogans, de
palavras de ordem, de designantes ou ainda, de fórmulas” (KRIEG-PLANQUE,
2011, p 22). Dessa forma, podemos perceber nessa noção de lugares discursivos
um elemento de articulação entre as noções que Krieg-Planque mobiliza em
suas análises, ou seja, “a pesquisa sobre os lugares discursivos não é
dissociável de outros aspectos do trabalho” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 23).
Considerações finais
No percurso que fizemos nesse artigo, buscamos mostrar os encontros e
desencontros entre o trabalho de Krieg-Planque e o de Michel Foucault, ora
por meio da noção de discurso, ora pela tradição de uma certa epistemologia
francesa da qual os dois são tributários. Claro que nosso gesto foi movido pelo
desejo de revisitar a obra de Foucault, fazendo uma leitura sobre a proposição
da noção de fórmula nos estudos e nas práticas de uma certa Escola Francesa
de Análise do Discurso. E nessa tradição, não há dúvida de que haja uma
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ligação, “no que se refere ao quadro teórico global” do savoir-faire da
epistemologia que se pratica na França, da qual fazem parte Jean-Jacques
Courtine, Dominique Maingueneau, Michel Pêcheux, nomes que estão no
traçado da história dessa Escola Francesa de Análise do Discurso.
Como vimos Krieg-Planque não só retomou os estudos sobre a noção de
fórmula no quadro teórico que alicerça a Escola Francesa de Análise do
Discurso, trançando uma história desta noção, mas realiza uma série de
movimentos para precisar tal constructo, desde Faye até Fiala e Ebel. Nesse
seu gesto, a autora provocou, além de alguns deslocamentos, o interesse em
áreas tão diversas como Ciências da Linguagem, História, Sociologia, Ciências
da Informação e da Comunicação, Ciências Políticas. Em suma, nessa
discussão, vimos que toda fórmula discursiva traz consigo uma densidade
histórica que materializada em sua circulação, apoiada em pré-construídos e
voltada a novas construções no trabalho de Krieg-Planque que tem sido muito
bem acolhido entre nós brasileiros com a publicação de seus livros e alguns
artigos aqui no Brasil. Um trabalho que revigora a cada dia a Escola Francesa
de Análise do Discurso tanto aqui quanto na França.
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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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ARGUMENTAÇÃO E DISCURSOS SOBRE O TRANSTORNO DE DÉFICIT
DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) NAS MÍDIAS SOCIAIS
Clarice Lage Gualbertoi
Resumo: Um grande desafio que tem se apresentado, no contexto de ensino, é o tema dos transtornos de aprendizagem, destacando-se o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) como temática, tanto em estudos acadêmico-científicos, quanto em publicações de abrangência mais popular. O aumento exponencial do número de indivíduos diagnosticados (MATTOS, et al., 2012) afetou diretamente o ambiente escolar, fomentando, assim, uma grande procura por informações e estudos que norteassem a comunidade docente para tentar lidar com essa realidade em sala de aula. Dessa forma, torna-se necessária a análise dos textos que, provavelmente, atingem esse público, possibilitando um confronto das diversas posições e interesses envolvidos no debate. Como fundamentos teóricos principais deste estudo, destacam-se Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e o “Guia das Falácias” de Downes (1996). Num primeiro momento, são discutidas algumas teorias da argumentação e as respectivas aplicações nos discursos sociais. Após esta etapa, é feita a análise da publicação jornalística “Somos todos hiperativos? A era da desatenção” – da Folha de São Paulo. O estudo objetiva, portanto, explicitar algumas estratégias argumentativas utilizadas no texto, bem como o ponto de partida da argumentação do qual o artigo se constitui. Dessa forma, é possível supor certas intenções e posicionamentos presentes na argumentação dos autores. Espera-se que este artigo possa contribuir, principalmente, com a comunidade docente, auxiliando na recepção crítica de estudos publicados sobre o tema.
Palavras-chave: Argumentação. TDAH. Ensino. Mídia.
Abstract: A big challenge which has been present itself in the teaching context is the learning disorders mainly the Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). This subject has been focused by academic and scientific studies and more popular researches as well. The exponential increase of diagnosed people (MATTOS, et al., 2012) has highly affected education field, therefore teachers’ searching for information and studies about it has also increased, since they want to know how to deal with it in the classroom. Observing this context, it is possible to say it is necessary to analyze these texts, so its interests and ideological positions can be confronted. This study is based on Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) and the “Logical Fallacies Guide”, by Downes (1996). First some argumentation theories were discussed, and after that, a text titled “Are we all hyperactive?” from the Brazilian newspaper Folha de São Paulo has been analyzed. This paper intends to draw some argumentative strategies which were used in this text. So it was possible to make some assumptions about the authors’ intentions and points of view. The purpose here is to help teachers by presenting some critiques about this theme.
Keywords: Argument. ADHD. Teaching. Media.
i Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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Introdução
Um dos grandes desafios do ensino atualmente é lidar com os chamados
alunos “especiais”, ou seja, aqueles que apresentam algum transtorno de
aprendizagem devidamente comprovado por laudos de especialistas como
psiquiatras, neurologistas, entre outros. O TDAH (Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade) é o mais comum deles, afetando 5% da população
infantil mundial (POLANCZYK et al., 2012).
O aumento exponencial do número de indivíduos diagnosticados
(MATTOS, et al., 2012) afetou diretamente o ambiente escolar, fomentando,
assim, uma grande procura por informações e estudos que norteassem a
comunidade docente para tentar lidar com essa realidade em sala de aula.
Além de artigos científicos da área de medicina, é perceptível o aumento
de publicações – livros, artigos de opinião, colunas jornalísticas, entrevistas,
etc. –mais acessíveis a pessoas que não são do campo da saúde. Assim,
propõe-se, neste estudo, analisar a argumentação desenvolvida no texto “A
era da desatenção – Somos todos hiperativos?”, de Marcelo Leite e Claudia
Colluci, publicado em 30 de maio de 2010, no caderno Folha Ilustrada, do jornal
Folha de São Paulo (ANEXO). Espera-se que este artigo possa contribuir,
principalmente, com a comunidade docente, auxiliando na recepção crítica de
estudos publicados sobre o tema.
Russel (2002) define TDAH como “um transtorno de desenvolvimento
do autocontrole que consiste em problemas com os períodos de atenção com
o controle do impulso e com o nível de atividade” (p. 35); o site da Associação
Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) descreve o TDAH como sendo “um
transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e
frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza
por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade” (p. 1).
O site também comenta o fato de que muito se ouve sobre
hiperatividade, mas poucas pessoas fora do campo da saúde sabem do que se
trata de fato. Tendo em vista esse contexto, apresenta-se aqui uma análise do
texto previamente citado, o qual aborda a questão do TDAH, comentando sua
definição, tratamento e formas de diagnóstico. Como fundamentos teóricos
principais deste estudo, destacam-se Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e o
“Guia das Falácias” de Downes (1996). Num primeiro momento, serão
discutidas algumas teorias da argumentação e as respectivas aplicações nos
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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discursos sociais. Após esta etapa, será feita a análise da publicação
jornalística mencionada anteriormente.
Espera-se levantar algumas estratégias argumentativas utilizadas no
texto, bem como o ponto de partida da argumentação do qual o artigo se
constitui. Dessa forma, será possível supor certas intenções e
posicionamentos presentes na argumentação dos autores.
1 Pressupostos teóricos sobre argumentação
O tema “argumentação” tem sido amplamente discutido e pesquisado.
Por isso, faz-se necessária a descrição de pontos principais de alguns teóricos
que se relacionam com as abordagens que amparam a metodologia deste
trabalho. A partir de autores como Aristóteles, Chaïm Perelman, Oswald
Ducrot, Dominique Mangueneau e Stephen Toulmin, é possível salientar três
problemáticas nessa questão: a retórica, a lógica e a argumentação na língua.
Primeiramente, observa-se a noção de “retórica”. Esse conceito é
definido por Aristóteles como “a faculdade de ver teoricamente o que, em
cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão. Nenhuma outra arte possui
esta função [...]” (ARISTÓTELES, 1982, p. 33). O autor explica essa questão,
apresentando três pilares básicos para a retórica: logos, pathos e ethos. O
primeiro diz respeito à argumentação racional; o segundo está mais ligado ao
auditório, ao seu convencimento e envolvimento, e, por último, o ethos se
refere ao enunciador, não necessariamente ao orador/autor de fato, mas
àquele que é revelado ao longo do discurso.
Maingueneau (2004) desenvolve essa questão, propondo um
coenunciador que atribui um ethos ao fiador1. De acordo com o autor, o ethos
possui: "uma forma específica de se inscrever no mundo [...] comunidade
imaginária dos que comungam na adesão a um mesmo discurso"
(MAINGUENEAU, 2004, p. 99-100). Assim, o ethos é a voz ou o tom presente
no texto, a partir do qual o sujeito da enunciação se revela, transparecendo
seus posicionamentos, intenções, preferências, entre outros possíveis
aspectos que podem ser percebidos pelo interlocutor. Essa perspectiva
contribui de forma relevante e direta sobre a argumentação nos discursos
sociais, uma vez que se pode contrapor, por exemplo no discurso político, o
1 “O fiador é aquele que se revela no discurso e não corresponde necessariamente ao enunciador efetivo” (HEINE, 2007, p. 4).
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ethos “dito” x o ethos “mostrado”, ou seja, as referências feitas diretamente
sobre o orador e o que ele de fato revela sobre si mesmo em sua
argumentação.
Sobre a questão do auditório, podemos destacar os trabalhos de
Perelman (1997), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e de Charaudeau (2006)
que abordam esse tema de formas distintas, porém complementares.
Diferentemente de Aristóteles, os autores partem do ponto de que, para que
haja resultados efetivos na argumentação, o auditório precisa aderir a esse
processo, já que estão em jogo valores e verdades (religiosos, políticos,
morais, etc.) que cada interlocutor possui. Os primeiros autores propõem a
noção de que acordos precisam ser estabelecidos e assim a argumentação se
desenvolve. Segundo Perelman:
[...] para que a argumentação retórica possa desenvolver-se, é preciso que o orador dê valor à adesão alheia e que aquele que fala tenha a atenção daqueles a quem se dirige: é preciso que aquele que desenvolve sua tese e aquele a quem quer conquistar já formem uma comunidade, e isso pelo próprio fato do compromisso das mentes em interessar-se pelo mesmo problema (PERELMAN, 1997, p.70).
Dessa forma, é preciso haver um acordo prévio sobre as premissas que
irão servir para a discussão como ponto de partida a fim de que o interlocutor
permita ser (ou não) convencido. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2005), ao analisar um texto escrito, por exemplo, deve-se iniciar o estudo
buscando o ponto de partida da argumentação, o qual é composto pelo
acordo, os tipos de objeto de acordo, a escolha dos dados e sua apresentação.
Em seguida, para um aprofundamento da pesquisa, o analista deve procurar
identificar as técnicas argumentativas utilizadas pelo autor. No diagrama a
seguir, Figura 1, observa-se, de forma mais geral, a metodologia ligada à
primeira parte da análise proposta pelos autores.
Figura 1 – Objetos de Acordo. Fonte: Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005.
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Para Charaudeau, esses “acordos” são chamados de “contratos de
comunicação” que podem ser definidos como: “O necessário reconhecimento
recíproco das restrições da situação pelos parceiros da troca linguageira nos
leva a dizer que eles estão ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os
dados desse quadro de referência” (CHARAUDEAU, 2006, p. 68). O autor leva
em conta o que ele chama de dados externos e internos do contrato. O
primeiro considera, em suma, “quem diz e para quem”, “para quê se diz”, “o
que se diz” e “em que condições se diz” e o segundo o “como se diz”. Nesse
caso, são analisados os espaços de locução do enunciador, da relação
enunciador - interlocutor e de tematização. Charaudeau acredita que a
argumentação tem a ver com levar as pessoas a agirem e a retórica faz o outro
saber alguma coisa, passando pelo seu sistema de crenças. A metodologia do
autor considera também a tripla atividade da argumentação, ou seja, 1)
problematização (fazer saber e impor o modo a tratá-la), 2) posicionar-se, e 3)
provar seu ponto de vista.
A problemática da lógica na argumentação pode ter como autor de
referência Stephen Toulmin (2001), que fundamenta sua tese no raciocínio
lógico e nas garantias e validades de um argumento. O autor não enfoca tanto
as técnicas argumentativas, como Perelman, mas propõe formas de combater
um argumento, de desafiá-lo, de colocá-lo à prova e de validá-lo. Pensando na
argumentação em discursos sociais, essa teoria contribui para diversos tipos
de análises em contextos políticos, por exemplo. As perspectivas de Perelman
e Charaudeau são interessantes para se estudar a argumentação no âmbito da
sua base, seus propósitos e sua eficácia. Já Toulmin fornece amparo teórico
para um estudo mais focado na validade do argumento, na sua lógica, no seu
raciocínio.
Partindo para outra perspectiva, a problematização da argumentação na
língua pode ser discutida a partir do conceito de Oswald Ducrot (1999) e Carel
e Ducrot (2005), que consiste no fato de que a língua é “voluntariamente
limitativa”, ou seja, o enunciado e as estruturas internas que o compõem são
suficientes para que o analisemos. Dessa forma, apenas a língua é considerada
para a análise. O autor explica a relação entre fatores intrínsecos e extrínsecos
no trecho a seguir:
A primeira, segundo a qual os encadeamentos argumentativos constroem, por sua própria existência, representações do mundo de que se fala (o que exclui descrevê-las como manifestações de argumentações, no sentido retórico deste
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termo). A outra, segundo a qual estes encadeamentos são todavia restritos pela semântica intrínseca das palavras utilizadas [...], o que satisfaz o objetivo estruturalista da ADL, e leva a descrever as palavras, não a partir de um conhecimento prévio da realidade (o que implicaria sua descrição ‘informativa’), mas a partir de suas potencialidades discursivas (DUCROT, 1999, p. 10).
A perspectiva de Ducrot também é relevante, porém de forma mais
indireta aos estudos da argumentação nos discursos sociais, uma vez que
possibilita análises de textos verbais, por meio do estudo da forma com que o
enunciador se serve da língua. Quais os conectivos, adjetivos, relações
sintáticas, entre outros recursos, foram utilizados no texto em questão? Pelo
fato de o autor se limitar à língua, essa metodologia se torna um pouco mais
limitada, tendo em vista o amplo corpus oferecido pelos discursos sociais, que
nem sempre podem ser analisados somente pelo âmbito da argumentação na
língua, mas considerando também entonações, gestos, contextos, etc.
Por fim, é importante ressaltar a contribuição do Guia das Falácias de
Downes (1996). Segundo este autor, a finalidade de um argumento é
apresentar as razões (premissas) que fundamentam uma conclusão. Dessa
forma:
[...] um argumento é falacioso quando parece que as razões apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não sustentam. Da mesma maneira que há padrões típicos, largamente usados, de argumentação correcta, também há padrões típicos de argumentos falaciosos. A tradição lógica e filosófica procurou fazer um inventário e dar nomes a essas falácias típicas e este guia faz a sua listagem (p.1).
Assim, esta listagem presente no Guia acrescenta mais uma perspectiva
de análise da argumentação nos discursos sociais, contribuindo de maneira
substancial para esta pesquisa.
2 Análise
Em primeiro lugar, seguindo a metodologia de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005), será feito um breve estudo sobre o acordo (e seus objetos)
estabelecido no processo argumentativo entre o orador e o auditório, neste
caso, o público alvo do jornal Folha de São Paulo. Em seguida, serão analisadas
a seleção dos dados e a adaptação deles em prol dos objetivos dos autores e,
por fim, as técnicas argumentativas utilizadas no texto, que, neste caso, serão
complementadas pelas falácias propostas por Downes (1996), as quais vão ao
encontro do que é proposto por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005). Todas
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essas considerações serão fundamentais para que se possa fazer algumas
inferências acerca do ethos revelado no texto.
Observando o título e o subtítulo do texto (ANEXO), “Somos todos
hiperativos? A era da desatenção”, já é possível perceber as seguintes
premissas2: a) a desatenção é algo muito presente nos dias atuais; b) a
hiperatividade existe (a pergunta indica um acordo implícito de existência). Ao
longo do artigo, nos demais subtítulos, por exemplo, nota-se uma posição
negativa dos autores em relação a várias questões acerca do TDAH.
Nas expressões, “superdiagnóstico”, “sintomas vagos” e “sem testes”,
é possível observar o quanto os escritores duvidam até mesmo da existência
do transtorno, sugerindo que isso seja um traço de personalidade apenas.
Dessa forma, nota-se a premissa de que o TDAH é um tema polêmico e
confuso.
Em relação aos valores abstratos envolvidos, observam-se a verdade, a
responsabilidade, a ética e a honestidade. Os autores parecem propor ao
interlocutor que a hiperatividade seja algo que gera lucro para diversos
setores do mercado: editorial (publicação de livros), farmacêutico (venda de
remédios) e o setor da saúde (neurologistas, psicólogos e psiquiatras). Assim,
os diagnósticos parecem ser extremamente duvidosos, sendo dignos de
serem questionados e avaliados. A evocação dos valores previamente citados
pode ser percebida nos trechos “O TDAH abriu um filão para a escritora”, “as
vendas passaram de 71 mil caixas anuais para 1,2 milhão”, “fabricação de
doenças”, “É de uma imprecisão absurda”, “pouca gente deixaria de se
reconhecer na lista oficial de 18 sintomas”, “culto moralista do sofrimento
como alternativa à solução fácil dos comprimidos”, “epidemia de vendas”,
entre outros.
É possível dizer que os autores quiseram causar algum tipo de
indignação no leitor ao mostrar dados alarmantes e levantar tantas questões
polêmicas sobre o transtorno. Percebem-se, também, algumas hierarquias no
texto, tais como: a ética sobrepondo a riqueza, os médicos que refutam o
TDAH sendo melhores que aqueles os quais acreditam no transtorno,
evidências científicas acima da palavra do médico pró - TDAH e a Europa sendo
mais sensata do que os Estados Unidos. Esta última afirmação é observada no
trecho em que os autores comparam os critérios de diagnóstico do
2 “[...] o que é presumidamente admitido pelos ouvintes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005 p.73).
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transtorno: “na Europa, prevalece [...] o HKD [...] classificação da Organização
Mundial de Saúde, que utiliza uma lista de sintomas parecida com a do DSM-4,
mas exige 10 deles, e não 6, para o diagnóstico.”
Em relação aos lugares, observa-se a predominância do lugar comum da
quantidade. Folheando o texto, sem necessariamente lê-lo, nota-se alta
incidência de números ao longo da publicação. Percebe-se que os autores
recorrem a esse artifício para o quanto o TDAH é duvidoso e como o
argumento deles é digno de adesão por ser verdadeiro.
Sobre a seleção e tratamento dos dados, vale destacar que os autores
optaram por não recorrer ao site oficial da ABDA, previamente citado, em que
se encontram diversos artigos científicos sobre o TDAH, que combatem, por
exemplo, o argumento de que a forma para diagnosticar é imprecisa. Além do
questionário (único instrumento utilizado pelos médicos, segundo o texto),
são necessários exames de sangue para a verificação de questões relativas à
tireoide, testes psico e neurológicos aplicados pelo neurologista; não é apenas
o paciente que responde a vários questionários, recomenda-se que pessoas
próximas dele respondam também. Os autores silenciam, ainda, o fato de que
o uso da medicação representa apenas 30% do tratamento, segundo o site da
ABDA.
No início do texto, os autores parecem querer mostrar as causas do
aumento drástico da venda dos medicamentos comumente utilizados no
tratamento do distúrbio e apontam a automedicação, proveniente do
autodiagnóstico, como grande responsável desse fato. Utilizando-se, segundo
Downes (1996), do apelo à autoridade sem haver acordo com os peritos em
questão, os autores citam uma especialista da área que corrobora para a
imprecisão do TDAH, “Quando você vê os critérios diagnósticos, não tem
como não se enquadrar”. Novamente, os autores silenciam o fato de que a
venda desses remédios é extremamente restrita e controlada. É necessária
uma receita específica, fornecida pelo Ministério da Saúde, preenchida pelo
médico, juntamente com seu carimbo e CRM, ou seja, o autodiagnóstico pode
acontecer, mas a automedicação é improvável que ocorra.
Outra falácia observável no texto é o ataque à pessoa e não ao fato; isso
acontece no momento em que os autores discorrem sobre a psiquiatra Ana
Beatriz Barbosa, escritora do best seller Mentes Inquietas. Os autores enfocam
os lucros com as vendas de suas publicações, incitando a possibilidade de que
haja interesse por parte da especialista em se declarar como portadora do
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TDAH, visando ao sucesso na comercialização de suas obras. Ao invés de
atacarem os dados científicos sobre o transtorno, já que eles mesmos dão
mais credibilidade a esse tipo de evidências, os autores recorrem a um
argumento baseado na ilustração que exemplifica o lado vantajoso e lucrativo
do diagnóstico da presença do TDAH no paciente.
Os escritores se valem também do apelo às consequências ao
apontarem possíveis danos dos medicamentos à saúde: “a droga parece capaz
de retardar o crescimento, talvez até 1,2 cm por ano”, “(a droga) contribuiu
para baixá-lo no hospital com uma tromboflebite”. Já, no trecho “ausência de
evidência não é evidência de ausência, poderiam dizer (os defensores do
TDAH).” percebe-se que os autores supõem que os especialistas que
acreditam no transtorno apelariam à ignorância, fazendo esse tipo de
afirmação. Por fim, é observada a falácia da autoridade anônima em “só 1% de
seus colegas de especialidade encara o TDAH como uma doença real, que
deve ser tratada por médicos, segundo uma pesquisa de opinião de 2007”; os
autores não citam a fonte dessa pesquisa, nem com quantas pessoas ela foi
realizada.
Essas considerações, sobre os argumentos utilizados, amparam algumas
conclusões sobre o ethos do texto analisado neste estudo. Em primeiro lugar,
o ethos “dito” (MAINGUENEAU, 2004) consta nos textos que precedem a
matéria, em que há uma pequena descrição de cada repórter. Ambos são
autores de livros famosos e ganham o título de “repórter especial da Folha”,
evocando um ethos de prestígio e credibilidade. Dessa forma, o leitor-ouvinte
tende a lhes atribuir confiança e seriedade, contribuindo para que a
argumentação seja bem sucedida.
Em relação ao ethos “mostrado”, o texto revela um tom diferente, já
que os autores se valem de ironias, que podem ser verificadas em vários
trechos, como, por exemplo, no fim do texto: “Conflito de interesses: os
autores desta reportagem declaram que não contaram com apoio de drogas
psicoativas, exceto cafeína.” Outra evidência, que contribui para o
distanciamento entre o ethos dito e o mostrado, é o fato de que o conteúdo
da matéria é constituído por vários argumentos falaciosos (como foi descrito
anteriormente). Dessa forma, percebe-se que o tom científico e de seriedade
do ethos “dito”, ao longo do texto, dá lugar a um ethos “mostrado” que
constrói sua argumentação, principalmente, a partir do uso de informações
tendenciosas e da omissão de dados.
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Infelizmente, uma vez que há muitas estatísticas e citações, estratégias
que conferem veracidade ao texto, o leitor-ouvinte tende a sustentar a
imagem do ethos “dito”. Dessa forma, o ethos que, provavelmente, prevalece,
mesmo após a leitura, é o que possui somente características positivas,
isentando o enunciador de cometer erros ou de utilizar argumentos que não
fossem válidos.
Considerações finais
A apresentação de alguns pressupostos teóricos acerca da
argumentação objetivou traçar um panorama sobre as principais pesquisas
que discorrem sobre questões relativas à argumentação. A partir dessa visão
geral, foram selecionadas as teorias de Downes (1996) e Perelman &
Olbrechts-Tyteca (2005) para fundamentar a metodologia do estudo,
propiciando algumas conclusões sobre o ethos, reveladas ao longo do texto,
seguindo a perspectiva de Maingueneau (2004).
Dessa forma, foi possível traçar o posicionamento dos autores da
matéria da Folha em relação ao TDAH. Eles se mostram desfavoráveis aos
diagnósticos positivos em relação à hiperatividade, supondo um exagero por
parte dos atores envolvidos na área e sugerindo que a questão gira em torno
do mercado e do lucro gerado pelo transtorno, e não da busca em pesquisar
cientificamente sobre a existência do distúrbio, bem como os instrumentos
para o seu diagnóstico.
Ao menosprezar dados da ABDA, como os que comprovam que o TDAH
tem sido subtratado no Brasil, o artigo deixa transparecer, claramente, como
o discurso presente no texto atende a interesses e visa à persuasão do leitor
em detrimento do confronto e da exposição das correntes teórico-científicas
sobre o tema.
Além disso, tendo em vista a análise feita no artigo, pode-se perceber o
papel de “alerta” que a matéria assume em relação ao seu leitor. Assim, é
possível afirmar que tal publicação tem como objetivo prestar uma espécie de
ajuda, de favor ao seu público, já que ela revelou a verdade, elucidando essas
questões polêmicas, obscuras e negativas sobre o TDAH.
Com esta breve análise, espera-se contribuir para a prática e formação
docente, apresentando um olhar crítico sobre esta publicação da Folha de São
Paulo, jornal que possui grande credibilidade no meio acadêmico e escolar.
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Dessa forma, este artigo pretende incentivar, ainda mais, a busca por vários
pontos de vista acerca do mesmo tema, para que se chegue a conclusões mais
precisas sobre o assunto em questão.
REFERÊNCIAS
ABDA. Sítio oficial. Disponível em: <http://www.tdah.Org.br/>. Acesso em: jul. 2013. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982. CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la teoría de los bloquessemánticos. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 2005. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. DOWNES, Stephen. Guia das Falácias. Crítica: revista de filosofia e ensino [online] Disponível em: <http://criticanarede.com/falacias.htm>. Acesso em: jul. 2010. DUCROT, Oswald. O Dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. _____. Polifonía y argumentación. Calli: Universidad del Valle, 1988. _____. Os topoi na teoria da argumentação na língua. Revista Brasileira de Letras, v.1, n. 1, p. 1-11, 1999. HEINE, Palmira. Considerações sobre a cena enunciativa: a construção do ethos nos blogs. In: II ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO. 2007, UFCE. Anais do II encontro nacional sobre hipertexto. Ceará, 2007. Disponível em: <http://www.ufpe.br/nehte/hipertexto2007/anais/ANAIS/Art43_Heine.swf>. Acesso em: nov. 2013. LEITE, Marcelo; COLLUCCI, Cláudia. Somos todos hiperativos? A era da desatenção – Folha de São Paulo – Disponível em: <http://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/30/a-era-da-desatencao>. Acesso em: jul. 2010. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2004. MATTOS, Paulo; ROHDE Luís Augusto; POLANCZYK, Guilherme. O TDAH é subtratado no Brasil. Revista brasileira de psiquiatria, São Paulo, v. 34, n. 4, p. 513-516, 2012. PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova Retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. POLANCZYK, Guilherme; CASELLA, Erasmo. B.; MIGUEL, Euripedes; REED, Uumbertina. Transtorno de déficit de atenção / hiperatividade: uma perspectiva científica. Revista CLINIC, São Paulo, v. 67, n.10, p. 1125-1126, 2012. RUSSEL, Barkley. Transtorno de déficit de atenção / Hiperatividade (TDAH): Guia completo para pais, professores e profissionais da Saúde. Porto Alegre: Artmed, 2002. TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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ANEXO
Ilustríssimos desta edição
Cláudia Collucci, 42, é repórter especial da Folha. É autora de dois livros na área da
reprodução humana e do blog "Quero ser mãe", no UOL.
Marcelo Leite, 52, é repórter especial da Folha, autor do livro "Ciência - Use com
Cuidado" (Unicamp).
Somos todos hiperativos? - A era da desatenção
Publicado em 30 de maio, 2010 pela FOLHA DE SÃO PAULO, no caderno Folha Ilustrada
Marcelo Leite e Claudia Collucci, Folha de S.Paulo, 30 de maio de 2010
HUCKLEBERRY FINN, PROTAGONISTA das aventuras do romance de Mark Twain (1835-1910) que leva seu nome, daria um sério candidato, nos dias de hoje, à domesticação com base na droga metilfenidato (Ritalina e Concerta são as marcas disponíveis no Brasil). Isso, claro, se algum orientador da escola conseguisse capturar o menino para encaminhar a um consultório de psiquiatria infantil.
Já o negro Jim, se caísse nas mãos de um psiquiatra de passagem pelo Mississippi em meados do século 19, seria provavelmente devolvido a ferros com um diagnóstico de drapetomania (do grego “drapetés”, fugitivo). A especialidade médica tinha menos de meio século e se empenhava em cunhar suas próprias “doenças”.
Huck, o amigo do escravo fujão, preencheria facilmente o mínimo de 6 dos 18 critérios de diagnóstico para o Transtorno de Deficit de Atenção e a Hiperatividade (TDAH), alvo do metilfenidato. Não era propenso a seguir instruções, ficar quieto ou pensar antes de responder. Reações precipitadas eram com ele mesmo. Lição de casa, nem pensar.
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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A viúva Douglas e a srta. Watson bem que tentavam civilizar o garoto impulsivo e agitado, mas ele fugiu -só para terminar nas garras do pai bêbado, que o trancou numa cabana. Huck fugiu de novo. Seguem-se 349 páginas de hiperatividade pura, que terminam com Huck anunciando nova partida, para territórios indígenas a oeste.
Huck, na nossa era multimídia, faria companhia aos 2,7 milhões de americanos entre 6 e 17 anos que tomam estimulantes como o metilfenidato e outros medicamentos psicoativos, entre os 4,6 milhões de diagnosticados com TDAH (8,4% da população nessa faixa etária). O consumo per capita de metilfenidato nos EUA é oito vezes maior que em países europeus. Estima-se que, no mundo, 5,3% dos jovens tenham TDAH.
Por aqui, o preguiçoso e irrequieto Macunaíma, de Mário de Andrade, talvez recebesse o mesmo diagnóstico (ou estigma). Nas escolas particulares e escritórios da cidade grande que fascinaram o herói sem nenhum caráter, seus descendentes descobriram o metilfenidato.
No Brasil, de 2000 a 2008, as vendas passaram de 71 mil caixas anuais para 1,2 milhão. Quantidade suficiente para medicar dezenas de milhares de adolescentes e crianças.
SUPERDIAGNÓSTICO
Há alguma coisa errada nesses números, segundo Luis Augusto Rohde, psiquiatra da infância e da adolescência na UFRGS. E não é por excesso, mas por falta de diagnósticos.
“Em termos de saúde pública, não existe no Brasil problema de superdiagnóstico e supertratamento”, afirma Rohde, autor principal de um influente artigo sobre TDAH publicado em 2007 no periódico “American Journal of Psychiatry”, citado por quase 300 especialistas em outros trabalhos. Foi desse estudo que saiu a cifra de 5,3% de prevalência mundial.
O Brasil tem 47 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 18 anos; 5% deles seriam 2,35 milhões. “Não temos mais do que 100 mil crianças usando a medicação”, estima Rohde. “Há escolas privadas no país com um número excessivo de tratamentos, mas é uma realidade pontual.” Para o grupo gaúcho, existe uma epidemia de uso indevido da medicação por adultos. O metilfenidato estaria sendo empregado para melhorar o desempenho de estudantes e profissionais em tarefas pesadas e monótonas, como a leitura e a redação de textos longos -preparação de exames, relatórios, e por aí vai.
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“Há muitas mães que usam [o metilfenidato] para emagrecer”, agrega o também gaúcho Guilherme Vanoni Polanczyk, atualmente na Faculdade de Medicina da USP, primeiro autor do artigo liderado por Rohde, que foi seu orientador. Um estudo que eles fizeram em escolas públicas de Porto Alegre constatou que só 2% dos alunos que satisfazem os critérios do TDAH recebiam medicação.
SINTOMAS VAGOS
Outra causa provável do aumento exponencial de vendas de Ritalina e Concerta é a automedicação como consequência de autodiagnósticos. Pouca gente deixaria de se reconhecer na lista oficial de 18 sintomas compilada no “Manual de Diagnóstico e Estatística”, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-4), segundo o qual portadores de TDAH frequentemente:
1. Deixam de prestar atenção a detalhes ou cometem erros por descuido em atividades escolares, de trabalho ou outras; 2. Têm dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas; 3. Parecem não escutar quando lhe dirigem a palavra; 4. Não seguem instruções e não terminam deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais; 5. Têm dificuldade para organizar tarefas e atividades; 6. Evitam, antipatizam ou relutam em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante; 7. Perdem coisas necessárias para tarefas ou atividades; 8. São facilmente distraídos por estímulos alheios à tarefa; 9. Se esquecem de atividades diárias; 10. Agitam as mãos ou os pés ou se remexem na cadeira; 11. Abandonam sua cadeira em sala de aula ou quando se espera que permaneçam sentados; 12. Correm em situações inapropriadas; 13. Têm dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividade de lazer; 14. Agem como se estivessem “a todo vapor”; 15. Falam em demasia; 16. Dão respostas precipitadas, antes de concluídas as perguntas; 17. Têm dificuldade para aguardar sua vez; 18. Interrompem conversas ou se metem em assuntos dos outros.
“Alguém que age e reage de maneira diferente, que aprende diferente, já é tachado como doente”, diz Maria Aparecida Moysés, professora titular de pediatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela vê um
GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.
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processo “muito intenso e extenso” de medicalização do comportamento. Só 1% de seus colegas de especialidade encara o TDAH como uma doença real, que deve ser tratada por médicos, segundo uma pesquisa de opinião de 2007.
“Quando você vê os critérios diagnósticos, não tem como não se enquadrar. É de uma imprecisão absurda, não tem nada de evidência científica”, diz ela. “Se for por aí, todo mundo tem déficit de atenção.”
MENTES INSACIÁVEIS
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva descobriu ser portadora 24 anos atrás, aos 19, quando era estudante de medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “O diagnóstico de TDAH dividiu minha vida em antes e depois”, conta. “Foi similar a quando descobri que era míope e usei óculos pela primeira vez - eu via o mundo como uma pintura impressionista. A partir dali, comecei a vê-lo cheio de detalhes, barroco.”
A descoberta ocorreu durante um congresso médico em Chicago, quando a acadêmica de medicina se reconheceu na descrição dos sintomas. Hoje, a médica ainda recorre a pílulas (bupropiona) para trabalhos que exigem muita concentração, como a revisão de textos longos.
Medicada, disciplinou-se a ponto de escrever um livro inteiro. “Mentes Inquietas”, a obra, vendeu cerca de 50 mil exemplares desde que foi relançada pela editora Objetiva em setembro de 2009 (das vendas da primeira versão, de 2003, não há cifra precisa; segundo a autora, ultrapassaram 150 mil cópias).
O TDAH abriu um filão para a escritora, que depois lançou “Mentes Perigosas”, “Mentes com Medo”, “Mentes Insaciáveis”, “Mentes e Manias” e o recém-publicado “Bullying: Mentes Perigosas nas Escolas”. Mais três volumes da série “Mentes…” vêm aí.
TEMPOS DA BENZEDRINA
Não resta muita dúvida de que o metilfenidato aumenta a produtividade e contribui para o avanço da literatura -pelo menos a de autoajuda. No passado, escritores de estirpe diversa recorreram aos préstimos de estimulantes para turbinarem atenção e redação.
W.H. Auden, James Agee, Graham Greene, Jack Kerouac e até Jean-Paul Sartre teriam recorrido a estimulantes para ler e escrever mais, relata Joshua Foer num artigo para a revista eletrônica “Slate”. Eram os tempos da benzedrina (tipo de anfetamina).
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O próprio Foer conduziu um experimento de uma semana com Aderall, um dos medicamentos mais populares nos EUA para tratar TDAH (e, ao lado da Ritalina, consumido por 20% dos universitários americanos). Os resultados foram “miraculosos”. De uma sentada, Foer leu 175 das 1.386 páginas de “A Estrutura da Teoria Evolucionista”, do grande biólogo Stephen Jay Gould. “Eu me sentia menos eu mesmo”, escreveu. “Embora pudesse lançar mais palavras por hora na página com o Aderall, tive uma suspeita incômoda de que estava pensando com viseiras.” Em conversa com amigos escritores, confirmou que outros também sentiam a criatividade tolhida pelo remédio.
A benzedrina não parece ter prejudicado a escrita de Kerouac no clássico da literatura beat “On the Road – Pé na Estrada” (L&PM) -ao contrário, dirão seus cultuadores. Mas contribuiu, segundo Foer, para baixá-lo ao hospital com uma tromboflebite.
DISFUNÇÃO MÍNIMA
Os usuários habituais de metilfenidato precisam tomar cuidado com efeitos colaterais como aumento moderado da pressão arterial e da frequência cardíaca. Em jovens e crianças, a droga parece capaz de retardar o crescimento, talvez até 1,2 cm por ano.
Theodor Lowenkron, da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, recomenda cautela na prescrição de drogas psicoativas, em especial para crianças. “Para indicar ou não a droga, os prós e os contras devem ser bem avaliados -caso a caso”, enfatiza. “E a intervenção terapêutica não deve se limitar à prescrição de remédios.” Apesar das manifestações adversas, o metilfenidato foi aprovado pela poderosa FDA (agência de alimentos e fármacos dos EUA) já em 1955, para tratar sintomas hoje enfeixados como TDAH.
A epidemia de vendas só deslanchou depois de 1999, quando um estudo clínico pioneiro mostrou a superioridade do tratamento com remédios sobre a terapia comportamental com envolvimento de pais e mestres. Anos depois, o acompanhamento do grupo de pacientes revelou que a suspensão do metilfenidato faz voltarem os sintomas. No longo prazo, a vantagem do medicamento sobre outros tratamentos decai.
Na Europa, prevalece o nome “transtorno hipercinético”, ou HKD na abreviação em inglês. Antes, o complexo de comportamentos recebia nomes como “síndrome da criança hiperativa”, “reação hipercinética da infância” ou “disfunção cerebral mínima”.
HKD é a classificação da Organização Mundial da Saúde, que usa uma lista de sintomas parecida com a do DSM-4, mas exige 10 deles, e não 6, para o
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diagnóstico. O critério restritivo, associado com diferenças culturais, é apontado como responsável pela discrepância na proporção de casos dos dois lados do Atlântico.
CUMPLICIDADE
O componente cultural é refutado pelo estudo estatístico dos brasileiros Rohde e Polanczyk, que atribuem a variação nas cifras de prevalência pelo mundo ao uso de metodologias díspares. Eles rejeitam tanto a ideia de que o aumento de TDAH seja fruto das condições da vida contemporânea quanto a de que se deva ao sucesso de uma “construção social”, mancomunando psiquiatras com a indústria farmacêutica para ampliar mercado.
Rohde atende hoje cerca de 500 adultos em seu serviço de TDAH em Porto Alegre. Não se trata de nova expansão “medicalizante”, afirma, mas da manutenção dos sintomas em 70%-80% das crianças e jovens diagnosticados quando chegam à maturidade. “Não é só no trabalho, é aquele adulto que dirige de forma imprudente, que tem mais acidentes, mais envolvimento com álcool e drogas”, ressalva Rohde.
Polanczyk rejeita também a explicação pelo estigma: adultos não permanecem com dificuldades de desempenho só por carregar o suposto fardo de terem sido apontados como crianças problemáticas e recorrido a remédios. “É ilusório pensar que o estigma surge só com o medicamento.”
Alívio. Os pais já não iam a restaurantes, antes do remédio. Os colegas não convidavam para as festas. Os castigos se repetiam na escola. E as peças de teatro interativas estavam há tempos fora de questão. “O medicamento alivia o estigma”, diz Polanczyk.
O psiquiatra se retrai igualmente diante da possibilidade de que o TDAH seja fruto do estilo de vida em que crianças e jovens são bombardeados com uma profusão de estímulos de informação e entretenimento por meios eletrônicos -a geração videogame. Não rejeita de todo a explicação, mas se refugia num eufemismo científico para defender o caráter substancial do transtorno: “Não vejo evidências de que a cultura cause o TDAH”.
Os críticos dessa “fabricação de doenças”, outro rótulo dos adeptos da construção social, soam mais incisivos. Thomas Szasz, velho combatente anti-TDAH nos EUA, fala de uma “aliança ímpia da psiquiatria com o Estado” para reprimir comportamentos desviantes (partiu dele o exemplo da drapetomania usado mais atrás). “Diagnósticos não são doenças”, costuma dizer. “Nenhum comportamento ou mau comportamento é doença ou pode ser doença.” Ele
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classifica a psiquiatria na mesma categoria inconfiável dos governos. Como o fogo, na metáfora de G. Washington, ambos são “servos perigosos e amos temíveis”.
SEM TESTES
Para os defensores da realidade do TDAH, a hipótese da “construção social” do transtorno se apoia numa limitação real da psiquiatria e na incompreensão da natureza dos sintomas com que ela lida. Em seu jargão, eles são de tipo “dimensional”, não “categórico”.
Em outras palavras, querem dizer que os 18 quesitos apresentados mais atrás procuram delimitar, num contínuo de comportamentos variados, e com o máximo de objetividade possível, a faixa de manifestações socialmente sancionadas como patológicas ou intoleráveis. Não há exames de sangue, testes genéticos ou ultrassonografias para diagnosticar categoricamente o TDAH. “Não existe o grupo dos ansiosos e dos não-ansiosos, dos atentos e dos desatentos. Sintomas atencionais de hiperatividade qualquer pessoa vai ter em situações de estresse, de conflito, de cansaço”, concede Rohde. “A diferença é que indivíduos com TDAH têm isso como marca registrada, faz parte do seu dia a dia.”
Há estudos com pares de gêmeos indicando que o TDAH independe, em grande medida -80%, segundo Rohde-, do modo como os jovens são criados. Vários outros relacionam o transtorno com genes envolvidos na regulação de neurotransmissores e no desenvolvimento deficiente de áreas do cérebro. Mas não se formou consenso sobre eles, muito menos para padronizar exames. O fato de não existirem testes, contudo, não significa que o transtorno não seja real, que não tenha base fisiológica. Ausência de evidência não é evidência de ausência, poderiam dizer.
CALVINISMO
“Depressão também não tem correlato biológico, mas ninguém duvida que a depressão exista. As pessoas se matam”, pondera Polanczyk. O sistema nervoso é complexo, e o acesso ao cérebro para estudo, muito mais difícil que a outros órgãos. “Na psiquiatria, estamos muito atrás da medicina como um todo.”
Como disse outro médico do Rio Grande do Sul, Olavo Amaral, que comentou o estudo de Rohde e Polanczyk em carta aos editores do “American Journal”, “o conceito de transtorno e seus critérios diagnósticos são construções sociais por definição”.
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Os defensores do TDAH tampouco se incomodam com a acusação de serem propagandistas remunerados pela indústria farmacêutica. O grupo de Rohde recebe financiamento de pesquisa das empresas Bristol-Myers Squibb, Eli Lilly, Janssen-Cilag e Novartis. O psiquiatra também dá palestras sob patrocínio das empresas, mas declara que a remuneração pessoal por serviços prestados à indústria não ultrapassa US$ 10 mil anuais.
O mesmo argumento desconfiado, segundo ele, pode ser voltado contra os inimigos do TDAH. “Recebo pacientes que faziam psicanálise e que, quando melhoram os sintomas com medicamentos, se sentem desmotivados a seguir com a psicanálise”, diz Rohde. “Vai me dizer que não existe conflito de interesse em manter o cara no consultório dele por anos?”
Em 2008, o Centro Hastings, nos EUA, dedicado a questões de bioética e políticas públicas, organizou seminários sobre os controversos distúrbios emocionais e comportamentais em crianças, como o TDAH. A discussão resultou num artigo que dá o que pensar sobre a querela dos construcionistas com os psiquiatras.
O título é: “Fatos, Valores e TDAH – Uma Atualização da Controvérsia”. Os autores, Erik Parens e Josephine Johnston. O trabalho, que saiu no periódico “Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health” (2009), faz uma apresentação equilibrada dos dois lados na disputa bizantina. O artigo alerta para o risco de distorcer as categorias diagnósticas do DSM. Essas categorias seriam abstrações, não entidades encontradas na natureza. Mas ressalva: “Nossa descrição das complexidades e da indefinição das fronteiras não foi feita para sugerir que o TDAH não seja real. Os sintomas de TDAH podem causar sofrimento significativo em crianças, nas famílias e nas escolas”.
Diante desse sofrimento, o “niilismo diagnóstico” não seria uma opção. Só a adesão irrefletida a um calvinismo farmacêutico -que enfatiza o culto moralista do sofrimento como alternativa à solução fácil dos comprimidos – poderia servir-lhe de justificativa.
Huck Finn e Macunaíma não cairiam nessa.
Conflito de interesses: os autores desta reportagem declaram que não contaram com apoio de drogas psicoativas, exceto cafeína.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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AS DIFERENTES VOZES E OS MÚLTIPLOS SENTIDOS EM
PUBLICAÇÃO DA PÁGINA “LÍNGUA PORTUGUESA” NO FACEBOOK
Cláudio Henrique de Souza Piresi Daglécia dos Santos Pintoii
Resumo: Objetiva-se com este artigo refletir sobre as significações atribuídas à língua portuguesa, que circulam nos discursos produzidos em uma página do Facebook, direcionada a divulgar dicas gramaticais. Com base nesses discursos, mostramos os sentidos recriados no contexto sócio-histórico dos interlocutores dessa mídia. Para tanto, foi necessário realizar um estudo representativo de uma publicação que foi postada no período em que se comemora o dia do índio no Brasil. Por meio do recurso ‘linha do tempo’, conseguimos recuperar esse arquivo para selecionamos como corpus de nossa análise os enunciados de um pôster e seus respectivos comentários, os quais foram motivos de polêmica entre os usuários da página ao serem publicados nessa rede social. A fim de refletir sobre as vozes discursivas que interagem nesses enunciados, buscamos não olhar diretamente a superficialidade dos textos, mas os lugares e as condições de produção dos discursos que apontam as diferentes vozes. Esta discussão foi sedimentada na perspectiva dialógica, interacional e ideológica, tal como a concebe Bakhtin/Volochinov (1986), segundo o qual os enunciados existem em gêneros, com seus objetivos comunicacionais e estáveis e, dessa forma, são produtos da interação social e se caracterizam pela plurivalência de sentidos, e também nos estudos de gêneros textuais emergentes e comunidades virtuais (MARCUSCHI, 2004). A partir da análise desenvolvida neste trabalho, deduzimos que os discursos com os quais os enunciados mantêm relações dialógicas dão corporeidade a significações sobre a língua portuguesa, sustentando os preconceitos linguísticos e sociais enraizados na sociedade contemporânea brasileira.
Palavras-chave: Discurso. Dialogismo. Gêneros. Mídias.
i Mestrando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].
ii Mestranda pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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Abstract: This study aims to reflect on the meanings attributed to the Portuguese language, circulating in discourses produced on a Facebook page which focuses on disseminating grammar tips. Based on these discourses, we tried to show the senses recreated in the social history of these media interlocutors. For this, it was necessary to conduct an exploratory study of the publications that were posted on this page since its creation through the 'timeline' resource. We selected as the corpus for our analysis the enunciation of one of the posters and their comments that have caused polemics among members of the page. In order to reflect on the discursive voices that interact in these statements, we tried not to look directly at the superficiality of the texts, but the places and conditions of discourse production that link the different voices. This discussion has been sedimented in dialogical, interactional and ideological perspectives as Bakhtin/Volochinov (1986) conceives, in which statements exist in genres, in which are statements in genres, with their communication goals and stability, are products of social interaction and are characterized by the plurivalent senses, and also in studies of text genres and emerging virtual communities (MARCUSCHI, 2004). Based on the analysis developed in this study, we deduce that the discourses with which the statements maintain dialogical relations, give the meanings corporeity about the Portuguese language, which support the linguistic and social prejudices rooted in contemporary Brazilian society.
Keywords: Discourse. Dialogism. Genre. Media.
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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Introdução
É por meio dos enunciados que as ideologias se manifestam, ou seja, é
através da linguagem que podemos observar as relações sociais e, por
conseguinte, as ideologias produzidas na interação social. Por isso, buscamos
as diferentes vozes, pontos de vista, que sustentam o preconceito linguístico,
étnico e social que despontam na página “Língua Portuguesa” do Facebook.
Pretendemos analisar como esses sentidos são construídos nos enunciados e
de qual forma eles refratam e refletem os “pré-conceitos” mediante suas
materialidades linguísticas. Recorrendo ao recurso linha do tempo,
selecionamos a edição de um pôster que foi publicado no mês de abril de 2012,
com o seguinte enunciado: “Feliz dia do índio para você que fala ‘pra mim
fazer’”. Esta publicação, por envolver fatores étnico-linguístico-textual, foi
motivo de polêmica entre os membros da página.
A gramática tornou-se um instrumento de normatização e
homogeneização da língua, e, como resultado, tem-se um processo
classificatório e preconceituoso do que é “certo” e “errado” na língua.
Considerar a língua portuguesa falada no Brasil homogênea é prejudicial à
educação, pois o português brasileiro possui alto grau de diversidade e de
variabilidade determinadas por fatores históricos, sociais e culturais. É
necessário entender que a língua encontra-se em constante movimento de
mudança e renovação, portanto, o ensino de língua deve ser visto como uma
disciplina viva e não estática, com classificações que levam ao preconceito não
só linguístico, como o étnico e o social.
Falar em dialogismo, considerado o princípio básico do pensamento
bakhtiniano, é atrair uma variedade de categorias e conceitos. Por isso,
buscaremos nesses discursos analisar como se constituem as relações
dialógicas, o lugar espaço onde as práticas discursivas se materializam (de
natureza linguístico-discursivas) e, dessa forma, compreender as situações, as
condições de produção que geram os efeitos de sentido. Para isso, apoiamo-
nos em estudos das relações dialógicas, discurso e gêneros discursivos com
base nos pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin.
Diante do exposto, o que nos interessa, neste trabalho, é compreender
como se constituem, dialogicamente, os enunciados que nos são expostos
constantemente nesses espaços discursivos, ou seja, em pôsteres publicados
nos grupos do Facebook. E na verificação das relações dialógicas, por que e
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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como os sujeitos produzem dialogicamente os seus enunciados/discursos,
também refletimos sobre as influências dos gêneros nessa constituição.
1 Fundamentação teórica
A verdadeira substância da língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN, 2006, p. 125).
A língua é considerada dialógica, pois se concretiza na comunicação
social, na interação entre interlocutores, na qual participam sujeitos históricos
e concretos. A linguagem, portanto, é o resultado de trabalho entre sujeitos
históricos em constante interação.
O sujeito, nessa concepção de língua, é um sujeito discursivo que se
posiciona ideologicamente, conforme as crenças e/ou posições de um
determinado grupo social. Por isso, sua fala é eminentemente construída pela
dos outros (CAMPOS, 2012). Os enunciados, então, podem ser vistos como
uma resposta ativa às vozes interiorizadas, vozes sociais que estão em
circulação na sociedade.
O texto, portanto, é o “[...] produto da criação ideológica ou de uma
enunciação, [...] não existe fora da sociedade, só existe nela e para com ela
[...]” (BARROS, 2005, p. 27). Seu sentido é construído de forma dialógica em
uma situação comunicativa, em que o sujeito tem uma atitude responsiva
ativa diante do que lhe foi exposto no momento da interação. Essa atitude
responsiva do sujeito não está livre de conflitos, pois o sujeito pode não
concordar, fazer adaptações, acrescentar ou retirar informações etc.
Para explicar a questão do dialogismo, Brait (2005) propõe a análise em
duas dimensões: por um lado, aquele em:
[...] permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. [...] Por outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, se instauram e são instaurados por esses discursos. [...] (BRAIT, 2005, p. 94-95).
Pode-se observar que a primeira dimensão corresponde à
interdiscursividade – a relação de um discurso com outros discursos –, e a
segunda, que se refere ao discurso que ocorre na relação entre sujeitos, entre
o eu e o outro.
A noção de sujeito dialógico apresenta duas faces: uma individual e outra
social. Para exemplificar esta noção, recorremos à definição de palavra: a
palavra enquanto pensamento é individual, mas quando se torna
materialidade verbal, ou seja, quando é proferida, enunciada, passa a
pertencer ao social. Por conseguinte, encontra-se carregada de elos
ideológicos nos quais estão imbricadas as diversas vozes sociais. Seu sentido é
estabelecido durante o discurso e conforme contexto social-histórico-cultural.
Para o Círculo, a unidade de estudo da linguagem como atividade
sociointeracional são os enunciados, porque a utilização da língua ocorre em
enunciados escritos ou orais. Esses enunciados são eventos únicos e
concretos que se efetuam entre os integrantes de uma ou outra esfera da
atividade humana. Ainda nesse sentido, Bakhtin (2003, p. 279 ) afirma:
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.
Ao estudar a noção de gêneros, o que vai ser levado em conta são as
formas de produção desses enunciados relativamente estáveis. Todas as
esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da
linguagem, essa utilização ocorre por meio dos enunciados e estes integram
uma outra esfera da atividade humana. A nossa fala constitui-se de
enunciados, falamos por meio de enunciados e os enunciados constituem-se
em gêneros, Bakthin (2003, p. 302) afirma:
Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.
É relevante notar que os gêneros são os elementos organizadores das
atividades sociais, orientando, dessa forma, a participação dos falantes em
determinadas esferas da atividade humana. Segundo Bakhtin (2003), os
gêneros são enunciados relativamente estáveis; por conseguinte, cada esfera
da atividade humana, cada intenção comunicativa, já tem enunciados pré-
estabelecidos que podem ser modificados conforme a intenção comunicativa,
por isso são considerados relativamente estáveis. Os gêneros ajudam que
compreendamos as ações dos outros, para que sirvam de referências para as
nossas próprias ações. É através dos gêneros que agimos pela linguagem.
Os sons, as palavras e as orações são as unidades da língua,
sozinhas/isoladas, fora de contexto, não possuem sentido, não se tornam um
ato comunicativo, visto que se encontram fora de uma situação comunicativa.
Mas as palavras ou orações, quando representam a intenção do locutor e
provocam no interlocutor uma atitude responsiva, estando situadas em uma
situação comunicativa, se tornam enunciados.
Os avanços na área da tecnologia digital possibilitam o surgimento de
novos gêneros em ambientes virtuais que caracterizam as novas formas de
comportamento comunicativo em uma sociedade pós-moderna. Para
Marcuschi (2004, p. 13), “[...] a Internet é uma espécie de protótipo de novas
formas de comportamento comunicativo”.
Considerando que os gêneros são formas sociais e pré-estabelecidos de
comunicação e que se encontram inseridos em uma cultura, pode-se afirmar,
conforme Marcuschi (2004, p. 20), que “[...] o meio eletrônico oferece
peculiaridades específicas para usos sociais, culturais e comunicativos que não
se oferecem nas relações interpessoais face a face.” Marcuschi (2004, p. 20)
aponta que o sucesso dessa nova tecnologia “[...] deve-se ao fato de reunir
num só meio várias formas de expressão, tais como, texto, som e imagem, o
que lhe dá maleabilidade para a incorporação simultânea de múltiplas
semioses, interferindo nos recursos linguísticos utilizados”.
Diante deste contexto de práticas comunicativas na mídia virtual, temos
o Facebook, fundado em 2004. Trata-se de uma rede social em que cada
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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participante tem um perfil, no qual seus dados pessoais, fotos, vídeos, links,
comentários etc. podem ser disponibilizados para que outro membro tenha
acesso. Os membros dessa rede podem interagir entre si a partir dos
comentários sobre os pôsteres, ao inserir comentários, curtir, compartilhar
etc. É uma ferramenta que permite a inserção de textos orais e escritos,
imagens, sons etc.
2 Caracterização do gênero “pôster” do Facebook
Os gêneros do discurso se constituem em sua mobilidade e
dinamicidade. Todo sujeito, portanto, ao falar e agir, repete falas e ações
realizadas por si mesmo ou por outros. Além de repeti-las, os sujeitos também
as recriam, adaptando-as às circunstâncias únicas e concretas de acordo com
o contexto ao qual se inserem (BAKHTIN, 2003).
Os pôsteres do Facebook, assim como outros gêneros discursivos
digitais, por exemplo, blogs, e-mails, chats etc. aparentam analogias em
relação à interação entre os seus interlocutores por ocorrerem no mesmo
espaço e talvez em um mesmo período de tempo, a depender da
conectividade entre os seus pares. Ao serem publicados, os interlocutores
podem assumir, de imediato, uma postura responsiva, e esse diálogo ocorrer
explicitamente (quando o interlocutor apresenta a sua responsividade por
meio de comentários no suporte reservado a esse objetivo) ou implicitamente
(quando a responsividade ocorre constitutivamente, ou seja, não mostrado
por meio dos comentários efetuados diretamente na rede) dessas páginas.
A autonomia enunciativa que os interlocutores possuem para produzir
os seus enunciados não são mediadas por nenhuma esfera instituída
socialmente e temporalmente, visto que os pôsteres são gêneros que não têm
uma periodicidade determinada, ou seja, o interlocutor pode a qualquer
momento publicar quantidades ilimitadas, sendo que essas publicações não
têm validade prevista.
Dividindo o espaço com outros gêneros nessa rede social digital, o
pôster se situa com uma relação temática e axiológica a respeito de: fatos
cotidianos, temas humorísticos, expressão de sentimentos pessoais,
narrações da vida estudantil, profissional e social de seus usuários,
mobilizações sociais, combate ao preconceito, apologia à discriminação social,
religiosa e étnica, propagação de ideologias políticas, científicas e religiosas
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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etc. O horizonte temático do pôster refere-se a acontecimentos do dia a dia e
a fatos sociais que estão relacionados ao universo das redes sociais digitais,
mas que estão vinculados ou dizem respeito também à esfera do cotidiano do
interlocutor. É a partir desse lugar que ele se posiciona.
3 Análise do corpus
Para refletirmos sobre o preconceito linguístico, étnico e social,
marcados ideologicamente nos enunciados das redes sociais, analisaremos o
discurso enunciado em um pôster publicado na comunidade que faz parte do
nosso corpus de pesquisa, “Língua Portuguesa”, no Facebook. Partiremos da
análise dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa no gênero pôster
e comentários, mas não nos deteremos a uma análise exaustiva das
propriedades do texto e de suas formas de composição.
Cabe ressaltar que essa análise não esgotará os efeitos de sentido dos
discursos enunciados no pôster, nem em seus comentários; trata-se apenas de
uma tentativa de observar onde ele se faz presente, em que medida e como
esses discursos são construídos no imaginário social dos usuários dessa rede
social na internet.
Abaixo segue o pôster selecionado para a análise (exemplo 1):
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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O sujeito enunciador ocupa a posição social de professora de Língua
Portuguesa e de idealizadora dessa rede intitulada Língua Portuguesa, cujo
pôster foi publicado e tem como objetivo fornecer informações atuais, dicas
gramaticais, entretenimento, entre outros fatos relacionados à Língua
Portuguesa. Devido à sua grande notoriedade e repercussão entre os usuários
do Facebook, a comunidade se transformou em uma grande ferramenta de
transmissão de informações e solução de dúvidas.
Vale salientar que uma posição sujeito é dialógica por dividir diversas
vozes sociais. Na medida em que permite apreender sequências delimitadas
que mostram claramente a sua alteridade, no pôster acima, a
heterogeneidade mostrada se apresenta em forma de um discurso que
reafirma o preconceito linguístico e entre etnias. As marcas linguísticas estão
explícitas nos enunciados do pôster, pois, ao enunciar “como não comentar”
e “Feliz dia do índio pra você que fala: pra mim fazer”, há diferentes vozes
que, mesmo ocupando o mesmo espaço, silenciam outras vozes, ou seja,
aquelas que não se adéquam ao ideal de língua proposto pela gramática
normativa. Marginalizando, excluindo, assim, todo e qualquer falante que não
participa da variação.
Além do dialogismo mostrado no fio do discurso, há também vozes
dialógicas que trabalham com a noção do dialogismo constitutivo, sendo que
este não deixa marcas visíveis no fio discursivo. Nesse caso, os enunciados do
pôster se apresentam em relações dialógicas com as vozes discursivas
anteriores, ou seja, as que perpassam o imaginário social sobre o bom uso da
língua e sua relação com os indígenas que não a dominam. Além disso, os
enunciados também têm o seu modo de orientação para o interlocutor e para
a sua responsividade.
Esta página do Facebook se direciona a públicos distintos, àqueles que
defendem a norma, aos que a "violam" e aos que se interessam, mas não
assumem uma postura visível no fio discursivo. Aqueles que defendem a
homogeneidade linguística se tornam engajados ao discurso do enunciador.
Ao mesmo tempo, esse discurso se distancia dos usuários que não se
adéquam à norma culta da língua. Esse distanciamento é manifesto por meio
da posição valorativa e em certos traços estilístico-composicionais, como o
uso do pronome você e não o nós. Neste caso, no movimento dialógico de
engajamento, os interlocutores não levam diretamente todos os leitores à
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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posição de aliados ao seu discurso, pois excluem aqueles que possivelmente
não se adéquam à norma padrão.
Já em relação ao movimento dialógico de refutação, o locutor antecipa
as possíveis reações-respostas de objeção que o interlocutor poderia
contrapor ao seu discurso, abafando-as. Nesse sentido, o autor provoca o
silenciamento. Esse movimento pode ser observado no enunciado no topo do
pôster, quando o autor diz: "como não postar". A refutação consiste na
antecipação do autor de possíveis críticas que receberia de alguns leitores
mais críticos em relação à língua. Ao enunciar, o locutor enfatiza que não
poderia abafar o seu discurso, teria que ser expresso, embora fosse contra a
vontade de alguns, mas representaria para o autor uma realidade inevitável.
Em relação ao movimento ideológico, o enunciador apresenta o seu
ponto de vista em relação à sua posição conceitual de língua homogênea
como sendo a verdade absoluta à qual os interlocutores devem se sentir
compelidos a aderir. A opinião de um sujeito que assume a posição de
professora de português torna-se uma voz autorizada pela sociedade para
definir o que é “certo” ou “errado” em relação ao “bom uso da língua”. Essa
voz se apresenta como uma relação de imposição sobre os interlocutores
dessa página na rede social.
O preconceito étnico-social que é perpassado no pôster consiste na voz
que o enunciador assume ao impor uma posição valorativa que
ideologicamente deprecia a imagem do índio na sociedade brasileira, pois ao
“violar” as regras da gramática normativa, o sujeito é comparado a um índio.
Dessa forma, a imagem do índio é negativada e depreciada.
Grande parte dos usuários que participam como membros dessa rede
assumem, além de uma posição de observador e simpatizante, uma posição
conservadora em relação à língua, pois, hipoteticamente, o que eles esperam
é que essa página defenda a norma padrão, tanto na modalidade escrita,
quanto na falada, conforme vemos nos exemplos abaixo, retirados dos
comentários de alguns membros dessa comunidade (exemplo 2):
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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Dentre as centenas de comentários que foram publicados nesse pôster,
selecionamos apenas os dois acima como parte representativa da
materialidade textual-discursiva dos interlocutores que estão subordinados a
uma tradição que defende a homogeneidade linguística no Brasil. Tais sujeitos
não conseguem identificar nenhum traço de preconceito linguístico, social ou
étnico. De acordo com esses enunciados, da maneira que foi publicado, o
pôster não transgrediu as normas do bom senso nem da ética. Não houve
nenhuma manifestação de preconceito ou desvalorização de etnias ou classes
sociais.
