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Universidade Estadual de Santa Cruz · álogo com as noções scurso e prática scursiv a que foram apresenta s por Foucault em suas pesquisas empreen s ao longo mais vinte anos

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Universidade Estadual de Santa Cruz Reitora: Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro Vice-Reitor: Evandro Sena Freire

Departamento de Letras e Artes Diretor: Samuel Leandro Oliveira de Mattos Vice-Diretora: Lúcia Regina Fonseca Netto Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16 Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/dla/index.php Fone/Fax: 55 73 3680-5088

EID&A Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação ISSN 2237-6984 Editores Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio Ferreira Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/revistas/eidea

EID&A: Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação Departamento de Letras e Artes – Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16, Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil [email protected] Editores Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira Comitê de Leitura Ana Maria Di Renzo (UNEMAT) Ana Zandwais (UFRGS) Anna Flora Brunelli (UNESP) Carlos Piovezani (UFSCar) Christian Plantin (ICAR/CNRS) Cristian Tileaga (U.Loughborough) Christiani Margareth de Menezes e Silva (UESC) Eduardo Chagas Oliveira (UEFS) Edvânia Gomes da Silva (UESB) Eliana Alves Greco (UEM) Emília Mendes Lopes (UFMG) Eugenio Pagotti (UFS) Evandra Grigoletto (UFPE) Fabiana Cristina Komesu (UNESP) Fabiele Stockmans de Nardi (UFPE) Galia Yanoshevsky (U.Tel-Aviv) Gilberto Nazareno Teles Sobral (UNEB) Grenissa Bonvino Stafuzza (UFG) Guylaine Martel (U. Laval) Helena Nagamine Brandão (USP) Isabel Cristina Michelan de Azevedo (UFS) Ivo José Dittrich (UNIOESTE) John E. Richardson (U.Newcastle) José Niraldo de Farias (UFAL) Juan Eduardo Bonnin (UBA) Juan Marcelo Columba-Fernández (UPEA) Juciane dos Santos Cavalheiro (UEA) Leonildo Silveira Campos (UMESP) Lineide Salvador Mosca (USP) Luciana Salazar Salgado (UFSCar) Luciano Novaes Vidon (UFES) Manuel Alexandre Júnior (U.Lisboa) Marc Angenot (U.MacGill) Márcia Regina Curado Pereira Mariano (UFS) Maria Adélia Ferreira Mauro (FOCSP)

Maria Alejandra Vitale (UBA) Maria Amélia Chagas Gaiarsa (UCSAL) Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago (UFG) Maria Eliza Freitas do Nascimento (UERN) Maria Emília de Rodat de A. Barreto Barros (UFS) Maria Helena Cruz Pistori (PUCSP) Maria Rosa Petroni (UFMT) Maria Teresinha Py Elichirigoity (UFRGS) Marianne Doury (CNRS) Marie-Anne Paveau (U.Paris XIII) Marinalva Vieira Barbosa (UFTM) Marisa Grigoletto (USP) Maurício Beck (UFF) Nelson Barros da Costa (UFC) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP) Pedro Luis Navarro Barbosa (UEM) Ricardo Henrique Resende de Andrade (UFRB) Rui Alexandre Grácio (U.Nova de Lisboa) Ruth Amossy (U.Tel-Aviv) Ruth Wodak (U.Lancaster) Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP) Sírio Possenti (UNICAMP) Sophie Moirand (U.Paris III) Soraya Maria Romano Pacífico (USP) Thierry Guilbert (U. Picardie) Valdemir Miotello (UFSCar) Valdir Heitor Barzotto (USP) Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC) Viviane Cristina Vieira Sebba Ramalho (UnB) Viviane de Melo Resende (UnB) Wander Emediato de Souza (UFMG) William Augusto Menezes (UFOP) William M. Keith (U.Wisconsin) Zilda Gaspar Oliveira de Aquino (USP)

Revisores Denise Gonzaga dos Santos Brito • Roberto Santos de Carvalho Capa e logotipo Laurenci Barros Esteves

Diagramação Eduardo Lopes Piris

SUMÁRIO

ARTIGOS INÉDITOS

05 A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault Alex Pereira de Araújo

22 Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais Clarice Lage Gualberto

42 As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook Cláudio Henrique de Souza Pires & Daglécia dos Santos Pinto

56 Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara Dorgelès Houessou

74 A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local Flávio Passos Santana & Márcia Regina Curado Pereira Mariano

89 O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise Franciele Graebin

108 A ambiguidade dos letrados e o ensino da língua materna no Brasil João Wanderley Geraldi

122 Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo Marcio da Silva Oliveira

137 Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado Marie-Anne Paveau

162 O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso Melliandro Mendes Galinari & Marcos Vieira de Queiroz

180 Pietà, de Bellini, e Pietà with Courtney Love, de Lachapelle: uma análise discursiva e comparativa Renata Aiala de Mello

199 Argumentação e cena da enunciação em televangelhos Sarah Menoya Ferraz

218 Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria Soraya Maria Romano Pacífico

TRADUÇÕES

235 A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico Emmanuelle Danblon

248 Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica María de los Angeles Manassero

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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A “NOÇÃO DE FÓRMULA” DE KRIEG-PLANQUE SOB A ORDEM DO

DISCURSO DE FOUCAULT

Alex Pereira de Araújoi

Resumo: Este artigo empreende uma discussão acerca da noção de fórmula discursiva nos trabalhos de Krieg-Planque e de um possível diálogo com o trabalho desenvolvido por Foucault, sobretudo, a partir do modo como o filósofo percebe o discurso, uma vez que ambos pertencem a uma tradição epistemológica francesa. Dessa forma, vamos adentrar pelo percurso de lapidação da noção de fórmula, tomando, para isso, a entrevista que Krieg-Planque concedeu a Philippe Schepens do Laboratoire de Sémio-linguistique, didatique e informatique (LASELDI) e do livro A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico, trabalhos que representam para nós brasileiros uma espécie de introdução à discussão sobre a noção de fórmula proposta por Krieg-Planque no campo da Escola Francesa de Análise do Discurso (AD). Nessa discussão, vamos perceber que toda fórmula discursiva traz consigo uma densidade histórica apoiada em pré-construídos que estão voltados para as novas construções, tal qual propunha Foucault acerca das práticas e das materialidades discursivas em sua arqueologia do saber e em sua genealogia do poder.

Palavras-chave: Discurso. Fórmula Discursiva. Lugares Discursivos. Ordem do Discurso.

Abstract: This article wages a discussion about the notion of discursive formula in the work of Krieg-Planque and a possible dialogue with the work of Foucault, especially from the way the philosopher sees the discourse, since both belong to a epistemological French tradition. Thus, we enter the trajectory of the notion of formula based on the Krieg-Planque interview granted to Philippe Schepens the Laboratoire de Sémio-linguistique, didatique e informatique ( LASELDI ) and the book The notion of formula discourse analysis: theoretical and methodological framework, which represents for Brazilians a kind of introduction to the discussion of the notion of formula proposed by Krieg-Planque in the field of French School of discourse Analysis (DA). In this discussion, we will notice that all discursive formula brings a historical density that materialized in his movement based on pre - built that aim new constructions, just like the way Foucault proposed materiality of discourse in his archeology of knowledge and in his genealogy of power.

Keywords: Discourse. Discursive Formula. Places Discursives. Order of Discourse.

i Doutorando pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Brasil. E-mail: [email protected].

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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Introdução

Este artigo apresenta uma discussão acerca da noção de fórmula

discursiva tomada por Krieg-Planque, em suas análises, e de um possível

diálogo com as noções de discurso e de prática discursiva que foram

apresentadas por Foucault em suas pesquisas empreendidas ao longo de mais

de vinte anos. Nesta discussão, buscamos evidenciar que há relações entre a

noção de fórmula discursiva reelaborada por Krieg-Planque com o trabalho de

Foucault por meio do caráter social e político que permeiam as noções e os

conceitos operados por estes autores em suas análises.

Inicialmente, buscamos tratar do percurso epistemológico da noção de

discurso ainda no Estruturalismo1 em uma breve história para, em seguida,

tratar do trabalho de Foucault e da inscrição de Krieg-Planque no campo da

Escola Francesa de Análise do Discurso. Mas o objetivo principal desta

discussão é mostrar como o trabalho de Foucault influenciou e continua

influenciando os estudos realizados pela Análise do Discurso, ou seja, que a

noção de fórmula discursiva é tributária das questões do discurso levantadas

por Foucault.

Dessa forma, tomamos como ponto de partida a primeira metade do

século XX, quando, sob a égide do Estruturalismo Francês “tudo se torna

discurso” - assim explicava Jacques Derrida, em sua célebre conferência na

Universidade de Johns Hopkins (Baltimore) ao falar sobre A estrutura, o signo

e o jogo no discurso das ciências humanas, ao público americano. Sem dúvida,

“este momento foi aquele em que a linguagem invadiu a problemática

universal” (DERRIDA, 1995, p. 232).

Nesta perspectiva, podemos dizer que, ao colocar o discurso como

centro das suas discussões, o estruturalismo conseguiu penetrar nas

Humanidades, ou seja, na antropologia, na crítica literária, na psicanálise, no

marxismo, na história, na teoria estética e nos estudos da cultura popular,

transformando-se em um poderoso e globalizante referencial teórico para a

análise semiótica e linguística da sociedade, da economia e da cultura, vistas

agora como sistemas de significação (Cf. PETERS, 2000).

Mas é apenas na segunda metade do século XX, com Michel Foucault,

filósofo francês, que se conhece qual a ordem do discurso. Dessa forma,

1 Não fazemos diferenciação entre Estruturalismo e Pós-Estruturalismo nessa discussão por conta do espaço.

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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Foucault se notabilizou e fez seu discurso2 se notabilizar ao desenvolver uma

arqueologia do saber num momento em que se buscava ora escapar da força

da égide do estruturalismo francês, ora revisar métodos e teorias usados nas

análises históricas, de até então. Foucault vai tomar o discurso como objeto

em todas as suas análises.

Nesse seu projeto, apresentou-nos de forma contundente uma descrição

empírica que se alternava com uma análise teórica. E o conceito (ou

conceitos) de discurso produzido(s) por ele estava(m) a serviço de suas

pesquisas de descrição empírica e das análises teóricas quando buscava

desarmar a ordem dos discursos. Nessa perspectiva, todo discurso tem uma

ordem que pode ser (des)armada (FOUCAULT, 1996); e, por que não

pensarmos também nas fórmulas discursivas, isto é, nas questões que

emergem do trabalho de Krieg-Planque (2003; 2010; 2011), como algo dentro

dessa ordem que se pretende desarmar? Mas uma questão precede a esta

enunciada, por que aparentemente parece que o discurso já está sob o nosso

domínio e esquecemos de que sempre é preciso voltar à questão inicial: o que

é mesmo o discurso?

A pergunta não é tão simples quanto parece. Se pudéssemos fazê-la a

Michel Foucault, certamente ele nos apresentaria uma série de movimento

acerca daquilo que ele fez com o discurso e daquilo que ele chamou de

discurso. Mas podemos pensar no discurso a princípio como uma produção

“ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um

número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e

perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível

materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).

É a partir dessa noção de discurso que Foucault apresenta em sua aula

inaugural no Collège de France qual a ordem do discurso3 e, ao mesmo tempo,

2 Em Arqueologia do saber, Foucault afirmou que pouco a pouco teria multiplicado os sentidos de discurso: ora no domínio geral de todos os enunciados, ora grupo individualizável de enunciados, ora como prática regulamentada dando conta de certo número de enunciados (FOUCAULT, 1987, p. 90), é dessa forma que podemos dizer seu(s) discurso(s), já que em seus gestos desarmou os jogos de discurso.

3 A ordem do discurso é o título da célebre aula inaugural proferida por Michel Foucault no dia 2 de dezembro de 1970 quando tomava posse de uma cátedra no Collège de France, uma aula que se tornaria livro no ano seguinte, pela editora Gallimard na França. No Brasil, o livro foi publicado duas décadas mais tarde, em 1996, pelas Edições Loyola, tendo Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. Nessa sua aula, o filósofo pôde mostrar ao público presente que, em uma sociedade como a nossa, o discurso tem em sua ordem três tipos de procedimentos de controle: externos (a interdição, a difusão e a oposição entre verdadeiro e falso); interno (o comentário, o autor e a organização das

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apresenta seu projeto de pesquisa naquela célebre instituição que ele acabara

de tomar posse para os próximos anos numa cátedra dedicada à História dos

Sistemas de Pensamento. Em todos seus trabalhos, o discurso aparece como

palavra de ordem. O seu interesse pelo discurso, visto como algo que não

pode ser analisado fora do tempo que se desenvolveu, norteou todos os seus

trabalhos, mostrando, com isso, seu comprometimento com uma

epistemologia ligada a uma certa tradição francesa que pensa “que a filosofia

possui uma dimensão histórica”. E esses gestos nada mais são do que as

análises que promoveu antes e durante sua permanência no célebre Collège de

France.

Ele tinha consciência de que praticava uma análise do discurso diferente

daquela que, em A verdade e as formas jurídicas, ele vai dizer ser fruto de “uma

tradição recente, mas já aceita nas universidades europeias, uma tendência a

tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por

regras sintáticas de construção” (FOUCAULT, 2005, p. 9). Talvez seja essa

tradição de que fala Dominique Maingueneau, em Novas tendências de análise

do discurso, logo na introdução (cf. MAINGUENEAU, 1995), quando busca

fazer uma breve história do percurso dessa tradição. É nessa mesma obra que

Maingueneau vai nos apresentar as contribuições de Jean-Jacques Courtine

através da Revista Langage, edição de número 62, e da discussão sobre “qual o

objeto para a análise do discurso” feita com Jean-Marie Marandin num

colóquio realizado na Paris X sobre as materialidades discursivas no ano de

1980 (cf. COURTINE ; MARANDIN, 1981), o que, de certa forma, já apontava

para uma renovação de interesse sobre a materialidade do discurso.

Vale a pena lembrar que Jean-Jacques Courtine é quem vai afirmar que a

memória discursiva é que torna possível a constituição de qualquer formação

discursiva e ela é que permite, na rede de formulações que constitui o

intradiscurso de uma Formação Discursiva (FD), o aparecimento, a rejeição ou

a transformação de enunciados pertencentes a formações discursivas

historicamente contíguas. Lembremos também aqui que Courtine pertenceu

ao grupo de pesquisa de Michel Pêcheux no CNRS. De acordo com Gregolin

(2008), “J. J. Courtine tem papel central nesse desenvolvimento da noção de

FD, na medida em que ele estimula a interlocução entre a obra de Pêcheux e

as propostas de Foucault”, ou seja, é Courtine que vai colocar para Escola

disciplinas) e regularidades de acesso (o ritual, as sociedades de discurso, as doutrinas e a apropriação social).

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Francesa de Análise do Discurso o conceito foucaultiano de formação

discursiva que durante duas décadas figurou como ferramenta indispensável

ao trabalho do analista do discurso, sobretudo, entre nós brasileiros (cf.

GREGOLIN, 2008; MILANEZ, 2012). Mas como surge o trabalho da

pesquisadora Alice Kreig-Planque, filiada ao Centre d’Étude des Discours,

Images, textes, Écrire, Comunication (CÉDITEC) na França? Como ela se insere

nessa tradição recente de que fala Michel Foucault e Dominique

Maingueneau?

1 As palavras e as fórmulas e a questão das imagens no discurso

Inscrita numa perspectiva pluridisciplinar, fortemente ancorada nas

Ciências da linguagem, Alice Krieg-Planque tem desenvolvido suas análises,

interessando-se, sobretudo, por discursos políticos, midiáticos e institucionais,

mobilizando principalmente as noções de fórmula e lugares discursivos. Ainda

em sua tese de doutoramento, defendida em 2000, ela começa a aprimorar a

noção de fórmula, advinda do trabalho do filósofo Jean-Pierre Faye sobre a

fórmula “Estado total” e sobre as pesquisas de Pierre Fiala e Marianne Ebel,

em particular sobre as fórmulas “Überfremdung” (influência e

superpopulação estrangeira) e “xenofobia”, que se inscrevem explicitamente

na perspectiva de Faye, como nos lembra a própria Krieg-Planque em

entrevista concedida a Philippe Schepens do Laboratoire de Sémio-linguistique,

didatique e informatique (LASELDI), ligado à Maison des Science de l’Homme

Claude-Nicolas Ledoux (cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 13).

No percurso que trilhamos aqui não podemos nos esquecer de que a

noção de fórmula, que Krieg-Planque vem desenvolvendo, é essencialmente

uma noção discursiva, como ela própria enfatiza (cf. KRIEG-PLANQUE, 2010).

Ao longo dessa discussão vamos perceber que seu trabalho não está

dissociado da velha tradição francesa epistemológica, ou seja, as

considerações apresentadas se inscrevem numa certa tradição acadêmica de

fazer análise do discurso de que se referiu Foucault em A verdade e as formas

jurídicas.

Em relação ao trabalho de Foucault, podemos dizer que todas essas

pesquisas desenvolvidas recentemente têm, de certa forma, ligações com os

deslocamentos e usos que o autor de As palavras e as coisas provocou no

campo das Humanidades ao tratar o discurso como algo que não pode ser

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analisado “fora do tempo em que se desenvolveu” (FOUCAULT, 1987, p. 226).

É justamente em As palavras e as coisas que Foucault vai nos apresentar a

questão da representação enquanto traço de uma época chamada por ele de

clássica (séculos XVII e XVIII) em que existia a coerência entre teoria da

representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor, e,

ao mesmo tempo, apresenta-nos a mudança inteiramente de configuração

que ocorre a partir do século XIX, quando “a teoria da representação

desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; a

linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das

coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres,

desvanece” (FOUCAULT, 1981, p. XX).

É nessa nova ordem que o homem aparece “pela primeira vez como esta

figura estranha do saber e que abriu um espaço próprio às ciências humanas”

(idem, ibidem). É a partir daí que podemos pensar nos processos de

subjetivação que tornam os seres humanos em sujeito, sobretudo, pela via do

discurso quando “o sujeito humano é colocado em relações de produção e de

significação”, e, “é igualmente colocado em relação de poder muito

complexas” (FOUCAULT, 1995a). E isso tem implicações com os processos de

identificação, uma vez que “a história da ordem das coisas seria a história do

Mesmo – daquilo que, para nossa cultura, é ao mesmo tempo disperso e

aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e recolhido em

identidades” (FOUCAULT, 1981, p. XXII). Mas o que isto tem a ver com a

questão da fórmula discursiva proposta por Krieg-Planque? Mais adiante

veremos como isso é mobilizado por Krieg-Planque, com mais detalhes.

2 O nascimento da fórmula

Inicialmente, é preciso compreender a noção de fórmula que Krieg-

Planque desenvolve a partir de seu livro Purification ethnique: une formule et

son histoire para refazermos seu percurso e percebermos como a autora foi

aperfeiçoando essa ferramenta tão cara ao seu trabalho analítico, resultante

das reflexões advindas de sua tese de doutoramento. Nessa obra, a autora

explica que:

Em um momento do debate público, uma sequência verbal, formalmente demarcável e relativamente estável do ponto de vista da descrição linguística que pode fazer dela, põe-se a funcionar nos discursos produzidos no espaço público como uma sequência tão partilhada quanto problemática. Empregada

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em usos públicos que a investem de questões sociopolíticas por vezes contraditórias, essa sequência conhece, então, um regime discursivo que faz dela uma fórmula: um objeto descritível nas categorias da língua e cujo destino – ao mesmo tempo invasivo e continuamente questionado – no interior dos discursos é determinado pelas práticas linguageiras e pelo estado das relações de opinião e de poder em um momento dado no seio do espaço público (KRIEG-PLANQUE, 2003, p. 14).

Poderíamos dizer que essa noção que a pesquisadora apresenta tem

ligações com a discussão feita por Foucault acerca das práticas discursivas e

da ideia de instituição4 pensada por ele à medida que se admite que a fórmula

possa ser vista enquanto referente social (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2010, p 53), e,

neste caso, só poderá sê-lo na medida em que se instaura um processo de

identificação, ligado a subjetivação de que fala Foucault, além da ordem do

discurso que está sujeita às instituições. E tais processos não se dão, a não ser

pela via das relações de poder, dos dispositivos usados para produzir sujeitos.

Depois, o fato de a palavra estar ligada a uma historicidade, já que se admite

que “o acesso de uma palavra à condição de fórmula é parte integrante da

história dos usos dessa palavra” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 19), implica em

admitir que isso se dá por meio de práticas discursivas que ganham corpo nas

instituições e são difundidas aí mesmo (cf. FOUCAULT, 1997).

Portanto, a noção de fórmula concebida enquanto uma noção discursiva

é, de certa forma, tributária da noção de discurso apresentada por Foucault

em sua aula inaugura no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, quando

enunciou que, em toda sociedade, a produção discursiva é “ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um número de

procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar

seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”

(FOUCAULT, 1996, p. 8-9).

Daí, podemos pensar que a circulação de uma fórmula não se dá fora

desse controle, que faz parte da ordem de qualquer discurso, uma vez que se

admite que:

Ela [a fórmula] põe em jogo a existência de pessoas: ela põe em jogo modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisões do regime político do qual os indivíduos dependem, seus direitos, seus deveres, as relações de igualdade ou desigualdade entre cidadãos, a solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas fazem da nação de que se sentem membros (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100).

4 Para Foucault (1995b, p. 247), “todo social não discursivo é uma instituição”.

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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Contrariamente a Krieg-Planque, diríamos que a fórmula é posta no jogo

do discurso, tornando-se parte dele na medida em que faz parte do discurso,

já que é tida enquanto noção discursiva, logo está sob a ordem do discurso, o

qual, como vimos, em Foucault, é produção de sociedades de discurso, e isso

tem a ver com aquilo que dissemos inicialmente com Derrida (1995), quando

afirmou que “tudo se torna discurso” nas discussões promovidas pelas

Humanidades, ou seja, estamos lidando com sujeitos, não simplesmente com

falantes, no sentido restrito da Linguística ou mesmo da Sociolinguística, ou

ainda do dialogismo bakhtiniano de que a autora conhece por ter frequentado

os cursos de Jacqueline Authier-Revuz.

Nesse gesto de infidelidade ou de crítica, diríamos também que uma

fórmula é em si mesma um jogo dentro de outro jogo. Mas a noção de fórmula

apresentada por Krieg-Planque é coerentemente compatível com a noção de

referente social de Fiala e Ebel. É justamente aí que podemos ver uma

aproximação com aquilo que Foucault chamou de discurso. É justamente

nesta perspectiva que vamos nos voltar para entrevista que Krieg-Planque

concedeu a Philippe Schepens para compreendermos melhor o debate sobre a

questão da noção de fórmula e um possível diálogo com os estudos realizados

por Michel Foucault, ou seja, vamos buscar discutir sobre as análises

desenvolvidas por Krieg-Planque, seus métodos e posições teóricas através do

seu percurso para tornar precisa algumas etapas desse trabalho inscrito na

tradição francesa da análise do discurso ou das análises de discursos conforme

advoga Maingueneau (cf. MAINGUENEAU, 1995), mas sob as lentes de

Foucault.

Ao propor uma caracterização da noção de fórmula, Krieg-Planque diz

que seu objetivo era precisá-la para analisar um conjunto de discurso que se

refere principalmente às guerras iugoslavas dos anos de 1990. Para isso, a

autora se valeu do trabalho de Jean-Pierre Faye para desenvolver uma

ferramenta própria para sua análise. Dessa forma, Krieg-Planque reconhece

que seu trabalho deve muito à obra heurística de Faye, mas que em dado

momento precisou ser infiel ao trabalho do filósofo, que, para ela, “tem em

mãos a pena do poeta que ele também é em alguns momentos”. O

desenvolvimento dessa ferramenta acabou tornando possível compreender

outras formulações possíveis como “direito de ingerências”, “mundialização”,

“globalização”, “choque de civilização”, “exclusão”, “fratura social”,

“desenvolvimento sustentável”, “comércio justo”, “governo responsável”,

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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“patriotismo econômico”, como podemos ver na explicação dada na

entrevista que concedeu a Schepens do LASELDI (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p.

13). Portanto, Krieg-Planque parte do termo fórmula pensado por Faye para

caracterizar a noção que usará em suas análises, o que significa dizer que tal

noção é cara às pesquisas por ela desenvolvidas, mas admite, contudo, que

seu gesto acaba traindo a obra de Faye, pois precisava avançar em algumas

questões que permaneciam paradas para dar conta de suas análises. Ela fala

sobre a influência de Faye em sua pesquisa no capítulo O trabalho heurístico de

Jean-Pierre Faye: a fórmula “Estada total” no livro A noção de fórmula em

análise do discurso: quadro teórico e metodológico (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2010).

Ao falar sobre seu percurso acerca da redefinição da noção de fórmula

discursiva, Krieg-Planque também confessou que não se valeu apenas da

crítica feita por Pierre Fiala e Marianne Ebel ao trabalho de Faye, mas também

das análises realizadas pelos dois pesquisadores quando eles colocam em

funcionamento a noção de fórmula centrada particularmente na análise feita

em torno de textos legislativos, artigos publicados em jornais suíços

francófonos, cartas de leitores, textos sindicais, entrevistas de autores

referentes a três campanhas de votação na Suíça. Foram eles, segundo Krieg-

Planque, que “introduziram na análise das fórmulas categorias úteis para a

análise de discurso” (Cf. KRIEG-PLANQUE, 2011), ao buscar analisar as

unidades lexicais “Überfremdung” e “xenofobia”. O trabalho desses autores é

tão importante para Krieg-Planque que ela também dedicou um capítulo no

livro A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico,

a exemplo que fez com Faye, intitulado A análise de Marianne Ebel e Pierre

Fiala.

É nesse capítulo que a autora vai tratar da análise realizada por Fiala e

Ebel, no momento em que eles vão afirmar que uma fórmula é um referente

social na medida em que “Überfremdung” e “xenofobia” são referentes

sociais, pois neles os pesquisadores encontraram manifestações na paráfrase

e na circulação. Esta última está diretamente ligada à noção de referente

social apresentada por Fiala e Ebel e usada nas análises desenvolvidas por

Krieg-Planque. É justamente através dessa noção de referente social que Krieg-

Planque vai estabelecer uma relação com espaços públicos (Cf. KRIEG-

PLANQUE, 2010, p. 53) aprimorando a noção de fórmula, ou seja, à medida que

uma fórmula é tida como referente social, já que é partilhada por um grupo

social ou grupos ao indicar algo, ela torna-se, ao mesmo tempo, um signo que

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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entrou num espaço público por meia da difusão que se dá nos processos de

publicidade através da mídia, principalmente da impressa, rádio, televisão etc.

Para desenvolver essa ideia de espaço público, Krieg-Planque também

lançou mão dos trabalhos de Habermas e Ferry. Mas é preciso estar atento

para o fato de que a mídia não é responsável pela criação e invenção das

fórmulas discursivas, uma vez que, para Krieg-Planque, o papel da mídia é de

atuar como “operadora da circulação”, o que não quer dizer que a mídia não

seja capaz de realizar seleções e filtragem, transformando, com isso, os

discursos, e não apenas os transmitindo passivamente sem sua intervenção

(KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 212). Aqui vale a pena ressaltar que uma fórmula

não pode ser caracterizada apenas por sua unanimidade; muito pelo contrário,

é pelo que ela representa (reapresenta), num dado momento, uma passagem

obrigatória.

Quanto à manifestação de paráfrase de que falávamos anteriormente

presente no trabalho de Fiala e Ebel (1983), ela se manifesta principalmente

durante as campanhas do referendo que pediam aos cidadãos suíços que

escolhessem entre o sim e o não pela proposta da limitação da imigração,

quando aí se observou que duas fórmulas se condensaram numa massa

discursiva, ou seja, “Überfremdung” e “xenofobia”,

[...] estes dois termos se condensaram numa massa considerável de discursos na qual eles serviam de equivalentes semânticos. Enunciar um ou outro era pôr em circulação significações múltiplas, contraditórias, referindo-se à existência de séries de enunciados parafrásticos, bem comprovados, dos quais os dois termos se encontram definidos (FIALA; EBEL, 1983, p. 173 [tradução minha]).5

Como exemplo disso, tomemos dois enunciados parafrásticos

apresentados por Fiala e Ebel (1983): “Os estrangeiros são uma carga pesada

para nossas instituições sociais” e “Eles nos tomam nossas moradias”. Dessa

forma, podemos pensar a partir do exemplo dado por Fiala e Ebel na questão

da circulação das fórmulas, ou seja, se elas circulam é porque as pessoas as

5 Tradução a partir do original : ces deux termes ont, durant cette période, condensé en eux une masse considérable de discours, auxquels ils servaient d’équivalents sémantiques. Enoncer l’un ou l’autre, c’était mettre en circulation des signi-fications multiples, contradictoires, renvoyant à l’existence de séries d’énoncés paraphrastiques bien attestés, par lesquels les deux termes se trouvaient définis (FIALA ; EBEL, 1983, p. 173). Optamos aqui pela entrevista no original em língua francesa e pelo texto de Fiala e Ebel, porque na tradução brasileira a página citada não confere com o original e ainda é apresentada como comentário do entrevistador com as iniciais de seu nome e sobrenome (PS), quando, na verdade, trata da continuação da discussão que Krieg-Planque faz acerca da questão feita por Philippe Schepens (cf. SCHEPENS, 2011, p. 15-16; KRIEG-PLANQUE, 2006, p. 23-24).

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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usam ao falar delas, logo os lugares de surgimento se diversificam, e este fato

é que tornam as fórmulas um objeto partilhado do debate (cf. KREIG-

PLANQUE, 2006 p. 24).

No trabalho de Fiala e Ebel, o fenômeno da produtividade lexicológica

que resulta de neologismos também chamou a atenção de Krieg-Planque

juntamente com aquele da paráfrase que acabamos de ver nos exemplos

anteriores. Ela lançou mão desse fenômeno para tratar da fórmula

“purificação étnica” em sua análise, mostrando como os neologismos atestam

a proliferação das fórmulas, sejam eles criações voluntárias ou não, já que

também podem ocorrer neologismos por lapso. Para entendermos como este

fenômeno ocorre, tomemos a palavra “xenófobo” [xénophobo]. Ela vai dar

lugar a uma série de neologismo por derivação como “xénophomatique”

[“xenofomático”] ou “anti-xénophobe” [“antixenófobo”] que mostram

justamente uma produtividade lexicológica. Neste movimento, a circulação

acaba entrando em cena para desbancar a noção de produção, uma vez que:

P. Fiala e M. Ebel sustentam uma concepção contextual do sentido, e insistem nisso: se há de fato um significante comum em circulação (a coroa da “moeda”, para retomar a metáfora de Courtine), o significado (no caso, a cara) está em perpétua redefinição, em razão mesmo de sua circulação. Nem todos inscrevem a mesma coisa no lado cara da fórmula, e é exatamente por essa razão que esta é questão central nos debates (KRIEG-PLANQUE, 2006, p. 56).

Isto mostra como “fórmulas circulam e se impõem a todos com um

sentido, ou, antes, com sentidos que são determinados por outros, eles

invalidam a ideia de que discursos são fechados sobre si mesmos” (KRIEG-

PLANQUE, 2011, p. 17). Como podemos ver, o trabalho de Fiala e Ebel tem uma

repercussão muito grande nos gestos de aprimoramento da noção de fórmula

discursiva realizados por Krieg-Planque. Aqui nos propomos apenas a resumir

esse percurso para dar um pouco da dimensão de como as análises

desenvolvidas por eles foram importantes no percurso de Krieg-Planque. Por

conta do espaço, falamos de uns elementos que nos pareceram importantes,

outros ficaram para trás, como é o caso da dupla “de re”/ “de dicto” que

desapareceram em favor de categorias inspiradas naquelas que Jaqueline

Authier-Revuz propõe para pôr à luz as representações da heterogeneidade

enunciativa (cf. KRIEG-PLANQUE, 2006, 2011).

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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3 Mobilização da fórmula discursiva na análise

Tomada como noção discursiva, a noção de fórmula apresentada por

Krieg-Planque (2006, 2010), como vimos até aqui, é vista como referente social,

portanto, trata-se uma noção que toma o discurso como objeto de pesquisa,

objeto tecido com “fios ideológicos”, cabendo ao analista do discurso

encontrar as pontas destes fios, assim “é exatamente o real que se encontra

no fim do percurso, já que os discursos são uma matéria constitutiva do real”

(KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 26). Dessa forma, ressalta a autora que temos “a

possibilidade de um processo de conhecimento que se opera pelo

estabelecimento e a ordenação de fatos do discurso. Trata-se de uma das

formas que a análise do discurso pode assumir” (idem, ibidem). E neste caso,

não podemos esquecer de que uma fórmula não é essencialmente linguística,

mas apenas possui uma forma linguística habitada pela polissemia, em termos

bakhtinianos.

Mas como operacionalizar isto através da noção de fórmula? Como

mobilizar tal noção? Antes de responder estas questões, é preciso pensar na

fórmula como um conjunto de variantes, um bom exemplo é o caso da

fórmula “purificação étnica”. Ela reúne um conjunto de variantes como

“limpeza étnica”, “depuração étnica”, “etnicamente puro”, “etnicamente

puras”, “pureza étnica”, “impurezas étnicas”, “depuraram etnicamente”,

“teriam etnicamente purificado” etc. Aí temos, de acordo com Krieg-Planque

(2006, 2010, 2011), variantes que associam um elemento do campo

derivacional dos radicais “pur-” e “limp-” ou “depur-” e um derivado de

“etnic-”. Com estes exemplos, surge mais uma questão: como escolher e

identificar uma fórmula? Primeiramente, podemos pensar com Krieg-Planque

que “o acesso de uma palavra à condição de fórmula é parte integrante da

história dos usos dessa palavra” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 19). E neste caso é

preciso pensar na questão da noção de cristalização que a autora desenvolver

como condição para que se identifique uma unidade ou sequência verbal

como fórmula. Nesta perspectiva, a noção de cristalização será crucial porque

vai figurar como primeiro passo para que se tome uma palavra ou expressão

na qualidade de uma fórmula. Mas antes é preciso estar com os ouvidos

plugados nas fontes de informações e os olhos pregados nos jornais para que

se tenha um corpus saturado de enunciados atestado (KRIEG-PLANQUE, 2010,

p. 89). Para daí então realizar a coleta de candidata a fórmula. A fase seguinte

seria aquela advinda da questão da demarcação e contagem das ocorrências

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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que para a autora é fascinante porque essa questão retoma a questão do

papel da interpretação na construção do corpus. “Ela mostra que, desde o

início do trabalho, precisam entrar em ação a interpretação e a inteligência

humana para tratar dos dados” (cf. KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 27). Nesta

perspectiva, podemos pensar que:

[...] um cientista – acho que vale para todas as ciências humanas e sociais, e possivelmente para as outras ciências – tem uma espécie de sensibilidade anormalmente atenta a seu objeto. Ele percebe ruídos escondidos, vibrações, finas estrias e pequenos instrumentos que outros não veem.. (...) todos que trabalham com a língua ou com o discurso são levados a fazer o esforço de considerar a si próprios como interpretantes razoáveis, a fazer de conta que não

veem o fato o fato veem (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 30).

Nessa mobilização da fórmula, ou seja, do seu emprego, vista como

trabalho de pesquisa de quem faz ciência, surge outra noção, a de

“interpretante razoável”, para lidar com a questão “da identificação de um

objeto discursivo e precisamente a da identificação da presença de uma

fórmula através das ocorrências de unidades lexicais” (KRIEG-PLANQUE, 2011,

p. 29). Aqui vemos uma rigorosidade teórica no trabalho desenvolvido pela

autora, a exemplo daquele que Foucault expõe em Arqueologia do Saber. E em

todos esses movimentos que a autora faz, lembra-nos dos gestos da

arqueologia foucaultiana e até mesmo da genealogia desenvolvidas pelo

filósofo arquivista. Ou seria uma prática da intelectualidade francesa? De certa

forma, sim, sobretudo no que diz respeito a uma busca constante pelo

aprimoramento das noções a partir de debates e de uma prática que vai

desenhando à medida que os procedimentos vão surgindo a cada nova

análise, a cada novo corpus. Como nesses gestos, diria Foucault:

[...] a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia , da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar as perturbações da continuidade, enquanto que a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos (FOUCAULT, 1987, p. 6)

Nessa perspectiva, o debate histórico que se estabelece, na discussão,

traz consigo esse movimento em gestos para repensarmos a própria história a

partir do discurso em suas diversas materialidade como as midiáticas que

marcam a nossa época, ou seja, “a vida política e os funcionamentos

midiáticos” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 22). Daí, podemos falar nesse trabalho

de mobilização da noção de fórmula discursiva dos lugares discursivos

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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tomados na análise enquanto “materialidades nas quais os comentadores se

apoiam para atribuir posições, a si mesmo e aos outros, os lugares pelos quais

os locutores circulam, imprimindo sua marca de passagem”. Dessa forma,

caberá “ao pesquisador assinalar esse colorido no terreno do corpus, e, antes

de mais nada, avaliar se ele lhe resta interessante” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p.

23), ou seja, “trata-se de fazer a escolha de um modo de selecionar corpora

pelas materialidades que os comentadores tomam emprestado para pôr em

ordem discursivamente sua visão de mundo” (idem, ibidem). Com isso,

podemos dizer que as questões da mobilização das fórmulas são variadas, já

que são variados os modos como os comentadores se posicionam no discurso.

Parece-nos que isso tem a ver com aquilo que Foucault discute a respeito da

formação dos objetos quando afirma que “alguns [elementos] constituem

regras de construção formal, outros, hábitos retóricos (...), alguns são

característicos de uma época, outros têm uma origem longínqua e um alcance

cronológico muito grande” (FOUCAULT, 1987, p. 66). Neste caso, parece-nos

que Krieg-Planque (2011, p. 17) tentou mostrar na análise da fórmula

“purificação étnica” o excelente fundamento de uma tal descompactação das

formações discursivas. Do ponto de vista formal, os lugares discursivos

“podem ser textos (ou, mais frequentemente, o que há neles, como o título,

por exemplo), unidades lexicais simples ou complexas”. Já no plano de suas

funções discursivas, “os lugares discursivos podem fazer o papel de textos-

chave, de provas autentificadoras, de índices de historicidade, de slogans, de

palavras de ordem, de designantes ou ainda, de fórmulas” (KRIEG-PLANQUE,

2011, p 22). Dessa forma, podemos perceber nessa noção de lugares discursivos

um elemento de articulação entre as noções que Krieg-Planque mobiliza em

suas análises, ou seja, “a pesquisa sobre os lugares discursivos não é

dissociável de outros aspectos do trabalho” (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 23).

Considerações finais

No percurso que fizemos nesse artigo, buscamos mostrar os encontros e

desencontros entre o trabalho de Krieg-Planque e o de Michel Foucault, ora

por meio da noção de discurso, ora pela tradição de uma certa epistemologia

francesa da qual os dois são tributários. Claro que nosso gesto foi movido pelo

desejo de revisitar a obra de Foucault, fazendo uma leitura sobre a proposição

da noção de fórmula nos estudos e nas práticas de uma certa Escola Francesa

de Análise do Discurso. E nessa tradição, não há dúvida de que haja uma

ARAÚJO, Alex Pereira de. A “noção de fórmula” de Krieg-Planque sob a ordem do discurso de Foucault. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 5-21, dez.2013.

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ligação, “no que se refere ao quadro teórico global” do savoir-faire da

epistemologia que se pratica na França, da qual fazem parte Jean-Jacques

Courtine, Dominique Maingueneau, Michel Pêcheux, nomes que estão no

traçado da história dessa Escola Francesa de Análise do Discurso.

Como vimos Krieg-Planque não só retomou os estudos sobre a noção de

fórmula no quadro teórico que alicerça a Escola Francesa de Análise do

Discurso, trançando uma história desta noção, mas realiza uma série de

movimentos para precisar tal constructo, desde Faye até Fiala e Ebel. Nesse

seu gesto, a autora provocou, além de alguns deslocamentos, o interesse em

áreas tão diversas como Ciências da Linguagem, História, Sociologia, Ciências

da Informação e da Comunicação, Ciências Políticas. Em suma, nessa

discussão, vimos que toda fórmula discursiva traz consigo uma densidade

histórica que materializada em sua circulação, apoiada em pré-construídos e

voltada a novas construções no trabalho de Krieg-Planque que tem sido muito

bem acolhido entre nós brasileiros com a publicação de seus livros e alguns

artigos aqui no Brasil. Um trabalho que revigora a cada dia a Escola Francesa

de Análise do Discurso tanto aqui quanto na França.

REFERÊNCIAS

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

22222222

ARGUMENTAÇÃO E DISCURSOS SOBRE O TRANSTORNO DE DÉFICIT

DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) NAS MÍDIAS SOCIAIS

Clarice Lage Gualbertoi

Resumo: Um grande desafio que tem se apresentado, no contexto de ensino, é o tema dos transtornos de aprendizagem, destacando-se o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) como temática, tanto em estudos acadêmico-científicos, quanto em publicações de abrangência mais popular. O aumento exponencial do número de indivíduos diagnosticados (MATTOS, et al., 2012) afetou diretamente o ambiente escolar, fomentando, assim, uma grande procura por informações e estudos que norteassem a comunidade docente para tentar lidar com essa realidade em sala de aula. Dessa forma, torna-se necessária a análise dos textos que, provavelmente, atingem esse público, possibilitando um confronto das diversas posições e interesses envolvidos no debate. Como fundamentos teóricos principais deste estudo, destacam-se Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e o “Guia das Falácias” de Downes (1996). Num primeiro momento, são discutidas algumas teorias da argumentação e as respectivas aplicações nos discursos sociais. Após esta etapa, é feita a análise da publicação jornalística “Somos todos hiperativos? A era da desatenção” – da Folha de São Paulo. O estudo objetiva, portanto, explicitar algumas estratégias argumentativas utilizadas no texto, bem como o ponto de partida da argumentação do qual o artigo se constitui. Dessa forma, é possível supor certas intenções e posicionamentos presentes na argumentação dos autores. Espera-se que este artigo possa contribuir, principalmente, com a comunidade docente, auxiliando na recepção crítica de estudos publicados sobre o tema.

Palavras-chave: Argumentação. TDAH. Ensino. Mídia.

Abstract: A big challenge which has been present itself in the teaching context is the learning disorders mainly the Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). This subject has been focused by academic and scientific studies and more popular researches as well. The exponential increase of diagnosed people (MATTOS, et al., 2012) has highly affected education field, therefore teachers’ searching for information and studies about it has also increased, since they want to know how to deal with it in the classroom. Observing this context, it is possible to say it is necessary to analyze these texts, so its interests and ideological positions can be confronted. This study is based on Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) and the “Logical Fallacies Guide”, by Downes (1996). First some argumentation theories were discussed, and after that, a text titled “Are we all hyperactive?” from the Brazilian newspaper Folha de São Paulo has been analyzed. This paper intends to draw some argumentative strategies which were used in this text. So it was possible to make some assumptions about the authors’ intentions and points of view. The purpose here is to help teachers by presenting some critiques about this theme.

Keywords: Argument. ADHD. Teaching. Media.

i Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].

GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.

22223333

Introdução

Um dos grandes desafios do ensino atualmente é lidar com os chamados

alunos “especiais”, ou seja, aqueles que apresentam algum transtorno de

aprendizagem devidamente comprovado por laudos de especialistas como

psiquiatras, neurologistas, entre outros. O TDAH (Transtorno de Déficit de

Atenção e Hiperatividade) é o mais comum deles, afetando 5% da população

infantil mundial (POLANCZYK et al., 2012).

O aumento exponencial do número de indivíduos diagnosticados

(MATTOS, et al., 2012) afetou diretamente o ambiente escolar, fomentando,

assim, uma grande procura por informações e estudos que norteassem a

comunidade docente para tentar lidar com essa realidade em sala de aula.

Além de artigos científicos da área de medicina, é perceptível o aumento

de publicações – livros, artigos de opinião, colunas jornalísticas, entrevistas,

etc. –mais acessíveis a pessoas que não são do campo da saúde. Assim,

propõe-se, neste estudo, analisar a argumentação desenvolvida no texto “A

era da desatenção – Somos todos hiperativos?”, de Marcelo Leite e Claudia

Colluci, publicado em 30 de maio de 2010, no caderno Folha Ilustrada, do jornal

Folha de São Paulo (ANEXO). Espera-se que este artigo possa contribuir,

principalmente, com a comunidade docente, auxiliando na recepção crítica de

estudos publicados sobre o tema.

Russel (2002) define TDAH como “um transtorno de desenvolvimento

do autocontrole que consiste em problemas com os períodos de atenção com

o controle do impulso e com o nível de atividade” (p. 35); o site da Associação

Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) descreve o TDAH como sendo “um

transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e

frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza

por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade” (p. 1).

O site também comenta o fato de que muito se ouve sobre

hiperatividade, mas poucas pessoas fora do campo da saúde sabem do que se

trata de fato. Tendo em vista esse contexto, apresenta-se aqui uma análise do

texto previamente citado, o qual aborda a questão do TDAH, comentando sua

definição, tratamento e formas de diagnóstico. Como fundamentos teóricos

principais deste estudo, destacam-se Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e o

“Guia das Falácias” de Downes (1996). Num primeiro momento, serão

discutidas algumas teorias da argumentação e as respectivas aplicações nos

GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.

22224444

discursos sociais. Após esta etapa, será feita a análise da publicação

jornalística mencionada anteriormente.

Espera-se levantar algumas estratégias argumentativas utilizadas no

texto, bem como o ponto de partida da argumentação do qual o artigo se

constitui. Dessa forma, será possível supor certas intenções e

posicionamentos presentes na argumentação dos autores.

1 Pressupostos teóricos sobre argumentação

O tema “argumentação” tem sido amplamente discutido e pesquisado.

Por isso, faz-se necessária a descrição de pontos principais de alguns teóricos

que se relacionam com as abordagens que amparam a metodologia deste

trabalho. A partir de autores como Aristóteles, Chaïm Perelman, Oswald

Ducrot, Dominique Mangueneau e Stephen Toulmin, é possível salientar três

problemáticas nessa questão: a retórica, a lógica e a argumentação na língua.

Primeiramente, observa-se a noção de “retórica”. Esse conceito é

definido por Aristóteles como “a faculdade de ver teoricamente o que, em

cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão. Nenhuma outra arte possui

esta função [...]” (ARISTÓTELES, 1982, p. 33). O autor explica essa questão,

apresentando três pilares básicos para a retórica: logos, pathos e ethos. O

primeiro diz respeito à argumentação racional; o segundo está mais ligado ao

auditório, ao seu convencimento e envolvimento, e, por último, o ethos se

refere ao enunciador, não necessariamente ao orador/autor de fato, mas

àquele que é revelado ao longo do discurso.

Maingueneau (2004) desenvolve essa questão, propondo um

coenunciador que atribui um ethos ao fiador1. De acordo com o autor, o ethos

possui: "uma forma específica de se inscrever no mundo [...] comunidade

imaginária dos que comungam na adesão a um mesmo discurso"

(MAINGUENEAU, 2004, p. 99-100). Assim, o ethos é a voz ou o tom presente

no texto, a partir do qual o sujeito da enunciação se revela, transparecendo

seus posicionamentos, intenções, preferências, entre outros possíveis

aspectos que podem ser percebidos pelo interlocutor. Essa perspectiva

contribui de forma relevante e direta sobre a argumentação nos discursos

sociais, uma vez que se pode contrapor, por exemplo no discurso político, o

1 “O fiador é aquele que se revela no discurso e não corresponde necessariamente ao enunciador efetivo” (HEINE, 2007, p. 4).

GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.

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ethos “dito” x o ethos “mostrado”, ou seja, as referências feitas diretamente

sobre o orador e o que ele de fato revela sobre si mesmo em sua

argumentação.

Sobre a questão do auditório, podemos destacar os trabalhos de

Perelman (1997), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e de Charaudeau (2006)

que abordam esse tema de formas distintas, porém complementares.

Diferentemente de Aristóteles, os autores partem do ponto de que, para que

haja resultados efetivos na argumentação, o auditório precisa aderir a esse

processo, já que estão em jogo valores e verdades (religiosos, políticos,

morais, etc.) que cada interlocutor possui. Os primeiros autores propõem a

noção de que acordos precisam ser estabelecidos e assim a argumentação se

desenvolve. Segundo Perelman:

[...] para que a argumentação retórica possa desenvolver-se, é preciso que o orador dê valor à adesão alheia e que aquele que fala tenha a atenção daqueles a quem se dirige: é preciso que aquele que desenvolve sua tese e aquele a quem quer conquistar já formem uma comunidade, e isso pelo próprio fato do compromisso das mentes em interessar-se pelo mesmo problema (PERELMAN, 1997, p.70).

Dessa forma, é preciso haver um acordo prévio sobre as premissas que

irão servir para a discussão como ponto de partida a fim de que o interlocutor

permita ser (ou não) convencido. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca

(2005), ao analisar um texto escrito, por exemplo, deve-se iniciar o estudo

buscando o ponto de partida da argumentação, o qual é composto pelo

acordo, os tipos de objeto de acordo, a escolha dos dados e sua apresentação.

Em seguida, para um aprofundamento da pesquisa, o analista deve procurar

identificar as técnicas argumentativas utilizadas pelo autor. No diagrama a

seguir, Figura 1, observa-se, de forma mais geral, a metodologia ligada à

primeira parte da análise proposta pelos autores.

Figura 1 – Objetos de Acordo. Fonte: Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005.

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Para Charaudeau, esses “acordos” são chamados de “contratos de

comunicação” que podem ser definidos como: “O necessário reconhecimento

recíproco das restrições da situação pelos parceiros da troca linguageira nos

leva a dizer que eles estão ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os

dados desse quadro de referência” (CHARAUDEAU, 2006, p. 68). O autor leva

em conta o que ele chama de dados externos e internos do contrato. O

primeiro considera, em suma, “quem diz e para quem”, “para quê se diz”, “o

que se diz” e “em que condições se diz” e o segundo o “como se diz”. Nesse

caso, são analisados os espaços de locução do enunciador, da relação

enunciador - interlocutor e de tematização. Charaudeau acredita que a

argumentação tem a ver com levar as pessoas a agirem e a retórica faz o outro

saber alguma coisa, passando pelo seu sistema de crenças. A metodologia do

autor considera também a tripla atividade da argumentação, ou seja, 1)

problematização (fazer saber e impor o modo a tratá-la), 2) posicionar-se, e 3)

provar seu ponto de vista.

A problemática da lógica na argumentação pode ter como autor de

referência Stephen Toulmin (2001), que fundamenta sua tese no raciocínio

lógico e nas garantias e validades de um argumento. O autor não enfoca tanto

as técnicas argumentativas, como Perelman, mas propõe formas de combater

um argumento, de desafiá-lo, de colocá-lo à prova e de validá-lo. Pensando na

argumentação em discursos sociais, essa teoria contribui para diversos tipos

de análises em contextos políticos, por exemplo. As perspectivas de Perelman

e Charaudeau são interessantes para se estudar a argumentação no âmbito da

sua base, seus propósitos e sua eficácia. Já Toulmin fornece amparo teórico

para um estudo mais focado na validade do argumento, na sua lógica, no seu

raciocínio.

Partindo para outra perspectiva, a problematização da argumentação na

língua pode ser discutida a partir do conceito de Oswald Ducrot (1999) e Carel

e Ducrot (2005), que consiste no fato de que a língua é “voluntariamente

limitativa”, ou seja, o enunciado e as estruturas internas que o compõem são

suficientes para que o analisemos. Dessa forma, apenas a língua é considerada

para a análise. O autor explica a relação entre fatores intrínsecos e extrínsecos

no trecho a seguir:

A primeira, segundo a qual os encadeamentos argumentativos constroem, por sua própria existência, representações do mundo de que se fala (o que exclui descrevê-las como manifestações de argumentações, no sentido retórico deste

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termo). A outra, segundo a qual estes encadeamentos são todavia restritos pela semântica intrínseca das palavras utilizadas [...], o que satisfaz o objetivo estruturalista da ADL, e leva a descrever as palavras, não a partir de um conhecimento prévio da realidade (o que implicaria sua descrição ‘informativa’), mas a partir de suas potencialidades discursivas (DUCROT, 1999, p. 10).

A perspectiva de Ducrot também é relevante, porém de forma mais

indireta aos estudos da argumentação nos discursos sociais, uma vez que

possibilita análises de textos verbais, por meio do estudo da forma com que o

enunciador se serve da língua. Quais os conectivos, adjetivos, relações

sintáticas, entre outros recursos, foram utilizados no texto em questão? Pelo

fato de o autor se limitar à língua, essa metodologia se torna um pouco mais

limitada, tendo em vista o amplo corpus oferecido pelos discursos sociais, que

nem sempre podem ser analisados somente pelo âmbito da argumentação na

língua, mas considerando também entonações, gestos, contextos, etc.

Por fim, é importante ressaltar a contribuição do Guia das Falácias de

Downes (1996). Segundo este autor, a finalidade de um argumento é

apresentar as razões (premissas) que fundamentam uma conclusão. Dessa

forma:

[...] um argumento é falacioso quando parece que as razões apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não sustentam. Da mesma maneira que há padrões típicos, largamente usados, de argumentação correcta, também há padrões típicos de argumentos falaciosos. A tradição lógica e filosófica procurou fazer um inventário e dar nomes a essas falácias típicas e este guia faz a sua listagem (p.1).

Assim, esta listagem presente no Guia acrescenta mais uma perspectiva

de análise da argumentação nos discursos sociais, contribuindo de maneira

substancial para esta pesquisa.

2 Análise

Em primeiro lugar, seguindo a metodologia de Perelman e Olbrechts-

Tyteca (2005), será feito um breve estudo sobre o acordo (e seus objetos)

estabelecido no processo argumentativo entre o orador e o auditório, neste

caso, o público alvo do jornal Folha de São Paulo. Em seguida, serão analisadas

a seleção dos dados e a adaptação deles em prol dos objetivos dos autores e,

por fim, as técnicas argumentativas utilizadas no texto, que, neste caso, serão

complementadas pelas falácias propostas por Downes (1996), as quais vão ao

encontro do que é proposto por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005). Todas

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essas considerações serão fundamentais para que se possa fazer algumas

inferências acerca do ethos revelado no texto.

Observando o título e o subtítulo do texto (ANEXO), “Somos todos

hiperativos? A era da desatenção”, já é possível perceber as seguintes

premissas2: a) a desatenção é algo muito presente nos dias atuais; b) a

hiperatividade existe (a pergunta indica um acordo implícito de existência). Ao

longo do artigo, nos demais subtítulos, por exemplo, nota-se uma posição

negativa dos autores em relação a várias questões acerca do TDAH.

Nas expressões, “superdiagnóstico”, “sintomas vagos” e “sem testes”,

é possível observar o quanto os escritores duvidam até mesmo da existência

do transtorno, sugerindo que isso seja um traço de personalidade apenas.

Dessa forma, nota-se a premissa de que o TDAH é um tema polêmico e

confuso.

Em relação aos valores abstratos envolvidos, observam-se a verdade, a

responsabilidade, a ética e a honestidade. Os autores parecem propor ao

interlocutor que a hiperatividade seja algo que gera lucro para diversos

setores do mercado: editorial (publicação de livros), farmacêutico (venda de

remédios) e o setor da saúde (neurologistas, psicólogos e psiquiatras). Assim,

os diagnósticos parecem ser extremamente duvidosos, sendo dignos de

serem questionados e avaliados. A evocação dos valores previamente citados

pode ser percebida nos trechos “O TDAH abriu um filão para a escritora”, “as

vendas passaram de 71 mil caixas anuais para 1,2 milhão”, “fabricação de

doenças”, “É de uma imprecisão absurda”, “pouca gente deixaria de se

reconhecer na lista oficial de 18 sintomas”, “culto moralista do sofrimento

como alternativa à solução fácil dos comprimidos”, “epidemia de vendas”,

entre outros.

É possível dizer que os autores quiseram causar algum tipo de

indignação no leitor ao mostrar dados alarmantes e levantar tantas questões

polêmicas sobre o transtorno. Percebem-se, também, algumas hierarquias no

texto, tais como: a ética sobrepondo a riqueza, os médicos que refutam o

TDAH sendo melhores que aqueles os quais acreditam no transtorno,

evidências científicas acima da palavra do médico pró - TDAH e a Europa sendo

mais sensata do que os Estados Unidos. Esta última afirmação é observada no

trecho em que os autores comparam os critérios de diagnóstico do

2 “[...] o que é presumidamente admitido pelos ouvintes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005 p.73).

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transtorno: “na Europa, prevalece [...] o HKD [...] classificação da Organização

Mundial de Saúde, que utiliza uma lista de sintomas parecida com a do DSM-4,

mas exige 10 deles, e não 6, para o diagnóstico.”

Em relação aos lugares, observa-se a predominância do lugar comum da

quantidade. Folheando o texto, sem necessariamente lê-lo, nota-se alta

incidência de números ao longo da publicação. Percebe-se que os autores

recorrem a esse artifício para o quanto o TDAH é duvidoso e como o

argumento deles é digno de adesão por ser verdadeiro.

Sobre a seleção e tratamento dos dados, vale destacar que os autores

optaram por não recorrer ao site oficial da ABDA, previamente citado, em que

se encontram diversos artigos científicos sobre o TDAH, que combatem, por

exemplo, o argumento de que a forma para diagnosticar é imprecisa. Além do

questionário (único instrumento utilizado pelos médicos, segundo o texto),

são necessários exames de sangue para a verificação de questões relativas à

tireoide, testes psico e neurológicos aplicados pelo neurologista; não é apenas

o paciente que responde a vários questionários, recomenda-se que pessoas

próximas dele respondam também. Os autores silenciam, ainda, o fato de que

o uso da medicação representa apenas 30% do tratamento, segundo o site da

ABDA.

No início do texto, os autores parecem querer mostrar as causas do

aumento drástico da venda dos medicamentos comumente utilizados no

tratamento do distúrbio e apontam a automedicação, proveniente do

autodiagnóstico, como grande responsável desse fato. Utilizando-se, segundo

Downes (1996), do apelo à autoridade sem haver acordo com os peritos em

questão, os autores citam uma especialista da área que corrobora para a

imprecisão do TDAH, “Quando você vê os critérios diagnósticos, não tem

como não se enquadrar”. Novamente, os autores silenciam o fato de que a

venda desses remédios é extremamente restrita e controlada. É necessária

uma receita específica, fornecida pelo Ministério da Saúde, preenchida pelo

médico, juntamente com seu carimbo e CRM, ou seja, o autodiagnóstico pode

acontecer, mas a automedicação é improvável que ocorra.

Outra falácia observável no texto é o ataque à pessoa e não ao fato; isso

acontece no momento em que os autores discorrem sobre a psiquiatra Ana

Beatriz Barbosa, escritora do best seller Mentes Inquietas. Os autores enfocam

os lucros com as vendas de suas publicações, incitando a possibilidade de que

haja interesse por parte da especialista em se declarar como portadora do

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TDAH, visando ao sucesso na comercialização de suas obras. Ao invés de

atacarem os dados científicos sobre o transtorno, já que eles mesmos dão

mais credibilidade a esse tipo de evidências, os autores recorrem a um

argumento baseado na ilustração que exemplifica o lado vantajoso e lucrativo

do diagnóstico da presença do TDAH no paciente.

Os escritores se valem também do apelo às consequências ao

apontarem possíveis danos dos medicamentos à saúde: “a droga parece capaz

de retardar o crescimento, talvez até 1,2 cm por ano”, “(a droga) contribuiu

para baixá-lo no hospital com uma tromboflebite”. Já, no trecho “ausência de

evidência não é evidência de ausência, poderiam dizer (os defensores do

TDAH).” percebe-se que os autores supõem que os especialistas que

acreditam no transtorno apelariam à ignorância, fazendo esse tipo de

afirmação. Por fim, é observada a falácia da autoridade anônima em “só 1% de

seus colegas de especialidade encara o TDAH como uma doença real, que

deve ser tratada por médicos, segundo uma pesquisa de opinião de 2007”; os

autores não citam a fonte dessa pesquisa, nem com quantas pessoas ela foi

realizada.

Essas considerações, sobre os argumentos utilizados, amparam algumas

conclusões sobre o ethos do texto analisado neste estudo. Em primeiro lugar,

o ethos “dito” (MAINGUENEAU, 2004) consta nos textos que precedem a

matéria, em que há uma pequena descrição de cada repórter. Ambos são

autores de livros famosos e ganham o título de “repórter especial da Folha”,

evocando um ethos de prestígio e credibilidade. Dessa forma, o leitor-ouvinte

tende a lhes atribuir confiança e seriedade, contribuindo para que a

argumentação seja bem sucedida.

Em relação ao ethos “mostrado”, o texto revela um tom diferente, já

que os autores se valem de ironias, que podem ser verificadas em vários

trechos, como, por exemplo, no fim do texto: “Conflito de interesses: os

autores desta reportagem declaram que não contaram com apoio de drogas

psicoativas, exceto cafeína.” Outra evidência, que contribui para o

distanciamento entre o ethos dito e o mostrado, é o fato de que o conteúdo

da matéria é constituído por vários argumentos falaciosos (como foi descrito

anteriormente). Dessa forma, percebe-se que o tom científico e de seriedade

do ethos “dito”, ao longo do texto, dá lugar a um ethos “mostrado” que

constrói sua argumentação, principalmente, a partir do uso de informações

tendenciosas e da omissão de dados.

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Infelizmente, uma vez que há muitas estatísticas e citações, estratégias

que conferem veracidade ao texto, o leitor-ouvinte tende a sustentar a

imagem do ethos “dito”. Dessa forma, o ethos que, provavelmente, prevalece,

mesmo após a leitura, é o que possui somente características positivas,

isentando o enunciador de cometer erros ou de utilizar argumentos que não

fossem válidos.

Considerações finais

A apresentação de alguns pressupostos teóricos acerca da

argumentação objetivou traçar um panorama sobre as principais pesquisas

que discorrem sobre questões relativas à argumentação. A partir dessa visão

geral, foram selecionadas as teorias de Downes (1996) e Perelman &

Olbrechts-Tyteca (2005) para fundamentar a metodologia do estudo,

propiciando algumas conclusões sobre o ethos, reveladas ao longo do texto,

seguindo a perspectiva de Maingueneau (2004).

Dessa forma, foi possível traçar o posicionamento dos autores da

matéria da Folha em relação ao TDAH. Eles se mostram desfavoráveis aos

diagnósticos positivos em relação à hiperatividade, supondo um exagero por

parte dos atores envolvidos na área e sugerindo que a questão gira em torno

do mercado e do lucro gerado pelo transtorno, e não da busca em pesquisar

cientificamente sobre a existência do distúrbio, bem como os instrumentos

para o seu diagnóstico.

Ao menosprezar dados da ABDA, como os que comprovam que o TDAH

tem sido subtratado no Brasil, o artigo deixa transparecer, claramente, como

o discurso presente no texto atende a interesses e visa à persuasão do leitor

em detrimento do confronto e da exposição das correntes teórico-científicas

sobre o tema.

Além disso, tendo em vista a análise feita no artigo, pode-se perceber o

papel de “alerta” que a matéria assume em relação ao seu leitor. Assim, é

possível afirmar que tal publicação tem como objetivo prestar uma espécie de

ajuda, de favor ao seu público, já que ela revelou a verdade, elucidando essas

questões polêmicas, obscuras e negativas sobre o TDAH.

Com esta breve análise, espera-se contribuir para a prática e formação

docente, apresentando um olhar crítico sobre esta publicação da Folha de São

Paulo, jornal que possui grande credibilidade no meio acadêmico e escolar.

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Dessa forma, este artigo pretende incentivar, ainda mais, a busca por vários

pontos de vista acerca do mesmo tema, para que se chegue a conclusões mais

precisas sobre o assunto em questão.