Mas também há aqueles que participam dessa página para obter
conhecimentos a respeito da norma padrão da língua culta. O que
provavelmente os motiva a participar é a relevância das informações que são
ali transmitidas, ou seja, as dicas gramaticais, como vemos na seleção dos
comentários abaixo (exemplo 3):
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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Como vemos nessa seleção, o conteúdo, aparentemente inocente do
pôster, suscitou a reflexão de muitos membros da página, que perceberam
nos discursos enunciados boas doses de preconceito sociolinguístico.
Observamos também no exemplo supracitado, no comentário em destaque,
enunciado pelo autor do pôster, que, apesar de assumir uma posição na qual
adota a gramática normativa como objeto de seu discurso e como tema de
debate, as formas de se falar/escrever “corretamente” a língua portuguesa
em quase todos os seus enunciados, o enunciador tenta se desvencilhar de
sua posição normativa, devido à atitude responsiva de seus interlocutores.
Ao justificar-se diante das críticas dos seus interlocutores, o autor
propõe que, ao enunciar em seu pôster, utiliza-se do gênero humorístico,
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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apenas para torná-lo leve e descontraído. Utilizar a estratégia de deslocar a
característica de um gênero para outro foi uma das formas que o autor
encontrou para se redimir e minimizar os efeitos de sentido causados pelo seu
enunciado entre os interlocutores. Segundo Brait (2008), o humor é um
aspecto importante para a sociedade, pois “[...] o discurso humorístico
possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou
mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem
menos críticos.” (BRAIT, 2008b, p. 17). O autor recorre ao gênero humor para
classificar seu enunciado porque o sujeito que enuncia através de enunciados
humorísticos não pode ser julgado pelo que diz. Sobre o discurso humorístico
não recaem as regras forjadas durante a história e que se perpetuam e recaem
sobre outros discursos.
Considerações finais
As representações ideológicas sobre o mito da homogeneidade
linguística que circulam no imaginário social são resultados de um longo
processo de desprestígio dos falantes que não dominam a variante padrão.
Sendo assim, algumas vozes discursivas presentes no pôster corroboram para
perpetuar os preconceitos linguísticos, étnicos e sociais.
A construção composicional dos gêneros da internet, mais
especificamente as redes sociais, compõe-se de uma orientação valorativa que
está presente em enunciados já-ditos. No gênero pôster do Facebook, que foi
analisado, vimos a multiplicidade de sentidos para todos aqueles discursos
que circulam no imaginário social do brasileiro em relação ao índio e em
relação à língua.
A imagem do índio que é passada para os interlocutores, por meio das
diferentes vozes sociais presentes nos enunciados do pôster, é de preguiçoso.
Nesse contexto, o índio é aquele que não aprendeu a língua dos dominadores,
ignorante, selvagem, incivilizado, sem cultura, leis, religião etc.
Apenas em um pôster foi possível identificar a multiplicidade de vozes
que estão presentes nos enunciados. Nesse pôster, podemos notar o diálogo
que ocorre entre o conservadorismo linguístico e as vozes mais liberais. São
esses os discursos com os quais o enunciado mantém relações dialógicas, que
dão corporeidade e sustentação aos preconceitos presentes na publicação do
pôster.
PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.
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REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BAKHTIN, Mikhail . Marxismo e filosofa da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, Mikhail . Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 279-302. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às Teorias do Discurso. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e a construção do sentido. 2.ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2005a. p. 25-36. BRAIT, Beth. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: ______ (Org.) Bakhtin, dialogismo e a construção do sentido. 2.ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2005a. p. 87-99. ______. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005b. ______. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée; MEURER, José Luiz (Org.) Gêneros: Teorias, Métodos, Debates. São Paulo: Parábola, 2005. CAMPOS, Maria Inês Batista. Questões de literatura e de estética: rotas bakhtiniana. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012. p. 113-149. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do circulo de Bakhtin. São Paulo: Parábola. 2009. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Àtica, 2008. MARCUSCHI, Luiz Antônio. XAVIER, Antônio Carlos (Org.) Hipertexto e Gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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RETÓRICA DA IMAGEM E TEMÁTICA DA UNIÃO NO DISCURSO ICÔNICO
EM TORNO DA TOMADA DE POSSE DE ALASSANE OUATTARA
Dorgelès Houessoui
Resumo: Alassane Ouattara tomou posse como presidente da República da Costa do Marfim em 21 de Maio de 2011. Na memória dos marfinenses, nenhuma tomada de posse presidencial precedente mobilizou tanto interesse nacional e internacional, nem dos fundos financeiros, nem do mundo, nem da imaginação e nem mesmo de imagens... Partindo da ideia de que “a imagem é apenas uma organização filtrada ‘dos dados do mundo’, uma interpretação, um discurso ‘sobre o mundo’, [...] um agrupamento de sinais, [...] construída, semiotizada, deslocada, relativa e contextualizada” (JOLY, 2002), propomos nesse artigo uma “palestra, aula, algo assim” semiológica de algumas imagens associadas à tomada de posse de Alassane Ouattara em vista de estudar a função publicitária delas. Se, como lembra Joly (1994), “a plasticidade das mensagens visuais constitui um nível de significação para a parte inteira que interage com os outros níveis - o icônico, o linguístico e o institucional -, para produzir uma mensagem global”, nos esforçamos para identificar evidências da conformidade dessas imagens ao tema da união sob o signo linguístico que estava presente na tomada de posse. Trata-se de descrever o processo pelo qual um simples chamado à união, devido à expressão da autoridade institucional, que lhe é contíguo, é definido de imediato como objeto de união.
Palavras-chave: Imagem visual fixa. Semiologia da imagem. Semiótica visual. Signo icônico. Signo plástico.
Abstract: Alassane Ouattara was inaugurated as president of the Republic of Côte d’Ivoire on 21 may, 2013. Within Ivorian memory, no inauguration ceremony has ever mobilized so many national and international interest, neither funds, nor crowd, imagination, let alone images… From the stand point that image is nothing but “a filtered organization of data of the world – a set of built semiotized, shifted, related an contextualized signs” (JOLY, 2002), we suggest in this article the semiological reading of some images associated with the inauguration of Alassane Ouattara. If as Joly states “the plasticity of visual messages represent a level of meaning as a whole, that interacts with the others that are iconic, linguistic and institutional to yield a global message” (Joly 1994: 104), we afford to work out the relevancy of these images to the theme of gathering through the linguistic sign on which the inauguration focused. Then we describe the process whereby a simple call for gathering, thanks to the expression of the institutional authority, proves first of all as the object of gathering.
Keywords: Fixed visual picture. Semiotics of the image. Visual semiotics. Iconic sign. Plastic sign.
i Doutorando pela Université Félix Houphouët Boigny d’Abidjan-Cocody, Costa do Marfim. E-mail: [email protected].
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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Uma espetacular tomada de posse...
A tomada de posse de Alassane Outtara para a liderança da Costa do
Marfim é anunciada pela imprensa como um evento histórico e descrita mais
tarde como sendo fenomenal. Consolidou-se como um evento anunciado por
dois comerciais que foram transmitidos repetidamente por dois canais da
televisão nacional e cartazes espalhados pelas principais ruas das cidades de
Abidjan e Yamoussoukro. O gigantismo desse evento se mantém desde a
escolha do lugar para sua realização: a sede da fundação Félix Houphouët
Boigny (fundação FHB), dedicada à pesquisa pela paz, que conta dois mil
lugares, mas que abriga bem mais.
A grandiosidade se manteve na qualidade e no número de convidados,
entre os quais se encontravam cerca de vinte chefes de Estado e
representantes de governos africanos, como o presidente francês Nicolas
Sarkozy e seu ministro de relações estrangeiras Alain Juppé, e mesmo o
secretário geral das Nações Unidas Ban Ki-moon. Às autoridades políticas, se
juntaram grandes empresários que assumiam o papel de autoridades
econômicas, como Martin Bouygues (CEO do grupo BOUYGUES), Vincent
Balloré (CEO do grupo BALLORE) e Alexandre Vilgrain (presidente do conselho
francês de investimentos na África e CEO do grupo agroindustrial SOMDIA’A).
Havia ainda um grande número de participantes que não conseguiram
um lugar na sala da cerimônia e ocuparam os jardins paisagísticos preparados
para a ocasião e equipados com telas gigantes: uma multidão veio manifestar
sua alegria na cerimônia de posse, que contava com dezenas de milhares de
homens, mulheres e jovens. Além disso, notava-se a ressonância internacional
desse momento histórico por meio dos dispositivos de comunicação que o
cercavam. A maior parte das mídias internacionais lá estavam representadas.
Um site oficial lhe foi dedicado na internet, apresentando menus como “o
comitê de organização”, “o programa”, “o histórico”, “o presidente”, entre
outros. Enfim, notaremos a diversidade de produtos derivados do evento que
estampam as cores nacionais e a mensagem que anunciava a tomada de
posse. Esses produtos iam de acessórios vestuários (camisetas, pagne1,
1 Nota da tradutora: pano retangular, colorido, com estampa florida, que pode servir como
vestuário, ser usado em peças de decoração e em muitos outros objetos. Durante sua produção,
homens batem as fibras, enquanto as mulheres são responsáveis pela decoração do tecido. Hoje
em dia, a técnica foi modernizada e são utilizados quatro tipos de fibra têxtil: algodão (mais
comum), seda, lã e ráfia. Em suma, é um tipo de tecido pertencente à cultura africana.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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bonés…) a embalagens de produtos alimentícios e de garrafas de água
mineral, passando por flâmulas e bandeirolas.
Em suma, a febre e a excitação foram tão grandes para aquela tomada
de posse que o dispositivo de segurança montado bateu todos os recordes,
porque contou com as forças de paz da ONU, as Forças Republicanas da Costa
do Marfim, efetivo da força francesa Licorne e do exército de Gana. O
gigantismo do evento impõe que se decifrem os sentidos, os ditos e os
implícitos. Assim, para tal fim, este estudo aborda a dimensão semiótica da
comunicação visual sobre a tomada de posse, antes dela e durante ela.
1 O pré-discurso visual
Precedendo o discurso da tomada de posse propriamente dita, a
logomarca dessa cerimonia é portadora de uma temática de união, cuja cor
vem em verde e em laranja. Neste artigo, interessamo-nos particularmente
pelas variantes da cor laranja.
1.1 Abordagem icônica
1.1.1 A construção ou o itinerário de leitura
O primeiro cartaz é dominado pelas linhas horizontais. Elas impõem uma
leitura estática, ou seja, realizado em uma única linha e orientado pela
dimensão paisagística do enquadramento. E o mesmo se aplica ao segundo
cartaz.
Figura 1 – Cartaz de divulgação 1 da tomada de posse do presidente marfinense Alassane Outtara.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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Figura 2 – Cartaz de divulgação 2 da tomada de posse do presidente marfinense Alassane Outtara.
1.1.2 O enquadramento
A primeira imagem (Figura 1) é enquadrada horizontalmente e
organizada em torno de dois níveis: o texto no fundo e a cor laranja sólida. O
texto comporta seis unidades de fontes e de tamanhos diferentes em sete
linhas e é estruturado em torno de três superfícies. A primeira é constituída de
um quadro retangular contendo o essencial semântico e icônico da mensagem
textual com os dois maiores tamanhos de fonte. A frase “La Côte d’Ivoire” (“A
Costa do Marfim”) está acima do adjetivo “rassemblée” (“unida”) que possui
expessura gráfica e está distribuído ao longo da frase que está acima dele.
Ambos estão em letras maiúsculas. A segunda superfície constitui um quadro
branco que comporta três unidades de cor verde divididas sobre três linhas, as
duas primeiras “le 21” (“o 21”) e “mai” (“maio”), em letras minúsculas,
possuem expessura mediana quando comparadas à terceira “2011”, que
constitui o carácter dominante. A última linha apresenta “Yamoussoukro” em
letra maiúscula e em cor laranja. Essa é a menos importante dessa superfície e
de todo o texto em termos de tamanho e de espessura gráfica. A última
superfície é linear e sublinha as duas primeiras superfícies, comportando uma
frase nominal em letras maiúsculas anunciando um evento: “INVESTITURE DE
DU PRÉSIDENT DE LA RÉPUBLIQUE” (“TOMADA DE POSSE DO PRESIDENTE
DA REPÚBLICA”). A disposição do texto direciona invariavelmente para a
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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seguinte leitura: “A Costa do Marfim unida, 21 de maio de 2011, Yamoussoukro,
tomada de posse do Presidente da República”.
A segunda imagem (Figura 2) é também enquadrada horizontalmente e
comporta cinco níveis:
• Texto de cima: sendo anafórico ao texto do primeiro cartaz, nota-se
uma mudança na cor da fonte do quadrado branco que de verde passa
ao laranja, exceto pelo nome da vila de Yamoussoukro, que, de laranja
no primeiro cartaz, passa à cor verde;
• A fundação FHB, na profundidade do campo, é revestida de uma
auréola importante;
• Os jardins da dita fundação;
• Um signo icônico representando uma multidão de homens, mulheres e
crianças colocada em quatro fileiras, em que a primeira fileira conta
com nove personagens alinhadas regularmente ao centro e de cor
branca. A segunda fileira oferece a ilusão de inúmeras personagens,
que estão na cor laranja e em tom claro. As terceira e quarta fileiras
apresentam as mesmas estruturas e são de tom mais escuro. Essas
personagens são dobradas pelas sombras que se projetam e que estão
paralelas aos raios da auréola que reveste a fundação FHB;
• Uma unidade textual em letras maísculas anuncia o evento: “TOMADA
DE POSSE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA”.
1.2 Abordagem Iconográfica
1.2.1 Simbólico2
O branco e o cinza
O branco é universalmente associado à luz diurna e às conotações que a
ela são associadas e, na maior parte dos casos, dá valor aquilo ao que está
relacionado. Paradoxalmente, o branco é também associado ao além e ao luto
em algumas culturas. No contexto dessa imagem, o branco pode definir a
pureza ligada ao renascimento da Costa do Marfim a partir da tomada de
posse, depois de um período de dificuldade pela guerra que toda a nação
experienciou. A tomada de posse anunciada se investe então de valores
2 Todo o simbolismo das cores apresentado neste artigo é retirado de J. Peyresblanques (1998).
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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construtivos. Ela trata do renascimento como de um dia novo que se ergue,
mas também da celebração do luto das vítimas da crise cujo sacrifício não terá
sido em vão, visto que resulta nessa dita tomada de posse. A vetorização
negativa do branco é comum em várias civilizações, mas ela se determina por
contraste a outras cores. O branco poderia então simbolizar, dentro da
temática do luto, todos os desaparecidos durante essa crise. Essa hipótese
tende a confirmar o valor da “união” dessa tomada de posse, pois ela se torna
o lugar de uma homenagem aos sobreviventes e aos mortos. O cinza do
edifício que está associado ao branco traduz implicitamente essa ambivalência
semântica do branco.
O Amarelo e o verde
O amarelo e o verde simbolizam a riqueza e a fertilidade. Assim como o
verde não está associado apenas à riqueza material, mas também à felicidade
e à vida, entendida como ouro, o amarelo divide com o branco a “semeação”
da luminosidade. Para este fim, carrega os valores ideológicos deste último
que ligam o homem à riqueza interior e exterior. Nesse contexto da tomada
de posse, diz-se que o amarelo traduz a renovação da Costa do Marfim por
meio da qual essa nação retomará o progresso econômico e encontrará seu
status - como um argumento dóxico o sublinha - de “país abençoado de
Deus”; prosperidade espiritual, mas também de felicidade material. Além
disso, o laço entre o amarelo e a tomada de posse, cujo jogo é uma
transferência de poder, se aproveita do simbolismo dessa cor que é associado
às vezes ao poder divino, mas também aos homens cujo poder é investido por
eles mesmos.
O amarelo enquanto símbolo de riqueza é também associado aos valores
negativos, como a ganância e o sadismo3. Um poderia gerar a inveja, o ciúmes,
3 “Há ambivalência porque a cor dos grãos maduros de trigo, milho, milho miúdo... é a cor amarela que anuncia o outono. Ela é seca como o ouro que provoca inveja desejo e prazer. Na mitologia grega, as maçãs de ouro das Hespérides são símbolo de amor e harmonia, mas a Guerra de Tróia foi provocada por uma maçã dourada, maçã do orgulho e da inveja. Para o Islã, amarelo é associado à traição e decepção. Na China, as fontes amarelas levam ao reino dos mortos. No teatro de Pequim, os atores com maquiagem amarela representam a crueldade, a dissimulação, o cinismo. Entre os cristãos, o amarelo também significa traição: Judas é mostrado com um vestido amarelo, bem como os judeus. É por isso que, em 1215, o Concílio de Latrão colocou uma rodela amarela em suas roupas, retomando a ancestral estrela amarela que é uma sinistra memória [...]” (PEYRESBLANQUES, 1998, p. 5-6).
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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a traição, a discórdia e o outro as atrocidades de uma guerra. Se o amarelo
evoca a traição nascida do fato da conscupisciência e da ganâncida ávida, esse
cartaz da tomada de posse não parece fazer ilusão a isso. A codificação
semiótica proíbe tal perspectiva, é necessário interrogar o contexto pré-
discursivo para divulgar um relatório sobre ele. Esse é de fato o ponto no qual
a tomada de posse constitui um bem, uma riqueza tanto tão moral quanto
material - pois simboliza o poder da luxúria ligada à sua conquista que
conduziu o país à guerra. Isso concluído, convém jogar uma luz espectacular
sobre este cenário, restaurar os valores e as virtudes da instituição
presidencial que, apesar do doloroso passado recente, deve continuar a ser
uma fonte de desejo.
O Laranja
O laranja está assoiado às chamas, a suas oscilações ondulatórias, ao
movimento que elas geram e que traduzem uma dança constante. É o símbolo
da alegria. Nesse contexto da tomada de posse, o argumento da alegria se
sobressai. Trata-se literalmente de uma celebração e sua dimensão festiva é
sustentada por seu status de evento nacional. Mas é igualmente possível
deduzir que o laranja traduz a união mística do povo e da soberania na
inscrição da tomada de posse no teatro da fundação FHB. Trata-se de fato de
uma desapropriação da identidade individual do sujeito investido que é levado
a assumir uma identidade institucional e coletiva que se materializa nela e com
ela. É a cor dos monges realizados, assim encontra-se com o laranja a teoria
dos casamentos místicos do homem finito com a divindade infinita que por
deslize dóxico – pois se acredita que o poder vem de Deus – pode ser
assimilado à comunhão mística entre o povo e o soberano.
O laranja também pode ser colocado em relação a valores negativos. A
infidelidade e a traição podem notadamente ser assimilados ao laranja,
segundo Peyresblanques (1998). A imagem de infidelidade e do engano,
embora seja impossível deduzir a codificação ou intenção comunicativa do
enunciador, apresentam-se insidiosamente e como por um curioso acaso em
relação à essa cerimônia que manipula as massas tão queridas ao discurso
político.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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1.2.2 Figuras de retórica
1.2.2.1 Figuras de contiguidade: construção ropálica4 e metonímia
A disposição das unidades textuais do primeiro plano, em particular
aquelas da primeira superfície, sugere uma composição gráfica que nos parece
proceder da construção ropálica. De fato, se o sintagma nominal “a Costa do
Marfim” estivesse em um tamanho e em uma expessura gráfica semelhantes
ao do adjetivo “unida”, essas duas unidades textuais não estariam na mesma
medida visual, quer dizer no mesmo comprimento, porque de fato elas
diferem quanto à métrica vocal (cinco sílabas para a primeira contra três para
a segunda). Assim, a opção de as dispor sobre uma mesma medida de forma a
serem alinhadas verticalmente na primeira e na última letra de cada unidade
textual da primeira superfície visa diminuir a expessura do traço do sintagma
nominal “a Costa do Marfim” bem como seu tamanho. Isso resulta em um
efeito de compressão ou de aglomeração que evoca a ideia da união sugerida.
A forma dos caracteres dessas duas unidades textuais é portadora do senso
dessa mesma sequência textual. Definimos essa construção semântica como
relevante para o procedimento ropálico cujo senso etimológico é próximo da
codificação que acabamos de descrever. Do grego, significa na prática “em
forma de clava, cujo metro aumenta ou diminui na medida dos diferentes
diâmetros do objeto representado”.
Além disso, uma metonímia da parte pelo todo é perceptível no segundo
cartaz. A multidão ilustra a sequência textual analisada acima, é anônima
porque não tem as formas humanas, não especifica a sua identidade. Essa
imprecisão é um convite ao leitor dessa imagem a se reconhecer nela. A
metonímia mantém aqui a assimilação dessa multidão à integralidade do povo
marfinense.
1.2.2.2 Figura por analogia: A metáfora
A disposição central das unidades textuais do primeiro cartaz constitui
uma metáfora de orientação (MORIER, 1989, p. 1010), que tem o centro como
ponto nevrálgico, como ponto de evidência absoluta e como o primado do
coração. Tal cartaz traduz então a evidência da união, presente no coração de 4 Nota da tradutora: ropálico - verso grego ou latino que começa por monossílabo, tendo cada uma das palavras seguintes uma sílaba mais que a anterior. Ropálico é um adjetivo que provém do latim medieval: rhopalicus.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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todos os marfinenses, e que não constitui um projeto, mas um fato já
consumado por antecipação cronológica, e que a tomada de posse do
presidente somente confirmará.
O segundo cartaz (Figura 2) apresenta as mesmas disposições devido à
anáfora contida nas unidades textuais do primeiro cartaz (Figura 1). Uma
segunda metáfora, assimilando o poder a um desses símbolos-chave, ou seja,
o sol, é perceptível por meio da auréola e dos raios luminosos que são
emitidos da fundação FHB. A porta une uma configuração metonímica
evidente do lugar para o poder que ele representa contextualmente aqui: a
tomada de posse. Trata-se, portanto, do lugar da tomada do poder solene. A
temática do sol nascente retoma estranhamente nesse cartaz a campanha,
atualizada neste momento da tomada de posse, pois o sujeito eleito Alassane
Ouattara é vestido de uma auréola resplandescente. A relação intertextual
dessa metáfora também pode ser afirmada em uma passagem do discurso de
posse de Paul Yao N’dre que, citando Ahoua N’guetta, afirmava: “você deve
ser o senhor presidente: ‘O sol nascente e resplandescente acima da colina que
clareia o navio marfinense’”. Trata-se de uma temática que agrada o sujeito
empossado, pela qual ele se reapropria dos valores de pureza, bondade,
orientação, unidade, valores doxicamente associados à utilização da auréola.
Figura 3 – Cartaz de campanha presidencial do então candidato Alassane Dramane Outtara (ADO).
1.2.2.3 O paradoxo
Duas fontes luminosas estão em conflito na segunda imagem. A
primeira proveniente da Fundação FHB justifica as sombras orientadas para o
exterior. Essa iluminação é uma metáfora do sol que se levantou há pouco. A
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segunda fonte luminosa é extra figurativa e está fora desse âmbito. Essa fonte
anônima ilumina a primeira fileira da grandeza figurativa que representa a
multidão e orienta as sombras das personagens representadas no interior.
Isso explica o degradé dos tons indo do branco ao laranja escuro na
profundeza da multiplicidade. Se a multidão assim apresentada na disposição
global da imagem é sugerida pelo enunciador como uma expressão icônica e
autônoma da união, ela é tomada a partir do jogo paradoxal da claridade entre
o eixo visual do enunciador e a profundidade da imagem. De fato, as nove
personagens em primeiro plano e a fileira em sequência são projetadas para o
olhar do enunciatário, se acreditarmos que claridade provém delas e também
na disposição de seus pés. Aqueles que estão ao fundo, por outro lado,
parecem cativados pela majestade do edifício e se constituem como um polo
enunciativo; pelo menos é o que parece propor a similaridade cromática entre
esses e os jardins do instituto. Eles, portanto, constituem corpo com o evento.
Assim a grandeza figurativa das personagens comporta dois
subconjuntos determinados pelo ponto de vista. De uma parte, existem as
personagens que, fixando o enunciatário, o convidam a se juntar à união
suscitada pela tomada de posse e, de outra parte, existem aqueles que, já no
espetáculo da tomada de posse aureolada, assistem ao evento na mesma
direção que o destinatário. Essa construção constitui uma representação da
tomada de posse como um espetáculo mágico e majestoso.
É percebido em definitivo um duplo paradoxo na segunda imagem. Um é
relativo às iluminações associadas à espetacularidade (auréola) do evento, à
espetacularização do evento, o que cativa os projetores; o outro está ligado ao
posicionamento espacial das personagens colocados de costas uns para os outros.
1.2.3 Referências culturais e mitológicas
O código cromático revela as cores da bandeira nacional marfinense e,
por deslize argumentativo, a moeda nacional cujo enunciado (União -
Disciplina - Trabalho) é constitutivo do mito fundador da nação marfinense,
nascida pelo trabalho e forjada na disciplina e na união de seus pais
fundadores, como também do mito discursivo do renascimento nacional. Isso
porque a união que precedeu o nascimento da nação marfinense, e cuja
temática da união constitui um atualizador, deve igualmente presidir o
renascimento da dita nação.
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2. Iconicidade da tomada de posse
Uma grande diversidade de imagens celebra a tomada de posse
propriamente dita. Limitamos nosso trabalho a quatro sinais icônicos em
razão de seu carater original: o pagne oficial da tomada de posse; o rótulo de
uma garrafa de água mineral; os diversos brindes, dentre os quais os bonés
nos interessam (vide Figura 4). Podemos reduzir a expressão icônica dessa
tomada de posse a duas modalidades: a da vestimenta e a do alimento.
Conduzimos, assim, nossa análise com base nas fotografias extraídas do
filme da tomada de posse de Alassane Outtara, difundidas em vários sites na
Internet5 e que dão noção da dimensão da celebração da tomada de posse
que carregava a temática imperativa da união.
Figura 4 – Fotografias extraídas do filme da tomada de posse de Alassane Outtara, para composição do corpus.
2.1 Abordagem icônica
2.1.1 A vestimenta
O pagne é trajado por uma jovem dama elegantemente vestida, que
usa também luvas brancas e um chapéu branco ornado com duas fitas laranjas
e verdes. In abstracto, o pagne apresenta-se sob a forma de uma trama branca
que compreende três grandezas figurativas. A primeira é um padrão de fundo
5 Especialmente, o site disponível em: <www.abidjan.net>. Acesso em: 23 mai. 2011.
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de pequeno tamanho que apresenta um punhado de mãos. As mãos agarram
umas às outras e saem da alça colorida. A alça da direita é de cor laranja, a da
esquerda é de cor verde, enquanto que as duas mãos que se apertam possuem
um leve contorno preto que deixa transparecer uma trama no fundo branco. A
segunda grandeza figurativa de tamanho médio é um mapa da Costa do
Marfim em contorno levemente escuro e cujo fundo é constituído de uma
faixa branca mediana separando os lados das extremidades oeste/nordeste de
cor laranja e leste/sudeste de cor verde. A terceira grandeza figurativa
constitui uma imagem do presidente da República. De tamanho
impressionante, comparado às outras duas, essa fotografia oval é cercada por
uma mensagem textual cuja leitura impõe dois semi-círculos sintagmáticos.
Temos, no alto e da esquerda para a direita, o sintagma “TOMADA DE POSSE
DO PRESIDENTE” e, abaixo, sempre de esquerda à direita, a designação
“ALASSANE DRAMANE OUTTARA”. A fotografia faz notar um ponto de vista e
constitui um plano aproximado. Percebe-se ali um traje escuro, uma camisa
branca e uma gravata escura, mas que exibe faixas inclinadas de tons em
degradé indo do cinza ao branco. O sujeito representado, o presidente a ser
empossado, exibe um sorriso.
Quanto aos bonés, eles reproduzem a imagem do primeiro cartaz
analisado. A imagem tem dois tons. Um branco e outro laranja. Ela representa
um zoom sobre uma multidão de participantes na cerimônia da tomada de
posse. Três personagens a constituem. Um adolescente em primeiro plano
exibe entre as mãos um formato reduzido do cartaz publicitário que anuncia o
evento, na mão esquerda um boné qualquer de cor rosa e sobre a cabeça um
boné publicitário do evento, dominado pela cor laranja. Ele mesmo está
vestido de branco. Provavelmente abaixado à sua frente está um indivíduo
cujo corpo está fora de esquadre, mas que também usa um boné publicitário
do evento. Percebe-se isso por possuir as mesmas inscrições, apesar de diferir
na cor branca, exceto a viseira que é laranja. Atrás do adolescente em primeiro
plano, há um terceiro personagem que usa o mesmo boné.
2.1.2 O alimento
Trata-se de uma garrafa de água mineral cujo rótulo constitui um cartaz.
A trama do fundo apresenta três faixas horizontais de cores diferentes. A cor
laranja está no alto, a branca no meio e a verde abaixo. Enquanto nas
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extremidades superior e inferior as faixas de cores laranja e verde são
claramente definidas pelos limites do rótulo, a de cor branca é turva e
apresenta um degradé que dá a essa faixa branca uma impressão de
desproporção quanto às duas outras faixas laranja e verde. Duas mensagens
textuais delimitam então a faixa branca. A primeira a partir do alto e até o
limite entre as faixas laranja e branca está escrita em duas linhas:
“S.E.M. o Presidente
Alassane Dramane Ouattara”
A segunda mensagem textual, abaixo, se estende sobre três linhas. Ela
forma uma linearidade paralela com a primeira mensagem e traz os sintagmas:
“Cerimônia de tomada de posse
Yamoussoukro
21 de maio de 2011”
Entre essas duas mensagens textuais e o centro da faixa branca, um
círculo de contorno escuro forte apresenta também três faixas verticais de cor
laranja, para a da direita, branca para a do centro e verde para a da esquerda.
Sobre o canto esquerdo da primeira grandeza figurativa se supõe um mapa
nacional cuja imagem do fundo é a fotografia do presidente.
2.2 Abordagem iconográfica
O pagne oficial da tomada de posse pertence à publicidade do evento. O
fato é que seu impacto está, ao mesmo tempo, na atualização, enquanto
índice de celebração da tomada de posse, e na projeção futura do que é
suscetível de constituir uma lembrança da celebração em questão. Na
verdade, pareceria incongruente considerar a tomada de posse antes da data
do evento que anuncia. E o mesmo acontece com o seu corolário, o boné;
somente sua atualização no próprio dia da tomada de posse teria sido
suscetível de fazer compartilhar o sentimento de fervor e de ligação que
rondava o evento.
É proposto ao público, como um índice de vestimenta da celebração da
tomada de posse, um uniforme, no sentido psicológico do termo,
assegurando àqueles que o vestem uma identidade coletiva e seu
pertencimento ideológico comum. O uniforme garante, assim, a toda pessoa
que o veste a certeza de constituir uma encarnação localizada e temporal do
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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código semiótico que o caracteriza. Um policial de uniforme representa,
metonimicamente, a polícia, um soldado, o exército etc. Daí, nosso interesse
em escolher uma imagem do pagne que não estivesse isolado, mas em uma
situação de atualização. Assim, a roupa da jovem mulher permite deduzir que
se trata de uma líder. Esse detalhe tem seu peso, pois ele associa diretamente
o elemento visual à cerimônia de tomada de posse. De fato, a roupa das
lideranças é bem cuidada e revela a iniciativa do comitê de organização do
evento. Trata-se, portanto, de uma voz oficial que leva a mensagem nelas
mesmas, por meio de sua roupa e da harmonia que elas exibem no conjunto,
constituindo uma encarnação ritual, localizada e temporária, do poder
presencial empossado. Na verdade, está implícito que uma organização
consegue confirmar sua seriedade, eficácia e todo o poder do presidente
empossado pela ação do comitê de organização da cerimônia, que conseguiu
uma façanha jamais obtida em uma eleição presidencial na Costa do Marfim
antes da criação de uma imagem materializada em tecido, ocupando assim o
lugar de uniforme. Na mesma ótica, o fato de o adolescente que está usando
um boné com as cores da tomada de posse ter à mão esquerda um outro boné
na cor rosa confirma que os bonés publicitários haviam sido distribuídos no
momento da cerimônia pelo comitê de organização visando agregar
esplendor ao evento. O simbólico do pagne emerge de um percurso figurativo
em quatro tempos:
• Uma personificação tende a fazer coincidir sobre um plano
sintagmático e semântico a fotografia do presidente e o desenho do
mapa nacional. Pode-se deduzir que o rosto do presidente é também
aquele da nação que ele personifica com a tomada de posse. Sua
imagem por causa dessa contiguidade se torna o símbolo da nação.
• Uma mise em abîme (técnica da imagem dentro da imagem) deixa
entrever que o sorriso da líder que veste o pagne trata-se de um eco
emocional do sorriso exibido pelo presidente. A alegria do sagrado é
assim partilhada entre o soberano e seu povo, cuja líder é uma
emanação. Se o presidente sorrindo deseja comunicar sua felicidade,
alegria e fé no futuro aos seus concidadãos, esses são, acima de tudo,
felizes de colocar no poder, por meio da tomada de posse, um homem
que encarna sua aspiração ao bem-estar.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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• Uma acumulação anafórica, nascida da multiplicidade dos punhados de
mãos em cores nacionais, sugere a pluralidade dos marfinenses que
dentro de sua diversidade se unem em torno do símbolo da pátria.
Figura 5 – Detalhe da imagem do presidente empossado no pagne vestido pela jovem líder.
Há, portanto, acumulação não de elementos diferentes, mas repetição
acumulativa do mesmo símbolo que traduz a unidade nacional em um
momento bastante propício ao da tomada de posse do presidente,
supostamente destinada a reunir todas as sensibilidades e a testemunhar a
continuidade, ao mesmo tempo, da instituição presidencial e do jogo
democrático. Além disso, o simbólico do punhado de mãos é
sincronizadamente denotativo do acordo, da amizade, da comunhão e da
confiança. Curiosa e paradoxal evolução do sentido de um gesto que, na
origem, exprimia a desconfiança dos combatentes na arena, pois estes
constatavam naquele momento que o adversário não encobria da vista de seu
desafiante uma arma mortal.
• Uma personificação da bandeira nacional marfinense, cujas cores se
cumprimentam, tende a induzir que se trata de um deslize isotópico,
seja do presidente que estende a mão a todos os marfinenses, como o
permite sua autoridade institucional, seja dos marfinenses quando se
cumprimentam em um espírito de reconciliação.
A visão perlocutória dessa imagem é, então, a de suscitar no destinatário
a adesão ao calor da tomada de posse e, portanto, a sua fidelidade
incondicional ao presidente empossado.
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O rótulo da garrafa apresentada mostra também a mesma estrutura
figurativa e argumentativa do pagne analisado. De fato, o mapa da Costa do
Marfim, cuja imagem de fundo é uma fotografia do presidente empossado,
constitui uma personificação da nação por esse último, como deixa sugerir a
tomada de posse por meio da qual as rédeas do poder executivo lhe são
confiadas.
... Uma tomada de posse espetacular
Sobre o caráter manipulativo das imagens, Serge Tisseron (1999) destaca
que “no cotidiano, estamos sempre sob a influência dos poderes vigentes e de
transformação, e isso nos conduz bem além da mera identificação de seu
significado”6. O tema da união anunciado com a tomada de posse está no
coração do sistema semiológico das imagens construído pelos organizadores
do evento que pretendem impressionar ou deslumbrar os destinatários. Ele
transparece por meio de um processo de simbolização cuja visão argumentativa
é de fazer crer que a eleição de Alassane Ouattara unifica os marfinenses que
passaram por vários anos de crise até o paroxístico da crise militar-civil pós-
eleitoral. Além desse aspecto da argumentatividade das imagens apresentadas,
é importante destacar seu caráter sem precedente na história política da Costa
do Marfim, o que merece ser mostrado como índice de espetacularização.
Primeiramente, a notificação constitucional da tomada de posse do
presidente eleito acontece somente três dias após a validação dos resultados
definitivos pelo conselho constitucional, os serviços do protocolo da
presidência não tiveram tempo para uma organização tão grandiosa. De fato,
foi a primeira vez que os cartazes foram exibidos nos grandes eixos das
capitais política e econômica, que são Yamoussoukro e Abidjan, para anunciar
a posse de um presidente marfinense. Em segundo lugar, é também a primeira
vez que a fundação FHB abriga esse evento, pois o que é de costume é a sala
dos passos perdidos da presidência da República servir de cenário à posse
presidencial na Costa do Marfim. Igualmente e em terceiro lugar, jamais os
produtos derivados de uma posse presidencial, como um pagne e brindes,
haviam sido previamente associados a esse evento.
6 http://1libertaire.free.fr/tisseron4.html
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Essas imagens participam, então, de um projeto argumentativo que visa
a manifestar, pelo espetáculo levado ao extremo, todo o poder da instituição
presidencial encarnado doravante por Ouattara. Essas imagens são
cognitivamente associadas ao ritual da tomada de posse e testemunham os
mecanismos de assujeitamento, dos quais a posse é portadora, bem como
suscitam no destinatário o sentimento de inferioridade frente à pompa de um
poder manifesto, como nota Goldberg (2010)7; fidelidade restrita ao
enfrentamento de todo o poder do presidente eleito que faz corpo com a
instituição que representa, a mais alta magistratura do Estado. Mas se o
sujeito aceita morrer em sua individualidade (simbolismo de inferioridade
assumida), o faz dentro do projeto de renascer em uma identidade coletiva,
cristalizada pelo presidente empossado. Porém, um paradoxo próprio de toda
posse é o de pretender a união de todos, embora uma minoria eleitoral se
encontre excluída dentro de tal celebração do culto da instituição
personificada. Assim, o jogo de imagens, representadas na tomada de posse
de Ouattara, sob a disfarce da celebração de uma posse, que se define como
objeto da união, é reveladora das intenções manipulativas e visa atestar a
eficácia da reconciliação nacional, apesar do abismo social que ainda está vivo
ou muito marcado.
REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques. L’image. Paris: Nathan, 1990. BAKHTINE, Mikhaïl. Le Principe dialogique, édité par Tz. Todorov. Paris: Seuil, 1981. BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie. Paris: Gallimard, 1980. CADET, C. et al. La communication par l’image. Paris: Nathan, 1998.
7 Isto ocorre “[...] porque o rito representa a atitude fundamental, verbal, gestual e a postura que pode ser reconhecida por alguém como inferior, diante da manifestação de um poder, e porque, ao lado do poder que se manifesta, o rito é o meio teatral de acreditar em uma superioridade e, assim, obter respeito e honra pela exibição de símbolos de dominação, riqueza, de realizações por vezes imaginárias, o que é menos frustrante e usado para restringir a violência real, criando ainda a aspiração por um estado mais elevado”.
HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.
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GERVEREAU, Laurent. Voir, comprendre, analyser les images. 3.éd. Paris: La Découverte, 2000. GOLDBERG, Jacques. Éthologie et sciences sociales: journées d'études interdisciplinaires autour de l'homme et de l'animal. Paris: L’Harmattan, 2010. JOLY, Martine. L'image et son interprétation. Paris: Nathan, 2002. ______. L’image et les signes: approche sémiologique de l’image fixe. Paris: Nathan, 1994. ______. L’introduction à l’analyse de l’image. Paris: Nathan, 1993. MORIER, Henri. Dictionnaire de poétique et de rhétorique. 4.éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1989. PANIER, Louis. L’émotion à la «Une»: la mort de Yasser Arafat. In: RINN, Michael (Org.). Emotions et discours: l’usage des passions dans la langue. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. PEYRESBLANQUES, Jean. Histoire et symbolisme des couleurs. In: Les rayonnements optiques et les couleurs: faits et effets. Edition INRS (Institut National de Recherche et de Sécurité), março 1998. SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. Paris: Armand Colin, 2005. TISSERON, Serge. Le mystère de la chambre claire: photographie et inconscient. Paris: Flammarion, 1999. Tradução: Isabel Cristina Michelan de Azevedo
Docente da Universidade Federal de Sergipe
E-mail: [email protected]
Revisão da tradução: Eduardo Lopes Piris
Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
E-mail: [email protected]
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA CIDADE E DE SEUS
HABITANTES EM UMA REVISTA LOCAL
Flávio Passos Santanai Márcia Regina Curado Pereira Marianoii
Resumo: Com o objetivo de observar como as estratégias argumentativas podem ser utilizadas para definir o ethos ou os ethé de uma cidade e de um povo e para tentar persuadir um auditório acerca de um determinado fato, analisamos, neste artigo, a reportagem “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, publicada na revista OMNIA em maio de 2011, em que o orador tenta convencer o público leitor de que Lampião não invadiu o município de Itabaiana por nele existirem heróis mais perigosos do que o Rei do Cangaço. A partir da análise dos argumentos utilizados no texto, desvelamos as imagens discursivas de uma cidade valente e de um povo corajoso e orgulhoso de sua história e de sua cultura. Para tanto, utilizamos como pressupostos teóricos e metodológicos os estudos da Argumentação e Retórica, da Semiótica Discursiva e da Análise do Discurso francesa.
Palavras-chave: Ethos. Persuasão. Argumentação. Itabaiana.
Abstract: Aiming to observe how the argumentative strategies can be used to define the ethos or ethé of a city and people, and also to try to persuade an audience about a fact, we analyzed, in this article, the newspaper report “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, published in the OMNIA magazine in May 2011, wherein the speaker tries to convince readers that Lampião didn’t invade Itabaiana due to the fact of other heroes more dangerous than him had already been to the city. Starting from the arguments used in the text, we reveal the discursive images of a city of a brave and courageous people proud of their history and their culture. So that, we used theorical and methodological studies of Argumentation and Rhetoric, Discursive Semiotic and Discourse Analysis of French Speech as assumptions.
Keywords: Ethos. Persuasion. Argumentation. Itabaiana.
i Graduando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil, e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC 2012-2013 e 2013-2014) no projeto “Desvendando Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros”, coordenado pela Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano. E-mail: [email protected].
ii Docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: [email protected].
SANTANA, Flávio Passos; MARIANO, Márcia Regina Curado Pereira. A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 74-88, dez.2013.
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Introdução
Este artigo vincula-se ao projeto de pesquisa do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UFS) intitulado “Desvendando
Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros”,
coordenado pela Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano mais
especificamente ao plano de trabalho “Itabaiana Cultural”, desenvolvido no
período de 01/08/2012 a 31/07/2013, que teve como objetivo principal revelar
possíveis ethé construídos em textos que retomam e valorizam a cultura local.
Itabaiana localiza-se no agreste sergipano e abriga o campus Professor
Alberto Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe, desde agosto de 2006.
A UFS-ITA integra o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo governo em
2007. Tendo em vista essa história recente, consideramos necessário conhecer
melhor a cidade e seus habitantes, o que pode facilitar a interação entre a
academia e a comunidade geral e direcionar pesquisas e ações docentes. No
nosso caso, como analistas do discurso, conhecer melhor Itabaiana e os
itabaianenses é conhecer o modo como se inscrevem nos textos, como se
mostram pelos modos de dizer, já que os textos nos oferecem um conjunto de
imagens, de representações, que simulam a situação de enunciação e que,
sem remeter aos indivíduos empíricos, dão indícios do lugar que os
enunciadores ocupam na sociedade, dentro de um contexto sócio-histórico-
cultural, e revelam os pontos de vista desses sujeitos discursivos.
Neste trabalho, analisaremos a primeira parte de uma reportagem da
revista OMNIA intitulada “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui,
mais saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana” assinada pelo jornalista e
escritor Robério Santos. Detemo-nos na parte 1 de 3 que integra a 13º edição,
publicada em Maio/2011. Nesse fragmento, o autor fala sobre o fato de
Lampião e seu bando não terem invadido as terras itabaianenses, apontando
como motivo para isso a existência, no local, de homens perigosos, como
Mata Escura. A referência a esses personagens, intencionalmente ou não, vai
evidenciar a construção das imagens de uma cidade temida e de habitantes
corajosos. Tendo como base teórica conceitos da Argumentação e da
Retórica, da Semiótica discursiva e da Análise do Discurso francesa, mais
especificamente estudos de Amossy sobre o ethos, nosso objetivo será
verificar como as estratégias argumentativas foram utilizadas para construir
esses ethé em busca da persuasão.
SANTANA, Flávio Passos; MARIANO, Márcia Regina Curado Pereira. A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 74-88, dez.2013.
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A OMNIA foi lançada em março de 2010, em Itabaiana, Sergipe, e está em
sua 28ª edição (jul/2013). Por mês, são impressos 1000 exemplares, que tem
uma circulação predominantemente local, mas possui assinantes de outros
municípios. De acordo com seu diretor, “ela é 100% produzida em Itabaiana,
desde as ideias até a impressão”, e “é mantida basicamente por
propaganda”1. O fato de a revista privilegiar principalmente histórias, lendas e
acontecimentos ocorridos na cidade é o que justifica a escolha de nosso
objeto de análise, visto que as reportagens e matérias publicadas nas edições
da OMNIA revelam muito sobre a cultura do município.
1 Itabaiana, cidade de pistoleiros?
Itabaiana é considerada a cidade dos caminhoneiros, do ouro e da
cebola. São diversas as imagens construídas desse município, no entanto uma
delas se destaca negativamente, que é a de cidade violenta. Segundo
Menezes (2010), essa má fama não surgiu agora, posto que, no decorrer de
sua história, Itabaiana teve grandes bandidos e assassinos perigosos.
Entretanto, não foi esse o motivo que acarretou essa reputação, já que em
terras circunvizinhas residiam também homens que ameaçavam a ordem
social.
O que realmente criou essa imagem foram acontecimentos dos anos 60.
Menezes conta que, nessa época, Euclides Paes Mendonça e Francisco Teles
(conhecido como Chico de Miguel) disputavam a hegemonia política do
município. O primeiro mandava e desmandava na cidade, porém, no ano de
1963, Euclides Paes Mendonça e seu filho deputado, Antonio de Oliveira
Mendonça, foram metralhados durante uma manifestação pública. Esse fato
ganhou repercussão nos principais jornais do país, a exemplo de O Estado de
São Paulo e do Correio Brasiliense. O resultado disso, politicamente, foi a
ascensão de Chico de Miguel.
No entanto, os fatos que contribuíram para a construção desse conceito
de cidade violenta não acabam por aí, já que, quatro anos após o ocorrido,
Manuel Teles (arquirrival de Chico de Miguel) foi assassinado à queima-roupa
na porta de casa pelo pistoleiro Antônio Letreiro e a culpa do crime recaiu
1 Informações obtidas junto ao diretor da revista, Robério Santos, por meio de correio eletrônico, no dia 14/05/2013.
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sobre Chico de Miguel, que foi preso, mas logo em seguida absolvido pelo júri
por seis votos a um.
Ainda segundo Menezes, no ano de 1978, surgiu a emissora de rádio
Princesa da Serra, na intenção de denunciar os abusos de Chico de Miguel e de
seus aliados. Através das ondas de rádio, pelo estado de Sergipe e pelo sertão
da Bahia, propagou-se a imagem de uma terra sem lei, em que tudo é
resolvido na pistola. Nos dias atuais, essa má fama é sustentada pelo grande
número de assassinatos que acontecem na cidade e que são repercutidos
diariamente na imprensa local e regional.
Apesar de não ser sergipano, o nordestino Lampião é um símbolo
nacional da violência. As histórias envolvendo seu nome não são poucas no
estado e, particularmente, em Itabaiana, em que sua valentia pode ser
colocada em questionamento diante da fama da cidade.
2 Lampião, bandido ou herói?
Ao contrário do que muitos pensam, Virgolino Ferreira, vulgo Lampião,
não foi o primeiro cangaceiro da história, mas um dos últimos. No entanto,
com certeza, o que mais se destacou. Lampião nasceu no ano de 1898, às
margens do Riacho São Domingos, no município de Vila Bela, atualmente Serra
Talhada, no estado de Pernambuco. Sua família vivia do criatório, da roça e da
almocrevaria.
O sertão da região Nordeste sempre sofreu com a má qualidade de vida
e com a pobreza que o clima seco proporciona. Por conta disso, naquela
época, os habitantes não tinham oportunidades de bons trabalhos e eram
explorados. Aconteciam várias rebeliões contra esse tipo de sobrevivência e
pode-se dizer que essas foram circunstâncias propícias para o surgimento dos
grupos de cangaceiros. Até o surgimento do bando organizado por Virgolino,
o cangaço era apenas um fenômeno regional, mas Lampião, com seu
atrevimento e destemor, tornou-se uma figura presente em noticiários diários
por todo o país. Por essa razão, as autoridades sentiram-se publicamente
desafiadas a executá-lo.
Sob constantes ameaças, Lampião saía com seu bando rodando o sertão
nordestino, fugindo da polícia e amedrontando as cidades por onde passava.
Sua crueldade, no entanto, parece muitas vezes ter sido esquecida, e há, nessa
região, de um modo geral, um sentimento de orgulho por ter vindo do
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Nordeste uma figura histórica tão conhecida. No imaginário local, para muitos,
fixou-se a ideia de um valente vingador justiceiro que, de forma semelhante ao
bandido Robin Hood, roubava dos ricos para dar aos pobres. Na literatura de
cordel, um dos gêneros em que esse personagem é uma constante, parece
sobrepor-se a imagem de herói à imagem de bandido, embora, segundo
Clemente (2009, p.17), a crueldade dos cangaceiros seja reprovada pelos
poetas de folhetos de cordel, “[...] pela perversidade, destruição de
propriedades e mortes, inclusive de poderosos. (Os autores) Desaprovam,
ainda, a quebra de certos valores tradicionais como o sacrifício de crianças, o
ultraje de donzelas.”
Historicamente, a passagem de Lampião por terras itabaianenses não é
comprovada. No entanto, sua presença frequente nos discursos locais, mesmo
que não necessariamente nos leve a verdades, revela-nos, num jogo de
representações que pode ser explorado pelos estudos retóricos e
argumentativos, indícios das identidades discursivas de uma cidade e de um
povo que não querem ficar de fora dessa história.
3 A Retórica: origem, evolução e diálogos
A Retórica surgiu no século V, em Siracusa, e viveu seu auge até o século
XIX. Sua origem está ligada ao conflito e à controvérsia, já que serviu como
ferramenta para proprietários poderem reaver suas terras que haviam sido
invadidas. Embora, desde o seu início, esteja relacionada à argumentação, aos
poucos foi se transformando apenas na “arte de bem falar”, assim, quase
tudo que era persuasivo foi deixado de lado e restaram apenas os estudos das
figuras, o que colaborou com sua desvalorização. O fato de a Retórica, na
Antiguidade, estar voltada somente para a elaboração e a análise de textos
orais, bem como o descrédito nos sofistas e a aparente relação da retórica
com três gêneros específicos: o deliberativo, o judiciário e o epidítico são
outros aspectos que levaram à sua decadência. Porém, Mosca (2001) nos diz
que não podemos falar em morte da Retórica, por causa da longevidade das
ideias aristotélicas, como confirmam estudos da argumentação publicados a
partir da segunda metade do século XX, a exemplo do Tratado da
Argumentação- A Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, de 1958, que
retomou conceitos do filósofo estagirita, adequou-os ao mundo moderno e
abriu espaço para o diálogo entre esses fundamentos retóricos e outros
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estudos do texto e do discurso, bem como entre aqueles e outras áreas do
conhecimento, como a Educação.
Em sua essência, a Retórica não busca a verdade ou a falsidade dos
discursos, mas a construção da verossimilhança, ou seja, de uma aparência da
verdade, da representação feita nos textos por sujeitos que fazem escolhas
linguísticas e discursivas mesmo sendo determinados sócio-histórica-
culturalmente. Na Retórica, o enunciador (chamado, nesses estudos, de
orador) não é um sujeito assujeitado, pois tem objetivos, pontos de vista,
opiniões e consegue modificar seu enunciatário (o auditório), embora seja
influenciado pela ideologia dominante; o orador é um sujeito de ação.
A eficácia de um discurso desse sujeito é medida pela escolha de
determinadas estratégias argumentativas cujo intuito é provocar efeitos de
sentido que possam levar à adesão do auditório, envolvendo, pois, tanto um
fazer persuasivo, quanto um fazer interpretativo. Isso relaciona a
argumentação ao nível narrativo dos textos de acordo com o percurso
gerativo de sentido proposto pela Semiótica greimasiana, mais
especificamente ao percurso da manipulação, em que um destinador busca
conduzir um destinatário a uma mudança, a uma ação. Essa manipulação pode
ocorrer de diferentes formas, sendo que todas têm o objetivo de levar o outro
a entrar em conjunção ou disjunção com determinados objetos de valor que
representam algo importante para o destinador e/ou para o destinatário.
De acordo com a Semiótica de Greimas, as manipulações podem se dar
por tentação, sedução, intimidação ou provocação. Segundo Barros (2003), na
intimidação e na tentação são oferecidos valores que o destinador acredita,
respectivamente, temidos ou desejados pelo destinatário. Já na sedução e na
provocação, o destinador apresenta imagens positivas ou negativas do
destinatário relativas à sua competência, às suas habilidades ou qualidades.
Partindo dessas possibilidades, os argumentos oferecidos por um orador a seu
auditório podem caracterizar, geralmente, uma manipulação por sedução ou
por tentação, na medida em que o orador constrói seu discurso tendo em
vista o que ele considera ser desejado ou agradável por/para seu auditório,
conforme reflexões vistas em Mariano (2007).
Em nossa análise, buscamos evidenciar esse diálogo possível, entre
Retórica e Semiótica, e retomamos estudos contemporâneos sobre o ethos,
um dos meios de persuasão apontados por Aristóteles, a partir do diálogo
entre Retórica e Análise do Discurso de linha francesa.
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4 Análise das estratégias argumentativas em “Lampião arrudiano Itabaiana”
Começamos a análise do texto selecionado observando a utilização de
figuras de argumentação e retórica, estratégias argumentativas inesperadas
que buscam persuadir o auditório pela emoção. Mosca (2001, p. 37) diz que
Perelman “considera as figuras segundo o fim a que se prestam na
argumentação e as classifica em figuras de presença, figuras de seleção e
figuras de comunhão”. As figuras de presença são aqueles argumentos que
vêm para manter no texto a presença daquilo que está sendo falado, como
acontece no uso excessivo de repetição e nas paráfrases, que têm como
objetivo fazer com que o outro se convença pela exaustão. As figuras de
escolha dizem respeito à seleção de estratégias linguísticas e discursivas;
inclusive a opção pela abordagem de um determinado tema ou por variantes
de um dialeto específico podem ser figuras de argumentação e retórica, caso
provoquem a sensação de surpresa. Nas figuras de comunhão, espera-se que
o outro se identifique com o argumento do sujeito enunciador; com essa
finalidade, utilizam-se, por exemplo, conhecimentos compartilhados entre
orador e auditório, o que parece ser um mecanismo muito empregado por
nosso autor desde o início do texto.
Nessa primeira parte da reportagem sobre Lampião, o orador vai tentar
explicar a não entrada do Rei do Cangaço em Itabaiana. Sua primeira
estratégia é ganhar a confiança do auditório, estabelecendo a comunhão. Já
no título e no subtítulo, é possível identificarmos a busca pela interação com o
enunciatário, chamando-o de você, mesmo que de forma oculta no uso do
imperativo “saiba (você)”, o que indica tanto uma figura de comunhão quanto
uma figura de escolha. Deste modo, o autor instiga o leitor a querer saber
como ocorreu a passagem do cangaceiro por essas terras. Outra estratégia
que pode ser definida tanto como figura de escolha quanto de comunhão é a
utilização de arrudiano, ao invés de arrodeando, que apresenta o uso de
metaplasmos. Vê-se, nessa palavra, tanto uma síncope quanto o alçamento
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das vogais médias, ocasionando uma harmonia vocálica. Esse termo pode ter
sido empregado para causar o efeito de sentido de aproximação, por meio do
uso da mesma variante linguística que o orador acredita que seu auditório
possui. Não só essa expressão, mas outras como
1.
2.
3.
são argumentos inesperados que têm o intuito de estabelecer uma
identificação entre os sujeitos da enunciação.
Relacionando essas estratégias argumentativas ao percurso da
manipulação da semiótica francesa, podemos dizer que o orador utilizou essas
variantes fonológicas e lexicais como argumentos, e que esses, por sua vez,
funcionam como objetos de valor positivos oferecidos ao destinatário em
busca da adesão, ou seja, para que o auditório entre em conjunção com seu
texto (tese/ideia). Também podemos dizer que há a presença da manipulação
por tentação no título e subtítulo “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca
esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, pois o
destinador julga que o destinatário deseja “saber mais” sobre Itabaiana, já que
os leitores da revista OMNIA são habitantes do município. Uma manipulação
por provocação também não é descartada, na medida em que, ao mesmo
tempo em que oferece informações ao leitor, o orador diz que este não
conhece os fatos relacionados à sua cidade, desqualificando-o e provocando-o
para que queira saber mais ou provar que já sabe. Observa-se, assim, nessa
relação destinador-destinatário, todo um trabalho de modalização do leitor.
Tendo em vista, particularmente, as figuras de comunhão, podemos
observar que o orador utiliza uma linguagem coloquial:
(1) “Começou basicamente quando o colonizador europeu chegou por essas bandas no século XVI trazendo a corja de malfeitores”;
(2) “Começou a montar suas barracas no litoral e explorando o interior em busca de ouro, prata, terra para o gado, lavoura e umas indiazinhas safadas para seu deleite”;
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(3) “Assassino e ladrão profissional”;
(4) “Foi aí que fiquei encucado desde minha adolescência, quando comecei a bisbilhotar as ideias históricas da terra da cebola”,
e emprega parênteses para comentários mais ou menos subjetivos: “(e
também uns engraçadinhos que disseram que não há relação)”; “(primeira
vez que a forca foi usada em Itabaiana)”. Tais fatos reforçam a busca de
comunhão com o leitor, no intuito de persuadi-lo a partir da aproximação.
As perguntas retóricas vistas ao longo do texto também instigam o
enunciatário a saber mais sobre o motivo da não entrada de Lampião em
Itabaiana, ao mesmo tempo em que estabelecem uma interação orador-
auditório e já introduzem novos argumentos, como se vê nas seguintes
perguntas: “Rômulo Remo ou Remo Dias?” (numa intertextualidade entre a
lenda de fundação de Roma por Rômulo e Remo, que haviam sido
amamentados por uma loba, e a história de fundação de Itabaiana, que tem na
sua gênese a presença de Simão Dias, amamentado por uma cabra); “Por que
o valente Lampião e seu bando nunca invadiram Itabaiana, já que aqui tinha
tanta riqueza na década de 20 e 30?”; “Será que por medo do que podia
encontrar aqui ou por ter amigos coiteiros no local?”; “Será que aqui a
concorrência era grande por ter bandidos ou heróis demais?”, dentre outras.
Concomitantemente, ao valer-se de tais perguntas retóricas, o autor
constrói a imagem de um leitor leigo (o pathos), que não conhece os fatos que
serão expostos, mas interessado sobre o assunto e sobre a cultura local, e
uma auto-imagem culta, mas, ao mesmo tempo, humilde, já que nivela sua
linguagem à de seu auditório. Como o orador conhece seu público –
habitantes de Itabaiana e de cidades circunvizinhas – e a revista diz respeito à
cultura e à história local, é mais fácil para o autor construir uma imagem de
seu leitor, saber o que ele conhece, do que gosta, em que acredita.
Com a finalidade de defender a tese de que Lampião não entrou em
terras itabaianenses por medo, o orador usa como estratégia argumentativa a
intertextualidade, e traz para a reportagem uma música composta por um dos
integrantes do bando de Lampião, chamado Volta Seca. De acordo com o
texto, este era itabaianense e teria entrado no bando com apenas onze anos
de idade. Mais tarde, esse personagem tornar-se-á muito temido e cruel. Na
tentativa de salvar um amigo ferido, Volta Seca será capturado por policiais e
acabará sendo preso:
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Essa música vai retratar as andanças de Lampião e suas características
valentes, mas, ao mesmo tempo, retoma a existência de Mata Escura,
itabaianense enforcado aos 25 anos, 50 anos antes do nascimento de
Lampião, levado à forca por ter assumido nove assassinatos e outros crimes.
No trecho da música, que diz “Lampião diz que é valente/ É mentira, é
corredor/ Correu da Mata Escura/ que a poeira levantou”, a imagem de
Lampião se torna contraditória: é valente ou medroso?
Quando o orador explica quem foi Mata Escura, que é, supostamente,
citado na música, faz uso novamente da intertextualidade, por meio de uma
citação entre parênteses:
Seu intuito foi comprovar a existência desse acontecimento em
Itabaiana. Podemos dizer que tal recurso se caracteriza como uma figura de
comunhão, já que o orador retoma um escritor sergipano que deve ser
conhecido por seu auditório com o objetivo de corroborar o que disse com o
peso de um argumento de autoridade.
O orador ainda tenta persuadir seu leitor por meio do uso das falácias,
que, segundo Ferreira (2010, p.120), é “[...] quando parece que as razões
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apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não sustentam. As
falácias, normalmente, são erros de raciocínio, mas podem ser utilizadas, por
oradores, como mecanismos persuasivos”. Ao expor a música que Volta Seca
compôs, o orador destaca em negrito e com iniciais maiúsculas Mata Escura, ou
seja, dá ênfase ao nome do falecido itabaianense, conhecido como perigoso e
temido, para tentar persuadir o leitor de que a não entrada de Lampião por
Itabaiana tenha se dado pela má fama de Mata Escura. Essa ênfase, segundo
Ferreira (2010), é quando o orador destaca uma palavra na intenção de levar o
receptor ao erro por causa da aparente alteração de significado.
Nesse trecho, encontramos ainda a ambiguidade que, junto à ênfase,
compõem o grupo das falácias, que são encontradas na elocutio. De acordo
com a Retórica, a elocutio é a parte do discurso persuasivo em que as escolhas
são feitas tendo em vista a adequação ao auditório e a provocação de paixões.
O verso Correu da Mata Escura pode estar se referindo especificamente à mata,
já que o bando de Lampião andava a pé e vivia sempre assustado, fugindo da
polícia, ou ao personagem Mata Escura, que teria, mesmo depois de morto,
assustado o bando. Como Volta Seca era itabaianense, devia conhecer a história
desse personagem, e o temor provocado pode ter sido tão grande a ponto de
Lampião e seu bando arrudiar Itabaiana, mas não entrar na cidade.
A primeira hipótese pode ser baseada nos últimos versos da música:
“Lampião tava dormindo/Acordou muito assustado/Deu um tiro numa
braúna/Pensando que era um soldado”. Assim, o fato de ele estar dormindo,
viver caminhando na mata e estar sempre fugindo da polícia culmina em
acordar assustado e correr da/na mata escura (numa relação de causa e
consequência), e não do Mata Escura, como sugere a reportagem. Podemos
dizer que, dessa forma, o autor quer construir (ou reforçar) a imagem de
Itabaiana como uma terra de homens valentes e perigosos, tanto que até
mesmo Lampião não foi capaz de invadir a cidade, pois ficou com medo.