REFERÊNCIAS

ABDA. Sítio oficial. Disponível em: <http://www.tdah.Org.br/>. Acesso em: jul. 2013. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982. CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la teoría de los bloquessemánticos. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 2005. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. DOWNES, Stephen. Guia das Falácias. Crítica: revista de filosofia e ensino [online] Disponível em: <http://criticanarede.com/falacias.htm>. Acesso em: jul. 2010. DUCROT, Oswald. O Dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. _____. Polifonía y argumentación. Calli: Universidad del Valle, 1988. _____. Os topoi na teoria da argumentação na língua. Revista Brasileira de Letras, v.1, n. 1, p. 1-11, 1999. HEINE, Palmira. Considerações sobre a cena enunciativa: a construção do ethos nos blogs. In: II ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO. 2007, UFCE. Anais do II encontro nacional sobre hipertexto. Ceará, 2007. Disponível em: <http://www.ufpe.br/nehte/hipertexto2007/anais/ANAIS/Art43_Heine.swf>. Acesso em: nov. 2013. LEITE, Marcelo; COLLUCCI, Cláudia. Somos todos hiperativos? A era da desatenção – Folha de São Paulo – Disponível em: <http://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/30/a-era-da-desatencao>. Acesso em: jul. 2010. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2004. MATTOS, Paulo; ROHDE Luís Augusto; POLANCZYK, Guilherme. O TDAH é subtratado no Brasil. Revista brasileira de psiquiatria, São Paulo, v. 34, n. 4, p. 513-516, 2012. PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova Retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. POLANCZYK, Guilherme; CASELLA, Erasmo. B.; MIGUEL, Euripedes; REED, Uumbertina. Transtorno de déficit de atenção / hiperatividade: uma perspectiva científica. Revista CLINIC, São Paulo, v. 67, n.10, p. 1125-1126, 2012. RUSSEL, Barkley. Transtorno de déficit de atenção / Hiperatividade (TDAH): Guia completo para pais, professores e profissionais da Saúde. Porto Alegre: Artmed, 2002. TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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ANEXO

Ilustríssimos desta edição

Cláudia Collucci, 42, é repórter especial da Folha. É autora de dois livros na área da

reprodução humana e do blog "Quero ser mãe", no UOL.

Marcelo Leite, 52, é repórter especial da Folha, autor do livro "Ciência - Use com

Cuidado" (Unicamp).

Somos todos hiperativos? - A era da desatenção

Publicado em 30 de maio, 2010 pela FOLHA DE SÃO PAULO, no caderno Folha Ilustrada

Marcelo Leite e Claudia Collucci, Folha de S.Paulo, 30 de maio de 2010

HUCKLEBERRY FINN, PROTAGONISTA das aventuras do romance de Mark Twain (1835-1910) que leva seu nome, daria um sério candidato, nos dias de hoje, à domesticação com base na droga metilfenidato (Ritalina e Concerta são as marcas disponíveis no Brasil). Isso, claro, se algum orientador da escola conseguisse capturar o menino para encaminhar a um consultório de psiquiatria infantil.

Já o negro Jim, se caísse nas mãos de um psiquiatra de passagem pelo Mississippi em meados do século 19, seria provavelmente devolvido a ferros com um diagnóstico de drapetomania (do grego “drapetés”, fugitivo). A especialidade médica tinha menos de meio século e se empenhava em cunhar suas próprias “doenças”.

Huck, o amigo do escravo fujão, preencheria facilmente o mínimo de 6 dos 18 critérios de diagnóstico para o Transtorno de Deficit de Atenção e a Hiperatividade (TDAH), alvo do metilfenidato. Não era propenso a seguir instruções, ficar quieto ou pensar antes de responder. Reações precipitadas eram com ele mesmo. Lição de casa, nem pensar.

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A viúva Douglas e a srta. Watson bem que tentavam civilizar o garoto impulsivo e agitado, mas ele fugiu -só para terminar nas garras do pai bêbado, que o trancou numa cabana. Huck fugiu de novo. Seguem-se 349 páginas de hiperatividade pura, que terminam com Huck anunciando nova partida, para territórios indígenas a oeste.

Huck, na nossa era multimídia, faria companhia aos 2,7 milhões de americanos entre 6 e 17 anos que tomam estimulantes como o metilfenidato e outros medicamentos psicoativos, entre os 4,6 milhões de diagnosticados com TDAH (8,4% da população nessa faixa etária). O consumo per capita de metilfenidato nos EUA é oito vezes maior que em países europeus. Estima-se que, no mundo, 5,3% dos jovens tenham TDAH.

Por aqui, o preguiçoso e irrequieto Macunaíma, de Mário de Andrade, talvez recebesse o mesmo diagnóstico (ou estigma). Nas escolas particulares e escritórios da cidade grande que fascinaram o herói sem nenhum caráter, seus descendentes descobriram o metilfenidato.

No Brasil, de 2000 a 2008, as vendas passaram de 71 mil caixas anuais para 1,2 milhão. Quantidade suficiente para medicar dezenas de milhares de adolescentes e crianças.

SUPERDIAGNÓSTICO

Há alguma coisa errada nesses números, segundo Luis Augusto Rohde, psiquiatra da infância e da adolescência na UFRGS. E não é por excesso, mas por falta de diagnósticos.

“Em termos de saúde pública, não existe no Brasil problema de superdiagnóstico e supertratamento”, afirma Rohde, autor principal de um influente artigo sobre TDAH publicado em 2007 no periódico “American Journal of Psychiatry”, citado por quase 300 especialistas em outros trabalhos. Foi desse estudo que saiu a cifra de 5,3% de prevalência mundial.

O Brasil tem 47 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 18 anos; 5% deles seriam 2,35 milhões. “Não temos mais do que 100 mil crianças usando a medicação”, estima Rohde. “Há escolas privadas no país com um número excessivo de tratamentos, mas é uma realidade pontual.” Para o grupo gaúcho, existe uma epidemia de uso indevido da medicação por adultos. O metilfenidato estaria sendo empregado para melhorar o desempenho de estudantes e profissionais em tarefas pesadas e monótonas, como a leitura e a redação de textos longos -preparação de exames, relatórios, e por aí vai.

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33336666

“Há muitas mães que usam [o metilfenidato] para emagrecer”, agrega o também gaúcho Guilherme Vanoni Polanczyk, atualmente na Faculdade de Medicina da USP, primeiro autor do artigo liderado por Rohde, que foi seu orientador. Um estudo que eles fizeram em escolas públicas de Porto Alegre constatou que só 2% dos alunos que satisfazem os critérios do TDAH recebiam medicação.

SINTOMAS VAGOS

Outra causa provável do aumento exponencial de vendas de Ritalina e Concerta é a automedicação como consequência de autodiagnósticos. Pouca gente deixaria de se reconhecer na lista oficial de 18 sintomas compilada no “Manual de Diagnóstico e Estatística”, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-4), segundo o qual portadores de TDAH frequentemente:

1. Deixam de prestar atenção a detalhes ou cometem erros por descuido em atividades escolares, de trabalho ou outras; 2. Têm dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas; 3. Parecem não escutar quando lhe dirigem a palavra; 4. Não seguem instruções e não terminam deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais; 5. Têm dificuldade para organizar tarefas e atividades; 6. Evitam, antipatizam ou relutam em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante; 7. Perdem coisas necessárias para tarefas ou atividades; 8. São facilmente distraídos por estímulos alheios à tarefa; 9. Se esquecem de atividades diárias; 10. Agitam as mãos ou os pés ou se remexem na cadeira; 11. Abandonam sua cadeira em sala de aula ou quando se espera que permaneçam sentados; 12. Correm em situações inapropriadas; 13. Têm dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividade de lazer; 14. Agem como se estivessem “a todo vapor”; 15. Falam em demasia; 16. Dão respostas precipitadas, antes de concluídas as perguntas; 17. Têm dificuldade para aguardar sua vez; 18. Interrompem conversas ou se metem em assuntos dos outros.

“Alguém que age e reage de maneira diferente, que aprende diferente, já é tachado como doente”, diz Maria Aparecida Moysés, professora titular de pediatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela vê um

GUALBERTO, Clarice Lage. Argumentação e discursos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nas mídias sociais. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 22-41, dez.2013.

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processo “muito intenso e extenso” de medicalização do comportamento. Só 1% de seus colegas de especialidade encara o TDAH como uma doença real, que deve ser tratada por médicos, segundo uma pesquisa de opinião de 2007.

“Quando você vê os critérios diagnósticos, não tem como não se enquadrar. É de uma imprecisão absurda, não tem nada de evidência científica”, diz ela. “Se for por aí, todo mundo tem déficit de atenção.”

MENTES INSACIÁVEIS

A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva descobriu ser portadora 24 anos atrás, aos 19, quando era estudante de medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “O diagnóstico de TDAH dividiu minha vida em antes e depois”, conta. “Foi similar a quando descobri que era míope e usei óculos pela primeira vez - eu via o mundo como uma pintura impressionista. A partir dali, comecei a vê-lo cheio de detalhes, barroco.”

A descoberta ocorreu durante um congresso médico em Chicago, quando a acadêmica de medicina se reconheceu na descrição dos sintomas. Hoje, a médica ainda recorre a pílulas (bupropiona) para trabalhos que exigem muita concentração, como a revisão de textos longos.

Medicada, disciplinou-se a ponto de escrever um livro inteiro. “Mentes Inquietas”, a obra, vendeu cerca de 50 mil exemplares desde que foi relançada pela editora Objetiva em setembro de 2009 (das vendas da primeira versão, de 2003, não há cifra precisa; segundo a autora, ultrapassaram 150 mil cópias).

O TDAH abriu um filão para a escritora, que depois lançou “Mentes Perigosas”, “Mentes com Medo”, “Mentes Insaciáveis”, “Mentes e Manias” e o recém-publicado “Bullying: Mentes Perigosas nas Escolas”. Mais três volumes da série “Mentes…” vêm aí.

TEMPOS DA BENZEDRINA

Não resta muita dúvida de que o metilfenidato aumenta a produtividade e contribui para o avanço da literatura -pelo menos a de autoajuda. No passado, escritores de estirpe diversa recorreram aos préstimos de estimulantes para turbinarem atenção e redação.

W.H. Auden, James Agee, Graham Greene, Jack Kerouac e até Jean-Paul Sartre teriam recorrido a estimulantes para ler e escrever mais, relata Joshua Foer num artigo para a revista eletrônica “Slate”. Eram os tempos da benzedrina (tipo de anfetamina).

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O próprio Foer conduziu um experimento de uma semana com Aderall, um dos medicamentos mais populares nos EUA para tratar TDAH (e, ao lado da Ritalina, consumido por 20% dos universitários americanos). Os resultados foram “miraculosos”. De uma sentada, Foer leu 175 das 1.386 páginas de “A Estrutura da Teoria Evolucionista”, do grande biólogo Stephen Jay Gould. “Eu me sentia menos eu mesmo”, escreveu. “Embora pudesse lançar mais palavras por hora na página com o Aderall, tive uma suspeita incômoda de que estava pensando com viseiras.” Em conversa com amigos escritores, confirmou que outros também sentiam a criatividade tolhida pelo remédio.

A benzedrina não parece ter prejudicado a escrita de Kerouac no clássico da literatura beat “On the Road – Pé na Estrada” (L&PM) -ao contrário, dirão seus cultuadores. Mas contribuiu, segundo Foer, para baixá-lo ao hospital com uma tromboflebite.

DISFUNÇÃO MÍNIMA

Os usuários habituais de metilfenidato precisam tomar cuidado com efeitos colaterais como aumento moderado da pressão arterial e da frequência cardíaca. Em jovens e crianças, a droga parece capaz de retardar o crescimento, talvez até 1,2 cm por ano.

Theodor Lowenkron, da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, recomenda cautela na prescrição de drogas psicoativas, em especial para crianças. “Para indicar ou não a droga, os prós e os contras devem ser bem avaliados -caso a caso”, enfatiza. “E a intervenção terapêutica não deve se limitar à prescrição de remédios.” Apesar das manifestações adversas, o metilfenidato foi aprovado pela poderosa FDA (agência de alimentos e fármacos dos EUA) já em 1955, para tratar sintomas hoje enfeixados como TDAH.

A epidemia de vendas só deslanchou depois de 1999, quando um estudo clínico pioneiro mostrou a superioridade do tratamento com remédios sobre a terapia comportamental com envolvimento de pais e mestres. Anos depois, o acompanhamento do grupo de pacientes revelou que a suspensão do metilfenidato faz voltarem os sintomas. No longo prazo, a vantagem do medicamento sobre outros tratamentos decai.

Na Europa, prevalece o nome “transtorno hipercinético”, ou HKD na abreviação em inglês. Antes, o complexo de comportamentos recebia nomes como “síndrome da criança hiperativa”, “reação hipercinética da infância” ou “disfunção cerebral mínima”.

HKD é a classificação da Organização Mundial da Saúde, que usa uma lista de sintomas parecida com a do DSM-4, mas exige 10 deles, e não 6, para o

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diagnóstico. O critério restritivo, associado com diferenças culturais, é apontado como responsável pela discrepância na proporção de casos dos dois lados do Atlântico.

CUMPLICIDADE

O componente cultural é refutado pelo estudo estatístico dos brasileiros Rohde e Polanczyk, que atribuem a variação nas cifras de prevalência pelo mundo ao uso de metodologias díspares. Eles rejeitam tanto a ideia de que o aumento de TDAH seja fruto das condições da vida contemporânea quanto a de que se deva ao sucesso de uma “construção social”, mancomunando psiquiatras com a indústria farmacêutica para ampliar mercado.

Rohde atende hoje cerca de 500 adultos em seu serviço de TDAH em Porto Alegre. Não se trata de nova expansão “medicalizante”, afirma, mas da manutenção dos sintomas em 70%-80% das crianças e jovens diagnosticados quando chegam à maturidade. “Não é só no trabalho, é aquele adulto que dirige de forma imprudente, que tem mais acidentes, mais envolvimento com álcool e drogas”, ressalva Rohde.

Polanczyk rejeita também a explicação pelo estigma: adultos não permanecem com dificuldades de desempenho só por carregar o suposto fardo de terem sido apontados como crianças problemáticas e recorrido a remédios. “É ilusório pensar que o estigma surge só com o medicamento.”

Alívio. Os pais já não iam a restaurantes, antes do remédio. Os colegas não convidavam para as festas. Os castigos se repetiam na escola. E as peças de teatro interativas estavam há tempos fora de questão. “O medicamento alivia o estigma”, diz Polanczyk.

O psiquiatra se retrai igualmente diante da possibilidade de que o TDAH seja fruto do estilo de vida em que crianças e jovens são bombardeados com uma profusão de estímulos de informação e entretenimento por meios eletrônicos -a geração videogame. Não rejeita de todo a explicação, mas se refugia num eufemismo científico para defender o caráter substancial do transtorno: “Não vejo evidências de que a cultura cause o TDAH”.

Os críticos dessa “fabricação de doenças”, outro rótulo dos adeptos da construção social, soam mais incisivos. Thomas Szasz, velho combatente anti-TDAH nos EUA, fala de uma “aliança ímpia da psiquiatria com o Estado” para reprimir comportamentos desviantes (partiu dele o exemplo da drapetomania usado mais atrás). “Diagnósticos não são doenças”, costuma dizer. “Nenhum comportamento ou mau comportamento é doença ou pode ser doença.” Ele

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classifica a psiquiatria na mesma categoria inconfiável dos governos. Como o fogo, na metáfora de G. Washington, ambos são “servos perigosos e amos temíveis”.

SEM TESTES

Para os defensores da realidade do TDAH, a hipótese da “construção social” do transtorno se apoia numa limitação real da psiquiatria e na incompreensão da natureza dos sintomas com que ela lida. Em seu jargão, eles são de tipo “dimensional”, não “categórico”.

Em outras palavras, querem dizer que os 18 quesitos apresentados mais atrás procuram delimitar, num contínuo de comportamentos variados, e com o máximo de objetividade possível, a faixa de manifestações socialmente sancionadas como patológicas ou intoleráveis. Não há exames de sangue, testes genéticos ou ultrassonografias para diagnosticar categoricamente o TDAH. “Não existe o grupo dos ansiosos e dos não-ansiosos, dos atentos e dos desatentos. Sintomas atencionais de hiperatividade qualquer pessoa vai ter em situações de estresse, de conflito, de cansaço”, concede Rohde. “A diferença é que indivíduos com TDAH têm isso como marca registrada, faz parte do seu dia a dia.”

Há estudos com pares de gêmeos indicando que o TDAH independe, em grande medida -80%, segundo Rohde-, do modo como os jovens são criados. Vários outros relacionam o transtorno com genes envolvidos na regulação de neurotransmissores e no desenvolvimento deficiente de áreas do cérebro. Mas não se formou consenso sobre eles, muito menos para padronizar exames. O fato de não existirem testes, contudo, não significa que o transtorno não seja real, que não tenha base fisiológica. Ausência de evidência não é evidência de ausência, poderiam dizer.

CALVINISMO

“Depressão também não tem correlato biológico, mas ninguém duvida que a depressão exista. As pessoas se matam”, pondera Polanczyk. O sistema nervoso é complexo, e o acesso ao cérebro para estudo, muito mais difícil que a outros órgãos. “Na psiquiatria, estamos muito atrás da medicina como um todo.”

Como disse outro médico do Rio Grande do Sul, Olavo Amaral, que comentou o estudo de Rohde e Polanczyk em carta aos editores do “American Journal”, “o conceito de transtorno e seus critérios diagnósticos são construções sociais por definição”.

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Os defensores do TDAH tampouco se incomodam com a acusação de serem propagandistas remunerados pela indústria farmacêutica. O grupo de Rohde recebe financiamento de pesquisa das empresas Bristol-Myers Squibb, Eli Lilly, Janssen-Cilag e Novartis. O psiquiatra também dá palestras sob patrocínio das empresas, mas declara que a remuneração pessoal por serviços prestados à indústria não ultrapassa US$ 10 mil anuais.

O mesmo argumento desconfiado, segundo ele, pode ser voltado contra os inimigos do TDAH. “Recebo pacientes que faziam psicanálise e que, quando melhoram os sintomas com medicamentos, se sentem desmotivados a seguir com a psicanálise”, diz Rohde. “Vai me dizer que não existe conflito de interesse em manter o cara no consultório dele por anos?”

Em 2008, o Centro Hastings, nos EUA, dedicado a questões de bioética e políticas públicas, organizou seminários sobre os controversos distúrbios emocionais e comportamentais em crianças, como o TDAH. A discussão resultou num artigo que dá o que pensar sobre a querela dos construcionistas com os psiquiatras.

O título é: “Fatos, Valores e TDAH – Uma Atualização da Controvérsia”. Os autores, Erik Parens e Josephine Johnston. O trabalho, que saiu no periódico “Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health” (2009), faz uma apresentação equilibrada dos dois lados na disputa bizantina. O artigo alerta para o risco de distorcer as categorias diagnósticas do DSM. Essas categorias seriam abstrações, não entidades encontradas na natureza. Mas ressalva: “Nossa descrição das complexidades e da indefinição das fronteiras não foi feita para sugerir que o TDAH não seja real. Os sintomas de TDAH podem causar sofrimento significativo em crianças, nas famílias e nas escolas”.

Diante desse sofrimento, o “niilismo diagnóstico” não seria uma opção. Só a adesão irrefletida a um calvinismo farmacêutico -que enfatiza o culto moralista do sofrimento como alternativa à solução fácil dos comprimidos – poderia servir-lhe de justificativa.

Huck Finn e Macunaíma não cairiam nessa.

Conflito de interesses: os autores desta reportagem declaram que não contaram com apoio de drogas psicoativas, exceto cafeína.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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AS DIFERENTES VOZES E OS MÚLTIPLOS SENTIDOS EM

PUBLICAÇÃO DA PÁGINA “LÍNGUA PORTUGUESA” NO FACEBOOK

Cláudio Henrique de Souza Piresi Daglécia dos Santos Pintoii

Resumo: Objetiva-se com este artigo refletir sobre as significações atribuídas à língua portuguesa, que circulam nos discursos produzidos em uma página do Facebook, direcionada a divulgar dicas gramaticais. Com base nesses discursos, mostramos os sentidos recriados no contexto sócio-histórico dos interlocutores dessa mídia. Para tanto, foi necessário realizar um estudo representativo de uma publicação que foi postada no período em que se comemora o dia do índio no Brasil. Por meio do recurso ‘linha do tempo’, conseguimos recuperar esse arquivo para selecionamos como corpus de nossa análise os enunciados de um pôster e seus respectivos comentários, os quais foram motivos de polêmica entre os usuários da página ao serem publicados nessa rede social. A fim de refletir sobre as vozes discursivas que interagem nesses enunciados, buscamos não olhar diretamente a superficialidade dos textos, mas os lugares e as condições de produção dos discursos que apontam as diferentes vozes. Esta discussão foi sedimentada na perspectiva dialógica, interacional e ideológica, tal como a concebe Bakhtin/Volochinov (1986), segundo o qual os enunciados existem em gêneros, com seus objetivos comunicacionais e estáveis e, dessa forma, são produtos da interação social e se caracterizam pela plurivalência de sentidos, e também nos estudos de gêneros textuais emergentes e comunidades virtuais (MARCUSCHI, 2004). A partir da análise desenvolvida neste trabalho, deduzimos que os discursos com os quais os enunciados mantêm relações dialógicas dão corporeidade a significações sobre a língua portuguesa, sustentando os preconceitos linguísticos e sociais enraizados na sociedade contemporânea brasileira.

Palavras-chave: Discurso. Dialogismo. Gêneros. Mídias.

i Mestrando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].

ii Mestranda pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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Abstract: This study aims to reflect on the meanings attributed to the Portuguese language, circulating in discourses produced on a Facebook page which focuses on disseminating grammar tips. Based on these discourses, we tried to show the senses recreated in the social history of these media interlocutors. For this, it was necessary to conduct an exploratory study of the publications that were posted on this page since its creation through the 'timeline' resource. We selected as the corpus for our analysis the enunciation of one of the posters and their comments that have caused polemics among members of the page. In order to reflect on the discursive voices that interact in these statements, we tried not to look directly at the superficiality of the texts, but the places and conditions of discourse production that link the different voices. This discussion has been sedimented in dialogical, interactional and ideological perspectives as Bakhtin/Volochinov (1986) conceives, in which statements exist in genres, in which are statements in genres, with their communication goals and stability, are products of social interaction and are characterized by the plurivalent senses, and also in studies of text genres and emerging virtual communities (MARCUSCHI, 2004). Based on the analysis developed in this study, we deduce that the discourses with which the statements maintain dialogical relations, give the meanings corporeity about the Portuguese language, which support the linguistic and social prejudices rooted in contemporary Brazilian society.

Keywords: Discourse. Dialogism. Genre. Media.

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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Introdução

É por meio dos enunciados que as ideologias se manifestam, ou seja, é

através da linguagem que podemos observar as relações sociais e, por

conseguinte, as ideologias produzidas na interação social. Por isso, buscamos

as diferentes vozes, pontos de vista, que sustentam o preconceito linguístico,

étnico e social que despontam na página “Língua Portuguesa” do Facebook.

Pretendemos analisar como esses sentidos são construídos nos enunciados e

de qual forma eles refratam e refletem os “pré-conceitos” mediante suas

materialidades linguísticas. Recorrendo ao recurso linha do tempo,

selecionamos a edição de um pôster que foi publicado no mês de abril de 2012,

com o seguinte enunciado: “Feliz dia do índio para você que fala ‘pra mim

fazer’”. Esta publicação, por envolver fatores étnico-linguístico-textual, foi

motivo de polêmica entre os membros da página.

A gramática tornou-se um instrumento de normatização e

homogeneização da língua, e, como resultado, tem-se um processo

classificatório e preconceituoso do que é “certo” e “errado” na língua.

Considerar a língua portuguesa falada no Brasil homogênea é prejudicial à

educação, pois o português brasileiro possui alto grau de diversidade e de

variabilidade determinadas por fatores históricos, sociais e culturais. É

necessário entender que a língua encontra-se em constante movimento de

mudança e renovação, portanto, o ensino de língua deve ser visto como uma

disciplina viva e não estática, com classificações que levam ao preconceito não

só linguístico, como o étnico e o social.

Falar em dialogismo, considerado o princípio básico do pensamento

bakhtiniano, é atrair uma variedade de categorias e conceitos. Por isso,

buscaremos nesses discursos analisar como se constituem as relações

dialógicas, o lugar espaço onde as práticas discursivas se materializam (de

natureza linguístico-discursivas) e, dessa forma, compreender as situações, as

condições de produção que geram os efeitos de sentido. Para isso, apoiamo-

nos em estudos das relações dialógicas, discurso e gêneros discursivos com

base nos pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin.

Diante do exposto, o que nos interessa, neste trabalho, é compreender

como se constituem, dialogicamente, os enunciados que nos são expostos

constantemente nesses espaços discursivos, ou seja, em pôsteres publicados

nos grupos do Facebook. E na verificação das relações dialógicas, por que e

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como os sujeitos produzem dialogicamente os seus enunciados/discursos,

também refletimos sobre as influências dos gêneros nessa constituição.

1 Fundamentação teórica

A verdadeira substância da língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN, 2006, p. 125).

A língua é considerada dialógica, pois se concretiza na comunicação

social, na interação entre interlocutores, na qual participam sujeitos históricos

e concretos. A linguagem, portanto, é o resultado de trabalho entre sujeitos

históricos em constante interação.

O sujeito, nessa concepção de língua, é um sujeito discursivo que se

posiciona ideologicamente, conforme as crenças e/ou posições de um

determinado grupo social. Por isso, sua fala é eminentemente construída pela

dos outros (CAMPOS, 2012). Os enunciados, então, podem ser vistos como

uma resposta ativa às vozes interiorizadas, vozes sociais que estão em

circulação na sociedade.

O texto, portanto, é o “[...] produto da criação ideológica ou de uma

enunciação, [...] não existe fora da sociedade, só existe nela e para com ela

[...]” (BARROS, 2005, p. 27). Seu sentido é construído de forma dialógica em

uma situação comunicativa, em que o sujeito tem uma atitude responsiva

ativa diante do que lhe foi exposto no momento da interação. Essa atitude

responsiva do sujeito não está livre de conflitos, pois o sujeito pode não

concordar, fazer adaptações, acrescentar ou retirar informações etc.

Para explicar a questão do dialogismo, Brait (2005) propõe a análise em

duas dimensões: por um lado, aquele em:

[...] permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. [...] Por outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados

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historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, se instauram e são instaurados por esses discursos. [...] (BRAIT, 2005, p. 94-95).

Pode-se observar que a primeira dimensão corresponde à

interdiscursividade – a relação de um discurso com outros discursos –, e a

segunda, que se refere ao discurso que ocorre na relação entre sujeitos, entre

o eu e o outro.

A noção de sujeito dialógico apresenta duas faces: uma individual e outra

social. Para exemplificar esta noção, recorremos à definição de palavra: a

palavra enquanto pensamento é individual, mas quando se torna

materialidade verbal, ou seja, quando é proferida, enunciada, passa a

pertencer ao social. Por conseguinte, encontra-se carregada de elos

ideológicos nos quais estão imbricadas as diversas vozes sociais. Seu sentido é

estabelecido durante o discurso e conforme contexto social-histórico-cultural.

Para o Círculo, a unidade de estudo da linguagem como atividade

sociointeracional são os enunciados, porque a utilização da língua ocorre em

enunciados escritos ou orais. Esses enunciados são eventos únicos e

concretos que se efetuam entre os integrantes de uma ou outra esfera da

atividade humana. Ainda nesse sentido, Bakhtin (2003, p. 279 ) afirma:

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.

Ao estudar a noção de gêneros, o que vai ser levado em conta são as

formas de produção desses enunciados relativamente estáveis. Todas as

esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da

linguagem, essa utilização ocorre por meio dos enunciados e estes integram

uma outra esfera da atividade humana. A nossa fala constitui-se de

enunciados, falamos por meio de enunciados e os enunciados constituem-se

em gêneros, Bakthin (2003, p. 302) afirma:

Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão

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aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.

É relevante notar que os gêneros são os elementos organizadores das

atividades sociais, orientando, dessa forma, a participação dos falantes em

determinadas esferas da atividade humana. Segundo Bakhtin (2003), os

gêneros são enunciados relativamente estáveis; por conseguinte, cada esfera

da atividade humana, cada intenção comunicativa, já tem enunciados pré-

estabelecidos que podem ser modificados conforme a intenção comunicativa,

por isso são considerados relativamente estáveis. Os gêneros ajudam que

compreendamos as ações dos outros, para que sirvam de referências para as

nossas próprias ações. É através dos gêneros que agimos pela linguagem.

Os sons, as palavras e as orações são as unidades da língua,

sozinhas/isoladas, fora de contexto, não possuem sentido, não se tornam um

ato comunicativo, visto que se encontram fora de uma situação comunicativa.

Mas as palavras ou orações, quando representam a intenção do locutor e

provocam no interlocutor uma atitude responsiva, estando situadas em uma

situação comunicativa, se tornam enunciados.

Os avanços na área da tecnologia digital possibilitam o surgimento de

novos gêneros em ambientes virtuais que caracterizam as novas formas de

comportamento comunicativo em uma sociedade pós-moderna. Para

Marcuschi (2004, p. 13), “[...] a Internet é uma espécie de protótipo de novas

formas de comportamento comunicativo”.

Considerando que os gêneros são formas sociais e pré-estabelecidos de

comunicação e que se encontram inseridos em uma cultura, pode-se afirmar,

conforme Marcuschi (2004, p. 20), que “[...] o meio eletrônico oferece

peculiaridades específicas para usos sociais, culturais e comunicativos que não

se oferecem nas relações interpessoais face a face.” Marcuschi (2004, p. 20)

aponta que o sucesso dessa nova tecnologia “[...] deve-se ao fato de reunir

num só meio várias formas de expressão, tais como, texto, som e imagem, o

que lhe dá maleabilidade para a incorporação simultânea de múltiplas

semioses, interferindo nos recursos linguísticos utilizados”.

Diante deste contexto de práticas comunicativas na mídia virtual, temos

o Facebook, fundado em 2004. Trata-se de uma rede social em que cada

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participante tem um perfil, no qual seus dados pessoais, fotos, vídeos, links,

comentários etc. podem ser disponibilizados para que outro membro tenha

acesso. Os membros dessa rede podem interagir entre si a partir dos

comentários sobre os pôsteres, ao inserir comentários, curtir, compartilhar

etc. É uma ferramenta que permite a inserção de textos orais e escritos,

imagens, sons etc.

2 Caracterização do gênero “pôster” do Facebook

Os gêneros do discurso se constituem em sua mobilidade e

dinamicidade. Todo sujeito, portanto, ao falar e agir, repete falas e ações

realizadas por si mesmo ou por outros. Além de repeti-las, os sujeitos também

as recriam, adaptando-as às circunstâncias únicas e concretas de acordo com

o contexto ao qual se inserem (BAKHTIN, 2003).

Os pôsteres do Facebook, assim como outros gêneros discursivos

digitais, por exemplo, blogs, e-mails, chats etc. aparentam analogias em

relação à interação entre os seus interlocutores por ocorrerem no mesmo

espaço e talvez em um mesmo período de tempo, a depender da

conectividade entre os seus pares. Ao serem publicados, os interlocutores

podem assumir, de imediato, uma postura responsiva, e esse diálogo ocorrer

explicitamente (quando o interlocutor apresenta a sua responsividade por

meio de comentários no suporte reservado a esse objetivo) ou implicitamente

(quando a responsividade ocorre constitutivamente, ou seja, não mostrado

por meio dos comentários efetuados diretamente na rede) dessas páginas.

A autonomia enunciativa que os interlocutores possuem para produzir

os seus enunciados não são mediadas por nenhuma esfera instituída

socialmente e temporalmente, visto que os pôsteres são gêneros que não têm

uma periodicidade determinada, ou seja, o interlocutor pode a qualquer

momento publicar quantidades ilimitadas, sendo que essas publicações não

têm validade prevista.

Dividindo o espaço com outros gêneros nessa rede social digital, o

pôster se situa com uma relação temática e axiológica a respeito de: fatos

cotidianos, temas humorísticos, expressão de sentimentos pessoais,

narrações da vida estudantil, profissional e social de seus usuários,

mobilizações sociais, combate ao preconceito, apologia à discriminação social,

religiosa e étnica, propagação de ideologias políticas, científicas e religiosas

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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etc. O horizonte temático do pôster refere-se a acontecimentos do dia a dia e

a fatos sociais que estão relacionados ao universo das redes sociais digitais,

mas que estão vinculados ou dizem respeito também à esfera do cotidiano do

interlocutor. É a partir desse lugar que ele se posiciona.

3 Análise do corpus

Para refletirmos sobre o preconceito linguístico, étnico e social,

marcados ideologicamente nos enunciados das redes sociais, analisaremos o

discurso enunciado em um pôster publicado na comunidade que faz parte do

nosso corpus de pesquisa, “Língua Portuguesa”, no Facebook. Partiremos da

análise dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa no gênero pôster

e comentários, mas não nos deteremos a uma análise exaustiva das

propriedades do texto e de suas formas de composição.

Cabe ressaltar que essa análise não esgotará os efeitos de sentido dos

discursos enunciados no pôster, nem em seus comentários; trata-se apenas de

uma tentativa de observar onde ele se faz presente, em que medida e como

esses discursos são construídos no imaginário social dos usuários dessa rede

social na internet.

Abaixo segue o pôster selecionado para a análise (exemplo 1):

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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O sujeito enunciador ocupa a posição social de professora de Língua

Portuguesa e de idealizadora dessa rede intitulada Língua Portuguesa, cujo

pôster foi publicado e tem como objetivo fornecer informações atuais, dicas

gramaticais, entretenimento, entre outros fatos relacionados à Língua

Portuguesa. Devido à sua grande notoriedade e repercussão entre os usuários

do Facebook, a comunidade se transformou em uma grande ferramenta de

transmissão de informações e solução de dúvidas.

Vale salientar que uma posição sujeito é dialógica por dividir diversas

vozes sociais. Na medida em que permite apreender sequências delimitadas

que mostram claramente a sua alteridade, no pôster acima, a

heterogeneidade mostrada se apresenta em forma de um discurso que

reafirma o preconceito linguístico e entre etnias. As marcas linguísticas estão

explícitas nos enunciados do pôster, pois, ao enunciar “como não comentar”

e “Feliz dia do índio pra você que fala: pra mim fazer”, há diferentes vozes

que, mesmo ocupando o mesmo espaço, silenciam outras vozes, ou seja,

aquelas que não se adéquam ao ideal de língua proposto pela gramática

normativa. Marginalizando, excluindo, assim, todo e qualquer falante que não

participa da variação.

Além do dialogismo mostrado no fio do discurso, há também vozes

dialógicas que trabalham com a noção do dialogismo constitutivo, sendo que

este não deixa marcas visíveis no fio discursivo. Nesse caso, os enunciados do

pôster se apresentam em relações dialógicas com as vozes discursivas

anteriores, ou seja, as que perpassam o imaginário social sobre o bom uso da

língua e sua relação com os indígenas que não a dominam. Além disso, os

enunciados também têm o seu modo de orientação para o interlocutor e para

a sua responsividade.

Esta página do Facebook se direciona a públicos distintos, àqueles que

defendem a norma, aos que a "violam" e aos que se interessam, mas não

assumem uma postura visível no fio discursivo. Aqueles que defendem a

homogeneidade linguística se tornam engajados ao discurso do enunciador.

Ao mesmo tempo, esse discurso se distancia dos usuários que não se

adéquam à norma culta da língua. Esse distanciamento é manifesto por meio

da posição valorativa e em certos traços estilístico-composicionais, como o

uso do pronome você e não o nós. Neste caso, no movimento dialógico de

engajamento, os interlocutores não levam diretamente todos os leitores à

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posição de aliados ao seu discurso, pois excluem aqueles que possivelmente

não se adéquam à norma padrão.

Já em relação ao movimento dialógico de refutação, o locutor antecipa

as possíveis reações-respostas de objeção que o interlocutor poderia

contrapor ao seu discurso, abafando-as. Nesse sentido, o autor provoca o

silenciamento. Esse movimento pode ser observado no enunciado no topo do

pôster, quando o autor diz: "como não postar". A refutação consiste na

antecipação do autor de possíveis críticas que receberia de alguns leitores

mais críticos em relação à língua. Ao enunciar, o locutor enfatiza que não

poderia abafar o seu discurso, teria que ser expresso, embora fosse contra a

vontade de alguns, mas representaria para o autor uma realidade inevitável.

Em relação ao movimento ideológico, o enunciador apresenta o seu

ponto de vista em relação à sua posição conceitual de língua homogênea

como sendo a verdade absoluta à qual os interlocutores devem se sentir

compelidos a aderir. A opinião de um sujeito que assume a posição de

professora de português torna-se uma voz autorizada pela sociedade para

definir o que é “certo” ou “errado” em relação ao “bom uso da língua”. Essa

voz se apresenta como uma relação de imposição sobre os interlocutores

dessa página na rede social.

O preconceito étnico-social que é perpassado no pôster consiste na voz

que o enunciador assume ao impor uma posição valorativa que

ideologicamente deprecia a imagem do índio na sociedade brasileira, pois ao

“violar” as regras da gramática normativa, o sujeito é comparado a um índio.

Dessa forma, a imagem do índio é negativada e depreciada.

Grande parte dos usuários que participam como membros dessa rede

assumem, além de uma posição de observador e simpatizante, uma posição

conservadora em relação à língua, pois, hipoteticamente, o que eles esperam

é que essa página defenda a norma padrão, tanto na modalidade escrita,

quanto na falada, conforme vemos nos exemplos abaixo, retirados dos

comentários de alguns membros dessa comunidade (exemplo 2):

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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Dentre as centenas de comentários que foram publicados nesse pôster,

selecionamos apenas os dois acima como parte representativa da

materialidade textual-discursiva dos interlocutores que estão subordinados a

uma tradição que defende a homogeneidade linguística no Brasil. Tais sujeitos

não conseguem identificar nenhum traço de preconceito linguístico, social ou

étnico. De acordo com esses enunciados, da maneira que foi publicado, o

pôster não transgrediu as normas do bom senso nem da ética. Não houve

nenhuma manifestação de preconceito ou desvalorização de etnias ou classes

sociais.

Mas também há aqueles que participam dessa página para obter

conhecimentos a respeito da norma padrão da língua culta. O que

provavelmente os motiva a participar é a relevância das informações que são

ali transmitidas, ou seja, as dicas gramaticais, como vemos na seleção dos

comentários abaixo (exemplo 3):

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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Como vemos nessa seleção, o conteúdo, aparentemente inocente do

pôster, suscitou a reflexão de muitos membros da página, que perceberam

nos discursos enunciados boas doses de preconceito sociolinguístico.

Observamos também no exemplo supracitado, no comentário em destaque,

enunciado pelo autor do pôster, que, apesar de assumir uma posição na qual

adota a gramática normativa como objeto de seu discurso e como tema de

debate, as formas de se falar/escrever “corretamente” a língua portuguesa

em quase todos os seus enunciados, o enunciador tenta se desvencilhar de

sua posição normativa, devido à atitude responsiva de seus interlocutores.

Ao justificar-se diante das críticas dos seus interlocutores, o autor

propõe que, ao enunciar em seu pôster, utiliza-se do gênero humorístico,

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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apenas para torná-lo leve e descontraído. Utilizar a estratégia de deslocar a

característica de um gênero para outro foi uma das formas que o autor

encontrou para se redimir e minimizar os efeitos de sentido causados pelo seu

enunciado entre os interlocutores. Segundo Brait (2008), o humor é um

aspecto importante para a sociedade, pois “[...] o discurso humorístico

possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou

mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem

menos críticos.” (BRAIT, 2008b, p. 17). O autor recorre ao gênero humor para

classificar seu enunciado porque o sujeito que enuncia através de enunciados

humorísticos não pode ser julgado pelo que diz. Sobre o discurso humorístico

não recaem as regras forjadas durante a história e que se perpetuam e recaem

sobre outros discursos.

Considerações finais

As representações ideológicas sobre o mito da homogeneidade

linguística que circulam no imaginário social são resultados de um longo

processo de desprestígio dos falantes que não dominam a variante padrão.

Sendo assim, algumas vozes discursivas presentes no pôster corroboram para

perpetuar os preconceitos linguísticos, étnicos e sociais.

A construção composicional dos gêneros da internet, mais

especificamente as redes sociais, compõe-se de uma orientação valorativa que

está presente em enunciados já-ditos. No gênero pôster do Facebook, que foi

analisado, vimos a multiplicidade de sentidos para todos aqueles discursos

que circulam no imaginário social do brasileiro em relação ao índio e em

relação à língua.

A imagem do índio que é passada para os interlocutores, por meio das

diferentes vozes sociais presentes nos enunciados do pôster, é de preguiçoso.

Nesse contexto, o índio é aquele que não aprendeu a língua dos dominadores,

ignorante, selvagem, incivilizado, sem cultura, leis, religião etc.

Apenas em um pôster foi possível identificar a multiplicidade de vozes

que estão presentes nos enunciados. Nesse pôster, podemos notar o diálogo

que ocorre entre o conservadorismo linguístico e as vozes mais liberais. São

esses os discursos com os quais o enunciado mantém relações dialógicas, que

dão corporeidade e sustentação aos preconceitos presentes na publicação do

pôster.

PIRES, Cláudio Henrique de Souza; PINTO; Daglécia dos Santos. As diferentes vozes e os múltiplos sentidos em publicação da página “Língua Portuguesa” no Facebook. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 42-55, dez.2013.

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REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BAKHTIN, Mikhail . Marxismo e filosofa da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, Mikhail . Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 279-302. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às Teorias do Discurso. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e a construção do sentido. 2.ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2005a. p. 25-36. BRAIT, Beth. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: ______ (Org.) Bakhtin, dialogismo e a construção do sentido. 2.ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2005a. p. 87-99. ______. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005b. ______. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée; MEURER, José Luiz (Org.) Gêneros: Teorias, Métodos, Debates. São Paulo: Parábola, 2005. CAMPOS, Maria Inês Batista. Questões de literatura e de estética: rotas bakhtiniana. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012. p. 113-149. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do circulo de Bakhtin. São Paulo: Parábola. 2009. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Àtica, 2008. MARCUSCHI, Luiz Antônio. XAVIER, Antônio Carlos (Org.) Hipertexto e Gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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RETÓRICA DA IMAGEM E TEMÁTICA DA UNIÃO NO DISCURSO ICÔNICO

EM TORNO DA TOMADA DE POSSE DE ALASSANE OUATTARA

Dorgelès Houessoui

Resumo: Alassane Ouattara tomou posse como presidente da República da Costa do Marfim em 21 de Maio de 2011. Na memória dos marfinenses, nenhuma tomada de posse presidencial precedente mobilizou tanto interesse nacional e internacional, nem dos fundos financeiros, nem do mundo, nem da imaginação e nem mesmo de imagens... Partindo da ideia de que “a imagem é apenas uma organização filtrada ‘dos dados do mundo’, uma interpretação, um discurso ‘sobre o mundo’, [...] um agrupamento de sinais, [...] construída, semiotizada, deslocada, relativa e contextualizada” (JOLY, 2002), propomos nesse artigo uma “palestra, aula, algo assim” semiológica de algumas imagens associadas à tomada de posse de Alassane Ouattara em vista de estudar a função publicitária delas. Se, como lembra Joly (1994), “a plasticidade das mensagens visuais constitui um nível de significação para a parte inteira que interage com os outros níveis - o icônico, o linguístico e o institucional -, para produzir uma mensagem global”, nos esforçamos para identificar evidências da conformidade dessas imagens ao tema da união sob o signo linguístico que estava presente na tomada de posse. Trata-se de descrever o processo pelo qual um simples chamado à união, devido à expressão da autoridade institucional, que lhe é contíguo, é definido de imediato como objeto de união.

Palavras-chave: Imagem visual fixa. Semiologia da imagem. Semiótica visual. Signo icônico. Signo plástico.

Abstract: Alassane Ouattara was inaugurated as president of the Republic of Côte d’Ivoire on 21 may, 2013. Within Ivorian memory, no inauguration ceremony has ever mobilized so many national and international interest, neither funds, nor crowd, imagination, let alone images… From the stand point that image is nothing but “a filtered organization of data of the world – a set of built semiotized, shifted, related an contextualized signs” (JOLY, 2002), we suggest in this article the semiological reading of some images associated with the inauguration of Alassane Ouattara. If as Joly states “the plasticity of visual messages represent a level of meaning as a whole, that interacts with the others that are iconic, linguistic and institutional to yield a global message” (Joly 1994: 104), we afford to work out the relevancy of these images to the theme of gathering through the linguistic sign on which the inauguration focused. Then we describe the process whereby a simple call for gathering, thanks to the expression of the institutional authority, proves first of all as the object of gathering.

Keywords: Fixed visual picture. Semiotics of the image. Visual semiotics. Iconic sign. Plastic sign.

i Doutorando pela Université Félix Houphouët Boigny d’Abidjan-Cocody, Costa do Marfim. E-mail: [email protected].

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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Uma espetacular tomada de posse...

A tomada de posse de Alassane Outtara para a liderança da Costa do

Marfim é anunciada pela imprensa como um evento histórico e descrita mais

tarde como sendo fenomenal. Consolidou-se como um evento anunciado por

dois comerciais que foram transmitidos repetidamente por dois canais da

televisão nacional e cartazes espalhados pelas principais ruas das cidades de

Abidjan e Yamoussoukro. O gigantismo desse evento se mantém desde a

escolha do lugar para sua realização: a sede da fundação Félix Houphouët

Boigny (fundação FHB), dedicada à pesquisa pela paz, que conta dois mil

lugares, mas que abriga bem mais.

A grandiosidade se manteve na qualidade e no número de convidados,

entre os quais se encontravam cerca de vinte chefes de Estado e

representantes de governos africanos, como o presidente francês Nicolas

Sarkozy e seu ministro de relações estrangeiras Alain Juppé, e mesmo o

secretário geral das Nações Unidas Ban Ki-moon. Às autoridades políticas, se

juntaram grandes empresários que assumiam o papel de autoridades

econômicas, como Martin Bouygues (CEO do grupo BOUYGUES), Vincent

Balloré (CEO do grupo BALLORE) e Alexandre Vilgrain (presidente do conselho

francês de investimentos na África e CEO do grupo agroindustrial SOMDIA’A).

Havia ainda um grande número de participantes que não conseguiram

um lugar na sala da cerimônia e ocuparam os jardins paisagísticos preparados

para a ocasião e equipados com telas gigantes: uma multidão veio manifestar

sua alegria na cerimônia de posse, que contava com dezenas de milhares de

homens, mulheres e jovens. Além disso, notava-se a ressonância internacional

desse momento histórico por meio dos dispositivos de comunicação que o

cercavam. A maior parte das mídias internacionais lá estavam representadas.

Um site oficial lhe foi dedicado na internet, apresentando menus como “o

comitê de organização”, “o programa”, “o histórico”, “o presidente”, entre

outros. Enfim, notaremos a diversidade de produtos derivados do evento que

estampam as cores nacionais e a mensagem que anunciava a tomada de

posse. Esses produtos iam de acessórios vestuários (camisetas, pagne1,

1 Nota da tradutora: pano retangular, colorido, com estampa florida, que pode servir como

vestuário, ser usado em peças de decoração e em muitos outros objetos. Durante sua produção,

homens batem as fibras, enquanto as mulheres são responsáveis pela decoração do tecido. Hoje

em dia, a técnica foi modernizada e são utilizados quatro tipos de fibra têxtil: algodão (mais

comum), seda, lã e ráfia. Em suma, é um tipo de tecido pertencente à cultura africana.

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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bonés…) a embalagens de produtos alimentícios e de garrafas de água

mineral, passando por flâmulas e bandeirolas.

Em suma, a febre e a excitação foram tão grandes para aquela tomada

de posse que o dispositivo de segurança montado bateu todos os recordes,

porque contou com as forças de paz da ONU, as Forças Republicanas da Costa

do Marfim, efetivo da força francesa Licorne e do exército de Gana. O

gigantismo do evento impõe que se decifrem os sentidos, os ditos e os

implícitos. Assim, para tal fim, este estudo aborda a dimensão semiótica da

comunicação visual sobre a tomada de posse, antes dela e durante ela.

1 O pré-discurso visual

Precedendo o discurso da tomada de posse propriamente dita, a

logomarca dessa cerimonia é portadora de uma temática de união, cuja cor

vem em verde e em laranja. Neste artigo, interessamo-nos particularmente

pelas variantes da cor laranja.

1.1 Abordagem icônica

1.1.1 A construção ou o itinerário de leitura

O primeiro cartaz é dominado pelas linhas horizontais. Elas impõem uma

leitura estática, ou seja, realizado em uma única linha e orientado pela

dimensão paisagística do enquadramento. E o mesmo se aplica ao segundo

cartaz.

Figura 1 – Cartaz de divulgação 1 da tomada de posse do presidente marfinense Alassane Outtara.

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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Figura 2 – Cartaz de divulgação 2 da tomada de posse do presidente marfinense Alassane Outtara.

1.1.2 O enquadramento

A primeira imagem (Figura 1) é enquadrada horizontalmente e

organizada em torno de dois níveis: o texto no fundo e a cor laranja sólida. O

texto comporta seis unidades de fontes e de tamanhos diferentes em sete

linhas e é estruturado em torno de três superfícies. A primeira é constituída de

um quadro retangular contendo o essencial semântico e icônico da mensagem

textual com os dois maiores tamanhos de fonte. A frase “La Côte d’Ivoire” (“A

Costa do Marfim”) está acima do adjetivo “rassemblée” (“unida”) que possui

expessura gráfica e está distribuído ao longo da frase que está acima dele.

Ambos estão em letras maiúsculas. A segunda superfície constitui um quadro

branco que comporta três unidades de cor verde divididas sobre três linhas, as

duas primeiras “le 21” (“o 21”) e “mai” (“maio”), em letras minúsculas,

possuem expessura mediana quando comparadas à terceira “2011”, que

constitui o carácter dominante. A última linha apresenta “Yamoussoukro” em

letra maiúscula e em cor laranja. Essa é a menos importante dessa superfície e

de todo o texto em termos de tamanho e de espessura gráfica. A última

superfície é linear e sublinha as duas primeiras superfícies, comportando uma

frase nominal em letras maiúsculas anunciando um evento: “INVESTITURE DE

DU PRÉSIDENT DE LA RÉPUBLIQUE” (“TOMADA DE POSSE DO PRESIDENTE

DA REPÚBLICA”). A disposição do texto direciona invariavelmente para a

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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seguinte leitura: “A Costa do Marfim unida, 21 de maio de 2011, Yamoussoukro,

tomada de posse do Presidente da República”.

A segunda imagem (Figura 2) é também enquadrada horizontalmente e

comporta cinco níveis:

• Texto de cima: sendo anafórico ao texto do primeiro cartaz, nota-se

uma mudança na cor da fonte do quadrado branco que de verde passa

ao laranja, exceto pelo nome da vila de Yamoussoukro, que, de laranja

no primeiro cartaz, passa à cor verde;

• A fundação FHB, na profundidade do campo, é revestida de uma

auréola importante;

• Os jardins da dita fundação;

• Um signo icônico representando uma multidão de homens, mulheres e

crianças colocada em quatro fileiras, em que a primeira fileira conta

com nove personagens alinhadas regularmente ao centro e de cor

branca. A segunda fileira oferece a ilusão de inúmeras personagens,

que estão na cor laranja e em tom claro. As terceira e quarta fileiras

apresentam as mesmas estruturas e são de tom mais escuro. Essas

personagens são dobradas pelas sombras que se projetam e que estão

paralelas aos raios da auréola que reveste a fundação FHB;

• Uma unidade textual em letras maísculas anuncia o evento: “TOMADA

DE POSSE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA”.

1.2 Abordagem Iconográfica

1.2.1 Simbólico2

O branco e o cinza

O branco é universalmente associado à luz diurna e às conotações que a

ela são associadas e, na maior parte dos casos, dá valor aquilo ao que está

relacionado. Paradoxalmente, o branco é também associado ao além e ao luto

em algumas culturas. No contexto dessa imagem, o branco pode definir a

pureza ligada ao renascimento da Costa do Marfim a partir da tomada de

posse, depois de um período de dificuldade pela guerra que toda a nação

experienciou. A tomada de posse anunciada se investe então de valores

2 Todo o simbolismo das cores apresentado neste artigo é retirado de J. Peyresblanques (1998).

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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construtivos. Ela trata do renascimento como de um dia novo que se ergue,

mas também da celebração do luto das vítimas da crise cujo sacrifício não terá

sido em vão, visto que resulta nessa dita tomada de posse. A vetorização

negativa do branco é comum em várias civilizações, mas ela se determina por

contraste a outras cores. O branco poderia então simbolizar, dentro da

temática do luto, todos os desaparecidos durante essa crise. Essa hipótese

tende a confirmar o valor da “união” dessa tomada de posse, pois ela se torna

o lugar de uma homenagem aos sobreviventes e aos mortos. O cinza do

edifício que está associado ao branco traduz implicitamente essa ambivalência

semântica do branco.

O Amarelo e o verde

O amarelo e o verde simbolizam a riqueza e a fertilidade. Assim como o

verde não está associado apenas à riqueza material, mas também à felicidade

e à vida, entendida como ouro, o amarelo divide com o branco a “semeação”

da luminosidade. Para este fim, carrega os valores ideológicos deste último

que ligam o homem à riqueza interior e exterior. Nesse contexto da tomada

de posse, diz-se que o amarelo traduz a renovação da Costa do Marfim por

meio da qual essa nação retomará o progresso econômico e encontrará seu

status - como um argumento dóxico o sublinha - de “país abençoado de

Deus”; prosperidade espiritual, mas também de felicidade material. Além

disso, o laço entre o amarelo e a tomada de posse, cujo jogo é uma

transferência de poder, se aproveita do simbolismo dessa cor que é associado

às vezes ao poder divino, mas também aos homens cujo poder é investido por

eles mesmos.

O amarelo enquanto símbolo de riqueza é também associado aos valores

negativos, como a ganância e o sadismo3. Um poderia gerar a inveja, o ciúmes,

3 “Há ambivalência porque a cor dos grãos maduros de trigo, milho, milho miúdo... é a cor amarela que anuncia o outono. Ela é seca como o ouro que provoca inveja desejo e prazer. Na mitologia grega, as maçãs de ouro das Hespérides são símbolo de amor e harmonia, mas a Guerra de Tróia foi provocada por uma maçã dourada, maçã do orgulho e da inveja. Para o Islã, amarelo é associado à traição e decepção. Na China, as fontes amarelas levam ao reino dos mortos. No teatro de Pequim, os atores com maquiagem amarela representam a crueldade, a dissimulação, o cinismo. Entre os cristãos, o amarelo também significa traição: Judas é mostrado com um vestido amarelo, bem como os judeus. É por isso que, em 1215, o Concílio de Latrão colocou uma rodela amarela em suas roupas, retomando a ancestral estrela amarela que é uma sinistra memória [...]” (PEYRESBLANQUES, 1998, p. 5-6).

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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a traição, a discórdia e o outro as atrocidades de uma guerra. Se o amarelo

evoca a traição nascida do fato da conscupisciência e da ganâncida ávida, esse

cartaz da tomada de posse não parece fazer ilusão a isso. A codificação

semiótica proíbe tal perspectiva, é necessário interrogar o contexto pré-

discursivo para divulgar um relatório sobre ele. Esse é de fato o ponto no qual

a tomada de posse constitui um bem, uma riqueza tanto tão moral quanto

material - pois simboliza o poder da luxúria ligada à sua conquista que

conduziu o país à guerra. Isso concluído, convém jogar uma luz espectacular

sobre este cenário, restaurar os valores e as virtudes da instituição

presidencial que, apesar do doloroso passado recente, deve continuar a ser

uma fonte de desejo.

O Laranja

O laranja está assoiado às chamas, a suas oscilações ondulatórias, ao

movimento que elas geram e que traduzem uma dança constante. É o símbolo

da alegria. Nesse contexto da tomada de posse, o argumento da alegria se

sobressai. Trata-se literalmente de uma celebração e sua dimensão festiva é

sustentada por seu status de evento nacional. Mas é igualmente possível

deduzir que o laranja traduz a união mística do povo e da soberania na

inscrição da tomada de posse no teatro da fundação FHB. Trata-se de fato de

uma desapropriação da identidade individual do sujeito investido que é levado

a assumir uma identidade institucional e coletiva que se materializa nela e com

ela. É a cor dos monges realizados, assim encontra-se com o laranja a teoria

dos casamentos místicos do homem finito com a divindade infinita que por

deslize dóxico – pois se acredita que o poder vem de Deus – pode ser

assimilado à comunhão mística entre o povo e o soberano.

O laranja também pode ser colocado em relação a valores negativos. A

infidelidade e a traição podem notadamente ser assimilados ao laranja,

segundo Peyresblanques (1998). A imagem de infidelidade e do engano,

embora seja impossível deduzir a codificação ou intenção comunicativa do

enunciador, apresentam-se insidiosamente e como por um curioso acaso em

relação à essa cerimônia que manipula as massas tão queridas ao discurso

político.

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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1.2.2 Figuras de retórica

1.2.2.1 Figuras de contiguidade: construção ropálica4 e metonímia

A disposição das unidades textuais do primeiro plano, em particular

aquelas da primeira superfície, sugere uma composição gráfica que nos parece

proceder da construção ropálica. De fato, se o sintagma nominal “a Costa do

Marfim” estivesse em um tamanho e em uma expessura gráfica semelhantes

ao do adjetivo “unida”, essas duas unidades textuais não estariam na mesma

medida visual, quer dizer no mesmo comprimento, porque de fato elas

diferem quanto à métrica vocal (cinco sílabas para a primeira contra três para

a segunda). Assim, a opção de as dispor sobre uma mesma medida de forma a

serem alinhadas verticalmente na primeira e na última letra de cada unidade

textual da primeira superfície visa diminuir a expessura do traço do sintagma

nominal “a Costa do Marfim” bem como seu tamanho. Isso resulta em um

efeito de compressão ou de aglomeração que evoca a ideia da união sugerida.

A forma dos caracteres dessas duas unidades textuais é portadora do senso

dessa mesma sequência textual. Definimos essa construção semântica como

relevante para o procedimento ropálico cujo senso etimológico é próximo da

codificação que acabamos de descrever. Do grego, significa na prática “em

forma de clava, cujo metro aumenta ou diminui na medida dos diferentes

diâmetros do objeto representado”.

Além disso, uma metonímia da parte pelo todo é perceptível no segundo

cartaz. A multidão ilustra a sequência textual analisada acima, é anônima

porque não tem as formas humanas, não especifica a sua identidade. Essa

imprecisão é um convite ao leitor dessa imagem a se reconhecer nela. A

metonímia mantém aqui a assimilação dessa multidão à integralidade do povo

marfinense.

1.2.2.2 Figura por analogia: A metáfora

A disposição central das unidades textuais do primeiro cartaz constitui

uma metáfora de orientação (MORIER, 1989, p. 1010), que tem o centro como

ponto nevrálgico, como ponto de evidência absoluta e como o primado do

coração. Tal cartaz traduz então a evidência da união, presente no coração de 4 Nota da tradutora: ropálico - verso grego ou latino que começa por monossílabo, tendo cada uma das palavras seguintes uma sílaba mais que a anterior. Ropálico é um adjetivo que provém do latim medieval: rhopalicus.

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todos os marfinenses, e que não constitui um projeto, mas um fato já

consumado por antecipação cronológica, e que a tomada de posse do

presidente somente confirmará.

O segundo cartaz (Figura 2) apresenta as mesmas disposições devido à

anáfora contida nas unidades textuais do primeiro cartaz (Figura 1). Uma

segunda metáfora, assimilando o poder a um desses símbolos-chave, ou seja,

o sol, é perceptível por meio da auréola e dos raios luminosos que são

emitidos da fundação FHB. A porta une uma configuração metonímica

evidente do lugar para o poder que ele representa contextualmente aqui: a

tomada de posse. Trata-se, portanto, do lugar da tomada do poder solene. A

temática do sol nascente retoma estranhamente nesse cartaz a campanha,

atualizada neste momento da tomada de posse, pois o sujeito eleito Alassane

Ouattara é vestido de uma auréola resplandescente. A relação intertextual

dessa metáfora também pode ser afirmada em uma passagem do discurso de

posse de Paul Yao N’dre que, citando Ahoua N’guetta, afirmava: “você deve

ser o senhor presidente: ‘O sol nascente e resplandescente acima da colina que

clareia o navio marfinense’”. Trata-se de uma temática que agrada o sujeito

empossado, pela qual ele se reapropria dos valores de pureza, bondade,

orientação, unidade, valores doxicamente associados à utilização da auréola.

Figura 3 – Cartaz de campanha presidencial do então candidato Alassane Dramane Outtara (ADO).

1.2.2.3 O paradoxo

Duas fontes luminosas estão em conflito na segunda imagem. A

primeira proveniente da Fundação FHB justifica as sombras orientadas para o

exterior. Essa iluminação é uma metáfora do sol que se levantou há pouco. A

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segunda fonte luminosa é extra figurativa e está fora desse âmbito. Essa fonte

anônima ilumina a primeira fileira da grandeza figurativa que representa a

multidão e orienta as sombras das personagens representadas no interior.

Isso explica o degradé dos tons indo do branco ao laranja escuro na

profundeza da multiplicidade. Se a multidão assim apresentada na disposição

global da imagem é sugerida pelo enunciador como uma expressão icônica e

autônoma da união, ela é tomada a partir do jogo paradoxal da claridade entre

o eixo visual do enunciador e a profundidade da imagem. De fato, as nove

personagens em primeiro plano e a fileira em sequência são projetadas para o

olhar do enunciatário, se acreditarmos que claridade provém delas e também

na disposição de seus pés. Aqueles que estão ao fundo, por outro lado,

parecem cativados pela majestade do edifício e se constituem como um polo

enunciativo; pelo menos é o que parece propor a similaridade cromática entre

esses e os jardins do instituto. Eles, portanto, constituem corpo com o evento.

Assim a grandeza figurativa das personagens comporta dois

subconjuntos determinados pelo ponto de vista. De uma parte, existem as

personagens que, fixando o enunciatário, o convidam a se juntar à união

suscitada pela tomada de posse e, de outra parte, existem aqueles que, já no

espetáculo da tomada de posse aureolada, assistem ao evento na mesma

direção que o destinatário. Essa construção constitui uma representação da

tomada de posse como um espetáculo mágico e majestoso.

É percebido em definitivo um duplo paradoxo na segunda imagem. Um é

relativo às iluminações associadas à espetacularidade (auréola) do evento, à

espetacularização do evento, o que cativa os projetores; o outro está ligado ao

posicionamento espacial das personagens colocados de costas uns para os outros.

1.2.3 Referências culturais e mitológicas

O código cromático revela as cores da bandeira nacional marfinense e,

por deslize argumentativo, a moeda nacional cujo enunciado (União -

Disciplina - Trabalho) é constitutivo do mito fundador da nação marfinense,

nascida pelo trabalho e forjada na disciplina e na união de seus pais

fundadores, como também do mito discursivo do renascimento nacional. Isso

porque a união que precedeu o nascimento da nação marfinense, e cuja

temática da união constitui um atualizador, deve igualmente presidir o

renascimento da dita nação.

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2. Iconicidade da tomada de posse

Uma grande diversidade de imagens celebra a tomada de posse

propriamente dita. Limitamos nosso trabalho a quatro sinais icônicos em

razão de seu carater original: o pagne oficial da tomada de posse; o rótulo de

uma garrafa de água mineral; os diversos brindes, dentre os quais os bonés

nos interessam (vide Figura 4). Podemos reduzir a expressão icônica dessa

tomada de posse a duas modalidades: a da vestimenta e a do alimento.

Conduzimos, assim, nossa análise com base nas fotografias extraídas do

filme da tomada de posse de Alassane Outtara, difundidas em vários sites na

Internet5 e que dão noção da dimensão da celebração da tomada de posse

que carregava a temática imperativa da união.

Figura 4 – Fotografias extraídas do filme da tomada de posse de Alassane Outtara, para composição do corpus.

2.1 Abordagem icônica

2.1.1 A vestimenta

O pagne é trajado por uma jovem dama elegantemente vestida, que

usa também luvas brancas e um chapéu branco ornado com duas fitas laranjas

e verdes. In abstracto, o pagne apresenta-se sob a forma de uma trama branca

que compreende três grandezas figurativas. A primeira é um padrão de fundo

5 Especialmente, o site disponível em: <www.abidjan.net>. Acesso em: 23 mai. 2011.

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de pequeno tamanho que apresenta um punhado de mãos. As mãos agarram

umas às outras e saem da alça colorida. A alça da direita é de cor laranja, a da

esquerda é de cor verde, enquanto que as duas mãos que se apertam possuem

um leve contorno preto que deixa transparecer uma trama no fundo branco. A

segunda grandeza figurativa de tamanho médio é um mapa da Costa do

Marfim em contorno levemente escuro e cujo fundo é constituído de uma

faixa branca mediana separando os lados das extremidades oeste/nordeste de

cor laranja e leste/sudeste de cor verde. A terceira grandeza figurativa

constitui uma imagem do presidente da República. De tamanho

impressionante, comparado às outras duas, essa fotografia oval é cercada por

uma mensagem textual cuja leitura impõe dois semi-círculos sintagmáticos.