Na reportagem, podemos encontrar também o uso da polidez indireta,
que, segundo Ferreira (2010, p.143), é:
[...] um ato comunicativo em que o orador deixa uma saída para si pela enumeração de interpretações defensáveis. Com essa estratégia, preserva a face e evita responsabilidades ao deixar uma interpretação por conta do auditório. Pode-se verificar, então, se o orador fornece pistas e sugestões indiretas, se explora as pressuposições, se, conscientemente, minimiza a expressão para não dizer tudo o que seria necessário [...] A impessoalização é a estratégia mais usada [...].
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Essa estratégia é observável após o orador expor a letra da música e
dizer que Volta Seca cita Mata Escura como alguém que desse medo, capaz de
colocar Lampião para correr.
Lógico, pode ter sido inconsciente, mas o terrorista itabaianense do século XIX era algo que servia de inspiração para os pais dizerem em tom de ameaça a seus filhos: “Vá pro mato não, Mata Escura te pega”, da mesma forma que se fala de saci, caiporas e luzernas (OMNIA, 2011, p.10).
Nesse trecho, a polidez indireta está presente, já que o orador emprega
a impessoalização e a modalização, preservando sua face e deixando uma
interpretação por conta dos leitores da revista OMNIA ao dizer que Volta Seca
pode ter utilizado a expressão inconscientemente. Além disso, ele fornece
pistas e sugestões indiretas ao informar que os pais usavam essa expressão
para amedrontar os filhos para que estes não fossem para o mato,
comparando Mata Escura a seres fantásticos do folclore brasileiro, criando um
possível, provavelmente falso (devido à generalização), silogismo: várias
pessoas tinham medo do Mata Escura, Lampião era uma pessoa, Lampião
tinha medo do Mata Escura.
5 A noção de ethos e a depreensão dos ethé de Itabaiana e dos itabaianenses
De acordo com Aristóteles (2011), são três os meios de persuasão
“dependentes da arte”: o ethos, o pathos e o logos. O logos, segundo Ferreira
(2010), a partir dos estudos filosóficos de Heráclito de Éfeso, passou a ter o
conceito de razão. O estudioso nos diz que todo discurso é construído em
torno de um tema, que é problematizado e gera questões. Nesse sentido, o
logos se encarrega do discurso persuasivo, já que é a partir dele que
evidenciamos o que parece ser verdade, levando em consideração o que se
conhece sobre o assunto. O pathos, por sua vez, vincula-se à afetividade e vai
remeter ao auditório, ao conjunto de emoções, às paixões e sentimentos que
o orador é capaz de despertar no ouvinte. Por fim, o ethos, que está ligado à
imagem que o enunciador constrói de si em seu discurso, à sua postura; é o
lugar da identidade assumida pelo orador. De acordo com Ferreira (2010),
modernamente, o termo sofreu ampliação no seu significado e é considerado
como a imagem que o orador constrói de si e dos outros no seu discurso.
Seguindo essa linha, podemos dizer que, ao enunciar, o autor não está
construindo apenas a sua identidade discursiva, mas também a do povo
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itabaianense, por ele representado, enquanto orador autorizado, já que a
revista diz respeito à cultura e à história da cidade e de seus habitantes.
Ferreira nos diz que o primeiro ponto a ser observado na definição do
ethos é a construção da imagem pública, ou seja, é importante verificar se o
discurso do orador cria condições para que o auditório o julgue como digno de
fé. Esse enunciador deve, ainda, ser capaz de suscitar confiança e para isso
precisa demonstrar conhecimento da causa, honestidade e segurança.
Aristóteles (2011, p. 122) nos diz que:
A confiança suscitada pela disposição do orador provém de três causas, as quais nos induzem a crer em uma coisa independentemente de qualquer demonstração: a prudência, a virtude e a benevolência [...] Conclui-se que todo aquele que é considerado detentor de todas essas qualidades [que atuam como causa] suscitará confiança em sua audiência.
Portanto, demonstrar sabedoria e domínio sobre o tema é essencial,
bem como apresentar opiniões fundamentadas. Nesse sentido, o orador do
texto analisado possui características que alicerçam positivamente o ethos,
visto que demonstra saber bem sobre o que fala e expressa opiniões ao longo
do texto, entre parênteses, conforme já explicitamos.
Privilegiando o estudo do ethos, Amossy (2005) nos diz que, para
construir a imagem de si, o locutor não precisa falar dele mesmo, pois ela é
apreendida a partir de seu estilo, das suas crenças e das suas competências
linguísticas e enciclopédicas. Ao cunhar a noção de ethos prévio, a autora
chama a atenção para o fato de que temos uma ideia antecipada do
enunciador antes de ele proferir seu discurso, no entanto, é só a partir do
discurso efetivo que essa imagem pode ser confirmada, destruída ou
modificada.
O conceito de ethos prévio é relacionado por Amossy à noção de
estereótipo, já que, muitas vezes, baseamo-nos em características
convencionalizadas socialmente na doxa para traçar o perfil discursivo do
orador. No texto analisado, vemos uma afirmação do estereótipo do
nordestino “cabra macho” e do itabaianense perigoso e valente, imagens
essas já estabelecidas discursivamente em outros textos, como nos que
descrevem os crimes ocorridos nos anos 60 em Itabaiana e nos que relatam a
saga de Lampião e seu bando. Observa-se, assim, que na reportagem em foco
o autor usou tanto fatos históricos de Itabaiana, quanto outras histórias do
imaginário local, para construir imagens de uma cidade temida e de homens
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valentes e perigosos. É por meio desses ethé que o orador justifica o fato de o
famoso Rei do Cangaço não ter tido coragem e audácia para invadir as terras
serranas, por saber que no município havia homens como Mata Escura, que
era tão ou mais valente quanto o próprio cangaceiro. Ao mesmo tempo, a
reafirmação desse estereótipo revela um povo orgulhoso de sua história (ou
de suas histórias), real e/ou fictícia, e de sua fama.
Considerações Finais
Partindo do pressuposto de que somos sujeitos sociais, podemos afirmar
que, ao enunciar, construímos, além do ethos individual, um ethos coletivo que
nos identifica como participantes de um grupo, refletindo seus costumes, seus
valores e sua ideologia (MARIANO, 2013). Nesse sentido, o autor da
reportagem, por meio da utilização de figuras de argumentação e retórica e
de intertextualidade, dentre outros mecanismos, constrói os ethé dos
itabaianenses e da própria cidade, ethé caracterizados pela valentia, aqui
“comprovados” em uma revista que se propõe divulgar a cultura e a história
de Itabaiana.
Assim, podemos dizer, de acordo com as imagens discursivas
evidenciadas, mostradas no modo de dizer, que o povo itabaianense tem
orgulho de ter tido na sua história homens valentes e corajosos e de ser parte
de um município cuja fama causa temor nas pessoas e nos bandidos de fora,
como foi no caso de Lampião.
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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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O DISCURSO DO TRABALHO NA LITERATURA DE AUTOAJUDA: OS
7 HÁBITOS DAS PESSOAS ALTAMENTE EFICAZES, DE STEPHEN R. COVEY, EM ANÁLISEi
Franciele Graebinii
Resumo: Com o mercado de trabalho cada vez mais competitivo e o sujeito cada vez mais fragmentado, a autoajuda afirma-se como uma ferramenta de autoconhecimento e uma tentativa de superação dos problemas. O presente estudo analisa o livro Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, que promete aos leitores uma mudança de hábitos que proporcionarão uma vida de sucesso profissional. Dessa forma, foi possível relacionar o discurso de autoajuda com a economia e o capitalismo. Às luzes da Análise do Discurso Francesa e alguns de seus expoentes como Foucault, Bakhtin e Orlandi foi possível relacionar a autoajuda com o capitalismo, sendo aquela um servidor deste, neste mundo globalizado em que os sujeitos se sujeitam e seguem as regras do mercado sem questionar, fazendo perder-se a função do signo que é a de luta das classes. Martelli entra aqui com sua classificação dos indivíduos que ajuda a identificar os tipos de leitor para os quais a autoajuda é escrita e o tipo de sujeito a quem ela serve, para que nada saia do lugar e para que o mercado produza mais e melhor. Assim, pode-se considerar a autoajuda como missionária do capitalismo.
Palavras-chave: Autoajuda. Trabalho. Análise do Discurso. Stephen R. Covey.
Abstract: As the work market is more and more competitive and the subject is more fragmented, self-help is claimed as a tool for self knowledge and an is also an attempt to overcome problems. This study analyzes the book “The 7 Habits of Highly Effective People” by Stephen R. Covey, that promises the readers a change of habits which will provide a life of professional success. Thus, it was possible to relate the self help discourse with economy and capitalism. Based on the principles provided by the French Discourse Analysis and some of its exponents, like Foucault, Bakhtin and Orlandi, it was possible to relate self-help with capitalism, being that a server to the latter, in this globalized world in which the subjects are “subjected” and follow the rules of the market without questioning, making the function of the sign which is the fight of classes get lost. Martelli comes in here with her classification of the individuals, which helps to identify the kinds of reader to whom self-help is written and the kind of subject to whom it serves, so that nothing will be out of place and so that the market produces more and better. Thus, self-help can be considered a missionary of the capitalism.
Keywords: Self Help. Work. Discourse Analysis. Stephen R. Covey.
i Resultado de TCC realizado sob a orientação da Profa. Dra. Grenissa Bonvino Stafuzza. ii Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. E-mail: [email protected].
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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Introdução
O termo autoajuda parece intimamente ligado ao termo
“individualidade”. Em um mundo globalizado em que tudo está ao alcance das
mãos (assim como ao alcance do dinheiro), torna-se cada vez mais difícil se
encontrar como indivíduo; e cada vez mais o indivíduo sente necessidade de
obter “sucesso na vida” – tanto na vida financeira quanto na vida familiar,
pessoal. Se pensarmos na noção de sujeito cunhada nas obras de Foucault
(1995; 2009; 2010), a problemática do “se encontrar como indivíduo” ganha
peso, pois o sujeito só é sujeito porque se posiciona perante os
acontecimentos que lhe atravessam e é por isso que o sujeito foucaultiano é o
sujeito da história e do devir (vir a ser) (MARTELLI, 2006).
A palavra “individualismo”, desse modo, não é vista “como sinônimo de
egoísmo, de egocentrismo” (MARTELLI, 2006, p. 80), mas sim como a busca
do autocentramento que leva o indivíduo a fortalecer sua autoestima a ponto
de poder chegar a um “individualismo altruísta” (MARTELLI, 2006, p. 81).
Neste trabalho, pretendemos mostrar a relação que ocorre entre o
mundo da autoajuda e do trabalho. Como citado anteriormente, os indivíduos
buscam o sucesso pessoal e financeiro, relação essa que, na maioria das vezes,
não há como separar. A autoajuda entra aí como a resposta que alia as
necessidades do capital com as necessidades individuais (criadas pelo mundo
como está: globalizado de forma capitalista). Para tanto, trabalharemos com a
vertente da Análise de Discurso Pêcheutiana que envolve o sujeito e os efeitos
de sentido no discurso de autoajuda.
Antunes e Alves (2004), no artigo “As mutações no mundo do trabalho
na era da mundialização do capital”, mostram as mudanças que ocorreram
nos últimos tempos no cenário do trabalho e, ao contrário do que era
previsto, ele não perdeu sua força estruturante na sociedade.
A classe trabalhadora se vê em uma situação mais complexa, muito
diferente da vivenciada pelo fordismo e o toyotismo. Porém, é uma classe
forte, com poder de estruturar a forma como vemos a sociedade, moldada (ou
que dá forma) ao capitalismo, e ao mundo do consumo como vemos hoje.
Além disso, o trabalho é um elemento vivo, que mede forças com o processo
social capitalista, tornando o cotidiano um campo de disputa entre a alienação
e a desalienação.
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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Tais mudanças que ocorreram – e ocorrem – no mundo do trabalho
exigem que os sujeitos se adaptem às novas situações, levando-os a refletir
sobre suas ações para que possam se reestruturar (RÜDIGER, 1996).
Para Rüdiger (1996, p. 13), “a literatura de autoajuda constitui uma das
mediações através das quais as pessoas comuns costumam construir um eu de
maneira reflexiva, gerenciar os recursos subjetivos e, desse modo, enfrentar
os problemas colocados ao indivíduo pela modernidade”. Nesse sentido, o
mercado de autoajuda é um mercado de fácil acesso, pois os livros são
popularizados de forma que as obras chegam com muita facilidade aos
leitores. No mais, esses textos não possuem uma estética sofisticada ou
marcada pelo cânone literário; isso significa que são fáceis de serem lidos e
talvez, por isso, houve a massificação desse tipo de literatura, de modo geral.
Com foco no objetivo do artigo, qual seja: pensar o funcionamento da
relação trabalho/autoajuda, faremos a análise do livro Os 7 hábitos das pessoas
altamente eficazes, de Stephen R. Covey, que promete trazer o segredo do
sucesso na carreira e na vida pessoal: “A interdependência é um valor mais
forte que a independência” (COVEY, 2004, p. 5). Por meio desta análise,
pretendemos demonstrar as transferências e jogos simbólicos que ocorrem
entre os sentidos e os sujeitos, conforme afirma Orlandi “dos quais não temos
o controle e nos quais o equívoco – o trabalho da ideologia e do inconsciente –
estão largamente presentes” (2007, p. 59).
1 Autoajuda para o sucesso empresarial: a fragmentação do sujeito
A literatura de autoajuda configura-se como uma confirmação da senda
do capitalismo, uma vez que possui uma ligação entre o “ter” e o “ser”, ou
seja, obter sucesso é igual a obter felicidade; realização pessoal significa ter
realização profissional. No processo de desalienação, o conhecimento dessa
relação é extremamente importante, pois só assim o trabalhador pode ser
senhor de sua escolha, realmente livre de qualquer influência que não seja a
sua própria vontade de agir. É a conscientização do que se passa à nossa volta
que nos dá a capacidade de nos conhecermos realmente, realizando-nos
enquanto indivíduos dignos e preparados para viver (e não simplesmente
sobreviver) nesse mundo capitalista e globalizado.
Nesse sentido, torna-se importante analisar a literatura de autoajuda
empresarial, primeiro porque ela é a literatura mais lida no mundo, segundo,
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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porque analisar seu funcionamento discursivo em relação ao tema do trabalho
traz um ganho de pesquisa para a área na qual se insere este estudo, ou seja, a
Análise do Discurso Francesa (ADF) em uma relação de diálogo com as
Ciências Sociais.
Podemos observar que a autoajuda é o tipo de literatura que mais
“vende” na contemporaneidade. Ela funciona como manual, um guia de como
proceder em sociedade. Há orientações de como obter felicidade, amor,
harmonia familiar, dinheiro, sucesso no trabalho, etc. Este último, em especial,
chama atenção por sua grande adesão no mundo empresarial e na vida dos
trabalhadores, tornando-se, portanto, objeto deste estudo.
O trabalho e a autoajuda formaram “uma parceria de sucesso” no
mundo capitalista. O mundo dos negócios apropriou-se do vocabulário da
autoajuda de tal forma que ficou difícil distinguir seus textos das palestras
empresariais (MARTELLI, 2006). Várias são as causas apontadas para tal
fenômeno: desde a fragmentação dos sujeitos pelo mundo globalizado, a
alienação dos indivíduos em decorrência do trabalho precarizado até o
afastamento do fantasma do desemprego que assola a classe trabalhadora no
mundo inteiro.
Em seu livro Autoajuda e Gestão de Negócios: uma parceria de sucesso,
Martelli (2006) define o sujeito dos dias em que se vive a mundialização. No
capítulo 1, “Um mundo em transição”, vemos as dificuldades que enfrentam
os sujeitos para conciliar trabalho, família, lazer, autoestima, reafirmação da
personalidade – esta, tão fragmentada – envolta em tantas opções que chega
a ser difícil de o indivíduo se definir. A autora define três tipos de indivíduo:
“pouco indivíduo”, “muito indivíduo” e “altruísta”.
Os “pouco indivíduos” são aqueles considerados indivíduos por serem
livres da tradição, família, religião, mas que não conseguem exercer sua
liberdade em plenitude. Essa liberdade existe apenas de forma latente, é uma
liberdade em potencial, cerceada pelas condições financeiras em que se
encontra o sujeito, que o subjugam à aceitação e conformismo das massas. É o
“eu como vítima indefesa das circunstâncias externas” (MARTELLI, 2006, p.
59).
Quanto ao indivíduo “muito indivíduo”, trata-se do sujeito que dita as
regras do capitalismo. É um ser egoísta, egocêntrico, desumano, o oposto do
“altruísta”. São aqueles que “aprendem os mecanismos de funcionamento do
jogo e manipulam as cartas em vantagem própria” (MARTELLI, 2006, p. 67).
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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São os defensores do “cada um por si, Deus por todos” e do “salve-se quem
puder” (MARTELLI, 2006, p. 68).
O tipo “altruísta” é o que conhece a si mesmo e vive num processo de
escolhas pessoais, sem perder de seu foco o outro, o seu próximo. Esse
processo de escolhas auxilia na formação de sua autoestima, que se fortalece
para que então esse indivíduo possa agir altruisticamente.
Esses três tipos de sujeito não são encontrados “puros” na sociedade.
Encontramos o que seria um “misto” dos três, mas cada qual com uma das
características mais proeminente (MARTELLI, 2006). Identificamos na obra Os
7 hábitos das pessoas altamente eficazes os indivíduos “pouco indivíduos”
como público alvo, já que estes não possuem condições de transpor os limites
da massificação conformista. Já os indivíduos “muito indivíduos”, de certa
forma, também têm forte relação com o conteúdo do livro, pois sendo os que
ditam as regras do capitalismo, são os mais favorecidos pelos resultados
possivelmente obtidos com a disciplinarização dos sujeitos que se sujeitam a
interiorizar os 7 hábitos.
Contudo, Covey, na obra em estudo, apregoa o altruísmo, dizendo que
devemos dominar a arte do “nós”: “A verdadeira grandeza será alcançada por
meio da mente abundante que trabalha de maneira altruísta, com respeito
mútuo, visando ao benefício mútuo.” (COVEY, 2004, p. 15).
2 A precarização do trabalho
Antunes (2008) nos mostra, em seu artigo Século XXI: Nova era da
precarização estrutural do trabalho?, que o trabalho já significou “o ponto de
partida para a constituição do ser social” (ANTUNES, 2008, p. 1), ou seja, é o
labor consciente que nos torna seres sociais plenos. Nesse sentido, podemos
afirmar que não somos abelhas executando um trabalho instintivamente, mas
sim seres humanos que o idealizam previamente à sua execução. Fazemos
sentido por meio de nosso trabalho, uma vez que o trabalho é central na vida
dos sujeitos.
Contudo, o trabalho não é a única razão do ser social, e não deve ser
fonte exclusiva da existência do homem. A vida humana tem muitas
dimensões, e se o trabalho deixa de ter sua característica de “potencial
emancipador, ela deve recusar o trabalho que aliena e infelicita o ser social”
(ANTUNES, 2008, p. 2).
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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Não é o que acontece hoje com a globalização e a sociedade capitalista
que rege nosso modo de viver. O trabalho transformou-se em “mercadoria”.
Vendemos nosso potencial de labuta e com ele produzimos mais e
valorizamos o capital. É um “trabalho assalariado, alienado, fetichizado”
(ANTUNES, 2008, p. 3). Consideramos aqui a definição de Antunes (2008, p. 8)
sobre a classe trabalhadora que “compreende a totalidade dos assalariados,
homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, a classe-que-
vive-do-trabalho e que são despossuídos dos meios de produção”.
Encontramos, inclusive na obra de Covey analisada, sinais desta
precarização do trabalho, ainda no prefácio, quando ele se direciona aos
leitores e aos problemas que eles possivelmente apresentem, tais como: o
medo e a insegurança – as pessoas “temem o futuro. Sentem-se vulneráveis
no local de trabalho. Receiam perder o emprego e a capacidade de prover a
subsistência da família.” (COVEY, 2004, p. 12) – a cultura de competição, a falta
de equilíbrio na vida devido ao estresse causado pelo excesso de tecnologia e
informação e a ânsia de ser compreendido.
3 Discurso, sujeito e ideologia: entre trabalho e sujeito, a autoajuda empresarial
Para analisar o discurso de autoajuda é necessário entender as bases de
orientação que consideramos para o presente estudo provenientes da Análise
do Discurso Francesa (ADF). Segundo Orlandi (2007, p. 15) “a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem:
com o estudo do discurso observa-se o homem falando.”.
Ao partir dessa concepção sobre discurso, a autora observa que a noção
de discurso se vincula à noção de movimento, de dinâmica histórica e social da
língua. Assim, compreendemos que o discurso é a materialidade da ideologia,
a materialidade do discurso é a língua, sendo-nos apresentada a relação
“língua-discurso-ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 17).
Logo, o analista deve saber diferenciar texto e discurso. O texto remete
a um discurso que nem sempre nos é claro à primeira vista. A linguagem não é
transparente, portanto, ao fazer análise de discurso, nos atemos ao “como” e
não ao “que” o texto significa. Assim, há “um processo discursivo do qual se
podem recortar e analisar estados diferentes.” (ORLANDI, 2007, p. 62). É
nesse sentido que pensamos a análise do discurso da autoajuda empresarial:
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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ao tomar o sujeito como um indivíduo homogêneo, a autoajuda empresarial
de Covey (2004) retira o elemento social e histórico da condição do sujeito
trabalhador. O trabalhador é eficiente ou não a depender de si próprio, e não
das condições histórico-sociais a que é submetido em sua vida:
Culpar a tudo e a todos pelos nossos problemas e desafios pode ser uma norma e talvez alivie temporariamente a dor, mas também nos acorrenta a esses problemas. Mostre-me uma pessoa que seja suficientemente humilde para aceitar e assumir a responsabilidade pelas suas circunstâncias e corajosa o bastante para tomar qualquer iniciativa necessária para criativamente atravessar ou contornar esses desafios, e eu mostrarei a você o supremo poder da escolha (COVEY, 2004, p. 13).
Percebemos, então, que o discurso é um campo aberto para
interpretações e leituras que devem ser feitas para que o ser o utilize como
objeto de desalienação e participação social ativa, capaz de promover a
transformação de estados de vida indesejados.
Para Foucault (2010), a produção do discurso segue regras e controles que
possibilitam procedimentos de exclusão: a interdição, a rejeição ou separação
(exemplificada por ele na oposição razão e loucura) e por último a oposição
verdadeiro/falso. A busca pelo verdadeiro pauta a nossa sociedade pelo que
devemos pesquisar, ler, conversar. De acordo com Foucault (2010, p. 18):
Creio que essa vontade de verdade apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. [...] Penso na maneira como as práticas econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e da produção.
Notamos, portanto, que o discurso do capital que promove a
disciplinarização dos sujeitos marcados pela verdade da “economia” não é
novidade. Hoje ela vem em forma de autoajuda, mostrando ao indivíduo que
ele é capaz de grandes realizações, de manter o controle de sua própria vida.
No livro analisado, vemos a forte influência dessa “verdade” marcada nos 7
hábitos das pessoas altamente eficazes: ser proativo; liderança pessoal;
administração pessoal; liderança interpessoal; comunicação empática;
corporação criativa; autorrenovação equilibrada.
Sob essa perspectiva, faz-se também necessária a compreensão da
constituição do sujeito ideológico que Orlandi (2007, p. 46) teoriza a partir de
sua leitura dos escritos pêcheutianos: “a ideologia faz parte, ou melhor, é a
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condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer”.
O esquecimento ideológico permite vermo-nos como sujeitos
“originais”, com nossas próprias ideias e modo de ser. Porém, esses discursos
ideológicos são pré-existentes e nos inserimos neles desde que nascemos.
Assim, de acordo com Orlandi (2007, p. 46):
A evidência do sujeito – a de que somos sempre já sujeitos – apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Esse é o paradoxo pelo qual o sujeito é chamado à existência: sua interpelação pela ideologia.
Em contrapartida, o sujeito é quem transforma a língua, o discurso, por
meio de sua interpretação, deixando sua marca. Assim se dá o sentido: por
meio do sujeito em sua relação com a história, por meio da língua:
Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. Pela língua, pelo processo que acabamos de descrever (ORLANDI, 2007, p. 47).
Assim, para Orlandi (2007, p. 49), o sujeito ocupa um lugar, é constituído
por um interdiscurso ao qual não possui acesso. Dessa forma, o trabalho
ideológico cumpre seu papel quando passa para o anonimato, dando a
impressão de seu sentido apenas, produzindo o efeito de literalidade.
Bakhtin (1997) vai mais além:
A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada (1997, p. 36).
A consciência do homem é, também, fruto da ideologia; por exemplo, se
um humano se esforça para obter sucesso no trabalho em primeiro plano para
depois poder “ser feliz”, tal escolha é aceita e até mesmo apoiada na nossa
sociedade por causa da ideologia dominante do capitalismo: “ter” supera
“ser”; “ter” em detrimento de “ser”.
Aqui, podemos ainda relembrar Foucault, que nos situa no contexto da
ideologia demonstrando como ela se impõe por meio da palavra que é aceita e
considerada verdade pelos seres sociais:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em
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qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar (FOUCAULT, 2010, p. 9).
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, com o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje (FOUCAULT, 2010, p. 17).
Essa grade complexa que está em constante mutação toma, hoje,
forma de literatura de autoajuda, que funciona como uma missionária do
capitalismo. Demos o poder a ela de ser aceita, de ser o sujeito que fala, sem
oferecer qualquer resistência. Aí é que está o problema apontado por Bakhtin,
segundo o qual o signo possui a função de ser a área destinada à luta de
classes – aí está sua maior importância. Segundo Bakhtin:
O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade (BAKHTIN, 1997, p. 46).
Esse poder que se dá pela forte atração que causa sobre o homem atual
é bem explícito nas palavras de Duarte (2009):
O tipo de performance de linguagem que visa a impressionar, a convencer e a levar o sujeito a seguir um modelo prescrito interessa-nos uma vez que parece estar esse sujeito-leitor capturado pela imagem de sucesso veiculada nos discursos que compõem essa literatura (2009, p. 249).
A exemplo dessa linguagem, Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes
abrangem a maioria dos princípios fundamentais da eficácia humana. Estes
hábitos são básicos, primários. Eles representam a interiorização dos
princípios corretos nos quais estão baseados o sucesso e a felicidade
duradoura (COVEY, 2004). Tais palavras exercem atração no ser humano que
constantemente busca exatamente o que diz o texto: sucesso e felicidade
duradoura.
Foucault (2010) desvela as formas de coerção e punição dos indivíduos
através dos tempos em sua obra Vigiar e punir: nascimento da prisão,
mostrando que a humanidade foi transformando cada vez mais punições
corporais extremamente severas, para mais brandas, até chegar ao ponto de
não haver mais castigos corporais, mas a retirada do indivíduo “errante” da
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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sociedade (mesmo que por um período). A disciplina entra no jogo do
“adestramento” das pessoas para que sigam o que é “certo” de acordo com a
visão do capital. Conforme Foucault (2010):
A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (2010, p. 196).
Nos livros de autoajuda, um dos quesitos básicos para se obter
“sucesso” é a disciplina, vista como portadora da moral e dos bons costumes
que permeiam a vida tranquila na sociedade e satisfazem as regras do
capitalismo, determinando que não faltemos ao trabalho, tenhamos
responsabilidade e possamos produzir sempre mais.
Administração é disciplina, vontade de fazer direito. A palavra disciplina vem de discípulo - discípulo de uma filosofia, de um conjunto de princípios, de um conjunto de valores, discípulo de um objetivo grandioso, de uma meta ambiciosa ou de uma pessoa que representa esta meta (COVEY, 2004, p. 96).
Desse modo, uma disciplinarização velada acontece no mundo
contemporâneo, porém, não tão distante da disciplinarização pensada aqui:
Aquilo que se deve compreender por disciplinarização das sociedades, a partir do século XVIII na Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se parecer com casernas, escolas ou prisões; mas que se tentou um ajuste cada vez mais controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder (FOUCAULT, 1995, p. 242).
Nossa sociedade vivencia esse controle dos indivíduos feito de forma
racional e econômica. Covey, na obra analisada, garante os hábitos que tratam
de disciplinarizar o indivíduo e que o levarão a excelência no trabalho, ao
sucesso profissional. O cidadão cuidando de ser eficiente por si só, e levando
toda a culpa por sua própria ineficiência, independente das condições ou
estado de vida a que esteja sujeito na sociedade, é a chave perfeita do
controle das “atividades produtivas”, das “redes de comunicação” e do “jogo
das relações de poder” (FOUCAULT, 1995, p. 242).
Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes em análise
O livro Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes chama atenção por
sua alta vendagem em muitos anos consecutivos (o que adquirimos, de 2004,
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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pertence à 29ª edição). Mesmo passados 23 anos da 1ª edição, ele é um
sucesso de vendas e considerado essencial para quem faz parte do mundo
empresarial. O próprio autor explica esse sucesso no prefácio da edição,
respondendo a uma pergunta que lhe fazem:
Os hábitos das pessoas altamente eficazes ainda são relevantes hoje? A minha resposta é a seguinte: quanto maior a mudança e quanto mais difíceis os desafios, mais relevantes tornam-se os hábitos. O motivo é que os nossos problemas e a dor são universais, e estão aumentando, e as soluções dos problemas se baseiam e sempre se basearão em princípios universais, atemporais e óbvios por si mesmos, comuns a toda sociedade duradoura e próspera ao longo da história (COVEY, 2004, p. 11).
Tal afirmação, no mínimo, desperta a curiosidade: que princípios são
esses capazes de resolver problemas em qualquer época, em qualquer lugar?
Rüdiger (1996) detecta e traz à tona o truísmo presente nos livros de
autoajuda, os quais evitam que a maioria das pessoas não se identifique com
as regras ou princípios estabelecidos. É essa obviedade indicada pelo próprio
Covey (2004): “princípios universais, atemporais e óbvios” que devem reger a
vida das pessoas para que obtenham sucesso e resolvam todos os problemas.
Nota-se que a solução dos problemas, consequentemente, está ao
alcance das mãos de todas as pessoas, ou melhor, está dentro das pessoas,
desde que moldem seu caráter e sigam os princípios ensinados. Segundo Silva
(2011, p. 6):
Tais manuais oferecem aos seus leitores a promessa de felicidade cujo princípio é o de que cada pessoa tem em seu interior os recursos necessários para chegar ao sucesso, basta seguir as orientações apresentadas, adequando-se, automodelando-se, a fim de atingir determinados objetivos.
Não que isso se dê facilmente(!): “O esforço precisa ser diário, e o
processo, respeitado. As pessoas sempre colhem o que semeiam. Não existe
atalho” (COVEY, 2004, p. 33). Nesse sentido, tal esforço deve ser empreendido
pelo indivíduo na trajetória gradual dos 7 hábitos descobertos pelas
observações e experiência de vida de Covey. O primeiro hábito trata da
proatividade, que é a capacidade do indivíduo de tomar, mais do que a
iniciativa, as rédeas da vida:
Nosso comportamento resulta de decisões tomadas, não das condições externas. Temos a capacidade de subordinar os sentimentos aos valores. Possuímos iniciativa e responsabilidade suficientes para fazer os fatos acontecerem (COVEY, 2004, p. 91).
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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A impressão que se tem ao ler tais palavras é a de que somos senhores
do próprio destino, e nessa hora não nos sentimos sendo disciplinarizados.
Porém, ao continuar a leitura, essa revelação de que temos poder e ‘liberdade’
de escolha está toda relacionada ao trabalho:
As pessoas proativas carregam o tempo dentro de si. Faça chuva ou faça sol, não tem importância, elas avançam graças a seus valores. E se um de seus valores é realizar um trabalho de qualidade, ela não depende de o tempo estar bom ou não (COVEY, 2004, p. 92).
Ou seja, de acordo com o discurso de autoajuda, somos senhores, sim,
do nosso destino, em especial para produzirmos mais e melhor, independente
das condições de vida em que nos encontremos ou problemas aos quais
estejamos submetidos.
Isso significa dizer que só assim atingiremos o sucesso almejado,
submetendo nossos sentimentos a valores que rejam nossas vidas e que não
nos deixem reagir a estímulos externos que poderiam ‘frear’ nosso
desenvolvimento profissional e consequentemente uma vida futura dos
sonhos. “Uma pessoa só pode dizer ‘Eu escolho isso’ quando se torna capaz
de dizer ‘Sou o que sou hoje por causa das escolhas que fiz ontem’” (COVEY,
2004, p. 93).
Ainda relacionado ao tema PROATIVIDADE encontra-se a linguagem que
fazemos uso no dia a dia. Não se consegue transformar os próprios princípios
utilizando uma linguagem “reativa”. Observemos o quadro que segue
(COVEY, 2004, p. 100):
Linguagem Reativa Linguagem Proativa
Não há nada que eu possa fazer. Vamos procurar alternativas.
Sou assim e pronto. Posso tomar outra atitude.
Ela me deixa louco. Posso controlar meus sentimentos.
Eles nunca vão aceitar isso. Vou buscar uma apresentação eficaz.
Tenho de fazer isso. Preciso achar a resposta apropriada.
Não posso. Eu escolho.
Eu preciso. Eu prefiro.
Ah, se eu pudesse... Eu vou fazer.
Como vemos, tudo se trata da maneira de ver a vida e não reagir a ela,
mas sim agir, superando os problemas externos de antemão e sem titubear. O
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seu salário é baixo? (“Ah, se eu pudesse... ganhar mais”): trabalhe mais,
estude mais, mostre que é eficaz (“Eu vou fazer”). A vida baseada na
proatividade é uma “mão na roda” para os “muito indivíduos” que nem se
darão ao trabalho de motivá-los a trabalhar para que a máquina do capital
continue funcionando em perfeitas condições e produzindo cada vez mais.
Isso significa dizer que o discurso do capital do “ter” novamente se impõe ao
discurso do “ser” e o discurso de autoajuda aparece como forma de validar o
dito capitalista: se o indivíduo não “tem”, ele é o único culpado, pois o
entendimento é que não houve esforços por parte dele.
O segundo hábito trata de “começar com o objetivo em mente”,
seguindo o princípio de que tudo é criado duas vezes: a primeira é no
pensamento e a segunda no plano físico. Para descobrir o objetivo, devemos,
inicialmente, imaginar nosso próprio funeral, com as pessoas que nos são
importantes e os discursos que farão a nosso respeito.
O primeiro hábito, portanto, trata da liderança, enquanto que o
segundo, do gerenciamento:
O gerenciamento é o grau de eficácia necessário para subir mais rápido a escada do sucesso. A liderança determina se a escada está apoiada na parede correta (COVEY, 2004, p. 123).
Para Covey, é como se o indivíduo precisasse escolher um único objetivo
(o que vale a pena ser discursado no funeral) e a partir daí basear suas
escolhas em princípios que o levem a ter esse sucesso.
Ao trabalhador cabe o objetivo final de “organizar os recursos na
direção certa”, já que:
[...] no mundo dos negócios, o mercado muda tão rapidamente que muitos produtos e serviços bem-sucedidos, na preferência e na necessidade popular há poucos anos, ficaram atualmente obsoletos (COVEY, 2004, p. 124).
Ponto para o time dos “muito indivíduos”, que terão um funcionário
“sempre alerta”, traçando as metas e objetivos da empresa tendo sempre em
vista o mercado consumidor com suas demandas e variações. Mas sabemos
que se trata de um ser formatado, homogeneizado, produzido pelo discurso
de autoajuda. Diferente disso, sabemos que os sujeitos pertencem ao curso da
história (FOUCAULT, 2010) e posicionam-se social e historicamente a partir dos
acontecimentos vivenciados. A noção de sujeito em Foucault distancia-se do
indivíduo robotizado pensado por Covey em sua obra.
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Ainda quanto a “começar com o objetivo em mente” é importante
ressaltar que as companhias possuem missões que norteiam as atitudes e a
vida da empresa, as quais devem estar ‘impregnadas’ na mente de todos os
funcionários que ali trabalham. O trabalhador deve se sentir completamente
envolvido com a missão da empresa, para que tudo funcione na mais perfeita
ordem:
Um dos problemas fundamentais das organizações, incluindo as famílias, é que as pessoas não se comprometem com as determinações que outras pessoas fazem para suas vidas. Elas simplesmente não as aceitam (COVEY, 2004, p. 172).
Ainda bem, não é mesmo? Contudo, para contornar essa situação de não
aceitação, a sugestão do autor é elaborar a missão da empresa em conjunto
com os funcionários, que se sentirão profundamente envolvidos com ela. Ao
mascarar a função de empregados para a função de membros, colaboradores
etc., a empresa cria a falsa ilusão de que os funcionários são mais do que
empregados, fazem parte da “família empresarial”: cria-se, portanto, corpos
dóceis, sem a vontade da revolta e da resistência perante o movimento do
capital empresarial.
Em seguida, o autor apresenta o terceiro hábito: Primeiro o mais
importante.
O gerenciamento eficaz é fazer primeiro o mais importante. Enquanto é a liderança que resolve o que é “mais importante”, é o gerenciamento que coloca o mais importante em primeiro lugar, no dia-a-dia, a cada momento. Gerenciamento é disciplina, vontade de fazer direito.
A palavra disciplina vem de discípulo – discípulo de uma filosofia, de um conjunto de princípios, de um conjunto de valores, discípulo de um objetivo grandioso, de uma meta ambiciosa ou de uma pessoa que representa essa meta.
Em outras palavras, se você for um gerenciador eficaz de si próprio, a disciplina vem de dentro, é um produto de sua vontade independente. Você se torna um discípulo, um seguidor de seus próprios valores fundamentais e de sua fonte. E possui a vontade e a integridade para subordinar os seus sentimentos e humores a esses valores (COVEY, 2004, p. 179).
Em outras palavras, a palavra discípulo nos remete diretamente ao
sujeito disciplinarizado de Foucault, revelando explicitamente nossa sujeição à
ideologia que favorece a produção: seja discípulo de si mesmo, não
decepcione a si mesmo.
Para que o sujeito consiga organizar-se e gerenciar o tempo com
eficácia, Covey sugere um quadro, uma matriz em que se deve listar e
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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classificar as atividades diárias. Nessa matriz há 4 quadrantes: I – o que é
urgente e importante; II – o que é importante, porém, não urgente; III – o que
é urgente mas não é importante e IV – o que não é importante nem urgente
(no qual sugere atividades agradáveis, telefonemas inúteis...) (COVEY, 2004).
Sua sugestão é de que se despenda a maior parte do tempo no quadrante II,
para não sobrecarregar o I. Os quadrantes III e IV devem ser praticamente
ignorados, ou seja, seja disciplinado, trabalhe com o que é importante e
essencial para seu crescimento profissional dando prioridade ao que for
urgente, quando necessário, somente quando for algo importante para você.
Ao conseguir aplicar os três primeiros hábitos e adquirir independência
(vitória particular), chega a hora de começar a segunda parte que é o caminho
para a interdependência (vitória pública). Logo, o quarto hábito leva à
interdependência: Pense Ganha/Ganha, que consiste em que todas as
negociações devem oferecer vantagens para ambas as partes, ou senão é
“nada feito” (COVEY, 2004). Com o desenvolvimento deste hábito, a empresa
tem um ganho de confiança do empregado, já que terá um acordo com ele de
atingir certas metas e ser devidamente recompensado. Afinal, se o funcionário
trabalhar mais, a empresa terá mais lucro, o que será refletido em seus
proventos; além do que as companhias que introduzem o hábito Ganha/Ganha
não precisam se preocupar com a supervisão dos funcionários que serão mais
autônomos e independentes:
Desenvolver um acordo Ganha/Ganha de desempenho como este é a atividade central da administração. Tendo um acordo firmado, os empregados podem cuidar de si mesmos, a partir das referências deste acordo. O gerente pode então agir como o carro-madrinha em uma corrida. Ele dá início à prova, depois sai do caminho. Seu trabalho, daí em diante, é remover as manchas de óleo (COVEY, 2004, p. 273).
O quinto hábito – Procure primeiro compreender, depois ser
compreendido – apregoa exatamente isso: compreenda o que o outro quer lhe
comunicar, não tente atropelar suas palavras com sua própria experiência ou
tentar oferecer uma solução pronta que funcionou com você. Só assim será
possível “tocar” uma pessoa a ponto de influenciá-la, afinal, todos nós
queremos ser ouvidos.
Se você deseja interagir eficazmente comigo, influenciar meus pensamentos – ou os pensamentos de sua esposa, seu filho, seu vizinho, seu chefe, seu colega, seu amigo -, primeiro precisa compreender. E isso não pode ser feito unicamente com base na técnica. Se eu perceber que você está usando alguma técnica, noto
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que existe ambiguidade, manipulação. Desconfio dos motivos que o levam a fazer isso. E não me sinto suficientemente seguro para abrir meu coração a você (COVEY, 2004, p. 286).
Essa tão desejada influência é extremamente importante no momento
de persuadir os clientes a consumirem, porque é necessário compreender o
que as pessoas querem, o que os consumidores esperam dos produtos e
serviços que as companhias oferecem.
O sexto hábito fala da sinergia que é a união das diferenças para criar
algo novo, por meio do pensamento Ganha/Ganha e da empatia, que criam o
ambiente propício para que surja a sinergia, a qual vai gerar resultados
eficazes e criativos.
A sinergia não poderia criar um roteiro para a nova geração – uma geração mais voltada para servir e contribuir, que fosse menos protetora, menos antagônica, menos egoísta; uma geração mais aberta, mais confiante, mais confiável; menos defensiva, desconfiada e política; mais amorosa, mais dedicada e menos possessiva e crítica? (COVEY, 2006, p. 317 e 318)
Todas essas aspirações para a nova geração possuem sua razão de ser,
afinal, servir, contribuir, colaborar, ser confiante e confiável são ações que
devem fazer parte da evolução da humanidade. Porém, deixar de ser políticos,
críticos é um grande retrocesso e muito conveniente para quem está no poder
e quer deixar tudo como está; ou ainda, podemos pensar no discurso de
autoajuda como um alienante de consumo, pois, aqui, a sinergia aparece de
modo a abafar as relações de contradições sociais.
Por fim, o sétimo hábito – Afinando o Instrumento – nada mais é do que a
manutenção dos outros seis hábitos, levando em conta “as quatro dimensões
de sua natureza – física, espiritual, mental e social/emocional” (COVEY, 2004,
p. 346). O sétimo hábito aparece como a garantia de manter os hábitos
eficazes funcionando em perfeita ordem, diariamente, para que não os
deixemos de lado, para que continuemos sempre produzindo da melhor
forma possível, sem que, sequer, fiquemos doentes.
Este é o investimento isolado mais poderoso que podemos fazer na vida – investir em nós mesmo, no único instrumento que possuímos para lidar com a vida e contribuir para a humanidade. Somos todos instrumentos para nosso próprio desempenho, e para atingir a eficácia precisamos reconhecer a importância de dedicar algum tempo, com regularidade, para afiar a serra, ou afinar o instrumento, das quatro maneiras (COVEY, 2006, p. 347).
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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Ao trazer para o indivíduo a responsabilidade de “investir em si mesmo”,
o discurso de autoajuda manipula a ideia de que, na verdade, todo o
investimento trazido até então diz respeito ao investir a sua força de trabalho
na empresa, no capital, na economia. Há, sobretudo, um dizer de seremos
plenos se formos “eficazes” e a eficácia se constrói se “dedicarmos algum
tempo, com regularidade”. Nesse sentido, o autor traz para o trabalho
(trabalhar a si mesmo) a ideia de que somente por ele é que o indivíduo
poderá deixar a sua “contribuição para a humanidade”. Nesse sentido, o autor
apaga a luta cotidiana dos trabalhadores, inculcando por meio do discurso de
autoajuda a ideia de que podemos ser quem queremos ser. Logo, o discurso
de autoajuda funciona como um elemento ilusório: emoldura uma outra
realidade de trabalho, idealizada e de difícil acesso, pois não traz as
dificuldades enfrentadas no dia a dia do trabalhador no ambiente de uma
empresa. Nossas condições histórico-ideológicas se fazem presentes nesse
discurso de autoajuda e “se constituem relativamente às coerções da
formação em que se inscrevem” (ORLANDI, 2007, p. 71).
Considerações finais
Ao tratar sobre o discurso de autoajuda em relação ao tema do trabalho,
podemos observar como que os discursos capitalista e econômico transitam
na obra de Covey, Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes. Observamos
que o discurso do capital do “ter” camufla o “ser”, no entanto, o presente
artigo é apenas uma amostra do que pode ainda ser estudado em termos de
discurso de autoajuda empresarial. Nesse sentido, não temos a ilusão de
acreditar que este trabalho esteja completo, nem de que aqui se fecha.
Observamos que é possível estudar o discurso de autoajuda também
considerando a sua confluência com outros discursos, por exemplo, o
religioso, que é muito citado na obra em estudo.
Em Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes há citações do Dalai Lama,
Goethe, Aristóteles, entre outros, ou seja, o discurso de autoajuda ainda se
apropria de dizeres da espiritualidade, da literatura e da filosofia para se
autovalidar. No entanto, quando analisamos de modo mais crítico, podemos
observar, por exemplo, no caso da filosofia, que a área não é tendenciosa, não
favorece um lado da moeda, mas sim o ser humano em sua integridade de SER
HUMANO. A filosofia pode ser convenientemente usada como uma
camuflagem, uma lente que muda o foco do leitor para as questões, diga-se
GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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de passagem, ‘nobres’ da vida, mas se observarmos com atenção, veremos
que se trata de uma distorção da filosofia para que a autoajuda deixe a sua
mensagem: “Somos o que repetidamente fazemos. A excelência, portanto,
não é um feito, mas um hábito” (ARISTÓTELES apud COVEY, 2004, p. 62). Fica
evidente que Covey utiliza-se de uma citação de Aristóteles para pontuar
outro contexto, bem distinto do que foi proposto (e por condições de
produção bem distintas também); aqui, o contexto de que a prática dos
hábitos por ele mencionada fará do indivíduo um sujeito eficaz. Covey valida o
seu dizer ao trazer para o texto de autoajuda a (falsa) ideia de que Aristóteles
concordaria com ele, pois exalta a excelência da prática dos hábitos. Logo,
devemos desconfiar: será que é de fato nesse contexto que Aristóteles diz o
que Covey diz que ele diz?
O discurso de autoajuda empresarial, portanto, é um discurso alienante,
pois tenta conduzir o leitor (trabalhador) a ter atitudes práticas de um
trabalhador perfeito, um trabalhador de hábitos eficazes, mas não um ser
humano pensante, crítico da sua condição pessoal, um questionador atuante
da sociedade em que vive. Covey, em Os 7 hábitos das pessoas altamente
eficazes, coloca-se no lugar de alguém que pode ajudar qualquer trabalhador a
obter sucesso profissional e, consequentemente, uma vida financeira e social
de prestígio e facilidades. Porém, podemos observar em seus dizeres que o
grande favorecido é o capital, os donos das grandes empresas, o lucro, a
máquina que não para de nos dizer o que fazer, comer, vestir, comprar,
CONSUMIR.
REFERÊNCIAS
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GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.
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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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A AMBIGUIDADE DOS LETRADOS E O ENSINO DA LÍNGUA
MATERNA NO BRASILi
João Wanderley Geraldiii
Resumo: A predominância do português no Brasil conta com mais ou menos 250 ou 300 anos. Antes predominaram as duas línguas gerais, uma baseada no Jê (no norte) e outra no tupi-guarani (na costa). A política linguística do gabinete do Marquês de Pombal, ao proibir as línguas gerais em 1749, começa efetivamente a implantação da língua portuguesa. Provavelmente seríamos bilíngues não fosse esta política. Somente 100 anos depois a questão da língua passa a ser focalizada, com os indigenistas. Desde então, há uma posição dúbia dos letrados em relação aos falares do povo brasileiro, que oscila segundo as condições políticas: em épocas de concentração do poder, uma aproximação; em épocas de estado de direito, uma desaprovação. Este movimento pendular tem reflexos nos objetivos e objetos de ensino escolar sobre os quais será necessário debruçar-se.
Abstract: The predominance of the Portuguese language in Brazil has been a fact for about 250 or 300 years. Before the two general predominant languages , one based on Jê (in the north) and another based on the Tupi-Guarani (on the coast). The language policy of the cabinet of the Marquês de Pombal who prohibited the general languages in 1749 effectively started the deployment of the Portuguese language. We would probably be bilingual if it was not for that policy. Only 100 years after the issue of language has started to be analyzed by the indigenous. Since then there’s been a dubious position of scholars in relation to the different talk spoken by the people which dangles under the political conditions: in times of concentration of power there’s an approximation but in times of state law there’s a disapproval. This pendulum is reflected on the goals and objects of schooling on which we’re going to analyze.
i Palestra proferida durante o XVII EBEL – Encontro Baiano de Estudantes de Letras, UESC, 16.11 2013. Este texto retoma textos anteriores e foi organizado especificamente para esta exposição.
ii Docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil.
GERALDI, João Wanderley. A ambiguidade dos letrados e o ensino da língua materna no Brasil. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 108-121, dez.2013.
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1 Os letrados e suas oscilações
Nós temos mais ou menos só 250 anos de implantação do Português no
Brasil. Nós sempre esquecemos disto. É o Marquês de Pombal e a política do
seu gabinete que proíbe o uso das línguas gerais, que foram duas. Uma no
norte, no Grão-Pará, e outra da costa, de base tupi-guarani (o Nheengatu, a
“boa língua” de que nos resta a Arte da Gramática de Anchieta). A presença
da língua geral era tão forte que, a propósito da situação, em meados do
século XVII, Vieira escreve que as famílias dos portugueses e dos índios
estavam tão ligadas, que a língua que nelas se falava era ‘a língua dos índios’, e
que os filhos de portugueses somente iriam aprender a Língua Portuguesa na
escola (cf. Soares, 1996).
A emergência das línguas gerais, resultado do contato entre um povo
falante de uma única língua – os colonizadores – e uma população distribuída
em várias nações de diferentes línguas, mostra que os processos interativos,
as necessidades da vida foram mais fortes do que a língua trazida pelos
colonizadores. Certamente, o interesse dos portugueses era muito mais de
exploração imediata das possíveis riquezas do novo território, mas também há
um fato incontestável: a presença dos colonizadores aproximou as nações
indígenas entre si, o que lhes exigiu a construção de uma língua de contato.
Não fosse a política linguística do gabinete do Marquês de Pombal, hoje
seríamos um país, no mínimo, bilíngue1. Tivesse sido outra a história,
poderíamos estar às voltas com os mesmos problemas linguísticos
enfrentados pelas antigas colônias portuguesas da África, como Cabo Verde,
Moçambique etc., ou enfrentando as mesmas discussões entre o português e
o totum como acontece no libertado Timor Leste2.
Digamos que de 1750 a 1850, portanto até meados do século XIX, houve
no Brasil uma política linguística de glotocídio, uma política inicialmente da
metrópole, e também depois do país já independente. Quer dizer, uma política
de glotocídio acompanhada do genocídio histórico das populações indígenas.
Implanta-se o português. Os colonizadores foram muito bem sucedidos nesse
sentido, pois em menos de 100 anos, um país do tamanho do nosso já fala o
português (ou os vários “portugueses”). Isso é um sucesso espetacular em
1 Obviamente sei que a unidade linguística em torno do português é uma afirmação falsa, porque esquece as minorias linguísticas existentes no país.
2 Isto não quer dizer que nossa situação é melhor do que aquela enfrentada pelos países africanos, oficialmente de língua portuguesa.
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termos linguísticos. Obviamente, nós somos plurilíngues, temos 180 línguas
indígenas, mais umas 20 outras línguas faladas no Brasil (de imigrantes), mas
na verdade, a língua nossa, de uso comum é o português.
É em meados do século XIX que pela primeira vez aparece a questão da
língua no ambiente cultural da “inteligência brasileira”. Os letrados latino-
americanos em geral, em todas as nossas cidades, formaram uma espécie de
um anel em torno do poder3. Mesmo Machado de Assis, por exemplo, apesar
da sua genialidade, circula em torno do poder, jamais em torno de sua própria
etnia.
Chamo atenção para um fenômeno marcado na língua: o gesto de
escrever, a escritura, é também o documento pelo qual se garante
cartorialmente a propriedade. É por uma escritura pública que você adquire a
propriedade da terra. A expressão escritura tanto nos serve para definir um
certo modo de escrever, quanto um certo modo de propriedade. Para além
dos grafitis, das pichações e outras raras escritas nos muros da cidade, talvez a
escritura pública de propriedade seja uma das poucas escritas públicas deste
país, ainda hoje. E ambas serem escritura são resquícios dessa relação entre
letrados e poder.
Voltemos a meados do século XIX e tomemos José de Alencar como um
nome mnemônico dessa época do segundo Império, com o poder centralizado
na figura do Imperador, com Assembleia praticamente nomeada pelo
Imperador. Estávamos sob a Monarquia, e um intelectual como José de
Alencar, mas não só ele, todos os indianistas, escrevem em português
trazendo o mundo indígena para dentro das letras – não só como heróis
mitificados e mistificados, mas também alterando sintaxe e vocabulário do
português. José de Alencar é um bom exemplo, porque dirá que cabe ao povo
criar a língua, e cabe ao escritor burilar as criações e fazer com que essas
criações entrem no sistema da língua. Eis que encontramos aí um papel
linguístico atribuído ao povo: o da criação. Efetivamente só vira língua depois
que passou pelos grandes escritores, mas se dá ao povo o direito de ser
criativo em termos de linguagem como se dissessem: vocês podem criar,
depois nós apadrinhamos as suas criações que julgarmos adequadas e as
criações assim apadrinhadas por nós passam a ser legitimamente
portuguesas. Um resquício deste espírito? Nossa preocupação em usar
3 A propósito, ver Rama (1985)
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palavras dicionarizadas, como se o dicionário as tornasse adequadas. Não está
no dicionário, não faz parte da língua. Glotocídio e cartorialmente estão
devidamente sublinhadas em vermelho pelo meu computador, como a me
dizer: procure outra expressão adequada!!!
Em 1889, inauguramos a República por uma sequência de ditaduras
militares: Deodoro e Floriano são militares que assumem o governo. Somente
no alvorecer do século XX, teremos a primeira eleição para Presidente. A partir
daí temos um Estado de direito, um conjunto de leis, com a distribuição do
exercício do poder definida. Não há mais a concentração do poder na figura
do Imperador ou dos ditadores. O poder se exerce segundo certas regras
estabelecidas e de forma compartilhada por vários agentes sociais.
O que acontece na “inteligência nacional” como fenômeno mais
importante na área de linguagem nos anos 900 é o debate entre Rui Barbosa e
Carneiro Ribeiro a propósito da correção gramatical do Código Civil. Não
interessa que o código civil trate, nesta época, a mulher como inferior e
subordinada ao homem – a falta da virgindade era motivo de anulação de
casamento enquanto vigorou este Código - mas interessava se deveria ou não
haver uma vírgula. E isto se discutiu publicamente, na revisão do código, com
direitos a réplicas e tréplicas. Monumentos de nossa cultura, até hoje
reverenciáveis.
Isso revela um período em que a “inteligência nacional” é extremamente
marcada pelo purismo linguístico. Se você tem um Estado de direito, que se
democratiza pelos processos republicanos, então o poder passa a ser
compartilhado, quer dizer, é alargado o número de pessoas que exercem o
poder e, nesse momento, é preciso ‘reconhecer’ que o povo não sabe falar,
que é preciso corrigir o português desse povo. Por isso, o poder deve ficar
restrito às elites econômicas e culturais. São deste período as velhas crônicas
jornalísticas com discussões de “firulas gramaticais”. É do contexto dessas
discussões que surgem livros como o de Cândido Figueiredo ou de Paulino de
Brito, a propósito da sintaxe de colocação dos pronomes. Bem mais tarde
aparecerá o poema de Manuel Bandeira ridicularizando as regras de colocação
de pronomes que proíbem iniciar uma frase com um pronome oblíquo. E não
são somente eles, nem somente no que hoje chamaríamos de ‘grande
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imprensa’. Discutir correção gramatical é também uma ação da imprensa
negra!4
Em 1922, a “inteligência nacional”, especialmente os artistas plásticos, se
une na Semana da Arte Moderna, com um pouco de atraso em relação ao
resto da Europa, em nome do Modernismo. Esse Modernismo não é tão
moderno na área da poética e da literatura: representa-as Graça Aranha!
Somente mais tarde, na área da arte verbal, chegará de pleno o modernismo,
marcado pelas obras dos Andrades: Mário de Andrade e Oswald de Andrade5.
Jorge Amado começa sua vasta produção precisamente durante este período.
E em termos de construção linguística, é um autor que traz para seu texto a
linguagem popular.
E o que temos politicamente? Temos a ditadura Vargas. A “inteligência
nacional” perde o poder, que já não é mais exercido segundo regras
estabelecidas com certa distribuição de suas benesses. E quando os letrados
perdem o poder, eles se aproximam do povo, inclusive admitindo que se fale
de outros modos.
1945, final da ditadura Vargas. Em 1946, temos nova Constituição, e um
Estado de direito mais uma vez nestas nossas raras experiências de
democracia formal durante o século XX. Estamos na segunda República. Nesse
período, a “inteligência nacional” retorna à questão da língua. São dessa
época as publicações das gramáticas que até hoje continuam sendo
reeditadas, com exceção da gramática de Rocha Lima. A 2a edição de
Napoleão Mendes de Almeida é de 1948 (não consegui acesso à primeira
edição); Celso Luft escreve sua primeira gramática nesse período e na área da
Literatura surge a geração de 45, que não é composta apenas por Drummond.
Há entre eles poetas extremamente puristas em termos de linguagem (que o
nome do mineiro Abgar Renault sirva de exemplo). Essa geração, incluindo
mesmo João Cabral de Melo Neto, é extremamente purista em termos de
4 Getulino, um jornal da imprensa negra de Campinas, da década de 1920, também publica discussões deste tipo, conforme a tese de doutoramento de José Geraldo Marques “Imprensa e resistência negra: o projeto integracionista em discursos do Getulino. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp. Data de defesa: 21.02.2008.
5 Mário de Andrade escreveu anos antes do início da ditadura uma gramatiquinha do português, dentro do espírito modernista. Mas seus escritos passam a ter ressonância mesmo depois de 1930, porque suas mais importantes obras serão desta década. Aqui, como em todos os outros períodos assinalados, há interpenetrações. As datas não são rígidas: tratam-se de períodos mais ou menos equivalentes, até porque nas práticas sociais e escolares se antecipam ou são decorrências das situações políticas.
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correção linguística, ainda que ideologicamente sejam “de esquerda”.
Novamente Jorge Amado é um exemplo, mas já em 1959 há uma mudança de
rota em seus romances: mantém-se a forma, mas orienta-se muito mais para
os costumes do que para a realidade social tão bem retratada em “Capitães da
Areia”. Note-se que mesmo um socialista posteriormente perseguido pela
próxima ditadura, como Houaiss, é um filólogo extremamente exigente e
formal. O dicionarista é até muito aberto a novidades: para ele a riqueza de
um idioma se ‘mede’ também pelo número de itens lexicais. Em certo sentido,
Houaiss é um José de Alencar de um século depois.
A questão da gramática, da correção gramatical e do ensino da
gramática permanece como uma característica da formação da “inteligência
nacional”, dos anos 1945 até mais ou menos os anos 1960. Em 1964, novo
golpe militar. A Universidade é esvaziada por cassações de direitos políticos e
aposentadorias obrigatórias. Os letrados são alijados do poder, em benefício
dos milicos e seus supostos técnicos. Alguns destes técnicos estão até hoje em
nossa política, como Delfim Neto, um dos signatários do AI-5. Não podemos
negar um paradoxo: para obter e manter apoio na classe média, a ditadura de
então produz uma expansão da oferta educacional, a enorme custo social. A
escolaridade básica passa de 4 para 8 anos; o ensino superior se interioriza e
se expande com queda de qualidade e pela rede privada de ensino. Mas é
inegável uma democratização do acesso à escolaridade. Certamente estariam
os letrados até hoje discutindo se haveria ou não condições de um ensino
fundamental de oito anos no Brasil!!! Que sirva de exemplo o tempo que
ficamos discutindo a implantação do ensino básico de 9 anos!
O golpe militar se firma de fato em 1968 com o AI-5. Nos quatro
primeiros anos do Castelo Branco, ainda colocávamos a cabeça para fora,
chegando até a haver um candidato à sucessão do Castelo Branco, o General
Albuquerque, supostamente mais democrata do que o sucessor efetivo, o
general de plantão Costa e Silva, depois assassinado e substituído por uma
junta militar que assina o AI-5 e se deixa suceder por Garrastazu Médici,
período mais tenebroso de nossa última ditadura.
Que acontece com a reflexão sobre a Língua Portuguesa neste período?
Ela desaparece até como disciplina escolar, torna-se Comunicação e
Expressão. Para carnavalizar a política linguística da ditadura, talvez possamos
tomar como modelo maior de comunicação e expressão, encontrado na
televisão, o bem sucedido Chacrinha! Ele continua balançando a pança e as
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massas. “Quem não se comunica se trumbica”. Importa é comunicar; o resto
não interessa. Muitos dos professores de hoje são produtos dos cursos do
primeiro grau idealizados e realizados dentro dessa perspectiva
comunicacional. Desde então, uma espécie de crise do ensino tradicional da
gramática fica exposto: ferida não cicatrizada até hoje.
Não por acaso, de novo durante uma ditadura, temos uma liberalização
linguística. Quando se tem uma concentração no poder, libera-se a fala, e o
espírito gramatiqueiro de nossa cultura baixa a guarda.
A história nos mostra esta oscilação ambígua dos letrados: quando no
poder, são os primeiros a se preocuparem com a língua, com sua correção,
com sua unidade; quando alijados do poder, aproximam-se do povo e de seus
modos de falar. Obviamente, são gerações distintas, não são sempre os
mesmos intelectuais. O que importa ressaltar é essa constância no movimento
histórico das elites brasileiras.
As consequências na história do ensino da língua são mais ou menos
nítidas: durante o Império, as aulas régias contemplavam a língua como
disciplina, e seu estudo se fazia comparativamente à língua latina. Mas eram
poucos aqueles que chegavam às aulas, de modo que o período foi pouco
significativo e a liberdade de linguagem ocorre entre nossos primeiros
romancistas indigenistas. Na primeira república, as seletas de prosa e verso e
as gramáticas povoaram as salas de aula. Durante a ditadura Vargas, se a
intelectualidade pôde respirar alguma liberdade graças à atuação do ministro
Capanema (nem todos, lembremos que Graciliano vai para a cadeia e Jorge
Amado é perseguido), as salas de aula continuaram onde estavam: lendo
textos seletos e aprendendo gramática. O ensino gramatical perdurará firme e
solene até o advento da reforma de 1971, em plena ditadura militar. A única
novidade foi a Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959, que padronizou a
terminologia gramatical para os efeitos de ensino da língua (e continuamos
até hoje a definir “pronome como aquele que substitui o nome” sem termos a
classe dos “nomes”).