Temos, no alto e da esquerda para a direita, o sintagma “TOMADA DE POSSE

DO PRESIDENTE” e, abaixo, sempre de esquerda à direita, a designação

“ALASSANE DRAMANE OUTTARA”. A fotografia faz notar um ponto de vista e

constitui um plano aproximado. Percebe-se ali um traje escuro, uma camisa

branca e uma gravata escura, mas que exibe faixas inclinadas de tons em

degradé indo do cinza ao branco. O sujeito representado, o presidente a ser

empossado, exibe um sorriso.

Quanto aos bonés, eles reproduzem a imagem do primeiro cartaz

analisado. A imagem tem dois tons. Um branco e outro laranja. Ela representa

um zoom sobre uma multidão de participantes na cerimônia da tomada de

posse. Três personagens a constituem. Um adolescente em primeiro plano

exibe entre as mãos um formato reduzido do cartaz publicitário que anuncia o

evento, na mão esquerda um boné qualquer de cor rosa e sobre a cabeça um

boné publicitário do evento, dominado pela cor laranja. Ele mesmo está

vestido de branco. Provavelmente abaixado à sua frente está um indivíduo

cujo corpo está fora de esquadre, mas que também usa um boné publicitário

do evento. Percebe-se isso por possuir as mesmas inscrições, apesar de diferir

na cor branca, exceto a viseira que é laranja. Atrás do adolescente em primeiro

plano, há um terceiro personagem que usa o mesmo boné.

2.1.2 O alimento

Trata-se de uma garrafa de água mineral cujo rótulo constitui um cartaz.

A trama do fundo apresenta três faixas horizontais de cores diferentes. A cor

laranja está no alto, a branca no meio e a verde abaixo. Enquanto nas

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extremidades superior e inferior as faixas de cores laranja e verde são

claramente definidas pelos limites do rótulo, a de cor branca é turva e

apresenta um degradé que dá a essa faixa branca uma impressão de

desproporção quanto às duas outras faixas laranja e verde. Duas mensagens

textuais delimitam então a faixa branca. A primeira a partir do alto e até o

limite entre as faixas laranja e branca está escrita em duas linhas:

“S.E.M. o Presidente

Alassane Dramane Ouattara”

A segunda mensagem textual, abaixo, se estende sobre três linhas. Ela

forma uma linearidade paralela com a primeira mensagem e traz os sintagmas:

“Cerimônia de tomada de posse

Yamoussoukro

21 de maio de 2011”

Entre essas duas mensagens textuais e o centro da faixa branca, um

círculo de contorno escuro forte apresenta também três faixas verticais de cor

laranja, para a da direita, branca para a do centro e verde para a da esquerda.

Sobre o canto esquerdo da primeira grandeza figurativa se supõe um mapa

nacional cuja imagem do fundo é a fotografia do presidente.

2.2 Abordagem iconográfica

O pagne oficial da tomada de posse pertence à publicidade do evento. O

fato é que seu impacto está, ao mesmo tempo, na atualização, enquanto

índice de celebração da tomada de posse, e na projeção futura do que é

suscetível de constituir uma lembrança da celebração em questão. Na

verdade, pareceria incongruente considerar a tomada de posse antes da data

do evento que anuncia. E o mesmo acontece com o seu corolário, o boné;

somente sua atualização no próprio dia da tomada de posse teria sido

suscetível de fazer compartilhar o sentimento de fervor e de ligação que

rondava o evento.

É proposto ao público, como um índice de vestimenta da celebração da

tomada de posse, um uniforme, no sentido psicológico do termo,

assegurando àqueles que o vestem uma identidade coletiva e seu

pertencimento ideológico comum. O uniforme garante, assim, a toda pessoa

que o veste a certeza de constituir uma encarnação localizada e temporal do

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código semiótico que o caracteriza. Um policial de uniforme representa,

metonimicamente, a polícia, um soldado, o exército etc. Daí, nosso interesse

em escolher uma imagem do pagne que não estivesse isolado, mas em uma

situação de atualização. Assim, a roupa da jovem mulher permite deduzir que

se trata de uma líder. Esse detalhe tem seu peso, pois ele associa diretamente

o elemento visual à cerimônia de tomada de posse. De fato, a roupa das

lideranças é bem cuidada e revela a iniciativa do comitê de organização do

evento. Trata-se, portanto, de uma voz oficial que leva a mensagem nelas

mesmas, por meio de sua roupa e da harmonia que elas exibem no conjunto,

constituindo uma encarnação ritual, localizada e temporária, do poder

presencial empossado. Na verdade, está implícito que uma organização

consegue confirmar sua seriedade, eficácia e todo o poder do presidente

empossado pela ação do comitê de organização da cerimônia, que conseguiu

uma façanha jamais obtida em uma eleição presidencial na Costa do Marfim

antes da criação de uma imagem materializada em tecido, ocupando assim o

lugar de uniforme. Na mesma ótica, o fato de o adolescente que está usando

um boné com as cores da tomada de posse ter à mão esquerda um outro boné

na cor rosa confirma que os bonés publicitários haviam sido distribuídos no

momento da cerimônia pelo comitê de organização visando agregar

esplendor ao evento. O simbólico do pagne emerge de um percurso figurativo

em quatro tempos:

• Uma personificação tende a fazer coincidir sobre um plano

sintagmático e semântico a fotografia do presidente e o desenho do

mapa nacional. Pode-se deduzir que o rosto do presidente é também

aquele da nação que ele personifica com a tomada de posse. Sua

imagem por causa dessa contiguidade se torna o símbolo da nação.

• Uma mise em abîme (técnica da imagem dentro da imagem) deixa

entrever que o sorriso da líder que veste o pagne trata-se de um eco

emocional do sorriso exibido pelo presidente. A alegria do sagrado é

assim partilhada entre o soberano e seu povo, cuja líder é uma

emanação. Se o presidente sorrindo deseja comunicar sua felicidade,

alegria e fé no futuro aos seus concidadãos, esses são, acima de tudo,

felizes de colocar no poder, por meio da tomada de posse, um homem

que encarna sua aspiração ao bem-estar.

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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• Uma acumulação anafórica, nascida da multiplicidade dos punhados de

mãos em cores nacionais, sugere a pluralidade dos marfinenses que

dentro de sua diversidade se unem em torno do símbolo da pátria.

Figura 5 – Detalhe da imagem do presidente empossado no pagne vestido pela jovem líder.

Há, portanto, acumulação não de elementos diferentes, mas repetição

acumulativa do mesmo símbolo que traduz a unidade nacional em um

momento bastante propício ao da tomada de posse do presidente,

supostamente destinada a reunir todas as sensibilidades e a testemunhar a

continuidade, ao mesmo tempo, da instituição presidencial e do jogo

democrático. Além disso, o simbólico do punhado de mãos é

sincronizadamente denotativo do acordo, da amizade, da comunhão e da

confiança. Curiosa e paradoxal evolução do sentido de um gesto que, na

origem, exprimia a desconfiança dos combatentes na arena, pois estes

constatavam naquele momento que o adversário não encobria da vista de seu

desafiante uma arma mortal.

• Uma personificação da bandeira nacional marfinense, cujas cores se

cumprimentam, tende a induzir que se trata de um deslize isotópico,

seja do presidente que estende a mão a todos os marfinenses, como o

permite sua autoridade institucional, seja dos marfinenses quando se

cumprimentam em um espírito de reconciliação.

A visão perlocutória dessa imagem é, então, a de suscitar no destinatário

a adesão ao calor da tomada de posse e, portanto, a sua fidelidade

incondicional ao presidente empossado.

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O rótulo da garrafa apresentada mostra também a mesma estrutura

figurativa e argumentativa do pagne analisado. De fato, o mapa da Costa do

Marfim, cuja imagem de fundo é uma fotografia do presidente empossado,

constitui uma personificação da nação por esse último, como deixa sugerir a

tomada de posse por meio da qual as rédeas do poder executivo lhe são

confiadas.

... Uma tomada de posse espetacular

Sobre o caráter manipulativo das imagens, Serge Tisseron (1999) destaca

que “no cotidiano, estamos sempre sob a influência dos poderes vigentes e de

transformação, e isso nos conduz bem além da mera identificação de seu

significado”6. O tema da união anunciado com a tomada de posse está no

coração do sistema semiológico das imagens construído pelos organizadores

do evento que pretendem impressionar ou deslumbrar os destinatários. Ele

transparece por meio de um processo de simbolização cuja visão argumentativa

é de fazer crer que a eleição de Alassane Ouattara unifica os marfinenses que

passaram por vários anos de crise até o paroxístico da crise militar-civil pós-

eleitoral. Além desse aspecto da argumentatividade das imagens apresentadas,

é importante destacar seu caráter sem precedente na história política da Costa

do Marfim, o que merece ser mostrado como índice de espetacularização.

Primeiramente, a notificação constitucional da tomada de posse do

presidente eleito acontece somente três dias após a validação dos resultados

definitivos pelo conselho constitucional, os serviços do protocolo da

presidência não tiveram tempo para uma organização tão grandiosa. De fato,

foi a primeira vez que os cartazes foram exibidos nos grandes eixos das

capitais política e econômica, que são Yamoussoukro e Abidjan, para anunciar

a posse de um presidente marfinense. Em segundo lugar, é também a primeira

vez que a fundação FHB abriga esse evento, pois o que é de costume é a sala

dos passos perdidos da presidência da República servir de cenário à posse

presidencial na Costa do Marfim. Igualmente e em terceiro lugar, jamais os

produtos derivados de uma posse presidencial, como um pagne e brindes,

haviam sido previamente associados a esse evento.

6 http://1libertaire.free.fr/tisseron4.html

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Essas imagens participam, então, de um projeto argumentativo que visa

a manifestar, pelo espetáculo levado ao extremo, todo o poder da instituição

presidencial encarnado doravante por Ouattara. Essas imagens são

cognitivamente associadas ao ritual da tomada de posse e testemunham os

mecanismos de assujeitamento, dos quais a posse é portadora, bem como

suscitam no destinatário o sentimento de inferioridade frente à pompa de um

poder manifesto, como nota Goldberg (2010)7; fidelidade restrita ao

enfrentamento de todo o poder do presidente eleito que faz corpo com a

instituição que representa, a mais alta magistratura do Estado. Mas se o

sujeito aceita morrer em sua individualidade (simbolismo de inferioridade

assumida), o faz dentro do projeto de renascer em uma identidade coletiva,

cristalizada pelo presidente empossado. Porém, um paradoxo próprio de toda

posse é o de pretender a união de todos, embora uma minoria eleitoral se

encontre excluída dentro de tal celebração do culto da instituição

personificada. Assim, o jogo de imagens, representadas na tomada de posse

de Ouattara, sob a disfarce da celebração de uma posse, que se define como

objeto da união, é reveladora das intenções manipulativas e visa atestar a

eficácia da reconciliação nacional, apesar do abismo social que ainda está vivo

ou muito marcado.

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. L’image. Paris: Nathan, 1990. BAKHTINE, Mikhaïl. Le Principe dialogique, édité par Tz. Todorov. Paris: Seuil, 1981. BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie. Paris: Gallimard, 1980. CADET, C. et al. La communication par l’image. Paris: Nathan, 1998.

7 Isto ocorre “[...] porque o rito representa a atitude fundamental, verbal, gestual e a postura que pode ser reconhecida por alguém como inferior, diante da manifestação de um poder, e porque, ao lado do poder que se manifesta, o rito é o meio teatral de acreditar em uma superioridade e, assim, obter respeito e honra pela exibição de símbolos de dominação, riqueza, de realizações por vezes imaginárias, o que é menos frustrante e usado para restringir a violência real, criando ainda a aspiração por um estado mais elevado”.

HOUESSOU, Dorgelès. Retórica da imagem e temática da união no discurso icônico em torno da tomada de posse de Alassane Ouattara. Trad. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 56-73, dez.2013.

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GERVEREAU, Laurent. Voir, comprendre, analyser les images. 3.éd. Paris: La Découverte, 2000. GOLDBERG, Jacques. Éthologie et sciences sociales: journées d'études interdisciplinaires autour de l'homme et de l'animal. Paris: L’Harmattan, 2010. JOLY, Martine. L'image et son interprétation. Paris: Nathan, 2002. ______. L’image et les signes: approche sémiologique de l’image fixe. Paris: Nathan, 1994. ______. L’introduction à l’analyse de l’image. Paris: Nathan, 1993. MORIER, Henri. Dictionnaire de poétique et de rhétorique. 4.éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1989. PANIER, Louis. L’émotion à la «Une»: la mort de Yasser Arafat. In: RINN, Michael (Org.). Emotions et discours: l’usage des passions dans la langue. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. PEYRESBLANQUES, Jean. Histoire et symbolisme des couleurs. In: Les rayonnements optiques et les couleurs: faits et effets. Edition INRS (Institut National de Recherche et de Sécurité), março 1998. SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. Paris: Armand Colin, 2005. TISSERON, Serge. Le mystère de la chambre claire: photographie et inconscient. Paris: Flammarion, 1999. Tradução: Isabel Cristina Michelan de Azevedo

Docente da Universidade Federal de Sergipe

E-mail: [email protected]

Revisão da tradução: Eduardo Lopes Piris

Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA CIDADE E DE SEUS

HABITANTES EM UMA REVISTA LOCAL

Flávio Passos Santanai Márcia Regina Curado Pereira Marianoii

Resumo: Com o objetivo de observar como as estratégias argumentativas podem ser utilizadas para definir o ethos ou os ethé de uma cidade e de um povo e para tentar persuadir um auditório acerca de um determinado fato, analisamos, neste artigo, a reportagem “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, publicada na revista OMNIA em maio de 2011, em que o orador tenta convencer o público leitor de que Lampião não invadiu o município de Itabaiana por nele existirem heróis mais perigosos do que o Rei do Cangaço. A partir da análise dos argumentos utilizados no texto, desvelamos as imagens discursivas de uma cidade valente e de um povo corajoso e orgulhoso de sua história e de sua cultura. Para tanto, utilizamos como pressupostos teóricos e metodológicos os estudos da Argumentação e Retórica, da Semiótica Discursiva e da Análise do Discurso francesa.

Palavras-chave: Ethos. Persuasão. Argumentação. Itabaiana.

Abstract: Aiming to observe how the argumentative strategies can be used to define the ethos or ethé of a city and people, and also to try to persuade an audience about a fact, we analyzed, in this article, the newspaper report “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, published in the OMNIA magazine in May 2011, wherein the speaker tries to convince readers that Lampião didn’t invade Itabaiana due to the fact of other heroes more dangerous than him had already been to the city. Starting from the arguments used in the text, we reveal the discursive images of a city of a brave and courageous people proud of their history and their culture. So that, we used theorical and methodological studies of Argumentation and Rhetoric, Discursive Semiotic and Discourse Analysis of French Speech as assumptions.

Keywords: Ethos. Persuasion. Argumentation. Itabaiana.

i Graduando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil, e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC 2012-2013 e 2013-2014) no projeto “Desvendando Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros”, coordenado pela Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano. E-mail: [email protected].

ii Docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: [email protected].

SANTANA, Flávio Passos; MARIANO, Márcia Regina Curado Pereira. A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 74-88, dez.2013.

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Introdução

Este artigo vincula-se ao projeto de pesquisa do Programa Institucional

de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UFS) intitulado “Desvendando

Itabaiana: análise das imagens discursivas da Cidade dos Caminhoneiros”,

coordenado pela Profa. Dra. Márcia Regina Curado Pereira Mariano mais

especificamente ao plano de trabalho “Itabaiana Cultural”, desenvolvido no

período de 01/08/2012 a 31/07/2013, que teve como objetivo principal revelar

possíveis ethé construídos em textos que retomam e valorizam a cultura local.

Itabaiana localiza-se no agreste sergipano e abriga o campus Professor

Alberto Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe, desde agosto de 2006.

A UFS-ITA integra o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e

Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo governo em

2007. Tendo em vista essa história recente, consideramos necessário conhecer

melhor a cidade e seus habitantes, o que pode facilitar a interação entre a

academia e a comunidade geral e direcionar pesquisas e ações docentes. No

nosso caso, como analistas do discurso, conhecer melhor Itabaiana e os

itabaianenses é conhecer o modo como se inscrevem nos textos, como se

mostram pelos modos de dizer, já que os textos nos oferecem um conjunto de

imagens, de representações, que simulam a situação de enunciação e que,

sem remeter aos indivíduos empíricos, dão indícios do lugar que os

enunciadores ocupam na sociedade, dentro de um contexto sócio-histórico-

cultural, e revelam os pontos de vista desses sujeitos discursivos.

Neste trabalho, analisaremos a primeira parte de uma reportagem da

revista OMNIA intitulada “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca esteve aqui,

mais saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana” assinada pelo jornalista e

escritor Robério Santos. Detemo-nos na parte 1 de 3 que integra a 13º edição,

publicada em Maio/2011. Nesse fragmento, o autor fala sobre o fato de

Lampião e seu bando não terem invadido as terras itabaianenses, apontando

como motivo para isso a existência, no local, de homens perigosos, como

Mata Escura. A referência a esses personagens, intencionalmente ou não, vai

evidenciar a construção das imagens de uma cidade temida e de habitantes

corajosos. Tendo como base teórica conceitos da Argumentação e da

Retórica, da Semiótica discursiva e da Análise do Discurso francesa, mais

especificamente estudos de Amossy sobre o ethos, nosso objetivo será

verificar como as estratégias argumentativas foram utilizadas para construir

esses ethé em busca da persuasão.

SANTANA, Flávio Passos; MARIANO, Márcia Regina Curado Pereira. A construção do ethos de uma cidade e de seus habitantes em uma revista local. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 74-88, dez.2013.

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A OMNIA foi lançada em março de 2010, em Itabaiana, Sergipe, e está em

sua 28ª edição (jul/2013). Por mês, são impressos 1000 exemplares, que tem

uma circulação predominantemente local, mas possui assinantes de outros

municípios. De acordo com seu diretor, “ela é 100% produzida em Itabaiana,

desde as ideias até a impressão”, e “é mantida basicamente por

propaganda”1. O fato de a revista privilegiar principalmente histórias, lendas e

acontecimentos ocorridos na cidade é o que justifica a escolha de nosso

objeto de análise, visto que as reportagens e matérias publicadas nas edições

da OMNIA revelam muito sobre a cultura do município.

1 Itabaiana, cidade de pistoleiros?

Itabaiana é considerada a cidade dos caminhoneiros, do ouro e da

cebola. São diversas as imagens construídas desse município, no entanto uma

delas se destaca negativamente, que é a de cidade violenta. Segundo

Menezes (2010), essa má fama não surgiu agora, posto que, no decorrer de

sua história, Itabaiana teve grandes bandidos e assassinos perigosos.

Entretanto, não foi esse o motivo que acarretou essa reputação, já que em

terras circunvizinhas residiam também homens que ameaçavam a ordem

social.

O que realmente criou essa imagem foram acontecimentos dos anos 60.

Menezes conta que, nessa época, Euclides Paes Mendonça e Francisco Teles

(conhecido como Chico de Miguel) disputavam a hegemonia política do

município. O primeiro mandava e desmandava na cidade, porém, no ano de

1963, Euclides Paes Mendonça e seu filho deputado, Antonio de Oliveira

Mendonça, foram metralhados durante uma manifestação pública. Esse fato

ganhou repercussão nos principais jornais do país, a exemplo de O Estado de

São Paulo e do Correio Brasiliense. O resultado disso, politicamente, foi a

ascensão de Chico de Miguel.

No entanto, os fatos que contribuíram para a construção desse conceito

de cidade violenta não acabam por aí, já que, quatro anos após o ocorrido,

Manuel Teles (arquirrival de Chico de Miguel) foi assassinado à queima-roupa

na porta de casa pelo pistoleiro Antônio Letreiro e a culpa do crime recaiu

1 Informações obtidas junto ao diretor da revista, Robério Santos, por meio de correio eletrônico, no dia 14/05/2013.

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sobre Chico de Miguel, que foi preso, mas logo em seguida absolvido pelo júri

por seis votos a um.

Ainda segundo Menezes, no ano de 1978, surgiu a emissora de rádio

Princesa da Serra, na intenção de denunciar os abusos de Chico de Miguel e de

seus aliados. Através das ondas de rádio, pelo estado de Sergipe e pelo sertão

da Bahia, propagou-se a imagem de uma terra sem lei, em que tudo é

resolvido na pistola. Nos dias atuais, essa má fama é sustentada pelo grande

número de assassinatos que acontecem na cidade e que são repercutidos

diariamente na imprensa local e regional.

Apesar de não ser sergipano, o nordestino Lampião é um símbolo

nacional da violência. As histórias envolvendo seu nome não são poucas no

estado e, particularmente, em Itabaiana, em que sua valentia pode ser

colocada em questionamento diante da fama da cidade.

2 Lampião, bandido ou herói?

Ao contrário do que muitos pensam, Virgolino Ferreira, vulgo Lampião,

não foi o primeiro cangaceiro da história, mas um dos últimos. No entanto,

com certeza, o que mais se destacou. Lampião nasceu no ano de 1898, às

margens do Riacho São Domingos, no município de Vila Bela, atualmente Serra

Talhada, no estado de Pernambuco. Sua família vivia do criatório, da roça e da

almocrevaria.

O sertão da região Nordeste sempre sofreu com a má qualidade de vida

e com a pobreza que o clima seco proporciona. Por conta disso, naquela

época, os habitantes não tinham oportunidades de bons trabalhos e eram

explorados. Aconteciam várias rebeliões contra esse tipo de sobrevivência e

pode-se dizer que essas foram circunstâncias propícias para o surgimento dos

grupos de cangaceiros. Até o surgimento do bando organizado por Virgolino,

o cangaço era apenas um fenômeno regional, mas Lampião, com seu

atrevimento e destemor, tornou-se uma figura presente em noticiários diários

por todo o país. Por essa razão, as autoridades sentiram-se publicamente

desafiadas a executá-lo.

Sob constantes ameaças, Lampião saía com seu bando rodando o sertão

nordestino, fugindo da polícia e amedrontando as cidades por onde passava.

Sua crueldade, no entanto, parece muitas vezes ter sido esquecida, e há, nessa

região, de um modo geral, um sentimento de orgulho por ter vindo do

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Nordeste uma figura histórica tão conhecida. No imaginário local, para muitos,

fixou-se a ideia de um valente vingador justiceiro que, de forma semelhante ao

bandido Robin Hood, roubava dos ricos para dar aos pobres. Na literatura de

cordel, um dos gêneros em que esse personagem é uma constante, parece

sobrepor-se a imagem de herói à imagem de bandido, embora, segundo

Clemente (2009, p.17), a crueldade dos cangaceiros seja reprovada pelos

poetas de folhetos de cordel, “[...] pela perversidade, destruição de

propriedades e mortes, inclusive de poderosos. (Os autores) Desaprovam,

ainda, a quebra de certos valores tradicionais como o sacrifício de crianças, o

ultraje de donzelas.”

Historicamente, a passagem de Lampião por terras itabaianenses não é

comprovada. No entanto, sua presença frequente nos discursos locais, mesmo

que não necessariamente nos leve a verdades, revela-nos, num jogo de

representações que pode ser explorado pelos estudos retóricos e

argumentativos, indícios das identidades discursivas de uma cidade e de um

povo que não querem ficar de fora dessa história.

3 A Retórica: origem, evolução e diálogos

A Retórica surgiu no século V, em Siracusa, e viveu seu auge até o século

XIX. Sua origem está ligada ao conflito e à controvérsia, já que serviu como

ferramenta para proprietários poderem reaver suas terras que haviam sido

invadidas. Embora, desde o seu início, esteja relacionada à argumentação, aos

poucos foi se transformando apenas na “arte de bem falar”, assim, quase

tudo que era persuasivo foi deixado de lado e restaram apenas os estudos das

figuras, o que colaborou com sua desvalorização. O fato de a Retórica, na

Antiguidade, estar voltada somente para a elaboração e a análise de textos

orais, bem como o descrédito nos sofistas e a aparente relação da retórica

com três gêneros específicos: o deliberativo, o judiciário e o epidítico são

outros aspectos que levaram à sua decadência. Porém, Mosca (2001) nos diz

que não podemos falar em morte da Retórica, por causa da longevidade das

ideias aristotélicas, como confirmam estudos da argumentação publicados a

partir da segunda metade do século XX, a exemplo do Tratado da

Argumentação- A Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, de 1958, que

retomou conceitos do filósofo estagirita, adequou-os ao mundo moderno e

abriu espaço para o diálogo entre esses fundamentos retóricos e outros

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estudos do texto e do discurso, bem como entre aqueles e outras áreas do

conhecimento, como a Educação.

Em sua essência, a Retórica não busca a verdade ou a falsidade dos

discursos, mas a construção da verossimilhança, ou seja, de uma aparência da

verdade, da representação feita nos textos por sujeitos que fazem escolhas

linguísticas e discursivas mesmo sendo determinados sócio-histórica-

culturalmente. Na Retórica, o enunciador (chamado, nesses estudos, de

orador) não é um sujeito assujeitado, pois tem objetivos, pontos de vista,

opiniões e consegue modificar seu enunciatário (o auditório), embora seja

influenciado pela ideologia dominante; o orador é um sujeito de ação.

A eficácia de um discurso desse sujeito é medida pela escolha de

determinadas estratégias argumentativas cujo intuito é provocar efeitos de

sentido que possam levar à adesão do auditório, envolvendo, pois, tanto um

fazer persuasivo, quanto um fazer interpretativo. Isso relaciona a

argumentação ao nível narrativo dos textos de acordo com o percurso

gerativo de sentido proposto pela Semiótica greimasiana, mais

especificamente ao percurso da manipulação, em que um destinador busca

conduzir um destinatário a uma mudança, a uma ação. Essa manipulação pode

ocorrer de diferentes formas, sendo que todas têm o objetivo de levar o outro

a entrar em conjunção ou disjunção com determinados objetos de valor que

representam algo importante para o destinador e/ou para o destinatário.

De acordo com a Semiótica de Greimas, as manipulações podem se dar

por tentação, sedução, intimidação ou provocação. Segundo Barros (2003), na

intimidação e na tentação são oferecidos valores que o destinador acredita,

respectivamente, temidos ou desejados pelo destinatário. Já na sedução e na

provocação, o destinador apresenta imagens positivas ou negativas do

destinatário relativas à sua competência, às suas habilidades ou qualidades.

Partindo dessas possibilidades, os argumentos oferecidos por um orador a seu

auditório podem caracterizar, geralmente, uma manipulação por sedução ou

por tentação, na medida em que o orador constrói seu discurso tendo em

vista o que ele considera ser desejado ou agradável por/para seu auditório,

conforme reflexões vistas em Mariano (2007).

Em nossa análise, buscamos evidenciar esse diálogo possível, entre

Retórica e Semiótica, e retomamos estudos contemporâneos sobre o ethos,

um dos meios de persuasão apontados por Aristóteles, a partir do diálogo

entre Retórica e Análise do Discurso de linha francesa.

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4 Análise das estratégias argumentativas em “Lampião arrudiano Itabaiana”

Começamos a análise do texto selecionado observando a utilização de

figuras de argumentação e retórica, estratégias argumentativas inesperadas

que buscam persuadir o auditório pela emoção. Mosca (2001, p. 37) diz que

Perelman “considera as figuras segundo o fim a que se prestam na

argumentação e as classifica em figuras de presença, figuras de seleção e

figuras de comunhão”. As figuras de presença são aqueles argumentos que

vêm para manter no texto a presença daquilo que está sendo falado, como

acontece no uso excessivo de repetição e nas paráfrases, que têm como

objetivo fazer com que o outro se convença pela exaustão. As figuras de

escolha dizem respeito à seleção de estratégias linguísticas e discursivas;

inclusive a opção pela abordagem de um determinado tema ou por variantes

de um dialeto específico podem ser figuras de argumentação e retórica, caso

provoquem a sensação de surpresa. Nas figuras de comunhão, espera-se que

o outro se identifique com o argumento do sujeito enunciador; com essa

finalidade, utilizam-se, por exemplo, conhecimentos compartilhados entre

orador e auditório, o que parece ser um mecanismo muito empregado por

nosso autor desde o início do texto.

Nessa primeira parte da reportagem sobre Lampião, o orador vai tentar

explicar a não entrada do Rei do Cangaço em Itabaiana. Sua primeira

estratégia é ganhar a confiança do auditório, estabelecendo a comunhão. Já

no título e no subtítulo, é possível identificarmos a busca pela interação com o

enunciatário, chamando-o de você, mesmo que de forma oculta no uso do

imperativo “saiba (você)”, o que indica tanto uma figura de comunhão quanto

uma figura de escolha. Deste modo, o autor instiga o leitor a querer saber

como ocorreu a passagem do cangaceiro por essas terras. Outra estratégia

que pode ser definida tanto como figura de escolha quanto de comunhão é a

utilização de arrudiano, ao invés de arrodeando, que apresenta o uso de

metaplasmos. Vê-se, nessa palavra, tanto uma síncope quanto o alçamento

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das vogais médias, ocasionando uma harmonia vocálica. Esse termo pode ter

sido empregado para causar o efeito de sentido de aproximação, por meio do

uso da mesma variante linguística que o orador acredita que seu auditório

possui. Não só essa expressão, mas outras como

1.

2.

3.

são argumentos inesperados que têm o intuito de estabelecer uma

identificação entre os sujeitos da enunciação.

Relacionando essas estratégias argumentativas ao percurso da

manipulação da semiótica francesa, podemos dizer que o orador utilizou essas

variantes fonológicas e lexicais como argumentos, e que esses, por sua vez,

funcionam como objetos de valor positivos oferecidos ao destinatário em

busca da adesão, ou seja, para que o auditório entre em conjunção com seu

texto (tese/ideia). Também podemos dizer que há a presença da manipulação

por tentação no título e subtítulo “Lampião arrudiano Itabaiana: Ele nunca

esteve aqui, mas saiba os fatos relacionado (sic) a Itabaiana”, pois o

destinador julga que o destinatário deseja “saber mais” sobre Itabaiana, já que

os leitores da revista OMNIA são habitantes do município. Uma manipulação

por provocação também não é descartada, na medida em que, ao mesmo

tempo em que oferece informações ao leitor, o orador diz que este não

conhece os fatos relacionados à sua cidade, desqualificando-o e provocando-o

para que queira saber mais ou provar que já sabe. Observa-se, assim, nessa

relação destinador-destinatário, todo um trabalho de modalização do leitor.

Tendo em vista, particularmente, as figuras de comunhão, podemos

observar que o orador utiliza uma linguagem coloquial:

(1) “Começou basicamente quando o colonizador europeu chegou por essas bandas no século XVI trazendo a corja de malfeitores”;

(2) “Começou a montar suas barracas no litoral e explorando o interior em busca de ouro, prata, terra para o gado, lavoura e umas indiazinhas safadas para seu deleite”;

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(3) “Assassino e ladrão profissional”;

(4) “Foi aí que fiquei encucado desde minha adolescência, quando comecei a bisbilhotar as ideias históricas da terra da cebola”,

e emprega parênteses para comentários mais ou menos subjetivos: “(e

também uns engraçadinhos que disseram que não há relação)”; “(primeira

vez que a forca foi usada em Itabaiana)”. Tais fatos reforçam a busca de

comunhão com o leitor, no intuito de persuadi-lo a partir da aproximação.

As perguntas retóricas vistas ao longo do texto também instigam o

enunciatário a saber mais sobre o motivo da não entrada de Lampião em

Itabaiana, ao mesmo tempo em que estabelecem uma interação orador-

auditório e já introduzem novos argumentos, como se vê nas seguintes

perguntas: “Rômulo Remo ou Remo Dias?” (numa intertextualidade entre a

lenda de fundação de Roma por Rômulo e Remo, que haviam sido

amamentados por uma loba, e a história de fundação de Itabaiana, que tem na

sua gênese a presença de Simão Dias, amamentado por uma cabra); “Por que

o valente Lampião e seu bando nunca invadiram Itabaiana, já que aqui tinha

tanta riqueza na década de 20 e 30?”; “Será que por medo do que podia

encontrar aqui ou por ter amigos coiteiros no local?”; “Será que aqui a

concorrência era grande por ter bandidos ou heróis demais?”, dentre outras.

Concomitantemente, ao valer-se de tais perguntas retóricas, o autor

constrói a imagem de um leitor leigo (o pathos), que não conhece os fatos que

serão expostos, mas interessado sobre o assunto e sobre a cultura local, e

uma auto-imagem culta, mas, ao mesmo tempo, humilde, já que nivela sua

linguagem à de seu auditório. Como o orador conhece seu público –

habitantes de Itabaiana e de cidades circunvizinhas – e a revista diz respeito à

cultura e à história local, é mais fácil para o autor construir uma imagem de

seu leitor, saber o que ele conhece, do que gosta, em que acredita.

Com a finalidade de defender a tese de que Lampião não entrou em

terras itabaianenses por medo, o orador usa como estratégia argumentativa a

intertextualidade, e traz para a reportagem uma música composta por um dos

integrantes do bando de Lampião, chamado Volta Seca. De acordo com o

texto, este era itabaianense e teria entrado no bando com apenas onze anos

de idade. Mais tarde, esse personagem tornar-se-á muito temido e cruel. Na

tentativa de salvar um amigo ferido, Volta Seca será capturado por policiais e

acabará sendo preso:

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Essa música vai retratar as andanças de Lampião e suas características

valentes, mas, ao mesmo tempo, retoma a existência de Mata Escura,

itabaianense enforcado aos 25 anos, 50 anos antes do nascimento de

Lampião, levado à forca por ter assumido nove assassinatos e outros crimes.

No trecho da música, que diz “Lampião diz que é valente/ É mentira, é

corredor/ Correu da Mata Escura/ que a poeira levantou”, a imagem de

Lampião se torna contraditória: é valente ou medroso?

Quando o orador explica quem foi Mata Escura, que é, supostamente,

citado na música, faz uso novamente da intertextualidade, por meio de uma

citação entre parênteses:

Seu intuito foi comprovar a existência desse acontecimento em

Itabaiana. Podemos dizer que tal recurso se caracteriza como uma figura de

comunhão, já que o orador retoma um escritor sergipano que deve ser

conhecido por seu auditório com o objetivo de corroborar o que disse com o

peso de um argumento de autoridade.

O orador ainda tenta persuadir seu leitor por meio do uso das falácias,

que, segundo Ferreira (2010, p.120), é “[...] quando parece que as razões

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apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não sustentam. As

falácias, normalmente, são erros de raciocínio, mas podem ser utilizadas, por

oradores, como mecanismos persuasivos”. Ao expor a música que Volta Seca

compôs, o orador destaca em negrito e com iniciais maiúsculas Mata Escura, ou

seja, dá ênfase ao nome do falecido itabaianense, conhecido como perigoso e

temido, para tentar persuadir o leitor de que a não entrada de Lampião por

Itabaiana tenha se dado pela má fama de Mata Escura. Essa ênfase, segundo

Ferreira (2010), é quando o orador destaca uma palavra na intenção de levar o

receptor ao erro por causa da aparente alteração de significado.

Nesse trecho, encontramos ainda a ambiguidade que, junto à ênfase,

compõem o grupo das falácias, que são encontradas na elocutio. De acordo

com a Retórica, a elocutio é a parte do discurso persuasivo em que as escolhas

são feitas tendo em vista a adequação ao auditório e a provocação de paixões.

O verso Correu da Mata Escura pode estar se referindo especificamente à mata,

já que o bando de Lampião andava a pé e vivia sempre assustado, fugindo da

polícia, ou ao personagem Mata Escura, que teria, mesmo depois de morto,

assustado o bando. Como Volta Seca era itabaianense, devia conhecer a história

desse personagem, e o temor provocado pode ter sido tão grande a ponto de

Lampião e seu bando arrudiar Itabaiana, mas não entrar na cidade.

A primeira hipótese pode ser baseada nos últimos versos da música:

“Lampião tava dormindo/Acordou muito assustado/Deu um tiro numa

braúna/Pensando que era um soldado”. Assim, o fato de ele estar dormindo,

viver caminhando na mata e estar sempre fugindo da polícia culmina em

acordar assustado e correr da/na mata escura (numa relação de causa e

consequência), e não do Mata Escura, como sugere a reportagem. Podemos

dizer que, dessa forma, o autor quer construir (ou reforçar) a imagem de

Itabaiana como uma terra de homens valentes e perigosos, tanto que até

mesmo Lampião não foi capaz de invadir a cidade, pois ficou com medo.

Na reportagem, podemos encontrar também o uso da polidez indireta,

que, segundo Ferreira (2010, p.143), é:

[...] um ato comunicativo em que o orador deixa uma saída para si pela enumeração de interpretações defensáveis. Com essa estratégia, preserva a face e evita responsabilidades ao deixar uma interpretação por conta do auditório. Pode-se verificar, então, se o orador fornece pistas e sugestões indiretas, se explora as pressuposições, se, conscientemente, minimiza a expressão para não dizer tudo o que seria necessário [...] A impessoalização é a estratégia mais usada [...].

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Essa estratégia é observável após o orador expor a letra da música e

dizer que Volta Seca cita Mata Escura como alguém que desse medo, capaz de

colocar Lampião para correr.

Lógico, pode ter sido inconsciente, mas o terrorista itabaianense do século XIX era algo que servia de inspiração para os pais dizerem em tom de ameaça a seus filhos: “Vá pro mato não, Mata Escura te pega”, da mesma forma que se fala de saci, caiporas e luzernas (OMNIA, 2011, p.10).

Nesse trecho, a polidez indireta está presente, já que o orador emprega

a impessoalização e a modalização, preservando sua face e deixando uma

interpretação por conta dos leitores da revista OMNIA ao dizer que Volta Seca

pode ter utilizado a expressão inconscientemente. Além disso, ele fornece

pistas e sugestões indiretas ao informar que os pais usavam essa expressão

para amedrontar os filhos para que estes não fossem para o mato,

comparando Mata Escura a seres fantásticos do folclore brasileiro, criando um

possível, provavelmente falso (devido à generalização), silogismo: várias

pessoas tinham medo do Mata Escura, Lampião era uma pessoa, Lampião

tinha medo do Mata Escura.

5 A noção de ethos e a depreensão dos ethé de Itabaiana e dos itabaianenses

De acordo com Aristóteles (2011), são três os meios de persuasão

“dependentes da arte”: o ethos, o pathos e o logos. O logos, segundo Ferreira

(2010), a partir dos estudos filosóficos de Heráclito de Éfeso, passou a ter o

conceito de razão. O estudioso nos diz que todo discurso é construído em

torno de um tema, que é problematizado e gera questões. Nesse sentido, o

logos se encarrega do discurso persuasivo, já que é a partir dele que

evidenciamos o que parece ser verdade, levando em consideração o que se

conhece sobre o assunto. O pathos, por sua vez, vincula-se à afetividade e vai

remeter ao auditório, ao conjunto de emoções, às paixões e sentimentos que

o orador é capaz de despertar no ouvinte. Por fim, o ethos, que está ligado à

imagem que o enunciador constrói de si em seu discurso, à sua postura; é o

lugar da identidade assumida pelo orador. De acordo com Ferreira (2010),

modernamente, o termo sofreu ampliação no seu significado e é considerado

como a imagem que o orador constrói de si e dos outros no seu discurso.

Seguindo essa linha, podemos dizer que, ao enunciar, o autor não está

construindo apenas a sua identidade discursiva, mas também a do povo

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itabaianense, por ele representado, enquanto orador autorizado, já que a

revista diz respeito à cultura e à história da cidade e de seus habitantes.

Ferreira nos diz que o primeiro ponto a ser observado na definição do

ethos é a construção da imagem pública, ou seja, é importante verificar se o

discurso do orador cria condições para que o auditório o julgue como digno de

fé. Esse enunciador deve, ainda, ser capaz de suscitar confiança e para isso

precisa demonstrar conhecimento da causa, honestidade e segurança.

Aristóteles (2011, p. 122) nos diz que:

A confiança suscitada pela disposição do orador provém de três causas, as quais nos induzem a crer em uma coisa independentemente de qualquer demonstração: a prudência, a virtude e a benevolência [...] Conclui-se que todo aquele que é considerado detentor de todas essas qualidades [que atuam como causa] suscitará confiança em sua audiência.

Portanto, demonstrar sabedoria e domínio sobre o tema é essencial,

bem como apresentar opiniões fundamentadas. Nesse sentido, o orador do

texto analisado possui características que alicerçam positivamente o ethos,

visto que demonstra saber bem sobre o que fala e expressa opiniões ao longo

do texto, entre parênteses, conforme já explicitamos.

Privilegiando o estudo do ethos, Amossy (2005) nos diz que, para

construir a imagem de si, o locutor não precisa falar dele mesmo, pois ela é

apreendida a partir de seu estilo, das suas crenças e das suas competências

linguísticas e enciclopédicas. Ao cunhar a noção de ethos prévio, a autora

chama a atenção para o fato de que temos uma ideia antecipada do

enunciador antes de ele proferir seu discurso, no entanto, é só a partir do

discurso efetivo que essa imagem pode ser confirmada, destruída ou

modificada.

O conceito de ethos prévio é relacionado por Amossy à noção de

estereótipo, já que, muitas vezes, baseamo-nos em características

convencionalizadas socialmente na doxa para traçar o perfil discursivo do

orador. No texto analisado, vemos uma afirmação do estereótipo do

nordestino “cabra macho” e do itabaianense perigoso e valente, imagens

essas já estabelecidas discursivamente em outros textos, como nos que

descrevem os crimes ocorridos nos anos 60 em Itabaiana e nos que relatam a

saga de Lampião e seu bando. Observa-se, assim, que na reportagem em foco

o autor usou tanto fatos históricos de Itabaiana, quanto outras histórias do

imaginário local, para construir imagens de uma cidade temida e de homens

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valentes e perigosos. É por meio desses ethé que o orador justifica o fato de o

famoso Rei do Cangaço não ter tido coragem e audácia para invadir as terras

serranas, por saber que no município havia homens como Mata Escura, que

era tão ou mais valente quanto o próprio cangaceiro. Ao mesmo tempo, a

reafirmação desse estereótipo revela um povo orgulhoso de sua história (ou

de suas histórias), real e/ou fictícia, e de sua fama.

Considerações Finais

Partindo do pressuposto de que somos sujeitos sociais, podemos afirmar

que, ao enunciar, construímos, além do ethos individual, um ethos coletivo que

nos identifica como participantes de um grupo, refletindo seus costumes, seus

valores e sua ideologia (MARIANO, 2013). Nesse sentido, o autor da

reportagem, por meio da utilização de figuras de argumentação e retórica e

de intertextualidade, dentre outros mecanismos, constrói os ethé dos

itabaianenses e da própria cidade, ethé caracterizados pela valentia, aqui

“comprovados” em uma revista que se propõe divulgar a cultura e a história

de Itabaiana.

Assim, podemos dizer, de acordo com as imagens discursivas

evidenciadas, mostradas no modo de dizer, que o povo itabaianense tem

orgulho de ter tido na sua história homens valentes e corajosos e de ser parte

de um município cuja fama causa temor nas pessoas e nos bandidos de fora,

como foi no caso de Lampião.

REFERÊNCIAS

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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O DISCURSO DO TRABALHO NA LITERATURA DE AUTOAJUDA: OS

7 HÁBITOS DAS PESSOAS ALTAMENTE EFICAZES, DE STEPHEN R. COVEY, EM ANÁLISEi

Franciele Graebinii

Resumo: Com o mercado de trabalho cada vez mais competitivo e o sujeito cada vez mais fragmentado, a autoajuda afirma-se como uma ferramenta de autoconhecimento e uma tentativa de superação dos problemas. O presente estudo analisa o livro Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, que promete aos leitores uma mudança de hábitos que proporcionarão uma vida de sucesso profissional. Dessa forma, foi possível relacionar o discurso de autoajuda com a economia e o capitalismo. Às luzes da Análise do Discurso Francesa e alguns de seus expoentes como Foucault, Bakhtin e Orlandi foi possível relacionar a autoajuda com o capitalismo, sendo aquela um servidor deste, neste mundo globalizado em que os sujeitos se sujeitam e seguem as regras do mercado sem questionar, fazendo perder-se a função do signo que é a de luta das classes. Martelli entra aqui com sua classificação dos indivíduos que ajuda a identificar os tipos de leitor para os quais a autoajuda é escrita e o tipo de sujeito a quem ela serve, para que nada saia do lugar e para que o mercado produza mais e melhor. Assim, pode-se considerar a autoajuda como missionária do capitalismo.

Palavras-chave: Autoajuda. Trabalho. Análise do Discurso. Stephen R. Covey.

Abstract: As the work market is more and more competitive and the subject is more fragmented, self-help is claimed as a tool for self knowledge and an is also an attempt to overcome problems. This study analyzes the book “The 7 Habits of Highly Effective People” by Stephen R. Covey, that promises the readers a change of habits which will provide a life of professional success. Thus, it was possible to relate the self help discourse with economy and capitalism. Based on the principles provided by the French Discourse Analysis and some of its exponents, like Foucault, Bakhtin and Orlandi, it was possible to relate self-help with capitalism, being that a server to the latter, in this globalized world in which the subjects are “subjected” and follow the rules of the market without questioning, making the function of the sign which is the fight of classes get lost. Martelli comes in here with her classification of the individuals, which helps to identify the kinds of reader to whom self-help is written and the kind of subject to whom it serves, so that nothing will be out of place and so that the market produces more and better. Thus, self-help can be considered a missionary of the capitalism.

Keywords: Self Help. Work. Discourse Analysis. Stephen R. Covey.

i Resultado de TCC realizado sob a orientação da Profa. Dra. Grenissa Bonvino Stafuzza. ii Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. E-mail: [email protected].

GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.

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Introdução

O termo autoajuda parece intimamente ligado ao termo

“individualidade”. Em um mundo globalizado em que tudo está ao alcance das

mãos (assim como ao alcance do dinheiro), torna-se cada vez mais difícil se

encontrar como indivíduo; e cada vez mais o indivíduo sente necessidade de

obter “sucesso na vida” – tanto na vida financeira quanto na vida familiar,

pessoal. Se pensarmos na noção de sujeito cunhada nas obras de Foucault

(1995; 2009; 2010), a problemática do “se encontrar como indivíduo” ganha

peso, pois o sujeito só é sujeito porque se posiciona perante os

acontecimentos que lhe atravessam e é por isso que o sujeito foucaultiano é o

sujeito da história e do devir (vir a ser) (MARTELLI, 2006).

A palavra “individualismo”, desse modo, não é vista “como sinônimo de

egoísmo, de egocentrismo” (MARTELLI, 2006, p. 80), mas sim como a busca

do autocentramento que leva o indivíduo a fortalecer sua autoestima a ponto

de poder chegar a um “individualismo altruísta” (MARTELLI, 2006, p. 81).

Neste trabalho, pretendemos mostrar a relação que ocorre entre o

mundo da autoajuda e do trabalho. Como citado anteriormente, os indivíduos

buscam o sucesso pessoal e financeiro, relação essa que, na maioria das vezes,

não há como separar. A autoajuda entra aí como a resposta que alia as

necessidades do capital com as necessidades individuais (criadas pelo mundo

como está: globalizado de forma capitalista). Para tanto, trabalharemos com a

vertente da Análise de Discurso Pêcheutiana que envolve o sujeito e os efeitos

de sentido no discurso de autoajuda.

Antunes e Alves (2004), no artigo “As mutações no mundo do trabalho

na era da mundialização do capital”, mostram as mudanças que ocorreram

nos últimos tempos no cenário do trabalho e, ao contrário do que era

previsto, ele não perdeu sua força estruturante na sociedade.

A classe trabalhadora se vê em uma situação mais complexa, muito

diferente da vivenciada pelo fordismo e o toyotismo. Porém, é uma classe

forte, com poder de estruturar a forma como vemos a sociedade, moldada (ou

que dá forma) ao capitalismo, e ao mundo do consumo como vemos hoje.

Além disso, o trabalho é um elemento vivo, que mede forças com o processo

social capitalista, tornando o cotidiano um campo de disputa entre a alienação

e a desalienação.

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Tais mudanças que ocorreram – e ocorrem – no mundo do trabalho

exigem que os sujeitos se adaptem às novas situações, levando-os a refletir

sobre suas ações para que possam se reestruturar (RÜDIGER, 1996).

Para Rüdiger (1996, p. 13), “a literatura de autoajuda constitui uma das

mediações através das quais as pessoas comuns costumam construir um eu de

maneira reflexiva, gerenciar os recursos subjetivos e, desse modo, enfrentar

os problemas colocados ao indivíduo pela modernidade”. Nesse sentido, o

mercado de autoajuda é um mercado de fácil acesso, pois os livros são

popularizados de forma que as obras chegam com muita facilidade aos

leitores. No mais, esses textos não possuem uma estética sofisticada ou

marcada pelo cânone literário; isso significa que são fáceis de serem lidos e

talvez, por isso, houve a massificação desse tipo de literatura, de modo geral.

Com foco no objetivo do artigo, qual seja: pensar o funcionamento da

relação trabalho/autoajuda, faremos a análise do livro Os 7 hábitos das pessoas

altamente eficazes, de Stephen R. Covey, que promete trazer o segredo do

sucesso na carreira e na vida pessoal: “A interdependência é um valor mais

forte que a independência” (COVEY, 2004, p. 5). Por meio desta análise,

pretendemos demonstrar as transferências e jogos simbólicos que ocorrem

entre os sentidos e os sujeitos, conforme afirma Orlandi “dos quais não temos

o controle e nos quais o equívoco – o trabalho da ideologia e do inconsciente –

estão largamente presentes” (2007, p. 59).

1 Autoajuda para o sucesso empresarial: a fragmentação do sujeito

A literatura de autoajuda configura-se como uma confirmação da senda

do capitalismo, uma vez que possui uma ligação entre o “ter” e o “ser”, ou

seja, obter sucesso é igual a obter felicidade; realização pessoal significa ter

realização profissional. No processo de desalienação, o conhecimento dessa

relação é extremamente importante, pois só assim o trabalhador pode ser

senhor de sua escolha, realmente livre de qualquer influência que não seja a

sua própria vontade de agir. É a conscientização do que se passa à nossa volta

que nos dá a capacidade de nos conhecermos realmente, realizando-nos

enquanto indivíduos dignos e preparados para viver (e não simplesmente

sobreviver) nesse mundo capitalista e globalizado.

Nesse sentido, torna-se importante analisar a literatura de autoajuda

empresarial, primeiro porque ela é a literatura mais lida no mundo, segundo,

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porque analisar seu funcionamento discursivo em relação ao tema do trabalho

traz um ganho de pesquisa para a área na qual se insere este estudo, ou seja, a

Análise do Discurso Francesa (ADF) em uma relação de diálogo com as

Ciências Sociais.

Podemos observar que a autoajuda é o tipo de literatura que mais

“vende” na contemporaneidade. Ela funciona como manual, um guia de como

proceder em sociedade. Há orientações de como obter felicidade, amor,

harmonia familiar, dinheiro, sucesso no trabalho, etc. Este último, em especial,

chama atenção por sua grande adesão no mundo empresarial e na vida dos

trabalhadores, tornando-se, portanto, objeto deste estudo.

O trabalho e a autoajuda formaram “uma parceria de sucesso” no

mundo capitalista. O mundo dos negócios apropriou-se do vocabulário da

autoajuda de tal forma que ficou difícil distinguir seus textos das palestras

empresariais (MARTELLI, 2006). Várias são as causas apontadas para tal

fenômeno: desde a fragmentação dos sujeitos pelo mundo globalizado, a

alienação dos indivíduos em decorrência do trabalho precarizado até o

afastamento do fantasma do desemprego que assola a classe trabalhadora no

mundo inteiro.

Em seu livro Autoajuda e Gestão de Negócios: uma parceria de sucesso,

Martelli (2006) define o sujeito dos dias em que se vive a mundialização. No

capítulo 1, “Um mundo em transição”, vemos as dificuldades que enfrentam

os sujeitos para conciliar trabalho, família, lazer, autoestima, reafirmação da

personalidade – esta, tão fragmentada – envolta em tantas opções que chega

a ser difícil de o indivíduo se definir. A autora define três tipos de indivíduo:

“pouco indivíduo”, “muito indivíduo” e “altruísta”.

Os “pouco indivíduos” são aqueles considerados indivíduos por serem

livres da tradição, família, religião, mas que não conseguem exercer sua

liberdade em plenitude. Essa liberdade existe apenas de forma latente, é uma

liberdade em potencial, cerceada pelas condições financeiras em que se

encontra o sujeito, que o subjugam à aceitação e conformismo das massas. É o

“eu como vítima indefesa das circunstâncias externas” (MARTELLI, 2006, p.

59).

Quanto ao indivíduo “muito indivíduo”, trata-se do sujeito que dita as

regras do capitalismo. É um ser egoísta, egocêntrico, desumano, o oposto do

“altruísta”. São aqueles que “aprendem os mecanismos de funcionamento do

jogo e manipulam as cartas em vantagem própria” (MARTELLI, 2006, p. 67).

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São os defensores do “cada um por si, Deus por todos” e do “salve-se quem

puder” (MARTELLI, 2006, p. 68).

O tipo “altruísta” é o que conhece a si mesmo e vive num processo de

escolhas pessoais, sem perder de seu foco o outro, o seu próximo. Esse

processo de escolhas auxilia na formação de sua autoestima, que se fortalece

para que então esse indivíduo possa agir altruisticamente.

Esses três tipos de sujeito não são encontrados “puros” na sociedade.

Encontramos o que seria um “misto” dos três, mas cada qual com uma das

características mais proeminente (MARTELLI, 2006). Identificamos na obra Os

7 hábitos das pessoas altamente eficazes os indivíduos “pouco indivíduos”

como público alvo, já que estes não possuem condições de transpor os limites

da massificação conformista. Já os indivíduos “muito indivíduos”, de certa

forma, também têm forte relação com o conteúdo do livro, pois sendo os que

ditam as regras do capitalismo, são os mais favorecidos pelos resultados

possivelmente obtidos com a disciplinarização dos sujeitos que se sujeitam a

interiorizar os 7 hábitos.

Contudo, Covey, na obra em estudo, apregoa o altruísmo, dizendo que

devemos dominar a arte do “nós”: “A verdadeira grandeza será alcançada por

meio da mente abundante que trabalha de maneira altruísta, com respeito

mútuo, visando ao benefício mútuo.” (COVEY, 2004, p. 15).

2 A precarização do trabalho

Antunes (2008) nos mostra, em seu artigo Século XXI: Nova era da

precarização estrutural do trabalho?, que o trabalho já significou “o ponto de

partida para a constituição do ser social” (ANTUNES, 2008, p. 1), ou seja, é o

labor consciente que nos torna seres sociais plenos. Nesse sentido, podemos

afirmar que não somos abelhas executando um trabalho instintivamente, mas

sim seres humanos que o idealizam previamente à sua execução. Fazemos

sentido por meio de nosso trabalho, uma vez que o trabalho é central na vida

dos sujeitos.

Contudo, o trabalho não é a única razão do ser social, e não deve ser

fonte exclusiva da existência do homem. A vida humana tem muitas

dimensões, e se o trabalho deixa de ter sua característica de “potencial

emancipador, ela deve recusar o trabalho que aliena e infelicita o ser social”

(ANTUNES, 2008, p. 2).

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Não é o que acontece hoje com a globalização e a sociedade capitalista

que rege nosso modo de viver. O trabalho transformou-se em “mercadoria”.

Vendemos nosso potencial de labuta e com ele produzimos mais e

valorizamos o capital. É um “trabalho assalariado, alienado, fetichizado”

(ANTUNES, 2008, p. 3). Consideramos aqui a definição de Antunes (2008, p. 8)

sobre a classe trabalhadora que “compreende a totalidade dos assalariados,

homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, a classe-que-

vive-do-trabalho e que são despossuídos dos meios de produção”.

Encontramos, inclusive na obra de Covey analisada, sinais desta

precarização do trabalho, ainda no prefácio, quando ele se direciona aos

leitores e aos problemas que eles possivelmente apresentem, tais como: o

medo e a insegurança – as pessoas “temem o futuro. Sentem-se vulneráveis

no local de trabalho. Receiam perder o emprego e a capacidade de prover a

subsistência da família.” (COVEY, 2004, p. 12) – a cultura de competição, a falta

de equilíbrio na vida devido ao estresse causado pelo excesso de tecnologia e

informação e a ânsia de ser compreendido.

3 Discurso, sujeito e ideologia: entre trabalho e sujeito, a autoajuda empresarial

Para analisar o discurso de autoajuda é necessário entender as bases de

orientação que consideramos para o presente estudo provenientes da Análise

do Discurso Francesa (ADF). Segundo Orlandi (2007, p. 15) “a palavra discurso,

etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de

movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem:

com o estudo do discurso observa-se o homem falando.”.

Ao partir dessa concepção sobre discurso, a autora observa que a noção

de discurso se vincula à noção de movimento, de dinâmica histórica e social da

língua. Assim, compreendemos que o discurso é a materialidade da ideologia,

a materialidade do discurso é a língua, sendo-nos apresentada a relação

“língua-discurso-ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 17).

Logo, o analista deve saber diferenciar texto e discurso. O texto remete

a um discurso que nem sempre nos é claro à primeira vista. A linguagem não é

transparente, portanto, ao fazer análise de discurso, nos atemos ao “como” e

não ao “que” o texto significa. Assim, há “um processo discursivo do qual se

podem recortar e analisar estados diferentes.” (ORLANDI, 2007, p. 62). É

nesse sentido que pensamos a análise do discurso da autoajuda empresarial:

GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.

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ao tomar o sujeito como um indivíduo homogêneo, a autoajuda empresarial

de Covey (2004) retira o elemento social e histórico da condição do sujeito

trabalhador. O trabalhador é eficiente ou não a depender de si próprio, e não

das condições histórico-sociais a que é submetido em sua vida:

Culpar a tudo e a todos pelos nossos problemas e desafios pode ser uma norma e talvez alivie temporariamente a dor, mas também nos acorrenta a esses problemas. Mostre-me uma pessoa que seja suficientemente humilde para aceitar e assumir a responsabilidade pelas suas circunstâncias e corajosa o bastante para tomar qualquer iniciativa necessária para criativamente atravessar ou contornar esses desafios, e eu mostrarei a você o supremo poder da escolha (COVEY, 2004, p. 13).

Percebemos, então, que o discurso é um campo aberto para

interpretações e leituras que devem ser feitas para que o ser o utilize como

objeto de desalienação e participação social ativa, capaz de promover a

transformação de estados de vida indesejados.

Para Foucault (2010), a produção do discurso segue regras e controles que

possibilitam procedimentos de exclusão: a interdição, a rejeição ou separação

(exemplificada por ele na oposição razão e loucura) e por último a oposição

verdadeiro/falso. A busca pelo verdadeiro pauta a nossa sociedade pelo que

devemos pesquisar, ler, conversar. De acordo com Foucault (2010, p. 18):

Creio que essa vontade de verdade apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. [...] Penso na maneira como as práticas econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e da produção.

Notamos, portanto, que o discurso do capital que promove a

disciplinarização dos sujeitos marcados pela verdade da “economia” não é

novidade. Hoje ela vem em forma de autoajuda, mostrando ao indivíduo que

ele é capaz de grandes realizações, de manter o controle de sua própria vida.

No livro analisado, vemos a forte influência dessa “verdade” marcada nos 7

hábitos das pessoas altamente eficazes: ser proativo; liderança pessoal;

administração pessoal; liderança interpessoal; comunicação empática;

corporação criativa; autorrenovação equilibrada.

Sob essa perspectiva, faz-se também necessária a compreensão da

constituição do sujeito ideológico que Orlandi (2007, p. 46) teoriza a partir de

sua leitura dos escritos pêcheutianos: “a ideologia faz parte, ou melhor, é a

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condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é

interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer”.

O esquecimento ideológico permite vermo-nos como sujeitos

“originais”, com nossas próprias ideias e modo de ser. Porém, esses discursos

ideológicos são pré-existentes e nos inserimos neles desde que nascemos.

Assim, de acordo com Orlandi (2007, p. 46):

A evidência do sujeito – a de que somos sempre já sujeitos – apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Esse é o paradoxo pelo qual o sujeito é chamado à existência: sua interpelação pela ideologia.

Em contrapartida, o sujeito é quem transforma a língua, o discurso, por

meio de sua interpretação, deixando sua marca. Assim se dá o sentido: por

meio do sujeito em sua relação com a história, por meio da língua:

Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. Pela língua, pelo processo que acabamos de descrever (ORLANDI, 2007, p. 47).

Assim, para Orlandi (2007, p. 49), o sujeito ocupa um lugar, é constituído

por um interdiscurso ao qual não possui acesso. Dessa forma, o trabalho

ideológico cumpre seu papel quando passa para o anonimato, dando a

impressão de seu sentido apenas, produzindo o efeito de literalidade.

Bakhtin (1997) vai mais além:

A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada (1997, p. 36).

A consciência do homem é, também, fruto da ideologia; por exemplo, se

um humano se esforça para obter sucesso no trabalho em primeiro plano para

depois poder “ser feliz”, tal escolha é aceita e até mesmo apoiada na nossa

sociedade por causa da ideologia dominante do capitalismo: “ter” supera

“ser”; “ter” em detrimento de “ser”.

Aqui, podemos ainda relembrar Foucault, que nos situa no contexto da

ideologia demonstrando como ela se impõe por meio da palavra que é aceita e

considerada verdade pelos seres sociais:

Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em

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qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar (FOUCAULT, 2010, p. 9).

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, com o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje (FOUCAULT, 2010, p. 17).

Essa grade complexa que está em constante mutação toma, hoje,

forma de literatura de autoajuda, que funciona como uma missionária do

capitalismo. Demos o poder a ela de ser aceita, de ser o sujeito que fala, sem

oferecer qualquer resistência. Aí é que está o problema apontado por Bakhtin,

segundo o qual o signo possui a função de ser a área destinada à luta de

classes – aí está sua maior importância. Segundo Bakhtin:

O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade (BAKHTIN, 1997, p. 46).

Esse poder que se dá pela forte atração que causa sobre o homem atual

é bem explícito nas palavras de Duarte (2009):

O tipo de performance de linguagem que visa a impressionar, a convencer e a levar o sujeito a seguir um modelo prescrito interessa-nos uma vez que parece estar esse sujeito-leitor capturado pela imagem de sucesso veiculada nos discursos que compõem essa literatura (2009, p. 249).

A exemplo dessa linguagem, Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes

abrangem a maioria dos princípios fundamentais da eficácia humana. Estes

hábitos são básicos, primários. Eles representam a interiorização dos

princípios corretos nos quais estão baseados o sucesso e a felicidade

duradoura (COVEY, 2004). Tais palavras exercem atração no ser humano que

constantemente busca exatamente o que diz o texto: sucesso e felicidade

duradoura.

Foucault (2010) desvela as formas de coerção e punição dos indivíduos

através dos tempos em sua obra Vigiar e punir: nascimento da prisão,

mostrando que a humanidade foi transformando cada vez mais punições

corporais extremamente severas, para mais brandas, até chegar ao ponto de

não haver mais castigos corporais, mas a retirada do indivíduo “errante” da

GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.

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sociedade (mesmo que por um período). A disciplina entra no jogo do

“adestramento” das pessoas para que sigam o que é “certo” de acordo com a

visão do capital. Conforme Foucault (2010):

A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (2010, p. 196).

Nos livros de autoajuda, um dos quesitos básicos para se obter

“sucesso” é a disciplina, vista como portadora da moral e dos bons costumes

que permeiam a vida tranquila na sociedade e satisfazem as regras do

capitalismo, determinando que não faltemos ao trabalho, tenhamos

responsabilidade e possamos produzir sempre mais.

Administração é disciplina, vontade de fazer direito. A palavra disciplina vem de discípulo - discípulo de uma filosofia, de um conjunto de princípios, de um conjunto de valores, discípulo de um objetivo grandioso, de uma meta ambiciosa ou de uma pessoa que representa esta meta (COVEY, 2004, p. 96).