A partir da reforma e com a introdução da disciplina “Comunicação e
Expressão”, muda-se o objeto de estudo: elementos da teoria da comunicação
passam a fazer parte do que se ensina e se aprende; busca-se a expressão
criativa (há manuais de criatividade publicados nesta época!) e também
entram para dentro da sala de aula os textos de leitura. A coleção de livros
didáticos assinada por Magda Soares, “Português através de textos” indiciam
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esta novidade nos objetos de trabalho de sala de aula. E muitos serão os
gêneros acolhidos – não mais textos literários seletos, em prosa e verso – até
mesmo histórias em quadrinhos. Um espanto para qualquer professor por
acaso ainda vivo da primeira república!
2 Um período de interregno – O período da redemocratização
A continuidade desta oscilação poderia ter continuado na
redemocratização. No primeiro ano de governo de Sarney, uma comissão
nacional é nomeada para definir diretrizes para o ensino da língua portuguesa!
Mas havia acontecido a Linguística e seus pecados originais (estudar a língua
oral e considerar autoridade o falante, e não o escritor) e nesta linha histórica
há um interregno. Acontece que com as cassações e perseguições políticas, e
com a expansão das universidades, abriu-se um espaço para a presença no
meio intelectual de convidados não previstos. Sobrou a grande liderança do
Antônio Cândido, aberto às questões sociais. Mas a Universidade, após seu
esvaziamento com as cassações, buscou sangue novo, que vem de outro lugar
e o que se tem agora é a constituição de outra inteligência ou de intelectuais
brasileiros fortemente vinculados aos estudos linguísticos, e não à cultura
clássica, aos estudos filológicos ou aos estudos da crítica literária clássica. A
maioria dos sobrenomes que povoam nossas bibliografias é de descendentes
de imigrantes, de intelectuais procedentes dos níveis sociais ditos ‘inferiores’.
A Universidade expandida é tomada, em nossa área, pelos estudos das
disciplinas linguísticas, que acabam ocupando um grande espaço nos Cursos
de Letras, um grande espaço curricular, que traz consigo um conjunto de
informações e perspectivas sobre a língua, levando a um conjunto de
produção nas áreas de sociolinguística, gramáticas descritivas e, sobretudo,
uma reação ao normativismo.
Felizmente, não há mal que sempre dure! Em 1982, tivemos a primeira
eleição para governadores. Foi a primeira vez que a nossa geração votou para
governador, a geração que nasceu nos anos 40. Temos o movimento das
“Diretas já”, o processo de redemocratização que vai desaguar na eleição
indireta do Tancredo e depois a presidência exercida pelo Sarney. Nesse
período, temos uma espécie de abertura (política, mas não econômica).
Este momento da chamada redemocratização – um período de transição
que vai de 1980 ao primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso –
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encontra uma “intelectualidade” universitária diferente daquela de meados
do século. Refugiada nas universidades, contava agora com o “respaldo” da
pesquisa e do conhecimento dito científico. Este novo grupo, na maioria
procedente de classes médias baixas, tinha sido beneficiado com a expansão
do ensino superior (na rede privada), com o desenvolvimentismo nacionalista
(inclusive na área da pesquisa), com a criação dos centros de excelência com
mestrados e doutorados.
Agora temos uma “inteligência” universitária muito ligada à escola
básica; em nossa área, praticamente desapareceram os estudos filológicos em
benefício das pesquisas em linguística e um conjunto de estudos que tomam a
obra literária como objeto mas que não restringia seus estudos à crítica
literária tradicional, mas levantava novos temas como a leitura (envolvendo o
outro que não o autor); a vida literária não se resumia mais à produção e às
noites de autógrafos nos cafés: a circulação social do próprio livro é que
interessa a esta nova inteligência.
Na Universidade, em nossa área, os estudos discursivos, enunciativos,
pragmáticos passam a prevalecer a partir dos anos 1980. O período de
redemocratização política veio encontrar a Universidade fervilhando de ideias,
sem que houvesse uma posição hegemônica: estávamos nos processos de
derrocada dos estudos estruturalistas, não havia um só modelo que
merecesse o apoio de todos os pesquisadores. Os resultados das pesquisas
sociolinguísticas, da análise da conversação, da linguística textual, dos estudos
da língua oral, da análise do discurso, estavam todos apontando para outras
perspectivas, totalmente distintas do normativismo.
É nesse contexto universitário que a política da redemocratização
encontrará seus ‘intelectuais orgânicos’. Com a redemocratização, os
governadores eleitos trouxeram para as secretarias intelectuais do meio
universitário. O momento era de abrir as gavetas e ver que propostas havia. Eu
lembro discussões com o Prof. Gadotti, que dizia que estávamos passando da
crítica à ação, e a pergunta fundamental era: o que fazer agora? E essa era uma
pergunta constante para todos nós. Muitas teses surgiram nesse contexto e
sobre este contexto. Em São Paulo, na prefeitura, a Profa. Guiomar Namo de
Mello assume a Secretaria de Educação, e promove estudos curriculares de
que resultaram os Planos Curriculares, os primeiros elaborados após a
redemocratização. Eles servirão posteriormente de modelo para os inúmeros
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planos curriculares dos estados, a partir dos quais nascerão os Parâmetros
Curriculares Nacionais.
Neste “período de transição”, muitas iniciativas buscavam alterar o
processo de ensino. Em lugar de um “objeto” a ser estudado, propunha-se
que o processo fosse de práticas linguísticas de leitura, de produção de textos
e de reflexão sobre os recursos linguísticos disponíveis numa mesma língua,
introduzindo, pela primeira vez a diversidade linguística como característica da
língua, e não mais a uniformidade e a correção como lemas do processo de
ensino e aprendizagem.
Talvez a expressão mais sucinta deste período de “interregno” político
em que posições mais populares sobre a língua e a democratização andam
juntas seja o fato de que toda a redemocratização se faz sob o “signo da
participação”: são milhares de seminários, grupos de estudos, chamada de
professores do chão da escola para opinar sobre propostas de ensino. A
sociedade civil sai vitoriosa, inclusive no texto da Assembleia Nacional
Constituinte (a Constituição de 1988).
Isto não se fez sem uma constante militância. Não só porque a elite
pensou em intervir através da comissão de 1985 para definir as “diretrizes
para o ensino da língua materna”, justificada na necessidade de “salvar” a
língua pátria e sua pureza conspurcada pela intromissão da fala popular nos
textos e nas escolas. São dessa época também, por exemplo, os Manuais de
Redação de diferentes jornais – são inovadores, mas também freios ao avanço
de novas formas de dizer e de escrever.
3 A proposta neoliberal: os Parâmetros Curriculares
Este movimento político-cultural de mobilização social, com discussões
dos rumos do país em todos os seus aspectos – economia, saúde, educação,
reforma agrária etc – pôs em evidência dois projetos distintos de sociedade:
aquele preconizado por um desenvolvimento social alicerçado numa maior
distribuição da riqueza e aquele preconizado pelo neoliberalismo de inclusão
dependente do país nos processos de globalização. Este o divisor de águas no
processo eleitoral de 1989, representado pelas candidaturas de Collor (com
apoio da mesma burguesia que apoiara o golpe militar) e Lula (com apoio dos
movimentos sociais).
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Assim, com Collor, em 1990, o neoliberalismo inicia o processo
econômico e político de abertura do mercado brasileiro para a globalização
liderada pelos EEUU e o desmantelamento do estado de bem estar social que
apenas começava a desenhar-se. As resistências foram poucas e o novo
modelo vai-se aprofundando até chegar a seu auge no primeiro e segundo
governos de Fernando Henrique Cardoso, aquele que pediu para que
esquecessem tudo o que tinha escrito.
Qual proposta educacional traz este movimento? Além da privatização
do mercado escolar – que no ensino superior já se iniciara nos governos
militares – tratava-se de “avaliar” o sistema para torná-lo mais “eficaz e
competente”, detectando seus gargalos, seus defeitos de modo a apontar
para a sociedade quais as instituições que mereciam maior investimento
porque eram mais produtivas em seus resultados6.
Como avaliar – organizar provas nacionais – se não havia uniformidade
nos planos curriculares e no que se ensinava nas diferentes escolas brasileiras?
Surgem então os PCNs, cujo próprio nome já confessa seu objetivo:
parâmetros! Assim o projeto educacional neoliberal transformou os planos
curriculares em parâmetros curriculares (parâmetros são formas de medida
que exigem um tipo específico de ação, mas jamais um convite a ações de
outra ordem).
Ora, as concepções de linguagem que iluminavam as propostas de
muitos planos curriculares eram diametralmente opostas às necessidades de
um “objeto de ensino definido” que precisa ser aprendido e devolvido como
sabido nas provas de avaliação do sistema. Foi neste momento que surgiu o
novo objeto de ensino da língua portuguesa. Do curto período (anos 1980-
1995) de tentativas de centrar o ensino e a aprendizagem em práticas, passa-
se, a partir de 1995, a estudar os gêneros do discurso, as esferas sociais de
seus usos, suas características e a se cobrar que o aluno conheça
“teoricamente” todas as esferas da comunicação e todos os diferentes
gêneros que por elas tramitam, e demonstre este saber não só lendo as
6 Até hoje isto permanece, particularmente nos programas de pós-graduação, numa concentração de recursos dentro daqueles cursos que mostram “excelência”, invés de investir precisamente onde mais há necessidade! Que o digam as novas universidades e os minguados recursos destinados a seus programas de pós-graduação recém iniciados! CNPq, CAPES e outros órgãos financiadores funcionam como bancos comerciais: se você mostrar que tem recursos para garantir nossos investimentos, nós investimos em você! Experimente obter um empréstimo em qualquer banco sem mostrar suas garantias de pagamento...
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materialidades textuais, mas também produzindo textos que funcionem de
acordo com o previsto. Trata-se agora de dizer o que se quer, e aplicar provas
para verificar se os alunos aprenderam ou não. E informa-se ao mercado onde
estão se ‘formando’ os melhores.
Com base nas provas, organiza-se a hierarquização das instituições de
ensino. Do ensino superior à escola básica. Há até ‘gratificações’ para
professores quando sua escola atinge bons índices nestas avaliações. Esta é a
proposta neoliberal. O mercado vai fechar as piores instituições ou elas
próprias, como novas Fênix, se levantariam do chão pelas próprias forças
como o Barão de Münchhausen se salva das areias movediças puxando os
próprios cabelos...
Somente um governo que pensa a educação desta forma pode chamar
um Pasquale Neto para fazer a Campanha do ENEM. Nada mais distante do
que apregoam os PCNs de língua portuguesa do que o trabalho de Pasquale
Neto!
Infelizmente, esta política somente vem se agravando ou aprofundando
nos últimos anos, particularmente na escola básica. Hoje, o movimento
“Todos pela Educação” (diferentemente do movimento “Educação para
Todos” da década de 1980) frequenta diretamente os gabinetes do MEC,
interfere no Plano Decenal de Educação e vende pacotes pedagógicos para as
redes públicas de ensino: Alfa & Beto, Ensino Estruturado, Acelera, Apostilas
do Positivo ou do Anglo, Sistema de Avaliação Mares Guia, Sistema Pitágoras e
assim por diante.
Estamos mais uma vez num estado de direito, com uma constituição
prevendo as formas do exercício do poder, com as formas de compartilhar
este poder. Trata-se de um “estado de direito”, não de uma sociedade
democrática. E neste Estado, eis que retorna na nossa cultura a preocupação
com a linguagem, com a correção, com a gramática. Há uma gramaticalização
dos gêneros; a imprensa cobra qualquer deslize ortográfico; a indicação da
possibilidade de variação linguística num livro didático é execrada pela opinião
publicada.
Seguindo a história, a história de como a “inteligência brasileira” sempre
colocou a questão da linguagem, está mais uma vez na hora de calar o povo,
porque não sabe falar. É preciso primeiro aprender a falar direito, aprender a
escrever sem erros, para depois querer participar da riqueza e do poder.
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Trata-se do poder e não é por acaso que nós, professores de Língua
Portuguesa, estamos trabalhando em perspectivas discursivas, enunciativas
etc. Estamos novamente caindo na resistência, porque o projeto dos próximos
anos, que só poderão ser avaliados daqui a muitos anos, vai ser o ensino de
gramática, e o ensino da gramática tradicional como uma forma de exclusão
dos sujeitos falantes, uma forma de seleção e exclusão de sujeitos num Estado
de direito, quando a “inteligência brasileira”, os intelectuais brasileiros
alteram os seus vínculos de classe, e retornam ao bom abrigo de sua pertença
de classe. Sobrarão resistências?
As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima. Prediletamente latas. Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas. Se você jogar na terra uma lata por motivo de traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar. Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias. Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas. E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar. Por isso eu acho as latas mais suficientes. A gente pega uma lata, enche de areia e sai puxando pelas ruas moda um caminhão de areia. E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido pelo espírito, não dá para encher de areia. Por isso eu acho a lata mais suficiente. Ideias são a luz do espírito – a gente sabe. Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba atômica, a bomba atôm....................................... ..........................................................Agora eu queria que os vermes iluminassem. Que os trastes iluminassem. (Manoel de Barros, Teologia do Traste)
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REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel. Poemas Rupestres. São Paulo: Record, 2004. MARQUES, José Geraldo. Imprensa e resistência negra: o projeto integracionista em discursos do Getulino. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2008. RAMA, Angel. A cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. SOARES, Magda. Português na escola: história de uma disciplina curricular. Revista de Educação AEC, v. 101, out/dez, 1996, p. 9-26.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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TRAÇOS DA POLIFONIA BAKHTINIANA NO ROMANCE
BRASILEIRO: O TEMPO E O VENTO, DE ERICO VERISSIMO
Marcio da Silva Oliveirai
Resumo: O objetivo do presente artigo é trabalhar com o conceito de polifonia proposto por Mikail Bakhtin em seu livro Problemas da Poética de Dostoievski e como esse conceito pode ser aplicado à terceira parte da obra O tempo e o vento, de Erico Verissimo, intitulada O Arquipélago. Bakhtin utiliza-se do conceito de polifonia para destacar uma contraposição entre o romance monofônico, também conhecido como tradicional, de uma forma peculiar de romance, onde cada personagem funciona como um ser autônomo, que cultiva sua própria visão de mundo e que não está submetido à visão de mundo do próprio autor. Para o teórico russo, o escritor tido como referência em se tratando de romance polifônico é Fiodor Dostoievski (1821-1881) que, segundo ele, foi o único capaz de alcançar a magnitude do significado do termo. O conceito de polifonia é, muitas vezes, confundido com outros termos da linguística como, por exemplo, o dialogismo, por isso, é necessária muita cautela na definição de um romance como sendo polifônico. Sendo assim, a presente investigação busca evidências que comprovem traços da polifonia bakhtiniana no grande romance de Erico Verissimo.
Palavras-chave: Romance Polifônico. Bakhtin. Dostoievski. Erico Verissimo.
Abstract: The aim of this paper is to work with the concept of polyphony proposed by Mikhail Bakhtin in Problems of Dostoevsky's poetics and how this concept can be applied to the third part of the novel The weather and wind, by Erico Verissimo, titled Archipelago. Bakhtin uses the concept of polyphony to highlight a contrast between the novel mono, also known as traditional, a peculiar form of romance, in which each character serves as an independent being who cultivates his own vision of the world and that is not enslaved to the worldview of the author himself. For the Russian theorist, the writer had as a reference when dealing with polyphonic novel the author Fyodor Dostoyevsky (1821-1881), which was the only one who could reach the magnitude of the meaning of the term. The concept of polyphony is often confused with other terms of linguistics, for example, dialogism, so caution is needed in the definition of a novel as being polyphonic.Thus, the present investigation searches for evidence to prove traces of Bakhtin’s poliphony in the great novel by Erico Verissimo.
Keywords: Polyphonic Novel. Bakhtin. Dostoyevsky. Erico Verissimo.
i Doutorando pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil. E-mail: [email protected].
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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Introdução
Trabalhar com o conceito bakhtiniano de polifonia não é uma tarefa fácil.
O próprio Bakhtin afirma que qualquer deslize na análise do romance
polifônico pode deitar por terra toda a teoria. Em Problemas da Poética de
Dostoievski, ao expor sobre os teóricos da obra de Dostoievski, Bakhtin analisa
detalhes que ofuscam o caráter polifônico de seus romances, acabando por
monologizá-los, enquadrá-los nos moldes do romance tradicional. A literatura
crítica, segundo ele, “tentando analisar teoricamente esse novo mundo
polifônico, não encontrou outra saída senão fazer desse mundo um monólogo
do tipo comum” (BAKHTIN, 2002, p. 7).
Desse modo, na análise de O Arquipélago, terceira parte da trilogia O
tempo e o vento, de Erico Verissimo, propomos um resgate do conceito de
polifonia, nos moldes bakhtinianos, evidenciando as vozes discursivas
presentes no romance e demonstrando o grau de independência que elas
exercem na tessitura do enredo.
Dividimos o artigo da seguinte forma: com a revisão teórica, captamos o
sentido do termo ‘polifonia’ em Bakhtin, sua origem, aplicação e
desdobramentos na obra de Dostoievski e em contraposição ao romance
tradicional. Na sequência, destacamos as vozes ideológicas dos personagens
do romance de Verissimo; por fim, analisamos a independência desses
discursos, marcados pelos seus entrechoques com o discurso de Floriano,
espécie de alter-ego do narrador do romance e do próprio Erico Verissimo.
1 O Conceito de Romance Polifônico em Bakhtin
Polifonia é um conceito emprestado por Bakhtin da teoria musical, para
a qual o termo define uma técnica compositiva que objetiva produzir uma
textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se desenvolvem
preservando um caráter rítmico e melódico independentes. É o contrário da
monofonia, onde há a predominância de uma voz e, caso existam outras
vozes, essas seguem a principal em uníssono. Segundo o escritor Cristóvão
Tezza (2002, p. 90) “o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas
melódicas independentes, mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin
emprega-o ao analisar a obra de Dostoievski, considerada por ele como um
novo gênero romanesco – o romance polifônico”.
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Dostoievski é a figura central da construção da teoria polifônica
bakhtiniana. Para Bakhtin, o escritor russo conseguiu dar vida a um herói
peculiar, cuja voz é estruturada de maneira independente, não está submetida
à voz do autor, mas caminha paralelamente a essa. Para Bakhtin (2002, p. 4),
“Dostoievski não cria escravos mudos, mas pessoas livres, capazes de colocar-
se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele”.
Não se trata de atividade fácil a compreensão do conceito de polifonia
proposto por Bakhtin, já que a construção do romance tradicional pressupõe a
adesão de alguma ideologia por parte do escritor. Nesse tipo de romance, por
mais que o herói carregue consigo um determinado discurso, esse estará
sempre em consonância com a ideologia do autor.
Como na teoria musical, mesmo que existam várias vozes, cada uma
carregando consigo o seu próprio discurso, isso não quer dizer
necessariamente que essa obra seja caracterizada como sendo polifônica. Na
maioria dos casos, os vários discursos presentes no texto servem para
destacar a voz principal, no caso, do autor.
Portanto o primeiro passo na identificação de um romance polifônico é a
busca pelo discurso predominante. Caso as vozes presentes no texto
funcionem como um mecanismo para afirmar ou negar um discurso
dominante, esse texto se encaixa no modo monofônico de escrita, mesmo
que mantenha diálogo com outros textos. A própria existência de um discurso
dominante elimina a possibilidade de polifonia do texto.
O romance polifônico é caracterizado exatamente pela ausência desse
discurso predominante, dessa ideologia para a qual todas as outras vozes
confluem. Nele, não é a multiplicidade de caracteres e destinos que se
desenvolvem à luz da consciência do autor, mas a multiplicidade de
consciências equipolentes, pois participam do diálogo com as outras em pé de
igualdade.
Assim, “a consciência do herói é dada como a outra, a consciência do
outro, mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna
mero objeto da consciência do autor” (BAKHTIN, 2002, p. 5). Eis o grande
traço que diferencia o romance monofônico do polifônico. Enquanto no
primeiro a imagem do herói é objetificada, servindo aos interesses ideológicos
de seu criador, no segundo a palavra desse herói soa ao lado da do autor e dos
outros personagens, formando um universo de vozes plenivalentes.
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Em sua teoria, Bakhtin dedica uma atenção muito grande à
caracterização da personagem do romance polifônico. No segundo capítulo
de Problemas da Poética de Dostoievski, o teórico estuda o papel das
personagens dostoievskianas, destacando o interesse que o romancista russo
dedica na construção de cada personagem. Para ele,
A personagem interessa a Dostoievski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesmo, enquanto posição racional valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante. Para Dostoievski não importa o que a sua personagem é no mundo, mas acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma (BAKHTIN, 2002, p. 47).
Com essa concepção bakhtiniana, percebemos uma visão de
personagem completamente nova onde o que está em evidência não é a pura
representação de um ser determinado, mas de uma consciência independente
à qual cabe a última palavra sobre si mesma e sobre o mundo circundante.
Tirando de si a função de dar a última palavra, o escritor também se
ausenta da responsabilidade de definir a personagem, enquadrando-a a um
dado discurso, permitindo a ela definir-se a si própria através de seu modo de
ver a realidade que a cerca. É interessante notar que essa característica não se
encontra somente no herói do romance, mas é dada a todas as personagens
da obra. São discursos que se entrecruzam, se chocam, mas não se submetem.
Com isso, podemos perceber que a teoria polifônica de Bakhtin é
antidialética. Termo técnico muito usado por Hegel, Marx e seus seguidores; a
dialética marca a ideia de que toda afirmação provoca uma oposição e ambas
se reconciliam em uma síntese. Embora, na história da filosofia, esse termo
não tenha sido empregado com significado unívoco, pode-se afirmar que se
trata de “um processo em que há um adversário a ser combatido, uma tese a
ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em
conflito” (ABAGNANO, 2010, p. 269). O processo resultante do conflito é a
síntese. A dialética é monofônica por natureza, pois, de acordo com Hegel e
Marx, enquadra opiniões contrárias a um denominador-comum, por isso,
também é matéria-prima do romance tradicional. Sendo assim, toda situação
dialética é contrária ao romance polifônico.
Outra característica importante da personagem polifônica proposta por
Bakhtin é a questão do limite. No romance tradicional, por mais que se
destaque a posição ideológica do herói, sua voz é sempre marcada por um
limite, onde seu discurso se mistura com o do autor e, dessa forma, torna-se
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apenas uma tese de um processo dialético, sendo a síntese o discurso
implícito do próprio autor.
No romance polifônico, o limite imposto pelo narrador ou autor não é
totalmente respeitado. Em Crime e Castigo, Dostoievski impõe ao personagem
Raskólnikov uma situação limite e o próprio personagem tem o poder de
escolha entre igualar-se aos outros homens ou ultrapassar o limite imposto,
tendo que suportar as consequências de tal ato. “A personagem central [está]
às vésperas de uma mudança radical, capaz de mudar seu caráter ou destruí-
lo. Daí o limite. Mas o homem considera quem lhe impôs o limite e o
ultrapassa” (BEZERRA, 2006, p. 4).
Assim, a liberdade do herói é dada pelo autor e criada no plano artístico
para desenvolver até o fim a sua própria autonomia. A consciência do autor
está presente na obra, mas não de forma a ofuscar a consciência da
personagem. As opiniões do herói são sempre colocadas em debate com as
opiniões das outras personagens plenivalentes na obra e também com as do
autor. Ressalte-se sempre que essa interpenetração dialógica é, no romance
polifônico, inacabada devido à ausência de uma síntese dos discursos
expostos pelas vozes dos personagens.
No terceiro capítulo de Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin
lança um olhar sobre a importância da ideia no romance polifônico. Para o
teórico, Dostoievski é considerado o romancista polifônico por excelência
porque consegue expressar a ideia do outro, conservando-lhe toda autonomia
e mantendo o narrador estrategicamente distante, que nem afirma nem funde
essa ideia com sua própria ideologia representada.
Para Bakhtin (2002, p. 73):
Dostoievski conseguiu ver, descobrir e mostrar o verdadeiro campo da vida e da idéia. A idéia não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as idéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, e gerar novas idéias.
Partindo do princípio da autonomia da ideia em Bakhtin, percebe-se que
o narrador, no romance polifônico, não possui a condição de sintetizador,
como no romance tradicional.
O discurso do narrador é tão individualizado, tão ‘colorido’ e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens. A posição do
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narrador é fluida, e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra (BAKHTIN, 1986, p. 151).
O narrador se coloca na obra como um regente de um grande coral, mas
ao invés de submeter essas vozes a uma dominante, ele credita total
autonomia a elas e, com isso, constrói a relação recíproca entre a verdade do
eu e a verdade do outro. A verdade do narrador ou do autor não é uma
verdade que se impõe, mas que dialoga com a verdade das outras
personagens. Devido a essa peculiaridade, podemos afirmar que o romance
polifônico é essencialmente dialógico.
Para Bernardi (2001, p. 44-45), “todas as vozes que se fazem ouvir no
discurso romanesco são respeitadas enquanto vozes sociais e históricas,
portadoras de posturas ideológicas que não coincidem com as do autor, mas
são orquestradas por ele”.
É importante notar que, em Bakhtin, polifonia e dialogismo não são
sinônimos. Enquanto o dialogismo é caracterizado como o princípio dialógico
constitutivo da linguagem, a polifonia se caracteriza pelas vozes polêmicas do
discurso.
Para Bakhtin, a essência da linguagem não está em constituições
abstratas ou enunciações monológicas isoladas. Ao contrário, a linguagem só
é eficaz por causa “do fenômeno social da interação verbal, realizada através
da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a
realidade fundamental da língua” (BAKHTIN, 1986 p. 127). Portanto
entendendo dialogismo como interação verbal, podemos afirmar que, em
Bakhtin, ele é o elemento constitutivo da linguagem.
Partindo desse princípio definidor do dialogismo, percebe-se que ele não
pode ser de modo algum confundido com a polifonia. Assim:
Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir (BARROS, 1994, p. 6).
Sendo assim, conclui-se que há gêneros dialógicos monofônicos, em
casos onde uma voz domina todas as outras, e gêneros dialógicos polifônicos
marcados pela existência das chamadas vozes polêmicas ou plenivalentes.
Ao destacar o caráter dialógico nos estudos sobre a linguagem, Bakhtin
ressalta a importância do contraponto no romance polifônico. Ao citar M. I.
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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Glinka, Grossman (1987, p. 32) destaca em sua obra o fato de que “tudo na
vida é contraponto, isto é, contraposição”. Aprofundando essa afirmação,
Bakhtin resgata o fato de que, em Dostoievski, tudo é diálogo ou
contraposição dialógica.
Contraponto significa vozes diferentes contando diversamente o mesmo
tema. Eis, para Bakhtin, aquilo que constitui precisamente a polifonia, que
busca desvendar as complexidades existentes nos sofrimentos humanos ou,
como ele mesmo afirma, o multifacetado da existência.
É importante descrever o papel do contraponto na teoria bakhtiniana
pelo fato de que, em parte de seus romances, Erico Verissimo, autor
selecionado para esta investigação, utiliza-se da contraposição dialógica na
composição dos personagens. Em O tempo e o vento, como veremos a seguir,
esse contraponto está bem destacado, assim como a autonomia das diversas
vozes ao redor de um mesmo tema, a saber, a situação política brasileira no
período getulista.
Bakhtin, com o romance polifônico, provocou, na teoria literária, um
rompimento drástico com o todo definitivo do mundo monológico.
Deslocando a atenção da consciência do autor como a última palavra do
romance para a importância das vozes presentes no texto, ele captou o fato
de que, em Dostoievski, esse todo definitivo passa a ser apenas uma parte do
todo. Aquilo que, no romance tradicional determinava toda a realidade, agora
funciona apenas como um aspecto dessa mesma realidade, um entre os vários
pontos de vista sobre o mundo.
Adentrar no sentido do romance polifônico não é uma tarefa fácil. O
próprio Bakhtin tinha consciência disso. No final do primeiro capítulo da obra
Problemas da Poética de Dostoievski, ele escreve: “parece que todo aquele que
penetra no labirinto do romance polifônico não consegue encontrar a saída e,
obstaculizado por vozes particulares, não percebe o todo” (BAKHTIN, 2002, p.
45).
Para ele, o erro fundamental está na tentativa de captar no romance
polifônico uma voz em destaque, uma unidade ideológica. O sentido de
unidade dentro do romance polifônico sempre permanecerá oculto e cada voz
presente no texto não passa de uma visão da realidade, uma parte do grande
todo que constitui as relações sociais.
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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2 Aspectos polifônicos em O tempo e o vento
Mikail Bakhtin, ao traçar uma diferença entre polifonia e monofonia,
em sua obra Problemas da poética de Dostoievski destaca a figura de
Dostoievski como o único autor capaz de desenvolver o romance polifônico.
Segundo ele:
Todos os elementos da estrutura do romance são profundamente singulares em Dostoievski; todos são determinados pela tarefa que só ele soube colocar e resolver em toda a sua amplitude e profundidade: a tarefa de construir um mundo polifônico e destruir as formas já constituídas do romance europeu, principalmente do romance monológico (homofônico). (BAKHTIN, 2002, p. 5-6).
O romance Crime e Castigo, considerado por Bakhtin como a maior
expressão do romance polifônico, teve sua primeira publicação no ano de
1866. Aproximadamente um século depois, Erico Verissimo publicava a
terceira parte da trilogia O tempo e o vento, intitulada O arquipélago. É sobre
essa obra que, a partir de agora, inclinamos nossa investigação com o intuito
de, seguindo os passos de Bakhtin, encontrar (ou ao menos procurar) traços
de polifonia no romance brasileiro.
O arquipélago abrange mais de vinte anos de história gaúcha. Tendo
como destaque os conflitos pela manutenção do poder local à queda
definitiva da Ditadura Vargas, o romance se apresenta como uma mescla de
conflitos individuais, com uma visão panorâmica das lutas e transformações
político-sociais brasileiras.
Na figura de Rodrigo Cambará e de seu filho Floriano, temos o exemplo
de posturas pessoais divergentes frente à irreversibilidade do tempo. Segue-
se a eles um vasto número de personagens que carregam consigo sua visão de
mundo frente às profundas modificações históricas que se apresentam.
Desde o início, percebemos no romance a presença do narrador
onisciente, que mergulha na mente das personagens trazendo à tona seus
medos e anseios. Entretanto, peso maior do que a figura do narrador é dado a
Floriano, já que os fatos narrados remontam a memória do personagem, o
resgate de seu passado e de sua própria identidade. As afirmações do
narrador, em grande parte, seguem o fluxo de consciência do próprio
Floriano.
A importância que se dá a Floriano como romancista disposto a escrever
a história de sua família seria um forte indício de que esse romance se encaixa
totalmente nos moldes do romance monofônico ou tradicional, pois tal fato
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poderia levar o leitor a vê-lo como a ideologia dominante presente na obra. No
entanto, a caracterização da personagem aponta para uma nova
interpretação do romance. Ele é apresentado como uma figura indecisa,
hesitante, incapaz de tomar certas atitudes por medo das consequências.
Logo no início do romance aparece essa sua característica, quando ele recebe
a notícia do infarto de seu pai: “Floriano, entretanto, permanece no vestíbulo,
hesitante. Sempre detestou as situações dramáticas e mórbidas da vida real,
embora sinta por elas um estanho fascínio, quando projetadas no plano da
arte” (VERISSIMO, 1987, p. 3).
Temos em Floriano a primeira voz do romance, marcada pelo discurso
idealista-reflexivo. Objetivando fazer um romance sobre a saga da família
Terra Cambará, ele analisa as ações e ideologias dos outros personagens,
como uma espécie de pensador da alma humana. Porém, em nenhum
momento, Verissimo destaca esse discurso como o predominante na obra. O
caráter hesitante e, às vezes, contraditório de Floriano demonstra exatamente
o contrário, pois ressalta a incerteza de suas próprias reflexões. É importante
notar que sempre que o personagem reflete sobre os pontos de vista dos
outros personagens, ele está em diálogo com algum deles e, muitas vezes,
suas opiniões são refutadas, fato que destaca as vozes plenivalentes dos
personagens no romance.
Para demonstrar a presença de elementos polifônicos na obra é
necessário que, num primeiro momento, se descubra quais são as vozes
presentes nela. Devido à vastidão do romance, selecionamos algumas
personagens que participam do capítulo intitulado Reunião de Família, dividido
em seis partes, com o objetivo de destacar a ideologia que eles defendem e
que importância é dada a ela no todo do romance.
Doutor Rodrigo Cambará – Representa a voz da direita na obra.
Getulista declarado, acredita na estabilização da situação política brasileira
mediante a volta de Getúlio Vargas à presidência. Essa retomada da situação
política, para Rodrigo, significa o retorno a uma vida de facilidades do tempo
em que ele era deputado. A personalidade do doutor Rodrigo dessa terceira
parte da trilogia nos é transmitida por Floriano, quando ele afirma: “O
presidente Vargas caiu e o Dr. Rodrigo Cambará está sem saber que rumo
tomar. Seu mundo de facilidades, prazeres, honrarias e prestígios de repente
se desfez em pedaços” (VERISSIMO, 1987, p. 18). À medida que o leitor é
levado a imaginar como definitiva essa opinião de Floriano sobre o pai, ele
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acrescenta: “não estou acusando nem julgando o Velho. Quem sou eu? Estou
tentando me meter na pele dele, imaginar com simpatia humana o que ele
está pensando, sentindo, sofrendo...” (VERISSIMO, 1987, p. 19). Percebe-se,
nesse trecho, a consciência do personagem dada como a consciência do
outro. O que vemos aqui não é a imagem objetificada do herói do romance
tradicional.
Eduardo Quadros Cambará, Filho de Rodrigo, representa o discurso
comunista, como se pode notar no trecho que segue:
Na sua fúria de ‘cristão novo’ o rapaz, que vê tudo pelo prisma marxista, está procurando mostrar a seus companheiros de partido que não é por ser filho dum latifundiário e figurão do Estado Novo que ele vai deixar de ser um bom comunista. (VERISSIMO, 1987, p. 16).
Está sempre batendo de frente com Rodrigo e suas atitudes dentro da
obra, ora são vistas como um ataque de rebeldia, ora como coerente luta pela
manutenção de seus próprios ideais sociopolíticos. Através da figura de
Eduardo, a ideologia comunista é focalizada não pelo prisma positivo ou
negativo, mas apenas como uma visão de mundo. Como em Bakhtin, esse
discurso torna-se, no romance, uma parte do todo, assim como o discurso do
próprio autor.
Jango Cambará – Filho de Rodrigo, Jango representa a figura do
territorialista, do estancieiro apegado às tradições gaúchas:
Um homem do campo, digamos: um gaúcho ortodoxo. Se o Eduardo deseja com paixão de templário a reforma agrária, Jango com a mesma paixão quer não só conservar o Angico como também aumentar a estância, adquirindo mais terra, mais gado... (VERISSIMO, 1987, p.16).
Vemos nesse trecho duas vozes que se confrontam: a do estancieiro e a
do comunista. São discursos plenivalentes, pois, em nenhum momento, é
tomada posição frente a qualquer um desses discursos. Convém notar que
Jango é casado com Sílvia, por quem Floriano nutre um amor não
concretizado por sua incapacidade de declarar-se para ela e que, por isso, a
entrega a uma vida infeliz ao lado do irmão. Mesmo esse fato não o leva a
posicionar-se contra Jango dentro do romance.
Irmão Zeca – Sobrinho de Rodrigo, esse personagem representa o
discurso religioso dentro do romance. Frade da congregação marista, Zeca
vive em constante conflito ideológico com o primo Eduardo devido as suas
convicções religiosas e a postura da Igreja Católica frente ao comunismo.
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Roque Bandeira, ao falar sobre a relação dos primos, traça a seguinte
comparação: “sempre que vejo esses dois juntos imagino um diálogo
impossível entre um anjo do Inferno e um anjo do Céu” (VERISSIMO, 1987, p.
211). Novamente percebe-se a demarcação de dois discursos plenivalentes do
romance. São duas vozes que possuem independência marcada pela
impossibilidade da relação dialógica, pois permanecem nos limites de
consciências isoladas e não conduzem a uma unidade ideológica. Convém
destacar que as palavras “céu” e “inferno” não adquirem aqui conotação de
positivo ou negativo, mas assumem uma função de oposição discursiva. Vê-se,
dessa forma, traços latentes da teoria polifônica proposta por Bakhtin.
Roque Bandeira – Grande amigo da gente do Sobrado, essa personagem
é muito admirada por Floriano. Visto em Santa Fé como um ser de vida boêmia
e excêntrica, “três coisas o tornam notável aos olhos da população: sua
fealdade, sua grande erudição e seu completo desprezo pela opinião pública”
(VERISSIMO, 1987, p. 46). Vemos em Roque, também conhecido como Tio
Bicho devido à sua postura baixa e mal proporcionada, a figura do intelectual,
que emite opiniões cínicas sobre a vida dos homens e, por causa do humor
sarcástico, espanta e fascina ao mesmo tempo. Outra característica sua é o
fato de estar “sempre aberto às idéias novas e disposto a reexaminar as
antigas” (VERISSIMO, 1987, p. 48). Apesar da grande amizade entre Floriano e
Roque, eles nem sempre têm uma posição ideológica semelhante. Floriano, ao
pedir uma apreciação do amigo sobre seu romance, recebe a seguinte crítica:
O que me desagrada nos teus romances é... vamos dizer... a posição de turista que assumes. Entendes? O homem que ao visitar um país se interessa apenas pelos pontos pitorescos, evitando tudo quanto pode significar dificuldades... não metes a mão no barro da vida (VERISSIMO, 1987, p. 54).
A condição de turista dada a Floriano deixa transparecer o seu discurso
como não dominante e a independência ideológica de Roque, dentro do
texto, é aqui percebida como sendo mais alguns traços do romance
polifônico.
Terêncio Prates – Sociólogo formado na França e estancieiro, essa
personagem defende dentro da obra a conservação das tradições do Rio
Grande do Sul. Apaixonado pela sua posição ideológica, posiciona-se contra a
reforma agrária, classificando-a como romântica e insensata e a favor da
tradição para evitar o desmantelamento da ordem social. Segundo ele,
“nenhum povo que se preze pode jogar fora um passado histórico e glorioso
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como o nosso, só para agradar a Joseph Stalin e seus lacaios no mundo
inteiro” (VERISSIMO, 1987, p. 856). Possui uma opinião contrária a Roque,
Eduardo e Floriano que, mesmo sendo também estancieiros, defendem a
reforma agrária e atacam a função ‘paternalista’ dos grandes proprietários de
terra em relação aos pequenos.
Como podemos notar, cada personagem possui seu próprio discurso e o
defende de maneira apaixonada. Essas vozes são confrontadas no romance
todas às vezes em que se reúnem no quarto de Rodrigo (vítima de um
enfarte) para discutir a situação política contemporânea. Como na polifonia
musical, são vozes que se confrontam, mas não se submetem, pois ninguém
abre mão de seus pontos de vista, formando discursos plenivalentes,
independentes uns em relação aos outros.
Um trecho em que fica muito latente os aspectos polifônicos no
romance é um diálogo em que Floriano, tomando a palavra, analisa a situação
das vozes discursivas presentes naquela reunião noturna no quarto de
Rodrigo. A discussão começa com a seguinte afirmação da personagem:
Cada homem é uma ilha com seu clima, sua fauna, sua flora e sua história particulares [...] e a comunicação entre as ilhas é das mais precárias, por mais que as aparências sugiram o contrário. São pontes que o vento leva, às vezes apenas sinais semafóricos, mensagens truncadas escritas num código cuja chave ninguém possui (VERISSIMO, 1987, p. 219).
Presume-se que Erico Verissimo, ao intitular essa terceira parte de seu
romance como O arquipélago, já imaginava essas ‘ilhas discursivas’ formadas
pelas relações humanas. Cada voz dentro do romance faz parte de um mundo
fechado, uma ilha isolada das outras partes.
Partindo da afirmação acima, Floriano busca estabelecer uma
comunicação entre essas várias ‘ilhas’ que se encontram no quarto de seu pai.
Para ele, “essas ilhas do arquipélago humano sentem dum modo ou de outro
a nostalgia do Continente, ao qual desejam se unirem” (VERISSIMO, 1987, p.
219). No entanto, ele mesmo tem consciência de que a união dessas vozes a
uma dominante não é possível, pois as outras vozes do romance, em seus
entrechoques e embates, ganharam vida própria, fugiram às rédeas do
romancista e transformaram-se em consciências imiscíveis. Unindo esse fato à
visão bakhtiniana de romance polifônico, pode-se afirmar que cada
personagem é “interpretado como autor de sua concepção filosófica própria e
plena e não como objeto de visão final do autor” (BAKHTIN, 2002, p. 3).
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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O valor das palavras das personagens desfaz o plano monológico e tira
delas a condição de objetos para se tornarem veículos do próprio discurso.
Verissimo, em seu romance, afirma o eu do outro, transformando-o em
sujeito. Essa peculiaridade outrora vista por Bakhtin somente na cosmovisão
dostoievskiana a encontramos também em O arquipélago.
Durante o processo de leitura, percebe-se que O tempo e o vento é
essencialmente marcado pelas vozes independentes. Separamos um diálogo
entre Floriano, Eduardo e Rodrigo que melhor destaca essa peculiaridade
polifônica:
– Estou chegando à conclusão de que um dos principais objetivos do romancista é o de criar, na medida de suas possibilidades, meios de comunicação entre as ilhas do seu arquipélago... construir pontes... inventar uma linguagem. Tudo isso sem esquecer que é um artista, e não um propagandista político, um profeta religioso ou um mero amanuense...
Eduardo solta uma risada sarcástica de mau ator:
– Ah! E tu achas que estás realizando seu objetivo?
– Absolutamente não acho.
– Não te parece que teu projeto é um tanto pretensioso? [...]
Rodrigo faz um gesto de impaciência:
– Tudo isso é muito vago, muito livresco, Floriano (VERISSIMO, 1987, p. 220).
Segundo Bakhtin (2002), o que torna o romance de Dostoievski
polifônico é o fato de que ele desfaz o plano monológico, coloca as vozes dos
personagens lado a lado com a sua e cria a multiplicidade de consciências
equipolentes. No trecho acima, nota-se a presença dessas três características.
Floriano, alter-ego do narrador e do próprio Verissimo emite uma
opinião sobre as vozes ou ‘ilhas’ presentes na obra e, em consequência, qual é
a sua função como romancista frente a essas vozes. Se o trecho terminasse
em seu comentário, teríamos um discurso no plano monológico, pois a
ideologia do autor se situaria na esfera dominante do texto.
A presença dos outros dois personagens desfaz esse plano monológico
no romance. Eduardo e Rodrigo não se objetificam ao discurso de Floriano, ao
contrário, confrontam suas ideias mostrando a ele o quanto sua afirmação é
frágil. A independência de opiniões coloca as vozes das personagens em
situação paralela com as do próprio autor/personagem, pois esses não se
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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curvam ao seu discurso, mas, ao contrário, confrontam suas ideias. E assim, os
traços polifônicos bakhtinianos ganham contornos cada vez mais nítidos na
obra de Erico Verissimo.
Assim como em Dostoievski, O arquipélago explora o fato de que cada
ideia, cada discurso carrega sempre consigo “uma réplica de um diálogo não-
acabado. Essa ideia não tende para o todo sistêmico-monológico completo e
acabado. Vive em tensão com a ideia de outros, com a consciência de outros”
(BAKHTIN, 2002, p. 32-33).
Erico Veríssimo, dessa forma, não permite, em seu romance, a diluição
de várias consciências numa consciência superior. Adentrar o mundo de sua
obra é o mesmo que penetrar no labirinto de vozes do romance polifônico
construído por Dostoievski e teorizado por Bakhtin.
Considerações Finais
O estilo literário de Erico Verissimo é fortemente marcado pelo
contraponto, pois, ele leva em consideração, na tessitura de seus enredos, a
multiplicidade dos pontos de vista. Em grande parte de suas obras, ele
permite ao leitor seguir o fluxo de consciência dos personagens, de modo a
revelar as várias visões sobre um determinado fato social ou dado do
cotidiano. É o caso dos romances Caminhos Cruzados e O resto é silêncio.
Percebe-se, dessa forma, que ele utiliza-se da técnica do contraponto para dar
ao seu romance O tempo e o vento um caráter polifônico como o proposto por
Bakhtin.
Na polifonia de Verissimo, visualiza-se a lenta passagem de um mundo
de valores centralizados e acabados, cuja expressão máxima estaria na
epopéia clássica, para um mundo descentralizado de linguagens, o universo
perpetuamente inacabado da vida cotidiana, muito retratada no modernismo.
Realizar a literatura de contraponto, em verdade, não significa,
necessariamente, que o romance possui características polifônicas, pois, entre
os múltiplos pontos de vista sobre um determinado fato pode ser que um
torne-se dominante no enredo, subjugando os outros. Na polifonia, esse
discurso dominante não existe, pois a ausência de objetificação dos
personagens não permite que isso aconteça.
Em O arquipélago, Verissimo trabalha de forma magistral com esses dois
conceitos da crítica literária. Utilizando-se do contraponto, onde vários
OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.
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personagens refletem sobre a situação político-social do período da queda de
Getúlio Vargas, cada um carregando sua posição ideológica, ele constrói um
romance polifônico, onde essas várias vozes caminham em paralelo no
desenrolar da narrativa. São consciências independentes que dão ao leitor a
possibilidade de aderir à ideologia que mais lhe interessa.
Portanto percebendo que os personagens de Verissimo agem com
consciências independentes, igualdade dialógica com os outros personagens e
com o próprio autor e, principalmente, ultrapassam o limite atribuído aos
heróis do romance tradicional, conclui-se que O arquipélago possui todas as
peculiaridades presentes no romance polifônico teorizado por Bakhtin.
REFERÊNCIAS
ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: ______; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. BERNARDI, Rosse-Marye. Uma leitura bakhtiniana de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubens Fonseca. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001. BEZERRA, Paulo. A perenidade em Dostoiévski. Cult – Biografia e crítica – Fiódor Dostoievski: o profeta da literatura russa. São Paulo: Editora Bregantini, n. 4, p. 6-13, 2006. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2003. GROSSMAN, Leonid. Dostoievski Artista. Trad. Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. TEZZA, Cristóvão. Polifonia e ética. Revista Cult, n. 59, ano VI, jul. 2002. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. São Paulo: Globo, 1987.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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MEMÓRIA, DES-MEMÓRIA, A-MEMÓRIA:
QUANDO O DISCURSO VOLTA-SE PARA SEU PASSADO
Marie-Anne Paveaui
Resumo: Este artigo é uma síntese de ordem histórica e epistemológica do destino científico da noção de memória discursiva. Proposto por Courtine em 1981 no contexto da Análise do Discurso dita francesa iniciada por Pêcheux, o conceito de memória discursiva conheceu a partir de então reformulações e prolongamentos conceituais. Transformada em “memória interdiscursiva” no início dos anos 2000 (MOIRAND), tal noção foi em seguida retrabalhada no campo da cognição distribuída sob a forma de “linhagens discursivas” (PAVEAU). Sua articulação com o esquecimento e as negações da história conduziram igualmente as noções de “des-memória” e de “a-memória discursiva” (ROBIN, PAVEAU).
Palavras-chave: Linhagens discursivas. Memória discursiva. Pós-memória. Pré-discurso.
Abstract: This paper is an historical and epistemological synthesis about the scientific fate of the concept of discursive memory. Formed by Courtine in 1981 in the context of the so-called french discourse analysis by Pêcheux, the concept of memory has received since then some reformulations and conceptual extensions. It has become “interdiscursive memory” in the early 2000s (MOIRAND), and was then reworked in the context of distributed cognition in the form of “discursive lineage” (PAVEAU). Its articulation with oblivion and denials of history also led to the concepts of “dememory” and “discursive amemory” (ROBIN, PAVEAU).
Keywords: Discursive lineage. Discursive memory. Postmemory. Prediscourse.
i Docente da Université Paris XIII Sorbonne Paris Cité, França. E-mail: [email protected].
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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Introdução
A memória é uma das questões mais interessantes em Análise do
Discurso, bastante trabalhada e retrabalhada na França e no Brasil desde os
anos 1980 a partir da invenção de Courtine: a noção de “memória discursiva”,
apresentada na tese que ele escreveu sob a orientação de Pêcheux e
publicada em um número da Langages que se tornou clássico (COURTINE,
1981).
A relação entre discurso e memória me fascinou também quando me
debrucei sobre essas obras para escrever Os pré-discursos, especificamente o
capítulo 3 “A memória no discurso” (PAVEAU, 2013 [2006]), e que retrabalhei,
recentemente, no capítulo 6 “Mémoire et vertu” de Langage et Morale
(PAVEAU, 2013): como as palavras, os significados, os discursos são
transmitidos? Como os pré-discursos, ou seja, os quadros prévios
organizadores de nossos próprios discursos, nossos quadros interpretativos,
que fazem com que nos compreendamos até certo ponto, são transmitidos?
Como os locutores herdam este tipo de estoque semântico, discursivo e
pragmático, graças aos quais exercem a principal atividade humana: falar?
São essas as questões que eu desejo retomar e aprofundar neste artigo:
após alguns detalhamentos de ordem metodológica sobre o uso em
Linguística de um conceito que, originalmente, não lhe pertence, farei um
breve percurso sobre a história da noção de memória discursiva; em seguida,
mostrarei como a noção pode ser retrabalhada na perspectiva da cognição
social sob a forma de “pré-discurso” e “linhagens discursivas” e; enfim,
concluirei propondo duas noções complementares que me parecem úteis para
explicar o processo complexo de transmissão dos discursos: a des-memória
discursiva e a a-memória discursiva.
1 A memória no discurso, uma noção complexa
Que a memória discursiva venha a fazer parte, daqui em diante, do que
se denominou "caixa de ferramentas" da Análise do Discurso, não tem, de
fato, nada de evidente: a priori, não se trata de uma noção das Ciências da
Linguagem, sendo encarada sob traços precisos e complexos.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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1.1 Uma intenção da História e da Filosofia
A Análise do Discurso nasceu pluridisciplinar a partir da Linguística, da
Filosofia, da História e da Psicanálise. Ideologia, acontecimento, memória,
doxa, uma gama de conceitos que não são oriundos do corpus específico das
Ciências da Linguagem, como podem sê-los a predicação, a dêixis ou
antonímia. Isso quer dizer que as noções importadas devem ser pensadas e
trabalhadas de maneira a serem integradas no dispositivo teórico ou
metodológico da Análise do Discurso. Tais noções devem ser operatórias
sobre os materiais discursivos, e não simplesmente postas sobre eles, as quais
devem possuir um coeficiente explicativo forte, e não um simples valor
descritivo. É, no fundo, a questão da interdisciplinaridade que se coloca no
trabalho muito concreto e material da utilização das ferramentas e de
procedimentos de análise de um domínio do conhecimento para outro.
1.2 Os dois conceitos de memória discursiva
Duas correntes utilizam o termo e a noção de memória discursiva, em
perspectivas distintas, o que é uma fonte de mal-entendidos. Mencionei a
acepção de Courtine no início dos anos 1980, que é corrente em Análise do
Discurso, na tradição dita “francesa”, ou seja, oriunda do trabalho de Pêcheux
e de seus colaboradores a partir de meados dos anos 1960 e voltada para a
questão das “condições sócio-históricas de produção” dos discursos. Todavia,
quase na mesma época, numa perspectiva que privilegia o desenvolvimento
sintagmático das frases e dos textos em detrimento de seus contextos de
produção, Berrendonner propõe também a noção de “memória discursiva”
como aquilo que assegura, segundo ele, a coerência do discurso, isto é, sua
interpretabilidade pelo receptor (a anáfora sendo uma das ferramentas
privilegiadas desta coerência). A noção é proposta pela primeira vez em um
artigo de 1983, depois é retomada e expandida nos trabalhos de Genevois
sobre a conversação oral, definida como um conjunto de “conhecimentos
válidos para os interlocutores e públicos entre eles” (BERRENDONNER, 1993,
p. 48). Essa memória evolui no curso da troca conversacional e deve conservar
sua validade para que a interação seja bem sucedida. Tal noção será definida
de maneira mais ampla no início dos anos 2000 como um conjunto de
representações partilhadas, o que faz surgir, na minha opinião, a noção de
historicidade, ao mesmo tempo do texto e dos discursos sociais.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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1.3 Coletividade e sociabilidade
Os linguistas e psicolinguistas, mas também psicólogos e cognitivistas,
trabalham igualmente com a memória em outras perspectivas, a fim de
compreender como o ser humano registra a realidade e a restitui. É uma
abordagem da memória como capacidade do indivíduo e, em Linguística, isso
concerne, sobretudo, à memória semântica. Antes, essa é uma perspectiva
prioritariamente internalista, que não considera forçosamente as circulações
memoriais externas dos discursos na sociedade. A memória discursiva, aqui
em questão, é oriunda de uma memória coletiva, tal como é descrita por
Halbwachs. Certamente, esta é uma noção instável, como bem salienta
Candau: “Ela é, de fato, tão vaga como todas as retóricas comunitárias, tão
ambígua quanto todas as concepções holísticas da cultura, das
representações, dos comportamentos e das atitudes (dos quais se tem um
excelente exemplo em Sociologia com a noção de opinião pública)”
(CANDAU, 1996, p. 61). Entretanto, os conceitos vagos não são
necessariamente ruins e existe um poder inegável do impreciso nas Ciências
Humanas e Sociais. É necessário, porém, acautelar-se para não apagar o
indivíduo nem tampouco colocar a comunidade abaixo da individualidade e
reduzir a memória coletiva a um reservatório de traços comuns a um grupo
em um determinado contexto. Essa será a tarefa dos analistas do discurso
sobre esta questão: encontrar uma solução conceitual para justificar a
articulação entre o individual e o coletivo.
1.4 Um conceito plural
Seria necessário, antes, falar de memórias no plural: a memória
discursiva é uma função situada, que depende de inúmeros parâmetros, como
a cultura, a idade, o gênero, a posição social, o coeficiente de alfabetização, a
experiência etc. Halbwachs afirma claramente:
Nós diríamos de bom grado que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva; esse ponto de vista muda segundo o lugar que eu ocupo, o qual, por sua vez, muda segundo as relações que mantenho com os outros meios (HALBWACHS, 1997 [1950], p. 94-95).
Muito frequentemente, pensamos que existe uma memória legítima, em
geral aquela dos detentores da cultura legítima. Na realidade, os grupos, as
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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gerações e as culturas têm memórias diferentes e todos nós temos a
experiência de um estranhamento diante dessas diferenças. Esses “vieses” da
memória que são nossas situações, na verdade, não o são, pois eles são
constitutivos do que todos nós somos, com nossos conhecimentos
compartilhados que nunca são inteiramente os mesmos nem tampouco são
inteiramente outros. São nossas experiências, em uma só palavra.
1.5 Uma noção heterogênea
A memória supõe o esquecimento, evidentemente, integrando-o em seu
funcionamento, que se dá, por sua vez, de maneira muito heterogênea e
nunca linear. Há memórias transmitidas, memórias inventadas, memórias
substituídas, o que Robin (2001) chama de des-memória, ponto que retornarei
mais adiante, mas igualmente memórias erradicadas, que somente existem
por esta erradicação prévia, memórias traumáticas, as quais recubro com o
conceito de a-memória.
2 A invenção da memória (inter)discursiva
Os conceitos potentes, operatórios e duráveis são verdadeiras invenções
intelectuais, que fazem progredir o pensamento e aperfeiçoar as práticas
científicas. É o caso da memória discursiva, proposta por Courtine, em 1981, na
sua tese sobre “o discurso comunista endereçado aos cristãos”. Tal noção é
ainda fortemente mobilizada, em nossos dias, no contexto francês e também
no brasileiro, e não cessa de motivar a produção de pesquisas profícuas e, por
sua vez, de conceitos inovadores.
2.1 “O comunismo é intrinsecamente perverso” (Pio XI)
Quando se aborda a memória discursiva de Courtine, cita-se,
frequentemente (e eu fui a primeira a fazê-lo), a famosa passagem da página
52 na qual ele define esse conceito a partir dos trabalhos de Foucault e de
Nora, fazendo assim uma forte articulação disciplinar entre História e Análise
do Discurso.
Introduzimos, assim, a noção de memória discursiva na problemática da análise do discurso político. Essa noção nos parece subjacente à análise da FD (Formação Discursiva) que realiza A arqueologia do saber: toda formulação possui em seu “domínio associado” outras formulações, que ela repete, refuta,
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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transforma, denega..., isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos; mas toda formulação mantém – igualmente, com formulações com as quais ela coexiste (seu “campo de concomitância” diria Foucault) ou que lhe sucedem (seu “campo de antecipação) – relações narrativas cuja análise inscreve necessariamente a questão da duração e da pluralidade dos tempos históricos no âmago dos problemas que coloca a utilização do conceito de FD. [...]. A introdução da noção de “memória discursiva” em AD nos parece assim ter por desafio a articulação desta disciplina com as formas contemporâneas da pesquisa histórica, as quais insistem no valor a ser atribuído ao longo do tempo (COURTINE, 1981, p. 52).
Efetivamente, trata-se, na Análise do Discurso herdada das teorizações
de Pêcheux, de pensar o “real da língua” em relação ao “real da história” e de
considerar, portanto, “a existência histórica do enunciado” (COURTINE, 1981,
p. 52). Porém, tem-se esquecido a partir do que se chegou a essa definição.
Vejamos o exemplo de uma bandeirola subitamente desfraldada no decorrer
do comício da “mão estendida”, ocorrido em 1976, em Lyon, a qual retoma a
célebre frase de Pio XI:
Lyon, 10 de junho de 1976 [...]. A sala do Palácio dos esportes está lotada. [...] O secretário do Partido [Marchais], em frente à sala, saúda. Os aplausos cessam, tornam-se murmúrios.
O acontecimento discursivo da tarde pode começar. [...] Por volta de cinquenta cristãos integristas cantam de pé. Antes de serem expulsos, eles estendem uma bandeirola lembrando a condenação pronunciada por Pio XI: “o comunismo é intrinsecamente perverso”. A memória irrompe na atualidade do acontecimento (COURTINE, 1981, p. 51).
A invenção de Courtine é em si mesma uma reformulação, logo um
fenômeno de memória discursiva, daquela de Pêcheux, o interdiscurso. O
interdiscurso é, no meu ponto de vista, um dos conceitos mais complexos do
arcabouço teórico apresentado por Pêcheux e, consequentemente, o que
sofreu a mais significativa simplificação. Tal conceito é assim definido por
Maldidier, em 1993, com uma clareza obtida ao preço de uma simplificação:
[...] Mais simplesmente, podemos, apoiando-nos em Michel Pêcheux, defini-lo [o interdiscurso], dizendo que o discurso constitui-se a partir do discursivo já-lá e que “isso fala” sempre “antes, alhures e independentemente”. O conceito introduzido por Pêcheux não se confunde com a intertextualidade de Bakhtin, pois ele trabalha com o espaço ideológico-discursivo no qual se desenvolvem as formações discursivas em função das relações de dominação, subordinação, contradição. Vemos, portanto, a relação que se institui com o pré-construído como ponto de entrada do interdiscurso (MALDIDIER, 1993, p. 113).
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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A primeira elaboração integrava, de fato, determinações inconscientes
apoiadas na análise marxista e o inconsciente freudiano, que são retomados
por Courtine e Marandin:
[...] uma repetição vertical que não é aquela da série de formulações que constituem o enunciado, mas aquilo a partir do que isso repete, um não-sabido, um não-reconhecido deslocado e se deslocando no enunciado: salientamos que é o interdiscurso como determinação externa no interior da FD e da reformulação (COURTINE; MARANDIN, 1981, p. 89).
O que é interessante nessa formulação é o termo vertical, que será
central no estabelecimento e na difusão da noção de memória discursiva,
especificamente a partir de um artigo de Lecomte que apresenta uma primeira
revisão sobre memória interdiscursiva. Vamos passar, com efeito, da noção de
anterioridade utilizada por Courtine (“formulações anteriores”) para uma
espacialização metafórica dos discursos, com base no vertical da memória e
no horizontal da combinação frástica.
2.2 “A luz do sol é ‘branca’” (Einstein)
Em um artigo difundido por Moirand e por ela integrado ao arquivo da
Análise do Discurso, Lecomte apoia-se em uma passagem de A evolução da
Física1, de Einstein e Infield, para aprofundar a noção de memória
(inter)discursiva e, em particular, a articulação dos eixos vertical e horizontal
(LECOMTE, 1981). O artigo se intitula “Como Einstein relata como Newton
explicou a luz (ou: o papel da memória interdiscursiva no processo
explicativo)”2 e traz na epígrafe uma longa passagem na qual os dois físicos
explicam a maneira como Newton resolve o enigma da cor a partir da
natureza “branca” da luz do Sol. Este é um trabalho sobre as formas do texto
explicativo que, segundo Lecomte, “faz referência a um heterogêneo, tendo
sua garantia ao lado de um outro discurso: o da teoria, o dos grandes autores”
(LECOMTE, 1981, p. 70). Aqui, Einstein e Infield baseiam-se “memorialmente”3
em Newton.
1 EINSTEIN, Albert; INFIELD, Leopold. A evolução da Física. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008 [1930].
2 Título original do artigo: Comment Einstein raconte comment Newton expliquait la lumière (ou: Le rôle de la mémoire interdiscursive dans le processus explicatif).
3 N.T.: embora os dicionários de Língua Portuguesa não registrem a forma “memorialmente”, optamos pela tradução do neologismo apresentado pela autora, uma vez que a forma portuguesa dicionarizada “memoravelmente” não recobre o sentido construído no original em francês.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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Moirand cita, em vários de seus próprios artigos, a passagem em que
Lacomte sintetiza a invenção da Análise do Discurso do início dos anos 1980 e
menciona a famosa verticalidade:
Ordem horizontal, então, que a tradição examina com atenção e que põe em primeiro plano a noção de coerência textual e, correlativamente, a permanência de um sujeito do discurso, que se define na e pela suposta homogeneidade de sua produção discursiva. Ora, as pesquisas contemporâneas (Foucault, de Certeau) enfatizaram o heterogêneo, a existência às vezes contraditória do objeto discursivo (Courtine), os fenômenos de intercalamento, de discurso transverso (Pêcheux), de interdiscurso. Novo eixo, de algum modo, no projeto de contextualização dos processos discursivos: eixo vertical em que vêm interferir os discursos já realizados, os discursos antagônicos ou os discursos próximos, enfim, eixo em que se autoriza a localizar uma memória, compreendendo por isso não a faculdade psicológica de um sujeito falante, mas o que se encontra e permanece fora dos sujeitos, nas palavras que eles empregam (LECOMTE, 1981, p.71).
Vale a pena reler inteiramente esse texto e, em particular, duas outras
passagens. A primeira detalha um pouco as ferramentas de análise dos dois
eixos, horizontal e vertical, que estruturam os discursos:
Far-se-á necessário então distinguir as operações, ou morfismos de diversos tipos: os morfismos de tipo horizontal, pelos quais a sequência estará vinculada com ela mesma [...]; os morfismos de tipo vertical, pelos quais uma sequência é relacionada com uma outra [...] (LECOMTE, 1981, p. 72).