Desse modo, uma disciplinarização velada acontece no mundo

contemporâneo, porém, não tão distante da disciplinarização pensada aqui:

Aquilo que se deve compreender por disciplinarização das sociedades, a partir do século XVIII na Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se parecer com casernas, escolas ou prisões; mas que se tentou um ajuste cada vez mais controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder (FOUCAULT, 1995, p. 242).

Nossa sociedade vivencia esse controle dos indivíduos feito de forma

racional e econômica. Covey, na obra analisada, garante os hábitos que tratam

de disciplinarizar o indivíduo e que o levarão a excelência no trabalho, ao

sucesso profissional. O cidadão cuidando de ser eficiente por si só, e levando

toda a culpa por sua própria ineficiência, independente das condições ou

estado de vida a que esteja sujeito na sociedade, é a chave perfeita do

controle das “atividades produtivas”, das “redes de comunicação” e do “jogo

das relações de poder” (FOUCAULT, 1995, p. 242).

Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes em análise

O livro Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes chama atenção por

sua alta vendagem em muitos anos consecutivos (o que adquirimos, de 2004,

GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.

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pertence à 29ª edição). Mesmo passados 23 anos da 1ª edição, ele é um

sucesso de vendas e considerado essencial para quem faz parte do mundo

empresarial. O próprio autor explica esse sucesso no prefácio da edição,

respondendo a uma pergunta que lhe fazem:

Os hábitos das pessoas altamente eficazes ainda são relevantes hoje? A minha resposta é a seguinte: quanto maior a mudança e quanto mais difíceis os desafios, mais relevantes tornam-se os hábitos. O motivo é que os nossos problemas e a dor são universais, e estão aumentando, e as soluções dos problemas se baseiam e sempre se basearão em princípios universais, atemporais e óbvios por si mesmos, comuns a toda sociedade duradoura e próspera ao longo da história (COVEY, 2004, p. 11).

Tal afirmação, no mínimo, desperta a curiosidade: que princípios são

esses capazes de resolver problemas em qualquer época, em qualquer lugar?

Rüdiger (1996) detecta e traz à tona o truísmo presente nos livros de

autoajuda, os quais evitam que a maioria das pessoas não se identifique com

as regras ou princípios estabelecidos. É essa obviedade indicada pelo próprio

Covey (2004): “princípios universais, atemporais e óbvios” que devem reger a

vida das pessoas para que obtenham sucesso e resolvam todos os problemas.

Nota-se que a solução dos problemas, consequentemente, está ao

alcance das mãos de todas as pessoas, ou melhor, está dentro das pessoas,

desde que moldem seu caráter e sigam os princípios ensinados. Segundo Silva

(2011, p. 6):

Tais manuais oferecem aos seus leitores a promessa de felicidade cujo princípio é o de que cada pessoa tem em seu interior os recursos necessários para chegar ao sucesso, basta seguir as orientações apresentadas, adequando-se, automodelando-se, a fim de atingir determinados objetivos.

Não que isso se dê facilmente(!): “O esforço precisa ser diário, e o

processo, respeitado. As pessoas sempre colhem o que semeiam. Não existe

atalho” (COVEY, 2004, p. 33). Nesse sentido, tal esforço deve ser empreendido

pelo indivíduo na trajetória gradual dos 7 hábitos descobertos pelas

observações e experiência de vida de Covey. O primeiro hábito trata da

proatividade, que é a capacidade do indivíduo de tomar, mais do que a

iniciativa, as rédeas da vida:

Nosso comportamento resulta de decisões tomadas, não das condições externas. Temos a capacidade de subordinar os sentimentos aos valores. Possuímos iniciativa e responsabilidade suficientes para fazer os fatos acontecerem (COVEY, 2004, p. 91).

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A impressão que se tem ao ler tais palavras é a de que somos senhores

do próprio destino, e nessa hora não nos sentimos sendo disciplinarizados.

Porém, ao continuar a leitura, essa revelação de que temos poder e ‘liberdade’

de escolha está toda relacionada ao trabalho:

As pessoas proativas carregam o tempo dentro de si. Faça chuva ou faça sol, não tem importância, elas avançam graças a seus valores. E se um de seus valores é realizar um trabalho de qualidade, ela não depende de o tempo estar bom ou não (COVEY, 2004, p. 92).

Ou seja, de acordo com o discurso de autoajuda, somos senhores, sim,

do nosso destino, em especial para produzirmos mais e melhor, independente

das condições de vida em que nos encontremos ou problemas aos quais

estejamos submetidos.

Isso significa dizer que só assim atingiremos o sucesso almejado,

submetendo nossos sentimentos a valores que rejam nossas vidas e que não

nos deixem reagir a estímulos externos que poderiam ‘frear’ nosso

desenvolvimento profissional e consequentemente uma vida futura dos

sonhos. “Uma pessoa só pode dizer ‘Eu escolho isso’ quando se torna capaz

de dizer ‘Sou o que sou hoje por causa das escolhas que fiz ontem’” (COVEY,

2004, p. 93).

Ainda relacionado ao tema PROATIVIDADE encontra-se a linguagem que

fazemos uso no dia a dia. Não se consegue transformar os próprios princípios

utilizando uma linguagem “reativa”. Observemos o quadro que segue

(COVEY, 2004, p. 100):

Linguagem Reativa Linguagem Proativa

Não há nada que eu possa fazer. Vamos procurar alternativas.

Sou assim e pronto. Posso tomar outra atitude.

Ela me deixa louco. Posso controlar meus sentimentos.

Eles nunca vão aceitar isso. Vou buscar uma apresentação eficaz.

Tenho de fazer isso. Preciso achar a resposta apropriada.

Não posso. Eu escolho.

Eu preciso. Eu prefiro.

Ah, se eu pudesse... Eu vou fazer.

Como vemos, tudo se trata da maneira de ver a vida e não reagir a ela,

mas sim agir, superando os problemas externos de antemão e sem titubear. O

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seu salário é baixo? (“Ah, se eu pudesse... ganhar mais”): trabalhe mais,

estude mais, mostre que é eficaz (“Eu vou fazer”). A vida baseada na

proatividade é uma “mão na roda” para os “muito indivíduos” que nem se

darão ao trabalho de motivá-los a trabalhar para que a máquina do capital

continue funcionando em perfeitas condições e produzindo cada vez mais.

Isso significa dizer que o discurso do capital do “ter” novamente se impõe ao

discurso do “ser” e o discurso de autoajuda aparece como forma de validar o

dito capitalista: se o indivíduo não “tem”, ele é o único culpado, pois o

entendimento é que não houve esforços por parte dele.

O segundo hábito trata de “começar com o objetivo em mente”,

seguindo o princípio de que tudo é criado duas vezes: a primeira é no

pensamento e a segunda no plano físico. Para descobrir o objetivo, devemos,

inicialmente, imaginar nosso próprio funeral, com as pessoas que nos são

importantes e os discursos que farão a nosso respeito.

O primeiro hábito, portanto, trata da liderança, enquanto que o

segundo, do gerenciamento:

O gerenciamento é o grau de eficácia necessário para subir mais rápido a escada do sucesso. A liderança determina se a escada está apoiada na parede correta (COVEY, 2004, p. 123).

Para Covey, é como se o indivíduo precisasse escolher um único objetivo

(o que vale a pena ser discursado no funeral) e a partir daí basear suas

escolhas em princípios que o levem a ter esse sucesso.

Ao trabalhador cabe o objetivo final de “organizar os recursos na

direção certa”, já que:

[...] no mundo dos negócios, o mercado muda tão rapidamente que muitos produtos e serviços bem-sucedidos, na preferência e na necessidade popular há poucos anos, ficaram atualmente obsoletos (COVEY, 2004, p. 124).

Ponto para o time dos “muito indivíduos”, que terão um funcionário

“sempre alerta”, traçando as metas e objetivos da empresa tendo sempre em

vista o mercado consumidor com suas demandas e variações. Mas sabemos

que se trata de um ser formatado, homogeneizado, produzido pelo discurso

de autoajuda. Diferente disso, sabemos que os sujeitos pertencem ao curso da

história (FOUCAULT, 2010) e posicionam-se social e historicamente a partir dos

acontecimentos vivenciados. A noção de sujeito em Foucault distancia-se do

indivíduo robotizado pensado por Covey em sua obra.

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Ainda quanto a “começar com o objetivo em mente” é importante

ressaltar que as companhias possuem missões que norteiam as atitudes e a

vida da empresa, as quais devem estar ‘impregnadas’ na mente de todos os

funcionários que ali trabalham. O trabalhador deve se sentir completamente

envolvido com a missão da empresa, para que tudo funcione na mais perfeita

ordem:

Um dos problemas fundamentais das organizações, incluindo as famílias, é que as pessoas não se comprometem com as determinações que outras pessoas fazem para suas vidas. Elas simplesmente não as aceitam (COVEY, 2004, p. 172).

Ainda bem, não é mesmo? Contudo, para contornar essa situação de não

aceitação, a sugestão do autor é elaborar a missão da empresa em conjunto

com os funcionários, que se sentirão profundamente envolvidos com ela. Ao

mascarar a função de empregados para a função de membros, colaboradores

etc., a empresa cria a falsa ilusão de que os funcionários são mais do que

empregados, fazem parte da “família empresarial”: cria-se, portanto, corpos

dóceis, sem a vontade da revolta e da resistência perante o movimento do

capital empresarial.

Em seguida, o autor apresenta o terceiro hábito: Primeiro o mais

importante.

O gerenciamento eficaz é fazer primeiro o mais importante. Enquanto é a liderança que resolve o que é “mais importante”, é o gerenciamento que coloca o mais importante em primeiro lugar, no dia-a-dia, a cada momento. Gerenciamento é disciplina, vontade de fazer direito.

A palavra disciplina vem de discípulo – discípulo de uma filosofia, de um conjunto de princípios, de um conjunto de valores, discípulo de um objetivo grandioso, de uma meta ambiciosa ou de uma pessoa que representa essa meta.

Em outras palavras, se você for um gerenciador eficaz de si próprio, a disciplina vem de dentro, é um produto de sua vontade independente. Você se torna um discípulo, um seguidor de seus próprios valores fundamentais e de sua fonte. E possui a vontade e a integridade para subordinar os seus sentimentos e humores a esses valores (COVEY, 2004, p. 179).

Em outras palavras, a palavra discípulo nos remete diretamente ao

sujeito disciplinarizado de Foucault, revelando explicitamente nossa sujeição à

ideologia que favorece a produção: seja discípulo de si mesmo, não

decepcione a si mesmo.

Para que o sujeito consiga organizar-se e gerenciar o tempo com

eficácia, Covey sugere um quadro, uma matriz em que se deve listar e

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classificar as atividades diárias. Nessa matriz há 4 quadrantes: I – o que é

urgente e importante; II – o que é importante, porém, não urgente; III – o que

é urgente mas não é importante e IV – o que não é importante nem urgente

(no qual sugere atividades agradáveis, telefonemas inúteis...) (COVEY, 2004).

Sua sugestão é de que se despenda a maior parte do tempo no quadrante II,

para não sobrecarregar o I. Os quadrantes III e IV devem ser praticamente

ignorados, ou seja, seja disciplinado, trabalhe com o que é importante e

essencial para seu crescimento profissional dando prioridade ao que for

urgente, quando necessário, somente quando for algo importante para você.

Ao conseguir aplicar os três primeiros hábitos e adquirir independência

(vitória particular), chega a hora de começar a segunda parte que é o caminho

para a interdependência (vitória pública). Logo, o quarto hábito leva à

interdependência: Pense Ganha/Ganha, que consiste em que todas as

negociações devem oferecer vantagens para ambas as partes, ou senão é

“nada feito” (COVEY, 2004). Com o desenvolvimento deste hábito, a empresa

tem um ganho de confiança do empregado, já que terá um acordo com ele de

atingir certas metas e ser devidamente recompensado. Afinal, se o funcionário

trabalhar mais, a empresa terá mais lucro, o que será refletido em seus

proventos; além do que as companhias que introduzem o hábito Ganha/Ganha

não precisam se preocupar com a supervisão dos funcionários que serão mais

autônomos e independentes:

Desenvolver um acordo Ganha/Ganha de desempenho como este é a atividade central da administração. Tendo um acordo firmado, os empregados podem cuidar de si mesmos, a partir das referências deste acordo. O gerente pode então agir como o carro-madrinha em uma corrida. Ele dá início à prova, depois sai do caminho. Seu trabalho, daí em diante, é remover as manchas de óleo (COVEY, 2004, p. 273).

O quinto hábito – Procure primeiro compreender, depois ser

compreendido – apregoa exatamente isso: compreenda o que o outro quer lhe

comunicar, não tente atropelar suas palavras com sua própria experiência ou

tentar oferecer uma solução pronta que funcionou com você. Só assim será

possível “tocar” uma pessoa a ponto de influenciá-la, afinal, todos nós

queremos ser ouvidos.

Se você deseja interagir eficazmente comigo, influenciar meus pensamentos – ou os pensamentos de sua esposa, seu filho, seu vizinho, seu chefe, seu colega, seu amigo -, primeiro precisa compreender. E isso não pode ser feito unicamente com base na técnica. Se eu perceber que você está usando alguma técnica, noto

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que existe ambiguidade, manipulação. Desconfio dos motivos que o levam a fazer isso. E não me sinto suficientemente seguro para abrir meu coração a você (COVEY, 2004, p. 286).

Essa tão desejada influência é extremamente importante no momento

de persuadir os clientes a consumirem, porque é necessário compreender o

que as pessoas querem, o que os consumidores esperam dos produtos e

serviços que as companhias oferecem.

O sexto hábito fala da sinergia que é a união das diferenças para criar

algo novo, por meio do pensamento Ganha/Ganha e da empatia, que criam o

ambiente propício para que surja a sinergia, a qual vai gerar resultados

eficazes e criativos.

A sinergia não poderia criar um roteiro para a nova geração – uma geração mais voltada para servir e contribuir, que fosse menos protetora, menos antagônica, menos egoísta; uma geração mais aberta, mais confiante, mais confiável; menos defensiva, desconfiada e política; mais amorosa, mais dedicada e menos possessiva e crítica? (COVEY, 2006, p. 317 e 318)

Todas essas aspirações para a nova geração possuem sua razão de ser,

afinal, servir, contribuir, colaborar, ser confiante e confiável são ações que

devem fazer parte da evolução da humanidade. Porém, deixar de ser políticos,

críticos é um grande retrocesso e muito conveniente para quem está no poder

e quer deixar tudo como está; ou ainda, podemos pensar no discurso de

autoajuda como um alienante de consumo, pois, aqui, a sinergia aparece de

modo a abafar as relações de contradições sociais.

Por fim, o sétimo hábito – Afinando o Instrumento – nada mais é do que a

manutenção dos outros seis hábitos, levando em conta “as quatro dimensões

de sua natureza – física, espiritual, mental e social/emocional” (COVEY, 2004,

p. 346). O sétimo hábito aparece como a garantia de manter os hábitos

eficazes funcionando em perfeita ordem, diariamente, para que não os

deixemos de lado, para que continuemos sempre produzindo da melhor

forma possível, sem que, sequer, fiquemos doentes.

Este é o investimento isolado mais poderoso que podemos fazer na vida – investir em nós mesmo, no único instrumento que possuímos para lidar com a vida e contribuir para a humanidade. Somos todos instrumentos para nosso próprio desempenho, e para atingir a eficácia precisamos reconhecer a importância de dedicar algum tempo, com regularidade, para afiar a serra, ou afinar o instrumento, das quatro maneiras (COVEY, 2006, p. 347).

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Ao trazer para o indivíduo a responsabilidade de “investir em si mesmo”,

o discurso de autoajuda manipula a ideia de que, na verdade, todo o

investimento trazido até então diz respeito ao investir a sua força de trabalho

na empresa, no capital, na economia. Há, sobretudo, um dizer de seremos

plenos se formos “eficazes” e a eficácia se constrói se “dedicarmos algum

tempo, com regularidade”. Nesse sentido, o autor traz para o trabalho

(trabalhar a si mesmo) a ideia de que somente por ele é que o indivíduo

poderá deixar a sua “contribuição para a humanidade”. Nesse sentido, o autor

apaga a luta cotidiana dos trabalhadores, inculcando por meio do discurso de

autoajuda a ideia de que podemos ser quem queremos ser. Logo, o discurso

de autoajuda funciona como um elemento ilusório: emoldura uma outra

realidade de trabalho, idealizada e de difícil acesso, pois não traz as

dificuldades enfrentadas no dia a dia do trabalhador no ambiente de uma

empresa. Nossas condições histórico-ideológicas se fazem presentes nesse

discurso de autoajuda e “se constituem relativamente às coerções da

formação em que se inscrevem” (ORLANDI, 2007, p. 71).

Considerações finais

Ao tratar sobre o discurso de autoajuda em relação ao tema do trabalho,

podemos observar como que os discursos capitalista e econômico transitam

na obra de Covey, Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes. Observamos

que o discurso do capital do “ter” camufla o “ser”, no entanto, o presente

artigo é apenas uma amostra do que pode ainda ser estudado em termos de

discurso de autoajuda empresarial. Nesse sentido, não temos a ilusão de

acreditar que este trabalho esteja completo, nem de que aqui se fecha.

Observamos que é possível estudar o discurso de autoajuda também

considerando a sua confluência com outros discursos, por exemplo, o

religioso, que é muito citado na obra em estudo.

Em Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes há citações do Dalai Lama,

Goethe, Aristóteles, entre outros, ou seja, o discurso de autoajuda ainda se

apropria de dizeres da espiritualidade, da literatura e da filosofia para se

autovalidar. No entanto, quando analisamos de modo mais crítico, podemos

observar, por exemplo, no caso da filosofia, que a área não é tendenciosa, não

favorece um lado da moeda, mas sim o ser humano em sua integridade de SER

HUMANO. A filosofia pode ser convenientemente usada como uma

camuflagem, uma lente que muda o foco do leitor para as questões, diga-se

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de passagem, ‘nobres’ da vida, mas se observarmos com atenção, veremos

que se trata de uma distorção da filosofia para que a autoajuda deixe a sua

mensagem: “Somos o que repetidamente fazemos. A excelência, portanto,

não é um feito, mas um hábito” (ARISTÓTELES apud COVEY, 2004, p. 62). Fica

evidente que Covey utiliza-se de uma citação de Aristóteles para pontuar

outro contexto, bem distinto do que foi proposto (e por condições de

produção bem distintas também); aqui, o contexto de que a prática dos

hábitos por ele mencionada fará do indivíduo um sujeito eficaz. Covey valida o

seu dizer ao trazer para o texto de autoajuda a (falsa) ideia de que Aristóteles

concordaria com ele, pois exalta a excelência da prática dos hábitos. Logo,

devemos desconfiar: será que é de fato nesse contexto que Aristóteles diz o

que Covey diz que ele diz?

O discurso de autoajuda empresarial, portanto, é um discurso alienante,

pois tenta conduzir o leitor (trabalhador) a ter atitudes práticas de um

trabalhador perfeito, um trabalhador de hábitos eficazes, mas não um ser

humano pensante, crítico da sua condição pessoal, um questionador atuante

da sociedade em que vive. Covey, em Os 7 hábitos das pessoas altamente

eficazes, coloca-se no lugar de alguém que pode ajudar qualquer trabalhador a

obter sucesso profissional e, consequentemente, uma vida financeira e social

de prestígio e facilidades. Porém, podemos observar em seus dizeres que o

grande favorecido é o capital, os donos das grandes empresas, o lucro, a

máquina que não para de nos dizer o que fazer, comer, vestir, comprar,

CONSUMIR.

REFERÊNCIAS

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GRAEBIN, Franciele. O discurso do trabalho na literatura de autoajuda: Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey, em análise. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 89-107, dez.2013.

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SILVA, Samuel Cavalcante. Práticas identitárias no mundo contemporâneo do trabalho. Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão, 2011.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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A AMBIGUIDADE DOS LETRADOS E O ENSINO DA LÍNGUA

MATERNA NO BRASILi

João Wanderley Geraldiii

Resumo: A predominância do português no Brasil conta com mais ou menos 250 ou 300 anos. Antes predominaram as duas línguas gerais, uma baseada no Jê (no norte) e outra no tupi-guarani (na costa). A política linguística do gabinete do Marquês de Pombal, ao proibir as línguas gerais em 1749, começa efetivamente a implantação da língua portuguesa. Provavelmente seríamos bilíngues não fosse esta política. Somente 100 anos depois a questão da língua passa a ser focalizada, com os indigenistas. Desde então, há uma posição dúbia dos letrados em relação aos falares do povo brasileiro, que oscila segundo as condições políticas: em épocas de concentração do poder, uma aproximação; em épocas de estado de direito, uma desaprovação. Este movimento pendular tem reflexos nos objetivos e objetos de ensino escolar sobre os quais será necessário debruçar-se.

Abstract: The predominance of the Portuguese language in Brazil has been a fact for about 250 or 300 years. Before the two general predominant languages , one based on Jê (in the north) and another based on the Tupi-Guarani (on the coast). The language policy of the cabinet of the Marquês de Pombal who prohibited the general languages in 1749 effectively started the deployment of the Portuguese language. We would probably be bilingual if it was not for that policy. Only 100 years after the issue of language has started to be analyzed by the indigenous. Since then there’s been a dubious position of scholars in relation to the different talk spoken by the people which dangles under the political conditions: in times of concentration of power there’s an approximation but in times of state law there’s a disapproval. This pendulum is reflected on the goals and objects of schooling on which we’re going to analyze.

i Palestra proferida durante o XVII EBEL – Encontro Baiano de Estudantes de Letras, UESC, 16.11 2013. Este texto retoma textos anteriores e foi organizado especificamente para esta exposição.

ii Docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil.

GERALDI, João Wanderley. A ambiguidade dos letrados e o ensino da língua materna no Brasil. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 108-121, dez.2013.

111100009999

1 Os letrados e suas oscilações

Nós temos mais ou menos só 250 anos de implantação do Português no

Brasil. Nós sempre esquecemos disto. É o Marquês de Pombal e a política do

seu gabinete que proíbe o uso das línguas gerais, que foram duas. Uma no

norte, no Grão-Pará, e outra da costa, de base tupi-guarani (o Nheengatu, a

“boa língua” de que nos resta a Arte da Gramática de Anchieta). A presença

da língua geral era tão forte que, a propósito da situação, em meados do

século XVII, Vieira escreve que as famílias dos portugueses e dos índios

estavam tão ligadas, que a língua que nelas se falava era ‘a língua dos índios’, e

que os filhos de portugueses somente iriam aprender a Língua Portuguesa na

escola (cf. Soares, 1996).

A emergência das línguas gerais, resultado do contato entre um povo

falante de uma única língua – os colonizadores – e uma população distribuída

em várias nações de diferentes línguas, mostra que os processos interativos,

as necessidades da vida foram mais fortes do que a língua trazida pelos

colonizadores. Certamente, o interesse dos portugueses era muito mais de

exploração imediata das possíveis riquezas do novo território, mas também há

um fato incontestável: a presença dos colonizadores aproximou as nações

indígenas entre si, o que lhes exigiu a construção de uma língua de contato.

Não fosse a política linguística do gabinete do Marquês de Pombal, hoje

seríamos um país, no mínimo, bilíngue1. Tivesse sido outra a história,

poderíamos estar às voltas com os mesmos problemas linguísticos

enfrentados pelas antigas colônias portuguesas da África, como Cabo Verde,

Moçambique etc., ou enfrentando as mesmas discussões entre o português e

o totum como acontece no libertado Timor Leste2.

Digamos que de 1750 a 1850, portanto até meados do século XIX, houve

no Brasil uma política linguística de glotocídio, uma política inicialmente da

metrópole, e também depois do país já independente. Quer dizer, uma política

de glotocídio acompanhada do genocídio histórico das populações indígenas.

Implanta-se o português. Os colonizadores foram muito bem sucedidos nesse

sentido, pois em menos de 100 anos, um país do tamanho do nosso já fala o

português (ou os vários “portugueses”). Isso é um sucesso espetacular em

1 Obviamente sei que a unidade linguística em torno do português é uma afirmação falsa, porque esquece as minorias linguísticas existentes no país.

2 Isto não quer dizer que nossa situação é melhor do que aquela enfrentada pelos países africanos, oficialmente de língua portuguesa.

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termos linguísticos. Obviamente, nós somos plurilíngues, temos 180 línguas

indígenas, mais umas 20 outras línguas faladas no Brasil (de imigrantes), mas

na verdade, a língua nossa, de uso comum é o português.

É em meados do século XIX que pela primeira vez aparece a questão da

língua no ambiente cultural da “inteligência brasileira”. Os letrados latino-

americanos em geral, em todas as nossas cidades, formaram uma espécie de

um anel em torno do poder3. Mesmo Machado de Assis, por exemplo, apesar

da sua genialidade, circula em torno do poder, jamais em torno de sua própria

etnia.

Chamo atenção para um fenômeno marcado na língua: o gesto de

escrever, a escritura, é também o documento pelo qual se garante

cartorialmente a propriedade. É por uma escritura pública que você adquire a

propriedade da terra. A expressão escritura tanto nos serve para definir um

certo modo de escrever, quanto um certo modo de propriedade. Para além

dos grafitis, das pichações e outras raras escritas nos muros da cidade, talvez a

escritura pública de propriedade seja uma das poucas escritas públicas deste

país, ainda hoje. E ambas serem escritura são resquícios dessa relação entre

letrados e poder.

Voltemos a meados do século XIX e tomemos José de Alencar como um

nome mnemônico dessa época do segundo Império, com o poder centralizado

na figura do Imperador, com Assembleia praticamente nomeada pelo

Imperador. Estávamos sob a Monarquia, e um intelectual como José de

Alencar, mas não só ele, todos os indianistas, escrevem em português

trazendo o mundo indígena para dentro das letras – não só como heróis

mitificados e mistificados, mas também alterando sintaxe e vocabulário do

português. José de Alencar é um bom exemplo, porque dirá que cabe ao povo

criar a língua, e cabe ao escritor burilar as criações e fazer com que essas

criações entrem no sistema da língua. Eis que encontramos aí um papel

linguístico atribuído ao povo: o da criação. Efetivamente só vira língua depois

que passou pelos grandes escritores, mas se dá ao povo o direito de ser

criativo em termos de linguagem como se dissessem: vocês podem criar,

depois nós apadrinhamos as suas criações que julgarmos adequadas e as

criações assim apadrinhadas por nós passam a ser legitimamente

portuguesas. Um resquício deste espírito? Nossa preocupação em usar

3 A propósito, ver Rama (1985)

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palavras dicionarizadas, como se o dicionário as tornasse adequadas. Não está

no dicionário, não faz parte da língua. Glotocídio e cartorialmente estão

devidamente sublinhadas em vermelho pelo meu computador, como a me

dizer: procure outra expressão adequada!!!

Em 1889, inauguramos a República por uma sequência de ditaduras

militares: Deodoro e Floriano são militares que assumem o governo. Somente

no alvorecer do século XX, teremos a primeira eleição para Presidente. A partir

daí temos um Estado de direito, um conjunto de leis, com a distribuição do

exercício do poder definida. Não há mais a concentração do poder na figura

do Imperador ou dos ditadores. O poder se exerce segundo certas regras

estabelecidas e de forma compartilhada por vários agentes sociais.

O que acontece na “inteligência nacional” como fenômeno mais

importante na área de linguagem nos anos 900 é o debate entre Rui Barbosa e

Carneiro Ribeiro a propósito da correção gramatical do Código Civil. Não

interessa que o código civil trate, nesta época, a mulher como inferior e

subordinada ao homem – a falta da virgindade era motivo de anulação de

casamento enquanto vigorou este Código - mas interessava se deveria ou não

haver uma vírgula. E isto se discutiu publicamente, na revisão do código, com

direitos a réplicas e tréplicas. Monumentos de nossa cultura, até hoje

reverenciáveis.

Isso revela um período em que a “inteligência nacional” é extremamente

marcada pelo purismo linguístico. Se você tem um Estado de direito, que se

democratiza pelos processos republicanos, então o poder passa a ser

compartilhado, quer dizer, é alargado o número de pessoas que exercem o

poder e, nesse momento, é preciso ‘reconhecer’ que o povo não sabe falar,

que é preciso corrigir o português desse povo. Por isso, o poder deve ficar

restrito às elites econômicas e culturais. São deste período as velhas crônicas

jornalísticas com discussões de “firulas gramaticais”. É do contexto dessas

discussões que surgem livros como o de Cândido Figueiredo ou de Paulino de

Brito, a propósito da sintaxe de colocação dos pronomes. Bem mais tarde

aparecerá o poema de Manuel Bandeira ridicularizando as regras de colocação

de pronomes que proíbem iniciar uma frase com um pronome oblíquo. E não

são somente eles, nem somente no que hoje chamaríamos de ‘grande

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imprensa’. Discutir correção gramatical é também uma ação da imprensa

negra!4

Em 1922, a “inteligência nacional”, especialmente os artistas plásticos, se

une na Semana da Arte Moderna, com um pouco de atraso em relação ao

resto da Europa, em nome do Modernismo. Esse Modernismo não é tão

moderno na área da poética e da literatura: representa-as Graça Aranha!

Somente mais tarde, na área da arte verbal, chegará de pleno o modernismo,

marcado pelas obras dos Andrades: Mário de Andrade e Oswald de Andrade5.

Jorge Amado começa sua vasta produção precisamente durante este período.

E em termos de construção linguística, é um autor que traz para seu texto a

linguagem popular.

E o que temos politicamente? Temos a ditadura Vargas. A “inteligência

nacional” perde o poder, que já não é mais exercido segundo regras

estabelecidas com certa distribuição de suas benesses. E quando os letrados

perdem o poder, eles se aproximam do povo, inclusive admitindo que se fale

de outros modos.

1945, final da ditadura Vargas. Em 1946, temos nova Constituição, e um

Estado de direito mais uma vez nestas nossas raras experiências de

democracia formal durante o século XX. Estamos na segunda República. Nesse

período, a “inteligência nacional” retorna à questão da língua. São dessa

época as publicações das gramáticas que até hoje continuam sendo

reeditadas, com exceção da gramática de Rocha Lima. A 2a edição de

Napoleão Mendes de Almeida é de 1948 (não consegui acesso à primeira

edição); Celso Luft escreve sua primeira gramática nesse período e na área da

Literatura surge a geração de 45, que não é composta apenas por Drummond.

Há entre eles poetas extremamente puristas em termos de linguagem (que o

nome do mineiro Abgar Renault sirva de exemplo). Essa geração, incluindo

mesmo João Cabral de Melo Neto, é extremamente purista em termos de

4 Getulino, um jornal da imprensa negra de Campinas, da década de 1920, também publica discussões deste tipo, conforme a tese de doutoramento de José Geraldo Marques “Imprensa e resistência negra: o projeto integracionista em discursos do Getulino. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp. Data de defesa: 21.02.2008.

5 Mário de Andrade escreveu anos antes do início da ditadura uma gramatiquinha do português, dentro do espírito modernista. Mas seus escritos passam a ter ressonância mesmo depois de 1930, porque suas mais importantes obras serão desta década. Aqui, como em todos os outros períodos assinalados, há interpenetrações. As datas não são rígidas: tratam-se de períodos mais ou menos equivalentes, até porque nas práticas sociais e escolares se antecipam ou são decorrências das situações políticas.

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correção linguística, ainda que ideologicamente sejam “de esquerda”.

Novamente Jorge Amado é um exemplo, mas já em 1959 há uma mudança de

rota em seus romances: mantém-se a forma, mas orienta-se muito mais para

os costumes do que para a realidade social tão bem retratada em “Capitães da

Areia”. Note-se que mesmo um socialista posteriormente perseguido pela

próxima ditadura, como Houaiss, é um filólogo extremamente exigente e

formal. O dicionarista é até muito aberto a novidades: para ele a riqueza de

um idioma se ‘mede’ também pelo número de itens lexicais. Em certo sentido,

Houaiss é um José de Alencar de um século depois.

A questão da gramática, da correção gramatical e do ensino da

gramática permanece como uma característica da formação da “inteligência

nacional”, dos anos 1945 até mais ou menos os anos 1960. Em 1964, novo

golpe militar. A Universidade é esvaziada por cassações de direitos políticos e

aposentadorias obrigatórias. Os letrados são alijados do poder, em benefício

dos milicos e seus supostos técnicos. Alguns destes técnicos estão até hoje em

nossa política, como Delfim Neto, um dos signatários do AI-5. Não podemos

negar um paradoxo: para obter e manter apoio na classe média, a ditadura de

então produz uma expansão da oferta educacional, a enorme custo social. A

escolaridade básica passa de 4 para 8 anos; o ensino superior se interioriza e

se expande com queda de qualidade e pela rede privada de ensino. Mas é

inegável uma democratização do acesso à escolaridade. Certamente estariam

os letrados até hoje discutindo se haveria ou não condições de um ensino

fundamental de oito anos no Brasil!!! Que sirva de exemplo o tempo que

ficamos discutindo a implantação do ensino básico de 9 anos!

O golpe militar se firma de fato em 1968 com o AI-5. Nos quatro

primeiros anos do Castelo Branco, ainda colocávamos a cabeça para fora,

chegando até a haver um candidato à sucessão do Castelo Branco, o General

Albuquerque, supostamente mais democrata do que o sucessor efetivo, o

general de plantão Costa e Silva, depois assassinado e substituído por uma

junta militar que assina o AI-5 e se deixa suceder por Garrastazu Médici,

período mais tenebroso de nossa última ditadura.

Que acontece com a reflexão sobre a Língua Portuguesa neste período?

Ela desaparece até como disciplina escolar, torna-se Comunicação e

Expressão. Para carnavalizar a política linguística da ditadura, talvez possamos

tomar como modelo maior de comunicação e expressão, encontrado na

televisão, o bem sucedido Chacrinha! Ele continua balançando a pança e as

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massas. “Quem não se comunica se trumbica”. Importa é comunicar; o resto

não interessa. Muitos dos professores de hoje são produtos dos cursos do

primeiro grau idealizados e realizados dentro dessa perspectiva

comunicacional. Desde então, uma espécie de crise do ensino tradicional da

gramática fica exposto: ferida não cicatrizada até hoje.

Não por acaso, de novo durante uma ditadura, temos uma liberalização

linguística. Quando se tem uma concentração no poder, libera-se a fala, e o

espírito gramatiqueiro de nossa cultura baixa a guarda.

A história nos mostra esta oscilação ambígua dos letrados: quando no

poder, são os primeiros a se preocuparem com a língua, com sua correção,

com sua unidade; quando alijados do poder, aproximam-se do povo e de seus

modos de falar. Obviamente, são gerações distintas, não são sempre os

mesmos intelectuais. O que importa ressaltar é essa constância no movimento

histórico das elites brasileiras.

As consequências na história do ensino da língua são mais ou menos

nítidas: durante o Império, as aulas régias contemplavam a língua como

disciplina, e seu estudo se fazia comparativamente à língua latina. Mas eram

poucos aqueles que chegavam às aulas, de modo que o período foi pouco

significativo e a liberdade de linguagem ocorre entre nossos primeiros

romancistas indigenistas. Na primeira república, as seletas de prosa e verso e

as gramáticas povoaram as salas de aula. Durante a ditadura Vargas, se a

intelectualidade pôde respirar alguma liberdade graças à atuação do ministro

Capanema (nem todos, lembremos que Graciliano vai para a cadeia e Jorge

Amado é perseguido), as salas de aula continuaram onde estavam: lendo

textos seletos e aprendendo gramática. O ensino gramatical perdurará firme e

solene até o advento da reforma de 1971, em plena ditadura militar. A única

novidade foi a Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959, que padronizou a

terminologia gramatical para os efeitos de ensino da língua (e continuamos

até hoje a definir “pronome como aquele que substitui o nome” sem termos a

classe dos “nomes”).

A partir da reforma e com a introdução da disciplina “Comunicação e

Expressão”, muda-se o objeto de estudo: elementos da teoria da comunicação

passam a fazer parte do que se ensina e se aprende; busca-se a expressão

criativa (há manuais de criatividade publicados nesta época!) e também

entram para dentro da sala de aula os textos de leitura. A coleção de livros

didáticos assinada por Magda Soares, “Português através de textos” indiciam

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esta novidade nos objetos de trabalho de sala de aula. E muitos serão os

gêneros acolhidos – não mais textos literários seletos, em prosa e verso – até

mesmo histórias em quadrinhos. Um espanto para qualquer professor por

acaso ainda vivo da primeira república!

2 Um período de interregno – O período da redemocratização

A continuidade desta oscilação poderia ter continuado na

redemocratização. No primeiro ano de governo de Sarney, uma comissão

nacional é nomeada para definir diretrizes para o ensino da língua portuguesa!

Mas havia acontecido a Linguística e seus pecados originais (estudar a língua

oral e considerar autoridade o falante, e não o escritor) e nesta linha histórica

há um interregno. Acontece que com as cassações e perseguições políticas, e

com a expansão das universidades, abriu-se um espaço para a presença no

meio intelectual de convidados não previstos. Sobrou a grande liderança do

Antônio Cândido, aberto às questões sociais. Mas a Universidade, após seu

esvaziamento com as cassações, buscou sangue novo, que vem de outro lugar

e o que se tem agora é a constituição de outra inteligência ou de intelectuais

brasileiros fortemente vinculados aos estudos linguísticos, e não à cultura

clássica, aos estudos filológicos ou aos estudos da crítica literária clássica. A

maioria dos sobrenomes que povoam nossas bibliografias é de descendentes

de imigrantes, de intelectuais procedentes dos níveis sociais ditos ‘inferiores’.

A Universidade expandida é tomada, em nossa área, pelos estudos das

disciplinas linguísticas, que acabam ocupando um grande espaço nos Cursos

de Letras, um grande espaço curricular, que traz consigo um conjunto de

informações e perspectivas sobre a língua, levando a um conjunto de

produção nas áreas de sociolinguística, gramáticas descritivas e, sobretudo,

uma reação ao normativismo.

Felizmente, não há mal que sempre dure! Em 1982, tivemos a primeira

eleição para governadores. Foi a primeira vez que a nossa geração votou para

governador, a geração que nasceu nos anos 40. Temos o movimento das

“Diretas já”, o processo de redemocratização que vai desaguar na eleição

indireta do Tancredo e depois a presidência exercida pelo Sarney. Nesse

período, temos uma espécie de abertura (política, mas não econômica).

Este momento da chamada redemocratização – um período de transição

que vai de 1980 ao primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso –

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encontra uma “intelectualidade” universitária diferente daquela de meados

do século. Refugiada nas universidades, contava agora com o “respaldo” da

pesquisa e do conhecimento dito científico. Este novo grupo, na maioria

procedente de classes médias baixas, tinha sido beneficiado com a expansão

do ensino superior (na rede privada), com o desenvolvimentismo nacionalista

(inclusive na área da pesquisa), com a criação dos centros de excelência com

mestrados e doutorados.

Agora temos uma “inteligência” universitária muito ligada à escola

básica; em nossa área, praticamente desapareceram os estudos filológicos em

benefício das pesquisas em linguística e um conjunto de estudos que tomam a

obra literária como objeto mas que não restringia seus estudos à crítica

literária tradicional, mas levantava novos temas como a leitura (envolvendo o

outro que não o autor); a vida literária não se resumia mais à produção e às

noites de autógrafos nos cafés: a circulação social do próprio livro é que

interessa a esta nova inteligência.

Na Universidade, em nossa área, os estudos discursivos, enunciativos,

pragmáticos passam a prevalecer a partir dos anos 1980. O período de

redemocratização política veio encontrar a Universidade fervilhando de ideias,

sem que houvesse uma posição hegemônica: estávamos nos processos de

derrocada dos estudos estruturalistas, não havia um só modelo que

merecesse o apoio de todos os pesquisadores. Os resultados das pesquisas

sociolinguísticas, da análise da conversação, da linguística textual, dos estudos

da língua oral, da análise do discurso, estavam todos apontando para outras

perspectivas, totalmente distintas do normativismo.

É nesse contexto universitário que a política da redemocratização

encontrará seus ‘intelectuais orgânicos’. Com a redemocratização, os

governadores eleitos trouxeram para as secretarias intelectuais do meio

universitário. O momento era de abrir as gavetas e ver que propostas havia. Eu

lembro discussões com o Prof. Gadotti, que dizia que estávamos passando da

crítica à ação, e a pergunta fundamental era: o que fazer agora? E essa era uma

pergunta constante para todos nós. Muitas teses surgiram nesse contexto e

sobre este contexto. Em São Paulo, na prefeitura, a Profa. Guiomar Namo de

Mello assume a Secretaria de Educação, e promove estudos curriculares de

que resultaram os Planos Curriculares, os primeiros elaborados após a

redemocratização. Eles servirão posteriormente de modelo para os inúmeros

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planos curriculares dos estados, a partir dos quais nascerão os Parâmetros

Curriculares Nacionais.

Neste “período de transição”, muitas iniciativas buscavam alterar o

processo de ensino. Em lugar de um “objeto” a ser estudado, propunha-se

que o processo fosse de práticas linguísticas de leitura, de produção de textos

e de reflexão sobre os recursos linguísticos disponíveis numa mesma língua,

introduzindo, pela primeira vez a diversidade linguística como característica da

língua, e não mais a uniformidade e a correção como lemas do processo de

ensino e aprendizagem.

Talvez a expressão mais sucinta deste período de “interregno” político

em que posições mais populares sobre a língua e a democratização andam

juntas seja o fato de que toda a redemocratização se faz sob o “signo da

participação”: são milhares de seminários, grupos de estudos, chamada de

professores do chão da escola para opinar sobre propostas de ensino. A

sociedade civil sai vitoriosa, inclusive no texto da Assembleia Nacional

Constituinte (a Constituição de 1988).

Isto não se fez sem uma constante militância. Não só porque a elite

pensou em intervir através da comissão de 1985 para definir as “diretrizes

para o ensino da língua materna”, justificada na necessidade de “salvar” a

língua pátria e sua pureza conspurcada pela intromissão da fala popular nos

textos e nas escolas. São dessa época também, por exemplo, os Manuais de

Redação de diferentes jornais – são inovadores, mas também freios ao avanço

de novas formas de dizer e de escrever.

3 A proposta neoliberal: os Parâmetros Curriculares

Este movimento político-cultural de mobilização social, com discussões

dos rumos do país em todos os seus aspectos – economia, saúde, educação,

reforma agrária etc – pôs em evidência dois projetos distintos de sociedade:

aquele preconizado por um desenvolvimento social alicerçado numa maior

distribuição da riqueza e aquele preconizado pelo neoliberalismo de inclusão

dependente do país nos processos de globalização. Este o divisor de águas no

processo eleitoral de 1989, representado pelas candidaturas de Collor (com

apoio da mesma burguesia que apoiara o golpe militar) e Lula (com apoio dos

movimentos sociais).

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Assim, com Collor, em 1990, o neoliberalismo inicia o processo

econômico e político de abertura do mercado brasileiro para a globalização

liderada pelos EEUU e o desmantelamento do estado de bem estar social que

apenas começava a desenhar-se. As resistências foram poucas e o novo

modelo vai-se aprofundando até chegar a seu auge no primeiro e segundo

governos de Fernando Henrique Cardoso, aquele que pediu para que

esquecessem tudo o que tinha escrito.

Qual proposta educacional traz este movimento? Além da privatização

do mercado escolar – que no ensino superior já se iniciara nos governos

militares – tratava-se de “avaliar” o sistema para torná-lo mais “eficaz e

competente”, detectando seus gargalos, seus defeitos de modo a apontar

para a sociedade quais as instituições que mereciam maior investimento

porque eram mais produtivas em seus resultados6.

Como avaliar – organizar provas nacionais – se não havia uniformidade

nos planos curriculares e no que se ensinava nas diferentes escolas brasileiras?

Surgem então os PCNs, cujo próprio nome já confessa seu objetivo:

parâmetros! Assim o projeto educacional neoliberal transformou os planos

curriculares em parâmetros curriculares (parâmetros são formas de medida

que exigem um tipo específico de ação, mas jamais um convite a ações de

outra ordem).

Ora, as concepções de linguagem que iluminavam as propostas de

muitos planos curriculares eram diametralmente opostas às necessidades de

um “objeto de ensino definido” que precisa ser aprendido e devolvido como

sabido nas provas de avaliação do sistema. Foi neste momento que surgiu o

novo objeto de ensino da língua portuguesa. Do curto período (anos 1980-

1995) de tentativas de centrar o ensino e a aprendizagem em práticas, passa-

se, a partir de 1995, a estudar os gêneros do discurso, as esferas sociais de

seus usos, suas características e a se cobrar que o aluno conheça

“teoricamente” todas as esferas da comunicação e todos os diferentes

gêneros que por elas tramitam, e demonstre este saber não só lendo as

6 Até hoje isto permanece, particularmente nos programas de pós-graduação, numa concentração de recursos dentro daqueles cursos que mostram “excelência”, invés de investir precisamente onde mais há necessidade! Que o digam as novas universidades e os minguados recursos destinados a seus programas de pós-graduação recém iniciados! CNPq, CAPES e outros órgãos financiadores funcionam como bancos comerciais: se você mostrar que tem recursos para garantir nossos investimentos, nós investimos em você! Experimente obter um empréstimo em qualquer banco sem mostrar suas garantias de pagamento...

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materialidades textuais, mas também produzindo textos que funcionem de

acordo com o previsto. Trata-se agora de dizer o que se quer, e aplicar provas

para verificar se os alunos aprenderam ou não. E informa-se ao mercado onde

estão se ‘formando’ os melhores.

Com base nas provas, organiza-se a hierarquização das instituições de

ensino. Do ensino superior à escola básica. Há até ‘gratificações’ para

professores quando sua escola atinge bons índices nestas avaliações. Esta é a

proposta neoliberal. O mercado vai fechar as piores instituições ou elas

próprias, como novas Fênix, se levantariam do chão pelas próprias forças

como o Barão de Münchhausen se salva das areias movediças puxando os

próprios cabelos...

Somente um governo que pensa a educação desta forma pode chamar

um Pasquale Neto para fazer a Campanha do ENEM. Nada mais distante do

que apregoam os PCNs de língua portuguesa do que o trabalho de Pasquale

Neto!

Infelizmente, esta política somente vem se agravando ou aprofundando

nos últimos anos, particularmente na escola básica. Hoje, o movimento

“Todos pela Educação” (diferentemente do movimento “Educação para

Todos” da década de 1980) frequenta diretamente os gabinetes do MEC,

interfere no Plano Decenal de Educação e vende pacotes pedagógicos para as

redes públicas de ensino: Alfa & Beto, Ensino Estruturado, Acelera, Apostilas

do Positivo ou do Anglo, Sistema de Avaliação Mares Guia, Sistema Pitágoras e

assim por diante.

Estamos mais uma vez num estado de direito, com uma constituição

prevendo as formas do exercício do poder, com as formas de compartilhar

este poder. Trata-se de um “estado de direito”, não de uma sociedade

democrática. E neste Estado, eis que retorna na nossa cultura a preocupação

com a linguagem, com a correção, com a gramática. Há uma gramaticalização

dos gêneros; a imprensa cobra qualquer deslize ortográfico; a indicação da

possibilidade de variação linguística num livro didático é execrada pela opinião

publicada.

Seguindo a história, a história de como a “inteligência brasileira” sempre

colocou a questão da linguagem, está mais uma vez na hora de calar o povo,

porque não sabe falar. É preciso primeiro aprender a falar direito, aprender a

escrever sem erros, para depois querer participar da riqueza e do poder.

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Trata-se do poder e não é por acaso que nós, professores de Língua

Portuguesa, estamos trabalhando em perspectivas discursivas, enunciativas

etc. Estamos novamente caindo na resistência, porque o projeto dos próximos

anos, que só poderão ser avaliados daqui a muitos anos, vai ser o ensino de

gramática, e o ensino da gramática tradicional como uma forma de exclusão

dos sujeitos falantes, uma forma de seleção e exclusão de sujeitos num Estado

de direito, quando a “inteligência brasileira”, os intelectuais brasileiros

alteram os seus vínculos de classe, e retornam ao bom abrigo de sua pertença

de classe. Sobrarão resistências?

As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima. Prediletamente latas. Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas. Se você jogar na terra uma lata por motivo de traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar. Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias. Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas. E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar. Por isso eu acho as latas mais suficientes. A gente pega uma lata, enche de areia e sai puxando pelas ruas moda um caminhão de areia. E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido pelo espírito, não dá para encher de areia. Por isso eu acho a lata mais suficiente. Ideias são a luz do espírito – a gente sabe. Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba atômica, a bomba atôm....................................... ..........................................................Agora eu queria que os vermes iluminassem. Que os trastes iluminassem. (Manoel de Barros, Teologia do Traste)

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REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel. Poemas Rupestres. São Paulo: Record, 2004. MARQUES, José Geraldo. Imprensa e resistência negra: o projeto integracionista em discursos do Getulino. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2008. RAMA, Angel. A cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. SOARES, Magda. Português na escola: história de uma disciplina curricular. Revista de Educação AEC, v. 101, out/dez, 1996, p. 9-26.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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TRAÇOS DA POLIFONIA BAKHTINIANA NO ROMANCE

BRASILEIRO: O TEMPO E O VENTO, DE ERICO VERISSIMO

Marcio da Silva Oliveirai

Resumo: O objetivo do presente artigo é trabalhar com o conceito de polifonia proposto por Mikail Bakhtin em seu livro Problemas da Poética de Dostoievski e como esse conceito pode ser aplicado à terceira parte da obra O tempo e o vento, de Erico Verissimo, intitulada O Arquipélago. Bakhtin utiliza-se do conceito de polifonia para destacar uma contraposição entre o romance monofônico, também conhecido como tradicional, de uma forma peculiar de romance, onde cada personagem funciona como um ser autônomo, que cultiva sua própria visão de mundo e que não está submetido à visão de mundo do próprio autor. Para o teórico russo, o escritor tido como referência em se tratando de romance polifônico é Fiodor Dostoievski (1821-1881) que, segundo ele, foi o único capaz de alcançar a magnitude do significado do termo. O conceito de polifonia é, muitas vezes, confundido com outros termos da linguística como, por exemplo, o dialogismo, por isso, é necessária muita cautela na definição de um romance como sendo polifônico. Sendo assim, a presente investigação busca evidências que comprovem traços da polifonia bakhtiniana no grande romance de Erico Verissimo.

Palavras-chave: Romance Polifônico. Bakhtin. Dostoievski. Erico Verissimo.

Abstract: The aim of this paper is to work with the concept of polyphony proposed by Mikhail Bakhtin in Problems of Dostoevsky's poetics and how this concept can be applied to the third part of the novel The weather and wind, by Erico Verissimo, titled Archipelago. Bakhtin uses the concept of polyphony to highlight a contrast between the novel mono, also known as traditional, a peculiar form of romance, in which each character serves as an independent being who cultivates his own vision of the world and that is not enslaved to the worldview of the author himself. For the Russian theorist, the writer had as a reference when dealing with polyphonic novel the author Fyodor Dostoyevsky (1821-1881), which was the only one who could reach the magnitude of the meaning of the term. The concept of polyphony is often confused with other terms of linguistics, for example, dialogism, so caution is needed in the definition of a novel as being polyphonic.Thus, the present investigation searches for evidence to prove traces of Bakhtin’s poliphony in the great novel by Erico Verissimo.

Keywords: Polyphonic Novel. Bakhtin. Dostoyevsky. Erico Verissimo.

i Doutorando pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil. E-mail: [email protected].

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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Introdução

Trabalhar com o conceito bakhtiniano de polifonia não é uma tarefa fácil.

O próprio Bakhtin afirma que qualquer deslize na análise do romance

polifônico pode deitar por terra toda a teoria. Em Problemas da Poética de

Dostoievski, ao expor sobre os teóricos da obra de Dostoievski, Bakhtin analisa

detalhes que ofuscam o caráter polifônico de seus romances, acabando por

monologizá-los, enquadrá-los nos moldes do romance tradicional. A literatura

crítica, segundo ele, “tentando analisar teoricamente esse novo mundo

polifônico, não encontrou outra saída senão fazer desse mundo um monólogo

do tipo comum” (BAKHTIN, 2002, p. 7).

Desse modo, na análise de O Arquipélago, terceira parte da trilogia O

tempo e o vento, de Erico Verissimo, propomos um resgate do conceito de

polifonia, nos moldes bakhtinianos, evidenciando as vozes discursivas

presentes no romance e demonstrando o grau de independência que elas

exercem na tessitura do enredo.

Dividimos o artigo da seguinte forma: com a revisão teórica, captamos o

sentido do termo ‘polifonia’ em Bakhtin, sua origem, aplicação e

desdobramentos na obra de Dostoievski e em contraposição ao romance

tradicional. Na sequência, destacamos as vozes ideológicas dos personagens

do romance de Verissimo; por fim, analisamos a independência desses

discursos, marcados pelos seus entrechoques com o discurso de Floriano,

espécie de alter-ego do narrador do romance e do próprio Erico Verissimo.

1 O Conceito de Romance Polifônico em Bakhtin

Polifonia é um conceito emprestado por Bakhtin da teoria musical, para

a qual o termo define uma técnica compositiva que objetiva produzir uma

textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se desenvolvem

preservando um caráter rítmico e melódico independentes. É o contrário da

monofonia, onde há a predominância de uma voz e, caso existam outras

vozes, essas seguem a principal em uníssono. Segundo o escritor Cristóvão

Tezza (2002, p. 90) “o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas

melódicas independentes, mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin

emprega-o ao analisar a obra de Dostoievski, considerada por ele como um

novo gênero romanesco – o romance polifônico”.

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Dostoievski é a figura central da construção da teoria polifônica

bakhtiniana. Para Bakhtin, o escritor russo conseguiu dar vida a um herói

peculiar, cuja voz é estruturada de maneira independente, não está submetida

à voz do autor, mas caminha paralelamente a essa. Para Bakhtin (2002, p. 4),

“Dostoievski não cria escravos mudos, mas pessoas livres, capazes de colocar-

se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele”.

Não se trata de atividade fácil a compreensão do conceito de polifonia

proposto por Bakhtin, já que a construção do romance tradicional pressupõe a

adesão de alguma ideologia por parte do escritor. Nesse tipo de romance, por

mais que o herói carregue consigo um determinado discurso, esse estará

sempre em consonância com a ideologia do autor.

Como na teoria musical, mesmo que existam várias vozes, cada uma

carregando consigo o seu próprio discurso, isso não quer dizer

necessariamente que essa obra seja caracterizada como sendo polifônica. Na

maioria dos casos, os vários discursos presentes no texto servem para

destacar a voz principal, no caso, do autor.

Portanto o primeiro passo na identificação de um romance polifônico é a

busca pelo discurso predominante. Caso as vozes presentes no texto

funcionem como um mecanismo para afirmar ou negar um discurso

dominante, esse texto se encaixa no modo monofônico de escrita, mesmo

que mantenha diálogo com outros textos. A própria existência de um discurso

dominante elimina a possibilidade de polifonia do texto.

O romance polifônico é caracterizado exatamente pela ausência desse

discurso predominante, dessa ideologia para a qual todas as outras vozes

confluem. Nele, não é a multiplicidade de caracteres e destinos que se

desenvolvem à luz da consciência do autor, mas a multiplicidade de

consciências equipolentes, pois participam do diálogo com as outras em pé de

igualdade.

Assim, “a consciência do herói é dada como a outra, a consciência do

outro, mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna

mero objeto da consciência do autor” (BAKHTIN, 2002, p. 5). Eis o grande

traço que diferencia o romance monofônico do polifônico. Enquanto no

primeiro a imagem do herói é objetificada, servindo aos interesses ideológicos

de seu criador, no segundo a palavra desse herói soa ao lado da do autor e dos

outros personagens, formando um universo de vozes plenivalentes.

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Em sua teoria, Bakhtin dedica uma atenção muito grande à

caracterização da personagem do romance polifônico. No segundo capítulo

de Problemas da Poética de Dostoievski, o teórico estuda o papel das

personagens dostoievskianas, destacando o interesse que o romancista russo

dedica na construção de cada personagem. Para ele,

A personagem interessa a Dostoievski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesmo, enquanto posição racional valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante. Para Dostoievski não importa o que a sua personagem é no mundo, mas acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma (BAKHTIN, 2002, p. 47).

Com essa concepção bakhtiniana, percebemos uma visão de

personagem completamente nova onde o que está em evidência não é a pura

representação de um ser determinado, mas de uma consciência independente

à qual cabe a última palavra sobre si mesma e sobre o mundo circundante.

Tirando de si a função de dar a última palavra, o escritor também se

ausenta da responsabilidade de definir a personagem, enquadrando-a a um

dado discurso, permitindo a ela definir-se a si própria através de seu modo de

ver a realidade que a cerca. É interessante notar que essa característica não se

encontra somente no herói do romance, mas é dada a todas as personagens

da obra. São discursos que se entrecruzam, se chocam, mas não se submetem.

Com isso, podemos perceber que a teoria polifônica de Bakhtin é

antidialética. Termo técnico muito usado por Hegel, Marx e seus seguidores; a

dialética marca a ideia de que toda afirmação provoca uma oposição e ambas

se reconciliam em uma síntese. Embora, na história da filosofia, esse termo

não tenha sido empregado com significado unívoco, pode-se afirmar que se

trata de “um processo em que há um adversário a ser combatido, uma tese a

ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em

conflito” (ABAGNANO, 2010, p. 269). O processo resultante do conflito é a

síntese. A dialética é monofônica por natureza, pois, de acordo com Hegel e

Marx, enquadra opiniões contrárias a um denominador-comum, por isso,

também é matéria-prima do romance tradicional. Sendo assim, toda situação

dialética é contrária ao romance polifônico.

Outra característica importante da personagem polifônica proposta por

Bakhtin é a questão do limite. No romance tradicional, por mais que se

destaque a posição ideológica do herói, sua voz é sempre marcada por um

limite, onde seu discurso se mistura com o do autor e, dessa forma, torna-se

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apenas uma tese de um processo dialético, sendo a síntese o discurso

implícito do próprio autor.

No romance polifônico, o limite imposto pelo narrador ou autor não é

totalmente respeitado. Em Crime e Castigo, Dostoievski impõe ao personagem

Raskólnikov uma situação limite e o próprio personagem tem o poder de

escolha entre igualar-se aos outros homens ou ultrapassar o limite imposto,

tendo que suportar as consequências de tal ato. “A personagem central [está]

às vésperas de uma mudança radical, capaz de mudar seu caráter ou destruí-

lo. Daí o limite. Mas o homem considera quem lhe impôs o limite e o

ultrapassa” (BEZERRA, 2006, p. 4).

Assim, a liberdade do herói é dada pelo autor e criada no plano artístico

para desenvolver até o fim a sua própria autonomia. A consciência do autor

está presente na obra, mas não de forma a ofuscar a consciência da

personagem. As opiniões do herói são sempre colocadas em debate com as

opiniões das outras personagens plenivalentes na obra e também com as do

autor. Ressalte-se sempre que essa interpenetração dialógica é, no romance

polifônico, inacabada devido à ausência de uma síntese dos discursos

expostos pelas vozes dos personagens.

No terceiro capítulo de Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin

lança um olhar sobre a importância da ideia no romance polifônico. Para o

teórico, Dostoievski é considerado o romancista polifônico por excelência

porque consegue expressar a ideia do outro, conservando-lhe toda autonomia

e mantendo o narrador estrategicamente distante, que nem afirma nem funde

essa ideia com sua própria ideologia representada.

Para Bakhtin (2002, p. 73):

Dostoievski conseguiu ver, descobrir e mostrar o verdadeiro campo da vida e da idéia. A idéia não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as idéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, e gerar novas idéias.

Partindo do princípio da autonomia da ideia em Bakhtin, percebe-se que

o narrador, no romance polifônico, não possui a condição de sintetizador,

como no romance tradicional.

O discurso do narrador é tão individualizado, tão ‘colorido’ e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens. A posição do

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narrador é fluida, e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra (BAKHTIN, 1986, p. 151).

O narrador se coloca na obra como um regente de um grande coral, mas

ao invés de submeter essas vozes a uma dominante, ele credita total

autonomia a elas e, com isso, constrói a relação recíproca entre a verdade do

eu e a verdade do outro. A verdade do narrador ou do autor não é uma

verdade que se impõe, mas que dialoga com a verdade das outras

personagens. Devido a essa peculiaridade, podemos afirmar que o romance

polifônico é essencialmente dialógico.

Para Bernardi (2001, p. 44-45), “todas as vozes que se fazem ouvir no

discurso romanesco são respeitadas enquanto vozes sociais e históricas,

portadoras de posturas ideológicas que não coincidem com as do autor, mas

são orquestradas por ele”.

É importante notar que, em Bakhtin, polifonia e dialogismo não são

sinônimos. Enquanto o dialogismo é caracterizado como o princípio dialógico

constitutivo da linguagem, a polifonia se caracteriza pelas vozes polêmicas do

discurso.

Para Bakhtin, a essência da linguagem não está em constituições

abstratas ou enunciações monológicas isoladas. Ao contrário, a linguagem só

é eficaz por causa “do fenômeno social da interação verbal, realizada através

da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a

realidade fundamental da língua” (BAKHTIN, 1986 p. 127). Portanto

entendendo dialogismo como interação verbal, podemos afirmar que, em

Bakhtin, ele é o elemento constitutivo da linguagem.

Partindo desse princípio definidor do dialogismo, percebe-se que ele não

pode ser de modo algum confundido com a polifonia. Assim:

Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir (BARROS, 1994, p. 6).

Sendo assim, conclui-se que há gêneros dialógicos monofônicos, em

casos onde uma voz domina todas as outras, e gêneros dialógicos polifônicos

marcados pela existência das chamadas vozes polêmicas ou plenivalentes.

Ao destacar o caráter dialógico nos estudos sobre a linguagem, Bakhtin

ressalta a importância do contraponto no romance polifônico. Ao citar M. I.

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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Glinka, Grossman (1987, p. 32) destaca em sua obra o fato de que “tudo na

vida é contraponto, isto é, contraposição”. Aprofundando essa afirmação,

Bakhtin resgata o fato de que, em Dostoievski, tudo é diálogo ou

contraposição dialógica.

Contraponto significa vozes diferentes contando diversamente o mesmo

tema. Eis, para Bakhtin, aquilo que constitui precisamente a polifonia, que

busca desvendar as complexidades existentes nos sofrimentos humanos ou,

como ele mesmo afirma, o multifacetado da existência.

É importante descrever o papel do contraponto na teoria bakhtiniana

pelo fato de que, em parte de seus romances, Erico Verissimo, autor

selecionado para esta investigação, utiliza-se da contraposição dialógica na

composição dos personagens. Em O tempo e o vento, como veremos a seguir,

esse contraponto está bem destacado, assim como a autonomia das diversas

vozes ao redor de um mesmo tema, a saber, a situação política brasileira no

período getulista.

Bakhtin, com o romance polifônico, provocou, na teoria literária, um

rompimento drástico com o todo definitivo do mundo monológico.

Deslocando a atenção da consciência do autor como a última palavra do

romance para a importância das vozes presentes no texto, ele captou o fato

de que, em Dostoievski, esse todo definitivo passa a ser apenas uma parte do

todo. Aquilo que, no romance tradicional determinava toda a realidade, agora

funciona apenas como um aspecto dessa mesma realidade, um entre os vários

pontos de vista sobre o mundo.

Adentrar no sentido do romance polifônico não é uma tarefa fácil. O

próprio Bakhtin tinha consciência disso. No final do primeiro capítulo da obra

Problemas da Poética de Dostoievski, ele escreve: “parece que todo aquele que

penetra no labirinto do romance polifônico não consegue encontrar a saída e,

obstaculizado por vozes particulares, não percebe o todo” (BAKHTIN, 2002, p.

45).

Para ele, o erro fundamental está na tentativa de captar no romance

polifônico uma voz em destaque, uma unidade ideológica. O sentido de

unidade dentro do romance polifônico sempre permanecerá oculto e cada voz

presente no texto não passa de uma visão da realidade, uma parte do grande

todo que constitui as relações sociais.

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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2 Aspectos polifônicos em O tempo e o vento

Mikail Bakhtin, ao traçar uma diferença entre polifonia e monofonia,

em sua obra Problemas da poética de Dostoievski destaca a figura de

Dostoievski como o único autor capaz de desenvolver o romance polifônico.

Segundo ele:

Todos os elementos da estrutura do romance são profundamente singulares em Dostoievski; todos são determinados pela tarefa que só ele soube colocar e resolver em toda a sua amplitude e profundidade: a tarefa de construir um mundo polifônico e destruir as formas já constituídas do romance europeu, principalmente do romance monológico (homofônico). (BAKHTIN, 2002, p. 5-6).

O romance Crime e Castigo, considerado por Bakhtin como a maior

expressão do romance polifônico, teve sua primeira publicação no ano de

1866. Aproximadamente um século depois, Erico Verissimo publicava a

terceira parte da trilogia O tempo e o vento, intitulada O arquipélago. É sobre

essa obra que, a partir de agora, inclinamos nossa investigação com o intuito

de, seguindo os passos de Bakhtin, encontrar (ou ao menos procurar) traços

de polifonia no romance brasileiro.

O arquipélago abrange mais de vinte anos de história gaúcha. Tendo

como destaque os conflitos pela manutenção do poder local à queda

definitiva da Ditadura Vargas, o romance se apresenta como uma mescla de

conflitos individuais, com uma visão panorâmica das lutas e transformações

político-sociais brasileiras.

Na figura de Rodrigo Cambará e de seu filho Floriano, temos o exemplo

de posturas pessoais divergentes frente à irreversibilidade do tempo. Segue-

se a eles um vasto número de personagens que carregam consigo sua visão de

mundo frente às profundas modificações históricas que se apresentam.

Desde o início, percebemos no romance a presença do narrador

onisciente, que mergulha na mente das personagens trazendo à tona seus

medos e anseios. Entretanto, peso maior do que a figura do narrador é dado a

Floriano, já que os fatos narrados remontam a memória do personagem, o

resgate de seu passado e de sua própria identidade. As afirmações do

narrador, em grande parte, seguem o fluxo de consciência do próprio

Floriano.

A importância que se dá a Floriano como romancista disposto a escrever

a história de sua família seria um forte indício de que esse romance se encaixa

totalmente nos moldes do romance monofônico ou tradicional, pois tal fato

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poderia levar o leitor a vê-lo como a ideologia dominante presente na obra. No

entanto, a caracterização da personagem aponta para uma nova

interpretação do romance. Ele é apresentado como uma figura indecisa,

hesitante, incapaz de tomar certas atitudes por medo das consequências.

Logo no início do romance aparece essa sua característica, quando ele recebe

a notícia do infarto de seu pai: “Floriano, entretanto, permanece no vestíbulo,

hesitante. Sempre detestou as situações dramáticas e mórbidas da vida real,

embora sinta por elas um estanho fascínio, quando projetadas no plano da

arte” (VERISSIMO, 1987, p. 3).

Temos em Floriano a primeira voz do romance, marcada pelo discurso

idealista-reflexivo. Objetivando fazer um romance sobre a saga da família

Terra Cambará, ele analisa as ações e ideologias dos outros personagens,

como uma espécie de pensador da alma humana. Porém, em nenhum

momento, Verissimo destaca esse discurso como o predominante na obra. O

caráter hesitante e, às vezes, contraditório de Floriano demonstra exatamente

o contrário, pois ressalta a incerteza de suas próprias reflexões. É importante

notar que sempre que o personagem reflete sobre os pontos de vista dos

outros personagens, ele está em diálogo com algum deles e, muitas vezes,

suas opiniões são refutadas, fato que destaca as vozes plenivalentes dos

personagens no romance.

Para demonstrar a presença de elementos polifônicos na obra é

necessário que, num primeiro momento, se descubra quais são as vozes

presentes nela. Devido à vastidão do romance, selecionamos algumas

personagens que participam do capítulo intitulado Reunião de Família, dividido

em seis partes, com o objetivo de destacar a ideologia que eles defendem e

que importância é dada a ela no todo do romance.

Doutor Rodrigo Cambará – Representa a voz da direita na obra.

Getulista declarado, acredita na estabilização da situação política brasileira

mediante a volta de Getúlio Vargas à presidência. Essa retomada da situação

política, para Rodrigo, significa o retorno a uma vida de facilidades do tempo

em que ele era deputado. A personalidade do doutor Rodrigo dessa terceira

parte da trilogia nos é transmitida por Floriano, quando ele afirma: “O

presidente Vargas caiu e o Dr. Rodrigo Cambará está sem saber que rumo

tomar. Seu mundo de facilidades, prazeres, honrarias e prestígios de repente

se desfez em pedaços” (VERISSIMO, 1987, p. 18). À medida que o leitor é

levado a imaginar como definitiva essa opinião de Floriano sobre o pai, ele

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acrescenta: “não estou acusando nem julgando o Velho. Quem sou eu? Estou

tentando me meter na pele dele, imaginar com simpatia humana o que ele

está pensando, sentindo, sofrendo...” (VERISSIMO, 1987, p. 19). Percebe-se,

nesse trecho, a consciência do personagem dada como a consciência do

outro. O que vemos aqui não é a imagem objetificada do herói do romance

tradicional.

Eduardo Quadros Cambará, Filho de Rodrigo, representa o discurso

comunista, como se pode notar no trecho que segue:

Na sua fúria de ‘cristão novo’ o rapaz, que vê tudo pelo prisma marxista, está procurando mostrar a seus companheiros de partido que não é por ser filho dum latifundiário e figurão do Estado Novo que ele vai deixar de ser um bom comunista. (VERISSIMO, 1987, p. 16).

Está sempre batendo de frente com Rodrigo e suas atitudes dentro da

obra, ora são vistas como um ataque de rebeldia, ora como coerente luta pela

manutenção de seus próprios ideais sociopolíticos. Através da figura de

Eduardo, a ideologia comunista é focalizada não pelo prisma positivo ou

negativo, mas apenas como uma visão de mundo. Como em Bakhtin, esse

discurso torna-se, no romance, uma parte do todo, assim como o discurso do

próprio autor.

Jango Cambará – Filho de Rodrigo, Jango representa a figura do

territorialista, do estancieiro apegado às tradições gaúchas:

Um homem do campo, digamos: um gaúcho ortodoxo. Se o Eduardo deseja com paixão de templário a reforma agrária, Jango com a mesma paixão quer não só conservar o Angico como também aumentar a estância, adquirindo mais terra, mais gado... (VERISSIMO, 1987, p.16).

Vemos nesse trecho duas vozes que se confrontam: a do estancieiro e a

do comunista. São discursos plenivalentes, pois, em nenhum momento, é

tomada posição frente a qualquer um desses discursos. Convém notar que

Jango é casado com Sílvia, por quem Floriano nutre um amor não

concretizado por sua incapacidade de declarar-se para ela e que, por isso, a

entrega a uma vida infeliz ao lado do irmão. Mesmo esse fato não o leva a

posicionar-se contra Jango dentro do romance.

Irmão Zeca – Sobrinho de Rodrigo, esse personagem representa o

discurso religioso dentro do romance. Frade da congregação marista, Zeca

vive em constante conflito ideológico com o primo Eduardo devido as suas

convicções religiosas e a postura da Igreja Católica frente ao comunismo.

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Roque Bandeira, ao falar sobre a relação dos primos, traça a seguinte

comparação: “sempre que vejo esses dois juntos imagino um diálogo

impossível entre um anjo do Inferno e um anjo do Céu” (VERISSIMO, 1987, p.

211). Novamente percebe-se a demarcação de dois discursos plenivalentes do

romance. São duas vozes que possuem independência marcada pela

impossibilidade da relação dialógica, pois permanecem nos limites de

consciências isoladas e não conduzem a uma unidade ideológica. Convém

destacar que as palavras “céu” e “inferno” não adquirem aqui conotação de

positivo ou negativo, mas assumem uma função de oposição discursiva. Vê-se,

dessa forma, traços latentes da teoria polifônica proposta por Bakhtin.

Roque Bandeira – Grande amigo da gente do Sobrado, essa personagem

é muito admirada por Floriano. Visto em Santa Fé como um ser de vida boêmia

e excêntrica, “três coisas o tornam notável aos olhos da população: sua

fealdade, sua grande erudição e seu completo desprezo pela opinião pública”

(VERISSIMO, 1987, p. 46). Vemos em Roque, também conhecido como Tio

Bicho devido à sua postura baixa e mal proporcionada, a figura do intelectual,

que emite opiniões cínicas sobre a vida dos homens e, por causa do humor

sarcástico, espanta e fascina ao mesmo tempo. Outra característica sua é o

fato de estar “sempre aberto às idéias novas e disposto a reexaminar as

antigas” (VERISSIMO, 1987, p. 48). Apesar da grande amizade entre Floriano e

Roque, eles nem sempre têm uma posição ideológica semelhante. Floriano, ao

pedir uma apreciação do amigo sobre seu romance, recebe a seguinte crítica:

O que me desagrada nos teus romances é... vamos dizer... a posição de turista que assumes. Entendes? O homem que ao visitar um país se interessa apenas pelos pontos pitorescos, evitando tudo quanto pode significar dificuldades... não metes a mão no barro da vida (VERISSIMO, 1987, p. 54).

A condição de turista dada a Floriano deixa transparecer o seu discurso

como não dominante e a independência ideológica de Roque, dentro do

texto, é aqui percebida como sendo mais alguns traços do romance

polifônico.

Terêncio Prates – Sociólogo formado na França e estancieiro, essa

personagem defende dentro da obra a conservação das tradições do Rio

Grande do Sul. Apaixonado pela sua posição ideológica, posiciona-se contra a

reforma agrária, classificando-a como romântica e insensata e a favor da

tradição para evitar o desmantelamento da ordem social. Segundo ele,

“nenhum povo que se preze pode jogar fora um passado histórico e glorioso

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como o nosso, só para agradar a Joseph Stalin e seus lacaios no mundo

inteiro” (VERISSIMO, 1987, p. 856). Possui uma opinião contrária a Roque,

Eduardo e Floriano que, mesmo sendo também estancieiros, defendem a

reforma agrária e atacam a função ‘paternalista’ dos grandes proprietários de

terra em relação aos pequenos.

Como podemos notar, cada personagem possui seu próprio discurso e o

defende de maneira apaixonada. Essas vozes são confrontadas no romance

todas às vezes em que se reúnem no quarto de Rodrigo (vítima de um

enfarte) para discutir a situação política contemporânea. Como na polifonia

musical, são vozes que se confrontam, mas não se submetem, pois ninguém

abre mão de seus pontos de vista, formando discursos plenivalentes,

independentes uns em relação aos outros.

Um trecho em que fica muito latente os aspectos polifônicos no

romance é um diálogo em que Floriano, tomando a palavra, analisa a situação

das vozes discursivas presentes naquela reunião noturna no quarto de

Rodrigo. A discussão começa com a seguinte afirmação da personagem:

Cada homem é uma ilha com seu clima, sua fauna, sua flora e sua história particulares [...] e a comunicação entre as ilhas é das mais precárias, por mais que as aparências sugiram o contrário. São pontes que o vento leva, às vezes apenas sinais semafóricos, mensagens truncadas escritas num código cuja chave ninguém possui (VERISSIMO, 1987, p. 219).

Presume-se que Erico Verissimo, ao intitular essa terceira parte de seu

romance como O arquipélago, já imaginava essas ‘ilhas discursivas’ formadas

pelas relações humanas. Cada voz dentro do romance faz parte de um mundo

fechado, uma ilha isolada das outras partes.

Partindo da afirmação acima, Floriano busca estabelecer uma

comunicação entre essas várias ‘ilhas’ que se encontram no quarto de seu pai.

Para ele, “essas ilhas do arquipélago humano sentem dum modo ou de outro

a nostalgia do Continente, ao qual desejam se unirem” (VERISSIMO, 1987, p.

219). No entanto, ele mesmo tem consciência de que a união dessas vozes a

uma dominante não é possível, pois as outras vozes do romance, em seus

entrechoques e embates, ganharam vida própria, fugiram às rédeas do

romancista e transformaram-se em consciências imiscíveis. Unindo esse fato à

visão bakhtiniana de romance polifônico, pode-se afirmar que cada

personagem é “interpretado como autor de sua concepção filosófica própria e

plena e não como objeto de visão final do autor” (BAKHTIN, 2002, p. 3).

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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O valor das palavras das personagens desfaz o plano monológico e tira

delas a condição de objetos para se tornarem veículos do próprio discurso.

Verissimo, em seu romance, afirma o eu do outro, transformando-o em

sujeito. Essa peculiaridade outrora vista por Bakhtin somente na cosmovisão

dostoievskiana a encontramos também em O arquipélago.

Durante o processo de leitura, percebe-se que O tempo e o vento é

essencialmente marcado pelas vozes independentes. Separamos um diálogo

entre Floriano, Eduardo e Rodrigo que melhor destaca essa peculiaridade

polifônica:

– Estou chegando à conclusão de que um dos principais objetivos do romancista é o de criar, na medida de suas possibilidades, meios de comunicação entre as ilhas do seu arquipélago... construir pontes... inventar uma linguagem. Tudo isso sem esquecer que é um artista, e não um propagandista político, um profeta religioso ou um mero amanuense...

Eduardo solta uma risada sarcástica de mau ator:

– Ah! E tu achas que estás realizando seu objetivo?

– Absolutamente não acho.

– Não te parece que teu projeto é um tanto pretensioso? [...]

Rodrigo faz um gesto de impaciência:

– Tudo isso é muito vago, muito livresco, Floriano (VERISSIMO, 1987, p. 220).

Segundo Bakhtin (2002), o que torna o romance de Dostoievski

polifônico é o fato de que ele desfaz o plano monológico, coloca as vozes dos

personagens lado a lado com a sua e cria a multiplicidade de consciências

equipolentes. No trecho acima, nota-se a presença dessas três características.

Floriano, alter-ego do narrador e do próprio Verissimo emite uma

opinião sobre as vozes ou ‘ilhas’ presentes na obra e, em consequência, qual é

a sua função como romancista frente a essas vozes. Se o trecho terminasse

em seu comentário, teríamos um discurso no plano monológico, pois a

ideologia do autor se situaria na esfera dominante do texto.

A presença dos outros dois personagens desfaz esse plano monológico

no romance. Eduardo e Rodrigo não se objetificam ao discurso de Floriano, ao

contrário, confrontam suas ideias mostrando a ele o quanto sua afirmação é

frágil. A independência de opiniões coloca as vozes das personagens em

situação paralela com as do próprio autor/personagem, pois esses não se

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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curvam ao seu discurso, mas, ao contrário, confrontam suas ideias. E assim, os

traços polifônicos bakhtinianos ganham contornos cada vez mais nítidos na

obra de Erico Verissimo.

Assim como em Dostoievski, O arquipélago explora o fato de que cada

ideia, cada discurso carrega sempre consigo “uma réplica de um diálogo não-

acabado. Essa ideia não tende para o todo sistêmico-monológico completo e

acabado. Vive em tensão com a ideia de outros, com a consciência de outros”

(BAKHTIN, 2002, p. 32-33).

Erico Veríssimo, dessa forma, não permite, em seu romance, a diluição

de várias consciências numa consciência superior. Adentrar o mundo de sua

obra é o mesmo que penetrar no labirinto de vozes do romance polifônico

construído por Dostoievski e teorizado por Bakhtin.

Considerações Finais

O estilo literário de Erico Verissimo é fortemente marcado pelo

contraponto, pois, ele leva em consideração, na tessitura de seus enredos, a

multiplicidade dos pontos de vista. Em grande parte de suas obras, ele

permite ao leitor seguir o fluxo de consciência dos personagens, de modo a

revelar as várias visões sobre um determinado fato social ou dado do

cotidiano. É o caso dos romances Caminhos Cruzados e O resto é silêncio.

Percebe-se, dessa forma, que ele utiliza-se da técnica do contraponto para dar

ao seu romance O tempo e o vento um caráter polifônico como o proposto por

Bakhtin.

Na polifonia de Verissimo, visualiza-se a lenta passagem de um mundo

de valores centralizados e acabados, cuja expressão máxima estaria na

epopéia clássica, para um mundo descentralizado de linguagens, o universo

perpetuamente inacabado da vida cotidiana, muito retratada no modernismo.

Realizar a literatura de contraponto, em verdade, não significa,

necessariamente, que o romance possui características polifônicas, pois, entre

os múltiplos pontos de vista sobre um determinado fato pode ser que um

torne-se dominante no enredo, subjugando os outros. Na polifonia, esse

discurso dominante não existe, pois a ausência de objetificação dos

personagens não permite que isso aconteça.

Em O arquipélago, Verissimo trabalha de forma magistral com esses dois

conceitos da crítica literária. Utilizando-se do contraponto, onde vários

OLIVEIRA, Marcio da Silva. Traços da polifonia bakhtiniana no romance brasileiro: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 122-136, dez.2013.

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personagens refletem sobre a situação político-social do período da queda de

Getúlio Vargas, cada um carregando sua posição ideológica, ele constrói um

romance polifônico, onde essas várias vozes caminham em paralelo no

desenrolar da narrativa. São consciências independentes que dão ao leitor a

possibilidade de aderir à ideologia que mais lhe interessa.

Portanto percebendo que os personagens de Verissimo agem com

consciências independentes, igualdade dialógica com os outros personagens e

com o próprio autor e, principalmente, ultrapassam o limite atribuído aos

heróis do romance tradicional, conclui-se que O arquipélago possui todas as

peculiaridades presentes no romance polifônico teorizado por Bakhtin.

REFERÊNCIAS

ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: ______; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. BERNARDI, Rosse-Marye. Uma leitura bakhtiniana de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubens Fonseca. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001. BEZERRA, Paulo. A perenidade em Dostoiévski. Cult – Biografia e crítica – Fiódor Dostoievski: o profeta da literatura russa. São Paulo: Editora Bregantini, n. 4, p. 6-13, 2006. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2003. GROSSMAN, Leonid. Dostoievski Artista. Trad. Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. TEZZA, Cristóvão. Polifonia e ética. Revista Cult, n. 59, ano VI, jul. 2002. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. São Paulo: Globo, 1987.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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MEMÓRIA, DES-MEMÓRIA, A-MEMÓRIA:

QUANDO O DISCURSO VOLTA-SE PARA SEU PASSADO

Marie-Anne Paveaui

Resumo: Este artigo é uma síntese de ordem histórica e epistemológica do destino científico da noção de memória discursiva. Proposto por Courtine em 1981 no contexto da Análise do Discurso dita francesa iniciada por Pêcheux, o conceito de memória discursiva conheceu a partir de então reformulações e prolongamentos conceituais. Transformada em “memória interdiscursiva” no início dos anos 2000 (MOIRAND), tal noção foi em seguida retrabalhada no campo da cognição distribuída sob a forma de “linhagens discursivas” (PAVEAU). Sua articulação com o esquecimento e as negações da história conduziram igualmente as noções de “des-memória” e de “a-memória discursiva” (ROBIN, PAVEAU).

Palavras-chave: Linhagens discursivas. Memória discursiva. Pós-memória. Pré-discurso.

Abstract: This paper is an historical and epistemological synthesis about the scientific fate of the concept of discursive memory. Formed by Courtine in 1981 in the context of the so-called french discourse analysis by Pêcheux, the concept of memory has received since then some reformulations and conceptual extensions. It has become “interdiscursive memory” in the early 2000s (MOIRAND), and was then reworked in the context of distributed cognition in the form of “discursive lineage” (PAVEAU). Its articulation with oblivion and denials of history also led to the concepts of “dememory” and “discursive amemory” (ROBIN, PAVEAU).

Keywords: Discursive lineage. Discursive memory. Postmemory. Prediscourse.

i Docente da Université Paris XIII Sorbonne Paris Cité, França. E-mail: [email protected].

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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Introdução

A memória é uma das questões mais interessantes em Análise do

Discurso, bastante trabalhada e retrabalhada na França e no Brasil desde os

anos 1980 a partir da invenção de Courtine: a noção de “memória discursiva”,

apresentada na tese que ele escreveu sob a orientação de Pêcheux e

publicada em um número da Langages que se tornou clássico (COURTINE,

1981).

A relação entre discurso e memória me fascinou também quando me

debrucei sobre essas obras para escrever Os pré-discursos, especificamente o

capítulo 3 “A memória no discurso” (PAVEAU, 2013 [2006]), e que retrabalhei,

recentemente, no capítulo 6 “Mémoire et vertu” de Langage et Morale

(PAVEAU, 2013): como as palavras, os significados, os discursos são

transmitidos? Como os pré-discursos, ou seja, os quadros prévios

organizadores de nossos próprios discursos, nossos quadros interpretativos,

que fazem com que nos compreendamos até certo ponto, são transmitidos?

Como os locutores herdam este tipo de estoque semântico, discursivo e

pragmático, graças aos quais exercem a principal atividade humana: falar?

São essas as questões que eu desejo retomar e aprofundar neste artigo:

após alguns detalhamentos de ordem metodológica sobre o uso em

Linguística de um conceito que, originalmente, não lhe pertence, farei um

breve percurso sobre a história da noção de memória discursiva; em seguida,

mostrarei como a noção pode ser retrabalhada na perspectiva da cognição

social sob a forma de “pré-discurso” e “linhagens discursivas” e; enfim,

concluirei propondo duas noções complementares que me parecem úteis para

explicar o processo complexo de transmissão dos discursos: a des-memória

discursiva e a a-memória discursiva.

1 A memória no discurso, uma noção complexa

Que a memória discursiva venha a fazer parte, daqui em diante, do que

se denominou "caixa de ferramentas" da Análise do Discurso, não tem, de

fato, nada de evidente: a priori, não se trata de uma noção das Ciências da

Linguagem, sendo encarada sob traços precisos e complexos.

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1.1 Uma intenção da História e da Filosofia

A Análise do Discurso nasceu pluridisciplinar a partir da Linguística, da

Filosofia, da História e da Psicanálise. Ideologia, acontecimento, memória,

doxa, uma gama de conceitos que não são oriundos do corpus específico das

Ciências da Linguagem, como podem sê-los a predicação, a dêixis ou

antonímia. Isso quer dizer que as noções importadas devem ser pensadas e

trabalhadas de maneira a serem integradas no dispositivo teórico ou

metodológico da Análise do Discurso. Tais noções devem ser operatórias

sobre os materiais discursivos, e não simplesmente postas sobre eles, as quais

devem possuir um coeficiente explicativo forte, e não um simples valor

descritivo. É, no fundo, a questão da interdisciplinaridade que se coloca no

trabalho muito concreto e material da utilização das ferramentas e de

procedimentos de análise de um domínio do conhecimento para outro.

1.2 Os dois conceitos de memória discursiva

Duas correntes utilizam o termo e a noção de memória discursiva, em

perspectivas distintas, o que é uma fonte de mal-entendidos. Mencionei a

acepção de Courtine no início dos anos 1980, que é corrente em Análise do

Discurso, na tradição dita “francesa”, ou seja, oriunda do trabalho de Pêcheux

e de seus colaboradores a partir de meados dos anos 1960 e voltada para a

questão das “condições sócio-históricas de produção” dos discursos. Todavia,

quase na mesma época, numa perspectiva que privilegia o desenvolvimento

sintagmático das frases e dos textos em detrimento de seus contextos de

produção, Berrendonner propõe também a noção de “memória discursiva”

como aquilo que assegura, segundo ele, a coerência do discurso, isto é, sua

interpretabilidade pelo receptor (a anáfora sendo uma das ferramentas

privilegiadas desta coerência). A noção é proposta pela primeira vez em um

artigo de 1983, depois é retomada e expandida nos trabalhos de Genevois

sobre a conversação oral, definida como um conjunto de “conhecimentos

válidos para os interlocutores e públicos entre eles” (BERRENDONNER, 1993,

p. 48). Essa memória evolui no curso da troca conversacional e deve conservar

sua validade para que a interação seja bem sucedida. Tal noção será definida

de maneira mais ampla no início dos anos 2000 como um conjunto de

representações partilhadas, o que faz surgir, na minha opinião, a noção de

historicidade, ao mesmo tempo do texto e dos discursos sociais.

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1.3 Coletividade e sociabilidade

Os linguistas e psicolinguistas, mas também psicólogos e cognitivistas,

trabalham igualmente com a memória em outras perspectivas, a fim de

compreender como o ser humano registra a realidade e a restitui. É uma

abordagem da memória como capacidade do indivíduo e, em Linguística, isso

concerne, sobretudo, à memória semântica. Antes, essa é uma perspectiva

prioritariamente internalista, que não considera forçosamente as circulações

memoriais externas dos discursos na sociedade. A memória discursiva, aqui

em questão, é oriunda de uma memória coletiva, tal como é descrita por

Halbwachs. Certamente, esta é uma noção instável, como bem salienta

Candau: “Ela é, de fato, tão vaga como todas as retóricas comunitárias, tão

ambígua quanto todas as concepções holísticas da cultura, das

representações, dos comportamentos e das atitudes (dos quais se tem um

excelente exemplo em Sociologia com a noção de opinião pública)”

(CANDAU, 1996, p. 61). Entretanto, os conceitos vagos não são

necessariamente ruins e existe um poder inegável do impreciso nas Ciências

Humanas e Sociais. É necessário, porém, acautelar-se para não apagar o

indivíduo nem tampouco colocar a comunidade abaixo da individualidade e

reduzir a memória coletiva a um reservatório de traços comuns a um grupo

em um determinado contexto. Essa será a tarefa dos analistas do discurso

sobre esta questão: encontrar uma solução conceitual para justificar a

articulação entre o individual e o coletivo.

1.4 Um conceito plural

Seria necessário, antes, falar de memórias no plural: a memória

discursiva é uma função situada, que depende de inúmeros parâmetros, como

a cultura, a idade, o gênero, a posição social, o coeficiente de alfabetização, a

experiência etc. Halbwachs afirma claramente:

Nós diríamos de bom grado que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva; esse ponto de vista muda segundo o lugar que eu ocupo, o qual, por sua vez, muda segundo as relações que mantenho com os outros meios (HALBWACHS, 1997 [1950], p. 94-95).

Muito frequentemente, pensamos que existe uma memória legítima, em

geral aquela dos detentores da cultura legítima. Na realidade, os grupos, as

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gerações e as culturas têm memórias diferentes e todos nós temos a

experiência de um estranhamento diante dessas diferenças. Esses “vieses” da

memória que são nossas situações, na verdade, não o são, pois eles são

constitutivos do que todos nós somos, com nossos conhecimentos

compartilhados que nunca são inteiramente os mesmos nem tampouco são

inteiramente outros. São nossas experiências, em uma só palavra.

1.5 Uma noção heterogênea

A memória supõe o esquecimento, evidentemente, integrando-o em seu

funcionamento, que se dá, por sua vez, de maneira muito heterogênea e

nunca linear. Há memórias transmitidas, memórias inventadas, memórias

substituídas, o que Robin (2001) chama de des-memória, ponto que retornarei

mais adiante, mas igualmente memórias erradicadas, que somente existem

por esta erradicação prévia, memórias traumáticas, as quais recubro com o

conceito de a-memória.

2 A invenção da memória (inter)discursiva

Os conceitos potentes, operatórios e duráveis são verdadeiras invenções

intelectuais, que fazem progredir o pensamento e aperfeiçoar as práticas

científicas. É o caso da memória discursiva, proposta por Courtine, em 1981, na

sua tese sobre “o discurso comunista endereçado aos cristãos”. Tal noção é

ainda fortemente mobilizada, em nossos dias, no contexto francês e também

no brasileiro, e não cessa de motivar a produção de pesquisas profícuas e, por

sua vez, de conceitos inovadores.

2.1 “O comunismo é intrinsecamente perverso” (Pio XI)

Quando se aborda a memória discursiva de Courtine, cita-se,

frequentemente (e eu fui a primeira a fazê-lo), a famosa passagem da página

52 na qual ele define esse conceito a partir dos trabalhos de Foucault e de

Nora, fazendo assim uma forte articulação disciplinar entre História e Análise

do Discurso.

Introduzimos, assim, a noção de memória discursiva na problemática da análise do discurso político. Essa noção nos parece subjacente à análise da FD (Formação Discursiva) que realiza A arqueologia do saber: toda formulação possui em seu “domínio associado” outras formulações, que ela repete, refuta,

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transforma, denega..., isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos; mas toda formulação mantém – igualmente, com formulações com as quais ela coexiste (seu “campo de concomitância” diria Foucault) ou que lhe sucedem (seu “campo de antecipação) – relações narrativas cuja análise inscreve necessariamente a questão da duração e da pluralidade dos tempos históricos no âmago dos problemas que coloca a utilização do conceito de FD. [...]. A introdução da noção de “memória discursiva” em AD nos parece assim ter por desafio a articulação desta disciplina com as formas contemporâneas da pesquisa histórica, as quais insistem no valor a ser atribuído ao longo do tempo (COURTINE, 1981, p. 52).

Efetivamente, trata-se, na Análise do Discurso herdada das teorizações

de Pêcheux, de pensar o “real da língua” em relação ao “real da história” e de

considerar, portanto, “a existência histórica do enunciado” (COURTINE, 1981,

p. 52). Porém, tem-se esquecido a partir do que se chegou a essa definição.

Vejamos o exemplo de uma bandeirola subitamente desfraldada no decorrer

do comício da “mão estendida”, ocorrido em 1976, em Lyon, a qual retoma a

célebre frase de Pio XI:

Lyon, 10 de junho de 1976 [...]. A sala do Palácio dos esportes está lotada. [...] O secretário do Partido [Marchais], em frente à sala, saúda. Os aplausos cessam, tornam-se murmúrios.

O acontecimento discursivo da tarde pode começar. [...] Por volta de cinquenta cristãos integristas cantam de pé. Antes de serem expulsos, eles estendem uma bandeirola lembrando a condenação pronunciada por Pio XI: “o comunismo é intrinsecamente perverso”. A memória irrompe na atualidade do acontecimento (COURTINE, 1981, p. 51).

A invenção de Courtine é em si mesma uma reformulação, logo um

fenômeno de memória discursiva, daquela de Pêcheux, o interdiscurso. O

interdiscurso é, no meu ponto de vista, um dos conceitos mais complexos do

arcabouço teórico apresentado por Pêcheux e, consequentemente, o que

sofreu a mais significativa simplificação. Tal conceito é assim definido por

Maldidier, em 1993, com uma clareza obtida ao preço de uma simplificação:

[...] Mais simplesmente, podemos, apoiando-nos em Michel Pêcheux, defini-lo [o interdiscurso], dizendo que o discurso constitui-se a partir do discursivo já-lá e que “isso fala” sempre “antes, alhures e independentemente”. O conceito introduzido por Pêcheux não se confunde com a intertextualidade de Bakhtin, pois ele trabalha com o espaço ideológico-discursivo no qual se desenvolvem as formações discursivas em função das relações de dominação, subordinação, contradição. Vemos, portanto, a relação que se institui com o pré-construído como ponto de entrada do interdiscurso (MALDIDIER, 1993, p. 113).

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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A primeira elaboração integrava, de fato, determinações inconscientes

apoiadas na análise marxista e o inconsciente freudiano, que são retomados

por Courtine e Marandin:

[...] uma repetição vertical que não é aquela da série de formulações que constituem o enunciado, mas aquilo a partir do que isso repete, um não-sabido, um não-reconhecido deslocado e se deslocando no enunciado: salientamos que é o interdiscurso como determinação externa no interior da FD e da reformulação (COURTINE; MARANDIN, 1981, p. 89).

O que é interessante nessa formulação é o termo vertical, que será

central no estabelecimento e na difusão da noção de memória discursiva,

especificamente a partir de um artigo de Lecomte que apresenta uma primeira

revisão sobre memória interdiscursiva. Vamos passar, com efeito, da noção de

anterioridade utilizada por Courtine (“formulações anteriores”) para uma

espacialização metafórica dos discursos, com base no vertical da memória e

no horizontal da combinação frástica.

2.2 “A luz do sol é ‘branca’” (Einstein)

Em um artigo difundido por Moirand e por ela integrado ao arquivo da

Análise do Discurso, Lecomte apoia-se em uma passagem de A evolução da

Física1, de Einstein e Infield, para aprofundar a noção de memória

(inter)discursiva e, em particular, a articulação dos eixos vertical e horizontal

(LECOMTE, 1981). O artigo se intitula “Como Einstein relata como Newton

explicou a luz (ou: o papel da memória interdiscursiva no processo

explicativo)”2 e traz na epígrafe uma longa passagem na qual os dois físicos

explicam a maneira como Newton resolve o enigma da cor a partir da

natureza “branca” da luz do Sol. Este é um trabalho sobre as formas do texto

explicativo que, segundo Lecomte, “faz referência a um heterogêneo, tendo

sua garantia ao lado de um outro discurso: o da teoria, o dos grandes autores”

(LECOMTE, 1981, p. 70). Aqui, Einstein e Infield baseiam-se “memorialmente”3

em Newton.

1 EINSTEIN, Albert; INFIELD, Leopold. A evolução da Física. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008 [1930].

2 Título original do artigo: Comment Einstein raconte comment Newton expliquait la lumière (ou: Le rôle de la mémoire interdiscursive dans le processus explicatif).

3 N.T.: embora os dicionários de Língua Portuguesa não registrem a forma “memorialmente”, optamos pela tradução do neologismo apresentado pela autora, uma vez que a forma portuguesa dicionarizada “memoravelmente” não recobre o sentido construído no original em francês.

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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Moirand cita, em vários de seus próprios artigos, a passagem em que

Lacomte sintetiza a invenção da Análise do Discurso do início dos anos 1980 e

menciona a famosa verticalidade:

Ordem horizontal, então, que a tradição examina com atenção e que põe em primeiro plano a noção de coerência textual e, correlativamente, a permanência de um sujeito do discurso, que se define na e pela suposta homogeneidade de sua produção discursiva. Ora, as pesquisas contemporâneas (Foucault, de Certeau) enfatizaram o heterogêneo, a existência às vezes contraditória do objeto discursivo (Courtine), os fenômenos de intercalamento, de discurso transverso (Pêcheux), de interdiscurso. Novo eixo, de algum modo, no projeto de contextualização dos processos discursivos: eixo vertical em que vêm interferir os discursos já realizados, os discursos antagônicos ou os discursos próximos, enfim, eixo em que se autoriza a localizar uma memória, compreendendo por isso não a faculdade psicológica de um sujeito falante, mas o que se encontra e permanece fora dos sujeitos, nas palavras que eles empregam (LECOMTE, 1981, p.71).

Vale a pena reler inteiramente esse texto e, em particular, duas outras

passagens. A primeira detalha um pouco as ferramentas de análise dos dois

eixos, horizontal e vertical, que estruturam os discursos:

Far-se-á necessário então distinguir as operações, ou morfismos de diversos tipos: os morfismos de tipo horizontal, pelos quais a sequência estará vinculada com ela mesma [...]; os morfismos de tipo vertical, pelos quais uma sequência é relacionada com uma outra [...] (LECOMTE, 1981, p. 72).

Por sua vez, a segunda passagem formula um fenômeno capital

insuficientemente retomado, em minha opinião, pelos discursivistas, o qual

recobre a maneira como as operações de produção discursiva homogeneízam

os discursos, ou mais especificamente sua superfície:

As operações de formulações são, portanto, também regras de projeção, até mesmo de homogeneização. A questão que se coloca é, de fato, a seguinte: como pode a heterogeneidade de níveis – que ligam entre si os morfismos verticais – ser suprimida e dar lugar à homogeneização de uma superfície discursiva? Falaremos da ação de tais operações – que se efetivam pelos meios exclusivamente linguísticos – sobre os objetos do discurso, sobre seu espaço, como intervenção de fatores de homogeneização. Eles têm por função delimitar os contornos de classes discursivamente estáveis. Afirmação admissível se considerarmos o problema sob o ângulo do reconhecimento (da leitura), mas se o encararmos sob outro aspecto, o da realização do discurso, então essa afirmação se converte na seguinte: é a existência de classes discursivamente estáveis (objetos, temas, paráfrases, séries de formulação) que força o discurso a usar fatores de homogeneização (LECOMTE, 1981, p. 80).

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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Essas questões são retrabalhadas a partir do final dos anos 1990 por

Moirand, que propõe uma nova articulação, desta vez, com o trabalho de

Bakhtin. Novos conceitos aparecem e, em particular, o binômio memória das

palavras/memória dos dizeres.

2.3 “Os OGM e os novos vândalos” (Le Monde)

Em “L’impossible clotûre des corpus médiatique”4, Moirand (2004a)

explica como ela convoca Bakhtin em sua reelaboração da noção de memória

discursiva a partir do estudo de corpus de discursos midiáticos sobre a questão

da vaca louca ou dos OGM (Organismos Geneticamente Modificados). A

autora analisa, em particular, os trajetos de memória do termo “vândalo” que

aparece nos textos midiáticos como nominação recorrente:

Com “vândalo” e “obscurantismo”, vemos aparecer o que P. Siblot (1998; 2002) chama de dialogismo da nominação e o que eu chamei de memória das palavras [...], reencontrando aqui, em relação ao corpus midiático, a noção de memória discursiva que J.-J. Courtine havia proposto introduzir na problemática da análise do discurso político (1981, p. 52) e da qual A. Lecomte faz uma breve reconstituição do percurso epistemológico [...]. Mas os tipos de corpus analisados (o tratamento dos acontecimentos na mídia), a coleta dos dados em torno de momentos discursivos particulares e a construção de subcorpus a partir das categorias descritivas evocadas na primeira parte levaram-me a articular tal noção com o dialogismo de Bakhtin e, então, reelaborá-la, particularmente quando se trata das lembranças memoriais inscritas nos dizeres que não remetem às falas realmente pronunciadas, mas às falas que poderiam ter sido ditas (MOIRAND, 2004a, p. 85).

Moirand desenvolve, em particular, a ideia de que as palavras são

sempre habitadas por seus usos anteriores, ideia que Bakhtin expressou mil

vezes, por exemplo nesta passagem de Estética da criação verbal:

Não há palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este perde-se em um passado ilimitado e em um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca serão estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas) (BAKHTIN, 1984, p. 393).

Em outro artigo, “De la nomination au dialogisme: quelques

questionnements autour de l’objet de discours et de la mémoire des mots”5,

4 N.T.: Em português, o título do trabalho seria: “O impossível fechamento do corpus midiático”.

5 N.T.: Em português, o título do trabalho seria: “Da nominação ao dialogismo: alguns questionamentos em torno do objeto do discurso e da memória das palavras”.

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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Moirand (2004b) afirma que articular Courtine e Bakhtin não é comum e traz

problemas de contexto epistemológico:

No entanto, partir das palavras e das nominações com a concepção bakhtiniana de dialogismo parece-me gerar um “deslocamento” do objeto de pesquisa em relação às posições originais da Análise do Discurso dita francesa. Se, como diz Bakhtin (1970, p. 263), “todo membro de uma coletividade falante não encontra palavras neutras livres de apreciações ou de orientações de outrem, mas palavras habitadas por vozes outras. Ele as recebe pela voz de outrem, preenchida da voz de outrem” e que “toda palavra de seu próprio texto advém de outro contexto, já marcado pela interpretação do outro”, estabelecemos, então, que é a própria palavra que é “habitada” por discursos outros, e nos concentramos antes sobre as expressões nominais do que sobre os enunciadores ou as formações discursivas. Depreende-se daí que as palavras têm uma “memória” (MOIRAND, 2004b, p. 49).

Mas é graças a esse deslocamento que a autora estabelece as noções de

memória das palavras e memória dos dizeres, que lhe permitem considerar os

surpreendentes trajetos da palavra vândalo na imprensa de 2001:

Assim, pode-se se interrogar sobre os diferentes sentidos que a palavra transporta, ou sobre os sentidos que a preencheram ao longo do tempo e ao sabor de suas viagens nas diferentes comunidades discursivas que ela atravessou. Um cientista, um historiador, um historiador das ciências, o representante de uma multinacional... utilizam-na, cada um à sua maneira, sem forçosamente ter consciência dos domínios da memória a curto e a longo prazo aos quais ela remete [...] (MOIRAND, 2004a, p. 85).

A noção de memória das palavras de Moirand articula-se, portanto,

sobre (1) a invenção de Courtine, que localiza o sentido das palavras na

memória histórica, (2) a noção de verticalidade descrita por Lecomte como um

heterogêneo uniformizado pela superfície discursiva e (3) o dialogismo

bakhtiniano, que junta a sociabilidade fundamental do sentido e a hipótese da

integração de toda produção verbal de uma interação social.

Delineei aqui a memória teórica da memória discursiva, privilegiando os

três pesquisadores que lhe são os inventores e os continuadores, entre 1980 e

o início dos anos 2000, sem entrar nos detalhes de todas as explorações

destas noções nos trabalhos de Análise do Discurso dessa época. Passo,

agora, a apresentar as noções de pré-discurso e de linhagem discursiva, que

me têm permitido articular produção do sentido, memória, cognição e poder.

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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3 Memória e cognição: pré-discursos e linhagens discursivas

Tome-se a expressão “É Beirute!”, na qual o topônimo deixa de ser um

(Beirute não significa “a cidade de Beirute”), e se torna o significante do caos

da guerra civil e da destruição urbana. Para apreender o sentido e o

funcionamento desse segmento, se faz necessário convocar a noção de

memória discursiva: como compreender, de fato, essa expressão fora da

“autoridade” da memória, como afirmava Lecomte, que decide sobre o

sentido e sua contextualização? Porém é igualmente necessária uma

convocação à noção de enquadre cognitivo externo: formulo, de fato, a

expressão “É Beirute” em um ambiente físico, cultural e histórico particular,

necessário à minha formulação e à compreensão dessa formulação; os

recursos semânticos internos do segmento (meu léxico interior) não são

suficientes para sua interpretação.

Na esteira de Courtine, Lecomte e Moirand, propus uma versão cognitiva

da memória (inter)discursiva em Os pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]).

Minha intenção era apreender a elaboração das representações de uma

maneira pós-dualista, ou seja, considerando ao mesmo tempo as

representações internas individuais (meu conhecimento do topônimo e da

história do Líbano) e as representações externas (o que me propõe a

realidade exterior como disparadores de memória e apelos aos meus

enquadres de saber).

São os trabalhos da cognição distribuída (CONEIN, 2004) – uma das

formas de cognição dita heterodoxa que surge nos Estados Unidos na década

de 1990, contra o internalismo dominador da cognição da época (em

particular, a Inteligência Artificial e a Linguística Cognitiva) – que me

forneceram recursos para esta elaboração. Pretendia mostrar que nossa

memória, seja discursiva ou não, estava distribuída nos ambientes, em

particular na memória dos outros, evidentemente, mas também nos

elementos não humanos que nos cercam e que constituem nossos ambientes

de vida: lugares e objetos são também apoios à nossa memória, incluindo aí

nossa memória discursiva. Era uma renovação da noção que almejava

conservar a riqueza conceitual da semântica discursiva tal como havia sido

proposta na França na esteira de Pêcheux, mas também apreender as formas

contemporâneas de produção e de circulação dos discursos.

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3.1 Cognição sociocultural e Análise do Discurso

Poderia parecer paradoxal articular Ciências Cognitivas e Análise do

Discurso, esta última tendo sido construída sobre o político, o histórico e o

psicanalítico, em suma, sobre tudo o que a revolução cognitiva dos anos 1950

contribuiu pondo em questão. No entanto, desde o fim dos anos 1980,

desenvolveu-se nas Ciências Cognitivas uma corrente sociocultural,

alimentada pela Etnometodologia, pela Ergonomia, pela Psicologia das

Organizações etc. A Cognição Social desenvolveu-se no contexto anglo-saxão,

conforme as versões sucessivas da Cognição Situada (SUCHMAN; ROCHELLE),

Cognição Compartilhada (RESNICK; SCHEGLOFF), depois Cognição Distribuída

(HUTCHINS; AGRE). Sabemos que, paralelamente, a Semântica Distribuída

promovida por Lakoff e Johnson, desde sua obra sobre as metáforas

publicada em 1980, atribuiu grande importância ao corpo (“mind is

embodied”). Por fim, temos o estudo das emoções (DAMASIO, 2002) e das

percepções que é amplamente aberto ao contexto ambiental. Isso é o mesmo

que dizer que uma revisão das crenças estava se impondo tanto aos

discursivistas quanto aos cognitivistas: do meu ponto de vista, a Análise do

Discurso e a Cognição Social são compatíveis e suas teorias, saberes e

métodos podem dialogar entre si.

Adotar o ângulo sociocultural nas Ciências Cognitivas implica em fazer

certo número de escolhas epistemológicas, especialmente sobre a natureza do

espírito. Assim como o neurocientista Damasio, um bom número de filósofos, a

começar por Peirce, e muitos pesquisadores que trabalham com as práticas

sociais e culturais, acredito que o dualismo cartesiano é “epistemologicamente

desesperado” (a expressão é de Houdé, 1998), o que me leva a descartar o

inatismo, o idealismo e certo racionalismo, para adotar o princípio da

externalidade do espírito. Considero que existem vários saberes, crenças (em

uma só palavra, proposições e pensamentos) articulados com o mundo exterior,

o ambiente, os artefatos, e não apenas encapsulados nos módulos internos.

A noção de distribuição permite renovar a questão do contexto com

certa força operatória. Ela está atenta à construção e à transmissão das

informações não apenas via saberes e competências detidas “na cabeça” dos

indivíduos em seu ambiente sociocultural (“no mundo”), mas inscritas nas

ferramentas cognitivas, ou seja, em artefatos como, por exemplo, um bloco

de notas ou um tablet. Eu a defini –em uma perspectiva mais ampla que

expande os agentes de distribuição aos elementos não artefatuais, tais como

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os sentimentos e os valores – como um processo de transmissão sincrônica e

diacrônica de enquadres pré-discursivos coletivos, estes últimos

(conhecimentos enciclopédicos, crenças, emoções, percepções) sendo

distribuídos de maneira colaborativa entre os agentes humanos e não-

humanos graças aos organizadores psíquicos internos, mas igualmente

externos (ferramentas discursivas como a lista, o dicionário, o quadro, o

diário, o guia de conversação, ou mais amplamente semiótico como as cores,

os símbolos, as vestimentas etc.).

3.2 Do pré-construído aos pré-discursos

Quando eu ouço “É Beirute”, todo um universo semântico é ativado e

ouço, claramente, que Beirute não é mais em Beirute e que a cidade em ruínas

diante de mim ou mesmo o quarto em desordem de um adolescente são

designados por um nome que é aquele mesmo de outro caos, considerado

como a melhor referência possível no contexto. Mas como esses

conhecimentos chegaram até mim e, sobretudo, como eles são ativados por

esse simples nome próprio?

Para responder a essa questão, pleiteio que essas palavras ativam os pré-

discursos, concebidos como operadores na negociação da partilha, da

transmissão e da circulação do sentido nos grupos sociais: defino-os como um

conjunto de enquadres pré-discursivos coletivos que têm um papel

instrucional para a produção e a interpretação do sentido em discurso

(PAVEAU, 2006, 2007). São enquadres de saber, de crenças e de prática que

não estão disponíveis apenas no espírito dos indivíduos e na cultura dos

grupos (é sua natureza representacional), mas estão distribuídos, no sentido

cognitivo do termo, nos ambientes materiais da produção discursiva. Os pré-

discursos não são sequências discursivas identificáveis (discursos que teriam

sido produzidos outrora, o que os levariam em direção ao discurso citado e ao

dialogismo), mas enquadres prévios tácitos, assinalados nos discursos atuais

por certo número de fenômenos. Eles são dotados de seis características que

tornam possível sua análise:

• Sua coletividade, resultado de uma coelaboração entre os indivíduos e

entre o indivíduo e a sociedade: com relação a “É Beirute”, os

conhecimentos em torno da guerra civil de 1975-1990 são

supostamente partilhados por meus interlocutores e integram o

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estado de conhecimentos comuns de uma sociedade em um dado

momento;

• Sua imaterialidade, a pré-discursividade sendo de ordem tácita (isto é,

não formulável de maneira explícita, contrariamente ao implícito); não

é o nome próprio “Beirute” que formula explicitamente os estragos

da guerra sobre a vida urbana; isso constitui um apelo aos pré-

discursos, ou seja, ao conjunto de conhecimentos prévios depositados

em minha memória e em meus ambientes e que constituem as

instruções de interpretação;

• Sua transmissibilidade, sobre o eixo horizontal de comunicabilidade

enciclopédica (a ideia da partilha) e o eixo vertical da transmissão via

linhagens discursivas (o papel da memória): o sentido da expressão

foi-me transmitida pela enciclopédia ambiente de meus ambientes e

porque, enquanto locutora, eu ponho as minhas falas nas de meus

“ancestrais”, retomando suas formas e seus sentidos, muitas vezes

sem que eu saiba;

• Sua experiencialidade, uma vez que eles permitem ao sujeito organizar

e também antecipar seu comportamento discursivo: “É Beirute” faz

parte das expressões que me permitem organizar meu universo

categorizando-o;

• Sua intersubjetividade, os critérios de mobilização sendo vero-

relacionais e não lógicos: a questão não é saber se a qualificação

Beirute é verdadeira ou não; é a avaliação e a pertinência da

denominação com relação aos meus interlocutores e à concepção do

discurso na sociedade que importam;

• Sua discursividade, enfim, já que eles são linguageiramente

assinalados: “Beirute” é uma forma linguageira presente no fio do

discurso e recuperável como tal pelo analista; várias outras formas

podem constituir apelos aos pré-discursos, formas lexicais como

“vândalos” analisadas por Sophie Moirand, formas fixas como “divina

surpresa”6 ou padrões sintáticos como “nós somos todos + [categoria

6 Em Os pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]), analiso a expressão “divina surpresa”, mostrando que essa fixação, desancorada de sua origem política (Maurras teria empregado a expressão para qualificar a chegada de Pétain ao poder), pode ser aplicada tanto a uma vitória olímpica quanto a um fechamento de contrato.

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a ser defendida]” sobre o modelo de “nós somos todos judeus

alemães” de Cohn-Bendit em 19687.

3.3 Uma memória dinâmica: recognição e linhagens discursivas

Encarar uma memória cognitivo-discursiva é ultrapassar uma concepção

estática (memória-estoque destinada a ser recuperada, ou memória

simplesmente partilhada que constituiria um tipo de fonte comum na qual

bebem os interlocutores), para adotar uma concepção dinâmica que faz da

memória um verdadeiro operador pré-discursivo e discursivo. Isto é, portanto,

admitir que a memória em discurso não serve apenas para... a memorização,

mas possui uma função (re)construtiva e categorizadora, função que passa

essencialmente pela recognição.

Se a memória em discurso não é simples restituição, pode-se, com

efeito, falar de recognição: a referência a Beirute não se satisfaz

evidentemente em transportar uma memória histórica, mas constitui uma

ferramenta cognitivo-discursiva que (re)categoriza ironicamente a

constatação de uma desordem ou de uma destruição de guerra. Assim, a

designação não funciona apenas sobre o modo simples da analogia, mas

organiza o mundo em discurso, confere-lhe um sentido. Então, podemos falar,

com Ricœur, de reconhecimento, a palavra que designa a face cognitiva da

memória, que abrange a “denominação psíquica”:

[...] o reconhecimento, que coroa a pesquisa bem-sucedida, [...] designa a face cognitiva da lembrança, enquanto que o esforço e o trabalho inscrevem-se no campo prático. [...] Esse desdobramento entre dimensão cognitiva e dimensão pragmática acentua a especificidade da memória entre os fenômenos que se inscrevem na denominação psíquica (RICŒUR, 2000, p. 67-68).

Tomo o termo de re-conhecimento ao pé da letra, integrando a ideia de

Halbwachs segundo a qual a origem importa menos que sua reconfiguração. O

re-conhecimento é um processo cognitivo dinâmico, na medida em que se

criam versões, mas sobretudo organizações do mundo. É a razão pela qual a

memória cognitivo-discursiva realiza, em minha opinião, alguma coisa da

ordem da recognição.

A construção da memória – e, por consequência, da memória cognitivo-

discursiva – é fundamentalmente inscrita no desenrolar da história. O elo

7 Analiso essa forma memorial no capítulo 6 de Langage et morale (PAVEAU, 2013).

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memorial é parâmetro fundamental na produção dos discursos, a distribuição dos

saberes e crenças voltando-se para o eixo diacrônico: os “ancestrais”, os que

falaram antes de nós, são agentes humanos de distribuição, como o conjunto dos

“lugares de memória” discursivos ou artefatuais que sustentam a transmissão.

No meu exemplo, o nome próprio “Beirute” é um desses lugares de

memória, que é também “agente de distribuição”. Os valores associados ao

nome, as evocações icônicas (televisivas, fotográficas ou cinematográficas)

que ele não deixa de suscitar, os traços prototípicos dos quais ele é dotado (a

destruição de Beirute transformou-se no protótipo da destruição da cidade

em guerra) são elementos suficientes que passam pelos canais da memória

cognitivo-discursiva. Chamo esses canais de linhagens discursivas, as quais

reforçam a historicidade dos discursos e das significações. E defino esses

canais como dispositivos representacionais internos e externos que permitem

acolher e transmitir conteúdos semânticos ligados aos saberes, crenças e

práticas: os “lugares de memória” discursivos e cognitivos. Eles são elementos

importantes na construção dos discursos ideológicos, em particular por sua

força argumentativa.

3.4 Força polêmica das analogias memoriais

Talvez não insistimos o suficiente sobre a função argumentativa da

memória discursiva, sem dúvida por não tê-la mensurado. Lembro ainda a

observação de Lecomte, em seu texto de 1981: “a autoridade, isto é, a

memória”, o que significa que a memória autoriza o sentido, permitindo as

produções-interpretações, as circulações e as transmissões discursivas. Suas

linhagens constroem autoridade semântica.

Em 2012-2013 na França, pôde-se assistir a um debate intenso em torno

da lei que autoriza o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo,

promulgada no dia 18 de maio de 2013. As memórias interdiscursivas não

cessaram de se cruzar e de entrar em conflito, para apoiar as posições de cada

um. É nos opositores que as memórias das palavras e dos dizeres têm

circulado mais, o que confirma o valor argumentativo da memória: uma

oposição, que não detém a autoridade, tanto jurídica quanto política ou

mesmo simbólica, deve sempre encontrar mais argumentos do que a maioria,

e a referência analógica é então uma ferramenta polêmica poderosa. Os

opositores ao casamento para todos exploraram amplamente suas

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competências analógicas e pode-se distinguir várias referências históricas que,

em lhes fornecendo linhagens discursivas fecundas, lhes serviram de

instrumentos polêmicos: a Revolução Francesa, o regime de Vichy e mais

amplamente os fascismos europeus dos anos 1930-1940, assim como a

Revolução de maio de 1968. Retomo aqui os dois exemplos de léxico

revolucionário e do regime de Vichy.

3.4.1 Mitologia revolucionária: guilhotina e guerra civil

Uma das passagens de bravura de Frigide Barjot, líder do movimento

Manifestação para todos8 durante o que os opositores à lei “Taubira”9

chamaram de “Primavera Francesa”, é esta exclamação do 12 de abril de 2013:

Hollande quer sangue, ele o terá! Todo mundo está furioso. Nós vivemos em uma ditadura.

Ela havia acabado de afirmar que um “cutelo acabara de cair sobre a

cabeça do povo”, antes de precisar que:

O Presidente da República decidiu nos guilhotinar. Se essa noite (sexta-feira), víssemos irromper por todos os lados os “Fora, Hollande”, contrariamente às outras vezes, eu não impediria os slogans (Le Nouvel Observateur, 12.04.2013).

No mesmo momento, Philippe Gosselin – deputado da UMP (União por um

Movimento Popular) pelo departamento de Manche – fala de “guerra civil”. A

captação do léxico da Revolução é evidente (guilhotina, cutelo) e é possível

compreender esse segmento como um apelo à oposição binária “Nobreza versus

Terceiro Estado”, que estrutura em parte o imaginário do período. O poder

republicano atual é então designado nos termos do poder revolucionário da época.

Mas o emprego de “povo” desloca a referência, e os pré-discursos são mobilizados

aqui com uma elasticidade suficientemente grande: François Hollande sendo

finalmente descrito, no implícito das equivalências, mais como um Louis XVI

“ditatorial” do que como um libertário da opressão. Esse apelo ao povo articula-se

com um discurso igualmente bastante ouvido nas fileiras do movimento

Manifestação para todos: a distinção entre o país legal e o país real, velha oposição

8 N.T.: O nome original desse movimento é La Manif pour tous, que surge em contraposição ao movimento Mariage pour tous, ou seja, casamento para todos. 9 N.T. : Trata-se da Lei nº 2013-404 de 17 de maio de 2013, que abre o casamento entre casais do mesmo sexo, apresentada ao parlamento francês por Christiane Taubira, deputada eleita pelo Departamento da Guaiana, entre 1993 e 2011, e Ministra da Justiça desde 2012.

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maurassiana integrada no discurso dos anti, “povo” que entra então em eco com

“país real”. “Guilhotina”, “cutelo” e “povo” transformam-se, assim, nos

significantes abstratos da luta política, saídos de suas linhagens lexicais de origem,

fortemente contextualizados na história e postos à disposição, como formas

prontas para o uso dos locutores do século XXI e de seus debates e embates.

3.4.2 Signos concentracionários: estrelas e triângulos

A célebre menção ao termo “estrela” feita pela então ministra Christine

Boutin não é nada ambígua. Ela posta em abril de 2013 um tweet10 tão

estranhamente escrito quanto provocador:

O sentido do termo “estrela” aqui não gera nenhuma dúvida pelas

seguintes razões: (i) sua co-ocorrência com “publicar lista de dissidentes” que

assinala alguma coisa da ordem da denúncia, até mesmo da estigmatização;

(ii) a articulação com o termo “cor”, que evoca a cor amarela da estrela que

marcava as vítimas judias da deportação nazista, mas, sobretudo a presença

de outras ocorrências desse tipo nos ambientes discursivos dessa

“primavera”, e da parte dos dois campos. Os termos como “triângulo rosa” e

“triângulo negro” apareceram, de fato, nos debates. Eis aqui uma breve lista:

• Mestre Jerôme Triomphe: “A camiseta da Manifestação para todos é a

nova estrela amarela” (F. Desouche, 31/05/2013);

• Christian Assaf (PS): “O tempo do triângulo rosa acabou” (“Casamento

gay: as propostas sobre o ‘triângulo rosa’ indignam a UMP”, Le Parisien,

31/01/2013);

10 #relatorsenado anuncia que os pts (participantes) do grupo concordam em publicar lista de dissidentes! Qual é a cor da estrela? Vergonha.

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• Elie Aboud (UMP): “[...] há um pedopsiquiatra que é reconhecido, e

não se pode suspeitar de aliança política conosco, que alerta toda a

sociedade” declarou o eleito de direita. “Você sabe, senhora Ministra

da Justiça, não é do triângulo rosa que ele fala, mas sim de um

triângulo negro, com a inscrição S.O.S Perigo” (declarações

encontradas na revista semanal Le Nouvel Observateur, 05/02/2013.

Não há polissemia, nem de extensão de sentido possível, para “estrela

amarela”, “triângulo rosa” e “triângulo negro”, as quais designam realidades

únicas na história. A inscrição na linhagem discursiva concentracionária11 está

explícita, e o apelo à interpretação é reduzido; trata-se, sobretudo, de um

apelo à cultura do receptor, que é também, entretanto, uma forma de

interpretação.

Enfatizou-se, com frequência, que os discursos do movimento

Manifestação para Todos caracterizaram-se por seus empréstimos e

reciclagens de outros discursos, particularmente aqueles dos eventos e dos

partidos de esquerda. Sem dúvida, seria equivocado interpretar essa

tendência recuperadora como uma fraqueza. Ela me parece, ao contrário, uma

força, pois os opositores à lei “Taubira” compreenderam que a memória

discursiva é um argumento, tão mais forte quanto ela for redutora,

caricaturizada e provocadora. Eles apoiam-se nos pré-discursos coletivos que

todos detém, mais ou menos, pois eles fazem parte dos saberes transmitidos

pela escola: “guilhotina revolucionária”, “estrela concentracionária”. Tantas

linhagens discursivas disponíveis no repertório pré-discursivo de cada um, que

basta enfeitá-las de belos discursos e slogans espetaculares.

4 Des-memória e a-memória: o discurso e o esquecimento

Em Os Pré-discursos (PAVEAU, 2013 [2006]), propus o conceito de “des-

memória discursiva”, retrabalhando a definição de des-memória que Regina

Robin havia projetado para formular as transformações semióticas da Berlin

após a queda do muro (ROBIN, 2001). Ela considerava que o processo de des-

batismo e re-batismo das ruas – os nomes das figuras das Brigadas internacionais

que haviam sido substituídos pelos nomes dos cavaleiros teutônicos (ROBIN,

2004) – havia realizado essa des-memória, por restabelecimento de uma

11 N.T.: O termo refere-se à prática nazista de exploração de trabalho forçado e de extermínio em campos de concentração.

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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memória antiga que apagou uma mais recente e menos consensual. O

interessante fenômeno do des-batismo pode ser observado em vários lugares

marcados pelas mudanças políticas fortes e as histórias de mudanças de nomes

de rua com fundo político ou ideológico que acontecem abundantemente.

4.1 Des-batismo e re-batismo das ruas nas memórias das guerras

Em uma dissertação de mestrado de Ciência Política sobre o tema da

memória e do símbolo político, Comard-Rentz explica que a escolha desse

assunto lhe foi inspirada pelo exemplo dos nomes de ruas que evocam a França

em Berlim e a Alemanha em Paris. Em Berlim, “encontram-se o Parisier Platz

(Praça de Paris) e uma Parisier Straße (Rua de Paris)”, de modo que “a Armada

Francesa rebatizou um bairro inteiro durante o período pós-guerra, deixando,

após sua partida em 1994, as ruas Racine, Molière, Saint-Éxupéry [...]”

(COMARD-RENTZ, 2006, p. 6). Em compensação, em Paris, não existem mais

ruas que evocam a Alemanha, salvo exceções como a rua d’Ulm, por exemplo.

A partir daí, ela realiza uma exploração histórica e política das mudanças de

nome das ruas, dando vários exemplos ao longo da história: em 1789, a Revolução

Francesa des-batiza os nomes dos santos para re-batizar “republicano” com um

objetivo pedagógico (47% das ruas de Paris teriam sido assim re-batizadas); em

1940, o regime de Vichy impõe igualmente suas marcas toponímicas na França,

privilegiando o nome do marechal Pétain; em 1962, a guerra da Argélia é outra

ocasião de conflito de memórias, que se fixa sobre a data do fim das hostilidades,

fornecendo o nome “19 de março de 1962”, independência para uns, “abandono”

de uma terra natal para outros; em 1995, as municipalidades administradas pela

Frente Nacional12 no sul da França “nacionalizam” as placas de rua, com o falso

pretexto de uma “provençalização”13.

A des-memória discursiva designa um conjunto de fenômenos de

desligamento das lembranças e inserções dos nomes no fio memorial do

discurso. Existem inúmeros processos a serviço da des-memória, no que tange,

particularmente, aos elementos ligados ao sentido e ao referente das palavras.

12 N.T.: Em francês, “Front National”, partido político francês fundado, em 1972, por Jean-Marie Le Pen e é o principal representante do nacionalismo de direita na França. 13 N.T.: “Provencialização” diz respeito a forma de reconstrução identitária da Provença, região localizada no sudeste da França que, conforme Basseto (2001, p. 214), teve o provençal como língua administrativa e jurídica até 1539, quando, por lei, o francês passou a ser a língua oficial, embora o provençal continuasse a ser a língua falada pelo povo (BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001).

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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Desses processos citarei quatro: a desancoragem de certas expressões

fixas de seu contexto referencial de origem (como “divina surpresa”); a

ancoragem, ao contrário, de certos discursos na forma de um outro, realizando

uma espécie de transferência de memória sobre uma outra, como é o caso das

analogias memoriais do movimento Manifestação para todos; o desligamento

entre um significante e seus sentidos e referente, particularmente no caso do

nome próprio14; a subjetivação memorial: a partir do exemplo dos nomes de

batalha, como “Diên Biên” ou “Bir Hakeim” (PAVEAU, 2008; 2009), mostrei que

a construção dos sentidos do nome próprio estava amplamente situada em

uma comunidade cultural, social e nacional.