Por sua vez, a segunda passagem formula um fenômeno capital
insuficientemente retomado, em minha opinião, pelos discursivistas, o qual
recobre a maneira como as operações de produção discursiva homogeneízam
os discursos, ou mais especificamente sua superfície:
As operações de formulações são, portanto, também regras de projeção, até mesmo de homogeneização. A questão que se coloca é, de fato, a seguinte: como pode a heterogeneidade de níveis – que ligam entre si os morfismos verticais – ser suprimida e dar lugar à homogeneização de uma superfície discursiva? Falaremos da ação de tais operações – que se efetivam pelos meios exclusivamente linguísticos – sobre os objetos do discurso, sobre seu espaço, como intervenção de fatores de homogeneização. Eles têm por função delimitar os contornos de classes discursivamente estáveis. Afirmação admissível se considerarmos o problema sob o ângulo do reconhecimento (da leitura), mas se o encararmos sob outro aspecto, o da realização do discurso, então essa afirmação se converte na seguinte: é a existência de classes discursivamente estáveis (objetos, temas, paráfrases, séries de formulação) que força o discurso a usar fatores de homogeneização (LECOMTE, 1981, p. 80).
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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Essas questões são retrabalhadas a partir do final dos anos 1990 por
Moirand, que propõe uma nova articulação, desta vez, com o trabalho de
Bakhtin. Novos conceitos aparecem e, em particular, o binômio memória das
palavras/memória dos dizeres.
2.3 “Os OGM e os novos vândalos” (Le Monde)
Em “L’impossible clotûre des corpus médiatique”4, Moirand (2004a)
explica como ela convoca Bakhtin em sua reelaboração da noção de memória
discursiva a partir do estudo de corpus de discursos midiáticos sobre a questão
da vaca louca ou dos OGM (Organismos Geneticamente Modificados). A
autora analisa, em particular, os trajetos de memória do termo “vândalo” que
aparece nos textos midiáticos como nominação recorrente:
Com “vândalo” e “obscurantismo”, vemos aparecer o que P. Siblot (1998; 2002) chama de dialogismo da nominação e o que eu chamei de memória das palavras [...], reencontrando aqui, em relação ao corpus midiático, a noção de memória discursiva que J.-J. Courtine havia proposto introduzir na problemática da análise do discurso político (1981, p. 52) e da qual A. Lecomte faz uma breve reconstituição do percurso epistemológico [...]. Mas os tipos de corpus analisados (o tratamento dos acontecimentos na mídia), a coleta dos dados em torno de momentos discursivos particulares e a construção de subcorpus a partir das categorias descritivas evocadas na primeira parte levaram-me a articular tal noção com o dialogismo de Bakhtin e, então, reelaborá-la, particularmente quando se trata das lembranças memoriais inscritas nos dizeres que não remetem às falas realmente pronunciadas, mas às falas que poderiam ter sido ditas (MOIRAND, 2004a, p. 85).
Moirand desenvolve, em particular, a ideia de que as palavras são
sempre habitadas por seus usos anteriores, ideia que Bakhtin expressou mil
vezes, por exemplo nesta passagem de Estética da criação verbal:
Não há palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este perde-se em um passado ilimitado e em um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca serão estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas) (BAKHTIN, 1984, p. 393).
Em outro artigo, “De la nomination au dialogisme: quelques
questionnements autour de l’objet de discours et de la mémoire des mots”5,
4 N.T.: Em português, o título do trabalho seria: “O impossível fechamento do corpus midiático”.
5 N.T.: Em português, o título do trabalho seria: “Da nominação ao dialogismo: alguns questionamentos em torno do objeto do discurso e da memória das palavras”.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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Moirand (2004b) afirma que articular Courtine e Bakhtin não é comum e traz
problemas de contexto epistemológico:
No entanto, partir das palavras e das nominações com a concepção bakhtiniana de dialogismo parece-me gerar um “deslocamento” do objeto de pesquisa em relação às posições originais da Análise do Discurso dita francesa. Se, como diz Bakhtin (1970, p. 263), “todo membro de uma coletividade falante não encontra palavras neutras livres de apreciações ou de orientações de outrem, mas palavras habitadas por vozes outras. Ele as recebe pela voz de outrem, preenchida da voz de outrem” e que “toda palavra de seu próprio texto advém de outro contexto, já marcado pela interpretação do outro”, estabelecemos, então, que é a própria palavra que é “habitada” por discursos outros, e nos concentramos antes sobre as expressões nominais do que sobre os enunciadores ou as formações discursivas. Depreende-se daí que as palavras têm uma “memória” (MOIRAND, 2004b, p. 49).
Mas é graças a esse deslocamento que a autora estabelece as noções de
memória das palavras e memória dos dizeres, que lhe permitem considerar os
surpreendentes trajetos da palavra vândalo na imprensa de 2001:
Assim, pode-se se interrogar sobre os diferentes sentidos que a palavra transporta, ou sobre os sentidos que a preencheram ao longo do tempo e ao sabor de suas viagens nas diferentes comunidades discursivas que ela atravessou. Um cientista, um historiador, um historiador das ciências, o representante de uma multinacional... utilizam-na, cada um à sua maneira, sem forçosamente ter consciência dos domínios da memória a curto e a longo prazo aos quais ela remete [...] (MOIRAND, 2004a, p. 85).
A noção de memória das palavras de Moirand articula-se, portanto,
sobre (1) a invenção de Courtine, que localiza o sentido das palavras na
memória histórica, (2) a noção de verticalidade descrita por Lecomte como um
heterogêneo uniformizado pela superfície discursiva e (3) o dialogismo
bakhtiniano, que junta a sociabilidade fundamental do sentido e a hipótese da
integração de toda produção verbal de uma interação social.
Delineei aqui a memória teórica da memória discursiva, privilegiando os
três pesquisadores que lhe são os inventores e os continuadores, entre 1980 e
o início dos anos 2000, sem entrar nos detalhes de todas as explorações
destas noções nos trabalhos de Análise do Discurso dessa época. Passo,
agora, a apresentar as noções de pré-discurso e de linhagem discursiva, que
me têm permitido articular produção do sentido, memória, cognição e poder.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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3 Memória e cognição: pré-discursos e linhagens discursivas
Tome-se a expressão “É Beirute!”, na qual o topônimo deixa de ser um
(Beirute não significa “a cidade de Beirute”), e se torna o significante do caos
da guerra civil e da destruição urbana. Para apreender o sentido e o
funcionamento desse segmento, se faz necessário convocar a noção de
memória discursiva: como compreender, de fato, essa expressão fora da
“autoridade” da memória, como afirmava Lecomte, que decide sobre o
sentido e sua contextualização? Porém é igualmente necessária uma
convocação à noção de enquadre cognitivo externo: formulo, de fato, a
expressão “É Beirute” em um ambiente físico, cultural e histórico particular,
necessário à minha formulação e à compreensão dessa formulação; os
recursos semânticos internos do segmento (meu léxico interior) não são
suficientes para sua interpretação.
Na esteira de Courtine, Lecomte e Moirand, propus uma versão cognitiva
da memória (inter)discursiva em Os pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]).
Minha intenção era apreender a elaboração das representações de uma
maneira pós-dualista, ou seja, considerando ao mesmo tempo as
representações internas individuais (meu conhecimento do topônimo e da
história do Líbano) e as representações externas (o que me propõe a
realidade exterior como disparadores de memória e apelos aos meus
enquadres de saber).
São os trabalhos da cognição distribuída (CONEIN, 2004) – uma das
formas de cognição dita heterodoxa que surge nos Estados Unidos na década
de 1990, contra o internalismo dominador da cognição da época (em
particular, a Inteligência Artificial e a Linguística Cognitiva) – que me
forneceram recursos para esta elaboração. Pretendia mostrar que nossa
memória, seja discursiva ou não, estava distribuída nos ambientes, em
particular na memória dos outros, evidentemente, mas também nos
elementos não humanos que nos cercam e que constituem nossos ambientes
de vida: lugares e objetos são também apoios à nossa memória, incluindo aí
nossa memória discursiva. Era uma renovação da noção que almejava
conservar a riqueza conceitual da semântica discursiva tal como havia sido
proposta na França na esteira de Pêcheux, mas também apreender as formas
contemporâneas de produção e de circulação dos discursos.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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3.1 Cognição sociocultural e Análise do Discurso
Poderia parecer paradoxal articular Ciências Cognitivas e Análise do
Discurso, esta última tendo sido construída sobre o político, o histórico e o
psicanalítico, em suma, sobre tudo o que a revolução cognitiva dos anos 1950
contribuiu pondo em questão. No entanto, desde o fim dos anos 1980,
desenvolveu-se nas Ciências Cognitivas uma corrente sociocultural,
alimentada pela Etnometodologia, pela Ergonomia, pela Psicologia das
Organizações etc. A Cognição Social desenvolveu-se no contexto anglo-saxão,
conforme as versões sucessivas da Cognição Situada (SUCHMAN; ROCHELLE),
Cognição Compartilhada (RESNICK; SCHEGLOFF), depois Cognição Distribuída
(HUTCHINS; AGRE). Sabemos que, paralelamente, a Semântica Distribuída
promovida por Lakoff e Johnson, desde sua obra sobre as metáforas
publicada em 1980, atribuiu grande importância ao corpo (“mind is
embodied”). Por fim, temos o estudo das emoções (DAMASIO, 2002) e das
percepções que é amplamente aberto ao contexto ambiental. Isso é o mesmo
que dizer que uma revisão das crenças estava se impondo tanto aos
discursivistas quanto aos cognitivistas: do meu ponto de vista, a Análise do
Discurso e a Cognição Social são compatíveis e suas teorias, saberes e
métodos podem dialogar entre si.
Adotar o ângulo sociocultural nas Ciências Cognitivas implica em fazer
certo número de escolhas epistemológicas, especialmente sobre a natureza do
espírito. Assim como o neurocientista Damasio, um bom número de filósofos, a
começar por Peirce, e muitos pesquisadores que trabalham com as práticas
sociais e culturais, acredito que o dualismo cartesiano é “epistemologicamente
desesperado” (a expressão é de Houdé, 1998), o que me leva a descartar o
inatismo, o idealismo e certo racionalismo, para adotar o princípio da
externalidade do espírito. Considero que existem vários saberes, crenças (em
uma só palavra, proposições e pensamentos) articulados com o mundo exterior,
o ambiente, os artefatos, e não apenas encapsulados nos módulos internos.
A noção de distribuição permite renovar a questão do contexto com
certa força operatória. Ela está atenta à construção e à transmissão das
informações não apenas via saberes e competências detidas “na cabeça” dos
indivíduos em seu ambiente sociocultural (“no mundo”), mas inscritas nas
ferramentas cognitivas, ou seja, em artefatos como, por exemplo, um bloco
de notas ou um tablet. Eu a defini –em uma perspectiva mais ampla que
expande os agentes de distribuição aos elementos não artefatuais, tais como
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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os sentimentos e os valores – como um processo de transmissão sincrônica e
diacrônica de enquadres pré-discursivos coletivos, estes últimos
(conhecimentos enciclopédicos, crenças, emoções, percepções) sendo
distribuídos de maneira colaborativa entre os agentes humanos e não-
humanos graças aos organizadores psíquicos internos, mas igualmente
externos (ferramentas discursivas como a lista, o dicionário, o quadro, o
diário, o guia de conversação, ou mais amplamente semiótico como as cores,
os símbolos, as vestimentas etc.).
3.2 Do pré-construído aos pré-discursos
Quando eu ouço “É Beirute”, todo um universo semântico é ativado e
ouço, claramente, que Beirute não é mais em Beirute e que a cidade em ruínas
diante de mim ou mesmo o quarto em desordem de um adolescente são
designados por um nome que é aquele mesmo de outro caos, considerado
como a melhor referência possível no contexto. Mas como esses
conhecimentos chegaram até mim e, sobretudo, como eles são ativados por
esse simples nome próprio?
Para responder a essa questão, pleiteio que essas palavras ativam os pré-
discursos, concebidos como operadores na negociação da partilha, da
transmissão e da circulação do sentido nos grupos sociais: defino-os como um
conjunto de enquadres pré-discursivos coletivos que têm um papel
instrucional para a produção e a interpretação do sentido em discurso
(PAVEAU, 2006, 2007). São enquadres de saber, de crenças e de prática que
não estão disponíveis apenas no espírito dos indivíduos e na cultura dos
grupos (é sua natureza representacional), mas estão distribuídos, no sentido
cognitivo do termo, nos ambientes materiais da produção discursiva. Os pré-
discursos não são sequências discursivas identificáveis (discursos que teriam
sido produzidos outrora, o que os levariam em direção ao discurso citado e ao
dialogismo), mas enquadres prévios tácitos, assinalados nos discursos atuais
por certo número de fenômenos. Eles são dotados de seis características que
tornam possível sua análise:
• Sua coletividade, resultado de uma coelaboração entre os indivíduos e
entre o indivíduo e a sociedade: com relação a “É Beirute”, os
conhecimentos em torno da guerra civil de 1975-1990 são
supostamente partilhados por meus interlocutores e integram o
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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estado de conhecimentos comuns de uma sociedade em um dado
momento;
• Sua imaterialidade, a pré-discursividade sendo de ordem tácita (isto é,
não formulável de maneira explícita, contrariamente ao implícito); não
é o nome próprio “Beirute” que formula explicitamente os estragos
da guerra sobre a vida urbana; isso constitui um apelo aos pré-
discursos, ou seja, ao conjunto de conhecimentos prévios depositados
em minha memória e em meus ambientes e que constituem as
instruções de interpretação;
• Sua transmissibilidade, sobre o eixo horizontal de comunicabilidade
enciclopédica (a ideia da partilha) e o eixo vertical da transmissão via
linhagens discursivas (o papel da memória): o sentido da expressão
foi-me transmitida pela enciclopédia ambiente de meus ambientes e
porque, enquanto locutora, eu ponho as minhas falas nas de meus
“ancestrais”, retomando suas formas e seus sentidos, muitas vezes
sem que eu saiba;
• Sua experiencialidade, uma vez que eles permitem ao sujeito organizar
e também antecipar seu comportamento discursivo: “É Beirute” faz
parte das expressões que me permitem organizar meu universo
categorizando-o;
• Sua intersubjetividade, os critérios de mobilização sendo vero-
relacionais e não lógicos: a questão não é saber se a qualificação
Beirute é verdadeira ou não; é a avaliação e a pertinência da
denominação com relação aos meus interlocutores e à concepção do
discurso na sociedade que importam;
• Sua discursividade, enfim, já que eles são linguageiramente
assinalados: “Beirute” é uma forma linguageira presente no fio do
discurso e recuperável como tal pelo analista; várias outras formas
podem constituir apelos aos pré-discursos, formas lexicais como
“vândalos” analisadas por Sophie Moirand, formas fixas como “divina
surpresa”6 ou padrões sintáticos como “nós somos todos + [categoria
6 Em Os pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]), analiso a expressão “divina surpresa”, mostrando que essa fixação, desancorada de sua origem política (Maurras teria empregado a expressão para qualificar a chegada de Pétain ao poder), pode ser aplicada tanto a uma vitória olímpica quanto a um fechamento de contrato.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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a ser defendida]” sobre o modelo de “nós somos todos judeus
alemães” de Cohn-Bendit em 19687.
3.3 Uma memória dinâmica: recognição e linhagens discursivas
Encarar uma memória cognitivo-discursiva é ultrapassar uma concepção
estática (memória-estoque destinada a ser recuperada, ou memória
simplesmente partilhada que constituiria um tipo de fonte comum na qual
bebem os interlocutores), para adotar uma concepção dinâmica que faz da
memória um verdadeiro operador pré-discursivo e discursivo. Isto é, portanto,
admitir que a memória em discurso não serve apenas para... a memorização,
mas possui uma função (re)construtiva e categorizadora, função que passa
essencialmente pela recognição.
Se a memória em discurso não é simples restituição, pode-se, com
efeito, falar de recognição: a referência a Beirute não se satisfaz
evidentemente em transportar uma memória histórica, mas constitui uma
ferramenta cognitivo-discursiva que (re)categoriza ironicamente a
constatação de uma desordem ou de uma destruição de guerra. Assim, a
designação não funciona apenas sobre o modo simples da analogia, mas
organiza o mundo em discurso, confere-lhe um sentido. Então, podemos falar,
com Ricœur, de reconhecimento, a palavra que designa a face cognitiva da
memória, que abrange a “denominação psíquica”:
[...] o reconhecimento, que coroa a pesquisa bem-sucedida, [...] designa a face cognitiva da lembrança, enquanto que o esforço e o trabalho inscrevem-se no campo prático. [...] Esse desdobramento entre dimensão cognitiva e dimensão pragmática acentua a especificidade da memória entre os fenômenos que se inscrevem na denominação psíquica (RICŒUR, 2000, p. 67-68).
Tomo o termo de re-conhecimento ao pé da letra, integrando a ideia de
Halbwachs segundo a qual a origem importa menos que sua reconfiguração. O
re-conhecimento é um processo cognitivo dinâmico, na medida em que se
criam versões, mas sobretudo organizações do mundo. É a razão pela qual a
memória cognitivo-discursiva realiza, em minha opinião, alguma coisa da
ordem da recognição.
A construção da memória – e, por consequência, da memória cognitivo-
discursiva – é fundamentalmente inscrita no desenrolar da história. O elo
7 Analiso essa forma memorial no capítulo 6 de Langage et morale (PAVEAU, 2013).
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memorial é parâmetro fundamental na produção dos discursos, a distribuição dos
saberes e crenças voltando-se para o eixo diacrônico: os “ancestrais”, os que
falaram antes de nós, são agentes humanos de distribuição, como o conjunto dos
“lugares de memória” discursivos ou artefatuais que sustentam a transmissão.
No meu exemplo, o nome próprio “Beirute” é um desses lugares de
memória, que é também “agente de distribuição”. Os valores associados ao
nome, as evocações icônicas (televisivas, fotográficas ou cinematográficas)
que ele não deixa de suscitar, os traços prototípicos dos quais ele é dotado (a
destruição de Beirute transformou-se no protótipo da destruição da cidade
em guerra) são elementos suficientes que passam pelos canais da memória
cognitivo-discursiva. Chamo esses canais de linhagens discursivas, as quais
reforçam a historicidade dos discursos e das significações. E defino esses
canais como dispositivos representacionais internos e externos que permitem
acolher e transmitir conteúdos semânticos ligados aos saberes, crenças e
práticas: os “lugares de memória” discursivos e cognitivos. Eles são elementos
importantes na construção dos discursos ideológicos, em particular por sua
força argumentativa.
3.4 Força polêmica das analogias memoriais
Talvez não insistimos o suficiente sobre a função argumentativa da
memória discursiva, sem dúvida por não tê-la mensurado. Lembro ainda a
observação de Lecomte, em seu texto de 1981: “a autoridade, isto é, a
memória”, o que significa que a memória autoriza o sentido, permitindo as
produções-interpretações, as circulações e as transmissões discursivas. Suas
linhagens constroem autoridade semântica.
Em 2012-2013 na França, pôde-se assistir a um debate intenso em torno
da lei que autoriza o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo,
promulgada no dia 18 de maio de 2013. As memórias interdiscursivas não
cessaram de se cruzar e de entrar em conflito, para apoiar as posições de cada
um. É nos opositores que as memórias das palavras e dos dizeres têm
circulado mais, o que confirma o valor argumentativo da memória: uma
oposição, que não detém a autoridade, tanto jurídica quanto política ou
mesmo simbólica, deve sempre encontrar mais argumentos do que a maioria,
e a referência analógica é então uma ferramenta polêmica poderosa. Os
opositores ao casamento para todos exploraram amplamente suas
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competências analógicas e pode-se distinguir várias referências históricas que,
em lhes fornecendo linhagens discursivas fecundas, lhes serviram de
instrumentos polêmicos: a Revolução Francesa, o regime de Vichy e mais
amplamente os fascismos europeus dos anos 1930-1940, assim como a
Revolução de maio de 1968. Retomo aqui os dois exemplos de léxico
revolucionário e do regime de Vichy.
3.4.1 Mitologia revolucionária: guilhotina e guerra civil
Uma das passagens de bravura de Frigide Barjot, líder do movimento
Manifestação para todos8 durante o que os opositores à lei “Taubira”9
chamaram de “Primavera Francesa”, é esta exclamação do 12 de abril de 2013:
Hollande quer sangue, ele o terá! Todo mundo está furioso. Nós vivemos em uma ditadura.
Ela havia acabado de afirmar que um “cutelo acabara de cair sobre a
cabeça do povo”, antes de precisar que:
O Presidente da República decidiu nos guilhotinar. Se essa noite (sexta-feira), víssemos irromper por todos os lados os “Fora, Hollande”, contrariamente às outras vezes, eu não impediria os slogans (Le Nouvel Observateur, 12.04.2013).
No mesmo momento, Philippe Gosselin – deputado da UMP (União por um
Movimento Popular) pelo departamento de Manche – fala de “guerra civil”. A
captação do léxico da Revolução é evidente (guilhotina, cutelo) e é possível
compreender esse segmento como um apelo à oposição binária “Nobreza versus
Terceiro Estado”, que estrutura em parte o imaginário do período. O poder
republicano atual é então designado nos termos do poder revolucionário da época.
Mas o emprego de “povo” desloca a referência, e os pré-discursos são mobilizados
aqui com uma elasticidade suficientemente grande: François Hollande sendo
finalmente descrito, no implícito das equivalências, mais como um Louis XVI
“ditatorial” do que como um libertário da opressão. Esse apelo ao povo articula-se
com um discurso igualmente bastante ouvido nas fileiras do movimento
Manifestação para todos: a distinção entre o país legal e o país real, velha oposição
8 N.T.: O nome original desse movimento é La Manif pour tous, que surge em contraposição ao movimento Mariage pour tous, ou seja, casamento para todos. 9 N.T. : Trata-se da Lei nº 2013-404 de 17 de maio de 2013, que abre o casamento entre casais do mesmo sexo, apresentada ao parlamento francês por Christiane Taubira, deputada eleita pelo Departamento da Guaiana, entre 1993 e 2011, e Ministra da Justiça desde 2012.
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maurassiana integrada no discurso dos anti, “povo” que entra então em eco com
“país real”. “Guilhotina”, “cutelo” e “povo” transformam-se, assim, nos
significantes abstratos da luta política, saídos de suas linhagens lexicais de origem,
fortemente contextualizados na história e postos à disposição, como formas
prontas para o uso dos locutores do século XXI e de seus debates e embates.
3.4.2 Signos concentracionários: estrelas e triângulos
A célebre menção ao termo “estrela” feita pela então ministra Christine
Boutin não é nada ambígua. Ela posta em abril de 2013 um tweet10 tão
estranhamente escrito quanto provocador:
O sentido do termo “estrela” aqui não gera nenhuma dúvida pelas
seguintes razões: (i) sua co-ocorrência com “publicar lista de dissidentes” que
assinala alguma coisa da ordem da denúncia, até mesmo da estigmatização;
(ii) a articulação com o termo “cor”, que evoca a cor amarela da estrela que
marcava as vítimas judias da deportação nazista, mas, sobretudo a presença
de outras ocorrências desse tipo nos ambientes discursivos dessa
“primavera”, e da parte dos dois campos. Os termos como “triângulo rosa” e
“triângulo negro” apareceram, de fato, nos debates. Eis aqui uma breve lista:
• Mestre Jerôme Triomphe: “A camiseta da Manifestação para todos é a
nova estrela amarela” (F. Desouche, 31/05/2013);
• Christian Assaf (PS): “O tempo do triângulo rosa acabou” (“Casamento
gay: as propostas sobre o ‘triângulo rosa’ indignam a UMP”, Le Parisien,
31/01/2013);
10 #relatorsenado anuncia que os pts (participantes) do grupo concordam em publicar lista de dissidentes! Qual é a cor da estrela? Vergonha.
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• Elie Aboud (UMP): “[...] há um pedopsiquiatra que é reconhecido, e
não se pode suspeitar de aliança política conosco, que alerta toda a
sociedade” declarou o eleito de direita. “Você sabe, senhora Ministra
da Justiça, não é do triângulo rosa que ele fala, mas sim de um
triângulo negro, com a inscrição S.O.S Perigo” (declarações
encontradas na revista semanal Le Nouvel Observateur, 05/02/2013.
Não há polissemia, nem de extensão de sentido possível, para “estrela
amarela”, “triângulo rosa” e “triângulo negro”, as quais designam realidades
únicas na história. A inscrição na linhagem discursiva concentracionária11 está
explícita, e o apelo à interpretação é reduzido; trata-se, sobretudo, de um
apelo à cultura do receptor, que é também, entretanto, uma forma de
interpretação.
Enfatizou-se, com frequência, que os discursos do movimento
Manifestação para Todos caracterizaram-se por seus empréstimos e
reciclagens de outros discursos, particularmente aqueles dos eventos e dos
partidos de esquerda. Sem dúvida, seria equivocado interpretar essa
tendência recuperadora como uma fraqueza. Ela me parece, ao contrário, uma
força, pois os opositores à lei “Taubira” compreenderam que a memória
discursiva é um argumento, tão mais forte quanto ela for redutora,
caricaturizada e provocadora. Eles apoiam-se nos pré-discursos coletivos que
todos detém, mais ou menos, pois eles fazem parte dos saberes transmitidos
pela escola: “guilhotina revolucionária”, “estrela concentracionária”. Tantas
linhagens discursivas disponíveis no repertório pré-discursivo de cada um, que
basta enfeitá-las de belos discursos e slogans espetaculares.
4 Des-memória e a-memória: o discurso e o esquecimento
Em Os Pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]), propus o conceito de “des-
memória discursiva”, retrabalhando a definição de des-memória que Regina
Robin havia projetado para formular as transformações semióticas da Berlin
após a queda do muro (ROBIN, 2001). Ela considerava que o processo de des-
batismo e re-batismo das ruas – os nomes das figuras das Brigadas internacionais
que haviam sido substituídos pelos nomes dos cavaleiros teutônicos (ROBIN,
2004) – havia realizado essa des-memória, por restabelecimento de uma
11 N.T.: O termo refere-se à prática nazista de exploração de trabalho forçado e de extermínio em campos de concentração.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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memória antiga que apagou uma mais recente e menos consensual. O
interessante fenômeno do des-batismo pode ser observado em vários lugares
marcados pelas mudanças políticas fortes e as histórias de mudanças de nomes
de rua com fundo político ou ideológico que acontecem abundantemente.
4.1 Des-batismo e re-batismo das ruas nas memórias das guerras
Em uma dissertação de mestrado de Ciência Política sobre o tema da
memória e do símbolo político, Comard-Rentz explica que a escolha desse
assunto lhe foi inspirada pelo exemplo dos nomes de ruas que evocam a França
em Berlim e a Alemanha em Paris. Em Berlim, “encontram-se o Parisier Platz
(Praça de Paris) e uma Parisier Straße (Rua de Paris)”, de modo que “a Armada
Francesa rebatizou um bairro inteiro durante o período pós-guerra, deixando,
após sua partida em 1994, as ruas Racine, Molière, Saint-Éxupéry [...]”
(COMARD-RENTZ, 2006, p. 6). Em compensação, em Paris, não existem mais
ruas que evocam a Alemanha, salvo exceções como a rua d’Ulm, por exemplo.
A partir daí, ela realiza uma exploração histórica e política das mudanças de
nome das ruas, dando vários exemplos ao longo da história: em 1789, a Revolução
Francesa des-batiza os nomes dos santos para re-batizar “republicano” com um
objetivo pedagógico (47% das ruas de Paris teriam sido assim re-batizadas); em
1940, o regime de Vichy impõe igualmente suas marcas toponímicas na França,
privilegiando o nome do marechal Pétain; em 1962, a guerra da Argélia é outra
ocasião de conflito de memórias, que se fixa sobre a data do fim das hostilidades,
fornecendo o nome “19 de março de 1962”, independência para uns, “abandono”
de uma terra natal para outros; em 1995, as municipalidades administradas pela
Frente Nacional12 no sul da França “nacionalizam” as placas de rua, com o falso
pretexto de uma “provençalização”13.
A des-memória discursiva designa um conjunto de fenômenos de
desligamento das lembranças e inserções dos nomes no fio memorial do
discurso. Existem inúmeros processos a serviço da des-memória, no que tange,
particularmente, aos elementos ligados ao sentido e ao referente das palavras.
12 N.T.: Em francês, “Front National”, partido político francês fundado, em 1972, por Jean-Marie Le Pen e é o principal representante do nacionalismo de direita na França. 13 N.T.: “Provencialização” diz respeito a forma de reconstrução identitária da Provença, região localizada no sudeste da França que, conforme Basseto (2001, p. 214), teve o provençal como língua administrativa e jurídica até 1539, quando, por lei, o francês passou a ser a língua oficial, embora o provençal continuasse a ser a língua falada pelo povo (BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001).
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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Desses processos citarei quatro: a desancoragem de certas expressões
fixas de seu contexto referencial de origem (como “divina surpresa”); a
ancoragem, ao contrário, de certos discursos na forma de um outro, realizando
uma espécie de transferência de memória sobre uma outra, como é o caso das
analogias memoriais do movimento Manifestação para todos; o desligamento
entre um significante e seus sentidos e referente, particularmente no caso do
nome próprio14; a subjetivação memorial: a partir do exemplo dos nomes de
batalha, como “Diên Biên” ou “Bir Hakeim” (PAVEAU, 2008; 2009), mostrei que
a construção dos sentidos do nome próprio estava amplamente situada em
uma comunidade cultural, social e nacional.
Para recapitular, chamo de des-memória discursiva um conjunto de
fenômenos de discurso que permitem a revisão das linhagens discursivas, isto
é, transmissões semânticas cultural e socialmente asseguradas pelas
ferramentas da tecnologia discursiva (as placas de rua, por exemplo). Essas
revisões podem ser as mudanças semânticas, os neologismos semânticos, as
redenominações, as reformulações etc. Em suma, um conjunto de fenômenos
linguageiros que vão produzir efeitos transgressivos ou contra-intuitivos em
um contexto em que reine um acordo semântico, histórico e até mesmo ético.
4.2 A a-memória discursiva, entre a denegação e o interdito
Acompanhando Weinrich (2001 [1999]), Ricœur (2007 [2000]) e vários
historiadores, filósofos e psicanalistas que trabalharam a memória, penso,
evidentemente, que o esquecimento é necessário para a elaboração de uma
memória praticável, entrada para uma história também praticável. No
entanto, quando a formulação das coisas é impossibilitada pelo trauma, que
promove um retorno na existência pelos seus caminhos bem rodados, o
próprio esquecimento é bloqueado. Todos os grandes conflitos do mundo
provocaram essas coisas, esse silêncio habitado por falas não ditas, por um
passado não vivido que porém se manifesta pela dor. Esse é o caso da guerra
da Argélia, que fala ainda nos descendentes sob a forma de sintomas. A esse
respeito, Stora (2008, p.31) diz que: “O objeto ‘Argélia’ está sempre vivo,
terrivelmente vivo, inquieto, não se deixa esquecer”. Eu pensava que esse tipo
de memória – que suprime o discurso para deixar apenas a dor, que fala 14 Para muitas pessoas, por exemplo, o topônimo “Tataouine” designa um dos mais agradáveis Clubes Méditerranée da Tunísia: a memória da prisão militar vai sendo apagada e a laminação memorial sendo bloqueada pelos sentidos geográficos e culturais contemporâneos.
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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somente por sintomas evitando as palavras – não fosse do domínio da des-
memória nem do esquecimento e que, então, seria necessário encontrar outra
palavra para nomeá-la. Em 2010, propus, no meu diário de pesquisas, o termo
“a-memória” em uma postagem, justamente sobre a Argélia, intitulada
“Memórias e des-memórias argelinas” (PAVEAU, 2010).
Falo, então, de “a-memória discursiva” para designar não mais uma
revisão, tal como o é para a des-memória, mas sim um apagamento,
consciente ou inconsciente, de um passado ou de um legado discursivo, de
“formulações-origens” (COURTINE) sobre os quais o locutor não quereria ter
mais nada a dizer, mas são ditos mesmo que pelo viés do inconsciente e da
somatização, ou ainda, nas linguagens infinitamente inovadoras do sintoma.
4.3 A pós-memória: “Você não estava em Auschwitz”
Reencontrei um pouco de minha noção de “a-memória” em uma outra
muito vizinha que eu não conhecia e que descobri graças a Robin (2003) em La
mémoire saturée: a pós-memória (postmemory). Tal noção é proposta por
Hirsch (1997) em Family Frames: Photography, Narrative, and Postmemory. A
partir do estudo do trauma do holocausto, a autora define pós-memória como
sendo a memória dos descendentes ou dos sobreviventes, baseada em
narrativas, descrições e fotos. Trata-se de uma memória de segunda-mão, se
assim podemos dizer:
A pós-memória distingue-se da memória por uma distância de geração, e da história por um relato de emoções pessoais. A pós-memória é uma forma muito poderosa e muito particular de memória, precisamente porque sua relação com os objetos e com as fontes não é mediada pelas lembranças, mas por um investimento imaginário e pela criação. Isso não quer dizer que a memória não seja mediada, mas é que ela está mais diretamente religada ao passado. A pós-memória caracteriza a experiência dos que cresceram envolvidos por narrativas, por acontecimentos que precederam seu nascimento, cuja história pessoal foi como que evacuada pelas histórias das gerações precedentes que viveram os acontecimentos e as experiências traumatizantes (Hirsch, 1997 apud ROBIN, 2003).
Hirsch (1997) toma como exemplo o relato de memória de Art
Spiegelman, filho de sobreviventes e célebre autor da famosa história em
quadrinhos Maus. Ela menciona o momento de definição pura do status de
sobrevivente ou de descendente de pais traumatizados, em que seu
psicanalista lhe diz: “Você não estava em Auschwitz. Você estava em Jego
Park”. Este enunciado é exatamente o da a-memória – ou da pós-memória –
PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.
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que não levanta nenhum trauma, mas que permite formulá-lo: o descendente,
que não viveu o trauma, que “não estava em Auschwitz”, traz consigo, porém,
os sintomas dos quais fala o discurso.
Conclusão
Os conceitos são como os humanos: eles evoluem, modificam-se e
tomam, às vezes, novos caminhos que os conduzem a novas existências. Isso
se aplica à noção de memória discursiva, que apresenta uma disponibilidade
importante para a reflexão dos analistas do discurso, sem dúvida alguma
graças à grande riqueza da conceitualização original. Não contemplei neste
artigo, devido ao espaço, a noção de memória metálica (ORLANDI, DIAS) ou
de memória numérica (HABERT, PAVEAU) que começa a se desenvolver em
razão dos corpora de discursos on-line: há ainda uma longa vida a ser vivida
pela memória discursiva, além de ser um belo canteiro a ser trabalhado em
uma perspectiva franco-brasileira.
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Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
E-mail: [email protected]
Eduardo Lopes Piris
Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
E-mail: [email protected]
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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O LOGOS COMO RAZOABILIDADE ARGUMENTATIVA: CONTRIBUIÇÕES
DA NOVA RETÓRICA PARA A ANÁLISE DO DISCURSOi
Melliandro Mendes Galinariii Marcos Vieira de Queiroziii
Resumo: O presente artigo visa ressaltar, de modo sucinto, como as tipologias argumentativas de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002), tais como a incompatibilidade, o modelo, a associação e a dissociação (etc.), podem funcionar como uma etapa interessante para a análise de discursos, a saber, para a apreensão do logos argumentativo em sua acepção de “demonstração verdadeira ou aparente”. Num primeiro momento, a partir dos autores citados, da retórica aristotélica e de teóricos da Análise do Discurso, buscamos conceber a argumentação como uma atividade que ultrapassa os pressupostos da Lógica Formal, no intuito de instituir o logos como uma razoabilidade fundada pela materialidade textual e, além disso, como um artifício retórico apreensível pelas citadas tipologias. Num segundo momento, buscamos ilustrar a pertinência de tudo isso com a análise rápida de dois editoriais que circularam na cidade de Mariana-MG. Tais editoriais possuem um caráter político e uma dinâmica elucidativa na construção/desconstrução de raciocínios retóricos.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Retórica. Argumentação. Logos.
Abstract: This article aims to consicely highlight how Perelman & OlbrechtsTyteca's (2002) arguments typologies, such as the incompatibility model, the association and dissociation techniques (etc.), can function as an interesting way toward discourse analyses, particularly for the seizure of the argumentative logos in its meaning as a "true or apparent demonstration". At first, in order to establish the logos as something reasonably founded by textual materiality and as a rhetorical device graspable by the argument typologies, we consider Aristotelian's rhetoric and theoretical discourse analysis approaches, seeking to develop a stand about argumentation as an activity that goes beyond formal logic assumptions. Secondly, we seek to illustrate the relevance of the stand taked by a brief analysis of two journal editorials that circulated in the town of Mariana, Minas Gerais (Brazil). These editorials have a political and dynamic character elucidating the construction/deconstruction of rhetorical reasoning.
Keywords: Discourse Analysis. Rhetoric. Argumentation. Logos.
i Este artigo foi produzido como resultado das reflexões desenvolvidas no projeto de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFOP, intitulado A argumentação nos discursos sociais: por uma metodologia de análise, de autoria do professor Melliandro Mendes Galinari, do DELET/ICHS/UFOP.
ii Docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil. E-mail: [email protected].
iii Graduando pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil. E-mail: [email protected].
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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Introdução: A Nova Retórica
Este artigo busca demonstrar como as técnicas argumentativas de
Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002) (contradição, incompatibilidade,
comparação, exemplo, dissociação etc.) podem ser reaproveitadas como
mecanismos linguístico-discursivos de razoabilidade para a apreensão do logos
nos discursos. Essa hipótese se configuraria, assim, como uma etapa
metodológica (dentre outras) para a análise dos raciocínios sugeridos pela
materialidade textual, incluindo os seus efeitos de sentido.
O objetivo do Tratado da Argumentação, como apontam os seus autores,
é o resgate dos “meios de provas utilizados para se obter a adesão”, que, por
três séculos, foram negligenciados pelos “lógicos e teóricos do
conhecimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 1). Para eles, “a
publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma
velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura da
razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a
filosofia ocidental dos três últimos séculos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 1). Como sabemos, essa ruptura é formatada pela célebre distinção
entre demonstração e argumentação, presente no tratado. A primeira liga-se
diretamente ao campo da Lógica Formal, que busca, através da evidência das
premissas do raciocínio, provar algo capaz de ser compreendido por todo e
qualquer ser dotado de razão. Na segunda, temos o campo da retórica, em
que a intenção do orador é a de convencer um auditório específico sobre
determinada tese, provada ou não por um raciocínio mais rigoroso. Em
relação a essa distinção, Perelman (1987, p. 234) diz o seguinte:
[...] em princípio, a lógica formal não se ocupa da adesão de qualquer coisa à verdade das proposições em vista. A prova é impessoal, e a sua validade não depende em nada da opinião: aquele que infere num determinado sistema só pode aceitar o resultado de suas deduções. Em contrapartida, toda argumentação é pessoal; dirige-se a indivíduos em relação aos quais ela se esforça por obter a adesão, a qual é suscetível de ter uma intensidade variável.
Pode-se dizer, com isso, que os autores não procuram “condenar” os
lógicos, mas, sim, certa tendência em se considerar a argumentação como
dependente dos artifícios rígidos das ciências formais. Para Perelman (1987, p.
236), a argumentação serve ao orador na medida em que este busca
influenciar um auditório, sendo que “a verdade ou falsidade desta [da tese]
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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constituem unicamente um motivo de adesão ou rejeição no meio de tantos
outros: uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna,
socialmente útil, justa e equilibrada”.
Dessa forma, vê-se que a argumentação está voltada para a influência do
auditório, entendido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar
com sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 22).
Sendo assim, a validade e a pertinência dos argumentos utilizados são
julgadas pela situação e pelos acordos nos quais se imiscuem aqueles que
argumentam sobre determinado assunto. Tudo isso inclui os valores dos
interactantes e a sua adesão à doxa, em aliança efetiva com o “preferível” e
com o “desejável”, parâmetros que, em última instância (para além da Lógica
Formal), definem a força dos argumentos. É nesse sentido que “a análise da
argumentação versa sobre o que é presumidamente admitido pelos ouvintes”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 73). É nessa perspectiva que temos
defendido, também, que a argumentação é uma propriedade da linguagem
em uso, propensa a fazer-crer (a teses), a fazer-fazer (ações e
comportamentos) e a fazer-sentir (emoções), seja de modo consciente ou
não. Importa salientar que os argumentos são atividades discursivas presentes
nos vários gêneros e situações comunicativas de nossa vida simbólica,
estando, em última instância, à mercê de convenções culturais acerca de
eventos, pessoas, instituições e ideias. Feitas essas observações acerca da
argumentação, bastante gerais, passemos ao logos.
1 Sobre o logos e sua lógica razoável
No âmbito de suas especulações, como já é sabido, Aristóteles aponta-
nos três modalidades de provas retóricas (ou argumentos): “umas residem no
caráter moral do orador [ethos]; outras, no modo como se dispõe o ouvinte
[pathos]; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece
demonstrar [logos].” (ARISTÓTELES, 2005, p. 96). As provas retóricas
continuam sendo o cantus firmus de reflexões de teóricos contemporâneos,
que buscam, de diversas formas, aprofundar e sistematizar essas noções,
tanto para fins teórico-especulativos, quanto para fins de análise de algum
discurso social.
No caso específico do logos, em sua feição (aparentemente)
demonstrativa/racional, o edificamos, segundo Aristóteles (2005, p. 97),
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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“quando mostramos a verdade ou o que parece ser verdade, a partir do que é
persuasivo em cada caso particular.” Ressalte-se que, para o filósofo, é o
“caso particular” (Kairós, pode-se acrescentar) o fator determinante para a
eficácia do logos, ou seja, a situação de proferimento do discurso, incluindo os
seus participantes e sua adesão à doxa, o que podemos associar, nos termos
de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002), à interferência incontornável de
acordos (tácitos ou não) e de valores partilhados pelos interactantes. Na
retórica aristotélica, pelo menos no livro I, a ênfase no logos repousa sobre o
deslindamento de duas operações de raciocínio que já conhecemos bem: o
entimema (ou dedução oratória) e o exemplo (ou indução oratória). No
entanto – é conveniente ressaltar mais uma vez –, tais artifícios mentais
possuem algum peso retórico somente sob os auspícios do que
contemporaneamente chamamos de “condições de produção do discurso”,
com seus contratos, atores e estratégias, além de afetos e visões de mundo
compartilhadas.
Mas a questão não é, (in)felizmente, tão simples: outras definições
podem ser apontadas para o termo logos, muito além do já citado paradigma
dedutivo/indutivo. Galinari (2011), por exemplo, apresenta, resumidamente, 11
campos de significação para o vocábulo a partir da obra de Guthrie (1967). Na
tentativa de incorporar o logos sofístico nas reflexões atuais da AD, com base
em uma releitura de Górgias e de Protágoras, e/ou, mesmo, por intermédio de
uma leitura mais ampla da própria retórica aristotélica (baseada nos livros II e
III, e não apenas no livro I, como se faz correntemente), o autor explora os
desdobramentos semânticos da (outra) acepção discursiva já sugerida por
Aristóteles (o logos como discurso/palavra/texto). Nesse sentido, o termo é
definido, ou melhor, resgatado, como toda e qualquer dimensão da linguagem
capaz de influenciar, tais como a estrutura prosódica, a seleção lexical, a
organização sintática, os índices de modalização, o agenciamento enunciativo
etc., o que ultrapassa uma visão meramente lógica (ou quase-lógica) pautada
em entimemas, exemplos e raciocínios afins. Dessa forma, o autor mostra
como temos sido reféns de uma abordagem reducionista e platônico-
aristotélica do logos, associando-o apenas a operações mentais já bastante e
comodamente repisadas.
Porém, mesmo em se tratando do logos em sua acepção
(aparentemente) demonstrativa, correntemente surgem dúvidas durante as
análises discursivas sobre como apreendê-lo na materialidade textual.
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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Salientamos a importância dessa etapa, ao lado de outras. Nesse sentido,
embora este artigo assuma radicalmente as consequências da acepção do
logos enquanto discurso (incluindo todos os seus componentes linguísticos e
paralinguísticos), gostaríamos de propor uma alternativa possível para se
apreendê-lo enquanto uma “razoabilidade” presente no manejo da
linguagem/texto. Para tanto, acreditamos que as tipologias argumentativas de
Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002) se mostram, diante de tudo o que foi
dito, como uma “ferramenta de trabalho” viável: num primeiro momento,
diante de sua razoabilidade fundada pela doxa e pelos valores do auditório,
elas nos permitiriam apreender o logos enquanto operações mentais (ou
raciocínios); num segundo momento, nos permitiriam apreender como tais
esquemas são capazes de se desdobrar enunciativamente no ethos e no
pathos, explicitando, pragmaticamente, a inter-relação da tríade clássica.
Tal procedimento parece estar próximo, também, das especulações
presentes em Amossy (2011). A autora, na continuidade das reflexões
produzidas por Aristóteles, Perelman & Olbrechts-Tyteca, visualiza o logos-
raciocínio como parte integrante da palavra em contexto, ou melhor, como
uma razoabilidade negociada em situações reais de comunicação (e não como
uma razão “impessoal”, de contornos universais ou evidentes). É nesse
sentido que se mostra fecundo e interessante, em uma análise, apreender os
tipos e formas de raciocínio presentes nos discursos sociais (mesmo se
“truncados”, falaciosos ou apenas verossímeis para um determinado grupo),
inserindo-os na perspectiva de um “eu-tu-aqui-agora”, onde poderíamos
avaliar a sua força argumentativa em função do contingente e do razoável,
indo além do “verdadeiro” em termos eminentemente formais. Para a autora,
enfim, o logos, enquanto razoabilidade, liga-se visceralmente ao senso
comum:
[...] ele representa aquilo que parece plausível a uma dada comunidade em função de suas crenças e valores - o que lhes parece dever ser aceito por todo ser de bom senso. Enquanto o racional é necessário e válido em si mesmo, ou seja, existe independentemente das circunstâncias e dos agentes humanos, o razoável surge, ao contrário, como contingente e negociável no interior de uma interação social (AMOSSY, 2011, p. 13).
É nesse contexto teórico-especulativo, semelhante à visão aqui
aventada, que as tipologias argumentativas de Perelman & Olbrechts-Tyteca
(2002) podem se mostrar de grande valia, uma vez que tais categorias nos
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apresentam uma série de operações mentais/textuais razoáveis/plausíveis
que, somadas, mostram-nos diferentes facetas inteligíveis do logos. No intuito
didático de resumir e mostrar tais tipologias, apresentamos o quadro a seguir,
sistematizado por Wachowicz (2010, p. 102) a partir de Perelman & Olbrechts-
Tyteca (2002), em que as referidas categorias encontram-se na coluna da
direita, em negrito:
Tip
os
de
Arg
umen
tos
Por Ligação
I- Os quase lógicos
Contradição e incompatibilidade
Identidade e definição
Transitividade
Comparação
Inclusão ou divisão
Probabilidade
II- Os baseados na estrutura do real
Por sucessão
Por coexistência
III- Os que fundamentam a estrutura do real
Exemplo
Ilustração
Por dissociação
Por serem já bastante conhecidas e parafraseadas, não faremos a
resenha teórica de cada uma das tipologias, o que se justifica também pelo
nosso objetivo principal: mostrar como tais conceitos podem ser
reaproveitados em uma análise discursiva/argumentativa, no sentido de se
apreender retoricamente o logos-raciocínio. Limitamos-nos a dizer que tais
operações (coluna da direita, em negrito) se caracterizam por integrarem
processos discursivos de “ligação” e de “dissociação”. Os primeiros se
caracterizam como “esquemas que aproximam elementos distintos e
permitem estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estruturá-
los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro.” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 215) Já por processos de dissociação, tratam-se
das “técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar, de desunir
elementos considerados um todo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.
215).
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Tudo isso, enfim, poderia ser interpretado como modalidades diversas
de operações mentais, ou melhor, como nuances de raciocínios
contextualizados, os quais, argumentativamente, se tornam característicos de
uma das dimensões semânticas do logos: aquela referente às demonstrações
verdadeiras ou aparentes. Na próxima parte do artigo, buscamos mostrar
como isso funciona na prática com a análise sucinta de dois editoriais do Jornal
Ponto Final, que circularam na cidade de Mariana-MG e região (em anexo).
2 Da política marianense: rápida contextualização
A conjuntura política vivida pela cidade de Mariana-MG, nos últimos
quatro anos (2008/2012), foi bastante turbulenta, uma vez que “foram
passando”, meteoricamente, pelo menos 5 prefeitos diferentes pelo
município. A questão sempre foi, naturalmente, veiculada pela imprensa local.
No caso do Jornal Ponto Final, foco de nosso estudo, o recorte temporal
estabelecido, que vai de 5 de fevereiro a 28 de maio de 2010 – ou seja, um arco
de tempo um pouco maior que 3 meses –, abarca, inicialmente, a saída de
Roque Camello (PSDB), acusado de tentativa de sufrágio ainda em período de
campanha. Roque sai em fevereiro de 2010, de modo que, no dia 9 de março,
Terezinha Ramos (PDT), mulher do ex-prefeito João Ramos e segunda
colocada nas eleições anteriores, assume o executivo1.
Terezinha assume o comando no dia 9 de março de 2010, depois de
esperar alguns dias pelos trâmites da câmara para a sua posse. No entanto, a
mesma também não fica a longa no poder, de onde é afastada por acusação
de irregularidades na prestação de contas de sua campanha eleitoral (14 de
maio de 2010), assumindo, em seguida, o vereador Raimundo Horta (15 de
maio de 2010), então presidente da câmara dos vereadores. Nota-se, aqui, o
quão agitado foi o pequeno período estabelecido pela nossa pesquisa: em
menos de 4 meses, Mariana foi marcada por um “entra e sai” incessante de
prefeitos, sofrendo, com isso, um prejuízo incalculável.
Os eventos políticos deflagrados no período que estudamos, como
dissemos, foram todos reportados pela mídia local, de modo que uma grande
1 Terezinha entra para a política depois que seu marido é assassinado, no dia 16 de maio de 2008. O crime, que tudo indica ter ocorrido por motivos políticos, continua sem solução. Na época em que foi assassinado, João Ramos (prefeito em Mariana por três vezes: de 1973 a 1976, de 1983 a 1988 e de 1993 a 1996) era pré-candidato a prefeito. Pesquisas anteriores a sua morte o mostravam como o favorito da população.
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polêmica se construiu em torno da instabilidade política do município. No
entanto, nosso estudo não visou uma compreensão do contexto político em
si, mas, sim, do modo como essa conjuntura foi representada pelos editoriais,
propiciando a promoção de teses, comportamentos e emoções junto ao
público leitor. Podemos dizer, portanto, que o contexto político de Mariana
foi a tópica central da argumentação desenvolvida pelos textos. Neste artigo,
anexamos apenas 2 dos editoriais estudados, por razões de tempo e de
espaço. O primeiro encontra-se na Edição de número 737 do Jornal Ponto Final,
que abarca o período de 09/04 à 15/04/2010; o segundo está presente na
Edição de número 743, de 21/05 à 27/05/2010.
De um editorial a outro, mesmo sendo um arco de tempo muito curto
(pouco mais de um mês), podemos notar dois momentos diversos dos
posicionamentos apresentados pelo Jornal Ponto Final, a saber, o elogio e o
vitupério de Terezinha Ramos (PDT), elaborados ao sabor das circunstâncias e
dos acontecimentos políticos. Esses dois momentos marcados pelos
posicionamentos distintos do editorial em relação à figura de Terezinha
Ramos (PDT) nos permitiram observar o funcionamento dos processos de
“ligação” e de “dissociação” teorizados por Perelman & Olbrechts-Tyteca
(2002). Em um primeiro momento (edição n.º 737), o editorial continua a
manter associada à imagem de Terezinha a noção de uma “nova forma” de se
fazer política, em contraposição à imagem de Roque e de seu grupo político,
atrelados simbolicamente a uma “velha forma” de se governar. Na edição de
n.º 743, numa lógica caprichosamente contrária ao que vinha acontecendo, é
interessante perceber como o editorial irá desconstruir aquela imagem
repisada de Terezinha Ramos (de um “novo modelo” político) para então
(re)associá-la/ligá-la à imagem de Roque e seu grupo, colocando, assim, todos
em pé de igualdade. Assim, podemos dizer que temos dois grandes momentos
na argumentação desenvolvida pelos editoriais, a saber, o elogio e o vitupério
de Terezinha Ramos, numa dinâmica de associação/dissociação retórica regida
pelos ventos políticos instáveis do município.
3 Editorial 1: O elogio de Terezinha
Como se pode notar pelo próprio texto, contávamos com apenas 25 dias
do novo mandato de Terezinha Ramos. Nesse editorial, podemos ressaltar,
inicialmente, dois tipos de logos-raciocínio que buscam fundamentar o real, a
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saber, o modelo e o exemplo2. No primeiro parágrafo, fazendo uso do discurso
polifônico indireto, o editorialista encena/reporta uma série de
questionamentos atribuídos à vox populi (as tais “cobranças, cobranças e
cobranças”), relativos ao início do mandato de Terezinha. O editorial, ao
afirmar, diante de tais questionamentos, “acho ainda muito cedo para
qualquer avaliação”, busca mostrar-se prudente, ponderado e/ou cauteloso,
propondo um tempo de “6 meses” como uma cronologia ideal para que
qualquer governo possa ser avaliado de modo não precipitado. O referido
tempo paradigmático, tendo já funcionado supostamente em outras
“circunstâncias felizes” (não mencionadas no texto), é transposto, pelo
editorial, para a situação política marianense, inequivocamente como um
modelo e um exemplo a serem seguidos pela população. Pode-se cogitar que,
fundamentando o real à sua maneira, tal artifício retórico serviria como um
elemento amenizador da situação de Terezinha, que “está no mandato à
apenas 25 dias”.
Com este argumento pelo modelo e/ou exemplo, chega-se (e justifica-se)
à tese central do texto, a saber, a de que “o povo deve ter paciência nesse
início de mandato”. É interessante observar, ainda com o uso das
interrogações e dos questionamentos polifonicamente atribuídos ao povo, o
uso de uma espécie de “contradição ou incompatibilidade ad hominem”
forjada pelo discurso. Expliquemos. Direcionando à população leitora a sua
própria voz encenada textualmente (início do editorial), constrói-se uma
incompatibilidade política (e até mesmo moral) entre o “comportamento do
povo” diante de Terezinha, por um lado, e o seu modo de agir e de se
comportar outrora, durante o mandato de Roque. Em outros termos, como é
dito no editorial, “todos querem resposta em apenas 25 dias de mandato,
embora no governo de Roque Camello tenham tido paciência durante um
ano”. Tal contradição funcionaria, em termos de efeitos de sentido, como uma
crítica velada à população, ao seu comportamento, ou seja, um “quase
recurso” da ordem do ad hominem, que poderia fazer recair sobre os seus
interlocutores a alcunha de praticantes da injustiça e da incoerência. Trata-se
de mais um argumento, da ordem do logos, posto a justificar a tese de que “o
2 Para Perelman (1987, p. 258), “os argumentos pelo exemplo e pelo modelo, assim como o argumento pela analogia, generalizam o que é aceito a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem para outro domínio o que é admitido num domínio determinado”. Ambos os tipos de argumentos servem para fundamentar a estrutura do real.
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povo deve ter paciência nesse início de mandato”. A contradição incitaria esse
comportamento político (de cautela) apostando na capacidade de autocrítica
da comunidade, ou melhor, por chamá-la à “razão”, denunciando uma linha de
ação no mínimo suspeita. Vista de outro ângulo, ou melhor, desdobrando-se
em ethos, a encenação dessa incompatibilidade, mais uma vez, buscaria
construir a imagem de um Jornal/editorialista “prudente”. Já como pathos,
serviria para “remediar a cólera”, atuando no sentido de acalmar os ânimos e
a ansiedade popular, ávida por mudanças. Em suma, efeitos variados e
favoráveis à nova Prefeita empossada.
Outra demonstração aparente presente no editorial – mais um aspecto
do logos-raciocínio – estaria, na terminologia de Perelman & Olbrechts-Tyteca
(2002), no uso do chamado argumento por inclusão ou divisão, que explora
certas operações mentais de contiguidade. Segundo Wachowicz (2010, p.
109), ao resumir tal artifício:
[...] esses argumentos apelam para o raciocínio das partes pelo todo, ou do todo pelas partes. A inclusão toma elementos menores e suas propriedades e os inclui no maior, que passa a ter as mesmas propriedades. A divisão faz o contrário: toma o todo e suas propriedades e o divide em partes, que passam a receber as mesmas propriedades do todo.
Notamos tais artifícios, principalmente a inclusão, a partir do momento
em que o editorial nos afirma o seguinte fato favorável à Prefeita recém-
empossada: “realmente a população já está vendo algumas melhorias”. A
partir daí, enumera-se uma série de ações particulares da Prefeitura que
funcionariam como argumentos para demonstrar a eficácia do grupo de
Terezinha Ramos, que “já”, em apenas 25 dias de mandato, realizou alguns
feitos (por exemplo, “acabaram as multas [trânsito] abusivas do governo
anterior”, etc.). Dessa forma, apresentam-se-nos “elementos menores” e
fatos isolados que, avaliados de forma positiva, fundam uma imagem
consequentemente favorável “do todo”, ou seja, do governo de Terezinha
Ramos em sua inteireza.
Enfim, notamos que as melhorias e fatos positivos do mandato de
Terezinha se dão sempre em relação ao “governo anterior”. Mantém-se,
assim, veladamente, nesse editorial em específico, a dissociação recorrente já
criada pelos editoriais precedentes: Terezinha, de um lado, vinha sendo posta
como a representante de um “novo modelo de política” (fato positivo), e
Roque, de outro, como o representante do “velho modelo” (momento
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retrógado e superado). Essa dissociação entre Terezinha e Roque, outra
marca contumaz do logos argumentativo, foi construída mais incisivamente
nas edições de números anteriores do Jornal Ponto Final (728, 731, 732, 733 e
735). No editorial em questão (737), ela é reforçada de modo mais sucinto,
mostrando os feitos de Terezinha em 25 dias de mandato em contraposição ao
governo de Roque. Este, em 1 ano (dado como improdutivo), não teria feito o
seu “dever de casa”, como nos mostra o editorialista: “acho ainda muito cedo
para qualquer avaliação [de Teresinha], como também acho um ano muito
tempo para acertar a casa [Roque]”.
Interessante é perceber como, a partir da edição de número 741, essa
dissociação é desconstruída pelo editorial ao sabor dos acontecimentos
políticos (as denúncias contra Terezinha e sua eminente saída da Prefeitura). É
na edição 743, no entanto, que notamos a virada completa na argumentação
do editorial, quando este passa a associar, e mesmo a igualar, a imagem de
Terezinha à de Roque, evidenciando, assim, outro ponto de vista acerca dos
fatos políticos analisados pelos editoriais anteriores. Em outros termos, o
jornal passa a associar o que ele mesmo, pouquíssimas semanas atrás,
dissociara ardentemente: Terezinha Ramos e Roque Camelo. Vejamos.
3 Editorial 2: O vitupério de Terezinha
No editorial 743, tudo começa pelo apelo ao sentimento popular, o
argumento ad populum, utilizado visivelmente como estratégia com o título
“o povo não aguenta mais”. Buscando, em tom indignado, se alinhar ao
clamor popular por mudança, em função das reviravoltas políticas da cidade (o
“entra e sai” de prefeitos e denúncias efusivas de corrupção), o editorial muda
repentinamente a sua própria “opinião” acerca dos fatos que vinha
insistentemente reportando. Já no primeiro parágrafo, o texto procura
desfazer a dissociação que fora a base de sua própria argumentação até o
presente momento: a de que Terezinha Ramos (a “nova política”) era o
oposto de Roque (a “velha política”), o que reforçara a conhecida dicotomia
entre Ramistas e Cotistas3. Subitamente, a partir de agora, “Terezinha Ramos
3 Os adjetivos Ramistas e Cotistas servem para designar a oposição política existente em Mariana atualmente. Ramistas são os partidários de João Ramos (PTB), prefeito por três vezes, como já apontamos, e Cotistas são os partidários de Celso Cota (PSDB), prefeito durante os mandatos de 2001-2008. Vencedor nas urnas em 2012, Celso Cota é atualmente o prefeito de Mariana. Nesses editoriais, os termos Ramistas e Cotistas são assimilados, respectivamente, às figuras de Terezinha
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entra e começa a mesma novela”. É interessante notar como a própria língua
(o logos-palavra/frase/texto) vem instituir o logos-raciocínio, (re)associando,
assim, Terezinha a Roque: “a novela começou novamente”, “a mesma
novela” (1º parágrafo), “o trânsito continua o mesmo caos”, “a mesma
desculpa” (3º parágrafo), “e assim continuará mais um governo igualzinho ao
de Roque Camelo (4º parágrafo). Entre advérbios, adjetivos e diminutivos
enfáticos, dentre outros recursos, o discurso demonstra (ou parece
demonstrar) que Terezinha e Roque seriam, na verdade (ou numa “verdade
aparente”), dois lados da mesma moeda: o níquel doloroso/continuísta da
estagnação marianense, incluindo aí a precariedade das promessas e dos
serviços públicos em geral, além da não transparência e irregularidades
administrativas. O mesmo “real” é (re)fundamentado.
No terceiro parágrafo, o editorial refere-se novamente a um modelo já
proposto anteriormente, ou seja, o tempo ideal de 6 meses para que qualquer
administração possa ser apreciada: “sempre falei que dois meses ainda é
muito pouco para se fazer avaliação do governo. Mas temos que admitir que
não teve nada de impacto nestes dois meses [de Terezinha Ramos]”. É
possível notar, aqui, que o elemento adversativo “mas” é o grande divisor de
águas, no sentido de desconstruir outro raciocínio esboçado anteriormente
pelos editoriais (o tempo-modelo de 6 meses), que é “desempossado”, agora,
pelo critério necessário do “impacto”, posto como termômetro das boas
administrações. Nessa toada, o editorial segue definindo Terezinha Ramos de
forma inusitadamente negativa. Note-se o tom irônico e de deboche que o
texto toma no momento em que fala da policlínica, ainda no terceiro
parágrafo: “até a Policlínica, que seria o carro chefe do governo de Terezinha,
que teria atendimento 24h e até cafezinho, por enquanto nada”.
No quarto parágrafo, é interessante ressaltar, ainda, outra mudança de
comportamento do editorial em relação aos números anteriores. Após
salientar, referindo-se a Terezinha Ramos, que “assim continuará mais um
governo igualzinho ao de Roque Camelo”, o editorialista faz uso de alguns
questionamentos polifonicamente extraídos da vox populi, mas, desta vez,
sem problematizá-los ou insinuar veementemente o seu teor de precipitação
política, como foi feito no editorial 1, analisado anteriormente. É nesse Ramos (mulher de João Ramos e sua sucessora na política) e de Roque Camelo (sucessor político de Celso Cota em 2008). Roque foi também vice-prefeito de Celso durante o mandato de 2005-2008.