Para recapitular, chamo de des-memória discursiva um conjunto de

fenômenos de discurso que permitem a revisão das linhagens discursivas, isto

é, transmissões semânticas cultural e socialmente asseguradas pelas

ferramentas da tecnologia discursiva (as placas de rua, por exemplo). Essas

revisões podem ser as mudanças semânticas, os neologismos semânticos, as

redenominações, as reformulações etc. Em suma, um conjunto de fenômenos

linguageiros que vão produzir efeitos transgressivos ou contra-intuitivos em

um contexto em que reine um acordo semântico, histórico e até mesmo ético.

4.2 A a-memória discursiva, entre a denegação e o interdito

Acompanhando Weinrich (2001 [1999]), Ricœur (2007 [2000]) e vários

historiadores, filósofos e psicanalistas que trabalharam a memória, penso,

evidentemente, que o esquecimento é necessário para a elaboração de uma

memória praticável, entrada para uma história também praticável. No

entanto, quando a formulação das coisas é impossibilitada pelo trauma, que

promove um retorno na existência pelos seus caminhos bem rodados, o

próprio esquecimento é bloqueado. Todos os grandes conflitos do mundo

provocaram essas coisas, esse silêncio habitado por falas não ditas, por um

passado não vivido que porém se manifesta pela dor. Esse é o caso da guerra

da Argélia, que fala ainda nos descendentes sob a forma de sintomas. A esse

respeito, Stora (2008, p.31) diz que: “O objeto ‘Argélia’ está sempre vivo,

terrivelmente vivo, inquieto, não se deixa esquecer”. Eu pensava que esse tipo

de memória – que suprime o discurso para deixar apenas a dor, que fala 14 Para muitas pessoas, por exemplo, o topônimo “Tataouine” designa um dos mais agradáveis Clubes Méditerranée da Tunísia: a memória da prisão militar vai sendo apagada e a laminação memorial sendo bloqueada pelos sentidos geográficos e culturais contemporâneos.

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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somente por sintomas evitando as palavras – não fosse do domínio da des-

memória nem do esquecimento e que, então, seria necessário encontrar outra

palavra para nomeá-la. Em 2010, propus, no meu diário de pesquisas, o termo

“a-memória” em uma postagem, justamente sobre a Argélia, intitulada

“Memórias e des-memórias argelinas” (PAVEAU, 2010).

Falo, então, de “a-memória discursiva” para designar não mais uma

revisão, tal como o é para a des-memória, mas sim um apagamento,

consciente ou inconsciente, de um passado ou de um legado discursivo, de

“formulações-origens” (COURTINE) sobre os quais o locutor não quereria ter

mais nada a dizer, mas são ditos mesmo que pelo viés do inconsciente e da

somatização, ou ainda, nas linguagens infinitamente inovadoras do sintoma.

4.3 A pós-memória: “Você não estava em Auschwitz”

Reencontrei um pouco de minha noção de “a-memória” em uma outra

muito vizinha que eu não conhecia e que descobri graças a Robin (2003) em La

mémoire saturée: a pós-memória (postmemory). Tal noção é proposta por

Hirsch (1997) em Family Frames: Photography, Narrative, and Postmemory. A

partir do estudo do trauma do holocausto, a autora define pós-memória como

sendo a memória dos descendentes ou dos sobreviventes, baseada em

narrativas, descrições e fotos. Trata-se de uma memória de segunda-mão, se

assim podemos dizer:

A pós-memória distingue-se da memória por uma distância de geração, e da história por um relato de emoções pessoais. A pós-memória é uma forma muito poderosa e muito particular de memória, precisamente porque sua relação com os objetos e com as fontes não é mediada pelas lembranças, mas por um investimento imaginário e pela criação. Isso não quer dizer que a memória não seja mediada, mas é que ela está mais diretamente religada ao passado. A pós-memória caracteriza a experiência dos que cresceram envolvidos por narrativas, por acontecimentos que precederam seu nascimento, cuja história pessoal foi como que evacuada pelas histórias das gerações precedentes que viveram os acontecimentos e as experiências traumatizantes (Hirsch, 1997 apud ROBIN, 2003).

Hirsch (1997) toma como exemplo o relato de memória de Art

Spiegelman, filho de sobreviventes e célebre autor da famosa história em

quadrinhos Maus. Ela menciona o momento de definição pura do status de

sobrevivente ou de descendente de pais traumatizados, em que seu

psicanalista lhe diz: “Você não estava em Auschwitz. Você estava em Jego

Park”. Este enunciado é exatamente o da a-memória – ou da pós-memória –

PAVEAU, Marie-Anne. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. Trad. Jocilene Santana Prado; Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 137-161, dez.2013.

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que não levanta nenhum trauma, mas que permite formulá-lo: o descendente,

que não viveu o trauma, que “não estava em Auschwitz”, traz consigo, porém,

os sintomas dos quais fala o discurso.

Conclusão

Os conceitos são como os humanos: eles evoluem, modificam-se e

tomam, às vezes, novos caminhos que os conduzem a novas existências. Isso

se aplica à noção de memória discursiva, que apresenta uma disponibilidade

importante para a reflexão dos analistas do discurso, sem dúvida alguma

graças à grande riqueza da conceitualização original. Não contemplei neste

artigo, devido ao espaço, a noção de memória metálica (ORLANDI, DIAS) ou

de memória numérica (HABERT, PAVEAU) que começa a se desenvolver em

razão dos corpora de discursos on-line: há ainda uma longa vida a ser vivida

pela memória discursiva, além de ser um belo canteiro a ser trabalhado em

uma perspectiva franco-brasileira.

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Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: [email protected]

Eduardo Lopes Piris

Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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O LOGOS COMO RAZOABILIDADE ARGUMENTATIVA: CONTRIBUIÇÕES

DA NOVA RETÓRICA PARA A ANÁLISE DO DISCURSOi

Melliandro Mendes Galinariii Marcos Vieira de Queiroziii

Resumo: O presente artigo visa ressaltar, de modo sucinto, como as tipologias argumentativas de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002), tais como a incompatibilidade, o modelo, a associação e a dissociação (etc.), podem funcionar como uma etapa interessante para a análise de discursos, a saber, para a apreensão do logos argumentativo em sua acepção de “demonstração verdadeira ou aparente”. Num primeiro momento, a partir dos autores citados, da retórica aristotélica e de teóricos da Análise do Discurso, buscamos conceber a argumentação como uma atividade que ultrapassa os pressupostos da Lógica Formal, no intuito de instituir o logos como uma razoabilidade fundada pela materialidade textual e, além disso, como um artifício retórico apreensível pelas citadas tipologias. Num segundo momento, buscamos ilustrar a pertinência de tudo isso com a análise rápida de dois editoriais que circularam na cidade de Mariana-MG. Tais editoriais possuem um caráter político e uma dinâmica elucidativa na construção/desconstrução de raciocínios retóricos.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Retórica. Argumentação. Logos.

Abstract: This article aims to consicely highlight how Perelman & OlbrechtsTyteca's (2002) arguments typologies, such as the incompatibility model, the association and dissociation techniques (etc.), can function as an interesting way toward discourse analyses, particularly for the seizure of the argumentative logos in its meaning as a "true or apparent demonstration". At first, in order to establish the logos as something reasonably founded by textual materiality and as a rhetorical device graspable by the argument typologies, we consider Aristotelian's rhetoric and theoretical discourse analysis approaches, seeking to develop a stand about argumentation as an activity that goes beyond formal logic assumptions. Secondly, we seek to illustrate the relevance of the stand taked by a brief analysis of two journal editorials that circulated in the town of Mariana, Minas Gerais (Brazil). These editorials have a political and dynamic character elucidating the construction/deconstruction of rhetorical reasoning.

Keywords: Discourse Analysis. Rhetoric. Argumentation. Logos.

i Este artigo foi produzido como resultado das reflexões desenvolvidas no projeto de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFOP, intitulado A argumentação nos discursos sociais: por uma metodologia de análise, de autoria do professor Melliandro Mendes Galinari, do DELET/ICHS/UFOP.

ii Docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil. E-mail: [email protected].

iii Graduando pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil. E-mail: [email protected].

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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Introdução: A Nova Retórica

Este artigo busca demonstrar como as técnicas argumentativas de

Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002) (contradição, incompatibilidade,

comparação, exemplo, dissociação etc.) podem ser reaproveitadas como

mecanismos linguístico-discursivos de razoabilidade para a apreensão do logos

nos discursos. Essa hipótese se configuraria, assim, como uma etapa

metodológica (dentre outras) para a análise dos raciocínios sugeridos pela

materialidade textual, incluindo os seus efeitos de sentido.

O objetivo do Tratado da Argumentação, como apontam os seus autores,

é o resgate dos “meios de provas utilizados para se obter a adesão”, que, por

três séculos, foram negligenciados pelos “lógicos e teóricos do

conhecimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 1). Para eles, “a

publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma

velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura da

razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a

filosofia ocidental dos três últimos séculos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,

2002, p. 1). Como sabemos, essa ruptura é formatada pela célebre distinção

entre demonstração e argumentação, presente no tratado. A primeira liga-se

diretamente ao campo da Lógica Formal, que busca, através da evidência das

premissas do raciocínio, provar algo capaz de ser compreendido por todo e

qualquer ser dotado de razão. Na segunda, temos o campo da retórica, em

que a intenção do orador é a de convencer um auditório específico sobre

determinada tese, provada ou não por um raciocínio mais rigoroso. Em

relação a essa distinção, Perelman (1987, p. 234) diz o seguinte:

[...] em princípio, a lógica formal não se ocupa da adesão de qualquer coisa à verdade das proposições em vista. A prova é impessoal, e a sua validade não depende em nada da opinião: aquele que infere num determinado sistema só pode aceitar o resultado de suas deduções. Em contrapartida, toda argumentação é pessoal; dirige-se a indivíduos em relação aos quais ela se esforça por obter a adesão, a qual é suscetível de ter uma intensidade variável.

Pode-se dizer, com isso, que os autores não procuram “condenar” os

lógicos, mas, sim, certa tendência em se considerar a argumentação como

dependente dos artifícios rígidos das ciências formais. Para Perelman (1987, p.

236), a argumentação serve ao orador na medida em que este busca

influenciar um auditório, sendo que “a verdade ou falsidade desta [da tese]

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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constituem unicamente um motivo de adesão ou rejeição no meio de tantos

outros: uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna,

socialmente útil, justa e equilibrada”.

Dessa forma, vê-se que a argumentação está voltada para a influência do

auditório, entendido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar

com sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 22).

Sendo assim, a validade e a pertinência dos argumentos utilizados são

julgadas pela situação e pelos acordos nos quais se imiscuem aqueles que

argumentam sobre determinado assunto. Tudo isso inclui os valores dos

interactantes e a sua adesão à doxa, em aliança efetiva com o “preferível” e

com o “desejável”, parâmetros que, em última instância (para além da Lógica

Formal), definem a força dos argumentos. É nesse sentido que “a análise da

argumentação versa sobre o que é presumidamente admitido pelos ouvintes”

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 73). É nessa perspectiva que temos

defendido, também, que a argumentação é uma propriedade da linguagem

em uso, propensa a fazer-crer (a teses), a fazer-fazer (ações e

comportamentos) e a fazer-sentir (emoções), seja de modo consciente ou

não. Importa salientar que os argumentos são atividades discursivas presentes

nos vários gêneros e situações comunicativas de nossa vida simbólica,

estando, em última instância, à mercê de convenções culturais acerca de

eventos, pessoas, instituições e ideias. Feitas essas observações acerca da

argumentação, bastante gerais, passemos ao logos.

1 Sobre o logos e sua lógica razoável

No âmbito de suas especulações, como já é sabido, Aristóteles aponta-

nos três modalidades de provas retóricas (ou argumentos): “umas residem no

caráter moral do orador [ethos]; outras, no modo como se dispõe o ouvinte

[pathos]; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece

demonstrar [logos].” (ARISTÓTELES, 2005, p. 96). As provas retóricas

continuam sendo o cantus firmus de reflexões de teóricos contemporâneos,

que buscam, de diversas formas, aprofundar e sistematizar essas noções,

tanto para fins teórico-especulativos, quanto para fins de análise de algum

discurso social.

No caso específico do logos, em sua feição (aparentemente)

demonstrativa/racional, o edificamos, segundo Aristóteles (2005, p. 97),

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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“quando mostramos a verdade ou o que parece ser verdade, a partir do que é

persuasivo em cada caso particular.” Ressalte-se que, para o filósofo, é o

“caso particular” (Kairós, pode-se acrescentar) o fator determinante para a

eficácia do logos, ou seja, a situação de proferimento do discurso, incluindo os

seus participantes e sua adesão à doxa, o que podemos associar, nos termos

de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002), à interferência incontornável de

acordos (tácitos ou não) e de valores partilhados pelos interactantes. Na

retórica aristotélica, pelo menos no livro I, a ênfase no logos repousa sobre o

deslindamento de duas operações de raciocínio que já conhecemos bem: o

entimema (ou dedução oratória) e o exemplo (ou indução oratória). No

entanto – é conveniente ressaltar mais uma vez –, tais artifícios mentais

possuem algum peso retórico somente sob os auspícios do que

contemporaneamente chamamos de “condições de produção do discurso”,

com seus contratos, atores e estratégias, além de afetos e visões de mundo

compartilhadas.

Mas a questão não é, (in)felizmente, tão simples: outras definições

podem ser apontadas para o termo logos, muito além do já citado paradigma

dedutivo/indutivo. Galinari (2011), por exemplo, apresenta, resumidamente, 11

campos de significação para o vocábulo a partir da obra de Guthrie (1967). Na

tentativa de incorporar o logos sofístico nas reflexões atuais da AD, com base

em uma releitura de Górgias e de Protágoras, e/ou, mesmo, por intermédio de

uma leitura mais ampla da própria retórica aristotélica (baseada nos livros II e

III, e não apenas no livro I, como se faz correntemente), o autor explora os

desdobramentos semânticos da (outra) acepção discursiva já sugerida por

Aristóteles (o logos como discurso/palavra/texto). Nesse sentido, o termo é

definido, ou melhor, resgatado, como toda e qualquer dimensão da linguagem

capaz de influenciar, tais como a estrutura prosódica, a seleção lexical, a

organização sintática, os índices de modalização, o agenciamento enunciativo

etc., o que ultrapassa uma visão meramente lógica (ou quase-lógica) pautada

em entimemas, exemplos e raciocínios afins. Dessa forma, o autor mostra

como temos sido reféns de uma abordagem reducionista e platônico-

aristotélica do logos, associando-o apenas a operações mentais já bastante e

comodamente repisadas.

Porém, mesmo em se tratando do logos em sua acepção

(aparentemente) demonstrativa, correntemente surgem dúvidas durante as

análises discursivas sobre como apreendê-lo na materialidade textual.

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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Salientamos a importância dessa etapa, ao lado de outras. Nesse sentido,

embora este artigo assuma radicalmente as consequências da acepção do

logos enquanto discurso (incluindo todos os seus componentes linguísticos e

paralinguísticos), gostaríamos de propor uma alternativa possível para se

apreendê-lo enquanto uma “razoabilidade” presente no manejo da

linguagem/texto. Para tanto, acreditamos que as tipologias argumentativas de

Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002) se mostram, diante de tudo o que foi

dito, como uma “ferramenta de trabalho” viável: num primeiro momento,

diante de sua razoabilidade fundada pela doxa e pelos valores do auditório,

elas nos permitiriam apreender o logos enquanto operações mentais (ou

raciocínios); num segundo momento, nos permitiriam apreender como tais

esquemas são capazes de se desdobrar enunciativamente no ethos e no

pathos, explicitando, pragmaticamente, a inter-relação da tríade clássica.

Tal procedimento parece estar próximo, também, das especulações

presentes em Amossy (2011). A autora, na continuidade das reflexões

produzidas por Aristóteles, Perelman & Olbrechts-Tyteca, visualiza o logos-

raciocínio como parte integrante da palavra em contexto, ou melhor, como

uma razoabilidade negociada em situações reais de comunicação (e não como

uma razão “impessoal”, de contornos universais ou evidentes). É nesse

sentido que se mostra fecundo e interessante, em uma análise, apreender os

tipos e formas de raciocínio presentes nos discursos sociais (mesmo se

“truncados”, falaciosos ou apenas verossímeis para um determinado grupo),

inserindo-os na perspectiva de um “eu-tu-aqui-agora”, onde poderíamos

avaliar a sua força argumentativa em função do contingente e do razoável,

indo além do “verdadeiro” em termos eminentemente formais. Para a autora,

enfim, o logos, enquanto razoabilidade, liga-se visceralmente ao senso

comum:

[...] ele representa aquilo que parece plausível a uma dada comunidade em função de suas crenças e valores - o que lhes parece dever ser aceito por todo ser de bom senso. Enquanto o racional é necessário e válido em si mesmo, ou seja, existe independentemente das circunstâncias e dos agentes humanos, o razoável surge, ao contrário, como contingente e negociável no interior de uma interação social (AMOSSY, 2011, p. 13).

É nesse contexto teórico-especulativo, semelhante à visão aqui

aventada, que as tipologias argumentativas de Perelman & Olbrechts-Tyteca

(2002) podem se mostrar de grande valia, uma vez que tais categorias nos

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apresentam uma série de operações mentais/textuais razoáveis/plausíveis

que, somadas, mostram-nos diferentes facetas inteligíveis do logos. No intuito

didático de resumir e mostrar tais tipologias, apresentamos o quadro a seguir,

sistematizado por Wachowicz (2010, p. 102) a partir de Perelman & Olbrechts-

Tyteca (2002), em que as referidas categorias encontram-se na coluna da

direita, em negrito:

Tip

os

de

Arg

umen

tos

Por Ligação

I- Os quase lógicos

Contradição e incompatibilidade

Identidade e definição

Transitividade

Comparação

Inclusão ou divisão

Probabilidade

II- Os baseados na estrutura do real

Por sucessão

Por coexistência

III- Os que fundamentam a estrutura do real

Exemplo

Ilustração

Por dissociação

Por serem já bastante conhecidas e parafraseadas, não faremos a

resenha teórica de cada uma das tipologias, o que se justifica também pelo

nosso objetivo principal: mostrar como tais conceitos podem ser

reaproveitados em uma análise discursiva/argumentativa, no sentido de se

apreender retoricamente o logos-raciocínio. Limitamos-nos a dizer que tais

operações (coluna da direita, em negrito) se caracterizam por integrarem

processos discursivos de “ligação” e de “dissociação”. Os primeiros se

caracterizam como “esquemas que aproximam elementos distintos e

permitem estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estruturá-

los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro.” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 215) Já por processos de dissociação, tratam-se

das “técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar, de desunir

elementos considerados um todo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.

215).

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Tudo isso, enfim, poderia ser interpretado como modalidades diversas

de operações mentais, ou melhor, como nuances de raciocínios

contextualizados, os quais, argumentativamente, se tornam característicos de

uma das dimensões semânticas do logos: aquela referente às demonstrações

verdadeiras ou aparentes. Na próxima parte do artigo, buscamos mostrar

como isso funciona na prática com a análise sucinta de dois editoriais do Jornal

Ponto Final, que circularam na cidade de Mariana-MG e região (em anexo).

2 Da política marianense: rápida contextualização

A conjuntura política vivida pela cidade de Mariana-MG, nos últimos

quatro anos (2008/2012), foi bastante turbulenta, uma vez que “foram

passando”, meteoricamente, pelo menos 5 prefeitos diferentes pelo

município. A questão sempre foi, naturalmente, veiculada pela imprensa local.

No caso do Jornal Ponto Final, foco de nosso estudo, o recorte temporal

estabelecido, que vai de 5 de fevereiro a 28 de maio de 2010 – ou seja, um arco

de tempo um pouco maior que 3 meses –, abarca, inicialmente, a saída de

Roque Camello (PSDB), acusado de tentativa de sufrágio ainda em período de

campanha. Roque sai em fevereiro de 2010, de modo que, no dia 9 de março,

Terezinha Ramos (PDT), mulher do ex-prefeito João Ramos e segunda

colocada nas eleições anteriores, assume o executivo1.

Terezinha assume o comando no dia 9 de março de 2010, depois de

esperar alguns dias pelos trâmites da câmara para a sua posse. No entanto, a

mesma também não fica a longa no poder, de onde é afastada por acusação

de irregularidades na prestação de contas de sua campanha eleitoral (14 de

maio de 2010), assumindo, em seguida, o vereador Raimundo Horta (15 de

maio de 2010), então presidente da câmara dos vereadores. Nota-se, aqui, o

quão agitado foi o pequeno período estabelecido pela nossa pesquisa: em

menos de 4 meses, Mariana foi marcada por um “entra e sai” incessante de

prefeitos, sofrendo, com isso, um prejuízo incalculável.

Os eventos políticos deflagrados no período que estudamos, como

dissemos, foram todos reportados pela mídia local, de modo que uma grande

1 Terezinha entra para a política depois que seu marido é assassinado, no dia 16 de maio de 2008. O crime, que tudo indica ter ocorrido por motivos políticos, continua sem solução. Na época em que foi assassinado, João Ramos (prefeito em Mariana por três vezes: de 1973 a 1976, de 1983 a 1988 e de 1993 a 1996) era pré-candidato a prefeito. Pesquisas anteriores a sua morte o mostravam como o favorito da população.

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polêmica se construiu em torno da instabilidade política do município. No

entanto, nosso estudo não visou uma compreensão do contexto político em

si, mas, sim, do modo como essa conjuntura foi representada pelos editoriais,

propiciando a promoção de teses, comportamentos e emoções junto ao

público leitor. Podemos dizer, portanto, que o contexto político de Mariana

foi a tópica central da argumentação desenvolvida pelos textos. Neste artigo,

anexamos apenas 2 dos editoriais estudados, por razões de tempo e de

espaço. O primeiro encontra-se na Edição de número 737 do Jornal Ponto Final,

que abarca o período de 09/04 à 15/04/2010; o segundo está presente na

Edição de número 743, de 21/05 à 27/05/2010.

De um editorial a outro, mesmo sendo um arco de tempo muito curto

(pouco mais de um mês), podemos notar dois momentos diversos dos

posicionamentos apresentados pelo Jornal Ponto Final, a saber, o elogio e o

vitupério de Terezinha Ramos (PDT), elaborados ao sabor das circunstâncias e

dos acontecimentos políticos. Esses dois momentos marcados pelos

posicionamentos distintos do editorial em relação à figura de Terezinha

Ramos (PDT) nos permitiram observar o funcionamento dos processos de

“ligação” e de “dissociação” teorizados por Perelman & Olbrechts-Tyteca

(2002). Em um primeiro momento (edição n.º 737), o editorial continua a

manter associada à imagem de Terezinha a noção de uma “nova forma” de se

fazer política, em contraposição à imagem de Roque e de seu grupo político,

atrelados simbolicamente a uma “velha forma” de se governar. Na edição de

n.º 743, numa lógica caprichosamente contrária ao que vinha acontecendo, é

interessante perceber como o editorial irá desconstruir aquela imagem

repisada de Terezinha Ramos (de um “novo modelo” político) para então

(re)associá-la/ligá-la à imagem de Roque e seu grupo, colocando, assim, todos

em pé de igualdade. Assim, podemos dizer que temos dois grandes momentos

na argumentação desenvolvida pelos editoriais, a saber, o elogio e o vitupério

de Terezinha Ramos, numa dinâmica de associação/dissociação retórica regida

pelos ventos políticos instáveis do município.

3 Editorial 1: O elogio de Terezinha

Como se pode notar pelo próprio texto, contávamos com apenas 25 dias

do novo mandato de Terezinha Ramos. Nesse editorial, podemos ressaltar,

inicialmente, dois tipos de logos-raciocínio que buscam fundamentar o real, a

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saber, o modelo e o exemplo2. No primeiro parágrafo, fazendo uso do discurso

polifônico indireto, o editorialista encena/reporta uma série de

questionamentos atribuídos à vox populi (as tais “cobranças, cobranças e

cobranças”), relativos ao início do mandato de Terezinha. O editorial, ao

afirmar, diante de tais questionamentos, “acho ainda muito cedo para

qualquer avaliação”, busca mostrar-se prudente, ponderado e/ou cauteloso,

propondo um tempo de “6 meses” como uma cronologia ideal para que

qualquer governo possa ser avaliado de modo não precipitado. O referido

tempo paradigmático, tendo já funcionado supostamente em outras

“circunstâncias felizes” (não mencionadas no texto), é transposto, pelo

editorial, para a situação política marianense, inequivocamente como um

modelo e um exemplo a serem seguidos pela população. Pode-se cogitar que,

fundamentando o real à sua maneira, tal artifício retórico serviria como um

elemento amenizador da situação de Terezinha, que “está no mandato à

apenas 25 dias”.

Com este argumento pelo modelo e/ou exemplo, chega-se (e justifica-se)

à tese central do texto, a saber, a de que “o povo deve ter paciência nesse

início de mandato”. É interessante observar, ainda com o uso das

interrogações e dos questionamentos polifonicamente atribuídos ao povo, o

uso de uma espécie de “contradição ou incompatibilidade ad hominem”

forjada pelo discurso. Expliquemos. Direcionando à população leitora a sua

própria voz encenada textualmente (início do editorial), constrói-se uma

incompatibilidade política (e até mesmo moral) entre o “comportamento do

povo” diante de Terezinha, por um lado, e o seu modo de agir e de se

comportar outrora, durante o mandato de Roque. Em outros termos, como é

dito no editorial, “todos querem resposta em apenas 25 dias de mandato,

embora no governo de Roque Camello tenham tido paciência durante um

ano”. Tal contradição funcionaria, em termos de efeitos de sentido, como uma

crítica velada à população, ao seu comportamento, ou seja, um “quase

recurso” da ordem do ad hominem, que poderia fazer recair sobre os seus

interlocutores a alcunha de praticantes da injustiça e da incoerência. Trata-se

de mais um argumento, da ordem do logos, posto a justificar a tese de que “o

2 Para Perelman (1987, p. 258), “os argumentos pelo exemplo e pelo modelo, assim como o argumento pela analogia, generalizam o que é aceito a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem para outro domínio o que é admitido num domínio determinado”. Ambos os tipos de argumentos servem para fundamentar a estrutura do real.

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povo deve ter paciência nesse início de mandato”. A contradição incitaria esse

comportamento político (de cautela) apostando na capacidade de autocrítica

da comunidade, ou melhor, por chamá-la à “razão”, denunciando uma linha de

ação no mínimo suspeita. Vista de outro ângulo, ou melhor, desdobrando-se

em ethos, a encenação dessa incompatibilidade, mais uma vez, buscaria

construir a imagem de um Jornal/editorialista “prudente”. Já como pathos,

serviria para “remediar a cólera”, atuando no sentido de acalmar os ânimos e

a ansiedade popular, ávida por mudanças. Em suma, efeitos variados e

favoráveis à nova Prefeita empossada.

Outra demonstração aparente presente no editorial – mais um aspecto

do logos-raciocínio – estaria, na terminologia de Perelman & Olbrechts-Tyteca

(2002), no uso do chamado argumento por inclusão ou divisão, que explora

certas operações mentais de contiguidade. Segundo Wachowicz (2010, p.

109), ao resumir tal artifício:

[...] esses argumentos apelam para o raciocínio das partes pelo todo, ou do todo pelas partes. A inclusão toma elementos menores e suas propriedades e os inclui no maior, que passa a ter as mesmas propriedades. A divisão faz o contrário: toma o todo e suas propriedades e o divide em partes, que passam a receber as mesmas propriedades do todo.

Notamos tais artifícios, principalmente a inclusão, a partir do momento

em que o editorial nos afirma o seguinte fato favorável à Prefeita recém-

empossada: “realmente a população já está vendo algumas melhorias”. A

partir daí, enumera-se uma série de ações particulares da Prefeitura que

funcionariam como argumentos para demonstrar a eficácia do grupo de

Terezinha Ramos, que “já”, em apenas 25 dias de mandato, realizou alguns

feitos (por exemplo, “acabaram as multas [trânsito] abusivas do governo

anterior”, etc.). Dessa forma, apresentam-se-nos “elementos menores” e

fatos isolados que, avaliados de forma positiva, fundam uma imagem

consequentemente favorável “do todo”, ou seja, do governo de Terezinha

Ramos em sua inteireza.

Enfim, notamos que as melhorias e fatos positivos do mandato de

Terezinha se dão sempre em relação ao “governo anterior”. Mantém-se,

assim, veladamente, nesse editorial em específico, a dissociação recorrente já

criada pelos editoriais precedentes: Terezinha, de um lado, vinha sendo posta

como a representante de um “novo modelo de política” (fato positivo), e

Roque, de outro, como o representante do “velho modelo” (momento

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retrógado e superado). Essa dissociação entre Terezinha e Roque, outra

marca contumaz do logos argumentativo, foi construída mais incisivamente

nas edições de números anteriores do Jornal Ponto Final (728, 731, 732, 733 e

735). No editorial em questão (737), ela é reforçada de modo mais sucinto,

mostrando os feitos de Terezinha em 25 dias de mandato em contraposição ao

governo de Roque. Este, em 1 ano (dado como improdutivo), não teria feito o

seu “dever de casa”, como nos mostra o editorialista: “acho ainda muito cedo

para qualquer avaliação [de Teresinha], como também acho um ano muito

tempo para acertar a casa [Roque]”.

Interessante é perceber como, a partir da edição de número 741, essa

dissociação é desconstruída pelo editorial ao sabor dos acontecimentos

políticos (as denúncias contra Terezinha e sua eminente saída da Prefeitura). É

na edição 743, no entanto, que notamos a virada completa na argumentação

do editorial, quando este passa a associar, e mesmo a igualar, a imagem de

Terezinha à de Roque, evidenciando, assim, outro ponto de vista acerca dos

fatos políticos analisados pelos editoriais anteriores. Em outros termos, o

jornal passa a associar o que ele mesmo, pouquíssimas semanas atrás,

dissociara ardentemente: Terezinha Ramos e Roque Camelo. Vejamos.

3 Editorial 2: O vitupério de Terezinha

No editorial 743, tudo começa pelo apelo ao sentimento popular, o

argumento ad populum, utilizado visivelmente como estratégia com o título

“o povo não aguenta mais”. Buscando, em tom indignado, se alinhar ao

clamor popular por mudança, em função das reviravoltas políticas da cidade (o

“entra e sai” de prefeitos e denúncias efusivas de corrupção), o editorial muda

repentinamente a sua própria “opinião” acerca dos fatos que vinha

insistentemente reportando. Já no primeiro parágrafo, o texto procura

desfazer a dissociação que fora a base de sua própria argumentação até o

presente momento: a de que Terezinha Ramos (a “nova política”) era o

oposto de Roque (a “velha política”), o que reforçara a conhecida dicotomia

entre Ramistas e Cotistas3. Subitamente, a partir de agora, “Terezinha Ramos

3 Os adjetivos Ramistas e Cotistas servem para designar a oposição política existente em Mariana atualmente. Ramistas são os partidários de João Ramos (PTB), prefeito por três vezes, como já apontamos, e Cotistas são os partidários de Celso Cota (PSDB), prefeito durante os mandatos de 2001-2008. Vencedor nas urnas em 2012, Celso Cota é atualmente o prefeito de Mariana. Nesses editoriais, os termos Ramistas e Cotistas são assimilados, respectivamente, às figuras de Terezinha

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entra e começa a mesma novela”. É interessante notar como a própria língua

(o logos-palavra/frase/texto) vem instituir o logos-raciocínio, (re)associando,

assim, Terezinha a Roque: “a novela começou novamente”, “a mesma

novela” (1º parágrafo), “o trânsito continua o mesmo caos”, “a mesma

desculpa” (3º parágrafo), “e assim continuará mais um governo igualzinho ao

de Roque Camelo (4º parágrafo). Entre advérbios, adjetivos e diminutivos

enfáticos, dentre outros recursos, o discurso demonstra (ou parece

demonstrar) que Terezinha e Roque seriam, na verdade (ou numa “verdade

aparente”), dois lados da mesma moeda: o níquel doloroso/continuísta da

estagnação marianense, incluindo aí a precariedade das promessas e dos

serviços públicos em geral, além da não transparência e irregularidades

administrativas. O mesmo “real” é (re)fundamentado.

No terceiro parágrafo, o editorial refere-se novamente a um modelo já

proposto anteriormente, ou seja, o tempo ideal de 6 meses para que qualquer

administração possa ser apreciada: “sempre falei que dois meses ainda é

muito pouco para se fazer avaliação do governo. Mas temos que admitir que

não teve nada de impacto nestes dois meses [de Terezinha Ramos]”. É

possível notar, aqui, que o elemento adversativo “mas” é o grande divisor de

águas, no sentido de desconstruir outro raciocínio esboçado anteriormente

pelos editoriais (o tempo-modelo de 6 meses), que é “desempossado”, agora,

pelo critério necessário do “impacto”, posto como termômetro das boas

administrações. Nessa toada, o editorial segue definindo Terezinha Ramos de

forma inusitadamente negativa. Note-se o tom irônico e de deboche que o

texto toma no momento em que fala da policlínica, ainda no terceiro

parágrafo: “até a Policlínica, que seria o carro chefe do governo de Terezinha,

que teria atendimento 24h e até cafezinho, por enquanto nada”.

No quarto parágrafo, é interessante ressaltar, ainda, outra mudança de

comportamento do editorial em relação aos números anteriores. Após

salientar, referindo-se a Terezinha Ramos, que “assim continuará mais um

governo igualzinho ao de Roque Camelo”, o editorialista faz uso de alguns

questionamentos polifonicamente extraídos da vox populi, mas, desta vez,

sem problematizá-los ou insinuar veementemente o seu teor de precipitação

política, como foi feito no editorial 1, analisado anteriormente. É nesse Ramos (mulher de João Ramos e sua sucessora na política) e de Roque Camelo (sucessor político de Celso Cota em 2008). Roque foi também vice-prefeito de Celso durante o mandato de 2005-2008.

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sentido, e positivamente, que “as perguntas continuam as mesmas: qual é a

real situação da prefeitura? Quanto que a prefeitura arrecada por mês? Cadê a

auditoria? Cadê a prestações de contas? (...)”. Nesse sentido, além do editorial

desconstruir a dissociação elaborada nos números anteriores (entre Terezinha

e Roque), o tempo-modelo de 6 meses para se avaliar uma administração

(substituído pelo critério “impacto”), ele desconstrói, também (ou lega ao

esquecimento ou irrelevância), a pretensa incompatibilidade do

comportamento do povo, que, diante do governo de Roque, não protestara

durante um ano, mas, diante do governo de Terezinha, já tecia reclamações

em apenas 25 dias de mandato. Sendo assim, o jornal forja um alinhamento

aos anseios populares, legitimando toda e qualquer indignação da

comunidade marianense diante dos políticos locais, todos associados, pelo

menos neste momento, ao atraso do município.

Podemos cogitar que, no manejo cambiante do logos, entre construções

e desconstruções de demonstrações verdadeiras ou aparentes, o jornal busca

resguardar o seu ethos, mesmo que “desastradamente” e em tão pouco

tempo entre um editorial e outro. Assim, embora mude de opinião acerca dos

políticos locais, ao sabor das circunstâncias e eventos turbulentos, o que deixa

claro o caráter circunstancial de toda argumentação, o editorial não prescinde

do seu objetivo maior, que é convencer o seu leitor de que o jornalismo feito

por esse órgão de imprensa é “imparcial”, no sentido de não ter vergonha de

mudar, se necessário, a própria opinião diante da “verdade” dos fatos. Tal

estratégia visaria persuadir o leitor de que aquele é um jornal que vale a pena

ler e, consequentemente, comprar. Mas tudo isso são apenas algumas

hipóteses que tecemos aqui, uma vez que não conhecemos bem,

“antropologicamente”, os bastidores da política marianense e as efetivas

relações, naquele município, entre mídia e poder. Como já ressaltamos, nosso

objetivo foi apenas perceber como a conjuntura política marianense – uma

verdadeira “novela” –, foi referenciada, construída e reconstruída por aqueles

editoriais, no vai e vem de escândalos, de denúncias e de prefeitos, e como,

em função de tudo isso, raciocínios foram caprichosamente construídos e

reconstruídos. Fica evidenciada, assim, a importância do logos-raciocínio como

uma etapa, dentre outras, das análises discursivas.

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Considerações finais

Sobre as análises dos editoriais, e conforme os objetivos teóricos deste

artigo, buscamos demonstrar o funcionamento das provas retóricas (ethos,

pathos e logos) e, principalmente, dos “tipos de argumentos” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, 2002) como partes de uma “ferramenta teórica”

possível para se apreender o logos-raciocínio, visto, aqui, como uma

razoabilidade construída pelo discurso. Em termos gerais, entendemos o logos

em uma dupla acepção semântica (discurso e raciocínio), sendo o discurso

toda manifestação verbal ou escrita capaz de influenciar, manifestada por um

sujeito numa determinada situação; os raciocínios, por sua vez, seriam as

projeções argumentativas de uma série de operações mentais (no caso

presente, as tipologias de Perelman & Olbrechts-Tyteca foram uma opção

para se apreendê-las). Enfim, seja como “palavra/texto/discurso”, seja como

“raciocínio”, o importante é salientar que um é condição para a existência do

outro e, além disso, ambos seriam vértices semânticos complementares para a

manifestação das outras provas retóricas (o ethos e o pathos). Nesse sentido,

as demonstrações verdadeiras ou aparentes, sejam elas quase-lógicas,

fundadoras ou fundadas na estrutura do real, se desdobram enunciativamente

em aspectos que nos levam a especular sobre certa imagem do orador e, até

mesmo, a imagem que este faz de seu auditório. Não só isso: depreende-se

também uma série de emoções visadas pelos editoriais em relação ao seu

público leitor, proposições de teses e comportamentos. Tudo integra um

mesmo processo.

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth. L'argumentation dans le discours. Paris: Armand Colin, 2010. AMOSSY, Ruth. Contribuição da Nova Retórica para a AD: o estatuto do logos nas ciências da Linguagem. In: EMEDIATO, W.; LARA, G. M. P. (Org.) Análise do discurso hoje, v. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 11-28. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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BRETON, Philippe; GAUTHIER, Gilles. História das Teorias da Argumentação. Lisboa, Editorial Bizâncio, 2001. GALINARI, Melliandro Mendes. A polissemia do logos e a argumentação. Contribuições sofísticas para a Análise do Discurso. EID&A – Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 1, p. 93-103, nov. 2011. GUTHRIE, William Keith Chambers. A History of Greek Philosophy. Cambrigde: University Press, 1967. v. 1 MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2008. p. 69-92. PERELMAN, Chaïm. Argumentação. Enciclopédia Einaudi, vol. 11. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. p. 234-265 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. WACHOWICZ, Teresa Cristina. Análise linguística nos gêneros textuais. Curitiba: Ibpex, 2010.

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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ANEXOS4

Anexo I - Edição de número 737, de 09/04 à 15/04/2010

Editorial – Cobranças, cobranças e cobranças

Cadê a auditoria, cadê a prestação de contas, cadê a Policlínica nova, cade a

Prefeitura nova, cadê o novo Giásio Poliesportivo, cadê os 23 milhões que o

Roque deixou em caixa, cadê o governo de Terezinha? Por que o nepotismo

continua, por que tem muito parente no novo Governo, por que ninguém fala

nada, por que ainda não houve mudanças, por que fulano de tal continua no

governo, por que Terezinha está numa redoma, por que Terezinha está blindada,

por que não deixam Terezinha administrar? Todos querem resposta em apenas

25 dias de mandato, embora no governo de Roque Camello tenham tido

paciência durante um ano. Acho ainda muito cedo para qualquer avaliação, como

também acho um ano muito tempo para acertar a casa. É normal que em

qualquer governo sejam necessários uns seis meses para que tudo possa se

definir. Como também é provável que haja erros e acertos no início de um

mandato.

Muita coisa pode mudar. Isso tudo é normal. Mas duas coisas são certas:

primeiro o povo; o povo tem de ter paciência neste início de mandato, até

porque o próprio grupo de Terezinha, acredito eu, está em fase de adaptação, e

ela mesma já deixou bem claro que só fica em seu governo quem fizer o bem

para os marianenses. Realmente a população já está vendo algumas melhorias,

como por exemplo: acabaram as multas (trânsito) abusivas do governo anterior;

o tratamento dos funcionários para com o povo está sendo constantemente

elogiado; algumas ruas sempre esquecidas estão sendo asfaltadas; o problema

do abastecimento de água, que antes gerava reclamações diárias, hoje quase não

existe; o controle do trânsito em festas comemorativas foi efetivo; o tapete na

rua direita na Semana Santa, que também foi bastante elogiado.

Até a proibição definitiva de inovações de terras hoje está sendo bem

aceita pela população. Outra coisa é certa: para um bom governo, além do

compromisso de cada secretaria, diretores e funcionários, é muito importante a

4 Optamos pela fidelidade à grafia original dos editoriais, mesmo quando não se enquadra ao português padrão.

GALINARI, Melliandro Mendes; QUEIROZ, Marcos Vieira de. O logos como razoabilidade argumentativa: contribuições da Nova Retórica para a Análise do Discurso. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p.162-179, dez.2013.

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participação popular. Um bom governo só vai andar bem a partir do momento

em que trabalhar junto com o povo, com a vontade do povo. Não adianta fazer

prédios faraônicos se o que a população quer é bom atendimento, saúde,

transporte, educação, turismo entre outros. Hoje o povo quer é uma Prefeitura

bem administrada, sem politicagem.

Estive na Câmara semana passada e estive analisando o aumento que a

prefeita está dando para os funcionários. Acho até louvável a preocupação do

presidente da Câmara, Raimundo Horta, quanto aos recursos para isso. A

iniciativa foi ótima, isso sem dúvidas, e quem agradece é o comércio local, que

começa a ver o dinheiro da cidade circular dentro de nosso território. Parabéns à

prefeitura e aos vereadores que aprovaram a iniciativa, embora alguns maldosos

deixaram claro que os edis votariam contra qualquer projeto do novo governo.

Foi bem transparente a postura dos vereadores na semana passada, quando

aprovaram praticamente todos os projetos da Prefeitura, que são de interesse

dos marianenses. Agora é só esperar para ver, com certeza o grande termômetro

do governo de Terezinha será o povo de Mariana.

Anexo II - Edição número 743 de 21/05 à 27/05/2010

Editorial – O povo não aguenta mais

A novela começou novamente. No ano passado tivemos um governo

turbulento do senhor Roque Camelo que nada fez por Mariana. Recurso sobre

recurso, se manteve pouco mais de um ano no governo e nada fez por Mariana.

Nem as obras do Celso Cota foram terminadas. Terezinha Ramos entra e começa

a mesma novela. Não se fala em outra coisa, “se fica ou se sai”. A justiça, assim,

fica totalmente perdida e sem credibilidade perante a população, “porque é um

tirando o poder (autoridade) do outro”.

Segundo informações, o judiciário tem mais de 1.000 processos parados,

mas pelo que vimos os políticos tem prioridade máxima, pois a cada ½ hora uma

liminar invalida outra. Há duas semanas que venho tentando fazer uma

entrevista com o juiz de nossa comarca, ou até mesmo para conversar sobre a

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real situação desta novela, mas infelizmente, o mesmo só tem tempo para

disputar os poderes da liminar. Nem retorno tivemos.

Enquanto isso, a cidade continua estagnada. Você não tem nenhuma

informação, ninguém sabe de nada, não pode fazer nada. Não se fala em nenhum

projeto social para a cidade, o lixo continua um lixo, o trânsito continua o mesmo

caos. Esta semana tivemos a denúncia que a Policlínica está infestada de

carrapatos. E sempre a mesma desculpa, “a oposição não deixa a gente

trabalhar”.

Eu acredito que qualquer governo, para colocar a casa em ordem,

precisaria em média, de 06 meses. Sempre falei que dois meses ainda é muito

pouco para se fazer qualquer avaliação do governo. Mas temos que admitir que

não teve nada de impacto nestes dois meses de governo. Até a Policlínica que

seria o carro-chefe da campanha de Terezinha, que teria atendimento 24h e até

cafezinho, por enquanto nada. E para piorar, fizemos algumas perguntas ao

governo sobre a administração, mas até agora não obtivemos resposta. É o que

falamos no editorial de semana passada: a culpa é do Rômulo Passos. Nós é que

somos incompreensíveis, nós estamos contra o governo, nós é que mudamos de

partido. E assim continuara mais um governo igualzinho ao de Roque Camelo. E

as perguntas continuam as mesmas: Qual é a real situação da prefeitura? Quanto

que a prefeitura arrecada por mês? Cadê a auditoria? Cadê a prestações de

contas? Cadê as associações de Bairro? Cadê a Igreja? Cadê os candidatos futuros?

Cadê os partidos políticos? Cadê a associação comercial? Cadê o povo de Mariana?

Cadê os projetos falados em campanha?

Agora afeta o comércio de Mariana, não se vende mais nada. E o que é pior

é o medo de vender para funcionários públicos, fornecedores e Prefeitura por

medo de não receber, devido às mudanças de governo. Acho que o legislativo, o

Executivo e o Judiciário precisam, urgentemente, dar uma resposta definitiva

para todas essas situações, por que o povo não aguenta mais.

Quando estava fechando este editorial, terça-feira as 21h fomos informados

que o Raimundo assumiria a Câmara no dia seguinte. Como diz o Boris, ISTO É

UMA VERGONHA PARA MARIANA.

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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PIETÀ, DE BELLINI, E PIETÀ WITH COURTNEY LOVE, DE

LACHAPELLE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA E COMPARATIVA

Renata Aiala de Melloi

Resumo: Propomos uma análise discursiva e comparativa de duas obras de arte: a pintura renascentista intitulada Pietà (1505), do veneziano Giovanni Bellini (1430-1516), e a fotografia surrealista intitulada Pietà with Courtney Love (2007), do norte-americano David LaChapelle (1963-). Algumas das razões e objetivos que justificam essas escolhas são o que há em comum e de diferente entre as duas obras, as relações de intericonicidade e intergenericidade, dentre outros elementos técnicos. As obras serão comparadas levando-se em conta seus contextos, tempos, espaços, sujeitos e sentidos específicos. Valendo-nos do instrumental teórico da Análise do Discurso, utilizamos os estudos sobre a imagem de Aumont (2008) e sobre a simbologia das cores de Guimarães (2004), da grade de análise de imagens de Mendes (2012), além de parte do instrumental teórico oferecido pela Semiolinguística de Charaudeau (2008), dos estudos de Plantin (2010), Charaudeau (2010), dentre outros, sobre as emoções no discurso e outros conceitos afins, tais como ethos, pathos e imaginários sociodiscursivos. O presente estudo nos leva a inferir o quanto a Análise do Discurso pode ser frutífera na análise de textos pictóricos. Com essa reflexão, não pretendemos esgotar a análise das duas imagens. Na busca por um equilíbrio analítico-discursivo, um equacionamento entre o universo situacional e o discursivo, a vida e a obra dos dois artistas, o interno e o externo dessas obras, o subjetivo e o objetivo que elas propõem, a alteridade e a individualidade em interação, acreditamos ter integrado pensamentos, crenças e opiniões, em uma constelação de sentidos que nos permite uma conclusão temporária, inacabada.

Palavras-chave: Pietà. Pietà with Courtney Love. Análise do Discurso. Imagem.

i Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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Abstract: We propose a discursive analysis and comparison of two works of art: a Renaissance painting Pietà (1505), from the Venetian artist Giovanni Bellini (1430-1516) and surrealist photograph Pietà with Courtney Love (2007), from the American David LaChapelle (1963 -). Some of the reasons and objectives that justify these choices are the differences and similarities between the two works, like the intericonicity and intergenericity, among other technical elements used in both. The works will be compared considering their contexts like time and place, subjects involved etc. The theoretical discourse analysis tools we used are the studies about image of Aumont (2008), the symbolism of colors of Guimarães (2004), the images grid analysis of Mendes (2012), and the Semiolinguistic of Charaudeau (2008). Studies by Plantin (2010), Charaudeau (2010), among others, on emotions and other related concepts such as ethos, pathos and socio-discursive imaginary. With this paper, we do not intend to exhaust the analysis of the two images. In search for an analytical discourse balance, an equation between situational and discursive universe, life and work of the two artists, the internal and external of these works, the subjective and the objective they propose, we believe we have integrated thoughts, beliefs and opinions in a constellation of meanings that allows a temporary, unfinished conclusion.

Keywords: Pietà. Pietà with Courtney Love. Discourse Analysis. Image.

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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Introdução

Em um primeiro momento, analisamos a pintura de Bellini, para, em

seguida, abordar a fotografia de LaChapelle. Em cada uma dessas peças,

trataremos de sua dimensão situacional: os sujeitos do discurso/texto1, o

gênero, o estatuto e os efeitos de real, de ficção e de gênero, além de alguns

elementos icônicos que as compõem. Na sequência, estabeleceremos algumas

relações entre as duas obras.

Ainda que não caiba discutir o que é “arte”, visto que fugiríamos de

nossos objetivos, vale registrar que ela é uma atividade humana ligada a

manifestações de ordem estética. Isso porque a arte, incluindo-se aí, a pintura

e a fotografia, são consideradas discursos, textos, signos e, como tal,

produzem sentidos. A pintura, a fotografia, enfim, a imagem2 é, aqui, vista

como um produto que significa, que cria mundos possíveis, registra ideias,

pensamentos, fatos e desperta sensações, sentimentos, emoções. Nesse

sentido:

Qualquer que seja ela, a imagem procede de necessidades profundas da humanidade: se representar, representar sua interioridade, representar os mundos visíveis e invisíveis, mostrar suas representações, criar assim um universo que redobra, desdobra, existe paralelamente ao universo original, para o dominar, o compreender, apropriar-se dele, exorcizá-lo, homenageá-lo, sentir prazer, para afirmar neste universo sua existência específica. (JOLY et al, 2008, p. 193):

Desse modo, entendemos que a imagem comunica, produz e veicula

sentidos, é capaz de oferecer um olhar das representações sociais do mundo,

das pessoas, suas crenças e sentimentos, dos acontecimentos, sejam eles

reais ou fictícios.

1 Não cabendo discutir aqui os conceitos de texto e discurso e suas (de)limitações, algumas vezes tomamos um pelo outro. Para uma melhor visão dessa questão, sugerimos a leitura de Charaudeau (1983, 2001, 2008) e Maingueneau (2008), por exemplo.

2 O conceito de imagem é bastante complexo, e a bibliografia sobre a questão é vasta. Para entender mais e melhor sobre o assunto, sugerimos a leitura de Aumont (1993) e Panofsky (1979).

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1 Pietà, de Giovanni Bellini

Imagem 1- Pietà, de Giovanni Bellini

Segundo Charaudeau3, tanto no processo de produção quanto no de

recepção de um texto, é importante levar em conta os universos situacionais e

linguístico-discursivos nos quais esse texto e seus sentidos são

produzidos/interpretados. O sujeito comunicante, aquele que se vale de

estratégias discursivas apropriadas devido ao que se deve, ao que se pretende

e se espera dizer, é Giovanni Bellini, cidadão italiano, veneziano. Ao produzir

sua arte, Bellini aciona uma instância enunciadora, um desdobramento desse

sujeito comunicante: responsável também por materializar, linguisticamente,

suas estratégias.

Bellini pinta seus quadros para que sua arte seja admirada e interpretada

por alguém. Desse modo, ele imagina seus destinatários, sujeitos idealizados.

Todos aqueles que já tiveram contato com a obra de Bellini são tidos como

sujeitos interpretantes, dentre os quais nós que, ao produzirmos esse artigo,

nos debruçamos sobre a obra. Aqueles que se debruçam sobre o texto

realizam a recepção e a interpretação em razão de suas obrigações e

intenções decorrentes dessa situação de comunicação específica. Nesse caso,

3 A maioria das informações contidas nesse artigo a respeito da Teoria Semiolinguística parafraseia o que Charaudeau expõe no conjunto de sua obra.

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nos tornamos interlocutores, destinatários (ideais e/ou empíricos) nesse

processo interacional específico proposto, criado por Bellini.

Esse tipo de contrato comunicacional estabelecido pela pintura

geralmente não permite o contato direto entre os parceiros, não há um

diálogo direto entre eles no sentido físico. O contato se dá através do texto,

que intermedia o contato entre os parceiros. Desse modo, o contrato

comunicacional, quando aplicado à pintura, não pode ser assimilado ao

contrato comunicacional ordinário. Cabe registrar que, para cada pintura

produzida e para cada interpretação feita, haverá uma situação de

comunicação única. Assim, muda-se os sujeitos envolvidos e/ou o texto, muda-

se o tempo, o espaço, os sentidos, muda-se o quadro comunicacional.

Essa forma específica de Bellini fazer arte e a interpretação de sua obra

nos leva a pensar que, tanto na produção quanto na recepção de uma pintura,

é preciso considerar o gênero textual/discursivo/pictórico4 no qual ela se

inscreve. Isso porque todo texto, pictórico ou não, verbal ou não, é uma

unidade sempre pertencente a um gênero do discurso, algo que possui valor

de enunciado como um todo. Os gêneros nos quais os textos/discursos se

inscrevem são entidades dinâmicas, ligadas a domínios discursivos, ao

funcionamento da sociedade e sua capacidade de categorizá-los, seja por

critérios estruturais, formais, seja por critérios situacionais, observando-se os

dispositivos comunicativos sócio-historicamente definidos (MARCUSCHI, 2002;

2008; MAINGUENEAU, 2008).

Poderia se supor que uma pintura não causa dificuldade de

reconhecimento de gênero. Isto porque uma pintura é, grosso modo, uma

técnica que utiliza pigmentos em forma líquida para colorir uma superfície,

atribuindo tons e texturas, sendo que esta superfície pode ser tela, papel...

Assim sendo, a cor é o elemento essencial da pintura. Temos, aqui, uma

definição bastante simplista do gênero pintura. Sabemos, no entanto, que ele

é bastante rico, variado e complexo.

Para abordarmos a questão do gênero pintura, devemos considerar, na

sua totalidade, a radical diversidade das produções. Daí que o próprio

entendimento do conceito de gênero para essa arte é bastante complexo,

4 Por também não caber aqui discutir os conceitos de gênero textual, gênero discursivo e gênero pictórico, algumas vezes, tomamos um pelo outro, mesmo conscientes de suas (de)limitações e dos riscos que essa atitude acarreta. Para entender mais e melhor sobre o assunto, sugerimos a leitura de Marcuschi (2002; 2008) e Machado & Mello (2004).

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problemático, visto que nenhuma pintura pode ser situada fora desse gênero.

Ao tratarmos do gênero pintura, deparamos com questões de terminologia,

organização formal, convenções, fatores intuitivos, intencionalidades, dentre

outras questões.

Percebemos que Pietà, de Bellini, oferece indicações de qual escola

artística a obra e o autor pertencem: tipo de pintura, estilo do pintor, traços,

cores, temáticas, material, etc. Até mesmo o universo situacional no qual a

obra foi produzida nos ajuda a ancorá-la em uma corrente artística, em um

gênero como, por exemplo, o local (Veneza), a data de produção da peça

(1505), o material utilizado (óleo em tela) e sua dimensão (65cm x 90 cm). No

caso de Bellini, temos o gênero pintura ou pintura renascentista, ou, ainda

pintura renascentista veneziana.

Bellini é tido como um artista de vanguarda, por ter conduzido e

promovido a arte veneziana a uma nova fase, rompendo, assim, com uma

tradição florentina vigente. Com Bellini, surge uma pintura essencialmente

“pinturesca”, de um lirismo mais suave, enfatizando mais as cores e as

nuanças de luz, uma arte menos preocupada com a forma escultórica e com o

delineamento bem marcado (BECKETT, 1997, p. 106). Segundo dados

recolhidos em textos e sites especializados5, vimos que Bellini recorre à técnica

da perspectiva e que sua pintura coloca o homem no centro da natureza,

trabalhando, de forma extraordinária, a cor e a luminosidade. O pintor foi

gradualmente fazendo desaparecer as linhas de contorno, que deram lugar a

transições de luz e sombra, estabelecendo uma perfeita harmonia entre

figura, ambiente, luz e o próprio ar.6

Baseado nos estudos de Charaudeau (1983), Mendes (2008) afirma que

no interior de cada gênero é possível que haja um entrelaçamento de efeitos

de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero. A autora define efeitos de real

como sendo um jogo estratégico entre os circuitos interno e externo do ato

de linguagem, podendo ser assinalados...

[...] por objetos, personagens e eventos que são apresentados como se eles existissem por si próprios, tendo valor referencial (cópia da realidade), ou como se eles fossem transparentes face a um mundo verdadeiro, ordenado,

5 Cf. http://imagesrevues.revues.org/1899, http://www.aparences.net/ecoles/la-peinture-venitienne/venise-autour-de-giovanni-bellini/, http://sar2.epfl.ch/espace_et_lumiere/Peinture.pdf e Erlanger (1953).

6 Cf. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/durer/bellini.htm.

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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organizado e objetivado por um certo consenso que é evidenciado” (MENDES, 2008, p. 206).

Pietà mostra-se repleta de efeitos de real. O ilusório, o figurativismo é

próprio da pintura renascentista, ou seja, a representação do mundo, das

pessoas, dos objetos e dos cenários são apresentados como se fossem a

realidade propriamente dita. Na imagem 1, temos a simulação de um mundo

típico do discurso ficcional que leva o espectador a estabelecer um contato

direto com o mundo real. No plano de fundo da tela, tem-se Veneza, com seus

edifícios; no primeiro plano, tem-se a Virgem Maria com Jesus morto em seu

colo. É interessante observar que o cenário e as figuras de Jesus e Maria, com

suas roupas, posições e expressões podem ser interpretadas tanto como

efeitos de real quanto de ficção. Isso porque para alguns a história de Cristo é

algo que aconteceu no mundo real, e para outros essa história existe

enquanto literatura, ficção. Desse modo, são os saberes de crença dos sujeitos

interpretantes que definirão por um ou por outro dos efeitos (Charaudeau,

2008). Se o espectador for cristão, muito provavelmente ele lerá e

categorizará a obra de Bellini sob os efeitos de real. Caso contrário, se o

espectador for ateu, por exemplo, possivelmente ele perceberá Pietà sob os

efeitos de ficção.

Tratando da questão cromática, temos Guimarães (2004, p. ii), que

defende que a universalidade das cores possui uma grande força comunicativa

e cultural, assim como um grande poder de apelo, além de ter “raízes

profundas e complexas, sempre associadas às práticas culturais, muito além

dos processos comunicativos meramente pragmáticos.” Ainda segundo

Guimarães (2004), a construção dos sentidos é uma construção social,

interativa e temporal, enfim, contextual.

Na imagem 1, o foco de luz é mais perceptível no rosto e no manto de

Maria, assim como no corpo de Jesus. O feixe de luz se encontra na diagonal,

como se saísse dos raios do sol. Vale ressaltar que o rosto de Jesus não entra

nesse foco de luz, apenas seu corpo. A cor azul contrasta com as demais cores

pasteis. Sobressaem duas tonalidades de azul: a do céu, ao fundo, de um azul

celeste claro, e a da roupa de Maria, num tom mais forte, anil. Pastoureau

(2007, p. 26-31) trata da simbologia da cor azul, afirmando que:

En s’habillant de bleu dans les images, la reine du ciel contribue grandement à la promotion de cette couleur dans la société. Les rois eux-mêmes commencent à s’habiller de bleu (ce qu’ils n’ont jamais fait auparavant) et sont imités par les

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seigneurs puis par l’ensemble de la société. A la fin du Moyen Âge, le bleu est devenu une couleur de premier plan, une couleur royale et princière, une couleur qui se pose pleinement comme rivale du rouge. […] couleur de la foi […] couleur de la Vierge Marie (depuis le XIIIe siècle) […] Humilité du bleu, qui n’agresse pas. Couleur de la paix. [grifos nossos]

Quanto aos elementos relativos aos planos, ângulos e pontos de vista da

imagem, destacamos a leitura “piramidal” proposta por Aumont (2008), uma

vez que, ao observarmos uma imagem, a percorremos, de maneira quase

sistemática, com os olhos de um ponto a outro. Ao olhar a imagem, seguimos

os pontos mais iluminados do primeiro plano: a cabeça de Maria e os corpos

de Maria e Cristo. Segundo Aumont (2008, p. 151-152),

[...] foi a partir do Renascimento que essa analogia tornou-se mais frequente, com a metáfora da pirâmide visual, decorrente da noção de raio luminoso. [...] Esse cone estende-se pelos lados e de fato é relativamente informe. A noção de pirâmide visual corresponde, então, à extração, pelo pensamento, de uma parte do angulo sólido formado por esse cone – parte que tem por base um objeto ou região relativamente restrita, em direção ao centro do campo visual. A pirâmide visual é portanto, a cada instante, o ângulo sólido imaginário que tem o olho por cume e o objeto olhado por base.

Para além dos signos linguísticos, as emoções7 são percebidas e se

mostram presentes nos imaginários sociodiscursivos, nos saberes partilhados

e no universo de crenças dos sujeitos. Assim, Bellini escolheu universos de

crença específicos e os tematizou de determinada maneira, procedeu a uma

encenação particular, tudo em função do modo como ele imaginava seu

interlocutor, seu público e em função do efeito que esperava produzir nele. As

emoções evocadas na imagem estão, evidentemente, presentes nos

imaginários sociodiscursivos, sobretudo a compaixão. Percebemos, ainda, que

os imaginários sociodiscursivos não são rígidos, possuem mobilidade e não

apresentam a característica de querer estabelecer verdades. A obra de Bellini

buscou retratar esses imaginários presentes nos discursos que circulavam em

seu grupo social e serviam para demonstrar sua visão de mundo, da religião,

da crença, da vida de Cristo.

Na imagem 1, destaca-se a presença dos imaginários sociodiscursivos

relacionados ao universo religioso cristão e aos saberes de crença que

envolvem tal universo, como por exemplo, a questão da pureza de Maria, a

7 Há diversas correntes que estudam as emoções. Nesse artigo, seguimos a mesma posição da AD, segundo a qual deve-se abordar discursivamente as questões relativas às emoções, visto que essas devem ser objeto de estudo linguageiro e devem ser estudadas em uma perspectiva enunciativa (CHARAUDEAU, 2010).

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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crucificação de Jesus, a dor e o sofrimento de mãe e filho. Esse registro acaba

por compor o ethos de Jesus e Maria e até mesmo o pathos: Maria, que

representa uma imagem materna de devoção e misericórdia, apresenta-se

patemizada, sentindo dor, tristeza, compaixão pelo filho morto. Essas

emoções são endossadas por sua corporalidade e gestos (olhos fechados e o

modo como inclina a cabeça para baixo). Jesus, em seu estado, após ter

sofrido, sido crucificado e morto pelas mãos dos homens, patemizou tanto

Maria quanto nós, leitores de Bellini. Elas correspondem muito mais às

interpretações que fazemos dos acontecimentos, que têm como balizas

nossas histórias de vida, nossos conhecimentos a respeito da vida de Cristo,

nossas crenças, valores morais, posicionamentos diante das normas sociais

que nos regem etc., do que às reações puramente fisiológicas e mesmo

psicológicas diante desses eventos (LE BRETON, 2009).

2 Pietà with Courtney Love, de David LaChapelle

Imagem 2 - Pietà with Courtney Love, de David Lachapelle

A imagem 2 configura uma situação de comunicação concreta e um

quadro pictórico e comunicacional composto por sujeitos empíricos,

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socialmente reconhecidos: David LaChapelle, o fotógrafo8, e nós,

leitores/espectadores dessa fotografia. Sabemos que esse sujeito

comunicante nasceu em Connecticut, EUA, em 1956. Ele mostrou-se

aficionado pela fotografia desde os seis anos de idade, quando tirou suas

primeiras fotos, valendo-se de sua mãe, Helga, como modelo. Quando jovem,

estudou na North Carolina School of the Arts, na Arts Student League e também

na School of Visual Arts.9

LaChapelle tornou-se mundialmente célebre como fotógrafo ao produzir

peças coloridas, bizarras, irreverentes e provocativas para marcas famosas,

tais como L’Oréal, Diesel e Ford. O fotógrafo foi o responsável por centenas de

capas de revistas famosas como Vogue, Vanity Fair, Details, Interview e Rolling

Stone. Ele conheceu a fama também por fotografar pessoas famosas e

produzir capas para álbuns de artistas. LaChapelle chegou a ser descrito pelo

New York Times como o “Fellini da fotografia”. A Revista American Photo

inseriu o nome do fotógrafo entre os 10 mais importantes da fotografia

mundial. Em 1996, ele recebeu o prêmio de fotógrafo do ano, durante o VH-1

Fashion Awards. Atualmente, LaChapelle também cria e dirige clipes musicais

para cantores famosos. Cabe ainda ressaltar que a imagem 2 é capa de Heaven

to Hell (2006), um dos livros de LaChapelle que compõe uma trilogia. Os

outros dois livros são LaChapelle Land (1996) e Hotel Lachapelle (1999), além de

várias outras coletâneas.10

Percebemos que, ao produzir suas fotografias, LaChapelle, sujeito

comunicante, se desdobra em sujeito enunciador e assume a responsabilidade

por materializar, linguisticamente, suas estratégias. Ao produzir cada foto, ele

tem em mente alguns sujeitos destinatários que terão acesso a ela, depois de

veiculada sob as mais diversas formas e meios. Ser sujeito interpretante não é,

desse modo, tarefa fácil, para quem já seleciona, cria, constrói relações,

analisa, compreende, além, é claro, de dar configuração ao texto através de

sua experiência, de seu imaginário, de sua leitura de mundo. Se somos livres

para interpretar, por exemplo, a imagem 2, essa liberdade é cerceada por

pressões advindas tanto do próprio texto como do universo exterior a ele:

8 Embora afirmemos que o sujeito comunicante, nesse caso, é David LaChapelle, cabe registrar que essa instância é, na verdade, compósita. Ao vermos o making of dessa fotografia (http://www.youtube.com/watch?v=I9slSWbyFvg), vimos que são dezenas de pessoas envolvidas com o projeto assinado por LaChapelle.