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sentido, e positivamente, que “as perguntas continuam as mesmas: qual é a
real situação da prefeitura? Quanto que a prefeitura arrecada por mês? Cadê a
auditoria? Cadê a prestações de contas? (...)”. Nesse sentido, além do editorial
desconstruir a dissociação elaborada nos números anteriores (entre Terezinha
e Roque), o tempo-modelo de 6 meses para se avaliar uma administração
(substituído pelo critério “impacto”), ele desconstrói, também (ou lega ao
esquecimento ou irrelevância), a pretensa incompatibilidade do
comportamento do povo, que, diante do governo de Roque, não protestara
durante um ano, mas, diante do governo de Terezinha, já tecia reclamações
em apenas 25 dias de mandato. Sendo assim, o jornal forja um alinhamento
aos anseios populares, legitimando toda e qualquer indignação da
comunidade marianense diante dos políticos locais, todos associados, pelo
menos neste momento, ao atraso do município.
Podemos cogitar que, no manejo cambiante do logos, entre construções
e desconstruções de demonstrações verdadeiras ou aparentes, o jornal busca
resguardar o seu ethos, mesmo que “desastradamente” e em tão pouco
tempo entre um editorial e outro. Assim, embora mude de opinião acerca dos
políticos locais, ao sabor das circunstâncias e eventos turbulentos, o que deixa
claro o caráter circunstancial de toda argumentação, o editorial não prescinde
do seu objetivo maior, que é convencer o seu leitor de que o jornalismo feito
por esse órgão de imprensa é “imparcial”, no sentido de não ter vergonha de
mudar, se necessário, a própria opinião diante da “verdade” dos fatos. Tal
estratégia visaria persuadir o leitor de que aquele é um jornal que vale a pena
ler e, consequentemente, comprar. Mas tudo isso são apenas algumas
hipóteses que tecemos aqui, uma vez que não conhecemos bem,
“antropologicamente”, os bastidores da política marianense e as efetivas
relações, naquele município, entre mídia e poder. Como já ressaltamos, nosso
objetivo foi apenas perceber como a conjuntura política marianense – uma
verdadeira “novela” –, foi referenciada, construída e reconstruída por aqueles
editoriais, no vai e vem de escândalos, de denúncias e de prefeitos, e como,
em função de tudo isso, raciocínios foram caprichosamente construídos e
reconstruídos. Fica evidenciada, assim, a importância do logos-raciocínio como
uma etapa, dentre outras, das análises discursivas.
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Considerações finais
Sobre as análises dos editoriais, e conforme os objetivos teóricos deste
artigo, buscamos demonstrar o funcionamento das provas retóricas (ethos,
pathos e logos) e, principalmente, dos “tipos de argumentos” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002) como partes de uma “ferramenta teórica”
possível para se apreender o logos-raciocínio, visto, aqui, como uma
razoabilidade construída pelo discurso. Em termos gerais, entendemos o logos
em uma dupla acepção semântica (discurso e raciocínio), sendo o discurso
toda manifestação verbal ou escrita capaz de influenciar, manifestada por um
sujeito numa determinada situação; os raciocínios, por sua vez, seriam as
projeções argumentativas de uma série de operações mentais (no caso
presente, as tipologias de Perelman & Olbrechts-Tyteca foram uma opção
para se apreendê-las). Enfim, seja como “palavra/texto/discurso”, seja como
“raciocínio”, o importante é salientar que um é condição para a existência do
outro e, além disso, ambos seriam vértices semânticos complementares para a
manifestação das outras provas retóricas (o ethos e o pathos). Nesse sentido,
as demonstrações verdadeiras ou aparentes, sejam elas quase-lógicas,
fundadoras ou fundadas na estrutura do real, se desdobram enunciativamente
em aspectos que nos levam a especular sobre certa imagem do orador e, até
mesmo, a imagem que este faz de seu auditório. Não só isso: depreende-se
também uma série de emoções visadas pelos editoriais em relação ao seu
público leitor, proposições de teses e comportamentos. Tudo integra um
mesmo processo.
REFERÊNCIAS
AMOSSY, Ruth. L'argumentation dans le discours. Paris: Armand Colin, 2010. AMOSSY, Ruth. Contribuição da Nova Retórica para a AD: o estatuto do logos nas ciências da Linguagem. In: EMEDIATO, W.; LARA, G. M. P. (Org.) Análise do discurso hoje, v. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 11-28. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
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BRETON, Philippe; GAUTHIER, Gilles. História das Teorias da Argumentação. Lisboa, Editorial Bizâncio, 2001. GALINARI, Melliandro Mendes. A polissemia do logos e a argumentação. Contribuições sofísticas para a Análise do Discurso. EID&A – Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 1, p. 93-103, nov. 2011. GUTHRIE, William Keith Chambers. A History of Greek Philosophy. Cambrigde: University Press, 1967. v. 1 MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2008. p. 69-92. PERELMAN, Chaïm. Argumentação. Enciclopédia Einaudi, vol. 11. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. p. 234-265 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. WACHOWICZ, Teresa Cristina. Análise linguística nos gêneros textuais. Curitiba: Ibpex, 2010.
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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ANEXOS4
Anexo I - Edição de número 737, de 09/04 à 15/04/2010
Editorial – Cobranças, cobranças e cobranças
Cadê a auditoria, cadê a prestação de contas, cadê a Policlínica nova, cade a
Prefeitura nova, cadê o novo Giásio Poliesportivo, cadê os 23 milhões que o
Roque deixou em caixa, cadê o governo de Terezinha? Por que o nepotismo
continua, por que tem muito parente no novo Governo, por que ninguém fala
nada, por que ainda não houve mudanças, por que fulano de tal continua no
governo, por que Terezinha está numa redoma, por que Terezinha está blindada,
por que não deixam Terezinha administrar? Todos querem resposta em apenas
25 dias de mandato, embora no governo de Roque Camello tenham tido
paciência durante um ano. Acho ainda muito cedo para qualquer avaliação, como
também acho um ano muito tempo para acertar a casa. É normal que em
qualquer governo sejam necessários uns seis meses para que tudo possa se
definir. Como também é provável que haja erros e acertos no início de um
mandato.
Muita coisa pode mudar. Isso tudo é normal. Mas duas coisas são certas:
primeiro o povo; o povo tem de ter paciência neste início de mandato, até
porque o próprio grupo de Terezinha, acredito eu, está em fase de adaptação, e
ela mesma já deixou bem claro que só fica em seu governo quem fizer o bem
para os marianenses. Realmente a população já está vendo algumas melhorias,
como por exemplo: acabaram as multas (trânsito) abusivas do governo anterior;
o tratamento dos funcionários para com o povo está sendo constantemente
elogiado; algumas ruas sempre esquecidas estão sendo asfaltadas; o problema
do abastecimento de água, que antes gerava reclamações diárias, hoje quase não
existe; o controle do trânsito em festas comemorativas foi efetivo; o tapete na
rua direita na Semana Santa, que também foi bastante elogiado.
Até a proibição definitiva de inovações de terras hoje está sendo bem
aceita pela população. Outra coisa é certa: para um bom governo, além do
compromisso de cada secretaria, diretores e funcionários, é muito importante a
4 Optamos pela fidelidade à grafia original dos editoriais, mesmo quando não se enquadra ao português padrão.
GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.
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participação popular. Um bom governo só vai andar bem a partir do momento
em que trabalhar junto com o povo, com a vontade do povo. Não adianta fazer
prédios faraônicos se o que a população quer é bom atendimento, saúde,
transporte, educação, turismo entre outros. Hoje o povo quer é uma Prefeitura
bem administrada, sem politicagem.
Estive na Câmara semana passada e estive analisando o aumento que a
prefeita está dando para os funcionários. Acho até louvável a preocupação do
presidente da Câmara, Raimundo Horta, quanto aos recursos para isso. A
iniciativa foi ótima, isso sem dúvidas, e quem agradece é o comércio local, que
começa a ver o dinheiro da cidade circular dentro de nosso território. Parabéns à
prefeitura e aos vereadores que aprovaram a iniciativa, embora alguns maldosos
deixaram claro que os edis votariam contra qualquer projeto do novo governo.
Foi bem transparente a postura dos vereadores na semana passada, quando
aprovaram praticamente todos os projetos da Prefeitura, que são de interesse
dos marianenses. Agora é só esperar para ver, com certeza o grande termômetro
do governo de Terezinha será o povo de Mariana.
Anexo II - Edição número 743 de 21/05 à 27/05/2010
Editorial – O povo não aguenta mais
A novela começou novamente. No ano passado tivemos um governo
turbulento do senhor Roque Camelo que nada fez por Mariana. Recurso sobre
recurso, se manteve pouco mais de um ano no governo e nada fez por Mariana.
Nem as obras do Celso Cota foram terminadas. Terezinha Ramos entra e começa
a mesma novela. Não se fala em outra coisa, “se fica ou se sai”. A justiça, assim,
fica totalmente perdida e sem credibilidade perante a população, “porque é um
tirando o poder (autoridade) do outro”.
Segundo informações, o judiciário tem mais de 1.000 processos parados,
mas pelo que vimos os políticos tem prioridade máxima, pois a cada ½ hora uma
liminar invalida outra. Há duas semanas que venho tentando fazer uma
entrevista com o juiz de nossa comarca, ou até mesmo para conversar sobre a
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real situação desta novela, mas infelizmente, o mesmo só tem tempo para
disputar os poderes da liminar. Nem retorno tivemos.
Enquanto isso, a cidade continua estagnada. Você não tem nenhuma
informação, ninguém sabe de nada, não pode fazer nada. Não se fala em nenhum
projeto social para a cidade, o lixo continua um lixo, o trânsito continua o mesmo
caos. Esta semana tivemos a denúncia que a Policlínica está infestada de
carrapatos. E sempre a mesma desculpa, “a oposição não deixa a gente
trabalhar”.
Eu acredito que qualquer governo, para colocar a casa em ordem,
precisaria em média, de 06 meses. Sempre falei que dois meses ainda é muito
pouco para se fazer qualquer avaliação do governo. Mas temos que admitir que
não teve nada de impacto nestes dois meses de governo. Até a Policlínica que
seria o carro-chefe da campanha de Terezinha, que teria atendimento 24h e até
cafezinho, por enquanto nada. E para piorar, fizemos algumas perguntas ao
governo sobre a administração, mas até agora não obtivemos resposta. É o que
falamos no editorial de semana passada: a culpa é do Rômulo Passos. Nós é que
somos incompreensíveis, nós estamos contra o governo, nós é que mudamos de
partido. E assim continuara mais um governo igualzinho ao de Roque Camelo. E
as perguntas continuam as mesmas: Qual é a real situação da prefeitura? Quanto
que a prefeitura arrecada por mês? Cadê a auditoria? Cadê a prestações de
contas? Cadê as associações de Bairro? Cadê a Igreja? Cadê os candidatos futuros?
Cadê os partidos políticos? Cadê a associação comercial? Cadê o povo de Mariana?
Cadê os projetos falados em campanha?
Agora afeta o comércio de Mariana, não se vende mais nada. E o que é pior
é o medo de vender para funcionários públicos, fornecedores e Prefeitura por
medo de não receber, devido às mudanças de governo. Acho que o legislativo, o
Executivo e o Judiciário precisam, urgentemente, dar uma resposta definitiva
para todas essas situações, por que o povo não aguenta mais.
Quando estava fechando este editorial, terça-feira as 21h fomos informados
que o Raimundo assumiria a Câmara no dia seguinte. Como diz o Boris, ISTO É
UMA VERGONHA PARA MARIANA.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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PIETÀ, DE BELLINI, E PIETÀ WITH COURTNEY LOVE, DE
LACHAPELLE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA E COMPARATIVA
Renata Aiala de Melloi
Resumo: Propomos uma análise discursiva e comparativa de duas obras de arte: a pintura renascentista intitulada Pietà (1505), do veneziano Giovanni Bellini (1430-1516), e a fotografia surrealista intitulada Pietà with Courtney Love (2007), do norte-americano David LaChapelle (1963-). Algumas das razões e objetivos que justificam essas escolhas são o que há em comum e de diferente entre as duas obras, as relações de intericonicidade e intergenericidade, dentre outros elementos técnicos. As obras serão comparadas levando-se em conta seus contextos, tempos, espaços, sujeitos e sentidos específicos. Valendo-nos do instrumental teórico da Análise do Discurso, utilizamos os estudos sobre a imagem de Aumont (2008) e sobre a simbologia das cores de Guimarães (2004), da grade de análise de imagens de Mendes (2012), além de parte do instrumental teórico oferecido pela Semiolinguística de Charaudeau (2008), dos estudos de Plantin (2010), Charaudeau (2010), dentre outros, sobre as emoções no discurso e outros conceitos afins, tais como ethos, pathos e imaginários sociodiscursivos. O presente estudo nos leva a inferir o quanto a Análise do Discurso pode ser frutífera na análise de textos pictóricos. Com essa reflexão, não pretendemos esgotar a análise das duas imagens. Na busca por um equilíbrio analítico-discursivo, um equacionamento entre o universo situacional e o discursivo, a vida e a obra dos dois artistas, o interno e o externo dessas obras, o subjetivo e o objetivo que elas propõem, a alteridade e a individualidade em interação, acreditamos ter integrado pensamentos, crenças e opiniões, em uma constelação de sentidos que nos permite uma conclusão temporária, inacabada.
Palavras-chave: Pietà. Pietà with Courtney Love. Análise do Discurso. Imagem.
i Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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Abstract: We propose a discursive analysis and comparison of two works of art: a Renaissance painting Pietà (1505), from the Venetian artist Giovanni Bellini (1430-1516) and surrealist photograph Pietà with Courtney Love (2007), from the American David LaChapelle (1963 -). Some of the reasons and objectives that justify these choices are the differences and similarities between the two works, like the intericonicity and intergenericity, among other technical elements used in both. The works will be compared considering their contexts like time and place, subjects involved etc. The theoretical discourse analysis tools we used are the studies about image of Aumont (2008), the symbolism of colors of Guimarães (2004), the images grid analysis of Mendes (2012), and the Semiolinguistic of Charaudeau (2008). Studies by Plantin (2010), Charaudeau (2010), among others, on emotions and other related concepts such as ethos, pathos and socio-discursive imaginary. With this paper, we do not intend to exhaust the analysis of the two images. In search for an analytical discourse balance, an equation between situational and discursive universe, life and work of the two artists, the internal and external of these works, the subjective and the objective they propose, we believe we have integrated thoughts, beliefs and opinions in a constellation of meanings that allows a temporary, unfinished conclusion.
Keywords: Pietà. Pietà with Courtney Love. Discourse Analysis. Image.
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Introdução
Em um primeiro momento, analisamos a pintura de Bellini, para, em
seguida, abordar a fotografia de LaChapelle. Em cada uma dessas peças,
trataremos de sua dimensão situacional: os sujeitos do discurso/texto1, o
gênero, o estatuto e os efeitos de real, de ficção e de gênero, além de alguns
elementos icônicos que as compõem. Na sequência, estabeleceremos algumas
relações entre as duas obras.
Ainda que não caiba discutir o que é “arte”, visto que fugiríamos de
nossos objetivos, vale registrar que ela é uma atividade humana ligada a
manifestações de ordem estética. Isso porque a arte, incluindo-se aí, a pintura
e a fotografia, são consideradas discursos, textos, signos e, como tal,
produzem sentidos. A pintura, a fotografia, enfim, a imagem2 é, aqui, vista
como um produto que significa, que cria mundos possíveis, registra ideias,
pensamentos, fatos e desperta sensações, sentimentos, emoções. Nesse
sentido:
Qualquer que seja ela, a imagem procede de necessidades profundas da humanidade: se representar, representar sua interioridade, representar os mundos visíveis e invisíveis, mostrar suas representações, criar assim um universo que redobra, desdobra, existe paralelamente ao universo original, para o dominar, o compreender, apropriar-se dele, exorcizá-lo, homenageá-lo, sentir prazer, para afirmar neste universo sua existência específica. (JOLY et al, 2008, p. 193):
Desse modo, entendemos que a imagem comunica, produz e veicula
sentidos, é capaz de oferecer um olhar das representações sociais do mundo,
das pessoas, suas crenças e sentimentos, dos acontecimentos, sejam eles
reais ou fictícios.
1 Não cabendo discutir aqui os conceitos de texto e discurso e suas (de)limitações, algumas vezes tomamos um pelo outro. Para uma melhor visão dessa questão, sugerimos a leitura de Charaudeau (1983, 2001, 2008) e Maingueneau (2008), por exemplo.
2 O conceito de imagem é bastante complexo, e a bibliografia sobre a questão é vasta. Para entender mais e melhor sobre o assunto, sugerimos a leitura de Aumont (1993) e Panofsky (1979).
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1 Pietà, de Giovanni Bellini
Imagem 1- Pietà, de Giovanni Bellini
Segundo Charaudeau3, tanto no processo de produção quanto no de
recepção de um texto, é importante levar em conta os universos situacionais e
linguístico-discursivos nos quais esse texto e seus sentidos são
produzidos/interpretados. O sujeito comunicante, aquele que se vale de
estratégias discursivas apropriadas devido ao que se deve, ao que se pretende
e se espera dizer, é Giovanni Bellini, cidadão italiano, veneziano. Ao produzir
sua arte, Bellini aciona uma instância enunciadora, um desdobramento desse
sujeito comunicante: responsável também por materializar, linguisticamente,
suas estratégias.
Bellini pinta seus quadros para que sua arte seja admirada e interpretada
por alguém. Desse modo, ele imagina seus destinatários, sujeitos idealizados.
Todos aqueles que já tiveram contato com a obra de Bellini são tidos como
sujeitos interpretantes, dentre os quais nós que, ao produzirmos esse artigo,
nos debruçamos sobre a obra. Aqueles que se debruçam sobre o texto
realizam a recepção e a interpretação em razão de suas obrigações e
intenções decorrentes dessa situação de comunicação específica. Nesse caso,
3 A maioria das informações contidas nesse artigo a respeito da Teoria Semiolinguística parafraseia o que Charaudeau expõe no conjunto de sua obra.
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nos tornamos interlocutores, destinatários (ideais e/ou empíricos) nesse
processo interacional específico proposto, criado por Bellini.
Esse tipo de contrato comunicacional estabelecido pela pintura
geralmente não permite o contato direto entre os parceiros, não há um
diálogo direto entre eles no sentido físico. O contato se dá através do texto,
que intermedia o contato entre os parceiros. Desse modo, o contrato
comunicacional, quando aplicado à pintura, não pode ser assimilado ao
contrato comunicacional ordinário. Cabe registrar que, para cada pintura
produzida e para cada interpretação feita, haverá uma situação de
comunicação única. Assim, muda-se os sujeitos envolvidos e/ou o texto, muda-
se o tempo, o espaço, os sentidos, muda-se o quadro comunicacional.
Essa forma específica de Bellini fazer arte e a interpretação de sua obra
nos leva a pensar que, tanto na produção quanto na recepção de uma pintura,
é preciso considerar o gênero textual/discursivo/pictórico4 no qual ela se
inscreve. Isso porque todo texto, pictórico ou não, verbal ou não, é uma
unidade sempre pertencente a um gênero do discurso, algo que possui valor
de enunciado como um todo. Os gêneros nos quais os textos/discursos se
inscrevem são entidades dinâmicas, ligadas a domínios discursivos, ao
funcionamento da sociedade e sua capacidade de categorizá-los, seja por
critérios estruturais, formais, seja por critérios situacionais, observando-se os
dispositivos comunicativos sócio-historicamente definidos (MARCUSCHI, 2002;
2008; MAINGUENEAU, 2008).
Poderia se supor que uma pintura não causa dificuldade de
reconhecimento de gênero. Isto porque uma pintura é, grosso modo, uma
técnica que utiliza pigmentos em forma líquida para colorir uma superfície,
atribuindo tons e texturas, sendo que esta superfície pode ser tela, papel...
Assim sendo, a cor é o elemento essencial da pintura. Temos, aqui, uma
definição bastante simplista do gênero pintura. Sabemos, no entanto, que ele
é bastante rico, variado e complexo.
Para abordarmos a questão do gênero pintura, devemos considerar, na
sua totalidade, a radical diversidade das produções. Daí que o próprio
entendimento do conceito de gênero para essa arte é bastante complexo,
4 Por também não caber aqui discutir os conceitos de gênero textual, gênero discursivo e gênero pictórico, algumas vezes, tomamos um pelo outro, mesmo conscientes de suas (de)limitações e dos riscos que essa atitude acarreta. Para entender mais e melhor sobre o assunto, sugerimos a leitura de Marcuschi (2002; 2008) e Machado & Mello (2004).
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problemático, visto que nenhuma pintura pode ser situada fora desse gênero.
Ao tratarmos do gênero pintura, deparamos com questões de terminologia,
organização formal, convenções, fatores intuitivos, intencionalidades, dentre
outras questões.
Percebemos que Pietà, de Bellini, oferece indicações de qual escola
artística a obra e o autor pertencem: tipo de pintura, estilo do pintor, traços,
cores, temáticas, material, etc. Até mesmo o universo situacional no qual a
obra foi produzida nos ajuda a ancorá-la em uma corrente artística, em um
gênero como, por exemplo, o local (Veneza), a data de produção da peça
(1505), o material utilizado (óleo em tela) e sua dimensão (65cm x 90 cm). No
caso de Bellini, temos o gênero pintura ou pintura renascentista, ou, ainda
pintura renascentista veneziana.
Bellini é tido como um artista de vanguarda, por ter conduzido e
promovido a arte veneziana a uma nova fase, rompendo, assim, com uma
tradição florentina vigente. Com Bellini, surge uma pintura essencialmente
“pinturesca”, de um lirismo mais suave, enfatizando mais as cores e as
nuanças de luz, uma arte menos preocupada com a forma escultórica e com o
delineamento bem marcado (BECKETT, 1997, p. 106). Segundo dados
recolhidos em textos e sites especializados5, vimos que Bellini recorre à técnica
da perspectiva e que sua pintura coloca o homem no centro da natureza,
trabalhando, de forma extraordinária, a cor e a luminosidade. O pintor foi
gradualmente fazendo desaparecer as linhas de contorno, que deram lugar a
transições de luz e sombra, estabelecendo uma perfeita harmonia entre
figura, ambiente, luz e o próprio ar.6
Baseado nos estudos de Charaudeau (1983), Mendes (2008) afirma que
no interior de cada gênero é possível que haja um entrelaçamento de efeitos
de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero. A autora define efeitos de real
como sendo um jogo estratégico entre os circuitos interno e externo do ato
de linguagem, podendo ser assinalados...
[...] por objetos, personagens e eventos que são apresentados como se eles existissem por si próprios, tendo valor referencial (cópia da realidade), ou como se eles fossem transparentes face a um mundo verdadeiro, ordenado,
5 Cf. http://imagesrevues.revues.org/1899, http://www.aparences.net/ecoles/la-peinture-venitienne/venise-autour-de-giovanni-bellini/, http://sar2.epfl.ch/espace_et_lumiere/Peinture.pdf e Erlanger (1953).
6 Cf. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/durer/bellini.htm.
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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organizado e objetivado por um certo consenso que é evidenciado” (MENDES, 2008, p. 206).
Pietà mostra-se repleta de efeitos de real. O ilusório, o figurativismo é
próprio da pintura renascentista, ou seja, a representação do mundo, das
pessoas, dos objetos e dos cenários são apresentados como se fossem a
realidade propriamente dita. Na imagem 1, temos a simulação de um mundo
típico do discurso ficcional que leva o espectador a estabelecer um contato
direto com o mundo real. No plano de fundo da tela, tem-se Veneza, com seus
edifícios; no primeiro plano, tem-se a Virgem Maria com Jesus morto em seu
colo. É interessante observar que o cenário e as figuras de Jesus e Maria, com
suas roupas, posições e expressões podem ser interpretadas tanto como
efeitos de real quanto de ficção. Isso porque para alguns a história de Cristo é
algo que aconteceu no mundo real, e para outros essa história existe
enquanto literatura, ficção. Desse modo, são os saberes de crença dos sujeitos
interpretantes que definirão por um ou por outro dos efeitos (Charaudeau,
2008). Se o espectador for cristão, muito provavelmente ele lerá e
categorizará a obra de Bellini sob os efeitos de real. Caso contrário, se o
espectador for ateu, por exemplo, possivelmente ele perceberá Pietà sob os
efeitos de ficção.
Tratando da questão cromática, temos Guimarães (2004, p. ii), que
defende que a universalidade das cores possui uma grande força comunicativa
e cultural, assim como um grande poder de apelo, além de ter “raízes
profundas e complexas, sempre associadas às práticas culturais, muito além
dos processos comunicativos meramente pragmáticos.” Ainda segundo
Guimarães (2004), a construção dos sentidos é uma construção social,
interativa e temporal, enfim, contextual.
Na imagem 1, o foco de luz é mais perceptível no rosto e no manto de
Maria, assim como no corpo de Jesus. O feixe de luz se encontra na diagonal,
como se saísse dos raios do sol. Vale ressaltar que o rosto de Jesus não entra
nesse foco de luz, apenas seu corpo. A cor azul contrasta com as demais cores
pasteis. Sobressaem duas tonalidades de azul: a do céu, ao fundo, de um azul
celeste claro, e a da roupa de Maria, num tom mais forte, anil. Pastoureau
(2007, p. 26-31) trata da simbologia da cor azul, afirmando que:
En s’habillant de bleu dans les images, la reine du ciel contribue grandement à la promotion de cette couleur dans la société. Les rois eux-mêmes commencent à s’habiller de bleu (ce qu’ils n’ont jamais fait auparavant) et sont imités par les
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seigneurs puis par l’ensemble de la société. A la fin du Moyen Âge, le bleu est devenu une couleur de premier plan, une couleur royale et princière, une couleur qui se pose pleinement comme rivale du rouge. […] couleur de la foi […] couleur de la Vierge Marie (depuis le XIIIe siècle) […] Humilité du bleu, qui n’agresse pas. Couleur de la paix. [grifos nossos]
Quanto aos elementos relativos aos planos, ângulos e pontos de vista da
imagem, destacamos a leitura “piramidal” proposta por Aumont (2008), uma
vez que, ao observarmos uma imagem, a percorremos, de maneira quase
sistemática, com os olhos de um ponto a outro. Ao olhar a imagem, seguimos
os pontos mais iluminados do primeiro plano: a cabeça de Maria e os corpos
de Maria e Cristo. Segundo Aumont (2008, p. 151-152),
[...] foi a partir do Renascimento que essa analogia tornou-se mais frequente, com a metáfora da pirâmide visual, decorrente da noção de raio luminoso. [...] Esse cone estende-se pelos lados e de fato é relativamente informe. A noção de pirâmide visual corresponde, então, à extração, pelo pensamento, de uma parte do angulo sólido formado por esse cone – parte que tem por base um objeto ou região relativamente restrita, em direção ao centro do campo visual. A pirâmide visual é portanto, a cada instante, o ângulo sólido imaginário que tem o olho por cume e o objeto olhado por base.
Para além dos signos linguísticos, as emoções7 são percebidas e se
mostram presentes nos imaginários sociodiscursivos, nos saberes partilhados
e no universo de crenças dos sujeitos. Assim, Bellini escolheu universos de
crença específicos e os tematizou de determinada maneira, procedeu a uma
encenação particular, tudo em função do modo como ele imaginava seu
interlocutor, seu público e em função do efeito que esperava produzir nele. As
emoções evocadas na imagem estão, evidentemente, presentes nos
imaginários sociodiscursivos, sobretudo a compaixão. Percebemos, ainda, que
os imaginários sociodiscursivos não são rígidos, possuem mobilidade e não
apresentam a característica de querer estabelecer verdades. A obra de Bellini
buscou retratar esses imaginários presentes nos discursos que circulavam em
seu grupo social e serviam para demonstrar sua visão de mundo, da religião,
da crença, da vida de Cristo.
Na imagem 1, destaca-se a presença dos imaginários sociodiscursivos
relacionados ao universo religioso cristão e aos saberes de crença que
envolvem tal universo, como por exemplo, a questão da pureza de Maria, a
7 Há diversas correntes que estudam as emoções. Nesse artigo, seguimos a mesma posição da AD, segundo a qual deve-se abordar discursivamente as questões relativas às emoções, visto que essas devem ser objeto de estudo linguageiro e devem ser estudadas em uma perspectiva enunciativa (CHARAUDEAU, 2010).
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crucificação de Jesus, a dor e o sofrimento de mãe e filho. Esse registro acaba
por compor o ethos de Jesus e Maria e até mesmo o pathos: Maria, que
representa uma imagem materna de devoção e misericórdia, apresenta-se
patemizada, sentindo dor, tristeza, compaixão pelo filho morto. Essas
emoções são endossadas por sua corporalidade e gestos (olhos fechados e o
modo como inclina a cabeça para baixo). Jesus, em seu estado, após ter
sofrido, sido crucificado e morto pelas mãos dos homens, patemizou tanto
Maria quanto nós, leitores de Bellini. Elas correspondem muito mais às
interpretações que fazemos dos acontecimentos, que têm como balizas
nossas histórias de vida, nossos conhecimentos a respeito da vida de Cristo,
nossas crenças, valores morais, posicionamentos diante das normas sociais
que nos regem etc., do que às reações puramente fisiológicas e mesmo
psicológicas diante desses eventos (LE BRETON, 2009).
2 Pietà with Courtney Love, de David LaChapelle
Imagem 2 - Pietà with Courtney Love, de David Lachapelle
A imagem 2 configura uma situação de comunicação concreta e um
quadro pictórico e comunicacional composto por sujeitos empíricos,
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socialmente reconhecidos: David LaChapelle, o fotógrafo8, e nós,
leitores/espectadores dessa fotografia. Sabemos que esse sujeito
comunicante nasceu em Connecticut, EUA, em 1956. Ele mostrou-se
aficionado pela fotografia desde os seis anos de idade, quando tirou suas
primeiras fotos, valendo-se de sua mãe, Helga, como modelo. Quando jovem,
estudou na North Carolina School of the Arts, na Arts Student League e também
na School of Visual Arts.9
LaChapelle tornou-se mundialmente célebre como fotógrafo ao produzir
peças coloridas, bizarras, irreverentes e provocativas para marcas famosas,
tais como L’Oréal, Diesel e Ford. O fotógrafo foi o responsável por centenas de
capas de revistas famosas como Vogue, Vanity Fair, Details, Interview e Rolling
Stone. Ele conheceu a fama também por fotografar pessoas famosas e
produzir capas para álbuns de artistas. LaChapelle chegou a ser descrito pelo
New York Times como o “Fellini da fotografia”. A Revista American Photo
inseriu o nome do fotógrafo entre os 10 mais importantes da fotografia
mundial. Em 1996, ele recebeu o prêmio de fotógrafo do ano, durante o VH-1
Fashion Awards. Atualmente, LaChapelle também cria e dirige clipes musicais
para cantores famosos. Cabe ainda ressaltar que a imagem 2 é capa de Heaven
to Hell (2006), um dos livros de LaChapelle que compõe uma trilogia. Os
outros dois livros são LaChapelle Land (1996) e Hotel Lachapelle (1999), além de
várias outras coletâneas.10
Percebemos que, ao produzir suas fotografias, LaChapelle, sujeito
comunicante, se desdobra em sujeito enunciador e assume a responsabilidade
por materializar, linguisticamente, suas estratégias. Ao produzir cada foto, ele
tem em mente alguns sujeitos destinatários que terão acesso a ela, depois de
veiculada sob as mais diversas formas e meios. Ser sujeito interpretante não é,
desse modo, tarefa fácil, para quem já seleciona, cria, constrói relações,
analisa, compreende, além, é claro, de dar configuração ao texto através de
sua experiência, de seu imaginário, de sua leitura de mundo. Se somos livres
para interpretar, por exemplo, a imagem 2, essa liberdade é cerceada por
pressões advindas tanto do próprio texto como do universo exterior a ele:
8 Embora afirmemos que o sujeito comunicante, nesse caso, é David LaChapelle, cabe registrar que essa instância é, na verdade, compósita. Ao vermos o making of dessa fotografia (http://www.youtube.com/watch?v=I9slSWbyFvg), vimos que são dezenas de pessoas envolvidas com o projeto assinado por LaChapelle.
9 Cf. http://magnno.wordpress.com/tag/biografia-david-lachapelle/
10 Cf. http://www.davidlachapelle.com/press/barb_metro.shtml
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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delimitações contextuais, situacionais, (meta)linguísticas, semânticas,
(meta)discursivas, semióticas, genéricas para ficarmos somente com algumas.
Dentre todas essas restrições, escolhemos a questão da genericidade para
falarmos um pouco mais sobre a imagem 2.
O entendimento do que é gênero permanece, até hoje, algo complicado,
visto que ele recai em terminologias tipológicas de classificação textual. Eles
padronizam a comunicação entre as pessoas, moldam, estruturam tanto a
produção quanto a recepção dos textos e condicionam os sentidos. No caso
do gênero fotográfico, há, ainda, o problema da extrema heterogeneidade de
textos, de categorias, de subgêneros que o compõem, o que acaba por
dificultar ainda mais suas delimitações. Citando Bazerman, Marcuschi (2005, p.
18) afirma que:
[...] apesar do nosso interesse em identificar os gêneros e classificá-los, parece impossível estabelecer taxonomias e classificações duradouras, a menos que nos entreguemos a um formalismo reducionista. Pois, as nossas identificações de formas genéricas sempre terão curta duração [...]
Ainda assim, podemos supor que uma fotografia não causa muita
dificuldade de reconhecimento de seu gênero, visto que ela é algo,
aparentemente, simples, conhecida de praticamente todas as pessoas.
Fotografar é, então, relativamente fácil, o difícil é qualificá-la, sobretudo em
sua genericidade. Não sendo especialistas em fotografia, nos perguntamos se
ela é uma técnica, um hobby, uma prática, uma arte... Segundo Barthes (1980,
p. 23-24),
[...] uma foto pode ser objecto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, experimentar e olhar. O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós que consultamos nos jornais, nos livros, álbuns e arquivos, colecções de fotografias. E aquele ou aquilo que é fotografado é o alvo, o referente, uma espécie de pequeno simulacro, de eidôlon emitido pelo objecto, a que poderia muito bem chamar-se o Spectrum da Fotografia, porque esta palavra conserva, através da raiz, uma relação com o “espectáculo” e acrescenta-lhe essa coisa um pouco terrível que existe em toda a fotografia: o regresso do morto. (grifos do autor).
Evidentemente, a fotografia, enquanto texto, tem vários usos e funções.
A princípio, de maneira simples, a fotografia pode ser definida como um
processo de fabricação de imagens sobre uma superfície sensível.
A história da fotografia se (con)funde, se mistura com a história da
máquina fotográfica e com as técnicas de confecção de fotos. No século XIX,
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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inventou-se o processo de colódio úmido, uma espécie de negativo da
fotografia. No século XX, vieram as câmeras objetivas, de alta qualidade,
reflex, APS, de lente, digitais, e também as fotografias coloridas, o Photoshop,
dentre outras técnicas.11
Desse modo, o gênero fotografia se (con)funde também com as técnicas
utilizadas, com os tipos, objetivos e funções: documental, de ação, midiática,
retrato, foto jornalismo, científica, comercial, aérea, macro, micro, de moda,
cinematográfica, preto e branco, colorida, publicitária, artística, tudo isso
formando uma espécie de categorizações ou de subgêneros do gênero
fotografia. Cabe ressaltar que a grande maioria dessas categorizações toma a
fotografia como representação objetiva, cópia fiel do real, um “fenômeno de
redundância” (BARTHES, 1980). Para alguns, a fotografia teria como função
eternizar os fatos como eles são (ou foram) e presentificá-los a cada leitura.
Há também aqueles que pensam (ROUCH, 2003) que a fotografia foi, é e
sempre será uma simples representação do real, uma ficção. Segundo o autor,
“a fotografia nunca foi a representação da realidade. Ela pode esboçar,
matizar, interpretar ou vicejar a realidade, mas, sempre será apenas uma foto;
fabrica uma história, mas não a vida” (ROUCH, 2003, p. 55). Outros, além de
não acreditarem na visão pretensiosamente realista da fotografia, muitas
vezes, a denunciam, a subvertem.
Pietà with Courtney Love é tida como objeto artístico, portadora de um
toque surreal, irreal, fantástico, ilusório. Uma foto saturada que mistura
fantasias, sonhos, exageros e non-sens com composições provocadoras,
inusitadas, além de carregada com cores fortes. Ela é tida como pertencente
ao gênero fotografia artística também porque nela percebemos toda uma
montagem cenográfica, ou seja, uma montagem cênica que demonstra um
desejo, a pretensão de ser arte pictórica. Entretanto, poderíamos, ao mesmo
tempo, dizer que se trata do gênero fotografia publicitária, visto que ela é
capa de um livro de LaChapelle. Ela pode ser lida também como gênero
fotografia religiosa cristã, visto que remete, como parte de seu próprio título
indica, a Pietà, ao sofrimento da Virgem Maria ao ter Jesus, seu filho morto, no
colo. Ela pode, ainda, pertencer ao gênero fotografia documental, visto que
possui pessoas e elementos que remetem ao drama vivido por uma família de
artistas (with Courtney Love).12
11 Cf. http://achfoto.com.sapo.pt/
12 Cf. http://davidlachapelle.com/
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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A imagem 2 é composta de tantos tipos de acessórios, de adereços,
dados, detalhes, informações, e, por conseguinte, provoca várias
possibilidades de sentidos, que ousamos mesmo afirmar que ela constitui-se
uma fotografia “saturada”. Acreditamos que todos esses elementos foram
colocados lá não por acaso, constituindo, assim, elementos fulcrais para a
narrativa da imagem. E ao falarmos em saturação, percebemos que em Pietà
with Courtney Love, os elementos plásticos referentes à gama de cores,
luminosidades e de valores (cf. AUMONT, 2008) são ricos na saturação,
marcando um intenso contraste. A luminosidade lançada nas personagens
advém tanto da luz natural que entra pela janela quanto das lâmpadas e velas
presentes no ambiente. Além delas, há a nítida impressão de haver luzes de
holofotes próprios para o uso profissional dos fotógrafos, o que marcaria,
inclusive, um efeito de ficção e, ao mesmo tempo, de gênero. Como efeito de
real, destacamos as marcas de picadas de agulhas no braço e os sangramentos
nas mãos e nos pés da personagem masculina, detalhes que foram
confeccionados para dar a impressão de ela morreu devido as drogas.
A iluminação e a luminosidade nessa foto são contrapostas às cores
quentes, sobretudo o vermelho e o azul, presentes em vários objetos que
compõem o cenário. Através de uma série de artifícios, o fotógrafo vale-se das
cores e das luminosidades para, ao mesmo tempo, amalgamar o mundo do
imaginário, do ficcional aos universos do real, do religioso. Há vários
elementos na imagem 2 que levam o leitor/espectador ao universo da fantasia,
da ilusão, do sonho, através dos efeitos de ficção presentes na fotografia.
Concomitantemente, na mesma imagem, seu produtor se vale de efeitos de
gênero, colocando em cena uma grande gama de elementos que fazem parte
do universo religioso cristão como a própria temática (Pietà), a mulher e o
homem como Virgem Maria e Jesus, o peixe e a Bíblia no chão, a luz “divina,
espiritual” iluminando o cenário, tudo isso ancorado no imaginário
sociodiscursivo, sobretudo dos cristãos.
Na imagem 2, a expressão “heaven to hell” [do céu ao inferno] impressa,
letra por letra, em cubos, remete ao título do livro de LaChapelle e também à
capa desse livro. Curiosamente, essa expressão surge de um jogo lúdico de
quebra-cabeça (puzzle), montado pela criança; jogo que tem, a princípio, o
objetivo de desenvolver nela a vida social, estimulando a imaginação, as
emoções, a capacidade de raciocínio e a autoestima. Essa expressão nos
remete, ainda e sobretudo, a duas importantes dicotomias: vida versus morte,
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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sagrado versus profano. Voltando a evidenciar as cores vermelha e azul, que
predominam na imagem 2, retratam bem estas dicotomias, uma vez que elas
remetem a representação do céu e do inferno presente no discurso religioso
cristão.
Desse modo, nossos conhecimentos prévios, saberes partilhados e
enciclopédicos nos propiciam conhecer um pouco mais sobre a imagem 2 e
nos ajudam a produzir alguns outros sentidos possíveis. Compõem a peça,
dentre outros objetos, instrumentos musicais, garrafas de bebidas alcoólicas,
tatuagens, agulhas, drogas injetáveis que nos rementem aos imaginários
sociodiscursivos relacionados ao mundo do rock e dos roqueiros. Sabemos,
por exemplo, que as personagens/pessoas que “posam” para a fotografia são,
na vida real, pessoas conhecidas. A mulher loira é Courtney Love, cantora e
viúva de Kurt Cobain (1967-1994), vocalista e guitarrista, líder do grupo
Nirvana, que morreu de overdose de cocaína e heroína. O homem também
loiro, morto e amparado no colo da mulher, é, na verdade, o companheiro de
LaChapelle na época e representa, na foto, o papel de Cobain. Por fim, a
criança representaria a filha do casal, Frances Bean Cobain.
3 Análise comparativa das imagens 1 e 2
Através de uma análise comparativa, buscamos traçar alguns traços em
comum e algumas marcas evidentes de diferenças entre as imagens, sem,
contudo, pretendermos esgotar as possibilidades de interpretação das duas
obras. O primeiro traço comum é justamente que elas são tidas como obras de
arte. A definição de “arte” vai depender do contrato comunicacional entre
aquele que produz o material e aquele que o recebe. É preciso um endosso
social, ou seja, o objeto (e o gênero) arte deve ter reconhecimento da
sociedade. Baseado nos estudos de Maingueneau (1993, 2006), podemos
afirmar que, seja pintura, fotografia, cinema, literatura, música, dança, entre
outros, a arte não está isolada das demais produções sociais e deve obedecer
a três critérios: i) pertencer a um campo discursivo no qual os enunciados são
produzidos no quadro de instituições que restringem fortemente a
enunciação; ii) pertencer a um aparelho, uma escola, um movimento, um
gênero socialmente reconhecido; e iii) fazer parte de um arquivo, de uma
memória que contenha um dispositivo de enunciação (produção/recepção
indissociavelmente), de circulação e de conservação dos enunciados que
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circunscreve um conjunto de texto. Nesse caso, as imagens podem e devem
ser tidas como tal, visto que elas, cada uma em sua especificidade, obedecem
aos três critérios.
A imagem 1 pertence ao gênero pintura; e a imagem 2, ao gênero
fotografia. Ambos os gêneros têm sofrido interferências um do outro desde o
surgimento do mais recente deles, a fotografia, que acabou por desobrigar a
pintura de seu compromisso de retratar fielmente o real. Além disso, a
fotografia passou a influenciar a pintura com elementos que constituem sua
especificidade tais como documento, objetivo, fragmento da realidade,
registro instantâneo, retenção do tempo em imagem e memória do mundo. A
pintura, por sua vez, tem influenciado a fotografia com características como,
por exemplo, textura, falta de nitidez, tons e contrastes específicos, cor pura
absoluta, deformação e manipulação de formas (SIMÃO, 2005).
O que vemos é que ambas colaboram entre si e uma evolui com a outra.
Na imagem 1, percebemos que uma das pretensões do artista é justamente a
busca por registrar uma cena da maneira mais real possível, própria do gênero
pintura renascentista veneziana. Na imagem 2, também percebemos a mesma
intenção, ainda que com técnicas diferentes. As duas imagens mantêm entre
si um diálogo, ou seja, ambas tratam do mesmo tema, “Pietà”, retratam a
tristeza e a dor da Virgem Maria com seu filho, Jesus, no colo.
Esse diálogo entre as imagens recebe o nome de intericonicidade.
Intericonicidade é, numa definição simples, a relação estabelecida entre
imagens. Segundo Courtine (2011), essas imagens podem ser de tipos variados
como sonhos, imagens vistas, imagens internas (memória discursiva) e
externas, aquelas existentes na sociedade e que povoam nosso imaginário.
Dito de outro modo, quando nos deparamos com uma imagem e nos
lembramos de outra, estamos acessando nossa memória discursiva,
estabelecendo intericonicidade. Baseando-se nos estudos de Courtine,
Gregolin também acredita que o conceito de memória é fundamental para
explicar a existência cultural das materialidades discursivas. A autora afirma
que:
[...] toda imagem se inscreve em uma cultura visual e essa cultura visual supõe, para o individuo, a existência de uma memória visual, de uma memória das imagens. Do mesmo modo, uma imagem pode ser inserida dentro de uma série, uma genealogia, como o enunciado em uma rede de formulação [...] (GREGOLIN, 2008, p. 31).
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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Além da intericonicidade, as imagens mantem um diálogo com outro
gênero e com outro discurso, o literário, visto que a história da Virgem Maria e
Jesus pertence, originalmente, à Bíblia,13 fonte inspiradora das duas imagens.
Temos, então, uma relação de intergenericidade e intertextualidade:
literatura, pintura, fotografia, Bíblia, religião... Não podemos nos esquecer de
que as duas imagens dialogam, ainda, com outras pinturas, com outras
fotografias e com milhares de esculturas.
Com relação aos quadros comunicacionais nos quais as imagens 1 e 2 se
inscrevem, os sujeitos comunicantes e os sujeitos enunciadores são distintos.
Na imagem 1, Bellini trabalhou sozinho (até onde sabemos). Já na imagem 2,
há uma equipe de apoio na confecção, ainda que seja somente LaChapelle a
assinar o trabalho. Ambos idealizaram seus destinatários inscritos em
sociedades distintas, em tempos diferentes. Entretanto, ambas as imagens
chegaram até nós, sujeitos interpretantes.
Quanto às emoções evocadas/suscitadas nas duas imagens, percebemos
que a piedade/compaixão é a que mais se sobressai. Ela é, ao mesmo tempo, a
emoção que justamente dá título às obras, que é vivida pela Virgem Maria,
retratada nas duas peças e também a temática que os dois autores, artistas
propuseram registrar em suas imagens, ou seja, o pathos sentido tanto pela
personagem Maria, no universo “ficcional”, como pelos autores, no universo
da produção das peças, quando buscaram construir, com fins estratégicos, os
efeitos possíveis. Tem-se, ainda, os espectadores, incluindo nós, que também
vivenciamos, no universo da interpretação, o mesmo pathos. Isso porque,
conforme afirma Charaudeau (2010, p. 26), “as emoções são de ordem
intencional, ligadas a saberes de crença e se inscrevem em uma problemática
da representação psicossocial.” A piedade é, desse modo, mais do que uma
sensação, é uma emoção que surge com a interpretação das imagens e do
fato retratado. Na falta de expressões verbais, visto que se trata de imagens
pictóricas, os elementos desencadeadores de emoção se encontram,
evidentemente, na própria imagem, nas cores, nas posições, gestos e temas,
enfim, em cada detalhe que compõe as peças e colabora para a construção do
pathos de piedade nas imagens 1 e 2, dentre os quais ressaltamos: a tristeza e
a dor (de Maria, de Jesus e a nossa), o desespero, a morte, o sofrimento, os
ferimentos, a ternura e o amor que marcam a relação das personagens. O
pathos de piedade/compaixão se mostra, enfim, profundamente ligado aos
13 Ainda que possa causar alguma polêmica, decidimos por ver a Bíblia como um texto literário.
MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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imaginários sociodiscursivos tanto no universo da produção quanto no da
recepção das imagens, além dos saberes de crença, enciclopédicos e dos
estereótipos presentes nas ideologias que sustentam as relações sociais, tanto
as dos dois artistas quanto as nossas.
Considerações finais
Os caminhos percorridos para que esse artigo fosse produzido nos
levam a inferir o quanto a Análise do Discurso pode ser frutífera na análise de
textos pictóricos. Isso reafirma uma tendência recentemente observada por
pesquisadores da Análise do Discurso de que “[...] pela primeira vez na
história, a totalidade dos enunciados de uma sociedade, apreendida na
multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de estudo”
(MAINGUENEAU apud CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 46). Daí
nosso interesse em refletir sobre as duas obras de arte, cujo alcance social
merece ser considerado. Com essa reflexão, não pretendemos esgotar a
análise das duas imagens. Por questões óbvias, muitas coisas não foram
trabalhadas. Ao abordar esse universo de gêneros distintos, mas, ao mesmo
tempo, próximos, tivemos o prazer de nos debruçarmos sobre duas peças
artísticas tão semelhantes e, ao mesmo tempo, tão diferentes.
Tentamos estabelecer relações entre as duas imagens e zelamos para
que elas se mantivessem independentes entre si e, ao mesmo tempo, que se
relacionassem umas com as outras. Na busca por um equilíbrio analítico-
discursivo, um equacionamento entre o universo situacional e o discursivo, a
vida e a obra dos dois artistas, o interno e o externo dessas obras, o subjetivo
e o objetivo que elas propõem, a alteridade e a individualidade em interação,
acreditamos ter integrado pensamentos, crenças e opiniões em uma
constelação de sentidos que nos permite uma conclusão temporária,
inacabada.
REFERÊNCIAS
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MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.
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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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ARGUMENTAÇÃO E CENA DA ENUNCIAÇÃO EM TELEVANGELHOS
Sarah Menoya Ferrazi
Resumo: Este artigo tem como objetivo investigar, de acordo com os pressupostos teóricos da Análise de Discurso francesa, os aspectos discursivos e argumentativos de televangelhos. O objeto de estudo é constituído por culto protestante e missa católica veiculados na televisão. Articulam-se conceitos de Dominique Maingueneau, principalmente o de cena da enunciação, e as contribuições de Chaim Perelman & Olbrechts-Tyteca relativas à argumentação. Maingueneau e os teóricos da argumentação contribuem de formas diferentes, estão em paradigmas epistemológicos distintos, porém importantes para pensar o objeto proposto, já que tratamos de um discurso que pelas distintas materialidades significantes que o configura se constitui na fronteira entre o argumentativo e o discursivo. Os resultados da pesquisa esclarecem que cada modelo de análise tem um quadro cênico determinado de acordo com suas condições de produção e que os argumentos utilizados pelos oradores são produtos desta cenografia que o discurso permitiu construir, assim como o ethos do orador reflete os próprios posicionamentos implicados no discurso.
Palavras-chave: Análise de Discurso. Teoria da Argumentação. Cenas de Enunciação. Televangelhos.
Abstract: Based on the theoretical presuppositions of French Discourse Analysis, this paper aims to examining discursive and argumentative aspects in Religious TV Emissions. The object of study consists of a Protestant and a Catholic TV Emissions. In this study, we consider concepts from Dominique Maingueneau, especially the idea of scene of enunciation, and the contributions of Chaim Perelman & Olbrechts-Tyteca about argumentation. Both theorists contribute in different ways and have different epistemological paradigms, but it is important to consider them when we think of the object proposed because we deal with a discourse that constitutes a border between discursive and argumentative ways of enunciation. The research results explain that each model has a scenic frame of analysis determined according to the conditions of production and the arguments used by speakers are products this scenography that the discourse allowed to build, as well as the ethos of the speaker reflects their own positions implicated in discourse.
Keywords: Discourse Analysis. Argumentation Theory. Scenes Enunciation. Religious TV Emissions.
i Mestranda pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil. E-mail: [email protected].
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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Introdução
Este trabalho tem como objetivo reconstruir os aspectos referentes à
Cena de Enunciação (conceito inscrito nas concepções da AD) e ao fazer
argumentativo (pelo uso de alguns pressupostos teóricos da Teoria da
Argumentação - doravante TA) pela observação de dois modelos de discurso
que compõem o corpus de análise: um modelo do discurso evangélico e um
modelo do discurso católico apresentados em programas televisivos.
Justifico minha escolha pelo televangelho, em primeiro lugar, pelo
desafio de assumir um estudo de um discurso constituinte veiculado na mídia
televisiva. Em segundo lugar, pela escassez de trabalhos científicos em Análise
do Discurso (doravante AD) neste sentido, o que marca certa originalidade e
relevância teórica. Além disso, um estudo como este contribui para o
reavivamento das discussões acerca do papel da linguagem na formação de
grupos sociais determinados pelas relações comunicativas que estabelecem.
Trata-se ainda de uma forma de ampliar uma problemática desenvolvida
por D. Maingueneau, que em dois de seus trabalhos cita obliquamente o
televangelho. Há um artigo em que o teórico (MAINGUENEAU, 2008c)
desenvolve algumas questões observando os dispositivos de comunicação de
um sermão proferido no século XVII e vai dizer ao final do artigo que tudo
“isso se aplica tanto a instituições bastante coercitivas (...) quanto às
performances dos ‘televangélicos’ dos dias de hoje”. Há ainda outro artigo de
Maingueneau (2009), que trata mais diretamente das mudanças na forma de
comunicação devido às urgências da vida moderna.
Além desses trabalhos, há outros conhecidos, como o trabalho de
Edvânia Gomes da Silva (2006) Os (des)encontros da fé: análise interdiscursiva
de dois movimentos da Igreja Católica. A autora faz uma análise da relação
interdiscursiva que constitui e atravessa dois movimentos da Igreja Católica.
Apesar deste trabalho se ater ao estudo do campo religioso ante os
pressupostos da AD, não diz respeito a televangelhos.
Eni Pulcinelli Orlandi (1983) também apresenta as características próprias
do discurso religioso em um capítulo de seu livro A linguagem e seu
funcionamento: as formas do discurso. A autora destaca a propriedade de
reversibilidade dos lugares discursivos ocupados no discurso religioso e as
suas peculiaridades.
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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Há alguns trabalhos que articulam a AD com a “nova retórica”. É o caso
do artigo de Marco Túlio de Sousa (2010) A magia televisiva no discurso
religioso: uma análise de argumentação e discurso do programa Show da Fé. O
autor analisa um televangelho e esclarece a importância do uso das duas
teorias.
Destaco ainda o trabalho de Moisés Olímpio Ferreira, doutor pelo
Programa de Pós Graduação de Filologia e Língua Portuguesa da USP, que
utiliza a “Nova Retórica” para pensar o discurso religioso. Ele intitulou seu
trabalho de Estudo religioso sob a perspectiva da Nova Retórica.
Feitas essas ressalvas, fica ainda certo de que pouco se investe no
estudo do discurso religioso televisivo.
Em relação à leitura deste trabalho, o leitor pode avançar na direção que
quiser. Na primeira parte são apresentados os métodos para realização da
pesquisa e o material de análise. Na segunda, mostra-se a justificativa para
trabalhar com duas diferentes teorias. Na terceira, apresenta-se o dispositivo
teórico com base na AD francesa. Na quarta, apresenta-se o dispositivo
teórico com base na Teoria da Argumentação. Na quinta, descreve-se o
pentecostalismo da Assembléia de Deus. Na sexta, verificam-se alguns
resultados da observação da Cenografia e Argumentação no discurso do
televangelho evangélico de Silas Malafaia. Na sétima parte, descreve-se o
espaço discursivo católico. Na oitava e última parte, verificam-se alguns
resultados da observação da Cenografia e Argumentação no discurso do
televangelho católico do programa Missa do Santuário da Vida. E, por fim,
algumas considerações finais.
1 Materiais e Métodos
Como dito, este trabalho busca observar dois modelos de discurso que
compõem o corpus de análise: um modelo do discurso evangélico e um
modelo do discurso católico apresentados em programas televisivos.
As transcrições das falas, constantes nas análises do corpus, foram feitas
conforme o modelo de transcrição proposto pelo projeto NURC (Norma
Linguística Urbana Culta no Brasil).
Para o modelo do discurso evangélico, observar-se-á o programa Vitória
em Cristo, que é apresentado pelo pastor Silas Malafaia. O pastor é
apresentador e é conhecido por debater temas de cunho moral-religioso na
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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televisão. O programa se situa nos âmbitos doutrinais da Assembléia de Deus,
é transmitido pela Rede TV semanalmente. O vídeo eleito como material de
análise foi colhido no site do Youtube1 e compõe um programa que foi muito
reprisado em Vitória em Cristo.
Para o modelo do discurso católico, observar-se-á o programa Missa do
Santuário da Vida2, que é exibido pela Rede Vida, sempre ao vivo, diariamente.
O santuário é um espaço que recebe caravanas de todo o país. O programa
aqui analisado foi exibido em 13 de agosto de 2009, e a missa foi celebrada
pelo padre Manoel Cirino da cidade de Parapuã.
Faço minhas as palavras de Maingueneau (2008b, p.63), que, ao
apresentar o seu recorte, disse que “o que importará nessa apresentação não
será tanto aprofundar o conhecimento desses dois discursos, mas chegar às
implicações teóricas e metodológicas a eles relacionadas”.
2 Análise do Discurso e Teoria da Argumentação
O objeto de estudo ora analisado se caracteriza pelo seu sincretismo e é
teoricamente multifacetado, pois permite fazer análises com variadas visadas
teóricas: comunicação, argumentação, discurso, etc. Seria muito pretensioso
querer abraçar todas as questões. É por isso que esta pesquisa se limita aos
pressupostos da AD francesa e conta com contribuições teóricas da TA. A
escolha pelas teorias se deve ao fato de ambas tomarem o discurso por objeto
e se complementarem em determinados pontos que são pertinentes à
finalidade da pesquisa. Segundo Maingueneau (2011, p.70):
[...] apreender a linguagem como discurso é multiplicar as articulações com a diversidade de campos, disciplinas, correntes, escolas... das ciências humanas, para relacioná-las aos sujeitos inscritos nas situações.
Essa “articulação”, que justifica o carrefour teórico proposto aqui, e essa
“inscrição dos sujeitos” podem ser compreendidas, por exemplo, por meio da
seguinte observação: o conceito de Maingueneau sobre cenografia, inscrito na
corrente francesa de AD, se refere ao fato de que aquilo que é enunciado
integra uma cena que é válida por conta desta enunciação. Os enunciados que
integram a cena enunciativa e dão suporte material à enunciação são
carregados de estratagemas argumentativos construídos pela pretensão da
1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_j1LEaa9FSU>. Acesso em: 6 ago. 2013.
2 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4OwnergPEvw>. Acesso em: 6 ago. 2013.
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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instituição pela qual o locutor é porta voz. Portanto, o televangelho é uma
comunicação que permite a construção de uma cenografia aliada a recursos
argumentativos.
Apesar das dificuldades, nos cabe saber articular os conceitos de forma a
adequar as teorias às necessidades científicas do estudo. Essas dificuldades se
dão, por exemplo, quando a TA afirma que sujeito escolhe o que vai de
encontro com as suas necessidades e, a partir disso, sua argumentação
caminha no sentido de mostrar que as teses combatidas levam a uma
incompatibilidade com a verdade que a comunidade adere. Uma tese seria
negação da outra. Isso faria parte de um sistema formalizado. Para
Maingueneau, esse sistema não é fechado totalmente nas suas concepções,
pois há um atravessamento de outros discursos. Além disso, a TA utiliza da
noção de “acordo” para explicar que todos os membros concordam
mutuamente. Entre todas as divergências epistemológicas entre a AD e a TA,
acredito que esta seja a mais discrepante, pois esse “acordo” entre os pontos
de vista se daria numa espécie de escolha consciente feita por orador e
auditório enquanto para a AD não se trata de escolha, mas de inscrição numa
determinada formação discursiva e, portanto, inconsciente.
Apesar das diferenças nas propostas teóricas, a TA pode contribuir de
forma positiva na investigação das estratégias argumentativas e no modo
organizacional dos interlocutores. É isso que este artigo tem de mostrar: esse
carrefour teórico pode ser útil para um bom estudo de discursos constituintes.
O diálogo estabelecido entre as duas teorias se evidencia, por exemplo, no
entendimento de que um argumento produz efeito satisfatório por conta não
apenas do orador, mas também da qualidade do auditório e do que se sabe
sobre ele. Em outras palavras, pode-se afirmar que nas duas teorias há a
concepção de um auditório persuadido no discurso, pois para a TA todo
discurso se dirige a um auditório, por isso, não está distante das ideias de
intersubjetividade da perspectiva enunciativa. Além disso, a chamada “nova
retórica” ocupa-se das estratégias discursivas usadas por um locutor na
procura de adesão de um auditório às teses propostas, o que também
aproxima a AD em seu intuito de descrever o discurso em situação.
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3 Da noção de cena da enunciação
Para melhor definir o recorte teórico e, ao mesmo, tempo apresentar a
ferramenta de análise, utilizo o conceito de Cena da Enunciação apresentado
por D. Maingueneau. Trata-se de um quadro enunciativo composto por três
cenas: a englobante, a genérica e a cenografia.
A cena englobante se refere aos tipos de discurso. Para o católico ou o
evangélico se ver constituído como tal, é necessária sua inscrição numa cena
englobante. Geralmente, o sujeito cristão não entende esta inscrição como
sendo determinada por fatores de cunho sócio-histórico, mas atribui seu
pertencimento ao poder do Espírito Santo. “Afinal de contas, o Deus que nós
servimos está no controle de todas as coisas”, como afirma o Pastor Silas.
A cena genérica relaciona-se ao gênero discursivo. Os interlocutores se
inscrevem num tempo e num espaço determinado, o que implica um suporte
material, um modo de circulação. Maingueneau (2009, p.38) afirma que o
sermão é um gênero oral monológico e que esses enunciados são
“geralmente apoiados em um texto escrito cuidadosamente com
antecedência. Seu objetivo é tanto melhorar o entendimento da doutrina e
encorajar os crentes a viverem mais de acordo com as exigências religiosas”3
Maingueneau (2009) fez um estudo comparativo entre dois sermões
católicos, um de 1702 e outro de 2008, e notou que, apesar de se tratar de um
mesmo gênero discursivo, houve uma mudança no sermão mais recente
devido a aceleração no ritmo de vida, reduzindo o tempo dos sermões. Hoje,
os programas televisivos podem ser gravados para adaptar ao melhor
momento para assisti-los. Esse é um fator sócio-histórico que modifica os
moldes discursivos, pois impõe caracteres próprios da mídia audiovisual, que
sugerem, entre ouras coisas, o imediatismo.
Maingueneau (2009, p.37) observa que “estamos lidando tipicamente
com uma situação tripartida: onde o pregador fala a dois públicos
simultaneamente: os fiéis presentes diante dele e os telespectadores
invisíveis”4, por isso a televisão é um meio de extensão do discurso. Nota-se
3 Tradução do original em francês: “le sermon entre dans la catégorie des énonciations monologales orales, appuyées en général sur un texte soigneusement écrit à l’avance. Sa visée est à la fois d’améliorer la compréhension de la doctrine et d’inciter les fidèles à mener une vie plus conforme aux exigences religieuses”. (MAINGUENEAU, 2009, p.38).
4 Tradução do original em francês: “On a donc typiquement affaire à une situation de trilogue: où le prédicateur s’adresse à deux publics simultanément : les fidèles présents devant lui et les téléspectateurs invisibles” (MAINGUENEAU, 2009, p.37).
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isso, por exemplo, na fala do pastor Silas “Vocês tão vendo? Vocês que estão
na televisão...” ou em “Você que tá em casa, você acredita? Se você acredita,
diga si:::m.” e em “Você que ta em casa, você que ta vendo a fita, você que ta
aqui não importa”. Verifica-se também este aspecto na fala do padre Manoel
“Que bom estarmos aqui (...), todos aqueles que nos acompanham em casa.
To::dos participam desse encontro com Deus. Seja bem vindo, meu irmão,
minha irmã que está em casa participando”.