9 Cf. http://magnno.wordpress.com/tag/biografia-david-lachapelle/

10 Cf. http://www.davidlachapelle.com/press/barb_metro.shtml

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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delimitações contextuais, situacionais, (meta)linguísticas, semânticas,

(meta)discursivas, semióticas, genéricas para ficarmos somente com algumas.

Dentre todas essas restrições, escolhemos a questão da genericidade para

falarmos um pouco mais sobre a imagem 2.

O entendimento do que é gênero permanece, até hoje, algo complicado,

visto que ele recai em terminologias tipológicas de classificação textual. Eles

padronizam a comunicação entre as pessoas, moldam, estruturam tanto a

produção quanto a recepção dos textos e condicionam os sentidos. No caso

do gênero fotográfico, há, ainda, o problema da extrema heterogeneidade de

textos, de categorias, de subgêneros que o compõem, o que acaba por

dificultar ainda mais suas delimitações. Citando Bazerman, Marcuschi (2005, p.

18) afirma que:

[...] apesar do nosso interesse em identificar os gêneros e classificá-los, parece impossível estabelecer taxonomias e classificações duradouras, a menos que nos entreguemos a um formalismo reducionista. Pois, as nossas identificações de formas genéricas sempre terão curta duração [...]

Ainda assim, podemos supor que uma fotografia não causa muita

dificuldade de reconhecimento de seu gênero, visto que ela é algo,

aparentemente, simples, conhecida de praticamente todas as pessoas.

Fotografar é, então, relativamente fácil, o difícil é qualificá-la, sobretudo em

sua genericidade. Não sendo especialistas em fotografia, nos perguntamos se

ela é uma técnica, um hobby, uma prática, uma arte... Segundo Barthes (1980,

p. 23-24),

[...] uma foto pode ser objecto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, experimentar e olhar. O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós que consultamos nos jornais, nos livros, álbuns e arquivos, colecções de fotografias. E aquele ou aquilo que é fotografado é o alvo, o referente, uma espécie de pequeno simulacro, de eidôlon emitido pelo objecto, a que poderia muito bem chamar-se o Spectrum da Fotografia, porque esta palavra conserva, através da raiz, uma relação com o “espectáculo” e acrescenta-lhe essa coisa um pouco terrível que existe em toda a fotografia: o regresso do morto. (grifos do autor).

Evidentemente, a fotografia, enquanto texto, tem vários usos e funções.

A princípio, de maneira simples, a fotografia pode ser definida como um

processo de fabricação de imagens sobre uma superfície sensível.

A história da fotografia se (con)funde, se mistura com a história da

máquina fotográfica e com as técnicas de confecção de fotos. No século XIX,

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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inventou-se o processo de colódio úmido, uma espécie de negativo da

fotografia. No século XX, vieram as câmeras objetivas, de alta qualidade,

reflex, APS, de lente, digitais, e também as fotografias coloridas, o Photoshop,

dentre outras técnicas.11

Desse modo, o gênero fotografia se (con)funde também com as técnicas

utilizadas, com os tipos, objetivos e funções: documental, de ação, midiática,

retrato, foto jornalismo, científica, comercial, aérea, macro, micro, de moda,

cinematográfica, preto e branco, colorida, publicitária, artística, tudo isso

formando uma espécie de categorizações ou de subgêneros do gênero

fotografia. Cabe ressaltar que a grande maioria dessas categorizações toma a

fotografia como representação objetiva, cópia fiel do real, um “fenômeno de

redundância” (BARTHES, 1980). Para alguns, a fotografia teria como função

eternizar os fatos como eles são (ou foram) e presentificá-los a cada leitura.

Há também aqueles que pensam (ROUCH, 2003) que a fotografia foi, é e

sempre será uma simples representação do real, uma ficção. Segundo o autor,

“a fotografia nunca foi a representação da realidade. Ela pode esboçar,

matizar, interpretar ou vicejar a realidade, mas, sempre será apenas uma foto;

fabrica uma história, mas não a vida” (ROUCH, 2003, p. 55). Outros, além de

não acreditarem na visão pretensiosamente realista da fotografia, muitas

vezes, a denunciam, a subvertem.

Pietà with Courtney Love é tida como objeto artístico, portadora de um

toque surreal, irreal, fantástico, ilusório. Uma foto saturada que mistura

fantasias, sonhos, exageros e non-sens com composições provocadoras,

inusitadas, além de carregada com cores fortes. Ela é tida como pertencente

ao gênero fotografia artística também porque nela percebemos toda uma

montagem cenográfica, ou seja, uma montagem cênica que demonstra um

desejo, a pretensão de ser arte pictórica. Entretanto, poderíamos, ao mesmo

tempo, dizer que se trata do gênero fotografia publicitária, visto que ela é

capa de um livro de LaChapelle. Ela pode ser lida também como gênero

fotografia religiosa cristã, visto que remete, como parte de seu próprio título

indica, a Pietà, ao sofrimento da Virgem Maria ao ter Jesus, seu filho morto, no

colo. Ela pode, ainda, pertencer ao gênero fotografia documental, visto que

possui pessoas e elementos que remetem ao drama vivido por uma família de

artistas (with Courtney Love).12

11 Cf. http://achfoto.com.sapo.pt/

12 Cf. http://davidlachapelle.com/

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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A imagem 2 é composta de tantos tipos de acessórios, de adereços,

dados, detalhes, informações, e, por conseguinte, provoca várias

possibilidades de sentidos, que ousamos mesmo afirmar que ela constitui-se

uma fotografia “saturada”. Acreditamos que todos esses elementos foram

colocados lá não por acaso, constituindo, assim, elementos fulcrais para a

narrativa da imagem. E ao falarmos em saturação, percebemos que em Pietà

with Courtney Love, os elementos plásticos referentes à gama de cores,

luminosidades e de valores (cf. AUMONT, 2008) são ricos na saturação,

marcando um intenso contraste. A luminosidade lançada nas personagens

advém tanto da luz natural que entra pela janela quanto das lâmpadas e velas

presentes no ambiente. Além delas, há a nítida impressão de haver luzes de

holofotes próprios para o uso profissional dos fotógrafos, o que marcaria,

inclusive, um efeito de ficção e, ao mesmo tempo, de gênero. Como efeito de

real, destacamos as marcas de picadas de agulhas no braço e os sangramentos

nas mãos e nos pés da personagem masculina, detalhes que foram

confeccionados para dar a impressão de ela morreu devido as drogas.

A iluminação e a luminosidade nessa foto são contrapostas às cores

quentes, sobretudo o vermelho e o azul, presentes em vários objetos que

compõem o cenário. Através de uma série de artifícios, o fotógrafo vale-se das

cores e das luminosidades para, ao mesmo tempo, amalgamar o mundo do

imaginário, do ficcional aos universos do real, do religioso. Há vários

elementos na imagem 2 que levam o leitor/espectador ao universo da fantasia,

da ilusão, do sonho, através dos efeitos de ficção presentes na fotografia.

Concomitantemente, na mesma imagem, seu produtor se vale de efeitos de

gênero, colocando em cena uma grande gama de elementos que fazem parte

do universo religioso cristão como a própria temática (Pietà), a mulher e o

homem como Virgem Maria e Jesus, o peixe e a Bíblia no chão, a luz “divina,

espiritual” iluminando o cenário, tudo isso ancorado no imaginário

sociodiscursivo, sobretudo dos cristãos.

Na imagem 2, a expressão “heaven to hell” [do céu ao inferno] impressa,

letra por letra, em cubos, remete ao título do livro de LaChapelle e também à

capa desse livro. Curiosamente, essa expressão surge de um jogo lúdico de

quebra-cabeça (puzzle), montado pela criança; jogo que tem, a princípio, o

objetivo de desenvolver nela a vida social, estimulando a imaginação, as

emoções, a capacidade de raciocínio e a autoestima. Essa expressão nos

remete, ainda e sobretudo, a duas importantes dicotomias: vida versus morte,

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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sagrado versus profano. Voltando a evidenciar as cores vermelha e azul, que

predominam na imagem 2, retratam bem estas dicotomias, uma vez que elas

remetem a representação do céu e do inferno presente no discurso religioso

cristão.

Desse modo, nossos conhecimentos prévios, saberes partilhados e

enciclopédicos nos propiciam conhecer um pouco mais sobre a imagem 2 e

nos ajudam a produzir alguns outros sentidos possíveis. Compõem a peça,

dentre outros objetos, instrumentos musicais, garrafas de bebidas alcoólicas,

tatuagens, agulhas, drogas injetáveis que nos rementem aos imaginários

sociodiscursivos relacionados ao mundo do rock e dos roqueiros. Sabemos,

por exemplo, que as personagens/pessoas que “posam” para a fotografia são,

na vida real, pessoas conhecidas. A mulher loira é Courtney Love, cantora e

viúva de Kurt Cobain (1967-1994), vocalista e guitarrista, líder do grupo

Nirvana, que morreu de overdose de cocaína e heroína. O homem também

loiro, morto e amparado no colo da mulher, é, na verdade, o companheiro de

LaChapelle na época e representa, na foto, o papel de Cobain. Por fim, a

criança representaria a filha do casal, Frances Bean Cobain.

3 Análise comparativa das imagens 1 e 2

Através de uma análise comparativa, buscamos traçar alguns traços em

comum e algumas marcas evidentes de diferenças entre as imagens, sem,

contudo, pretendermos esgotar as possibilidades de interpretação das duas

obras. O primeiro traço comum é justamente que elas são tidas como obras de

arte. A definição de “arte” vai depender do contrato comunicacional entre

aquele que produz o material e aquele que o recebe. É preciso um endosso

social, ou seja, o objeto (e o gênero) arte deve ter reconhecimento da

sociedade. Baseado nos estudos de Maingueneau (1993, 2006), podemos

afirmar que, seja pintura, fotografia, cinema, literatura, música, dança, entre

outros, a arte não está isolada das demais produções sociais e deve obedecer

a três critérios: i) pertencer a um campo discursivo no qual os enunciados são

produzidos no quadro de instituições que restringem fortemente a

enunciação; ii) pertencer a um aparelho, uma escola, um movimento, um

gênero socialmente reconhecido; e iii) fazer parte de um arquivo, de uma

memória que contenha um dispositivo de enunciação (produção/recepção

indissociavelmente), de circulação e de conservação dos enunciados que

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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circunscreve um conjunto de texto. Nesse caso, as imagens podem e devem

ser tidas como tal, visto que elas, cada uma em sua especificidade, obedecem

aos três critérios.

A imagem 1 pertence ao gênero pintura; e a imagem 2, ao gênero

fotografia. Ambos os gêneros têm sofrido interferências um do outro desde o

surgimento do mais recente deles, a fotografia, que acabou por desobrigar a

pintura de seu compromisso de retratar fielmente o real. Além disso, a

fotografia passou a influenciar a pintura com elementos que constituem sua

especificidade tais como documento, objetivo, fragmento da realidade,

registro instantâneo, retenção do tempo em imagem e memória do mundo. A

pintura, por sua vez, tem influenciado a fotografia com características como,

por exemplo, textura, falta de nitidez, tons e contrastes específicos, cor pura

absoluta, deformação e manipulação de formas (SIMÃO, 2005).

O que vemos é que ambas colaboram entre si e uma evolui com a outra.

Na imagem 1, percebemos que uma das pretensões do artista é justamente a

busca por registrar uma cena da maneira mais real possível, própria do gênero

pintura renascentista veneziana. Na imagem 2, também percebemos a mesma

intenção, ainda que com técnicas diferentes. As duas imagens mantêm entre

si um diálogo, ou seja, ambas tratam do mesmo tema, “Pietà”, retratam a

tristeza e a dor da Virgem Maria com seu filho, Jesus, no colo.

Esse diálogo entre as imagens recebe o nome de intericonicidade.

Intericonicidade é, numa definição simples, a relação estabelecida entre

imagens. Segundo Courtine (2011), essas imagens podem ser de tipos variados

como sonhos, imagens vistas, imagens internas (memória discursiva) e

externas, aquelas existentes na sociedade e que povoam nosso imaginário.

Dito de outro modo, quando nos deparamos com uma imagem e nos

lembramos de outra, estamos acessando nossa memória discursiva,

estabelecendo intericonicidade. Baseando-se nos estudos de Courtine,

Gregolin também acredita que o conceito de memória é fundamental para

explicar a existência cultural das materialidades discursivas. A autora afirma

que:

[...] toda imagem se inscreve em uma cultura visual e essa cultura visual supõe, para o individuo, a existência de uma memória visual, de uma memória das imagens. Do mesmo modo, uma imagem pode ser inserida dentro de uma série, uma genealogia, como o enunciado em uma rede de formulação [...] (GREGOLIN, 2008, p. 31).

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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Além da intericonicidade, as imagens mantem um diálogo com outro

gênero e com outro discurso, o literário, visto que a história da Virgem Maria e

Jesus pertence, originalmente, à Bíblia,13 fonte inspiradora das duas imagens.

Temos, então, uma relação de intergenericidade e intertextualidade:

literatura, pintura, fotografia, Bíblia, religião... Não podemos nos esquecer de

que as duas imagens dialogam, ainda, com outras pinturas, com outras

fotografias e com milhares de esculturas.

Com relação aos quadros comunicacionais nos quais as imagens 1 e 2 se

inscrevem, os sujeitos comunicantes e os sujeitos enunciadores são distintos.

Na imagem 1, Bellini trabalhou sozinho (até onde sabemos). Já na imagem 2,

há uma equipe de apoio na confecção, ainda que seja somente LaChapelle a

assinar o trabalho. Ambos idealizaram seus destinatários inscritos em

sociedades distintas, em tempos diferentes. Entretanto, ambas as imagens

chegaram até nós, sujeitos interpretantes.

Quanto às emoções evocadas/suscitadas nas duas imagens, percebemos

que a piedade/compaixão é a que mais se sobressai. Ela é, ao mesmo tempo, a

emoção que justamente dá título às obras, que é vivida pela Virgem Maria,

retratada nas duas peças e também a temática que os dois autores, artistas

propuseram registrar em suas imagens, ou seja, o pathos sentido tanto pela

personagem Maria, no universo “ficcional”, como pelos autores, no universo

da produção das peças, quando buscaram construir, com fins estratégicos, os

efeitos possíveis. Tem-se, ainda, os espectadores, incluindo nós, que também

vivenciamos, no universo da interpretação, o mesmo pathos. Isso porque,

conforme afirma Charaudeau (2010, p. 26), “as emoções são de ordem

intencional, ligadas a saberes de crença e se inscrevem em uma problemática

da representação psicossocial.” A piedade é, desse modo, mais do que uma

sensação, é uma emoção que surge com a interpretação das imagens e do

fato retratado. Na falta de expressões verbais, visto que se trata de imagens

pictóricas, os elementos desencadeadores de emoção se encontram,

evidentemente, na própria imagem, nas cores, nas posições, gestos e temas,

enfim, em cada detalhe que compõe as peças e colabora para a construção do

pathos de piedade nas imagens 1 e 2, dentre os quais ressaltamos: a tristeza e

a dor (de Maria, de Jesus e a nossa), o desespero, a morte, o sofrimento, os

ferimentos, a ternura e o amor que marcam a relação das personagens. O

pathos de piedade/compaixão se mostra, enfim, profundamente ligado aos

13 Ainda que possa causar alguma polêmica, decidimos por ver a Bíblia como um texto literário.

MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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imaginários sociodiscursivos tanto no universo da produção quanto no da

recepção das imagens, além dos saberes de crença, enciclopédicos e dos

estereótipos presentes nas ideologias que sustentam as relações sociais, tanto

as dos dois artistas quanto as nossas.

Considerações finais

Os caminhos percorridos para que esse artigo fosse produzido nos

levam a inferir o quanto a Análise do Discurso pode ser frutífera na análise de

textos pictóricos. Isso reafirma uma tendência recentemente observada por

pesquisadores da Análise do Discurso de que “[...] pela primeira vez na

história, a totalidade dos enunciados de uma sociedade, apreendida na

multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de estudo”

(MAINGUENEAU apud CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 46). Daí

nosso interesse em refletir sobre as duas obras de arte, cujo alcance social

merece ser considerado. Com essa reflexão, não pretendemos esgotar a

análise das duas imagens. Por questões óbvias, muitas coisas não foram

trabalhadas. Ao abordar esse universo de gêneros distintos, mas, ao mesmo

tempo, próximos, tivemos o prazer de nos debruçarmos sobre duas peças

artísticas tão semelhantes e, ao mesmo tempo, tão diferentes.

Tentamos estabelecer relações entre as duas imagens e zelamos para

que elas se mantivessem independentes entre si e, ao mesmo tempo, que se

relacionassem umas com as outras. Na busca por um equilíbrio analítico-

discursivo, um equacionamento entre o universo situacional e o discursivo, a

vida e a obra dos dois artistas, o interno e o externo dessas obras, o subjetivo

e o objetivo que elas propõem, a alteridade e a individualidade em interação,

acreditamos ter integrado pensamentos, crenças e opiniões em uma

constelação de sentidos que nos permite uma conclusão temporária,

inacabada.

REFERÊNCIAS

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MELLO, Renata Aiala de. Pietà, de Bellini, e Pietà With Courtney Love, de LaChapelle: Uma análise discursiva e comparativa. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 180-198, dez.2013.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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ARGUMENTAÇÃO E CENA DA ENUNCIAÇÃO EM TELEVANGELHOS

Sarah Menoya Ferrazi

Resumo: Este artigo tem como objetivo investigar, de acordo com os pressupostos teóricos da Análise de Discurso francesa, os aspectos discursivos e argumentativos de televangelhos. O objeto de estudo é constituído por culto protestante e missa católica veiculados na televisão. Articulam-se conceitos de Dominique Maingueneau, principalmente o de cena da enunciação, e as contribuições de Chaim Perelman & Olbrechts-Tyteca relativas à argumentação. Maingueneau e os teóricos da argumentação contribuem de formas diferentes, estão em paradigmas epistemológicos distintos, porém importantes para pensar o objeto proposto, já que tratamos de um discurso que pelas distintas materialidades significantes que o configura se constitui na fronteira entre o argumentativo e o discursivo. Os resultados da pesquisa esclarecem que cada modelo de análise tem um quadro cênico determinado de acordo com suas condições de produção e que os argumentos utilizados pelos oradores são produtos desta cenografia que o discurso permitiu construir, assim como o ethos do orador reflete os próprios posicionamentos implicados no discurso.

Palavras-chave: Análise de Discurso. Teoria da Argumentação. Cenas de Enunciação. Televangelhos.

Abstract: Based on the theoretical presuppositions of French Discourse Analysis, this paper aims to examining discursive and argumentative aspects in Religious TV Emissions. The object of study consists of a Protestant and a Catholic TV Emissions. In this study, we consider concepts from Dominique Maingueneau, especially the idea of scene of enunciation, and the contributions of Chaim Perelman & Olbrechts-Tyteca about argumentation. Both theorists contribute in different ways and have different epistemological paradigms, but it is important to consider them when we think of the object proposed because we deal with a discourse that constitutes a border between discursive and argumentative ways of enunciation. The research results explain that each model has a scenic frame of analysis determined according to the conditions of production and the arguments used by speakers are products this scenography that the discourse allowed to build, as well as the ethos of the speaker reflects their own positions implicated in discourse.

Keywords: Discourse Analysis. Argumentation Theory. Scenes Enunciation. Religious TV Emissions.

i Mestranda pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil. E-mail: [email protected].

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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Introdução

Este trabalho tem como objetivo reconstruir os aspectos referentes à

Cena de Enunciação (conceito inscrito nas concepções da AD) e ao fazer

argumentativo (pelo uso de alguns pressupostos teóricos da Teoria da

Argumentação - doravante TA) pela observação de dois modelos de discurso

que compõem o corpus de análise: um modelo do discurso evangélico e um

modelo do discurso católico apresentados em programas televisivos.

Justifico minha escolha pelo televangelho, em primeiro lugar, pelo

desafio de assumir um estudo de um discurso constituinte veiculado na mídia

televisiva. Em segundo lugar, pela escassez de trabalhos científicos em Análise

do Discurso (doravante AD) neste sentido, o que marca certa originalidade e

relevância teórica. Além disso, um estudo como este contribui para o

reavivamento das discussões acerca do papel da linguagem na formação de

grupos sociais determinados pelas relações comunicativas que estabelecem.

Trata-se ainda de uma forma de ampliar uma problemática desenvolvida

por D. Maingueneau, que em dois de seus trabalhos cita obliquamente o

televangelho. Há um artigo em que o teórico (MAINGUENEAU, 2008c)

desenvolve algumas questões observando os dispositivos de comunicação de

um sermão proferido no século XVII e vai dizer ao final do artigo que tudo

“isso se aplica tanto a instituições bastante coercitivas (...) quanto às

performances dos ‘televangélicos’ dos dias de hoje”. Há ainda outro artigo de

Maingueneau (2009), que trata mais diretamente das mudanças na forma de

comunicação devido às urgências da vida moderna.

Além desses trabalhos, há outros conhecidos, como o trabalho de

Edvânia Gomes da Silva (2006) Os (des)encontros da fé: análise interdiscursiva

de dois movimentos da Igreja Católica. A autora faz uma análise da relação

interdiscursiva que constitui e atravessa dois movimentos da Igreja Católica.

Apesar deste trabalho se ater ao estudo do campo religioso ante os

pressupostos da AD, não diz respeito a televangelhos.

Eni Pulcinelli Orlandi (1983) também apresenta as características próprias

do discurso religioso em um capítulo de seu livro A linguagem e seu

funcionamento: as formas do discurso. A autora destaca a propriedade de

reversibilidade dos lugares discursivos ocupados no discurso religioso e as

suas peculiaridades.

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

222200001111

Há alguns trabalhos que articulam a AD com a “nova retórica”. É o caso

do artigo de Marco Túlio de Sousa (2010) A magia televisiva no discurso

religioso: uma análise de argumentação e discurso do programa Show da Fé. O

autor analisa um televangelho e esclarece a importância do uso das duas

teorias.

Destaco ainda o trabalho de Moisés Olímpio Ferreira, doutor pelo

Programa de Pós Graduação de Filologia e Língua Portuguesa da USP, que

utiliza a “Nova Retórica” para pensar o discurso religioso. Ele intitulou seu

trabalho de Estudo religioso sob a perspectiva da Nova Retórica.

Feitas essas ressalvas, fica ainda certo de que pouco se investe no

estudo do discurso religioso televisivo.

Em relação à leitura deste trabalho, o leitor pode avançar na direção que

quiser. Na primeira parte são apresentados os métodos para realização da

pesquisa e o material de análise. Na segunda, mostra-se a justificativa para

trabalhar com duas diferentes teorias. Na terceira, apresenta-se o dispositivo

teórico com base na AD francesa. Na quarta, apresenta-se o dispositivo

teórico com base na Teoria da Argumentação. Na quinta, descreve-se o

pentecostalismo da Assembléia de Deus. Na sexta, verificam-se alguns

resultados da observação da Cenografia e Argumentação no discurso do

televangelho evangélico de Silas Malafaia. Na sétima parte, descreve-se o

espaço discursivo católico. Na oitava e última parte, verificam-se alguns

resultados da observação da Cenografia e Argumentação no discurso do

televangelho católico do programa Missa do Santuário da Vida. E, por fim,

algumas considerações finais.

1 Materiais e Métodos

Como dito, este trabalho busca observar dois modelos de discurso que

compõem o corpus de análise: um modelo do discurso evangélico e um

modelo do discurso católico apresentados em programas televisivos.

As transcrições das falas, constantes nas análises do corpus, foram feitas

conforme o modelo de transcrição proposto pelo projeto NURC (Norma

Linguística Urbana Culta no Brasil).

Para o modelo do discurso evangélico, observar-se-á o programa Vitória

em Cristo, que é apresentado pelo pastor Silas Malafaia. O pastor é

apresentador e é conhecido por debater temas de cunho moral-religioso na

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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televisão. O programa se situa nos âmbitos doutrinais da Assembléia de Deus,

é transmitido pela Rede TV semanalmente. O vídeo eleito como material de

análise foi colhido no site do Youtube1 e compõe um programa que foi muito

reprisado em Vitória em Cristo.

Para o modelo do discurso católico, observar-se-á o programa Missa do

Santuário da Vida2, que é exibido pela Rede Vida, sempre ao vivo, diariamente.

O santuário é um espaço que recebe caravanas de todo o país. O programa

aqui analisado foi exibido em 13 de agosto de 2009, e a missa foi celebrada

pelo padre Manoel Cirino da cidade de Parapuã.

Faço minhas as palavras de Maingueneau (2008b, p.63), que, ao

apresentar o seu recorte, disse que “o que importará nessa apresentação não

será tanto aprofundar o conhecimento desses dois discursos, mas chegar às

implicações teóricas e metodológicas a eles relacionadas”.

2 Análise do Discurso e Teoria da Argumentação

O objeto de estudo ora analisado se caracteriza pelo seu sincretismo e é

teoricamente multifacetado, pois permite fazer análises com variadas visadas

teóricas: comunicação, argumentação, discurso, etc. Seria muito pretensioso

querer abraçar todas as questões. É por isso que esta pesquisa se limita aos

pressupostos da AD francesa e conta com contribuições teóricas da TA. A

escolha pelas teorias se deve ao fato de ambas tomarem o discurso por objeto

e se complementarem em determinados pontos que são pertinentes à

finalidade da pesquisa. Segundo Maingueneau (2011, p.70):

[...] apreender a linguagem como discurso é multiplicar as articulações com a diversidade de campos, disciplinas, correntes, escolas... das ciências humanas, para relacioná-las aos sujeitos inscritos nas situações.

Essa “articulação”, que justifica o carrefour teórico proposto aqui, e essa

“inscrição dos sujeitos” podem ser compreendidas, por exemplo, por meio da

seguinte observação: o conceito de Maingueneau sobre cenografia, inscrito na

corrente francesa de AD, se refere ao fato de que aquilo que é enunciado

integra uma cena que é válida por conta desta enunciação. Os enunciados que

integram a cena enunciativa e dão suporte material à enunciação são

carregados de estratagemas argumentativos construídos pela pretensão da

1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_j1LEaa9FSU>. Acesso em: 6 ago. 2013.

2 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4OwnergPEvw>. Acesso em: 6 ago. 2013.

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instituição pela qual o locutor é porta voz. Portanto, o televangelho é uma

comunicação que permite a construção de uma cenografia aliada a recursos

argumentativos.

Apesar das dificuldades, nos cabe saber articular os conceitos de forma a

adequar as teorias às necessidades científicas do estudo. Essas dificuldades se

dão, por exemplo, quando a TA afirma que sujeito escolhe o que vai de

encontro com as suas necessidades e, a partir disso, sua argumentação

caminha no sentido de mostrar que as teses combatidas levam a uma

incompatibilidade com a verdade que a comunidade adere. Uma tese seria

negação da outra. Isso faria parte de um sistema formalizado. Para

Maingueneau, esse sistema não é fechado totalmente nas suas concepções,

pois há um atravessamento de outros discursos. Além disso, a TA utiliza da

noção de “acordo” para explicar que todos os membros concordam

mutuamente. Entre todas as divergências epistemológicas entre a AD e a TA,

acredito que esta seja a mais discrepante, pois esse “acordo” entre os pontos

de vista se daria numa espécie de escolha consciente feita por orador e

auditório enquanto para a AD não se trata de escolha, mas de inscrição numa

determinada formação discursiva e, portanto, inconsciente.

Apesar das diferenças nas propostas teóricas, a TA pode contribuir de

forma positiva na investigação das estratégias argumentativas e no modo

organizacional dos interlocutores. É isso que este artigo tem de mostrar: esse

carrefour teórico pode ser útil para um bom estudo de discursos constituintes.

O diálogo estabelecido entre as duas teorias se evidencia, por exemplo, no

entendimento de que um argumento produz efeito satisfatório por conta não

apenas do orador, mas também da qualidade do auditório e do que se sabe

sobre ele. Em outras palavras, pode-se afirmar que nas duas teorias há a

concepção de um auditório persuadido no discurso, pois para a TA todo

discurso se dirige a um auditório, por isso, não está distante das ideias de

intersubjetividade da perspectiva enunciativa. Além disso, a chamada “nova

retórica” ocupa-se das estratégias discursivas usadas por um locutor na

procura de adesão de um auditório às teses propostas, o que também

aproxima a AD em seu intuito de descrever o discurso em situação.

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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3 Da noção de cena da enunciação

Para melhor definir o recorte teórico e, ao mesmo, tempo apresentar a

ferramenta de análise, utilizo o conceito de Cena da Enunciação apresentado

por D. Maingueneau. Trata-se de um quadro enunciativo composto por três

cenas: a englobante, a genérica e a cenografia.

A cena englobante se refere aos tipos de discurso. Para o católico ou o

evangélico se ver constituído como tal, é necessária sua inscrição numa cena

englobante. Geralmente, o sujeito cristão não entende esta inscrição como

sendo determinada por fatores de cunho sócio-histórico, mas atribui seu

pertencimento ao poder do Espírito Santo. “Afinal de contas, o Deus que nós

servimos está no controle de todas as coisas”, como afirma o Pastor Silas.

A cena genérica relaciona-se ao gênero discursivo. Os interlocutores se

inscrevem num tempo e num espaço determinado, o que implica um suporte

material, um modo de circulação. Maingueneau (2009, p.38) afirma que o

sermão é um gênero oral monológico e que esses enunciados são

“geralmente apoiados em um texto escrito cuidadosamente com

antecedência. Seu objetivo é tanto melhorar o entendimento da doutrina e

encorajar os crentes a viverem mais de acordo com as exigências religiosas”3

Maingueneau (2009) fez um estudo comparativo entre dois sermões

católicos, um de 1702 e outro de 2008, e notou que, apesar de se tratar de um

mesmo gênero discursivo, houve uma mudança no sermão mais recente

devido a aceleração no ritmo de vida, reduzindo o tempo dos sermões. Hoje,

os programas televisivos podem ser gravados para adaptar ao melhor

momento para assisti-los. Esse é um fator sócio-histórico que modifica os

moldes discursivos, pois impõe caracteres próprios da mídia audiovisual, que

sugerem, entre ouras coisas, o imediatismo.

Maingueneau (2009, p.37) observa que “estamos lidando tipicamente

com uma situação tripartida: onde o pregador fala a dois públicos

simultaneamente: os fiéis presentes diante dele e os telespectadores

invisíveis”4, por isso a televisão é um meio de extensão do discurso. Nota-se

3 Tradução do original em francês: “le sermon entre dans la catégorie des énonciations monologales orales, appuyées en général sur un texte soigneusement écrit à l’avance. Sa visée est à la fois d’améliorer la compréhension de la doctrine et d’inciter les fidèles à mener une vie plus conforme aux exigences religieuses”. (MAINGUENEAU, 2009, p.38).

4 Tradução do original em francês: “On a donc typiquement affaire à une situation de trilogue: où le prédicateur s’adresse à deux publics simultanément : les fidèles présents devant lui et les téléspectateurs invisibles” (MAINGUENEAU, 2009, p.37).

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isso, por exemplo, na fala do pastor Silas “Vocês tão vendo? Vocês que estão

na televisão...” ou em “Você que tá em casa, você acredita? Se você acredita,

diga si:::m.” e em “Você que ta em casa, você que ta vendo a fita, você que ta

aqui não importa”. Verifica-se também este aspecto na fala do padre Manoel

“Que bom estarmos aqui (...), todos aqueles que nos acompanham em casa.

To::dos participam desse encontro com Deus. Seja bem vindo, meu irmão,

minha irmã que está em casa participando”.

Perelman & Tyteca (1996, p.29) afirmam que esta extensão do auditório

é significativa na produção dos argumentos, pois sabendo qual é o auditório

sabem-se quais são os argumentos adequados. O fato de ser televisivo age

sobre a maneira de elaborar os enunciados, pois diminui a intimidade do

orador com os ouvintes (já que o televangelho é aberto a qualquer

telespectador) e aumenta a preocupação em ser bem visto e aceito por todos

os ouvintes. Essa perspectiva da TA não anda na linha de raciocínio ligada ao

discurso, assim como entende a AD, mas a TA admite que a veiculação

televisiva muda os quadros discursivos e o sentido.

Aplicando o conceito de cena da enunciação proposta por Maingueneau,

pode-se perceber que a cenas englobante e genérica se constituem de modo

igual nos modelos. Porém elas implicam a utilização de um ethos. Por isso,

cabe ressaltar aqui que a cena englobante e a cena genérica devem ser

diretamente articuladas à cenografia.

A cenografia diz respeito ao fato de que aquilo que é enunciado integra

uma cena que é válida por conta desta enunciação. Segundo Maingueneau

(2008a, p.51) “o discurso implica um enunciador e um co-enunciador, um lugar

e um momento de enunciação que valida a própria instância que permite sua

existência”. O televangelho se vale de aparatos estratégicos para validar as

argumentações; porém, o ethos de que o locutor se utiliza não é relacionado a

estratégias, mas a algo constitutivo da cena de enunciação. A forma com que

o pastor e o padre enunciam é diferente porque, apesar de inseridos num

mesmo campo discursivo (que é o discurso religioso), eles pertencem a

espaços discursivos diferentes. Não basta simplesmente dizer que pertencem

a diferentes religiões, mas tem de se considerar que este espaço existe como

arena de conflito por conta de uma reivindicação do direito de ser cristão.

Interessa-nos a análise destas diferentes cenografias. É isso que tentaremos

mostrar nos parágrafos seguintes.

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4 Algumas contribuições da teoria da argumentação

Segundo Perelman & Tyteca (1996, p.62), “consentir na discussão é

aceitar colocar-se do ponto de vista do interlocutor.” Esse “consentir na

discussão” é explicado a partir da noção de “acordo” que resulta num

“sistema particular de crenças” (id.), ou seja, o orador escolhe as premissas

contando com a adesão dos ouvintes às proposições iniciais e levando em

conta o “engajamento prévio do auditório” (ibid, p. 68). Isso faz com que haja

um acordo sobre a formação dessa comunidade e, depois, sobre o fato de se

debater uma questão determinada. Isso facilita a convicção do orador de estar

certo de que não será colocado em dúvida.

Essa situação pode nos fazer pensar que se trata de uma argumentação

sem muito valor apreciativo, já que o argumento vem depois que o ouvinte já

aceitou os enunciados como verdade. Pelo contrário, o valor retórico das

proposições e do modo de enunciar é intensificado na medida em que há

acordo prévio; a argumentação é ainda mais valorosa no sentido em que se

intensifica uma crença.

Esse “engajamento prévio” é alicerce para a construção de uma cena

enunciativa que favorece a adesão levando a comunidade a considerar mais a

validade do que é dito e os valores que são intrínsecos ao discurso do que sua

veracidade. O acordo entre as instâncias enunciativas é tal que se faz inútil a

presença de outras marcas de adesão ao ponto de vista.

5 O espaço discursivo pentecostal, a cenografia e a argumentação no discurso do televangelho evangélico de Silas Malafaia

O nome pentecostal se refere ao dia de Pentecostes, que foi uma festa

judaica que comemora a descida do Espírito Santo diante da presença dos

apóstolos. O pentecostalismo hoje é um movimento que atravessa a noção de

religião, é uma renovação da igreja cristã pelo contato direto e pessoal com

Deus, sendo necessário passar pelo batismo no Espírito Santo.

O pentecostalismo se manifesta de diferentes formas teológicas e

organizacionais, pois apesar de as igrejas pentecostais terem um núcleo

doutrinário comum, são muitas as denominações e não existe nenhuma

organização central que dirige o movimento como nas igrejas evangélicas

tradicionais ou como a igreja católica.

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Desde a sua constituição até hoje, a Assembléia de Deus, instituição que

pertence ao pentecostalismo clássico, tem na educação oferecida bases em

princípios bíblicos, principalmente na ordem de Deus para trazer o dízimo. A

organização simples da igreja é marca da informalidade que a atravessa

Conforme Read (1967), a maioria das igrejas tem um programa semanal

bem dividido, havendo uma preocupação em convidar os não-crentes para os

cultos e reuniões. Além disso, essa instituição leva em conta a natureza

emocional do brasileiro, já que é por ela que os pentecostais expressam seu

culto.

O programa Vitória em Cristo é apresentado pelo pastor Silas Malafaia e

é transmitido no Brasil, todos os sábados, de meio-dia às 13h, pela Rede TV.

Sua versão dublada para o inglês é exibida em muitos países.

O vídeo eleito como material de análise foi colhido no site do YouTube e

não há menção sobre a data da publicação do vídeo na internet. Há várias

postagens feitas por pessoas diferentes e em momentos diferentes. Esse

aspecto atemporal do vídeo não é um fenômeno isolado, pois algo parecido

acontece na televisão5. Nos televangelhos desse programa, que são filmagens

dos cultos presenciais, o pastor não diz ao telespectador (mesmo havendo um

momento direcionado ao telespectador) quando esse culto presencial

acontece.

O pastor Silas Malafaia utilizou-se de um tom fervoroso que sugere uma

ordem, a ordem de Deus, que segue por meio da voz do pastor, pois, como o

próprio tema da pregação admite, o controle está nas mãos de Deus, e não do

homem. Ao proferir “Vai fazer bobagem: Deus está mandando avisar alguém

aqui: (...), vai agir pela opinião DOS OUTROS e vai quebrar a cara”, é como se o

pastor incorporasse essa ordem pelo tom de que se utiliza.

Outro dado interessante para pensar na cenografia, que faz produzir

efeitos favoráveis à constituição do televangelho, é o fato de o pastor pedir

para a igreja “dar uma saudação pra todo o Brasil dizendo Vitória em Cristo

para a sua vida”. Este enunciado reproduz o nome do programa “Vitória em

Cristo”. Neste caso, há uma publicidade implícita da cena genérica no ato de

5 Cabe observar que a mídia digital se encontra em condições de produção da enunciação diferentes da mídia televisiva. Em outras palavras, nestes meios de circulação, a atemporalidade é considerada em diferentes níveis enunciativos. Atenho-me apenas às questões relacionadas à circulação dos enunciados na televisão, que é meu objeto de estudo.

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fala que determina o lugar midiático de transmissão do programa dentro do

processo que a fala implica.

O uso das anáforas para se referir a Deus é importante para pensar em

nome de quem se autoriza a falar em um sermão.

DEUS está no controle de tudo, mas ele permite o homem escrever a história, ele permite você e eu fazermos escolhas, ele permite você e eu tomarmos decisões, mas DEUS, a hora que ele quiser, do JEITO que ele quiser, ele pode interferir na vida de qualquer um de nós

A intensificação do pronome anafórico é reflexo da aceitação do

auditório, para quem os valores são ditados por Ele e por isso Ele é quem tem

de ser ouvido por meio da fala do pastor. O pastor constrói uma imagem de si

ao enunciar as ideias previamente aceitas, inserindo-se como “assembleiano”,

pertencente ao grupo e representante de Deus e do grupo.

Agora... “Pastor, eu queria, assim, que o senhor me desse algumas provas reais que o senhor está fazendo uma afirmativa, que DEUS está no controle de tudo. Se Deus está no controle de tudo, Ele tem que controlar algumas coisas pra me provar que Ele está no controle de tudo.” Então vamos fazer uma análise pra gente tirar uma prova dos nove, se o Deus que nós servimos está no controle de tudo. Primeiro: se DEUS está no controle de tudo, Deus tem que controlar o mundo espiritual, seja de Satanás ou seja do Seu reino. Porque se Deus não controlar o mundo espiritual, Deus não está no controle de tudo.

O orador constrói sua argumentação usando uma espécie de lógica

aristotélica para construir um saber que torna a sua fala válida. Estabelecem-

se as premissas (P) e suas conclusões (C). Como na fala supracitada:

P1- Deus está no controle de tudo.

P2- O mundo espiritual faz parte do que entendo por tudo.

C1 - Portanto, Deus controla o mundo espiritual.

P3- Deus está no controle de tudo.

P4- Deus não controla o mundo espiritual.

C2 - Portanto, P3 é falsa e Deus não está no controle de tudo.

P5 - O verdadeiro crente, assembleiano, aceita C1.

P6 - Aceito C1 e não aceito C2.

C3 -Portanto, sou verdadeiramente um assembleiano.

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Há reminiscências desta lógica no argumento que Perelman & Tyteca

denominam o argumento da divisão do todo em partes. Ele é igualmente lógico

na medida em que a relação das partes é fundamental para construção do

argumento. Observa-se isso em:

[...] por exemplo: existem várias empresas que são empresas mundiais, que tem um presidente desta empresa no Brasil, tem presidente na Argentina (...) não é? Ela tem uma presidên::cia mundial ou um conSElho de administração que comanda a empresa no mun::do todo, mas ca::da presidente da empresa no país ... ele tem autonomia. Ele tem autonomia pra colocar os planos da empresa ele controla aquela empresa só que aqui em cima tem um presidente mundial ou um conSElho de administração que pode qualquer hora intervir na direção desta empresa no Brasil, na direção desta empresa na Argentina -- eu podia falar da Coca-Cola, eu podia falar da Volkswagen, eu podia falar da Microsoft – (...) o presidente da Volkswagen no Brasil, o presidente da Volkswagen na Alemanha, na Argentina e tem um presidente mundial. O camarada ta aqui numa posição superior. E ELE a qualquer hora ele pode intervir em qualquer uma destas empresas, mas o camarada que está dirigindo aqui no Brasil ou na Argentina ou na França, ele tem autonomia pra gerenciar e pra gerir. Então QUEM está no controle não significa que ele está manipulando o tempo inteiro tudo, mas significa que ele tem PODER e autoridade pra intervir na hora que ele quiser. Assim é Deus.

Perelman & Tyteca (1996, p.265) afirmam que este argumento se

caracteriza pela estratégia pautada na enumeração exaustiva das partes

mostrando conhecimento das relações que as partes mantêm com o todo.

Além disso, a comparação feita tem um caráter próximo de uma estrutura

matemática, o que fornece força persuasiva de muita relevância.

Essa estrutura matemática, que constitui marca do discurso científico,

pode parecer um paradoxo ou um inconveniente, já que o discurso científico

não poderia a priori ser argumento numa comunicação religiosa, que tende a

crer mediante fé. Se não estivéssemos considerando a cena genérica deste

quadro, poderíamos cair neste equívoco, mas sabemos se tratar de um

argumento eficaz para atingir um “público-outro”, a possibilidade que a

televisão deixa para o alcance de novos ouvintes, os telespectadores que são

seduzidos pelas comprovações.

Há um culto a anjo que é uma coisa perigosíssima. Isso é doutrina de Satanás, é espírito maligno de engano, sabe. Anjo, anjo que desce, anjo que sobe (...) Isso aí é espírito de engano. Nós aqui não cultuamos anjo, porque em Hebreus capítulo um, lá no último versículo deste capítulo diz que os anjos estão ai pra trabalhar a nosso favor, daqueles que vão herdar a salvação.

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A comunidade discursiva está, neste momento da enunciação, se

constituindo como tal devido à afirmação explícita de que existe outro

posicionamento, aquele que cultua anjos. A palavra “engano” é uma marca

sensível de posicionamento, pois outorga que é certo e o que é errado

segundo as teses defendidas pelo grupo.

Outro fator pelo qual o discurso faz parecer tornar “evidente” os

enunciados é o uso da argumentação pelo sacrifício. Assim como o argumento

da divisão do todo em partes, este argumento faz parte daqueles em que

Perelman & Tyteca denominaram quase-lógicos. Ele tem a finalidade de propor

resultados satisfatórios mediante um sacrifício. Verifica-se isso na fala do

pastor em “Olha o que que diz o profeta Oséias no capítulo seis, versículo um.

Diz assim ‘Vinde, tornemos ao Senhor... Ele nos despedaçou e nos sarará. Ele

fez a ferida e as ligará’ ”. As feridas são ligadas e saradas para aqueles que

“tornam” ao Senhor, há o apontamento de benefícios para aqueles que se

posicionam de acordo com as normas, estabelecidas no thesaurus da

comunidade. Na fala “Você pode tá atravessando hoje as pi-ores e mais terrí-

veis lutas da sua vida, o mesmo Deus que está permitindo você atravessar

lutas, tribulações e adversidades é esse mesmo Deus que tem o poder de

mudar a tua sorte”, o ouvinte percebe que o sacrifício de passar pelas lutas,

pelo sofrimento é permissão de Deus. Essa permissão é motivo de consolo

para aqueles que se dispõem a sofrer, afinal o resultado é prometido. O ethos

do sofrimento pode ser percebido na entonação das palavras “piores” e

“terríveis”.

Se:: você escolher se arrepender dos seus pecados, se você hoje escolher aceitar Cristo como salvador da sua vida, se você hoje escolher obedecer a palavra de Deus, ta garantido o céu, ta garantida a vida eterna pra você. MAS SE VOCÊ ESCOLHER continuar vivendo no pecado, no erro, segundo custa a sua natureza, também não quero te enganar, ta garantido a condenação no inferno também. (...) E te prepara porque Ele tem uma vida linda e maravilhosa pra te dar.

Há grande ênfase no resultado. A impressão, que é causada pela maneira

de enunciar e pela cenografia intrínseca a este enunciado, é a de que a escolha

tem de ser feita na consciência de cada ouvinte, como se não fosse

determinada de antemão. A escolha pelo o céu ou pelo inferno compõe um

conjunto de dizeres da instituição que enuncia por meio do orador. Com base

na TA, podemos afirmar que o locutor tem esse conhecimento sobre o

assentimento prévio do auditório na escolha por Deus, porém, longe de ser

uma escolha consciente previamente determinada, as noções da AD, como as

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cenas enunciativas, mostram que esta postura é determinada pela inscrição

sócio-histórica do sujeito e é isto que pode garantir a eficiência do argumento.

O argumento pragmático busca relacionar os acontecimentos sociais,

pelos quais os sujeitos estão expostos aos argumentos que podem favorecer

a tese. O locutor se vale da dimensão intertextual na construção de premissas

baseadas em fatos que preexistem ao momento da enunciação.

Você está respirando? Alguém paga o oxigênio aqui? ...Não? Paga não, né irmão? Molezinha, né? Você paga a empresa de água pra levar água até você, mas a água é Deus que dá, o oxigênio que você respira, é Deus. Ele tá no controle de tudo, irmão.

A água e o oxigênio são partes de uma realidade estabelecida e servem

como premissas que compõem elementos eufóricos. Esses elementos e sua

importância se fazem valer mediante a permissão de Deus, por isso o fato de

respirar é uma consequência inquestionavelmente boa e favorável à tese de

que se vive porque Deus permite. Percebe-se a menção a um fato obtido de

uma realidade empírica e que não parece questionável e as conclusões

construídas na/pela enunciação.

As cenas de enunciação e os argumentos estão vinculados de modo

direto ao ethos do locutor. O locutor se utiliza de um ethos que podemos

chamar de ethos do fervor, conforme propõe o tom enfático que sugere a

própria imagem do Ser divino que o televangelho está querendo propagar.

6 O espaço discursivo católico, a cenografia e a argumentação no discurso do televangelho católico da missa do Santuário da Vida

O termo católico, em suas origens, significa universal. É uma igreja cristã

que tem como autoridade suprema o Papa. O objetivo é a conversão ao

ensinamento de Jesus Cristo e à interseção à Santa Virgem Maria. A igreja

católica existe como instituição há aproximadamente dois mil anos e não há

variedades significativas de denominações como na igreja evangélica. Isso se

dá, principalmente, pela existência de uma estrutura prévia das cerimônias

religiosas a qual todas as igrejas devem obedecer.

O padre é a figura que age em nome de Jesus. Segundo Cechinato (1979,

p.25), ele é sacerdote, presbítero e profeta, além de ser o Presidente da

Celebração. Para realizar a cerimônia, o padre tem de usar as vestes litúrgicas.

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Quanto ao altar, Cechinato (1979, p.26) afirma que se trata do símbolo

do sacrifício de Jesus e representa a mesa da Ceia do Senhor. No altar, deve-se

usar uma toalha branca comprida e limpa, além de outros ícones que fazem

parte da cerimônia: hóstia, vinho, cálice, âmbula, patena, água, pala, etc.

Quanto ao funcionamento do ritual da missa, segue-se a seguinte

ordem6: ritos iniciais, liturgia da palavra, liturgia eucarística, preparação das

oferendas, oração eucarística, rito da comunhão e ritos finais.

Não deixando de levar em conta todos os enunciados, analisaremos com

prioridade a homilia, que, segundo Cechinato (1979), se baseia numa

abordagem que relaciona as leituras feitas com a temática sobre a qual dizem

respeito estabelecendo sempre uma relação com o cotidiano dos ouvintes.

O programa Missa do Santuário da Vida é exibido pela Rede Vida,

sempre ao vivo, da cidade de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo,

de segunda a sexta-feira das 19h10 às 20h00 e aos domingos às 08h00. Não há

um padre apenas responsável pelas missas, a cada dia vem um celebrante

diferente.

O programa aqui analisado foi exibido em 13 de agosto de 2009. O

presidente da celebração foi o padre Manoel Cirino da cidade de Parapuã. A

cerimônia contou com o uso da Liturgia Paulus, ano B da quinta-feira da XIX

(décima nona) semana do tempo comum.

O tom utilizado pelo locutor é manso. O ethos da mansidão é importante

no propósito de fazer os ouvintes refletirem sobre as leituras e estabelecer a

introspecção. Diferente do televangelho evangélico, que afirma que o

controle e as ordens estão nas mãos de Deus, o televangelho católico coloca a

responsabilidade (do perdão, tema do sermão) como estando nas mãos do

cristão. A mansidão é própria de um processo de encorajamento para que o

cristão viva esse pertencimento.

O narrador que faz a abertura do programa também se utiliza deste

ethos ao dizer “Acompanhe diariamente a missa do Santuário da Vida pela

Rede Vida pelo livro mensal da Paulus Liturgia Diária (...)”. Essa utilização

sugere uma prática que pode resignificar a própria mansidão da Liturgia. Da

mesma forma, a pessoa responsável pelas leituras, Espéria Puzzi, também

locutora inserida no quadro cênico estabelecido por este televangelho,

reproduz o ethos da mansidão na sua fala ao dizer, entre outras coisas,

6 Sobre as particularidades de cada rito, verificar em Cechinato (1979).

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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“estamos reunidos no Santuário da Vida... para juntos celebrarmos a Santa

missa (...)”.

Não é porque no sermão católico a cerimônia se faz mediante

enunciados determinados em liturgia que não exista cenografia. Afinal a

cenografia não é um quadro estático, não está determinada de antemão pelo

gênero, mas pela enunciação. Tratamos de uma comunicação que exige o

comentário de textos “primeiros”, daí a existência da cenografia imposta

pelas instâncias enunciativas em que o discurso se dá.

Uma maneira de compreender o fenômeno discursivo é pensar que as

convicções acerca dos pontos de vista comuns entre os membros da

comunidade discursiva católica resultam nos elementos constantes em todos

rituais. Mas para constituição de uma comunidade discursiva não basta

simplesmente esses elementos existam, deve haver participação dos

membros da comunidade discursiva na realização da cerimônia religiosa. Isso

fica evidenciado na fala do padre no momento dos Ritos Iniciais:

Todos participam desse encontro com Deus. Seja bem vindo, meu irmão, minha irmã que está em casa participando. Você que talvez possa estar sofrendo alguma situação que a vida lhe trouxe e esse momento é o momento para fortalecer.

O quadro enunciativo, proposto neste trecho, estabelece as posições

físicas e enunciativas (o padre à frente, os fiéis numa posição inferior e os

telespectadores). Destes, que são “bem-vindos”, há aqueles que encontram

necessidade de se “fortalecer”: esse é um argumento que sugere um

consenso, um ideal comum, que estabelece a maneira de se constituir como

instituição religiosa. Seria mais ou menos como dizer sou católico, mas isso não

basta, devo, por isso mesmo (pelo fato de ser católico), me fortalecer. Apesar de

não podermos negar a existência deste ideal comum, a comunidade discursiva

analisada aqui não se estabelece por conta disso. Esse pertencimento e essas

posições são apenas resultado da inscrição sócio-histórica do sujeito nesta

formação discursiva.

A repetição da palavra “todos”, no trecho citado, é importante para

pensarmos na unidade dos membros da comunidade. Segundo Perelman &

Tyteca (1996), o orador imagina existir uma universalidade. Pode-se dizer

“todos” a fim de universalizar o que é dito (mesmo os ouvintes sendo uma

parcela da população) fazendo produzir um efeito de sentido de serem únicos

e verdadeiros. Esse pressuposto teórico é confirmado também na observação

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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de que o uso da primeira pessoa no plural é constante tanto nos atos

litúrgicos como na fala do padre. O enunciado “devemos” precede as ações

pelas quais revela a maneira de agir, que é fruto de um pertencimento. Dentre

os casos está a fala da leitora: “Jesus nos ensina no evangelho que não há

limites para o perdão que devemos estender aos outros”. O substantivo

“dever” também carrega essa responsabilidade, como na fala do padre: “Na

verdade é justo e necessário, nosso dever e salvação, darmos graça sempre

em todo lugar”. Segundo D. Maingueneau (2008a, p.72) “as ideias suscitam a

adesão do leitor por meio de uma maneira de dizer que é também uma

maneira de ser”.

A comunidade é delimitada também pelas marcas do discurso do Outro.

Em “Deus só age no coração que vive os seus sentimentos de perdão, de

amor, misericórdia e compaixão” fica dada a existência daquele que tem um

coração que não vive os seus sentimentos “amor, misericórdia e compaixão” e

que, por isso, não serve para compor o quadro dos membros. Isso fica

evidenciado pelo uso do termo “só”.

A celebração religiosa católica é determinada previamente pela liturgia,

o que limita os quadros enunciativos. Em outras palavras, o uso de um roteiro

para celebração da missa faz com que haja um tempo adequado a cada rito e

impõe limites a cada enunciado. Não foram observados, por exemplo,

argumentos pela divisão do todo em partes. O argumento pelo sacrifício

também não é um uso constante.

Podem-se levar em conta, na análise deste sermão, dois tipos de

argumentos que não foram citados na análise do modelo evangélico: o que

Perelman & Tyteca (1996) denominam de argumento pelo modelo e antimodelo

e o argumento pelo Ser Perfeito.

O argumento pelo modelo acontece sobre a figura de dois nomes

bíblicos: Pedro e Josué. Pedro serve como modelo de comportamento na

medida em que passa a ter consciência de que o perdão é ilimitado. Josué

serve como modelo de comportamento porque esteve disposto a levar a

Palavra de Deus e libertar o povo de Israel.

O que serve de exemplo para pensar o antimodelo é a caracterização

daqueles que não agem conforme pertencimento como em “pai que não

perdoa o filho, filho que não perdoa pai, esposo que não perdoa esposa”.

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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Na argumentação pelo Ser Perfeito, Deus é caracterizado pelo orador

como aquele “que libertou o povo”, aquele que “só age no coração que vive

os seus sentimentos de perdão”. Na oração também são retomados os

atributos divinos: “Senhor Pai Santo Deus eterno poderoso por Cristo, Senhor

nosso. (...) Ele é nosso salvador e redentor, verdadeiro homem”. A perfeição

de Deus faz com que Ele seja o principal modelo.

Os dados analisados caminharam no sentido de nos conduzir à maneira

metódica e introspectiva desta cerimônia. O ethos da mansidão, proposto pelo

tom tranquilo da voz dos oradores, sugere a própria imagem de um Deus que

o televangelho está propagando, um Deus manso.

Considerações Finais

Este artigo contempla uma possibilidade de análise teórica e se debruça

sobre um recorte estreito do campo religioso. Digo “estreito” porque dentro

deste campo há possibilidades infinitas de estudo. Busquei na religião cristã

duas de suas manifestações e nelas estabeleci outro recorte: o seu modo de

circulação, a mídia televisiva. Por conta disso, não posso querer concluir um

trabalho afirmando ter esgotado as possibilidades quando o que se apresenta

é uma entre muitas, um viés, um olhar. Mas posso dizer que essa proposta me

parece promissora tanto para minha própria formação quanto para incitar

outros leitores, pesquisadores e a quem for de interesse pensar outras

possibilidades de análise e de recorte. Não se trata apenas de pensar o campo

religioso como sendo vasto e fecundo para estudos da linguagem, mas, antes

disso, cabe pensar que o próprio “universo do discurso é radicalmente

diverso” (MAINGUENEAU, 2008a, p.41)

Verificou-se que cada modelo analisado tem um quadro cênico

determinado, em primeiro lugar, pelo discurso subjacente aos enunciados e,

em segundo lugar, pela escolha e articulação dos argumentos. Os discursos

analisados são produtos de uma mesma cena englobante (campo religioso) e

uma cena genérica (sermão televisionado), porém não são constituídos da

mesma materialidade discursiva, pois não se dão conforme a mesma

cenografia; são atos de fala diferentes. Ambos televangelhos são produtos de

enunciados formados por meio da pretensão de suas instituições e compõe

uma cenografia particular em cada enunciação.

FERRAZ, Sarah Menoya. Argumentação e cena da enunciação em televangelhos. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 199-217, dez.2013.

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O carrefour teórico AD/TA se justificou pelo fato de que os televangelhos

se dão pela construção de uma cenografia aliada a recursos argumentativos

que puderam ser colocados em categorias conceituais. O uso destes recursos

argumentativos fez com que o sermão fosse eficaz no propósito de manter

seu espaço discursivo do jeito que teria de ser. Ao argumentar usando os mais

diversos tipos de argumentos, a comunidade está produzindo a sua existência,

a sua materialidade, espelhando o tema do sermão que tende a enaltecer os

atributos divinos conforme sugere a própria instituição.

Essa articulação teórica, em suma, nos fez concluir que o que caracteriza

este discurso dentro deste contexto cristão não é a argumentação de

“verdades”. O que prevalece como característico é a identidade de um grupo

cuja existência se dá pelo fato de se inscreverem numa concepção de mundo

historicamente determinada por fatores externos aos enunciados e

compartilharem às teses outorgadas institucionalmente.

Segundo Maingueneau (2008a), o efeito de se produzir evidências é

provocado pelo discurso. Se se admite que os argumentos façam parte dos

elementos que constituem a cenografia e que esta legitima o discurso, então

Perelman & Tyteca não “pecam” em dizer que as evidências também são

forjadas pela argumentação, pois as premissas não são verdadeiras ou falsas,

mas verossímeis ou não verossímeis, sustenta-se a decisão como sendo justa,

equitativa, razoável, oportuna. Porém, deve-se ter o cuidado de compreender

que o ouvinte não está convencido pelos argumentos, mas está convencido

porque aceita ocupar o lugar proposto pelo discurso.

REFERÊNCIAS

CECHINATO, L. A missa parte por parte. Petrópolis: Vozes, 1979. FERREIRA, M. O. Estudo do discurso religioso sob a perspectiva da Nova Retórica. In: GARCIA, B.R.V.; CUNHA, C.L.; PIRIS, E.L.; FERRAZ, F.S.M.; GONÇALVES SEGUNDO, P.R. (Org.). Análises do Discurso: o diálogo entre as várias tendências na USP. São Paulo: Paulistana Editora, 2009. Disponível em: <http://www.epedusp.com.br/sumario.html>. Acesso em: 6 ago. 2013. MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a. ______. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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PROFESSORES EM MOVIMENTO DISCURSIVO: ESPAÇOS PARA

INTERPRETAÇÃO E AUTORIAi

Soraya Maria Romano Pacíficoii

Resumo: Fundamentados na Análise do Discurso pecheutiana, pretendemos investigar como se dá a assunção da autoria pelo sujeito-professor do Ensino Fundamental, participante do CADEP (Centro de Aprendizagem da Docência dos Egressos de Pedagogia). Esse centro, cujo objetivo é sustentar a relação entre ensino, pesquisa e extensão para os egressos do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), configura-se como um espaço pedagógico de apoio aos professores, visando a contribuir para o desenvolvimento profissional do professor e a organização do ensino em sala de aula. A metodologia de pesquisa deste trabalho prevê que, a partir da análise do material didático da Coleção Ler e Escrever, usado nas escolas públicas de São Paulo, os sujeitos-professores escrevam seus pontos de vista, por meio de textos argumentativos, acerca do modo como o conhecimento científico circula na escola, ou seja, quais considerações eles têm sobre o discurso científico (DC) e sobre o discurso de divulgação científica (DDC). A análise dos dados considera os textos argumentativos produzidos pelos sujeitos-professores, a partir do paradigma indiciário proposto por Ginzburg. Buscamos interpretar, também, como esses sujeitos legitimam, ou não, o uso do DDC na escola, visto que a presença do DDC pode implicar o silêncio do DC no contexto escolar. Os resultados mostram que, após os encontros com o grupo, com as discussões sobre os textos estudados, os professores assumiram a autoria e passaram a questionar a presença do DDC no livro didático, em detrimento do DC.

Palavras-chave: Discurso. Autor. Docência. Material Didático.

i Pesquisa realizada com o apoio da FAPESP (processo 2010/15782-6).

ii Docente da Universidade de São Paulo (USP), Brasil. E-mail: [email protected].

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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Abstract: Based on the Discourse Analysis by Pêcheux, we intend to investigate how the authorship assumption can be manifested by the subject-teacher of elementary school, participant CADEP (Learning Center of Teaching for Education Graduates). This center, whose purpose is to sustain the relationship between teaching, research and extension for the graduates of the Faculty of Philosophy, Sciences and Language of Ribeirão Preto in University of São Paulo (USP), is an educational space for teacher support, aiming to contribute to professional development of the teacher and to the organization of teaching in the classroom. The methodology of this study predicts that, by the analysis of didactic material from Collection Ler e Escrever (Read and Write), used in public schools of São Paulo, the subject-teachers write their viewpoints, through argumentative texts, about how scientific knowledge circulates in school, that is, what considerations they have on the scientific discourse (SD) and discourse of scientific divulgation (DSD). Data analysis considers the argumentative texts produced by subject-teachers from the evidential paradigm proposed by Ginzburg. We also seek to interpret how these subjects legitimate or not the use of the DSD in school, since the presence of DSD may involve silence of SD in the school context. Results show that after the group meetings with the discussions about the studied texts, the teachers assumed the authorship and began to question the presence of DSD in the didactic material to the detriment of SD.

Keywords: Discourse. Authorship. Teaching. Didactic Material.

PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.

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Introdução

Mas na realidade sua vida começava ao anoitecer, quando estávamos na cama, e ela

finalmente podia dedicar-se à leitura. (CANETTI, E. A língua absolvida)

Trazer para a reflexão a questão da autoria no contexto escolar,

especialmente, no que se refere ao professor reclama dialogar com muitos

sentidos que circula(ra)m sobre “ser professor”. É sabido, segundo a Análise

do Discurso pecheutiana (AD), que a construção dos sentidos é sócio-histórica

e que em cada momento são tecidos determinados sentidos, os quais podem

vir a ser outros, em outras circunstâncias discursivas. Seguindo esse raciocínio,

pode-se dizer que, se um dia o professor já foi considerado “dono do saber”,

cuja formação profissional terminava com o curso normal e, posteriormente,

com a graduação, na contemporaneidade, tais sentidos perderam a força,

deslizaram para formações discursivas que defendem a necessidade de

formação continuada e de espaços formativos nos quais o professor tenha a

oportunidade de dialogar, estudar e pesquisar, constituindo, assim, sua vida

profissional. Hoje, por exemplo, a pós-graduação passou a ser um horizonte

vislumbrado por muitos estudantes que concluem a graduação, o que em

outros tempos era o objetivo de poucos que pretendiam seguir a carreira

acadêmica.