Perelman & Tyteca (1996, p.29) afirmam que esta extensão do auditório
é significativa na produção dos argumentos, pois sabendo qual é o auditório
sabem-se quais são os argumentos adequados. O fato de ser televisivo age
sobre a maneira de elaborar os enunciados, pois diminui a intimidade do
orador com os ouvintes (já que o televangelho é aberto a qualquer
telespectador) e aumenta a preocupação em ser bem visto e aceito por todos
os ouvintes. Essa perspectiva da TA não anda na linha de raciocínio ligada ao
discurso, assim como entende a AD, mas a TA admite que a veiculação
televisiva muda os quadros discursivos e o sentido.
Aplicando o conceito de cena da enunciação proposta por Maingueneau,
pode-se perceber que a cenas englobante e genérica se constituem de modo
igual nos modelos. Porém elas implicam a utilização de um ethos. Por isso,
cabe ressaltar aqui que a cena englobante e a cena genérica devem ser
diretamente articuladas à cenografia.
A cenografia diz respeito ao fato de que aquilo que é enunciado integra
uma cena que é válida por conta desta enunciação. Segundo Maingueneau
(2008a, p.51) “o discurso implica um enunciador e um co-enunciador, um lugar
e um momento de enunciação que valida a própria instância que permite sua
existência”. O televangelho se vale de aparatos estratégicos para validar as
argumentações; porém, o ethos de que o locutor se utiliza não é relacionado a
estratégias, mas a algo constitutivo da cena de enunciação. A forma com que
o pastor e o padre enunciam é diferente porque, apesar de inseridos num
mesmo campo discursivo (que é o discurso religioso), eles pertencem a
espaços discursivos diferentes. Não basta simplesmente dizer que pertencem
a diferentes religiões, mas tem de se considerar que este espaço existe como
arena de conflito por conta de uma reivindicação do direito de ser cristão.
Interessa-nos a análise destas diferentes cenografias. É isso que tentaremos
mostrar nos parágrafos seguintes.
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4 Algumas contribuições da teoria da argumentação
Segundo Perelman & Tyteca (1996, p.62), “consentir na discussão é
aceitar colocar-se do ponto de vista do interlocutor.” Esse “consentir na
discussão” é explicado a partir da noção de “acordo” que resulta num
“sistema particular de crenças” (id.), ou seja, o orador escolhe as premissas
contando com a adesão dos ouvintes às proposições iniciais e levando em
conta o “engajamento prévio do auditório” (ibid, p. 68). Isso faz com que haja
um acordo sobre a formação dessa comunidade e, depois, sobre o fato de se
debater uma questão determinada. Isso facilita a convicção do orador de estar
certo de que não será colocado em dúvida.
Essa situação pode nos fazer pensar que se trata de uma argumentação
sem muito valor apreciativo, já que o argumento vem depois que o ouvinte já
aceitou os enunciados como verdade. Pelo contrário, o valor retórico das
proposições e do modo de enunciar é intensificado na medida em que há
acordo prévio; a argumentação é ainda mais valorosa no sentido em que se
intensifica uma crença.
Esse “engajamento prévio” é alicerce para a construção de uma cena
enunciativa que favorece a adesão levando a comunidade a considerar mais a
validade do que é dito e os valores que são intrínsecos ao discurso do que sua
veracidade. O acordo entre as instâncias enunciativas é tal que se faz inútil a
presença de outras marcas de adesão ao ponto de vista.
5 O espaço discursivo pentecostal, a cenografia e a argumentação no discurso do televangelho evangélico de Silas Malafaia
O nome pentecostal se refere ao dia de Pentecostes, que foi uma festa
judaica que comemora a descida do Espírito Santo diante da presença dos
apóstolos. O pentecostalismo hoje é um movimento que atravessa a noção de
religião, é uma renovação da igreja cristã pelo contato direto e pessoal com
Deus, sendo necessário passar pelo batismo no Espírito Santo.
O pentecostalismo se manifesta de diferentes formas teológicas e
organizacionais, pois apesar de as igrejas pentecostais terem um núcleo
doutrinário comum, são muitas as denominações e não existe nenhuma
organização central que dirige o movimento como nas igrejas evangélicas
tradicionais ou como a igreja católica.
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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Desde a sua constituição até hoje, a Assembléia de Deus, instituição que
pertence ao pentecostalismo clássico, tem na educação oferecida bases em
princípios bíblicos, principalmente na ordem de Deus para trazer o dízimo. A
organização simples da igreja é marca da informalidade que a atravessa
Conforme Read (1967), a maioria das igrejas tem um programa semanal
bem dividido, havendo uma preocupação em convidar os não-crentes para os
cultos e reuniões. Além disso, essa instituição leva em conta a natureza
emocional do brasileiro, já que é por ela que os pentecostais expressam seu
culto.
O programa Vitória em Cristo é apresentado pelo pastor Silas Malafaia e
é transmitido no Brasil, todos os sábados, de meio-dia às 13h, pela Rede TV.
Sua versão dublada para o inglês é exibida em muitos países.
O vídeo eleito como material de análise foi colhido no site do YouTube e
não há menção sobre a data da publicação do vídeo na internet. Há várias
postagens feitas por pessoas diferentes e em momentos diferentes. Esse
aspecto atemporal do vídeo não é um fenômeno isolado, pois algo parecido
acontece na televisão5. Nos televangelhos desse programa, que são filmagens
dos cultos presenciais, o pastor não diz ao telespectador (mesmo havendo um
momento direcionado ao telespectador) quando esse culto presencial
acontece.
O pastor Silas Malafaia utilizou-se de um tom fervoroso que sugere uma
ordem, a ordem de Deus, que segue por meio da voz do pastor, pois, como o
próprio tema da pregação admite, o controle está nas mãos de Deus, e não do
homem. Ao proferir “Vai fazer bobagem: Deus está mandando avisar alguém
aqui: (...), vai agir pela opinião DOS OUTROS e vai quebrar a cara”, é como se o
pastor incorporasse essa ordem pelo tom de que se utiliza.
Outro dado interessante para pensar na cenografia, que faz produzir
efeitos favoráveis à constituição do televangelho, é o fato de o pastor pedir
para a igreja “dar uma saudação pra todo o Brasil dizendo Vitória em Cristo
para a sua vida”. Este enunciado reproduz o nome do programa “Vitória em
Cristo”. Neste caso, há uma publicidade implícita da cena genérica no ato de
5 Cabe observar que a mídia digital se encontra em condições de produção da enunciação diferentes da mídia televisiva. Em outras palavras, nestes meios de circulação, a atemporalidade é considerada em diferentes níveis enunciativos. Atenho-me apenas às questões relacionadas à circulação dos enunciados na televisão, que é meu objeto de estudo.
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fala que determina o lugar midiático de transmissão do programa dentro do
processo que a fala implica.
O uso das anáforas para se referir a Deus é importante para pensar em
nome de quem se autoriza a falar em um sermão.
DEUS está no controle de tudo, mas ele permite o homem escrever a história, ele permite você e eu fazermos escolhas, ele permite você e eu tomarmos decisões, mas DEUS, a hora que ele quiser, do JEITO que ele quiser, ele pode interferir na vida de qualquer um de nós
A intensificação do pronome anafórico é reflexo da aceitação do
auditório, para quem os valores são ditados por Ele e por isso Ele é quem tem
de ser ouvido por meio da fala do pastor. O pastor constrói uma imagem de si
ao enunciar as ideias previamente aceitas, inserindo-se como “assembleiano”,
pertencente ao grupo e representante de Deus e do grupo.
Agora... “Pastor, eu queria, assim, que o senhor me desse algumas provas reais que o senhor está fazendo uma afirmativa, que DEUS está no controle de tudo. Se Deus está no controle de tudo, Ele tem que controlar algumas coisas pra me provar que Ele está no controle de tudo.” Então vamos fazer uma análise pra gente tirar uma prova dos nove, se o Deus que nós servimos está no controle de tudo. Primeiro: se DEUS está no controle de tudo, Deus tem que controlar o mundo espiritual, seja de Satanás ou seja do Seu reino. Porque se Deus não controlar o mundo espiritual, Deus não está no controle de tudo.
O orador constrói sua argumentação usando uma espécie de lógica
aristotélica para construir um saber que torna a sua fala válida. Estabelecem-
se as premissas (P) e suas conclusões (C). Como na fala supracitada:
P1- Deus está no controle de tudo.
P2- O mundo espiritual faz parte do que entendo por tudo.
C1 - Portanto, Deus controla o mundo espiritual.
P3- Deus está no controle de tudo.
P4- Deus não controla o mundo espiritual.
C2 - Portanto, P3 é falsa e Deus não está no controle de tudo.
P5 - O verdadeiro crente, assembleiano, aceita C1.
P6 - Aceito C1 e não aceito C2.
C3 -Portanto, sou verdadeiramente um assembleiano.
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Há reminiscências desta lógica no argumento que Perelman & Tyteca
denominam o argumento da divisão do todo em partes. Ele é igualmente lógico
na medida em que a relação das partes é fundamental para construção do
argumento. Observa-se isso em:
[...] por exemplo: existem várias empresas que são empresas mundiais, que tem um presidente desta empresa no Brasil, tem presidente na Argentina (...) não é? Ela tem uma presidên::cia mundial ou um conSElho de administração que comanda a empresa no mun::do todo, mas ca::da presidente da empresa no país ... ele tem autonomia. Ele tem autonomia pra colocar os planos da empresa ele controla aquela empresa só que aqui em cima tem um presidente mundial ou um conSElho de administração que pode qualquer hora intervir na direção desta empresa no Brasil, na direção desta empresa na Argentina -- eu podia falar da Coca-Cola, eu podia falar da Volkswagen, eu podia falar da Microsoft – (...) o presidente da Volkswagen no Brasil, o presidente da Volkswagen na Alemanha, na Argentina e tem um presidente mundial. O camarada ta aqui numa posição superior. E ELE a qualquer hora ele pode intervir em qualquer uma destas empresas, mas o camarada que está dirigindo aqui no Brasil ou na Argentina ou na França, ele tem autonomia pra gerenciar e pra gerir. Então QUEM está no controle não significa que ele está manipulando o tempo inteiro tudo, mas significa que ele tem PODER e autoridade pra intervir na hora que ele quiser. Assim é Deus.
Perelman & Tyteca (1996, p.265) afirmam que este argumento se
caracteriza pela estratégia pautada na enumeração exaustiva das partes
mostrando conhecimento das relações que as partes mantêm com o todo.
Além disso, a comparação feita tem um caráter próximo de uma estrutura
matemática, o que fornece força persuasiva de muita relevância.
Essa estrutura matemática, que constitui marca do discurso científico,
pode parecer um paradoxo ou um inconveniente, já que o discurso científico
não poderia a priori ser argumento numa comunicação religiosa, que tende a
crer mediante fé. Se não estivéssemos considerando a cena genérica deste
quadro, poderíamos cair neste equívoco, mas sabemos se tratar de um
argumento eficaz para atingir um “público-outro”, a possibilidade que a
televisão deixa para o alcance de novos ouvintes, os telespectadores que são
seduzidos pelas comprovações.
Há um culto a anjo que é uma coisa perigosíssima. Isso é doutrina de Satanás, é espírito maligno de engano, sabe. Anjo, anjo que desce, anjo que sobe (...) Isso aí é espírito de engano. Nós aqui não cultuamos anjo, porque em Hebreus capítulo um, lá no último versículo deste capítulo diz que os anjos estão ai pra trabalhar a nosso favor, daqueles que vão herdar a salvação.
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A comunidade discursiva está, neste momento da enunciação, se
constituindo como tal devido à afirmação explícita de que existe outro
posicionamento, aquele que cultua anjos. A palavra “engano” é uma marca
sensível de posicionamento, pois outorga que é certo e o que é errado
segundo as teses defendidas pelo grupo.
Outro fator pelo qual o discurso faz parecer tornar “evidente” os
enunciados é o uso da argumentação pelo sacrifício. Assim como o argumento
da divisão do todo em partes, este argumento faz parte daqueles em que
Perelman & Tyteca denominaram quase-lógicos. Ele tem a finalidade de propor
resultados satisfatórios mediante um sacrifício. Verifica-se isso na fala do
pastor em “Olha o que que diz o profeta Oséias no capítulo seis, versículo um.
Diz assim ‘Vinde, tornemos ao Senhor... Ele nos despedaçou e nos sarará. Ele
fez a ferida e as ligará’ ”. As feridas são ligadas e saradas para aqueles que
“tornam” ao Senhor, há o apontamento de benefícios para aqueles que se
posicionam de acordo com as normas, estabelecidas no thesaurus da
comunidade. Na fala “Você pode tá atravessando hoje as pi-ores e mais terrí-
veis lutas da sua vida, o mesmo Deus que está permitindo você atravessar
lutas, tribulações e adversidades é esse mesmo Deus que tem o poder de
mudar a tua sorte”, o ouvinte percebe que o sacrifício de passar pelas lutas,
pelo sofrimento é permissão de Deus. Essa permissão é motivo de consolo
para aqueles que se dispõem a sofrer, afinal o resultado é prometido. O ethos
do sofrimento pode ser percebido na entonação das palavras “piores” e
“terríveis”.
Se:: você escolher se arrepender dos seus pecados, se você hoje escolher aceitar Cristo como salvador da sua vida, se você hoje escolher obedecer a palavra de Deus, ta garantido o céu, ta garantida a vida eterna pra você. MAS SE VOCÊ ESCOLHER continuar vivendo no pecado, no erro, segundo custa a sua natureza, também não quero te enganar, ta garantido a condenação no inferno também. (...) E te prepara porque Ele tem uma vida linda e maravilhosa pra te dar.
Há grande ênfase no resultado. A impressão, que é causada pela maneira
de enunciar e pela cenografia intrínseca a este enunciado, é a de que a escolha
tem de ser feita na consciência de cada ouvinte, como se não fosse
determinada de antemão. A escolha pelo o céu ou pelo inferno compõe um
conjunto de dizeres da instituição que enuncia por meio do orador. Com base
na TA, podemos afirmar que o locutor tem esse conhecimento sobre o
assentimento prévio do auditório na escolha por Deus, porém, longe de ser
uma escolha consciente previamente determinada, as noções da AD, como as
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cenas enunciativas, mostram que esta postura é determinada pela inscrição
sócio-histórica do sujeito e é isto que pode garantir a eficiência do argumento.
O argumento pragmático busca relacionar os acontecimentos sociais,
pelos quais os sujeitos estão expostos aos argumentos que podem favorecer
a tese. O locutor se vale da dimensão intertextual na construção de premissas
baseadas em fatos que preexistem ao momento da enunciação.
Você está respirando? Alguém paga o oxigênio aqui? ...Não? Paga não, né irmão? Molezinha, né? Você paga a empresa de água pra levar água até você, mas a água é Deus que dá, o oxigênio que você respira, é Deus. Ele tá no controle de tudo, irmão.
A água e o oxigênio são partes de uma realidade estabelecida e servem
como premissas que compõem elementos eufóricos. Esses elementos e sua
importância se fazem valer mediante a permissão de Deus, por isso o fato de
respirar é uma consequência inquestionavelmente boa e favorável à tese de
que se vive porque Deus permite. Percebe-se a menção a um fato obtido de
uma realidade empírica e que não parece questionável e as conclusões
construídas na/pela enunciação.
As cenas de enunciação e os argumentos estão vinculados de modo
direto ao ethos do locutor. O locutor se utiliza de um ethos que podemos
chamar de ethos do fervor, conforme propõe o tom enfático que sugere a
própria imagem do Ser divino que o televangelho está querendo propagar.
6 O espaço discursivo católico, a cenografia e a argumentação no discurso do televangelho católico da missa do Santuário da Vida
O termo católico, em suas origens, significa universal. É uma igreja cristã
que tem como autoridade suprema o Papa. O objetivo é a conversão ao
ensinamento de Jesus Cristo e à interseção à Santa Virgem Maria. A igreja
católica existe como instituição há aproximadamente dois mil anos e não há
variedades significativas de denominações como na igreja evangélica. Isso se
dá, principalmente, pela existência de uma estrutura prévia das cerimônias
religiosas a qual todas as igrejas devem obedecer.
O padre é a figura que age em nome de Jesus. Segundo Cechinato (1979,
p.25), ele é sacerdote, presbítero e profeta, além de ser o Presidente da
Celebração. Para realizar a cerimônia, o padre tem de usar as vestes litúrgicas.
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Quanto ao altar, Cechinato (1979, p.26) afirma que se trata do símbolo
do sacrifício de Jesus e representa a mesa da Ceia do Senhor. No altar, deve-se
usar uma toalha branca comprida e limpa, além de outros ícones que fazem
parte da cerimônia: hóstia, vinho, cálice, âmbula, patena, água, pala, etc.
Quanto ao funcionamento do ritual da missa, segue-se a seguinte
ordem6: ritos iniciais, liturgia da palavra, liturgia eucarística, preparação das
oferendas, oração eucarística, rito da comunhão e ritos finais.
Não deixando de levar em conta todos os enunciados, analisaremos com
prioridade a homilia, que, segundo Cechinato (1979), se baseia numa
abordagem que relaciona as leituras feitas com a temática sobre a qual dizem
respeito estabelecendo sempre uma relação com o cotidiano dos ouvintes.
O programa Missa do Santuário da Vida é exibido pela Rede Vida,
sempre ao vivo, da cidade de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo,
de segunda a sexta-feira das 19h10 às 20h00 e aos domingos às 08h00. Não há
um padre apenas responsável pelas missas, a cada dia vem um celebrante
diferente.
O programa aqui analisado foi exibido em 13 de agosto de 2009. O
presidente da celebração foi o padre Manoel Cirino da cidade de Parapuã. A
cerimônia contou com o uso da Liturgia Paulus, ano B da quinta-feira da XIX
(décima nona) semana do tempo comum.
O tom utilizado pelo locutor é manso. O ethos da mansidão é importante
no propósito de fazer os ouvintes refletirem sobre as leituras e estabelecer a
introspecção. Diferente do televangelho evangélico, que afirma que o
controle e as ordens estão nas mãos de Deus, o televangelho católico coloca a
responsabilidade (do perdão, tema do sermão) como estando nas mãos do
cristão. A mansidão é própria de um processo de encorajamento para que o
cristão viva esse pertencimento.
O narrador que faz a abertura do programa também se utiliza deste
ethos ao dizer “Acompanhe diariamente a missa do Santuário da Vida pela
Rede Vida pelo livro mensal da Paulus Liturgia Diária (...)”. Essa utilização
sugere uma prática que pode resignificar a própria mansidão da Liturgia. Da
mesma forma, a pessoa responsável pelas leituras, Espéria Puzzi, também
locutora inserida no quadro cênico estabelecido por este televangelho,
reproduz o ethos da mansidão na sua fala ao dizer, entre outras coisas,
6 Sobre as particularidades de cada rito, verificar em Cechinato (1979).
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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“estamos reunidos no Santuário da Vida... para juntos celebrarmos a Santa
missa (...)”.
Não é porque no sermão católico a cerimônia se faz mediante
enunciados determinados em liturgia que não exista cenografia. Afinal a
cenografia não é um quadro estático, não está determinada de antemão pelo
gênero, mas pela enunciação. Tratamos de uma comunicação que exige o
comentário de textos “primeiros”, daí a existência da cenografia imposta
pelas instâncias enunciativas em que o discurso se dá.
Uma maneira de compreender o fenômeno discursivo é pensar que as
convicções acerca dos pontos de vista comuns entre os membros da
comunidade discursiva católica resultam nos elementos constantes em todos
rituais. Mas para constituição de uma comunidade discursiva não basta
simplesmente esses elementos existam, deve haver participação dos
membros da comunidade discursiva na realização da cerimônia religiosa. Isso
fica evidenciado na fala do padre no momento dos Ritos Iniciais:
Todos participam desse encontro com Deus. Seja bem vindo, meu irmão, minha irmã que está em casa participando. Você que talvez possa estar sofrendo alguma situação que a vida lhe trouxe e esse momento é o momento para fortalecer.
O quadro enunciativo, proposto neste trecho, estabelece as posições
físicas e enunciativas (o padre à frente, os fiéis numa posição inferior e os
telespectadores). Destes, que são “bem-vindos”, há aqueles que encontram
necessidade de se “fortalecer”: esse é um argumento que sugere um
consenso, um ideal comum, que estabelece a maneira de se constituir como
instituição religiosa. Seria mais ou menos como dizer sou católico, mas isso não
basta, devo, por isso mesmo (pelo fato de ser católico), me fortalecer. Apesar de
não podermos negar a existência deste ideal comum, a comunidade discursiva
analisada aqui não se estabelece por conta disso. Esse pertencimento e essas
posições são apenas resultado da inscrição sócio-histórica do sujeito nesta
formação discursiva.
A repetição da palavra “todos”, no trecho citado, é importante para
pensarmos na unidade dos membros da comunidade. Segundo Perelman &
Tyteca (1996), o orador imagina existir uma universalidade. Pode-se dizer
“todos” a fim de universalizar o que é dito (mesmo os ouvintes sendo uma
parcela da população) fazendo produzir um efeito de sentido de serem únicos
e verdadeiros. Esse pressuposto teórico é confirmado também na observação
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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de que o uso da primeira pessoa no plural é constante tanto nos atos
litúrgicos como na fala do padre. O enunciado “devemos” precede as ações
pelas quais revela a maneira de agir, que é fruto de um pertencimento. Dentre
os casos está a fala da leitora: “Jesus nos ensina no evangelho que não há
limites para o perdão que devemos estender aos outros”. O substantivo
“dever” também carrega essa responsabilidade, como na fala do padre: “Na
verdade é justo e necessário, nosso dever e salvação, darmos graça sempre
em todo lugar”. Segundo D. Maingueneau (2008a, p.72) “as ideias suscitam a
adesão do leitor por meio de uma maneira de dizer que é também uma
maneira de ser”.
A comunidade é delimitada também pelas marcas do discurso do Outro.
Em “Deus só age no coração que vive os seus sentimentos de perdão, de
amor, misericórdia e compaixão” fica dada a existência daquele que tem um
coração que não vive os seus sentimentos “amor, misericórdia e compaixão” e
que, por isso, não serve para compor o quadro dos membros. Isso fica
evidenciado pelo uso do termo “só”.
A celebração religiosa católica é determinada previamente pela liturgia,
o que limita os quadros enunciativos. Em outras palavras, o uso de um roteiro
para celebração da missa faz com que haja um tempo adequado a cada rito e
impõe limites a cada enunciado. Não foram observados, por exemplo,
argumentos pela divisão do todo em partes. O argumento pelo sacrifício
também não é um uso constante.
Podem-se levar em conta, na análise deste sermão, dois tipos de
argumentos que não foram citados na análise do modelo evangélico: o que
Perelman & Tyteca (1996) denominam de argumento pelo modelo e antimodelo
e o argumento pelo Ser Perfeito.
O argumento pelo modelo acontece sobre a figura de dois nomes
bíblicos: Pedro e Josué. Pedro serve como modelo de comportamento na
medida em que passa a ter consciência de que o perdão é ilimitado. Josué
serve como modelo de comportamento porque esteve disposto a levar a
Palavra de Deus e libertar o povo de Israel.
O que serve de exemplo para pensar o antimodelo é a caracterização
daqueles que não agem conforme pertencimento como em “pai que não
perdoa o filho, filho que não perdoa pai, esposo que não perdoa esposa”.
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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Na argumentação pelo Ser Perfeito, Deus é caracterizado pelo orador
como aquele “que libertou o povo”, aquele que “só age no coração que vive
os seus sentimentos de perdão”. Na oração também são retomados os
atributos divinos: “Senhor Pai Santo Deus eterno poderoso por Cristo, Senhor
nosso. (...) Ele é nosso salvador e redentor, verdadeiro homem”. A perfeição
de Deus faz com que Ele seja o principal modelo.
Os dados analisados caminharam no sentido de nos conduzir à maneira
metódica e introspectiva desta cerimônia. O ethos da mansidão, proposto pelo
tom tranquilo da voz dos oradores, sugere a própria imagem de um Deus que
o televangelho está propagando, um Deus manso.
Considerações Finais
Este artigo contempla uma possibilidade de análise teórica e se debruça
sobre um recorte estreito do campo religioso. Digo “estreito” porque dentro
deste campo há possibilidades infinitas de estudo. Busquei na religião cristã
duas de suas manifestações e nelas estabeleci outro recorte: o seu modo de
circulação, a mídia televisiva. Por conta disso, não posso querer concluir um
trabalho afirmando ter esgotado as possibilidades quando o que se apresenta
é uma entre muitas, um viés, um olhar. Mas posso dizer que essa proposta me
parece promissora tanto para minha própria formação quanto para incitar
outros leitores, pesquisadores e a quem for de interesse pensar outras
possibilidades de análise e de recorte. Não se trata apenas de pensar o campo
religioso como sendo vasto e fecundo para estudos da linguagem, mas, antes
disso, cabe pensar que o próprio “universo do discurso é radicalmente
diverso” (MAINGUENEAU, 2008a, p.41)
Verificou-se que cada modelo analisado tem um quadro cênico
determinado, em primeiro lugar, pelo discurso subjacente aos enunciados e,
em segundo lugar, pela escolha e articulação dos argumentos. Os discursos
analisados são produtos de uma mesma cena englobante (campo religioso) e
uma cena genérica (sermão televisionado), porém não são constituídos da
mesma materialidade discursiva, pois não se dão conforme a mesma
cenografia; são atos de fala diferentes. Ambos televangelhos são produtos de
enunciados formados por meio da pretensão de suas instituições e compõe
uma cenografia particular em cada enunciação.
FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.
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O carrefour teórico AD/TA se justificou pelo fato de que os televangelhos
se dão pela construção de uma cenografia aliada a recursos argumentativos
que puderam ser colocados em categorias conceituais. O uso destes recursos
argumentativos fez com que o sermão fosse eficaz no propósito de manter
seu espaço discursivo do jeito que teria de ser. Ao argumentar usando os mais
diversos tipos de argumentos, a comunidade está produzindo a sua existência,
a sua materialidade, espelhando o tema do sermão que tende a enaltecer os
atributos divinos conforme sugere a própria instituição.
Essa articulação teórica, em suma, nos fez concluir que o que caracteriza
este discurso dentro deste contexto cristão não é a argumentação de
“verdades”. O que prevalece como característico é a identidade de um grupo
cuja existência se dá pelo fato de se inscreverem numa concepção de mundo
historicamente determinada por fatores externos aos enunciados e
compartilharem às teses outorgadas institucionalmente.
Segundo Maingueneau (2008a), o efeito de se produzir evidências é
provocado pelo discurso. Se se admite que os argumentos façam parte dos
elementos que constituem a cenografia e que esta legitima o discurso, então
Perelman & Tyteca não “pecam” em dizer que as evidências também são
forjadas pela argumentação, pois as premissas não são verdadeiras ou falsas,
mas verossímeis ou não verossímeis, sustenta-se a decisão como sendo justa,
equitativa, razoável, oportuna. Porém, deve-se ter o cuidado de compreender
que o ouvinte não está convencido pelos argumentos, mas está convencido
porque aceita ocupar o lugar proposto pelo discurso.
REFERÊNCIAS
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______. Polifonia e cena da enunciação na pregação religiosa. In. LARA, G.M.P. et al. Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008c. ______. Le sermon: contraintes génériques et positionnement. Langage et Société, Paris, v.4, n.130, p.37-59, 2009. ______. Argumentação e Análise do Discurso: reflexões a partir da segunda Provincial. Trad. Eduardo Lopes Piris e Moisés Olímpio Ferreira. In: BARONAS, R.L.; MIOTELLO, V. (Org.). Análise do Discurso: Teorizações e Métodos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1983. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. READ, W.R. Fermento religioso nas massas do Brasil. Campinas: Livraria Cristã Unida, 1967. SILVA, E.G. Os (des)encontros da fé - Análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja Católica. Campinas, 2006. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. SOUSA, M.T. A magia televisiva no discurso religioso: uma análise de argumentação e discurso do programa Show da Fé. XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste: Interfaces Comunicacionais. Anais (Coord. Fábio Malini). Vitória, ES, Universidade Federal do Espírito Santo, 2010. Disponível em: <http://www.intercom.Org.br/papers/regionais/sudeste2010/resumos/R19-0682-1.pdf>. Acesso em: mar. 2013.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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PROFESSORES EM MOVIMENTO DISCURSIVO: ESPAÇOS PARA
INTERPRETAÇÃO E AUTORIAi
Soraya Maria Romano Pacíficoii
Resumo: Fundamentados na Análise do Discurso pecheutiana, pretendemos investigar como se dá a assunção da autoria pelo sujeito-professor do Ensino Fundamental, participante do CADEP (Centro de Aprendizagem da Docência dos Egressos de Pedagogia). Esse centro, cujo objetivo é sustentar a relação entre ensino, pesquisa e extensão para os egressos do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), configura-se como um espaço pedagógico de apoio aos professores, visando a contribuir para o desenvolvimento profissional do professor e a organização do ensino em sala de aula. A metodologia de pesquisa deste trabalho prevê que, a partir da análise do material didático da Coleção Ler e Escrever, usado nas escolas públicas de São Paulo, os sujeitos-professores escrevam seus pontos de vista, por meio de textos argumentativos, acerca do modo como o conhecimento científico circula na escola, ou seja, quais considerações eles têm sobre o discurso científico (DC) e sobre o discurso de divulgação científica (DDC). A análise dos dados considera os textos argumentativos produzidos pelos sujeitos-professores, a partir do paradigma indiciário proposto por Ginzburg. Buscamos interpretar, também, como esses sujeitos legitimam, ou não, o uso do DDC na escola, visto que a presença do DDC pode implicar o silêncio do DC no contexto escolar. Os resultados mostram que, após os encontros com o grupo, com as discussões sobre os textos estudados, os professores assumiram a autoria e passaram a questionar a presença do DDC no livro didático, em detrimento do DC.
Palavras-chave: Discurso. Autor. Docência. Material Didático.
i Pesquisa realizada com o apoio da FAPESP (processo 2010/15782-6).
ii Docente da Universidade de São Paulo (USP), Brasil. E-mail: [email protected].
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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Abstract: Based on the Discourse Analysis by Pêcheux, we intend to investigate how the authorship assumption can be manifested by the subject-teacher of elementary school, participant CADEP (Learning Center of Teaching for Education Graduates). This center, whose purpose is to sustain the relationship between teaching, research and extension for the graduates of the Faculty of Philosophy, Sciences and Language of Ribeirão Preto in University of São Paulo (USP), is an educational space for teacher support, aiming to contribute to professional development of the teacher and to the organization of teaching in the classroom. The methodology of this study predicts that, by the analysis of didactic material from Collection Ler e Escrever (Read and Write), used in public schools of São Paulo, the subject-teachers write their viewpoints, through argumentative texts, about how scientific knowledge circulates in school, that is, what considerations they have on the scientific discourse (SD) and discourse of scientific divulgation (DSD). Data analysis considers the argumentative texts produced by subject-teachers from the evidential paradigm proposed by Ginzburg. We also seek to interpret how these subjects legitimate or not the use of the DSD in school, since the presence of DSD may involve silence of SD in the school context. Results show that after the group meetings with the discussions about the studied texts, the teachers assumed the authorship and began to question the presence of DSD in the didactic material to the detriment of SD.
Keywords: Discourse. Authorship. Teaching. Didactic Material.
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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Introdução
Mas na realidade sua vida começava ao anoitecer, quando estávamos na cama, e ela
finalmente podia dedicar-se à leitura. (CANETTI, E. A língua absolvida)
Trazer para a reflexão a questão da autoria no contexto escolar,
especialmente, no que se refere ao professor reclama dialogar com muitos
sentidos que circula(ra)m sobre “ser professor”. É sabido, segundo a Análise
do Discurso pecheutiana (AD), que a construção dos sentidos é sócio-histórica
e que em cada momento são tecidos determinados sentidos, os quais podem
vir a ser outros, em outras circunstâncias discursivas. Seguindo esse raciocínio,
pode-se dizer que, se um dia o professor já foi considerado “dono do saber”,
cuja formação profissional terminava com o curso normal e, posteriormente,
com a graduação, na contemporaneidade, tais sentidos perderam a força,
deslizaram para formações discursivas que defendem a necessidade de
formação continuada e de espaços formativos nos quais o professor tenha a
oportunidade de dialogar, estudar e pesquisar, constituindo, assim, sua vida
profissional. Hoje, por exemplo, a pós-graduação passou a ser um horizonte
vislumbrado por muitos estudantes que concluem a graduação, o que em
outros tempos era o objetivo de poucos que pretendiam seguir a carreira
acadêmica.
Esse movimento de busca por espaços formativos também foi
observado nos egressos do curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP. Diante disso, interessa-me, aqui,
apresentar uma pesquisa que realizei com os participantes do CADEP (Centro
de Aprendizagem da Docência para Egressos da Pedagogia), que se constitui
como espaço discursivo para que os professores produzam conhecimento
e(m) suas práticas pedagógicas. Esse Centro, coordenado por mim e por outra
professora, Elaine Sampaio Araujo, configura-se como um espaço pedagógico
de apoio aos professores em início de carreira, visando a constituir uma
comunidade de aprendizagem docente, tendo como foco o desenvolvimento
profissional do professor e a organização do ensino em sala de aula. O CADEP
contempla duas áreas de estudo de grande interesse dos professores: Língua
Portuguesa e Matemática, sendo representadas, respectivamente, pela OPL
(Oficina Pedagógica de Língua Portuguesa) e pela OPM (Oficina Pedagógica
de Matemática).
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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O grupo que participa do CADEP é constituído por professores recém-
formados; professores com longa experiência em sala de aula; mestrandos,
mestres e doutorandos. O diálogo construído pelo grupo possibilita a troca de
saberes, de práticas e experiências, o que nos tem proporcionado grande
crescimento e, por que não dizer, o grupo está construindo uma identidade
com a posição sujeito-professor, lembrando que esta é uma das posições
possíveis para o sujeito ocupar. Essa questão será melhor apresentada
adiante.
Considerando a abrangência do tema, a saber, a formação e atuação do
professor, um recorte fez-se necessário para a escrita deste artigo. Sendo
assim, a meu ver, quando se discute a formação e atuação de professores, um
dos pontos centrais da discussão consiste em compreender como os docentes
se relacionam com a escolha dos materiais didáticos e como eles ocupam a
posição discursiva de autor e a de leitor, pois cabe aos professores, em grande
medida, a responsabilidade por ensinar aos alunos as atividades de leitura e
escrita; consequentemente, a formação de leitores e autores. Disso decorre
que, se o professor não ocupar o lugar de autor de seus textos, dificilmente
ele construirá condições discursivas para que seus alunos ocupem tal lugar, o
que gera um cenário de alunos copistas, e a cópia, como sabemos, não lhes
permite assumirem a responsabilidade pelo dizer (condição para a autoria), já
que os sentidos copiados têm autoria alheia.
Pesquisas mostram que escrever não é tarefa tão fácil para o professor.
Carvalho (2008) e Souza (2012) analisaram a escrita do sujeito-professor na
produção de textos narrativos e dissertativos, respectivamente, e apontaram
que os professores manifestaram resistência para escrever, pois muitos que
tinham aceitado participar de suas pesquisas desistiram, não entregaram os
textos ao pesquisador. Essa resistência para escrever e entregar os textos,
segundo as autoras (idem), funciona, discursivamente, como um indício da
não identificação dos sujeitos-professores com a escrita. Além disso, dentre
aqueles que entregaram os textos escritos, poucos assumiram o lugar de
autor. Com esses resultados, Carvalho (2008) leva-nos a questionar: como os
professores formarão alunos autores se eles próprios não ocupam tal posição
discursiva ao produzir seus textos?
Essas palavras iniciais situam o leitor no que se segue. Apresentarei,
conforme os conceitos teóricos da Análise do Discurso pecheutiana, uma
análise de textos escritos pelos professores que frequentam o CADEP,
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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especialmente os participantes da OPL. A escolha dos sujeitos justifica-se pelo
seguinte pressuposto: se os professores procuram o CADEP e a OPL é porque
têm o interesse pelas questões que perpassam o contexto escolar; logo, pela
leitura, escrita, autoria, dentre outras tantas. Soma-se a isso que, a meu ver, o
CADEP funciona como um espaço discursivo no qual as condições de
produção dos discursos são favoráveis para a produção textual, conforme
veremos. Cabe ressaltar que:
[...] o sujeito da linguagem não é um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo enquanto tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma social dessa apropriação (ORLANDI, 1996, p. 188).
Disso decorre que não me refiro ao sujeito considerando o professor
como um indivíduo de sexo feminino ou masculino, jovem ou idoso, alto ou
baixo; entendo, segundo a teoria pecheutiana, sujeito como uma posição
discursiva que o indivíduo, interpelado pela ideologia, ocupa para produzir seu
dizer, cujo sentido é produzido de acordo com as circunstâncias sócio-
históricas que afetam o sujeito e os discursos por ele produzidos.
E como se dá a relação do sujeito com os sentidos, na escola? Em relação
ao livro didático, quem já pisou o chão escolar sabe que, muitas vezes, ele
circula como o único meio de leitura na sala de aula. Pesquisas (CORACINI,
1999; GRICOLETTO, 1999; PACÍFICO, 2007) mostram que muitos professores -
capturados pela ideologia, que faz parecer evidente o sentido de ser o livro
didático uma autoridade no assunto -, fazem seus alunos apagarem as
respostas quando estas não estão de acordo com o que está escrito no livro,
sem questionarem, ou polemizarem, sequer interpretarem outra possibilidade
de resposta dada pelo aluno. Para a AD, a interpretação é uma questão
ideológica. O analista expõe-se à opacidade do texto, não busca o que “x”
quer dizer, mas sim, por que se diz “x” e não “y”. Esse trabalho com a
interpretação, a meu ver, fica à margem das atividades que constam no livro
didático, as quais se sustentam na ilusão de evidência dos sentidos, em uma
análise do conteúdo, como se o sentido do texto só pudesse ser um.
Entendo que essa prática leva o aluno a assumir a fôrma-leitor, posição
discursiva que permite ao sujeito apenas a repetição de um sentido (PACÍFICO,
2002), o que pode ser observado no livro didático por meio das perguntas
fechadas, das respostas prontas, marcando a necessidade da repetição. Além
disso, o livro didático não trabalha o interdiscurso no intradiscurso, não coloca
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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em curso a constituição história dos sentidos, pois no material encontramos
resumos de textos, recortes, frases descontextualizadas, preenchimento de
lacunas, atividades que criam a ilusão de ser possível esgotar determinado
conteúdo, em cada capítulo ou unidade.
Tais atividades dadas como prontas, como completas, como aquelas que
bastam para o aluno aprender sobre determinado referente, podem ser
compreendidas a partir de Grigoletto (1999) como sendo o livro didático um
discurso de verdade. Ao contrário do que defende a teoria discursiva, ou seja,
que o caráter de incompletude é constitutivo da linguagem, o livro didático
trabalha com a ilusão de completude.
Outro ponto merece destaque. Ao analisar os livros didáticos usados,
atualmente, em escolas públicas e particulares, é possível constatar que eles
têm dado muito espaço para a circulação do discurso de divulgação científica,
ou jornalismo científico. Essa questão é de grande interesse para este
trabalho. Ao proceder dessa maneira, o discurso científico fica silenciado e os
alunos entram em contato com sentidos construídos por um jornalista e não
pelo cientista. O conceito de silêncio pode ser melhor compreendido com as
palavras de Orlandi:
Com efeito, a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada. [...] Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 1997, p. 75-76).
A autora faz uma distinção entre silêncio fundante e silêncio político, a
censura. Segundo ela, o controle do silêncio político é possível porque existem
“mediadores” (personagens discursivos), ou seja, vozes de autoridades que
têm o poder de administrar a produção dos sentidos e, portanto, a
distribuição do conhecimento, contribuindo para a formação do consenso,
isto é, essas vozes determinam quais os sentidos que podem ser conhecidos e
quais devem permanecer em silêncio. “Essas vozes se representam em
lugares sociais de legitimação e fixação dos sentidos e desempenham um
papel decisivo na institucionalização da linguagem: a produção do sentimento
de unicidade do sentido” (ORLANDI, apud GUIMARÃES, 1989, p. 43-44). Em
cada momento histórico, protagonistas diferentes podem assumir o papel de
mediador, como o sacerdote, o intérprete, o crítico, o intelectual, o jurista, a
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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mídia, o livro didático, mas seja qual for o mediador, ele sempre representará
a classe dominante.
Os ecos das vozes autorizadas a atribuir/distribuir sentidos produzem,
ilusoriamente, uma voz social homogênea, controlam os sentidos que o
sujeito pode produzir ou não. O processo de silenciamento está presente na
escola, por meio dos “mediadores” (livros didáticos, professores, autores
consagrados). Assim, a distribuição do sentido está ligada à relação de poder e
isso é verificado na instituição escolar, lugar onde essa relação é bem
acentuada.
Por não considerar “natural” que os alunos tenham acesso a um desvio
daquilo que seria o texto científico, ficando na ilusão de que tiveram
conhecimento dos resultados das pesquisas científicas, quando, na verdade,
tiveram acesso a um dizer transformado e simplificado sobre os resultados do
que foi pesquisado, defendo a relevância de analisar qual é o posicionamento
do professor acerca dessa questão, considerando que ele pode representar a
voz de autoridade que determinará o que pode ou deve circular em sala de
aula.
Para ter acesso a tal posicionamento, analisei com os professores, nos
encontros do CADEP/OPL, os livros didáticos da Coleção Ler e Escrever. Após a
análise e discussão, os professores escreveram seus pontos de vista em
relação ao material analisado. Segundo Orlandi (1996, p. 75), “O lugar do autor
é determinado pelo lugar da interpretação”. Partindo desse pressuposto, para
pesquisar a autoria do sujeito-professor, analisei, em sua escrita, como ele
interpreta e produz sentidos sobre o funcionamento discursivo do livro
didático. Ao assumir a autoria, o sujeito tenta controlar a dispersão dos
sentidos, uma vez que as partes do texto em que vigora a autoria são
encadeadas de modo harmônico e coerente. Vale ressaltar que a autoria não
se restringe à construção de textos coesos e coerentes, pois o sujeito que
ocupa o lugar de autor trabalha tanto a estrutura da língua quanto a
historicidade que sustenta a construção de sentidos.
Tendo como objeto de análise o princípio de autoria e o modo como o
livro didático faz circular os discursos, observei que, no início dos nossos
encontros com os sujeitos-professores, antes de iniciarmos nossos estudos e
discussões acerca do discurso científico e do discurso de divulgação científica,
no livro didático, muitos professores defendiam esse modo mais simples de
tratar um tema, posto que isso “aproximaria os alunos do texto, facilitando
PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.
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sua compreensão”, haja vista que a linguagem usada no discurso de
divulgação científica é carregada de diminutivos, de “sinônimos” que
imaginariamente o aluno pode compreender, imaginário que se sustenta
numa concepção de sujeito-aluno incapaz de interpretar um texto mais
elaborado, tal qual o científico.
Entretanto, no decorrer dos encontros, com base nos estudos e
discussões realizadas no grupo, os sujeitos-professores passaram a dar
indícios de migração para uma formação discursiva que duvida desse
imaginário de sujeito-aluno, pois os professores começaram trabalhar a
nomenclatura científica de plantas e lagartas e constataram o interesse dos
alunos do Ensino Fundamental I pelo “novo”, pelo “diferente”, e até pela
dificuldade que muitos tiveram para pronunciar determinados nomes
científicos, dificuldade que lhes movimentou em busca do saber.
Conforme Orlandi (2001), no discurso científico a terminologia serve para
organizar, para dar uma “ancoragem” científica. O que seria significado numa
formulação científica, pela sua metalinguagem específica em direção à
produção da ciência é deslocado, no jornalismo científico, para (a encenação
de) uma terminologia que permite que a ciência circule, que se entre assim em
um “processo de transmissão”.
Baseado nas formações imaginárias do que seria um leitor do texto
midiático, o jornalista, por meio de mecanismos linguísticos, tais como uso de
diminutivos, a tentativa de buscar uma suposta relação de sinonímia mais
usada coloquialmente, ou a inscrição do discurso do senso comum no discurso
de divulgação científica pode transformar, ou deformar o discurso científico.
Consequentemente, ocorre uma interdição do sujeito-leitor à formação
discursiva própria do discurso científico ao colocar em funcionamento
sentidos construídos pelo discurso de divulgação científica.
Feita essa breve contextualização teórica, apresento, a seguir, alguns
recortes dos textos construídos pelos sujeitos-professores sobre esse
funcionamento discursivo. Os recortes, aqui, não devem ser compreendidos
como uma sequência linear com começo, meio e fim, mas sim como pedaços
do discurso, nos quais se encontram materializados linguisticamente os
indícios de um modo de funcionamento discursivo que mantém relação com o
fio discursivo, ou seja, com o já-dito e com aquilo que está por vir. As análises
sustentam-se no paradigma indiciário de Ginzburg (1980), que auxilia o
analista a compreender as pistas, ou seja, as marcas linguísticas de alguns
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recortes dos escritos que consideramos mais significativos para efeito de
análise.
Recorte 1: (Sujeito A)
Para que possamos interpretar sentidos e, assim, analisar as formações discursivas a partir das quais os sujeitos inseridos no cotidiano escolar produzem sentidos, pesquisamos em Livros Didáticos (LD) qual é a posição discursiva imaginada e permitida para o sujeito-leitor que trabalha, cotidianamente, com esse material, em sala de aula, ou seja, investigamos como o material escolar apresenta os textos e a sua concepção de linguagem.
Interpretando as marcas linguísticas presentes no recorte, as quais
indiciam determinado funcionamento discursivo, considero que o sujeito
realizou um movimento analítico ao escrever sobre o tema: ele considera que
precisa “analisar”, “investigar” as formações discursivas, o material escolar a
fim de ter elementos para “interpretar” e escrever sobre o que lhe foi
proposto. Esse sujeito marca a relevância da pesquisa para o percurso
analítico. Ele não se prende ao visível, à ilusão de evidência das questões do
livro; ao contrário, busca analisar o funcionamento do material e as
implicações disso para o sujeito-leitor. O gesto de interpretação é necessário
para a assunção da autoria, pois é a partir da interpretação que o sujeito
inscreve-se no fio discursivo para produzir seu dizer.
O autor, embora não instaure discursividade (como o autor “original” de Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros. Esta é sua particularidade. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer (ORLANDI, 1996, p. 69-70).
Dando sequência ao que observamos sobre o percurso do sujeito pela
opacidade dos sentidos que até então pareciam naturais para o sujeito-
professor, o recorte abaixo diz respeito a uma análise que questiona o fato de
o livro didático buscar no site da Faber-Castell e não em livros de Biologia ou
Ciências, por exemplo, informações sobre Ecossistema. Vejamos.
Recorte 2: (Sujeitos A e B)
Podemos observar que o conceito de Ecossistema presente no material Ler e Escrever foi retirado do site comercial da empresa Faber-Castell. A Faber-Castell é um dos grupos industriais mais antigos do mundo, e existe desde 1761, oferecendo produtos para escrita, desenho, pintura e trabalhos criativos para
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pessoas de todas as idades. Na escola a maior parte dos produtos consumidos desta empresa são os lápis. Sabemos que para alcançar alta produção de lápis a Faber-Castell desmata milhões de árvores por ano. Embora a empresa divulgue prezar e ter cuidados com o meio ambiente, por meio de políticas de preservação e sustentabilidade, o nosso Ecossistema é afetado cada vez que uma árvore é retirada de seu habitat para compor um negócio rentável de produção em grande escala.
Esse olhar crítico indicia que os sujeitos-professores autorizaram-se a
ocupar outro lugar para produzir sentidos, a saber, o lugar de autor. Ao
analisar o material didático como sujeito que pode ler, interpretar, criticar,
enfim, posicionar-se sobre o material que ancora a prática pedagógica, nas
escolas estaduais paulistas, o professor sai da posição de consumidor do livro
(CORACINI, 1999) e assume a posição de pesquisador. Os sujeitos A e B não só
criticam a fonte de onde o texto foi retirado, mas também o silêncio do
discurso científico no livro didático. Essa mudança de posição discursiva tem
implicações para os sujeitos-escolares (professores e alunos) em relação ao
processo de construção dos sentidos, especialmente, no que diz respeito à
constituição do sujeito-autor. Pela leitura do recorte seguinte, podemos
compreender algumas condições necessárias para a autoria.
Recorte 3: (Sujeitos C e D)
Tendo partilhado junto à Oficina Pedagógica de Língua Portuguesa (CADEP-FFCLRP-USP), sob a coordenação da Professora Soraya Maria Romano Pacífico, momentos de reflexão teórica sobre o ensino de nossa língua materna, cujos referenciais se encontravam na Análise do Discurso (AD), de ‘linha francesa’, sendo Michel Pêcheux seu maior expoente, é que se instalou em nós a pretensão de se analisar materiais didáticos que estivessem em uso nas escolas de nossa cidade, Ribeirão Preto. Dessa forma, escolhemos como nosso objeto de estudo a coletânea de livros didáticos intitulada “Ler e escrever”, a qual é utilizado pelas escolas públicas estaduais de São Paulo para o ensino da Língua Portuguesa nas séries iniciais do ensino fundamental. Nosso trabalho se realizou buscando, pois, pensar os conceitos de identidade e subjetividade, nas propostas do material, e tendo em vista ainda verificar se e como tais propostas visam o uso da escrita e da leitura como prática social e não meramente prática escolar. A escolha deste recorte se deu por questões de afinidade e experiência em nossas pesquisas individuais, na graduação e no mestrado, e que pretendemos aqui integrá-las. Sendo assim é que nos propomos analisar os livros didáticos de trabalho em salas de aula de alfabetização, isto é, aqueles direcionados ao 1º ano do ensino fundamental, na tentativa de compreender as propostas de trabalho com a língua(gem) por eles apresentadas, assim como a ligação das mesmas com os textos utilizados, visando encontrar uma relação possível entre o ler, o escrever e a identificação do sujeito com tais atividades e com os sentidos que elas colocam em movimento.
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Apoiando-me nos sentidos colocados em curso, entendo que o CADEP
constitui-se como um espaço para a construção da autoria do sujeito-
professor. Segundo os sujeitos C e D do recorte 3, tal espaço de discussão e
contato com a teoria “instalou em nós a pretensão de se analisar materiais
didáticos que estivessem em uso nas escolas de nossa cidade, Ribeirão Preto”.
E prosseguem: “A escolha deste recorte se deu por questões de afinidade e
experiência em nossas pesquisas individuais, na graduação e no mestrado, e
que pretendemos aqui integrá-las”. Temos, neste recorte, a materialização de
duas condições fundamentais para a autoria: a pretensão (a coragem de
escrever, de publicar) e a afinidade (a identificação do autor com aquilo que
escreve).
Não estou me referindo à identidade como algo individual, como
unidade. Ao contrário, o sujeito para a AD é heterogêneo, cindido, dividido e,
ao ocupar o lugar de autor, ele se filia a determinada formação discursiva com
a qual se identifica e, movimentando-se por ela, tentando controlar a
heterogeneidade que o domina e, por isso mesmo, às vezes, migrando,
coerentemente, para outras formações discursivas, ele produz seu dizer. A
autoria é tecida e provoca a identidade do autor com os sentidos que ele
discursiviza, com a entrada do sujeito em determinada região de sentidos.
Rodrigues também defende essa ideia:
A fruição, o prazer, a escolha pela escrita são as primeiras condições para a constituição do sujeito-autor e estão ligadas à elaboração de uma escrita que não se curva a padronizações, tampouco precisa ser tolhida por elas. [...] Afinal, que autor escreve algo significativo por obrigação, forçado? (RODRIGUES, 2011, p. 57).
A meu ver, os sujeitos-autores do recorte 3, que ocupam, dentre tantas,
a posição sujeito-professor da rede pública, desconstroem o sentido
dominante que desqualifica o professor da Educação Básica, especialmente o
discurso propagado pela mídia. Eles autorizam-se a analisar um material
didático legitimado pelo governo estadual, para ser usado nas escolas de São
Paulo, examinando-o com olhos de quem duvida da evidência dos sentidos,
pois não é pelo fato de ter sido elaborado e eleito pelo Estado de São Paulo
como o material didático a ser distribuído nas escolas estaduais, e agora, até
nas municipais, que o mesmo não seja passível de análise, do olhar crítico do
sujeito-professor acerca da organização, conteúdo, silêncios e ideologia que
fazem o material ser como é.
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Autor: que lugar é esse, que poder é esse, que voz é essa?
Desde Foucault, em sua conferência proferida, em 1969, no Collège de
France, temos o eco da pergunta “O que é um autor”? A meu ver, até hoje
essa questão se impõe e as respostas são muitas, visto que o conceito de
autoria não é homogêneo dentre os pesquisadores que se ocupam desse
estudo. Aqui, não parto da relação da obra com o nome próprio, com o nome
do autor, tal como o fez Foucault, nem de sua concepção de “função-autor”
compreendida pelo teórico como “característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma
sociedade” (FOUCAULT, 1969/2011, p. 8). Entendo o conceito de autor como
uma posição discursiva que todo sujeito pode ou não ocupar ao produzir seu
discurso, oral ou escrito; logo, uma posição possível para todos, não derivada
de um processo de seleção e de exclusão, como entendia Foucault (idem).
Essa posição discursiva, no meu entendimento, pode ser pensada a
partir do conceito de forma-sujeito (PÊCHEUX, 1995) que se refere à forma de
existência histórica de qualquer indivíduo, agente de suas práticas sociais. Este
conceito, compreendido no âmbito do discurso, constrói-se pela interpelação
do indivíduo em sujeito de seu dizer, o que acontece devido a sua
identificação com a formação discursiva que o domina, de tal forma que o
sujeito reinscreve o interdiscurso (o já-lá) no “seu próprio” discurso,
assumindo a forma-sujeito. Assim, é no interior de uma formação discursiva
que se realiza o assujeitamento do sujeito do discurso e sob a aparência de
autonomia, a forma-sujeito dissimula o assujeitamento.
Com base no que foi exposto e sem perder de vista a autoria, estabeleço
a seguinte relação: a forma-sujeito pode ocupar a posição de autor quando o
sujeito inscreve-se em seu dizer assume a responsabilidade pelas palavras que
coloca em curso ao trabalhar a/na relação interdiscurso e intradiscurso e, a
partir disso, sente-se ilusoriamente “dono” dos sentidos que constrói em
dado contexto sócio-histórico. Isso significa que o autor não despreza o fato
de que a produção dos discursos vai além do conhecimento linguístico. O
autor compreende que língua e sujeito estão ligados à exterioridade; logo, os
sentidos construídos pelo autor não podem estar deslocados dessa intrínseca
e incompleta relação.
Mas, afinal, como pensar o autor na escola, já que é desse lugar que falo
e é nele que pretendo construir espaços para a assunção da autoria? Começo
por explicar por que uso “assunção da autoria”. Pesquisas (PACÍFICO,
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2002/2012; RODRIGUES, PACÍFICO, 2007; TIZIOTO, PACÍFICO, ROMÃO, 2009;
ASSEF, PACÍFICO, 2012) sustentam que a autoria é uma posição possível para
todos; porém, não é ocupada, naturalmente, por todos. Há uma relação de
poder embasando a disputa pelo lugar de autor e essa disputa ocorre, no
contexto escolar, de modo velado, passando despercebida pela maioria dos
sujeitos-escolares, entendidos, aqui, por professores e alunos.
Um instrumento de poder que controla o acesso à autoria, de modo
silencioso, é o livro didático. Uma rápida análise dos livros didáticos permite
ao analista observar que, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, a
organização dos capítulos, das unidades, dos conteúdos que compõem as
páginas que serão lidas e preenchidas pelos alunos é a mesma, baseada na
atividade de copie e cole, aprendida no decorrer dos anos escolares e
transferida, hoje, para o trabalho feito em computador, especialmente, no que
se refere às cópias feitas dos textos que circulam na internet. Tal prática tem
trazido consequências relativas a como se dá e se controla a autoria na rede
eletrônica, mas este não é o foco deste trabalho, embora o cerne da questão
“copie e cole” possa ser transferido para se pensar o funcionamento dos
livros didáticos, o que provoca a interdição à autoria na escola, como temos
constatado.
Professores e alunos: quem é, quem pode ser autor? Apesar de termos
muitos estudos sobre autoria, especialmente a partir do século XX, ainda é
discurso dominante na escola atribuir a função-autor aos autores
consagrados. Se essa ideia vigora, como autorizar professores e alunos a
serem autores?
Não me resta dúvida de que a autoria está diretamente ligada à
interpretação, como já me posicionei acima. Não se refere apenas à escrita,
mas antes, à leitura e aos movimentos de interpretação. Por isso, desde o
início da investigação que apresento neste artigo, construímos, eu e os
sujeitos da pesquisa, espaços para leitura e interpretação dos textos que
sustentaram os escritos dos professores. Não me restrinjo a pensar a autoria
relacionada a um espaço geográfico delimitado, mas, certamente, este é
essencial. Portanto elegemos o Laboratório Paulo Freire, da FFCLRP-USP,
como espaço para os encontros do CADEP/OPL e como lugar de leitura e
interpretação dos textos selecionados para serem estudados e discutidos por
nós. Importante ressaltar que não é suficiente para o sujeito ter um espaço,
uma sala, um sofá para leitura se não houver um trabalho de leitura e
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interpretação que seja a base para a construção das condições discursivas
para a autoria.
Essa concepção sustenta-se em minha pesquisa de doutorado
(PACÍFICO, 2002), na qual formulei os conceitos de fôrma-leitor e de função-
leitor, conforme apresentados e melhor explicados a seguir. É em relação ao
movimento do sujeito que entendo as posições discursivas de fôrma-leitor e
de função-leitor; a partir desta, o leitor compreende que o sentido é
construído em processo, em movimento (função - funcionamento -
movimento), pois há um continuum movimento (sócio-histórico) responsável
pela produção dos sentidos. Por outro lado, ao ocupar a fôrma-leitor, o sujeito
não compreende tal movimento e procura um sentido limitado ao texto,
caracterizando, realmente, a metáfora da fôrma.
Ressalto que o conceito de fôrma-leitor tal como apresentei em Pacífico
(2002) não corresponde à noção de forma-sujeito defendida por Pêcheux
(1995), visto que a forma-sujeito tal como concebida por este autor é
constitutiva do sujeito e este identifica-se com ela, através da formação
discursiva que o domina. Já a fôrma-leitor não é constitutiva do sujeito, mas é
uma das posições que o sujeito pode assumir em suas práticas de linguagem,
posição esta determinada pela instituição dominante que procura apagar as
diferenças existentes entre os sujeitos, criando um efeito de sentido de
homogeneidade. Por outro lado, a forma-sujeito pode assumir a função-leitor
e questionar os efeitos de persuasão e manipulação produzidos por
determinados discursos que pretendem criar o efeito de universalidade do
sujeito.
Estabelecida essa relação, entendo que ao assumir a função-leitor, o
sujeito se inscreve em espaços interpretativos que lhe conferirão a entrada
para a autoria. Em relação à pesquisa que apresento, posso dizer que os
textos lidos e interpretados nos encontros e, com certeza, além deles,
permitiram o acesso dos sujeitos-professores ao interdiscurso que sustentou a
organização dos sentidos produzidos no intradiscurso, movimento esse tão
caro à autoria. Ao mesmo tempo, pelas leituras, a memória discursiva
reverberou, funcionando como base para a interpretação e produção de
sentidos outros. Considerar os conceitos de interdiscurso, arquivo, memória
discursiva fez com que o grupo refletisse sobre as condições que dão
sustentação à autoria. Em nossos encontros, discutimos esses conceitos à luz
da Análise do Discurso. Como escrever, como ser autor sem instaurar um
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paradigma novo, mas ao mesmo tempo, não copiar, não repetir os sentidos,
se ao longo dos anos escolares muitos sujeitos assim o fizeram?
Novamente, volto ao conceito de função-leitor que sustenta os gestos
de interpretação, os quais, por sua vez, sustentarão a autoria. Dessa forma, os
professores pensaram sobre seus gestos de interpretação e autoria e, por
extensão, em suas práticas pedagógicas, no trabalho que eles realizam com a
linguagem, em sala de aula, e como isso pode abrir ou fechar as portas para o
espaço autoral. Com base nisso e nos resultados desta pesquisa, constato que
os sujeitos-professores ocuparam a função-leitor, interpretaram e discutiram
os textos científicos estudados em grupo e, com base nas discussões,
analisaram o material didático, como apresentei nas análises. Diante da
decisão de escolher qual tema analisar, quais sentidos colocar em curso, de
assumir a responsabilidade pelas escolhas lexicais e escrever sobre o material
didático, os sujeitos da pesquisa autorizaram-se a ocupar o lugar de autor dos
capítulos que construíram, com suas vozes de sujeito-professor, um livro
sobre um material didático trabalhado em muitas escolas do Estado de São
Paulo, intitulado Professor e autoria: interpretações sobre o Ler e Escrever.
Considerações finais
Minha experiência no curso de Pedagogia permite-me reconhecer quão
necessária é a criação de condições de produção para a assunção da autoria,
tanto de professores quanto de alunos, no contexto escolar. Não ignoro que
em todos os níveis de escolaridade ainda não é tarefa fácil atingir tais
condições. Se a escola básica e a universidade não garantem a formação de
autores, enfatizo a importância de espaços privilegiados para os professores
compartilharem suas experiências e sustentá-las teoricamente. Como
constatei, o CADEP configura-se como um espaço favorável para que o sujeito-
professor assuma a função-autor.
De acordo com as análises apresentadas, observei, inicialmente, que os
professores tinham um olhar que não estranhava a opacidade do modo como
o livro didático faz circular, em suas páginas, o discurso jornalístico que
pretende divulgar o conhecimento científico. No entanto, a partir do contato
com o grupo, com as discussões dos textos propostos para estudo, os
professores passaram a assumir a autoria e questionar alguns sentidos que
constituem o discurso pedagógico tal qual funciona no livro didático, que
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antes da pesquisa eram considerados naturais. Em espaços discursivos nos
quais os sujeitos sintam-se autorizados a ler, escrever e interpretar,
professores e alunos poderão construir seus textos, quebrando, assim, um
ciclo pedagógico segundo o qual a poucos é concedido o direito de construir
sentidos e a muitos a obrigação de reproduzi-los. Com base nisso, entendo
que a constituição de espaços de interlocução, de estudos e de autoria,
contribuirá para que a docência seja um constante processo de/em formação.
LIVRO DIDÁTICO ANALISADO
SÃO PAULO. Ler e Escrever: livro de textos do aluno. Secretaria da Educação. Fundação para o Desenvolvimento da Educação. FDE, 2010.
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DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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A ADESÃO EM PERELMAN: REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO RETÓRICO1
Emmanuelle Danblon2
Introdução
O Tratado da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca marca
etapa crucial na renovação dos estudos da argumentação no século XX. Desde
o início, a empreitada se declara abertamente aristotélica, como o testemunha
o subtítulo La Nouvelle Rhétorique. Por essa razão, a questão do auditório é
objeto de uma reflexão ainda bem mais rica, porque ela se ancora em uma
problemática própria das sociedades modernas.
1 A Nova Retórica como teoria da adesão
A reflexão de Perelman sobre o auditório se oferece como um conjunto
de intuições tão brilhantes quanto fecundas sobre as fontes e o estatuto da
adesão, a tal ponto que, segundo ele, o campo da retórica deve doravante
definir-se como:
[...] o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao seu assentimento (PERELMAN, 2004, p. 57).
E ele acrescenta que esse campo de reflexão deve forçosamente se
situar nos confins da lógica e da psicologia. Antes de tudo, a lógica se dá como
o antimodelo da retórica, assim como, em Aristóteles, a dialética era correlata
1 Referência da publicação original:
DANBLON, Emmanuelle. L'adhésion chez Perelman. Réflexions sur la pensée rhétorique. In: OLIVEIRA, Eduardo Chagas (Org.). Chaïm Perelman: Direito, Retórica e Teoria da Argumentação. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia, 2004. p. 81-93.
2 Docente da Univesité Libre de Bruxelles (ULB), Bélgica. E-mail: [email protected].
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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(antistrophe) à retórica. De fato, enquanto o nominalismo e o positivismo
desejavam reduzir a retórica ao estudo da argumentação por provas formais,
comparáveis ou, ao menos, análogas àquelas que se encontram nas
demonstrações, Perelman procura dar à disciplina oratória todo seu relevo
humano e social, e disso, então, o interesse declarado pela psicologia, ainda
que ele prefira a intenção programática ao pensamento sistemático:
A argumentação a respeito das interpretações da experiência entrará em jogo, e os procedimentos utilizados para convencer o adversário farão, é claro, parte de nosso campo de estudo. É o que acontecerá quando o comerciante pretende defender a brancura de um brilhante onde o comprador vê reflexos amarelados, quando o psiquiatra se opõe às alucinações de seu paciente, quando o filósofo expõe suas razões para recusar objetividade à aparência (PERELMAN, 2004, p. 58).
Ainda a respeito disso, Perelman é aristotélico já que, como o autor da
Retórica, ele protege sua disciplina de qualquer redução ao pensamento
formal, exigindo para ela uma teoria das paixões – dir-se-ia hoje, “uma teoria
das emoções”.
2 Persuadir e convencer
Esse novo programa retórico está fundamentado na vontade de
ultrapassar a distinção clássica entre convicção e persuasão. A primeira é tida
como aquela que se dirige à razão, enquanto a segunda solicitaria as emoções.
Mas Perelman destaca o fato de que essa oposição não pode satisfazer um
pensamento que busca ultrapassar os quadros de um racionalismo estreito. Se
a retórica cuida da adesão, isso implica que o orador deve juntar um preço ao
papel que desempenha o auditório na formação dos argumentos. Isso implica
que o orador e o auditório devem formar uma comunidade argumentativa
previamente a qualquer tentativa de persuasão, sem o que o auditório não
seria capaz de escutar os argumentos do orador. Ora, os auditórios são
variados. Por outras palavras: o que leva à adesão em certo caso não leva em
outro, o que é válido ou razoável para alguns não será obrigatoriamente para
outros.
Atrás de tal constatação aparece o fantasma do relativismo, do
subjetivismo, até mesmo do arbitrário das normas e decisões. Mas essa
relatividade dos juízos toma, no pensamento moderno, um contorno
particularmente trágico que não havia no pensamento aristotélico, não
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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preocupado, então, com a universalidade. De fato, na democracia ateniense, a
relatividade dos juízos e auditórios não era problemática senão por razões
práticas: “o que fazer para levar a adesão a um número maior?”.
Frequentemente, aliás, diante da variabilidade dos auditórios, Aristóteles dá
conselhos de orador em vez de teorizar.
Nascido em era filosófica que quer crer na universalidade dos direitos, o
pensamento de Perelman não poderia satisfazer-se com conselhos práticos
face à relatividade dos auditórios. É essa, sem dúvida, a razão pela qual só uma
teoria retórica moderna poderia pensar a noção de “Auditório Universal”.
Inspirada pela filosofia das Luzes, a noção é concebida como um princípio
regulador, modelo ideal da razão humana. Procurei mostrar alhures3 o quanto
o conceito de auditório universal permanecia ambivalente no pensamento de
Perelman; aqui, apenas retenhamos que, em sua interação com os auditórios
particulares, ele associa globalmente a oposição entre persuasão e convicção:
“Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só
para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a
adesão de todo ser racional” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 31).
Então, mesmo que Perelman busque ultrapassá-la, a oposição tradicional
entre persuadir e convencer encontra-se reforçada, já que ela funda a
definição dos auditórios.
3 A noção de pseudo-argumento em Perelman
Essa dificuldade pode ser ilustrada pela noção de “pseudo-argumento”.
Para Perelman, essa etiqueta recobre os casos em que um auditor poderia
julgar um argumento persuasivo, não o considerando convincente no sentido
de que ele não seria válido. Em outros casos, se utilizará um pseudo-
argumento, esperando, com isso, persuadir o auditório a que se dirige.
Imaginemos a seguinte situação: uma jovem africana, que chegou à Europa há
pouco tempo, está ansiosa para ver o seu pequeno filho que está resfriado. Ela
está persuadida de que a sua sogra, que ficou na África, envia maus fluidos à
criança, o que lhe aumenta ainda mais a angústia. A mulher da casa onde a
jovem trabalha assegura-lhe que as crianças sempre ficam doentes no inverno,
e que alguns medicamentos e vitaminas contribuirão para o rápido
restabelecimento de seu filho. Mas a moça não parece convencida. Sua
3 Para uma reflexão global sobre a noção do Auditório Universal em Perelman, ver Danblon, 2004.
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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empregadora lhe afirma, então, que as maldições perdem a eficácia em tal
distância geográfica, e aí o argumento parece obter a sua adesão a ponto de
tranquilizá-la completamente. A jovem decide, então, levar a criança ao
médico para tratamento.
Nesse caso, Perelman afirmaria que aquela que busca persuadir a moça
utiliza um pseudo-argumento, isto é, um argumento que ela, por si mesma,
não julga convincente, mas que, segundo ela pensa, terá a sorte de persuadir
o auditório particular ao qual ele é dirigido.
Essa pequena história aplicada à noção perelmaniana de pseudo-
argumento revela, de imediato, as questões éticas e epistemológicas que esse
conceito levanta. Antes de tudo, o pseudo-argumento se revela relativo a um
ponto de vista: o do orador ou o do auditório. No caso em questão, dir-se-á
que o argumento da distância geográfica e da má sorte não é qualificado por
“pseudo” senão a partir do ponto de vista do orador, enquanto o argumento
do inverno e de seu efeito sobre a fragilidade das crianças, mesmo que não
persuada o auditório, não portará a etiqueta desqualificante que traduz seu
caráter errôneo. Ora, se nós nos colocarmos no ponto de vista do auditório, o
argumento da distância geográfica se revela, ao mesmo tempo, persuasivo
(reconforta efetivamente a jovem) e convincente (o argumento, sem dúvida,
se reveste de uma verdadeira validade a seus olhos). Noutros termos, o ponto
de vista do orador e o do auditório não teriam o mesmo estatuto. O primeiro
teria uma pretensão epistemológica que o segundo não poderia reivindicar.
Essa assimetria se junta inegavelmente à oposição tradicional entre convencer
e persuadir que, em geral, recorta a fronteira entre o racional e o irracional.
Além disso, se tirarmos todas as consequências dessa constatação, será
necessário admitir que nesse jogo da persuasão, o pensamento mágico,
irracional, condição da adesão, está condenado a um estatuto de auditório
condenado ao particular, enquanto o ponto de vista do orador pretende
representar o de um auditório universal que se imporia como o bom uso da
razão. Ora, o auditório universal encarna-se, presumidamente, em “todo ser
humano adulto e normal”.
Aqueles que não se encontrariam convencidos pelos argumentos que
emanam desse auditório estariam excluídos, desde então, da universalidade
de direito? Perelman exprime o problema nestes termos:
Mas que fazer quando apresentando uma proposição que parece objetivamente válida, à qual todos os seres racionais deveriam aderir, se encontra um ou alguns
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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espíritos renitentes, que se obstinam em rejeitá-la? Pode-se ser levado, por isso, a modificar a concepção pessoal do auditório universal, mas pode-se também excluir os recalcitrantes do conjunto dos seres racionais (2004, p. 272)
A exemplo da hesitação que se nota em Perelman, o pensamento
moderno oscila geralmente entre duas respostas a essa questão espinhosa. A
primeira é aquela de um autoritarismo cientista que crê ver no reducionismo
uma garantia definitiva da razão. Essa posição quer salvar a validade do risco
da opressão: sacrifica a ética no altar da epistemologia. A segunda responde
em termos de relatividade dos saberes e crê ver nessa posição uma garantia
para a proteção da ética; ela corre, então, o risco do obscurantismo.
Buscaremos mostrar na sequência deste artigo que tal questão, em toda
a sua complexidade, pode encontrar pistas de resoluções no seio de uma
teoria retórica. A resposta retórica a essa tensão entre a ética e a
epistemololgia deve encontrar um caminho que transcenda a dicotomia
esterilizante entre validade teórica, mas opressiva, e persuação viva, mas
irracional. A retórica deve, então, questionar-se sobre os limites da
racionalidade, o que era claro aos olhos de Perelman. Este considerava que, de
fato, a questão do razoável, central na argumentação, atingia a psicologia, a
psicopatologia e a filosofia.
4 A retórica e os limites da racionalidade
Dentre as consequências de nossas ações, Jon Elster (1984, 1988)
sustenta que elas são muito menos alcançadas do que o quanto são
desejadas; é o caso do amor, da admiração, da espontaneidade. Mas, quando
se trata de estados desejáveis, temos, às vezes, a tendência de tentar realizar
pela vontade aquilo que não se poderia produzir senão por nosso
desconhecimento: é o que Elster nomeia o “excesso de vontade”. Além disso,
esses estados são tão difíceis de serem intencionalmente realizados em si
mesmo, quanto de induzirem o outro: a injunção da espontaneidade é tão
incoerente quanto a decisão pessoal de ser espontâneo.
A persuasão pertence, sem dúvida, a esses estados mentais que não
podemos induzir, por ordem, a outro, e que não podemos realizar em nós
mesmos por decisão intencional. Por outro lado, nota Elster, podemos buscar
elaborar uma estratégia para atingir o alvo visado. Buscar-se-á, assim, obter
um objetivo principal enquanto efeito secundário de um objetivo
intermediário, como quando se lê para lutar contra a insônia. Os mecanismos
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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da persuasão parecem depender dessa estratégia elaborada em duas etapas,
em que o efeito persuasivo se realiza “como” por inadvertência, de onde,
então, a ambivalência da ação retórica: o orador persuadirá tanto melhor
quanto não anunciar sua intenção de persuadir. Mas isso não faz dele
forçosamente um manipulador. O caso do pseudo-argumento depende dessa
estratégia em duas etapas, em que se visa a um alvo intermediário para obter
um alvo principal por efeito secundário: a jovem, uma vez tranquilizada, leva o
filho ao médico.
Perelman sustenta que a utilização do pseudo-argumento não é
manipulação e justifica essa afirmação pela dimensão coletiva e partilhada do
empreendimento: o auditório exige à sua maneira um tipo de argumentação
fora do qual sua adesão seria impossível. Assim dando-lhe as condições de sua
adesão, o auditório contribui para o “valor” da proposição. Entretanto,
quando Perelman fala de “valor da proposição”, ele reduz os dois níveis do
duplo mecanismo: certamente o auditório contribui para a eficácia do
empreendimento, mas essa eficácia não é sinônimo de validade dos
argumentos.
Segundo Elster, essas estratégias intermediárias são tipicamente
empregadas nas psicoterapias, sem que, por isso, se possa falar sempre em
manipulação. Eis aqui como ele descreve as coisas:
Grosso modo, o terapeuta deve crer em uma teoria para que a atividade terapêutica lhe pareça útil, e a atividade terapêutica será ineficaz se ele não pensar que ela é útil. O terapeuta e o paciente são os cúmplices de uma loucura a dois, mutuamente proveitosa (ELSTER, 1984, p. 32).4
Vê-se, ainda, aqui, o nível da eficácia misturar-se com o da validade dos
meios colocados em ação. De fato, se o paciente e o terapeuta se tornam
“cúmplices de uma loucura a dois”, isso implica que os meios colocados em
ação para atingir o objetivo seriam da ordem da enganação ou da
manipulação, mesmo se esta for coletiva. Elster não diz que há um enganador
ou um enganado, mas ele deixa entender que há uma enganação intencional e
coletiva. Elster insiste na enganação, Perelman no valor, mas cada um reflete
misturando eficácia e validade.
4 N.T.: Nossa tradução para: “En des termes grossiers, le thérapeute doit croire en une théorie pour que l’activité thérapeutique lui paraisse utile, et l’activité thérapeutique sera inefficace s’il ne pense pas qu’elle est utile. Le thérapeutique et le patient sont les complices d’une folie à deux mutuellement profitable.”
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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Na análise desses mecanismos com objetivo intermediário, seria
necessário, portanto, poder separar mais eficazmente a qualidade dos meios
colocados em ação e a eficácia do empreendimento, sob o risco de se cair em
utilitarismo que sustentaria, cinicamente, o “é válido o que se revelou eficaz”.
A questão é tanto mais complexa, porque articula a ética ao epistemológico.
Ora, qualquer que seja o ângulo a partir do qual se comece a reflexão, os
autores têm a tendência de associar os dois níveis a fim de considerar o
problema em sua globalidade. A dimensão pública e intencional da troca entre
orador e auditório parece ser uma das condições de sucesso do
empreendimento de persuasão. Esse acordo preliminar contribui muito para a
eficácia, mas isso não concerne ainda à validade. O acordo preliminar entre
orador e auditório transferiria o modelo do enganador e do enganado para um
modelo de enganação coletiva, como sugere Elster.
5 Persuasão e enganação de si
Como a persuasão, a admiração e o amor, é paradoxal tanto decidir ser
enganado quanto exigir de um auditório que ele seja enganado. Enganar-se é
crer que P, pondo-se inteiramente no estado de espírito de crer que não-P.
Davidson (1985) fala, nesses casos, do “eu dividido”, para explicar que o
agente entreteria simultaneamente duas crenças contraditórias, não estando
condenado à irracionalidade. De sua parte, Elster (1988, p. 4) observa que o
fato de entreter crenças contraditórias depende de uma situação muito
frequente. É o caso da criança que crê no Papai Noel, mesmo perguntando aos
seus pais o preço do presente que eles lhe ofereceram. Sem utilizar o termo
conotado de “eu dividido”, Elster afirma que as duas crenças não pertencem
ao mesmo domínio da vida.
Transfiramos, agora, essas reflexões ao problema do pseudo-
argumento. Na interação entre as duas mulheres, pode-se dizer que tanto o
orador quanto o auditório “creem” que os dois argumentos são “válidos” ou
“razoáveis”; no momento, evitamos, deliberadamente, o termo de validade.
Além disso, o sucesso da persuasão está condicionado a um reconhecimento
mútuo do orador e do auditório, e este dando lugar a uma articulação entre os
dois tipos de crenças ou, até mesmo, entre dois universos de crença. Trata-se,
nesse caso, segundo a expressão de Elster, de uma “loucura a dois
mutuamente proveitosa”?
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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Esse reconhecimento mútuo, que estabelece um quadro no seio do qual
podem se articular diferentes universos de crença, é mais específico aos
mecanismos da ficção do que àqueles da armadilha ou da enganação
(SCHAEFFER, 1999). Ora, o termo “pseudo-argumento” concerne mais ao
léxico da armadilha ou da enganação.
Na perspectiva adotada aqui, se utilizará o argumento “como-se”5 de
preferência a “pseudo-argumento”, a fim de insistir no caráter ficcional do
empreendimento retórico. A noção de argumento “como-se” tem como
ambição conservar o relevo próprio dos diferentes níveis de crenças,
integrando-o inteiramente em um quadro de reconhecimento mútuo
indispensável aos contextos de persuasão analisados aqui6. Se tal hipótese
nos oferece pista de resolução face ao problema da manipulação, ela não
diminui, por essa razão, a questão epistemológica da validade dos
argumentos. Ora, se não se deseja abandonar o ideal de racionalidade, o
problema da adesão deve integrar a questão da validade.
6 Qual estatuto para o “pensamento mágico”? O caso da etnopsiquiatria
As ligações entre a adesão e a validade colocam problemas análogos em
etnopsiquiatria. Por razões similares às que são expostas aqui, tal disciplina
deve, ela mesma, refletir sobre os limites da racionalidade. A etnopsiquiatria
faz intervir universos de crença tradicionais no seio de um quadro terapêutico
geral. Tal conduta apresenta analogia evidente com a utilização de
argumentos “como-se”. Nos dois casos, encontramo-nos confrontados com a
dupla questão colocada pelos mecanismos de adesão: pode-se aliar eficácia e
validade conservando um ideal de racionalidade?
A esse respeito, encontramos em Nathan (1999) um argumentário
construído sob a forma de um diálogo fictício. Certos argumentos em favor da
validade revelam-se particularmente interessantes para a nossa reflexão.
Em primeiro lugar, aquele que emprega a noção de expertise: “O mestre
do saber secreto, usando adivinhação e não o diagnóstico, expõe-se ao risco
de maneira permanente e, primeiro, àquele de ser contraditado pelo
5 Sobre a noção técnica de “como-se” e seu papel na persuasão, permito-me remeter a Danblon, 2002.
6 É evidente que, em outros contextos, tais como os da propaganda política, podem interferir verdadeiros “pseudo-argumentos” destinados a obter a adesão do auditório por uma enganação bem real.
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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verdadeiro expert, que se torna, então, o doente”7 (NATHAN, 1999, p. 26 –
grifos da autora).
O argumento de Nathan parece transferir o requisito de validade
científica do método àquele do respeito ético da pessoa, condição, talvez, da
eficácia da ação terapêutica. Mas, no plano epistemológico, o conceito de
expertise defendida aqui é típico das sociedades orais, tradicionais, nas quais a
validade de uma palavra é eminentemente dependente da qualidade –
adivinhatória - da pessoa que a pronuncia (DETIENNE, 1967). Ora, aqui, esse
conceito de expert é reivindicado desde os quadros epistemológicos de uma
sociedade laicizada. Esse ponto de vista inverte simplesmente a hierarquia
entre os auditórios. A noção de “verdadeiro expert” se torna o fato de
auditórios particulares. Nessa perspectiva, a noção de auditório universal deve
ser pura e simplesmente abandonada e, com ela, qualquer ideal de
racionalidade.
Há, em seguida, um argumento que compromete a noção de crença:
quando da execução do rito da chuva, os Bochimans não creem que o rito
provoque a chuva (NATHAN, 1999, p. 44). O fato de falar de “crença”, nesse
caso, tem, sem dúvida, algo de abusivo: a prática da ação ritual, que exige
antes de tudo um conhecimento, uma técnica, isto é, um know how mais do
que um know that (RYLE, 1978). Nesse caso, a realização da ação ritual produz
sua eficácia própria que a dispensa, por isso, de qualquer justificação.
Simultaneamente, o fato de que a ação ritual esteja assim imunizada contra a
crítica torna a questão de sua validade não-pertinente.
Pode-se, então, levantar a hipótese de que essa eficácia se encontre de
forma idêntica na persuasão retórica, que produz efeitos análogos àqueles do
“pensamento mágico”, mas sobre um mundo ficcional. É o que vamos, agora,
tentar justificar.
7 N.T.: Nossa tradução para: “Le maître du savoir secret, en usant de la divination et non du diagnostic, s’expose lui au risque de manière permanente, et d’abord à celui d’être contredit par le véritable expert qui devient alors le malade”.
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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7 O wishful thinking8 e a retórica
Parece, portanto, que a persuasão tenha parte ligada, ao menos em
aparência, com os fenômenos tradicionalmente retomados sob a etiqueta de
“limites da racionalidade”. Os exemplos nos quais pensa Perelman são
bastante reveladores quanto a propósito:
Do mesmo modo, o paciente pode, em um tratamento psiquiátrico, desejar a sugestão que lhe será feita. E o soldado que parte para o combate pode, voluntariamente, submeter-se ao discurso patriótico muito pouco original que lhe é dirigido, assim como o passeante cansado se deixará levar por uma marcha cantada (2004, p. 85).
Os exemplos escolhidos por Perelman têm todos, em comum, o fato de
que eles ilustram comportamentos humanos muito difundidos e que,
entretanto, poderiam ser qualificados a priori de “irracionais”. O último dos
três exemplos é típico do fato somático produzido pela ação ritual. O primeiro
recobre o que chamamos correntemente whishful thinking; quanto ao caso do
soldado, ele concerne tipicamente à retórica epidítica.
Haveria uma ligação entre fenômenos a priori tão distanciados quanto
uma ação ritual, um discuro epidítico e uma tendência a tomar seus desejos
por realidades? Mais precisamente, o wishful thinking é um fenômeno mental
que consiste em transformar um desejo ou uma esperança em crença: deseja-
se tanto algo que se pensa e se age “como se” a situação desejada existisse
realmente ou fosse certamente se realizar. Nesse caso preciso, a fronteira
entre o racional e o irracional se traduz pela questão em saber se somos
crédulos do “como-se”. Em outros termos, o wishful thinking se ergue do
engodo ou da ficção?
Observemos, de passagem, que se trata de uma prática linguística
extremamente banal. Quando se quer encorajar alguém, dar-lhe segurança e
restaurar-lhe a confiança, dir-se-lhe-á com naturalidade: “tudo dará certo”.
Ora se não interpretarmos o enunciado em sua dimensão ficcional, dir-se-á
que se trata de uma dimensão fundamentada em uma crença não justificada:
um wishful thinking. Entretanto, é certo que nenhum interlocutor racional
compreende o enunciado dessa maneira, mas interpreta diretamente o
enunciado a partir dos efeitos que ele tem ambição de produzir: encorajar e
assegurar o interlocutor. Para se convencer disso, basta imaginar que o
8 NT.: Seguindo o texto original francês, deixamos a expressão wishful thinking (pensamento ávido) sem tradução, por se tratar de termo técnico.
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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interlocutor exija justificações desse enunciado (cf. DANBLON, 2000): “ que é
que você sabe disso? ”, “ que é que te faz dizer isso?”. O pedido de
justificação, nesse caso, só pode ser interpretado como agressivo, o que é o
sinal do fato de que o ato de linguagem de origem não poderia ser
interpretado como uma banal predição. Essa observação nos permite
destacar, de passagem, que a competência linguística dos locutores leva em
consideração o estatuto ficcional de tais enunciados. A questão da validade
não é pertinente nesse caso; é como se fosse neutralizada, mas os efeitos de
persuasão permanecem intactos.
Ora, podemos supor que é exatamente aquilo que se produz no gênero
epidítico que produz os elogios e as críticas. Aí, mais do que qualquer outro
lugar em retórica, a capacidade ficcional vem em socorro da persuasão. Assim,
como evoca Perelman, os soldados que se preparam para partir ao combate
são tranquilizados e animados ao ouvir: “Venceremos porque somos os mais
fortes”. Mas eles não “creem” que se trate aí de uma predição adivinhadora.
Não é o caso também de que eles estejam em situação patológica de “eu
dividido”, de enganação de si, de excesso de vontade, de wishful thinking. O
estatuto ficcional do discurso epidítico é um postulado comum ao orador e ao
auditório. Cada um sabe que a estratégia é colocada em ação com fins
persuasivos. Neste caso – mais claramente ainda do que no caso dos
argumentos “como-se” – o estatuto da ficção é assumido, como o sugeria
Perelman:
Observariam, talvez, que o caso em que a argumentação retórica perde menos a sua eficácia, quando é percebida como expediente, é o do discurso epidíctico ou do que dele se aproxima, ou seja, o caso em que já existe certa adesão às conclusões ou em que esta deve ser somente reforçada. Seria oportuno, pensamos, pesquisar quando, e segundo quais condições, a argumentação retórica percebida como expediente pode conservar sua eficácia (2004, p. 86).
Como o havia sentido Perelman, há um verdadeiro campo de
investigação para a retórica. Tal reflexão deve forçosamente passar por um
reexame da questão da racionalidade e de seus limites. É essa reflexão que
quisemos começar neste artigo.
DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.
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PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. RYLE, Gilbert. La notion d’esprit. Pour une critique des concepts mentaux. Trad. Suzanne Stern-Gillet. Paris: Payot, 1978. SCHAEFFER, Jean-Marie. Pourquoi la fiction? Paris: Seuil, 1999. Tradução: Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra
Mestre em língua e literatura francesa pela Universidade de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Revisão da tradução: Moisés Olímpio Ferreira
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo
Docente da Fundação Liceu Pasteur
E-mail: [email protected]
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
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RACIONALIDADE JURÍDICA, ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICAi
María de los Angeles Manasseroii
Introdução
Donald Neil MacCormick (1999), em um artigo intitulado “Retórica y
Estado de Derecho” publicado pela Isegoría, propõe, a título de tópicos
contrapostos, a afirmação de que o direito é uma atividade essencialmente
argumentável, por um lado, e, por outro, a necessidade de que o Direito
realize a segurança jurídica e a certeza, como atributos próprios de um Estado
de Direito.
A afirmação a respeito da atividade argumentativa do direito é algo
compartilhado e instalado na Teoria do Direito atual. Citamos apenas os
trabalhos mais conhecidos Viehweg (1953), Perelman (1976), Alexy (1978),
MacCormick (1978), Wróblewski (1992), Aarnio (1987). Para isso, basta
constatar que todas as instâncias da atividade normativa que se desenvolvem
dentro de uma sociedade – criação, interpretação e aplicação de regras – são
acompanhadas do exercício de dar explicações e justificativas sobre a postura
mantida sobre o assunto. E isto acontece, porque o Direito é uma atividade
prática na qual se discutem tanto as consequências jurídicas que geram
determinados acontecimentos passados, como também se discute o alcance e
o sentido da diretriz de ação contida na regra jurídica.
i Referência da publicação original:
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidad jurídica, argumentación y retórica. In: OLIVEIRA, Eduardo Chagas (Org.). Chaïm Perelman: Direito, Retórica e Teoria da Argumentação. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia, 2004. p. 141-157.
ii Foi docente da Universidad Nacional del Litoral e da Universidad Católica de Santa Fé, Argentina, até 2007, quando de seu falecimento. Registramos aqui nossa homenagem.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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Esta margem de indeterminação do Direito1 se resolve em uma prática
que o próprio Direito2 se encarrega de regular, a fim de reduzir, no
procedimento e com o procedimento, a margem de incertezas de sua
atividade. Contudo, dita redução não é absoluta, o que deixa aberta a
possibilidade de mais de uma resposta correta.
Na realidade, as regras de procedimento só podem satisfazer os
aspectos formais da controvérsia e da tomada de decisão, pelas seguintes
razões, entre outras: a) não existe um método que conduza infalivelmente a
uma práxis argumentativa determinada; b) a variedade da matéria que se
submete à decisão e particularidade dos casos, próprio das questões de índole
prática; c) a necessidade de o julgador realizar ponderações em razão da
presença de valorizações por haver uma certa margem de discricionariedade.
Este último agrava-se ainda mais nos tribunais colegiados, como é o caso da
Corte Suprema com as sentenças que contêm dissidências.
Esta última apresenta-se, para Mac Cormick, como um paradoxo, uma
vez que o Estado de Direito implica predição, o que esperar da atividade
Estatal no uso do seu poder de coação jurídica, a fim de resguardar a esfera da
liberdade dos cidadãos. Como conciliá-los é o problema que se tenta resolver
o próprio autor. E o faz assinalando que no princípio do Estado de Direito está
implícito o direito de defesa, de apresentar todos os argumentos disponíveis
na medida em que estes sejam razoáveis. Pelo que o Estado de Direito, que se
apresenta à primeira vista salientando o aspecto estático do Direito, isto é, a
norma estabelecida e previamente dada, reconhece, ao mesmo tempo, um
lado dinâmico: o perfil argumentável do Direito (MacCORMICK, 1999, p. 21).
Assim, MacCormick adverte que a aceitabilidade, a sinalizada pela
argumentação, resulta “inútil se for reduzida a uma persuasividade de fato”
(1999, p. 12). Com isso, estabelece distância entre a racionalidade jurídica e a
racionalidade estratégica, instrumental a que está associado, em geral, o
discurso retórico.
Portanto, o título do artigo “Retórica e Estado de Direito” não implica
nenhuma reabilitação da primeira, exceto que, na verdade, contém de retórica
apenas a forma de tratamento do problema: tratam-se de dois tópicos –
Retórica e Estado de Direito – que, apesar de sua aparente contradição, o
1 Em relação ao tema, consultar Moreso (1997).
2 Aqui devemos considerar o sentido diferente que o termo Direito adquire, como conjunto de normas, para compatibilizar com o outro uso do mesmo termo, que permanece indeterminado.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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primeiro está implicado no segundo, mas querendo dizer, de fato,
“argumentação” no lugar de “retórica”. Parece, em consequência, que é
pouco ou nenhum o lugar que MacCormick concede à retórica, entendida
como o estudo dos meios que perseguem a persuasão, na racionalidade
jurídica. Postura que é partilhada por autores que, como o professor escocês,
trabalham com temas relativos à racionalidade no Direito.
Contudo, algumas reflexões sobre o tema merecem ser levadas a cabo, a
fim de não deixar ocultos aspectos que podem ser de utilidade para a
compreensão da racionalidade jurídica, antes de se apressar numa
desqualificação geral da retórica. Em seguida, considerar-se-á brevemente a
proposta de quem introduziu a retórica como modelo de racionalidade, a Nova
Retórica de Chaïm Perelman. Posteriormente, será feita uma breve referência
à dissolução dos elementos retóricos em outros trabalhos sobre
argumentação de Aarnio e de Alexy. Finalmente, far-se-á uma avaliação do
alcance e função da retórica na racionalidade jurídica. Com isso, pretende-se
fazer um balanço, livre de preconceitos, da virtualidade da retórica no Direito,
a fim de apontar o seu lugar correspondente.
1 A retórica como teoria da argumentação
O surgimento da retórica contemporânea no âmbito jurídico acontece
no marco de uma renovação dos estudos sobre metodologia do Direito. Assim
como, em grande parte do século XIX, a preocupação centrava-se na
racionalização do sistema jurídico a partir do qual se garantia a objetividade da
decisão judicial, o século XX caracterizou-se pelos estudos dedicados a
determinar critérios que permitissem um controle da racionalidade da
sentença. Efetivamente, superada a interpretação mecanicista e a teoria da
subsunção, que entendiam o trabalho do juiz como tarefa asséptica, mera
operação dedutiva, os empenhos teóricos voltaram-se a destacar o papel
protagonista que a pessoa do juiz exerce na determinação do direito e na cota
de “criatividade” que lhe cabe na dita função3 e, consequentemente, a
3 Concretamente e seguindo Wróblewski (1989, p. 53), destacam-se os seguintes momentos: 1) eleição da normativa do caso; 2) atribuição de significado da normativa; 3) determinação dos fatos submetidos a juízo; 4) qualificação dos fatos e 5) determinação das consequências jurídicas da normativa em relação com os fatos. Em cada uma das fases, entre as quais não é possível ordená-las nos fatos tal como aqui se apresenta, produz-se uma atividade argumentativa. Atividade cujo resultado transforma-se nos pontos considerados, na motivação da decisão em cumprimento do dever de motivação.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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determinar critérios de racionalidade da atividade argumentativa que
acompanha a decisão judicial. Isto é, por um lado organizam-se e determinam
as características do complexo processo de raciocínio judicial, ao mesmo
tempo em que, progressivamente, aperfeiçoam-se as teorias que, destacando
a assinalada atividade argumentativa do direito, oferecem critérios de
racionalidade que permitam distinguir entre bons e maus argumentos. Entre
as teorias pioneiras da argumentação, destaca-se a de Chaïm Perelman, que
propõe o modelo da retórica da racionalidade jurídica.
Ao nome do professor de Bruxelas somam-se outros, tais como:
Viehweg, Recasens Siches, Villey, que salientam a necessidade de uma
racionalidade que se adaptasse de forma mais adequada às questões próprias
do fazer jurídico. Entre eles, há os que coincidem também em voltar o olhar
para a filosofia clássica, para a lógica aristotélica no sentido amplo do termo,
contida nos Tópicos e na Retórica, como fonte de inspiração de suas
respectivas teorias. Dentro dessa orientação, em 1952, Perelman, juntamente
com Olbrechts-Tyteca, publica Rhétorique et Philosophie: pour une théorie de
l’argumentation em philosophie, e, em 1958, Traité de l’argumentation: la
nouvelle rhétorique. Por sua vez, em 1953, aparece a obra de Viehweg, Topik
und jurisprudenz. Esta recuperação do raciocínio não apodíctico da lógica
clássica obedece a uma tendência que excede o marco do pensamento
estritamente jurídico, recebendo a denominação de movimento da “Nova
Retórica”4.
No caso concreto de Perelman, a retórica é recuperada em seu perfil
lógico5 como a arte do “bom pensar” em contraste com a “arte do bem
dizer”, a retórica de estilo, da beleza da fala. Nessa perspectiva, a retórica
apresenta-se como uma lógica não formal e se desenvolve em uma teoria da
argumentação. A Nova Retórica possui, em consequência, um valor
epistemológico indubitável, ao se situar como meio ou recurso em virtude da
qual a racionalidade prática se faz possível.
4 Florescu (1970, p. 80) assinala que o ambiente da primeira metade do século passado era propício para a recuperação da retórica. Pontua, em relação a isso, o interesse dos filósofos pelos problemas da linguagem, em coincidência com o desenvolvimento da Linguística, o escasso papel da lógica formal e a revalorização da sofística. Por sua vez, García Amado (1988, p. 23), referindo-se à reabilitação da retórica, sinaliza que “o fundamento da retórica seria o ‘princípio de razão insuficiente’, a constatação de que a ausência de verdades evidentes e indubitáveis como fundamento da ação prática força um permanente processo de fundamentação e intercâmbio comunicativo, visando à convicção e ao consenso”. 5 Conforme Perelman & Olbrechts-Tyteca (1952, p. 3).
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Descreveremos, a seguir, de modo sucinto, os principais aspectos da
Nova Retórica, para depois fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, é
preciso salientar que a competência da retórica circunscreve-se ao âmbito dos
problemas práticos, em que estão em jogo pontos de vistas contrapostos,
como consequência da afirmação de valores em disputa. O império retórico -
tal como o nome que dá Perelman à sua teoria em uma publicação -
estabelece uma divisão metodológica entre o campo do conhecimento
teórico, reservado aos métodos formais e dedutivos - demonstração - e o
prático, no qual se desdobra a argumentação.
A Nova Retórica ou Teoria da Argumentação define-se como “o estudo
das técnicas discursivas que tendem a provocar ou acrescentar a adesão dos
espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 5; PERELMAN, 1968, p. 7). Ficam assim
configurados os três elementos que compõem a relação retórica: o orador, o
auditório e a ponte de comunicação, o discurso. É precisamente neste último
onde se realiza o “encontro” entre orador e auditório, onde é selado o
sucesso ou o fracasso da atividade retórica. É por isso que a argumentação
retórica requer certa preparação, certas condições que devem dar-se de
forma prévia, como se verá mais adiante.
O orador é aquele que deseja exercer influência por meio do discurso. O
caráter do orador dependerá de cada circunstância, conforme a exigência de
determinadas condições para argumentar ou não, como, por exemplo, seria o
caso do parlamento ou de um processo judicial. O auditório não se
circunscreve a um grupo reunido em uma praça pública, como na retórica
antiga, mas sim se considera como tal o conjunto daqueles aos quais chega o
discurso. Assim, o auditório pode ser composto por várias pessoas, por dois -
diálogo - e, inclusive, por um só - diálogo interior6. À ampliação do conceito de
auditório, une-se a incorporação do auditório universal, regulador da
racionalidade prática, aporte mais relevante e discutido de Perelman. Mas,
antes de considerá-lo especificamente, convém tratar do terceiro elemento.
O discurso retórico, como se indicou, requer certas condições que
devem ocorrer de forma prévia. Uma delas é a realização do que Perelman
chama de “contato intelectual” entre os participantes do discurso, o que
supõe: a existência de uma linguagem comum, regras de conversação, a
6 Com este último caso, Perelman quer incluir também, dentro do âmbito retórico, as decisões e escolhas individuais.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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atribuição de valor à adesão do interlocutor e a disponibilidade para ouvir7.
Por sua vez, para que o contato efetivamente ocorra é necessário captar a
atenção do interlocutor. Assim, outro aspecto relevante é o conhecimento
que o orador tem do seu auditório8. Deste conhecimento depende o sucesso
da argumentação. Por isso, Perelman afirma que “a argumentação efetiva
emana do fato de conceber ao suposto auditório o mais próximo possível da
realidade” (1992 [1958], p. 56). A partir do conhecimento do auditório, quanto
às convicções, princípios e hierarquia de valores que sustenta, o orador
construirá as premissas de partida da argumentação, instância denominada
“os acordos prévios” da argumentação. Como se pode notar, tanto o contato
intelectual, que proporciona uma comunicação e entendimento, quanto os
acordos de base da argumentação, próprios do discurso retórico, criam a
opinião comum, endoxas, necessárias para o desenvolvimento do silogismo
típico da retórica, o entinema ou silogismo abreviado, no qual algumas de suas
premissas tornam-se implícitas, pressupostas.
Pelo descrito até agora, cabe advertir que a retórica supõe uma teoria do
conhecimento em que a afetividade dos interlocutores exige uma função não
inferior à compreensão dos problemas nos quais estão implicados princípios e
valores. Em outras ocasiões, o mesmo autor afirma que a retórica aponta em
direção ao homem total, compreendendo, com esta expressão, a razão e os
afetos, a vontade. E isso é assim, porque a finalidade da retórica é mover-se
em direção à ação graças à persuasão. Porém, antes de aprofundar nisto, é
necessário concluir a dinâmica da retórica, tratando do binômio que a
governa: a adesão-adaptação.
O discurso fica compreendido como o conjunto de argumentos que o
orador elabora para conseguir a adesão do auditório. Para isso, o discurso
deve estar adaptado ao auditório para este possa compreendê-lo e, desse
modo, assentir aos seus argumentos. Por isso, afirma-se que a qualidade do
discurso depende da qualidade do auditório ao qual se dirige (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 32). Perelman sustenta que, na
argumentação, “o importante não está em saber o que o próprio orador
7 Em relação à existência de uma linguagem comum, um acordo prévio implícito nas normas da vida social sobre a forma de conversação, atribuição de valor à adesão do interlocutor e estar disposto a ouvir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 19ss).
8 Na retórica clássica constitui o que se conhece como psicagogia, a análise psicológica do auditório para a construção de uma argumentação que consiga captar e influir no ânimo do público que o compõe.
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considera verdadeiro ou convincente, mas sim qual é a opinião daqueles aos
quais se dirige a argumentação” (1992 [1958], p. 31). A Teoria da
Argumentação, explicita na própria obra, pertence à ordem “adaptativa”,
querendo significar este termo a ausência de qualquer critério, regra ou
método discursivo (1992 [1958], p. 672). Isto explica que os esquemas de
argumentação, agrupados em técnicas de associação e dissociação de ideias,
analisados no Tratado e que constitui a maior parte da obra, só se limitam a
descrever o funcionamento dos mesmos, pontuando os efeitos que
conseguem no auditório.
Portanto, tal como se deve esperar de uma proposta retórica, o
auditório determinará a ordem, qualidade, extensão e, em grande medida, o
conteúdo do discurso. Em consequência, a adesão obtida pelo orador não
poderá ser transferida para outro auditório, alcançando um acordo de fato
que garante uma racionalidade circunscrita aos limites do auditório. A
superação de tal parcialidade se realiza com a introdução do conhecido
auditório universal, que exige uma argumentação que apela não às paixões,
mas às razões9. O discurso que se dirige ao auditório particular caracteriza-se
pela persuasão e o apelo ao universal, à convicção (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 1992 [1958], p. 67), a argumentação dirigida a ele adquire a categoria
de racional. A intencionalidade do alcance que o orador pretende dar à sua
argumentação é que opera a distinção entre a persuasão e a convicção, uma
vez que é o orador, definitivamente, quem constitui o auditório. Em outras
palavras, o auditório, tanto o particular quanto o universal, são construídos
pelo orador, na medida em que deve se formar uma ideia tanto de um quanto
do outro. O primeiro, que existe de fato, para conhecê-lo e adaptar-se, do
segundo, que não existe de fato, mas sim de direito, para buscar
argumentações que, superando as parcialidades, alcancem o caráter de
imparcialidade. A argumentação frente a este auditório exige que o orador
pense em contra-argumentos e pondere a virtualidade do consenso universal
que possa obter sua argumentação. Esta pauta normativa do auditório
completa-se com o princípio de inércia, que impõe dar razões apenas no caso
em que se propicie a mudança:
9 “Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer ao leitor de caráter crucial das razões alegadas, de sua evidência, de sua validade atemporal e absoluta, independente das contingências locais e históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 72).
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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[...] a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e valorizá-lo, já que se trata de uma situação existente, de uma opinião admitida ou de estado de desenvolvimento contínuo ou regular. A mudança, pelo contrário, deve se justificar; uma decisão, uma vez tomada, só pode ser mudada por razões suficientes (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 189).
Não é o objetivo do presente trabalho analisar os problemas que cercam
o conceito de auditório universal, mas sim destacar os aspectos retóricos da
teoria de Perelman10. No geral, e como será oportuno considerar, é aplaudida
a introdução de um auditório normativo, o auditório universal, como medida
de objetividade, de racionalidade dos argumentos. Entretanto, com a
introdução do auditório universal, abandona-se uma postura de puro corte
retórico. Tendo em vista que, de acordo com a retórica clássica, esta é “a
faculdade de considerar em cada caso o que cabe para persuadir”
(ARISTÓTELES, 1990 [c. 400 a.C.], 1355b, p. 25); a Nova Retórica, com o
auditório universal, afasta-se daquela finalidade, já que, diante de um
auditório ideal, não têm lugar as técnicas de persuasão que supõem a
existência de seres concretos.
Permanecem ainda alguns aspectos da Nova Retórica por desenvolver,
mas, para o propósito que se pretende aqui, o exposto já é suficiente.
Fazendo um balanço, deve-se pontuar o seguinte. Em primeiro lugar, a Nova
Retórica se oferece como uma via alternativa para a racionalidade prática. A
intenção do seu autor não é meramente metodológica, pois aspira constituir-
se em um modelo de racionalidade prática, a racionalidade retórica como
razão histórica, contextualizada, porém sem abandonar a pretensão da
universalização. A equação de harmonizar ambos os aspectos não deixa de
trazer problemas para o seio da teoria, posto que a leva a uma situação de
tensão entre ambas de difícil equilíbrio. A retórica é resgatada para ocupar um
lugar que excede seu objetivo de acordo com a tradição aristotélica. A Nova
Retórica pretende constituir-se em um âmbito graças ao qual o juízo de valor
se objetiva. Mas, se bem que não se pode admitir esse último, não cabe
apenas fazer uma desqualificação da retórica. Na Teoria de Perelman, a base
principal do ponto de vista retórico gira, sem dúvidas, em torno da ideia de
auditório. Este elemento obriga que sejam considerados os aspectos
circunstanciais, históricos e sociais próprios dos problemas práticos. De tal
maneira, o auditório desenha um contorno ou entorno a partir do qual a
argumentação toma corpo e se desenvolve, ao provê-la dos elementos que se
10 Para isso, veja Manassero (2001).
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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incorporam na atividade argumentativa do orador. A presença do auditório,
portanto, não é meramente passiva, não se limita a escutar e deixar-se seduzir
pela argumentação persuasiva, mas sim impõe, em certa medida, seus pontos
de vista, que deverão ser considerados pelo orador se quiser ser atendido em
seu discurso. Por isso, o discurso retórico não é absolutamente monológico,
apesar do protagonismo do orador. Em todo caso, realiza certa
intersubjetividade, ainda que atenuada pela mediação do orador, que tem de
testar o grau de adesão que obtém sua argumentação.
Finalmente, se avaliamos a Nova Retórica como teoria da argumentação,
devemos salientar que esta realiza um tipo de redução dos argumentos ao
deixar de lado os argumentos dedutivos. Neste ponto, o problema se explica
pela incompreensão de seu autor, que estabelece uma brecha insuperável
entre os métodos dedutivos e retóricos. Na retórica clássica, pelo contrário, o
argumento retórico por excelência é o entimema que, como já foi
mencionado, trata-se de um silogismo abreviado: a demonstração retórica. As
subsequentes propostas argumentativas, pelo contrário, caracterizam-se por
fazer uso da lógica formal na explicação e desenvolvimento das formas dos
argumentos.
2 A superação da retórica nos trabalhos de Robert Alexy e Aulis Aarnio
A razão de haver eleito os trabalhos de Roberto Alexy (1989) e de Aulis
Aarnio (1991) é que ambos recorrem a Perelman, em seus respectivos estudos,
deixando de lado, porém, a perspectiva retórica na racionalidade.
Alexy (1989), na introdução de sua obra, afirma que seu propósito é
elaborar um modelo “que, por um lado, permita ter em conta as convicções
estendidas e os resultados das discussões jurídicas precedentes e, por outro
lado, deixe espaço aos critérios do correto” (1989, p. 31). Para isso, submete à
revisão crítica algumas das teorias da racionalidade prática, com o objetivo de
ressaltar os pontos resgatáveis de cada uma delas, de tal modo que sirva de
marco de referência para construção de seu modelo. A revisão compreende
quatro teorias, indo da ética analítica, passando pela teoria de Habermas, a
escola de Erlangen e, finalmente, chegando à Teoria da Argumentação de
Perelman.
Em relação a Perelman, o que Alexy propõe é averiguar se,
efetivamente, ele consegue fundamentar uma “teoria consistente da
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racionalidade prática” (1989, p. 157) a partir da qual será viável um uso prático
da razão. Destaca a pretensão lógica da retórica perelmaniana e o conceito
básico da teoria: a ideia de auditório. Conceito que implica, por sua vez, o de
adesão, que deve manter-se em cada passo do discurso, desde as premissas à
conclusão, de modo que a função dos esquemas de argumentação é influir no
auditório. De acordo com Alexy, retrai-se, em consequência, a pretensão
lógica da teoria e se destaca um perfil descritivo e psicológico da
argumentação. Isso motiva a crítica de Alexy pela falta de um tratamento dos
esquemas de argumentação desde o instrumental oferecido pela lógica
contemporânea. Não obstante, Alexy resgata o papel normativo que cumpre
o auditório universal. Se os juízos práticos alcançam o consenso do auditório
universal, permanecem fundados. De todo modo, para o autor, esse critério
resulta insuficiente basicamente por duas razões. Por um lado, porque está
escassamente explicado e desenvolvido na teoria, permanecendo a cargo do
orador forjar a ideia de auditório universal. Por outro lado, a apelação ao
auditório universal seria uma razão necessária de argumentação racional, mas
não suficiente, posto que somente afirma o princípio de universalização: quem
dá uma razão deve ser aceita por todos para que seja racional. Nisto encontra
semelhança com a habermarsiana situação ideal de diálogo. Porém, afirma
Alexy: “não se proporciona nenhuma via que conduza com segurança a um
consenso fundamentado” (1989, p. 169). É claro que Alexy está pensando aqui
nas pautas que guiam o procedimento de obtenção do consenso universal.
Assim, é insuficiente a retórica com a pretensão de universalidade de
Perelman – que só indica o ponto de partida, o admitido e aceito pelo
auditório e o ponto de chegada – alcançar o acordo universal. Tampouco
parece suficiente o princípio de inércia que indica que é preciso somente
justificar a mudança, somente aquele que propõe a mudança deve
argumentar, sendo que não indica em que caso cabe a mudança e como se
deve resolver a mesma.
Em suma, Alexy (1989, p. 172) resgata a ideia de auditório universal,
associando-a à situação ideal de diálogo de Habermas, a combinação da
aspiração a uma universalidade desde uma argumentação situada sócio-
historicamente e, portanto, a impossibilidade de chegar a uma única resposta
correta, o que significa a abertura à tolerância.
Por sua vez, Aarnio (1991) não propõe construir uma teoria da
argumentação como tal, mas sim realizar um estudo abrangente da
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interpretação jurídica que combine elementos analíticos e normativos, com a
finalidade de esclarecer os requerimentos que implica a ideia de justificação,
em que se deve indagar a correção do resultado da interpretação (1991, p. 59).
O trabalho de Aarnio revaloriza a contribuição teórica oferecida pela disciplina
filosófica para a compreensão da tarefa do jurista, de modo que seu estudo
harmoniza três propostas filosóficas diferentes: a filosofia da linguagem do
último Wittgenstein, a teoria de Habermas e a Nova Retórica de Perelman. As
duas primeiras são as que incidem de forma mais pronunciada em seu
pensamento, retendo de Perelman a ideia de auditório. Ele aborda o tema no
último capítulo de sua obra, dedicado à aceitabilidade de um enunciado
interpretativo. Igualmente a Alexy, Aarnio (1991, p. 280) destaca o auditório
como a ideia central da Nova Retórica, salientando que a justificativa tem
lugar sempre perante o outro, seja este concreto, um ou vários, auditório
particular ou imaginário, auditório universal. Rapidamente, Aarnio ignora o
problema da argumentação dirigida ao auditório particular – persuasão –
regida pela eficácia, preocupando-se em assinalar o papel do auditório
universal, graças ao qual as valorizações alcançam objetividade. Mas também
afirma a ambiguidade do conceito de auditório universal, porque é ideal,
porém circunstanciado social e culturalmente. Para obter melhores
rendimentos teóricos, Aarnio propõe a distinção entre audiência concreta e
ideal e audiência universal e particular.
A combinação de ambos os termos resulta em quatro classes de
audiência: a) audiência concreta universal; b) audiência concreta e particular;
c) audiência ideal universal; d) audiência ideal particular. Esta distinção
permite-lhe analisar, entre as diferentes classes de audiências, aquela que
reúne melhores condições para desenvolver a ideia de “aceitabilidade
racional”. Descarta a audiência concreta ideal, entendendo-a como aquela que
se configura a todos os homens racionais viventes em um dado momento.
Além de ser quase impossível sua configuração, porque se alteraria a cada
instante, também é impossível alcançar a aceitação de todos os seus
componentes (AARNIO, 1991, p. 283). Deixa de lado também a audiência
particular e concreta, o auditório particular de Perelman, porque, embora se
possa obter aí a aceitação, esta poderia se dar sobre a base de uma
argumentação não racional, persuasiva. A audiência ideal universal, o auditório
universal de Perelman, tampouco satisfaz a Aarnio, porque em sua opinião
significa admitir a evidência de critérios valorativos, tese que o autor não
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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admite por aderir a um relativismo axiológico. Finalmente, permanece de pé a
audiência ideal particular. Ideal, porque seus componentes se comprometem
a se deixar convencer somente pelos meios racionais, cumprem as condições
e seguem as regras do discurso racional. Particular, porque compartilham um
conjunto de valores, uma forma de vida (AARNIO, 1991, p. 284). Nesse
aspecto, aproxima-se do auditório particular perelmaniamo. Uma audiência
semelhante permite desenvolver a ideia de aceitabilidade racional, posto que
seus componentes movimentam-se racionalmente e partem de valores
concretos e vigentes em uma comunidade. A partir daí, Aarnio obtém um
princípio regulador para a racionalidade jurídica, o da aceitabilidade racional
que reza assim: “a dogmática jurídica deve tentar alcançar as interpretações
jurídicas que puderam contar com o apoio da maioria em uma comunidade
jurídica que refletem racionalmente” (AARNIO, 1991, p. 286). A argumentação
acerca dos valores será racional se conseguir produzir o consenso de um
auditório assim concebido, ou ao menos a maioria deste auditório. Salva-se a
racionalidade do discurso jurídico ao introduzir um critério regulador do
mesmo.
Esta breve consideração da prova da orientação que tomaram os
estudos sobre racionalidade jurídica posteriores a Nova Retórica. Comparando
os autores resenhados, ambos coincidem em resgatar a ideia de auditório, isto
é, a ideia de uma racionalidade constituída intersubjetivamente que a Nova
Retórica insinuou, mas não desenvolveu. O ponto de dissidência entre ambos
é o auditório que revalorizam. Enquanto Alexy resgata a ideia de um auditório
universal, graças ao qual os juízos de valor se objetivam, Aarnio toma a ideia
do auditório particular, concebendo-a com a exigência de que seus membros
se conduzam racionalmente. A explicação é simples e se deve às diferentes
posturas éticas que esses autores defendem. Alexy, inscrito na orientação da
filosofia de Habermas, inclina-se a um universalismo ético; Aarnio, tomando a
ideia das “formas de vida” de Wittgenstein, mantém-se dentro de um
relativismo axiológico. Mas, para além desta diferença, ambas as teorias
coincidem em desqualificar a argumentação persuasiva do auditório
particular, concentrando-se em aperfeiçoar os critérios da racionalidade
jurídica que a Nova Retórica deixou pendente de resolução, segundo seus
pontos de vista. Desta forma, Alexy encontra suas soluções nas regras do
discurso racional, ao passo que Aarnio, no critério da aceitabilidade racional.
Nessa linha, também contribuíram trabalhos de outros autores, tais como
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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MacCormick, Atienza entre outros. Desse modo, isto significa a saída da
retórica em relação a racionalidade jurídica? No próximo ponto, procurar-se-á
justificar seu aporte.
3 Retórica e racionalidade jurídica, seu alcance, função e limites
Em primeiro lugar, não se admite a ideia de uma razão retorizada, ou
uma racionalidade retórica se por tal expressão se pretende imprimir uma
distorção ontológica ao termo. Já se advertiu anteriormente que a Nova
Retórica distorce a função da retórica ao concebê-la como “modelo” de
racionalidade prática. Talvez este seja um erro de excesso provocado pelo
dualismo epistemológico de Perelman que distinguia, claramente, o âmbito
teórico, da prova demonstrativa, do âmbito prático, o das argumentações.
Porém, advertidos do erro, este não deve levar à recusa da retórica como tal.
Para isto, é preciso perguntar em sua natureza, objeto, alcance, segundo sua
gênesis para lhe devolver o lugar que lhe corresponde dentro da racionalidade
prática.
A Retórica reconhece uma origem judicial na Sicília, com os tratados de
Corax e Tisias, mas é com Aristóteles que se alcança sua sistematização e
categoria de técnica ou arte. A partir daí, é que se pode tomar o texto de
Aristóteles como base de análise. Assim, a primeira afirmação feita pelo
estagirita é o vínculo da retórica com a dialética11:
A Retórica é correlativa da Dialética, pois ambas tratam de coisas que em certo ponto são de conhecimento comum a todos e não correspondem a nenhuma ciência determinada. Por isso, todos, de certo modo, participam uma e outra, já que todos, até certo ponto, procuram inventar ou opor uma razão e se defender e acusar (ARISTÓTELES, 1990 [c. 400 a.C.], 1354).
Ambas configuram uma técnica de raciocínio sobre determinadas
questões, não sendo próprios da retórica os recursos externos à razão que
apenas se encaminham para sensibilizar o árbitro12. O objeto da retórica são
os argumentos retóricos, e este é por excelência o entimema. O entimema é
um silogismo cujo objeto é o verossímil. Assim afirma Aristóteles:
11 Para Reboul (1991, p. 161), a afirmação inicial da Retórica sobre ela ser a antístrofe da dialética é uma provocação que Aristóteles fez a seu mestre Platão, que havia condenado a retórica e exaltado a dialética.
12 Aristóteles (1990, Livro I, 1354a) afirma que “não se deve perverter o juiz, levando-o à cólera ou à compaixão, o que distorceria a regra que se pretende utilizar”.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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[...] tanto o verdadeiro como o verossímil são próprios da mesma faculdade, já que os homens são suficientemente capazes para a verdade e a alcançam na maior parte; por isso ter hábito de conjecturar frente ao verossímil é próprio de quem também está com o mesmo hábito em relação à verdade (ARISTÓTELES, 1990, Livro I, 1355).
Como se desprende do anterior, a retórica é uma técnica de
argumentação racional, mesmo que diferente do silogismo científico em razão
da matéria da qual trata o verossímil, o plausível. A retórica, como técnica,
adapta-se ao seu objeto. Se a matéria sobre a qual raciocina admite ser de
outra maneira, não é adequado pretender um raciocínio rigoroso. Na Ética a
Nicômano, Aristóteles (1967) salienta que é:
[...] próprio do homem culto não se afobar em conseguir a precisão em cada gênero de problemas, sem tomar consciência da natureza do assunto. Igualmente absurdo seria aceitar de um matemático raciocínios de probabilidade como exigir de um orador demonstrações conclusivas (ARISTÓTELES, 1967, Livro I, 1094b).
A retória é então a arte de raciocinar sobre os contrários, não porque
sejam equivalentes. A esse respeito, diz Aristóteles (1990) que “não se deve
persuadir o mal” se não for para conhecer o contra-argumento e desfazê-lo, e
acrescenta que “sempre o verdadeiro e o bom são naturalmente de raciocínio
melhor tramado e mais persuasivo, por dizê-lo absolutamente” (Livro I, 1355).
Mas, além disso, a finalidade da retórica é buscar os meios para
persuadir e não simplesmente persuadir, tal como o faz a sofística. Esta última
tem por finalidade obter a persuasão ainda por meio dos argumentos
erísticos, isto é, aqueles que parecem raciocínios, mas não o são
(ARISTÓTELES, 1988, 65 b5). Assim, a crítica e a desqualificação devem recair
sobre esta e não sobre a retórica.
Dentre os meios para persuadir, além dos meios lógicos (o entimema e o
exemplo), estão os que apelam para o aspecto afetivo da persuasão: aqueles
que se referem ao ethos e ao pathos. O primeiro é relativo ao caráter do
orador, ao prestígio deste enquanto disposição ética e moral13, ao passo que o
pathos é relativo às emoções que o discurso desperta no auditório14. Talvez
este seja um dos aspectos da retórica que oferece certas dificuldades em sua
13 “Pelo caráter, quando o discurso se diz de tal maneira que se faz digno de fé ao que o diz, pois cremos mais e antes nas pessoas decentes, e sobre qualquer questão, em geral, e nas que não há segurança mas também duvida por completo”, Retórica, 1356 a 5.
14 Cf. Retórica, 1356 a 15.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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compreensão e faz de seu nome um termo pejorativo. O caminho para
entender o valor do aspecto afetivo da argumentação retórica é começar
salientando a particularidade do conhecimento prático em Aristóteles. Em
primeiro lugar a finalidade do conhecimento ético não é meramente teórica,
mas sim prática:
Nossa tarefa atual, diferentemente das outras, não tem por fim a especulação. Não empreendemos esta pesquisa para saber o que é a virtude – o que não teria nenhuma utilidade –, mas para chegar a ser virtuosos (ARISTÓTELES, 1967, Livro II, 2, 1103b).
Prático é o conhecimento cuja compreensão e realização se resolvem em
ações. Por isso, em segundo lugar, o conhecimento prático é contingente,
nada tem de estável e de absolutamente certo15. Considerando ambos, a
retórica como técnica argumentativa da práxis que move os afetos pelo
discurso, cumpre uma função pedagógica (REBOUL, 1991, p. 11). Na
argumentação sobre questões práticas, em que se trata do que é correto,
justo ou bem fazer, o prestígio ético da pessoa que argumenta não é algo a se
desdenhar, porque aquele que pratica a justiça e a bondade é quem sabe
elaborar melhores argumentos. E, da mesma forma, carece de importância a
afetividade que o discurso desperta no auditório, pois compreenderá melhor o
juízo acerca da bondade, justiça ou equidade, como de qualquer virtude, quem
estiver disposto a escutar e for conduzido a uma captação integral do
problema apresentado.
Chegando a este ponto, cabe perguntar-nos pelo papel da retórica na
racionalidade jurídica. Descartado seu papel de modelo de racionalidade, a
retórica cumpre uma função mais modesta, porém significativa. Como técnica
ou arte que busca os meios para persuadir, tem seu lugar no discurso de
justificativa da decisão judicial, porque é ali onde pode servir de ferramenta
para o juiz decisor que deve fundamentar seu juízo. Mas, diferente de uma
teoria da argumentação, a retórica não oferece nenhum critério normativo
externo aos argumentos para avaliar sua racionalidade. A retórica, por ser
uma arte, não é boa nem má em si, em todo caso, cabe ao orador os dizeres
qualificativos. Por isso, os argumentos retóricos só podem ser qualificados
15 “Deve também conceder-se preliminarmente que todo discurso sobre a conduta prática há de expressar-se somente em generalidades e não com exatidão, já que, como dissemos no início, o que se deve exigir de todo o raciocínio é que seja adequado a sua matéria; agora, tudo o que concerne às ações e a sua convivência nada tem de estável, como tampouco no que corresponde a saúde” (ARISTÓTELES, 1967, Livro II, 2, 1104a).
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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como mais ou menos persuasivos, mas não de argumentos corretos ou
incorretos, sem que por eles se possa afirmar a irracionalidade do seu
discurso. Não podemos esquecer que a persuasão é fruto de uma
argumentação que é racional, utiliza do silogismo abreviado para persuadir. A
normatividade da argumentação retórica é intrínseca à matéria que se debate.
Por outro lado a retórica tem o acerto de localizar a racionalidade prática
no contexto histórico-social, porque obriga a considerar a quem se dirige a
argumentação pela qual se justifica uma pauta de ação. Este aspecto é
relevante para a racionalidade prática em sua função de aplicação de uma
norma geral ao caso particular, como é a problemática própria da metodologia
do direito. Não é o da universalidade, mas como afirma Klaus Günther (1995),
o do “ajuste”, da norma geral ao caso concreto, a “faculdade de juízo” em
termos kantianos, e o problema da “prudência” em termos clássicos. Daí que
aspirar a uma racionalidade universalista não é próprio a essa instância, na
qual, pelo contrário, as peculiaridades e circunstâncias que rodeiam cada caso
resultam ser o mais importante a considerar se quiser realizar um juízo não
meramente racional – em sentido formal – mas também correto em sentido
material, realização dos valores de justiça e equidade.
Começou-se salientando que a renovação das propostas metodológicas
no século XX surgiu como esgotamento de um modelo de racionalidade que
depositava nos métodos dedutivos a garantia de uma racionalidade objetiva.
Nas propostas atuais, a depositária dessa confiança passou às teorias da
argumentação. Elas significaram e significam uma importante contribuição
para a reflexão da racionalidade prática, mas é preciso precaver-se de não
incorrer no erro consistente, no empenho por aperfeiçoar os critérios que
garantam uma racionalidade objetiva no contingente, pois talvez se caía numa
armadilha e num engano maior do que se atribui à ação da retórica.
MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.
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REFERÊNCIAS
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Graduanda em Letras/Espanhol pela Universidade Estadual de Santa Cruz.
E-mail: [email protected]
Raquel da Silva Ortega
Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
E-mail: [email protected]
Revisão da tradução: Eduardo Lopes Piris
Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
E-mail: [email protected]
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Universidade Estadual de Santa Cruz Reitora: Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro Vice-Reitor: Evandro Sena Freire
Departamento de Letras e Artes Diretor: Samuel Leandro Oliveira de Mattos Vice-Diretora: Lúcia Regina Fonseca Netto Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16 Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/dla/index.php Fone/Fax: 55 73 3680-5088
EID&A Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação ISSN 2237-6984 Editores Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio Ferreira Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/revistas/eidea