Esse movimento de busca por espaços formativos também foi

observado nos egressos do curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP. Diante disso, interessa-me, aqui,

apresentar uma pesquisa que realizei com os participantes do CADEP (Centro

de Aprendizagem da Docência para Egressos da Pedagogia), que se constitui

como espaço discursivo para que os professores produzam conhecimento

e(m) suas práticas pedagógicas. Esse Centro, coordenado por mim e por outra

professora, Elaine Sampaio Araujo, configura-se como um espaço pedagógico

de apoio aos professores em início de carreira, visando a constituir uma

comunidade de aprendizagem docente, tendo como foco o desenvolvimento

profissional do professor e a organização do ensino em sala de aula. O CADEP

contempla duas áreas de estudo de grande interesse dos professores: Língua

Portuguesa e Matemática, sendo representadas, respectivamente, pela OPL

(Oficina Pedagógica de Língua Portuguesa) e pela OPM (Oficina Pedagógica

de Matemática).

PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.

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O grupo que participa do CADEP é constituído por professores recém-

formados; professores com longa experiência em sala de aula; mestrandos,

mestres e doutorandos. O diálogo construído pelo grupo possibilita a troca de

saberes, de práticas e experiências, o que nos tem proporcionado grande

crescimento e, por que não dizer, o grupo está construindo uma identidade

com a posição sujeito-professor, lembrando que esta é uma das posições

possíveis para o sujeito ocupar. Essa questão será melhor apresentada

adiante.

Considerando a abrangência do tema, a saber, a formação e atuação do

professor, um recorte fez-se necessário para a escrita deste artigo. Sendo

assim, a meu ver, quando se discute a formação e atuação de professores, um

dos pontos centrais da discussão consiste em compreender como os docentes

se relacionam com a escolha dos materiais didáticos e como eles ocupam a

posição discursiva de autor e a de leitor, pois cabe aos professores, em grande

medida, a responsabilidade por ensinar aos alunos as atividades de leitura e

escrita; consequentemente, a formação de leitores e autores. Disso decorre

que, se o professor não ocupar o lugar de autor de seus textos, dificilmente

ele construirá condições discursivas para que seus alunos ocupem tal lugar, o

que gera um cenário de alunos copistas, e a cópia, como sabemos, não lhes

permite assumirem a responsabilidade pelo dizer (condição para a autoria), já

que os sentidos copiados têm autoria alheia.

Pesquisas mostram que escrever não é tarefa tão fácil para o professor.

Carvalho (2008) e Souza (2012) analisaram a escrita do sujeito-professor na

produção de textos narrativos e dissertativos, respectivamente, e apontaram

que os professores manifestaram resistência para escrever, pois muitos que

tinham aceitado participar de suas pesquisas desistiram, não entregaram os

textos ao pesquisador. Essa resistência para escrever e entregar os textos,

segundo as autoras (idem), funciona, discursivamente, como um indício da

não identificação dos sujeitos-professores com a escrita. Além disso, dentre

aqueles que entregaram os textos escritos, poucos assumiram o lugar de

autor. Com esses resultados, Carvalho (2008) leva-nos a questionar: como os

professores formarão alunos autores se eles próprios não ocupam tal posição

discursiva ao produzir seus textos?

Essas palavras iniciais situam o leitor no que se segue. Apresentarei,

conforme os conceitos teóricos da Análise do Discurso pecheutiana, uma

análise de textos escritos pelos professores que frequentam o CADEP,

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especialmente os participantes da OPL. A escolha dos sujeitos justifica-se pelo

seguinte pressuposto: se os professores procuram o CADEP e a OPL é porque

têm o interesse pelas questões que perpassam o contexto escolar; logo, pela

leitura, escrita, autoria, dentre outras tantas. Soma-se a isso que, a meu ver, o

CADEP funciona como um espaço discursivo no qual as condições de

produção dos discursos são favoráveis para a produção textual, conforme

veremos. Cabe ressaltar que:

[...] o sujeito da linguagem não é um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo enquanto tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma social dessa apropriação (ORLANDI, 1996, p. 188).

Disso decorre que não me refiro ao sujeito considerando o professor

como um indivíduo de sexo feminino ou masculino, jovem ou idoso, alto ou

baixo; entendo, segundo a teoria pecheutiana, sujeito como uma posição

discursiva que o indivíduo, interpelado pela ideologia, ocupa para produzir seu

dizer, cujo sentido é produzido de acordo com as circunstâncias sócio-

históricas que afetam o sujeito e os discursos por ele produzidos.

E como se dá a relação do sujeito com os sentidos, na escola? Em relação

ao livro didático, quem já pisou o chão escolar sabe que, muitas vezes, ele

circula como o único meio de leitura na sala de aula. Pesquisas (CORACINI,

1999; GRICOLETTO, 1999; PACÍFICO, 2007) mostram que muitos professores -

capturados pela ideologia, que faz parecer evidente o sentido de ser o livro

didático uma autoridade no assunto -, fazem seus alunos apagarem as

respostas quando estas não estão de acordo com o que está escrito no livro,

sem questionarem, ou polemizarem, sequer interpretarem outra possibilidade

de resposta dada pelo aluno. Para a AD, a interpretação é uma questão

ideológica. O analista expõe-se à opacidade do texto, não busca o que “x”

quer dizer, mas sim, por que se diz “x” e não “y”. Esse trabalho com a

interpretação, a meu ver, fica à margem das atividades que constam no livro

didático, as quais se sustentam na ilusão de evidência dos sentidos, em uma

análise do conteúdo, como se o sentido do texto só pudesse ser um.

Entendo que essa prática leva o aluno a assumir a fôrma-leitor, posição

discursiva que permite ao sujeito apenas a repetição de um sentido (PACÍFICO,

2002), o que pode ser observado no livro didático por meio das perguntas

fechadas, das respostas prontas, marcando a necessidade da repetição. Além

disso, o livro didático não trabalha o interdiscurso no intradiscurso, não coloca

PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.

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em curso a constituição história dos sentidos, pois no material encontramos

resumos de textos, recortes, frases descontextualizadas, preenchimento de

lacunas, atividades que criam a ilusão de ser possível esgotar determinado

conteúdo, em cada capítulo ou unidade.

Tais atividades dadas como prontas, como completas, como aquelas que

bastam para o aluno aprender sobre determinado referente, podem ser

compreendidas a partir de Grigoletto (1999) como sendo o livro didático um

discurso de verdade. Ao contrário do que defende a teoria discursiva, ou seja,

que o caráter de incompletude é constitutivo da linguagem, o livro didático

trabalha com a ilusão de completude.

Outro ponto merece destaque. Ao analisar os livros didáticos usados,

atualmente, em escolas públicas e particulares, é possível constatar que eles

têm dado muito espaço para a circulação do discurso de divulgação científica,

ou jornalismo científico. Essa questão é de grande interesse para este

trabalho. Ao proceder dessa maneira, o discurso científico fica silenciado e os

alunos entram em contato com sentidos construídos por um jornalista e não

pelo cientista. O conceito de silêncio pode ser melhor compreendido com as

palavras de Orlandi:

Com efeito, a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada. [...] Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 1997, p. 75-76).

A autora faz uma distinção entre silêncio fundante e silêncio político, a

censura. Segundo ela, o controle do silêncio político é possível porque existem

“mediadores” (personagens discursivos), ou seja, vozes de autoridades que

têm o poder de administrar a produção dos sentidos e, portanto, a

distribuição do conhecimento, contribuindo para a formação do consenso,

isto é, essas vozes determinam quais os sentidos que podem ser conhecidos e

quais devem permanecer em silêncio. “Essas vozes se representam em

lugares sociais de legitimação e fixação dos sentidos e desempenham um

papel decisivo na institucionalização da linguagem: a produção do sentimento

de unicidade do sentido” (ORLANDI, apud GUIMARÃES, 1989, p. 43-44). Em

cada momento histórico, protagonistas diferentes podem assumir o papel de

mediador, como o sacerdote, o intérprete, o crítico, o intelectual, o jurista, a

PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.

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mídia, o livro didático, mas seja qual for o mediador, ele sempre representará

a classe dominante.

Os ecos das vozes autorizadas a atribuir/distribuir sentidos produzem,

ilusoriamente, uma voz social homogênea, controlam os sentidos que o

sujeito pode produzir ou não. O processo de silenciamento está presente na

escola, por meio dos “mediadores” (livros didáticos, professores, autores

consagrados). Assim, a distribuição do sentido está ligada à relação de poder e

isso é verificado na instituição escolar, lugar onde essa relação é bem

acentuada.

Por não considerar “natural” que os alunos tenham acesso a um desvio

daquilo que seria o texto científico, ficando na ilusão de que tiveram

conhecimento dos resultados das pesquisas científicas, quando, na verdade,

tiveram acesso a um dizer transformado e simplificado sobre os resultados do

que foi pesquisado, defendo a relevância de analisar qual é o posicionamento

do professor acerca dessa questão, considerando que ele pode representar a

voz de autoridade que determinará o que pode ou deve circular em sala de

aula.

Para ter acesso a tal posicionamento, analisei com os professores, nos

encontros do CADEP/OPL, os livros didáticos da Coleção Ler e Escrever. Após a

análise e discussão, os professores escreveram seus pontos de vista em

relação ao material analisado. Segundo Orlandi (1996, p. 75), “O lugar do autor

é determinado pelo lugar da interpretação”. Partindo desse pressuposto, para

pesquisar a autoria do sujeito-professor, analisei, em sua escrita, como ele

interpreta e produz sentidos sobre o funcionamento discursivo do livro

didático. Ao assumir a autoria, o sujeito tenta controlar a dispersão dos

sentidos, uma vez que as partes do texto em que vigora a autoria são

encadeadas de modo harmônico e coerente. Vale ressaltar que a autoria não

se restringe à construção de textos coesos e coerentes, pois o sujeito que

ocupa o lugar de autor trabalha tanto a estrutura da língua quanto a

historicidade que sustenta a construção de sentidos.

Tendo como objeto de análise o princípio de autoria e o modo como o

livro didático faz circular os discursos, observei que, no início dos nossos

encontros com os sujeitos-professores, antes de iniciarmos nossos estudos e

discussões acerca do discurso científico e do discurso de divulgação científica,

no livro didático, muitos professores defendiam esse modo mais simples de

tratar um tema, posto que isso “aproximaria os alunos do texto, facilitando

PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Professores em movimento discursivo: espaços para interpretação e autoria. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 218-234, dez.2013.

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sua compreensão”, haja vista que a linguagem usada no discurso de

divulgação científica é carregada de diminutivos, de “sinônimos” que

imaginariamente o aluno pode compreender, imaginário que se sustenta

numa concepção de sujeito-aluno incapaz de interpretar um texto mais

elaborado, tal qual o científico.

Entretanto, no decorrer dos encontros, com base nos estudos e

discussões realizadas no grupo, os sujeitos-professores passaram a dar

indícios de migração para uma formação discursiva que duvida desse

imaginário de sujeito-aluno, pois os professores começaram trabalhar a

nomenclatura científica de plantas e lagartas e constataram o interesse dos

alunos do Ensino Fundamental I pelo “novo”, pelo “diferente”, e até pela

dificuldade que muitos tiveram para pronunciar determinados nomes

científicos, dificuldade que lhes movimentou em busca do saber.

Conforme Orlandi (2001), no discurso científico a terminologia serve para

organizar, para dar uma “ancoragem” científica. O que seria significado numa

formulação científica, pela sua metalinguagem específica em direção à

produção da ciência é deslocado, no jornalismo científico, para (a encenação

de) uma terminologia que permite que a ciência circule, que se entre assim em

um “processo de transmissão”.

Baseado nas formações imaginárias do que seria um leitor do texto

midiático, o jornalista, por meio de mecanismos linguísticos, tais como uso de

diminutivos, a tentativa de buscar uma suposta relação de sinonímia mais

usada coloquialmente, ou a inscrição do discurso do senso comum no discurso

de divulgação científica pode transformar, ou deformar o discurso científico.

Consequentemente, ocorre uma interdição do sujeito-leitor à formação

discursiva própria do discurso científico ao colocar em funcionamento

sentidos construídos pelo discurso de divulgação científica.

Feita essa breve contextualização teórica, apresento, a seguir, alguns

recortes dos textos construídos pelos sujeitos-professores sobre esse

funcionamento discursivo. Os recortes, aqui, não devem ser compreendidos

como uma sequência linear com começo, meio e fim, mas sim como pedaços

do discurso, nos quais se encontram materializados linguisticamente os

indícios de um modo de funcionamento discursivo que mantém relação com o

fio discursivo, ou seja, com o já-dito e com aquilo que está por vir. As análises

sustentam-se no paradigma indiciário de Ginzburg (1980), que auxilia o

analista a compreender as pistas, ou seja, as marcas linguísticas de alguns

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recortes dos escritos que consideramos mais significativos para efeito de

análise.

Recorte 1: (Sujeito A)

Para que possamos interpretar sentidos e, assim, analisar as formações discursivas a partir das quais os sujeitos inseridos no cotidiano escolar produzem sentidos, pesquisamos em Livros Didáticos (LD) qual é a posição discursiva imaginada e permitida para o sujeito-leitor que trabalha, cotidianamente, com esse material, em sala de aula, ou seja, investigamos como o material escolar apresenta os textos e a sua concepção de linguagem.

Interpretando as marcas linguísticas presentes no recorte, as quais

indiciam determinado funcionamento discursivo, considero que o sujeito

realizou um movimento analítico ao escrever sobre o tema: ele considera que

precisa “analisar”, “investigar” as formações discursivas, o material escolar a

fim de ter elementos para “interpretar” e escrever sobre o que lhe foi

proposto. Esse sujeito marca a relevância da pesquisa para o percurso

analítico. Ele não se prende ao visível, à ilusão de evidência das questões do

livro; ao contrário, busca analisar o funcionamento do material e as

implicações disso para o sujeito-leitor. O gesto de interpretação é necessário

para a assunção da autoria, pois é a partir da interpretação que o sujeito

inscreve-se no fio discursivo para produzir seu dizer.

O autor, embora não instaure discursividade (como o autor “original” de Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros. Esta é sua particularidade. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer (ORLANDI, 1996, p. 69-70).

Dando sequência ao que observamos sobre o percurso do sujeito pela

opacidade dos sentidos que até então pareciam naturais para o sujeito-

professor, o recorte abaixo diz respeito a uma análise que questiona o fato de

o livro didático buscar no site da Faber-Castell e não em livros de Biologia ou

Ciências, por exemplo, informações sobre Ecossistema. Vejamos.

Recorte 2: (Sujeitos A e B)

Podemos observar que o conceito de Ecossistema presente no material Ler e Escrever foi retirado do site comercial da empresa Faber-Castell. A Faber-Castell é um dos grupos industriais mais antigos do mundo, e existe desde 1761, oferecendo produtos para escrita, desenho, pintura e trabalhos criativos para

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pessoas de todas as idades. Na escola a maior parte dos produtos consumidos desta empresa são os lápis. Sabemos que para alcançar alta produção de lápis a Faber-Castell desmata milhões de árvores por ano. Embora a empresa divulgue prezar e ter cuidados com o meio ambiente, por meio de políticas de preservação e sustentabilidade, o nosso Ecossistema é afetado cada vez que uma árvore é retirada de seu habitat para compor um negócio rentável de produção em grande escala.

Esse olhar crítico indicia que os sujeitos-professores autorizaram-se a

ocupar outro lugar para produzir sentidos, a saber, o lugar de autor. Ao

analisar o material didático como sujeito que pode ler, interpretar, criticar,

enfim, posicionar-se sobre o material que ancora a prática pedagógica, nas

escolas estaduais paulistas, o professor sai da posição de consumidor do livro

(CORACINI, 1999) e assume a posição de pesquisador. Os sujeitos A e B não só

criticam a fonte de onde o texto foi retirado, mas também o silêncio do

discurso científico no livro didático. Essa mudança de posição discursiva tem

implicações para os sujeitos-escolares (professores e alunos) em relação ao

processo de construção dos sentidos, especialmente, no que diz respeito à

constituição do sujeito-autor. Pela leitura do recorte seguinte, podemos

compreender algumas condições necessárias para a autoria.

Recorte 3: (Sujeitos C e D)

Tendo partilhado junto à Oficina Pedagógica de Língua Portuguesa (CADEP-FFCLRP-USP), sob a coordenação da Professora Soraya Maria Romano Pacífico, momentos de reflexão teórica sobre o ensino de nossa língua materna, cujos referenciais se encontravam na Análise do Discurso (AD), de ‘linha francesa’, sendo Michel Pêcheux seu maior expoente, é que se instalou em nós a pretensão de se analisar materiais didáticos que estivessem em uso nas escolas de nossa cidade, Ribeirão Preto. Dessa forma, escolhemos como nosso objeto de estudo a coletânea de livros didáticos intitulada “Ler e escrever”, a qual é utilizado pelas escolas públicas estaduais de São Paulo para o ensino da Língua Portuguesa nas séries iniciais do ensino fundamental. Nosso trabalho se realizou buscando, pois, pensar os conceitos de identidade e subjetividade, nas propostas do material, e tendo em vista ainda verificar se e como tais propostas visam o uso da escrita e da leitura como prática social e não meramente prática escolar. A escolha deste recorte se deu por questões de afinidade e experiência em nossas pesquisas individuais, na graduação e no mestrado, e que pretendemos aqui integrá-las. Sendo assim é que nos propomos analisar os livros didáticos de trabalho em salas de aula de alfabetização, isto é, aqueles direcionados ao 1º ano do ensino fundamental, na tentativa de compreender as propostas de trabalho com a língua(gem) por eles apresentadas, assim como a ligação das mesmas com os textos utilizados, visando encontrar uma relação possível entre o ler, o escrever e a identificação do sujeito com tais atividades e com os sentidos que elas colocam em movimento.

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Apoiando-me nos sentidos colocados em curso, entendo que o CADEP

constitui-se como um espaço para a construção da autoria do sujeito-

professor. Segundo os sujeitos C e D do recorte 3, tal espaço de discussão e

contato com a teoria “instalou em nós a pretensão de se analisar materiais

didáticos que estivessem em uso nas escolas de nossa cidade, Ribeirão Preto”.

E prosseguem: “A escolha deste recorte se deu por questões de afinidade e

experiência em nossas pesquisas individuais, na graduação e no mestrado, e

que pretendemos aqui integrá-las”. Temos, neste recorte, a materialização de

duas condições fundamentais para a autoria: a pretensão (a coragem de

escrever, de publicar) e a afinidade (a identificação do autor com aquilo que

escreve).

Não estou me referindo à identidade como algo individual, como

unidade. Ao contrário, o sujeito para a AD é heterogêneo, cindido, dividido e,

ao ocupar o lugar de autor, ele se filia a determinada formação discursiva com

a qual se identifica e, movimentando-se por ela, tentando controlar a

heterogeneidade que o domina e, por isso mesmo, às vezes, migrando,

coerentemente, para outras formações discursivas, ele produz seu dizer. A

autoria é tecida e provoca a identidade do autor com os sentidos que ele

discursiviza, com a entrada do sujeito em determinada região de sentidos.

Rodrigues também defende essa ideia:

A fruição, o prazer, a escolha pela escrita são as primeiras condições para a constituição do sujeito-autor e estão ligadas à elaboração de uma escrita que não se curva a padronizações, tampouco precisa ser tolhida por elas. [...] Afinal, que autor escreve algo significativo por obrigação, forçado? (RODRIGUES, 2011, p. 57).

A meu ver, os sujeitos-autores do recorte 3, que ocupam, dentre tantas,

a posição sujeito-professor da rede pública, desconstroem o sentido

dominante que desqualifica o professor da Educação Básica, especialmente o

discurso propagado pela mídia. Eles autorizam-se a analisar um material

didático legitimado pelo governo estadual, para ser usado nas escolas de São

Paulo, examinando-o com olhos de quem duvida da evidência dos sentidos,

pois não é pelo fato de ter sido elaborado e eleito pelo Estado de São Paulo

como o material didático a ser distribuído nas escolas estaduais, e agora, até

nas municipais, que o mesmo não seja passível de análise, do olhar crítico do

sujeito-professor acerca da organização, conteúdo, silêncios e ideologia que

fazem o material ser como é.

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Autor: que lugar é esse, que poder é esse, que voz é essa?

Desde Foucault, em sua conferência proferida, em 1969, no Collège de

France, temos o eco da pergunta “O que é um autor”? A meu ver, até hoje

essa questão se impõe e as respostas são muitas, visto que o conceito de

autoria não é homogêneo dentre os pesquisadores que se ocupam desse

estudo. Aqui, não parto da relação da obra com o nome próprio, com o nome

do autor, tal como o fez Foucault, nem de sua concepção de “função-autor”

compreendida pelo teórico como “característica do modo de existência, de

circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma

sociedade” (FOUCAULT, 1969/2011, p. 8). Entendo o conceito de autor como

uma posição discursiva que todo sujeito pode ou não ocupar ao produzir seu

discurso, oral ou escrito; logo, uma posição possível para todos, não derivada

de um processo de seleção e de exclusão, como entendia Foucault (idem).

Essa posição discursiva, no meu entendimento, pode ser pensada a

partir do conceito de forma-sujeito (PÊCHEUX, 1995) que se refere à forma de

existência histórica de qualquer indivíduo, agente de suas práticas sociais. Este

conceito, compreendido no âmbito do discurso, constrói-se pela interpelação

do indivíduo em sujeito de seu dizer, o que acontece devido a sua

identificação com a formação discursiva que o domina, de tal forma que o

sujeito reinscreve o interdiscurso (o já-lá) no “seu próprio” discurso,

assumindo a forma-sujeito. Assim, é no interior de uma formação discursiva

que se realiza o assujeitamento do sujeito do discurso e sob a aparência de

autonomia, a forma-sujeito dissimula o assujeitamento.

Com base no que foi exposto e sem perder de vista a autoria, estabeleço

a seguinte relação: a forma-sujeito pode ocupar a posição de autor quando o

sujeito inscreve-se em seu dizer assume a responsabilidade pelas palavras que

coloca em curso ao trabalhar a/na relação interdiscurso e intradiscurso e, a

partir disso, sente-se ilusoriamente “dono” dos sentidos que constrói em

dado contexto sócio-histórico. Isso significa que o autor não despreza o fato

de que a produção dos discursos vai além do conhecimento linguístico. O

autor compreende que língua e sujeito estão ligados à exterioridade; logo, os

sentidos construídos pelo autor não podem estar deslocados dessa intrínseca

e incompleta relação.

Mas, afinal, como pensar o autor na escola, já que é desse lugar que falo

e é nele que pretendo construir espaços para a assunção da autoria? Começo

por explicar por que uso “assunção da autoria”. Pesquisas (PACÍFICO,

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2002/2012; RODRIGUES, PACÍFICO, 2007; TIZIOTO, PACÍFICO, ROMÃO, 2009;

ASSEF, PACÍFICO, 2012) sustentam que a autoria é uma posição possível para

todos; porém, não é ocupada, naturalmente, por todos. Há uma relação de

poder embasando a disputa pelo lugar de autor e essa disputa ocorre, no

contexto escolar, de modo velado, passando despercebida pela maioria dos

sujeitos-escolares, entendidos, aqui, por professores e alunos.

Um instrumento de poder que controla o acesso à autoria, de modo

silencioso, é o livro didático. Uma rápida análise dos livros didáticos permite

ao analista observar que, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, a

organização dos capítulos, das unidades, dos conteúdos que compõem as

páginas que serão lidas e preenchidas pelos alunos é a mesma, baseada na

atividade de copie e cole, aprendida no decorrer dos anos escolares e

transferida, hoje, para o trabalho feito em computador, especialmente, no que

se refere às cópias feitas dos textos que circulam na internet. Tal prática tem

trazido consequências relativas a como se dá e se controla a autoria na rede

eletrônica, mas este não é o foco deste trabalho, embora o cerne da questão

“copie e cole” possa ser transferido para se pensar o funcionamento dos

livros didáticos, o que provoca a interdição à autoria na escola, como temos

constatado.

Professores e alunos: quem é, quem pode ser autor? Apesar de termos

muitos estudos sobre autoria, especialmente a partir do século XX, ainda é

discurso dominante na escola atribuir a função-autor aos autores

consagrados. Se essa ideia vigora, como autorizar professores e alunos a

serem autores?

Não me resta dúvida de que a autoria está diretamente ligada à

interpretação, como já me posicionei acima. Não se refere apenas à escrita,

mas antes, à leitura e aos movimentos de interpretação. Por isso, desde o

início da investigação que apresento neste artigo, construímos, eu e os

sujeitos da pesquisa, espaços para leitura e interpretação dos textos que

sustentaram os escritos dos professores. Não me restrinjo a pensar a autoria

relacionada a um espaço geográfico delimitado, mas, certamente, este é

essencial. Portanto elegemos o Laboratório Paulo Freire, da FFCLRP-USP,

como espaço para os encontros do CADEP/OPL e como lugar de leitura e

interpretação dos textos selecionados para serem estudados e discutidos por

nós. Importante ressaltar que não é suficiente para o sujeito ter um espaço,

uma sala, um sofá para leitura se não houver um trabalho de leitura e

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interpretação que seja a base para a construção das condições discursivas

para a autoria.

Essa concepção sustenta-se em minha pesquisa de doutorado

(PACÍFICO, 2002), na qual formulei os conceitos de fôrma-leitor e de função-

leitor, conforme apresentados e melhor explicados a seguir. É em relação ao

movimento do sujeito que entendo as posições discursivas de fôrma-leitor e

de função-leitor; a partir desta, o leitor compreende que o sentido é

construído em processo, em movimento (função - funcionamento -

movimento), pois há um continuum movimento (sócio-histórico) responsável

pela produção dos sentidos. Por outro lado, ao ocupar a fôrma-leitor, o sujeito

não compreende tal movimento e procura um sentido limitado ao texto,

caracterizando, realmente, a metáfora da fôrma.

Ressalto que o conceito de fôrma-leitor tal como apresentei em Pacífico

(2002) não corresponde à noção de forma-sujeito defendida por Pêcheux

(1995), visto que a forma-sujeito tal como concebida por este autor é

constitutiva do sujeito e este identifica-se com ela, através da formação

discursiva que o domina. Já a fôrma-leitor não é constitutiva do sujeito, mas é

uma das posições que o sujeito pode assumir em suas práticas de linguagem,

posição esta determinada pela instituição dominante que procura apagar as

diferenças existentes entre os sujeitos, criando um efeito de sentido de

homogeneidade. Por outro lado, a forma-sujeito pode assumir a função-leitor

e questionar os efeitos de persuasão e manipulação produzidos por

determinados discursos que pretendem criar o efeito de universalidade do

sujeito.

Estabelecida essa relação, entendo que ao assumir a função-leitor, o

sujeito se inscreve em espaços interpretativos que lhe conferirão a entrada

para a autoria. Em relação à pesquisa que apresento, posso dizer que os

textos lidos e interpretados nos encontros e, com certeza, além deles,

permitiram o acesso dos sujeitos-professores ao interdiscurso que sustentou a

organização dos sentidos produzidos no intradiscurso, movimento esse tão

caro à autoria. Ao mesmo tempo, pelas leituras, a memória discursiva

reverberou, funcionando como base para a interpretação e produção de

sentidos outros. Considerar os conceitos de interdiscurso, arquivo, memória

discursiva fez com que o grupo refletisse sobre as condições que dão

sustentação à autoria. Em nossos encontros, discutimos esses conceitos à luz

da Análise do Discurso. Como escrever, como ser autor sem instaurar um

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paradigma novo, mas ao mesmo tempo, não copiar, não repetir os sentidos,

se ao longo dos anos escolares muitos sujeitos assim o fizeram?

Novamente, volto ao conceito de função-leitor que sustenta os gestos

de interpretação, os quais, por sua vez, sustentarão a autoria. Dessa forma, os

professores pensaram sobre seus gestos de interpretação e autoria e, por

extensão, em suas práticas pedagógicas, no trabalho que eles realizam com a

linguagem, em sala de aula, e como isso pode abrir ou fechar as portas para o

espaço autoral. Com base nisso e nos resultados desta pesquisa, constato que

os sujeitos-professores ocuparam a função-leitor, interpretaram e discutiram

os textos científicos estudados em grupo e, com base nas discussões,

analisaram o material didático, como apresentei nas análises. Diante da

decisão de escolher qual tema analisar, quais sentidos colocar em curso, de

assumir a responsabilidade pelas escolhas lexicais e escrever sobre o material

didático, os sujeitos da pesquisa autorizaram-se a ocupar o lugar de autor dos

capítulos que construíram, com suas vozes de sujeito-professor, um livro

sobre um material didático trabalhado em muitas escolas do Estado de São

Paulo, intitulado Professor e autoria: interpretações sobre o Ler e Escrever.

Considerações finais

Minha experiência no curso de Pedagogia permite-me reconhecer quão

necessária é a criação de condições de produção para a assunção da autoria,

tanto de professores quanto de alunos, no contexto escolar. Não ignoro que

em todos os níveis de escolaridade ainda não é tarefa fácil atingir tais

condições. Se a escola básica e a universidade não garantem a formação de

autores, enfatizo a importância de espaços privilegiados para os professores

compartilharem suas experiências e sustentá-las teoricamente. Como

constatei, o CADEP configura-se como um espaço favorável para que o sujeito-

professor assuma a função-autor.

De acordo com as análises apresentadas, observei, inicialmente, que os

professores tinham um olhar que não estranhava a opacidade do modo como

o livro didático faz circular, em suas páginas, o discurso jornalístico que

pretende divulgar o conhecimento científico. No entanto, a partir do contato

com o grupo, com as discussões dos textos propostos para estudo, os

professores passaram a assumir a autoria e questionar alguns sentidos que

constituem o discurso pedagógico tal qual funciona no livro didático, que

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antes da pesquisa eram considerados naturais. Em espaços discursivos nos

quais os sujeitos sintam-se autorizados a ler, escrever e interpretar,

professores e alunos poderão construir seus textos, quebrando, assim, um

ciclo pedagógico segundo o qual a poucos é concedido o direito de construir

sentidos e a muitos a obrigação de reproduzi-los. Com base nisso, entendo

que a constituição de espaços de interlocução, de estudos e de autoria,

contribuirá para que a docência seja um constante processo de/em formação.

LIVRO DIDÁTICO ANALISADO

SÃO PAULO. Ler e Escrever: livro de textos do aluno. Secretaria da Educação. Fundação para o Desenvolvimento da Educação. FDE, 2010.

REFERÊNCIAS

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DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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A ADESÃO EM PERELMAN: REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO RETÓRICO1

Emmanuelle Danblon2

Introdução

O Tratado da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca marca

etapa crucial na renovação dos estudos da argumentação no século XX. Desde

o início, a empreitada se declara abertamente aristotélica, como o testemunha

o subtítulo La Nouvelle Rhétorique. Por essa razão, a questão do auditório é

objeto de uma reflexão ainda bem mais rica, porque ela se ancora em uma

problemática própria das sociedades modernas.

1 A Nova Retórica como teoria da adesão

A reflexão de Perelman sobre o auditório se oferece como um conjunto

de intuições tão brilhantes quanto fecundas sobre as fontes e o estatuto da

adesão, a tal ponto que, segundo ele, o campo da retórica deve doravante

definir-se como:

[...] o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao seu assentimento (PERELMAN, 2004, p. 57).

E ele acrescenta que esse campo de reflexão deve forçosamente se

situar nos confins da lógica e da psicologia. Antes de tudo, a lógica se dá como

o antimodelo da retórica, assim como, em Aristóteles, a dialética era correlata

1 Referência da publicação original:

DANBLON, Emmanuelle. L'adhésion chez Perelman. Réflexions sur la pensée rhétorique. In: OLIVEIRA, Eduardo Chagas (Org.). Chaïm Perelman: Direito, Retórica e Teoria da Argumentação. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia, 2004. p. 81-93.

2 Docente da Univesité Libre de Bruxelles (ULB), Bélgica. E-mail: [email protected].

DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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(antistrophe) à retórica. De fato, enquanto o nominalismo e o positivismo

desejavam reduzir a retórica ao estudo da argumentação por provas formais,

comparáveis ou, ao menos, análogas àquelas que se encontram nas

demonstrações, Perelman procura dar à disciplina oratória todo seu relevo

humano e social, e disso, então, o interesse declarado pela psicologia, ainda

que ele prefira a intenção programática ao pensamento sistemático:

A argumentação a respeito das interpretações da experiência entrará em jogo, e os procedimentos utilizados para convencer o adversário farão, é claro, parte de nosso campo de estudo. É o que acontecerá quando o comerciante pretende defender a brancura de um brilhante onde o comprador vê reflexos amarelados, quando o psiquiatra se opõe às alucinações de seu paciente, quando o filósofo expõe suas razões para recusar objetividade à aparência (PERELMAN, 2004, p. 58).

Ainda a respeito disso, Perelman é aristotélico já que, como o autor da

Retórica, ele protege sua disciplina de qualquer redução ao pensamento

formal, exigindo para ela uma teoria das paixões – dir-se-ia hoje, “uma teoria

das emoções”.

2 Persuadir e convencer

Esse novo programa retórico está fundamentado na vontade de

ultrapassar a distinção clássica entre convicção e persuasão. A primeira é tida

como aquela que se dirige à razão, enquanto a segunda solicitaria as emoções.

Mas Perelman destaca o fato de que essa oposição não pode satisfazer um

pensamento que busca ultrapassar os quadros de um racionalismo estreito. Se

a retórica cuida da adesão, isso implica que o orador deve juntar um preço ao

papel que desempenha o auditório na formação dos argumentos. Isso implica

que o orador e o auditório devem formar uma comunidade argumentativa

previamente a qualquer tentativa de persuasão, sem o que o auditório não

seria capaz de escutar os argumentos do orador. Ora, os auditórios são

variados. Por outras palavras: o que leva à adesão em certo caso não leva em

outro, o que é válido ou razoável para alguns não será obrigatoriamente para

outros.

Atrás de tal constatação aparece o fantasma do relativismo, do

subjetivismo, até mesmo do arbitrário das normas e decisões. Mas essa

relatividade dos juízos toma, no pensamento moderno, um contorno

particularmente trágico que não havia no pensamento aristotélico, não

DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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preocupado, então, com a universalidade. De fato, na democracia ateniense, a

relatividade dos juízos e auditórios não era problemática senão por razões

práticas: “o que fazer para levar a adesão a um número maior?”.

Frequentemente, aliás, diante da variabilidade dos auditórios, Aristóteles dá

conselhos de orador em vez de teorizar.

Nascido em era filosófica que quer crer na universalidade dos direitos, o

pensamento de Perelman não poderia satisfazer-se com conselhos práticos

face à relatividade dos auditórios. É essa, sem dúvida, a razão pela qual só uma

teoria retórica moderna poderia pensar a noção de “Auditório Universal”.

Inspirada pela filosofia das Luzes, a noção é concebida como um princípio

regulador, modelo ideal da razão humana. Procurei mostrar alhures3 o quanto

o conceito de auditório universal permanecia ambivalente no pensamento de

Perelman; aqui, apenas retenhamos que, em sua interação com os auditórios

particulares, ele associa globalmente a oposição entre persuasão e convicção:

“Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só

para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a

adesão de todo ser racional” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 31).

Então, mesmo que Perelman busque ultrapassá-la, a oposição tradicional

entre persuadir e convencer encontra-se reforçada, já que ela funda a

definição dos auditórios.

3 A noção de pseudo-argumento em Perelman

Essa dificuldade pode ser ilustrada pela noção de “pseudo-argumento”.

Para Perelman, essa etiqueta recobre os casos em que um auditor poderia

julgar um argumento persuasivo, não o considerando convincente no sentido

de que ele não seria válido. Em outros casos, se utilizará um pseudo-

argumento, esperando, com isso, persuadir o auditório a que se dirige.

Imaginemos a seguinte situação: uma jovem africana, que chegou à Europa há

pouco tempo, está ansiosa para ver o seu pequeno filho que está resfriado. Ela

está persuadida de que a sua sogra, que ficou na África, envia maus fluidos à

criança, o que lhe aumenta ainda mais a angústia. A mulher da casa onde a

jovem trabalha assegura-lhe que as crianças sempre ficam doentes no inverno,

e que alguns medicamentos e vitaminas contribuirão para o rápido

restabelecimento de seu filho. Mas a moça não parece convencida. Sua

3 Para uma reflexão global sobre a noção do Auditório Universal em Perelman, ver Danblon, 2004.

DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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empregadora lhe afirma, então, que as maldições perdem a eficácia em tal

distância geográfica, e aí o argumento parece obter a sua adesão a ponto de

tranquilizá-la completamente. A jovem decide, então, levar a criança ao

médico para tratamento.

Nesse caso, Perelman afirmaria que aquela que busca persuadir a moça

utiliza um pseudo-argumento, isto é, um argumento que ela, por si mesma,

não julga convincente, mas que, segundo ela pensa, terá a sorte de persuadir

o auditório particular ao qual ele é dirigido.

Essa pequena história aplicada à noção perelmaniana de pseudo-

argumento revela, de imediato, as questões éticas e epistemológicas que esse

conceito levanta. Antes de tudo, o pseudo-argumento se revela relativo a um

ponto de vista: o do orador ou o do auditório. No caso em questão, dir-se-á

que o argumento da distância geográfica e da má sorte não é qualificado por

“pseudo” senão a partir do ponto de vista do orador, enquanto o argumento

do inverno e de seu efeito sobre a fragilidade das crianças, mesmo que não

persuada o auditório, não portará a etiqueta desqualificante que traduz seu

caráter errôneo. Ora, se nós nos colocarmos no ponto de vista do auditório, o

argumento da distância geográfica se revela, ao mesmo tempo, persuasivo

(reconforta efetivamente a jovem) e convincente (o argumento, sem dúvida,

se reveste de uma verdadeira validade a seus olhos). Noutros termos, o ponto

de vista do orador e o do auditório não teriam o mesmo estatuto. O primeiro

teria uma pretensão epistemológica que o segundo não poderia reivindicar.

Essa assimetria se junta inegavelmente à oposição tradicional entre convencer

e persuadir que, em geral, recorta a fronteira entre o racional e o irracional.

Além disso, se tirarmos todas as consequências dessa constatação, será

necessário admitir que nesse jogo da persuasão, o pensamento mágico,

irracional, condição da adesão, está condenado a um estatuto de auditório

condenado ao particular, enquanto o ponto de vista do orador pretende

representar o de um auditório universal que se imporia como o bom uso da

razão. Ora, o auditório universal encarna-se, presumidamente, em “todo ser

humano adulto e normal”.

Aqueles que não se encontrariam convencidos pelos argumentos que

emanam desse auditório estariam excluídos, desde então, da universalidade

de direito? Perelman exprime o problema nestes termos:

Mas que fazer quando apresentando uma proposição que parece objetivamente válida, à qual todos os seres racionais deveriam aderir, se encontra um ou alguns

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espíritos renitentes, que se obstinam em rejeitá-la? Pode-se ser levado, por isso, a modificar a concepção pessoal do auditório universal, mas pode-se também excluir os recalcitrantes do conjunto dos seres racionais (2004, p. 272)

A exemplo da hesitação que se nota em Perelman, o pensamento

moderno oscila geralmente entre duas respostas a essa questão espinhosa. A

primeira é aquela de um autoritarismo cientista que crê ver no reducionismo

uma garantia definitiva da razão. Essa posição quer salvar a validade do risco

da opressão: sacrifica a ética no altar da epistemologia. A segunda responde

em termos de relatividade dos saberes e crê ver nessa posição uma garantia

para a proteção da ética; ela corre, então, o risco do obscurantismo.

Buscaremos mostrar na sequência deste artigo que tal questão, em toda

a sua complexidade, pode encontrar pistas de resoluções no seio de uma

teoria retórica. A resposta retórica a essa tensão entre a ética e a

epistemololgia deve encontrar um caminho que transcenda a dicotomia

esterilizante entre validade teórica, mas opressiva, e persuação viva, mas

irracional. A retórica deve, então, questionar-se sobre os limites da

racionalidade, o que era claro aos olhos de Perelman. Este considerava que, de

fato, a questão do razoável, central na argumentação, atingia a psicologia, a

psicopatologia e a filosofia.

4 A retórica e os limites da racionalidade

Dentre as consequências de nossas ações, Jon Elster (1984, 1988)

sustenta que elas são muito menos alcançadas do que o quanto são

desejadas; é o caso do amor, da admiração, da espontaneidade. Mas, quando

se trata de estados desejáveis, temos, às vezes, a tendência de tentar realizar

pela vontade aquilo que não se poderia produzir senão por nosso

desconhecimento: é o que Elster nomeia o “excesso de vontade”. Além disso,

esses estados são tão difíceis de serem intencionalmente realizados em si

mesmo, quanto de induzirem o outro: a injunção da espontaneidade é tão

incoerente quanto a decisão pessoal de ser espontâneo.

A persuasão pertence, sem dúvida, a esses estados mentais que não

podemos induzir, por ordem, a outro, e que não podemos realizar em nós

mesmos por decisão intencional. Por outro lado, nota Elster, podemos buscar

elaborar uma estratégia para atingir o alvo visado. Buscar-se-á, assim, obter

um objetivo principal enquanto efeito secundário de um objetivo

intermediário, como quando se lê para lutar contra a insônia. Os mecanismos

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da persuasão parecem depender dessa estratégia elaborada em duas etapas,

em que o efeito persuasivo se realiza “como” por inadvertência, de onde,

então, a ambivalência da ação retórica: o orador persuadirá tanto melhor

quanto não anunciar sua intenção de persuadir. Mas isso não faz dele

forçosamente um manipulador. O caso do pseudo-argumento depende dessa

estratégia em duas etapas, em que se visa a um alvo intermediário para obter

um alvo principal por efeito secundário: a jovem, uma vez tranquilizada, leva o

filho ao médico.

Perelman sustenta que a utilização do pseudo-argumento não é

manipulação e justifica essa afirmação pela dimensão coletiva e partilhada do

empreendimento: o auditório exige à sua maneira um tipo de argumentação

fora do qual sua adesão seria impossível. Assim dando-lhe as condições de sua

adesão, o auditório contribui para o “valor” da proposição. Entretanto,

quando Perelman fala de “valor da proposição”, ele reduz os dois níveis do

duplo mecanismo: certamente o auditório contribui para a eficácia do

empreendimento, mas essa eficácia não é sinônimo de validade dos

argumentos.

Segundo Elster, essas estratégias intermediárias são tipicamente

empregadas nas psicoterapias, sem que, por isso, se possa falar sempre em

manipulação. Eis aqui como ele descreve as coisas:

Grosso modo, o terapeuta deve crer em uma teoria para que a atividade terapêutica lhe pareça útil, e a atividade terapêutica será ineficaz se ele não pensar que ela é útil. O terapeuta e o paciente são os cúmplices de uma loucura a dois, mutuamente proveitosa (ELSTER, 1984, p. 32).4

Vê-se, ainda, aqui, o nível da eficácia misturar-se com o da validade dos

meios colocados em ação. De fato, se o paciente e o terapeuta se tornam

“cúmplices de uma loucura a dois”, isso implica que os meios colocados em

ação para atingir o objetivo seriam da ordem da enganação ou da

manipulação, mesmo se esta for coletiva. Elster não diz que há um enganador

ou um enganado, mas ele deixa entender que há uma enganação intencional e

coletiva. Elster insiste na enganação, Perelman no valor, mas cada um reflete

misturando eficácia e validade.

4 N.T.: Nossa tradução para: “En des termes grossiers, le thérapeute doit croire en une théorie pour que l’activité thérapeutique lui paraisse utile, et l’activité thérapeutique sera inefficace s’il ne pense pas qu’elle est utile. Le thérapeutique et le patient sont les complices d’une folie à deux mutuellement profitable.”

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Na análise desses mecanismos com objetivo intermediário, seria

necessário, portanto, poder separar mais eficazmente a qualidade dos meios

colocados em ação e a eficácia do empreendimento, sob o risco de se cair em

utilitarismo que sustentaria, cinicamente, o “é válido o que se revelou eficaz”.

A questão é tanto mais complexa, porque articula a ética ao epistemológico.

Ora, qualquer que seja o ângulo a partir do qual se comece a reflexão, os

autores têm a tendência de associar os dois níveis a fim de considerar o

problema em sua globalidade. A dimensão pública e intencional da troca entre

orador e auditório parece ser uma das condições de sucesso do

empreendimento de persuasão. Esse acordo preliminar contribui muito para a

eficácia, mas isso não concerne ainda à validade. O acordo preliminar entre

orador e auditório transferiria o modelo do enganador e do enganado para um

modelo de enganação coletiva, como sugere Elster.

5 Persuasão e enganação de si

Como a persuasão, a admiração e o amor, é paradoxal tanto decidir ser

enganado quanto exigir de um auditório que ele seja enganado. Enganar-se é

crer que P, pondo-se inteiramente no estado de espírito de crer que não-P.

Davidson (1985) fala, nesses casos, do “eu dividido”, para explicar que o

agente entreteria simultaneamente duas crenças contraditórias, não estando

condenado à irracionalidade. De sua parte, Elster (1988, p. 4) observa que o

fato de entreter crenças contraditórias depende de uma situação muito

frequente. É o caso da criança que crê no Papai Noel, mesmo perguntando aos

seus pais o preço do presente que eles lhe ofereceram. Sem utilizar o termo

conotado de “eu dividido”, Elster afirma que as duas crenças não pertencem

ao mesmo domínio da vida.

Transfiramos, agora, essas reflexões ao problema do pseudo-

argumento. Na interação entre as duas mulheres, pode-se dizer que tanto o

orador quanto o auditório “creem” que os dois argumentos são “válidos” ou

“razoáveis”; no momento, evitamos, deliberadamente, o termo de validade.

Além disso, o sucesso da persuasão está condicionado a um reconhecimento

mútuo do orador e do auditório, e este dando lugar a uma articulação entre os

dois tipos de crenças ou, até mesmo, entre dois universos de crença. Trata-se,

nesse caso, segundo a expressão de Elster, de uma “loucura a dois

mutuamente proveitosa”?

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Esse reconhecimento mútuo, que estabelece um quadro no seio do qual

podem se articular diferentes universos de crença, é mais específico aos

mecanismos da ficção do que àqueles da armadilha ou da enganação

(SCHAEFFER, 1999). Ora, o termo “pseudo-argumento” concerne mais ao

léxico da armadilha ou da enganação.

Na perspectiva adotada aqui, se utilizará o argumento “como-se”5 de

preferência a “pseudo-argumento”, a fim de insistir no caráter ficcional do

empreendimento retórico. A noção de argumento “como-se” tem como

ambição conservar o relevo próprio dos diferentes níveis de crenças,

integrando-o inteiramente em um quadro de reconhecimento mútuo

indispensável aos contextos de persuasão analisados aqui6. Se tal hipótese

nos oferece pista de resolução face ao problema da manipulação, ela não

diminui, por essa razão, a questão epistemológica da validade dos

argumentos. Ora, se não se deseja abandonar o ideal de racionalidade, o

problema da adesão deve integrar a questão da validade.

6 Qual estatuto para o “pensamento mágico”? O caso da etnopsiquiatria

As ligações entre a adesão e a validade colocam problemas análogos em

etnopsiquiatria. Por razões similares às que são expostas aqui, tal disciplina

deve, ela mesma, refletir sobre os limites da racionalidade. A etnopsiquiatria

faz intervir universos de crença tradicionais no seio de um quadro terapêutico

geral. Tal conduta apresenta analogia evidente com a utilização de

argumentos “como-se”. Nos dois casos, encontramo-nos confrontados com a

dupla questão colocada pelos mecanismos de adesão: pode-se aliar eficácia e

validade conservando um ideal de racionalidade?

A esse respeito, encontramos em Nathan (1999) um argumentário

construído sob a forma de um diálogo fictício. Certos argumentos em favor da

validade revelam-se particularmente interessantes para a nossa reflexão.

Em primeiro lugar, aquele que emprega a noção de expertise: “O mestre

do saber secreto, usando adivinhação e não o diagnóstico, expõe-se ao risco

de maneira permanente e, primeiro, àquele de ser contraditado pelo

5 Sobre a noção técnica de “como-se” e seu papel na persuasão, permito-me remeter a Danblon, 2002.

6 É evidente que, em outros contextos, tais como os da propaganda política, podem interferir verdadeiros “pseudo-argumentos” destinados a obter a adesão do auditório por uma enganação bem real.

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verdadeiro expert, que se torna, então, o doente”7 (NATHAN, 1999, p. 26 –

grifos da autora).

O argumento de Nathan parece transferir o requisito de validade

científica do método àquele do respeito ético da pessoa, condição, talvez, da

eficácia da ação terapêutica. Mas, no plano epistemológico, o conceito de

expertise defendida aqui é típico das sociedades orais, tradicionais, nas quais a

validade de uma palavra é eminentemente dependente da qualidade –

adivinhatória - da pessoa que a pronuncia (DETIENNE, 1967). Ora, aqui, esse

conceito de expert é reivindicado desde os quadros epistemológicos de uma

sociedade laicizada. Esse ponto de vista inverte simplesmente a hierarquia

entre os auditórios. A noção de “verdadeiro expert” se torna o fato de

auditórios particulares. Nessa perspectiva, a noção de auditório universal deve

ser pura e simplesmente abandonada e, com ela, qualquer ideal de

racionalidade.

Há, em seguida, um argumento que compromete a noção de crença:

quando da execução do rito da chuva, os Bochimans não creem que o rito

provoque a chuva (NATHAN, 1999, p. 44). O fato de falar de “crença”, nesse

caso, tem, sem dúvida, algo de abusivo: a prática da ação ritual, que exige

antes de tudo um conhecimento, uma técnica, isto é, um know how mais do

que um know that (RYLE, 1978). Nesse caso, a realização da ação ritual produz

sua eficácia própria que a dispensa, por isso, de qualquer justificação.

Simultaneamente, o fato de que a ação ritual esteja assim imunizada contra a

crítica torna a questão de sua validade não-pertinente.

Pode-se, então, levantar a hipótese de que essa eficácia se encontre de

forma idêntica na persuasão retórica, que produz efeitos análogos àqueles do

“pensamento mágico”, mas sobre um mundo ficcional. É o que vamos, agora,

tentar justificar.

7 N.T.: Nossa tradução para: “Le maître du savoir secret, en usant de la divination et non du diagnostic, s’expose lui au risque de manière permanente, et d’abord à celui d’être contredit par le véritable expert qui devient alors le malade”.

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7 O wishful thinking8 e a retórica

Parece, portanto, que a persuasão tenha parte ligada, ao menos em

aparência, com os fenômenos tradicionalmente retomados sob a etiqueta de

“limites da racionalidade”. Os exemplos nos quais pensa Perelman são

bastante reveladores quanto a propósito:

Do mesmo modo, o paciente pode, em um tratamento psiquiátrico, desejar a sugestão que lhe será feita. E o soldado que parte para o combate pode, voluntariamente, submeter-se ao discurso patriótico muito pouco original que lhe é dirigido, assim como o passeante cansado se deixará levar por uma marcha cantada (2004, p. 85).

Os exemplos escolhidos por Perelman têm todos, em comum, o fato de

que eles ilustram comportamentos humanos muito difundidos e que,

entretanto, poderiam ser qualificados a priori de “irracionais”. O último dos

três exemplos é típico do fato somático produzido pela ação ritual. O primeiro

recobre o que chamamos correntemente whishful thinking; quanto ao caso do

soldado, ele concerne tipicamente à retórica epidítica.

Haveria uma ligação entre fenômenos a priori tão distanciados quanto

uma ação ritual, um discuro epidítico e uma tendência a tomar seus desejos

por realidades? Mais precisamente, o wishful thinking é um fenômeno mental

que consiste em transformar um desejo ou uma esperança em crença: deseja-

se tanto algo que se pensa e se age “como se” a situação desejada existisse

realmente ou fosse certamente se realizar. Nesse caso preciso, a fronteira

entre o racional e o irracional se traduz pela questão em saber se somos

crédulos do “como-se”. Em outros termos, o wishful thinking se ergue do

engodo ou da ficção?

Observemos, de passagem, que se trata de uma prática linguística

extremamente banal. Quando se quer encorajar alguém, dar-lhe segurança e

restaurar-lhe a confiança, dir-se-lhe-á com naturalidade: “tudo dará certo”.

Ora se não interpretarmos o enunciado em sua dimensão ficcional, dir-se-á

que se trata de uma dimensão fundamentada em uma crença não justificada:

um wishful thinking. Entretanto, é certo que nenhum interlocutor racional

compreende o enunciado dessa maneira, mas interpreta diretamente o

enunciado a partir dos efeitos que ele tem ambição de produzir: encorajar e

assegurar o interlocutor. Para se convencer disso, basta imaginar que o

8 NT.: Seguindo o texto original francês, deixamos a expressão wishful thinking (pensamento ávido) sem tradução, por se tratar de termo técnico.

DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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interlocutor exija justificações desse enunciado (cf. DANBLON, 2000): “ que é

que você sabe disso? ”, “ que é que te faz dizer isso?”. O pedido de

justificação, nesse caso, só pode ser interpretado como agressivo, o que é o

sinal do fato de que o ato de linguagem de origem não poderia ser

interpretado como uma banal predição. Essa observação nos permite

destacar, de passagem, que a competência linguística dos locutores leva em

consideração o estatuto ficcional de tais enunciados. A questão da validade

não é pertinente nesse caso; é como se fosse neutralizada, mas os efeitos de

persuasão permanecem intactos.

Ora, podemos supor que é exatamente aquilo que se produz no gênero

epidítico que produz os elogios e as críticas. Aí, mais do que qualquer outro

lugar em retórica, a capacidade ficcional vem em socorro da persuasão. Assim,

como evoca Perelman, os soldados que se preparam para partir ao combate

são tranquilizados e animados ao ouvir: “Venceremos porque somos os mais

fortes”. Mas eles não “creem” que se trate aí de uma predição adivinhadora.

Não é o caso também de que eles estejam em situação patológica de “eu

dividido”, de enganação de si, de excesso de vontade, de wishful thinking. O

estatuto ficcional do discurso epidítico é um postulado comum ao orador e ao

auditório. Cada um sabe que a estratégia é colocada em ação com fins

persuasivos. Neste caso – mais claramente ainda do que no caso dos

argumentos “como-se” – o estatuto da ficção é assumido, como o sugeria

Perelman:

Observariam, talvez, que o caso em que a argumentação retórica perde menos a sua eficácia, quando é percebida como expediente, é o do discurso epidíctico ou do que dele se aproxima, ou seja, o caso em que já existe certa adesão às conclusões ou em que esta deve ser somente reforçada. Seria oportuno, pensamos, pesquisar quando, e segundo quais condições, a argumentação retórica percebida como expediente pode conservar sua eficácia (2004, p. 86).

Como o havia sentido Perelman, há um verdadeiro campo de

investigação para a retórica. Tal reflexão deve forçosamente passar por um

reexame da questão da racionalidade e de seus limites. É essa reflexão que

quisemos começar neste artigo.

DANBLON, Emmanuelle. A adesão em Perelman: reflexões sobre o pensamento retórico. Trad. Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra. Rev. Trad. Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 235-247, dez.2013.

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Mestre em língua e literatura francesa pela Universidade de São Paulo.

E-mail: [email protected]

Revisão da tradução: Moisés Olímpio Ferreira

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo

Docente da Fundação Liceu Pasteur

E-mail: [email protected]

Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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RACIONALIDADE JURÍDICA, ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICAi

María de los Angeles Manasseroii

Introdução

Donald Neil MacCormick (1999), em um artigo intitulado “Retórica y

Estado de Derecho” publicado pela Isegoría, propõe, a título de tópicos

contrapostos, a afirmação de que o direito é uma atividade essencialmente

argumentável, por um lado, e, por outro, a necessidade de que o Direito

realize a segurança jurídica e a certeza, como atributos próprios de um Estado

de Direito.

A afirmação a respeito da atividade argumentativa do direito é algo

compartilhado e instalado na Teoria do Direito atual. Citamos apenas os

trabalhos mais conhecidos Viehweg (1953), Perelman (1976), Alexy (1978),

MacCormick (1978), Wróblewski (1992), Aarnio (1987). Para isso, basta

constatar que todas as instâncias da atividade normativa que se desenvolvem

dentro de uma sociedade – criação, interpretação e aplicação de regras – são

acompanhadas do exercício de dar explicações e justificativas sobre a postura

mantida sobre o assunto. E isto acontece, porque o Direito é uma atividade

prática na qual se discutem tanto as consequências jurídicas que geram

determinados acontecimentos passados, como também se discute o alcance e

o sentido da diretriz de ação contida na regra jurídica.

i Referência da publicação original:

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidad jurídica, argumentación y retórica. In: OLIVEIRA, Eduardo Chagas (Org.). Chaïm Perelman: Direito, Retórica e Teoria da Argumentação. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia, 2004. p. 141-157.

ii Foi docente da Universidad Nacional del Litoral e da Universidad Católica de Santa Fé, Argentina, até 2007, quando de seu falecimento. Registramos aqui nossa homenagem.

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.

222244449999

Esta margem de indeterminação do Direito1 se resolve em uma prática

que o próprio Direito2 se encarrega de regular, a fim de reduzir, no

procedimento e com o procedimento, a margem de incertezas de sua

atividade. Contudo, dita redução não é absoluta, o que deixa aberta a

possibilidade de mais de uma resposta correta.

Na realidade, as regras de procedimento só podem satisfazer os

aspectos formais da controvérsia e da tomada de decisão, pelas seguintes

razões, entre outras: a) não existe um método que conduza infalivelmente a

uma práxis argumentativa determinada; b) a variedade da matéria que se

submete à decisão e particularidade dos casos, próprio das questões de índole

prática; c) a necessidade de o julgador realizar ponderações em razão da

presença de valorizações por haver uma certa margem de discricionariedade.

Este último agrava-se ainda mais nos tribunais colegiados, como é o caso da

Corte Suprema com as sentenças que contêm dissidências.

Esta última apresenta-se, para Mac Cormick, como um paradoxo, uma

vez que o Estado de Direito implica predição, o que esperar da atividade

Estatal no uso do seu poder de coação jurídica, a fim de resguardar a esfera da

liberdade dos cidadãos. Como conciliá-los é o problema que se tenta resolver

o próprio autor. E o faz assinalando que no princípio do Estado de Direito está

implícito o direito de defesa, de apresentar todos os argumentos disponíveis

na medida em que estes sejam razoáveis. Pelo que o Estado de Direito, que se

apresenta à primeira vista salientando o aspecto estático do Direito, isto é, a

norma estabelecida e previamente dada, reconhece, ao mesmo tempo, um

lado dinâmico: o perfil argumentável do Direito (MacCORMICK, 1999, p. 21).

Assim, MacCormick adverte que a aceitabilidade, a sinalizada pela

argumentação, resulta “inútil se for reduzida a uma persuasividade de fato”

(1999, p. 12). Com isso, estabelece distância entre a racionalidade jurídica e a

racionalidade estratégica, instrumental a que está associado, em geral, o

discurso retórico.

Portanto, o título do artigo “Retórica e Estado de Direito” não implica

nenhuma reabilitação da primeira, exceto que, na verdade, contém de retórica

apenas a forma de tratamento do problema: tratam-se de dois tópicos –

Retórica e Estado de Direito – que, apesar de sua aparente contradição, o

1 Em relação ao tema, consultar Moreso (1997).

2 Aqui devemos considerar o sentido diferente que o termo Direito adquire, como conjunto de normas, para compatibilizar com o outro uso do mesmo termo, que permanece indeterminado.

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.

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primeiro está implicado no segundo, mas querendo dizer, de fato,

“argumentação” no lugar de “retórica”. Parece, em consequência, que é

pouco ou nenhum o lugar que MacCormick concede à retórica, entendida

como o estudo dos meios que perseguem a persuasão, na racionalidade

jurídica. Postura que é partilhada por autores que, como o professor escocês,

trabalham com temas relativos à racionalidade no Direito.

Contudo, algumas reflexões sobre o tema merecem ser levadas a cabo, a

fim de não deixar ocultos aspectos que podem ser de utilidade para a

compreensão da racionalidade jurídica, antes de se apressar numa

desqualificação geral da retórica. Em seguida, considerar-se-á brevemente a

proposta de quem introduziu a retórica como modelo de racionalidade, a Nova

Retórica de Chaïm Perelman. Posteriormente, será feita uma breve referência

à dissolução dos elementos retóricos em outros trabalhos sobre

argumentação de Aarnio e de Alexy. Finalmente, far-se-á uma avaliação do

alcance e função da retórica na racionalidade jurídica. Com isso, pretende-se

fazer um balanço, livre de preconceitos, da virtualidade da retórica no Direito,

a fim de apontar o seu lugar correspondente.

1 A retórica como teoria da argumentação

O surgimento da retórica contemporânea no âmbito jurídico acontece

no marco de uma renovação dos estudos sobre metodologia do Direito. Assim

como, em grande parte do século XIX, a preocupação centrava-se na

racionalização do sistema jurídico a partir do qual se garantia a objetividade da

decisão judicial, o século XX caracterizou-se pelos estudos dedicados a

determinar critérios que permitissem um controle da racionalidade da

sentença. Efetivamente, superada a interpretação mecanicista e a teoria da

subsunção, que entendiam o trabalho do juiz como tarefa asséptica, mera

operação dedutiva, os empenhos teóricos voltaram-se a destacar o papel

protagonista que a pessoa do juiz exerce na determinação do direito e na cota

de “criatividade” que lhe cabe na dita função3 e, consequentemente, a

3 Concretamente e seguindo Wróblewski (1989, p. 53), destacam-se os seguintes momentos: 1) eleição da normativa do caso; 2) atribuição de significado da normativa; 3) determinação dos fatos submetidos a juízo; 4) qualificação dos fatos e 5) determinação das consequências jurídicas da normativa em relação com os fatos. Em cada uma das fases, entre as quais não é possível ordená-las nos fatos tal como aqui se apresenta, produz-se uma atividade argumentativa. Atividade cujo resultado transforma-se nos pontos considerados, na motivação da decisão em cumprimento do dever de motivação.

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determinar critérios de racionalidade da atividade argumentativa que

acompanha a decisão judicial. Isto é, por um lado organizam-se e determinam

as características do complexo processo de raciocínio judicial, ao mesmo

tempo em que, progressivamente, aperfeiçoam-se as teorias que, destacando

a assinalada atividade argumentativa do direito, oferecem critérios de

racionalidade que permitam distinguir entre bons e maus argumentos. Entre

as teorias pioneiras da argumentação, destaca-se a de Chaïm Perelman, que

propõe o modelo da retórica da racionalidade jurídica.

Ao nome do professor de Bruxelas somam-se outros, tais como:

Viehweg, Recasens Siches, Villey, que salientam a necessidade de uma

racionalidade que se adaptasse de forma mais adequada às questões próprias

do fazer jurídico. Entre eles, há os que coincidem também em voltar o olhar

para a filosofia clássica, para a lógica aristotélica no sentido amplo do termo,

contida nos Tópicos e na Retórica, como fonte de inspiração de suas

respectivas teorias. Dentro dessa orientação, em 1952, Perelman, juntamente

com Olbrechts-Tyteca, publica Rhétorique et Philosophie: pour une théorie de

l’argumentation em philosophie, e, em 1958, Traité de l’argumentation: la

nouvelle rhétorique. Por sua vez, em 1953, aparece a obra de Viehweg, Topik

und jurisprudenz. Esta recuperação do raciocínio não apodíctico da lógica

clássica obedece a uma tendência que excede o marco do pensamento

estritamente jurídico, recebendo a denominação de movimento da “Nova

Retórica”4.

No caso concreto de Perelman, a retórica é recuperada em seu perfil

lógico5 como a arte do “bom pensar” em contraste com a “arte do bem

dizer”, a retórica de estilo, da beleza da fala. Nessa perspectiva, a retórica

apresenta-se como uma lógica não formal e se desenvolve em uma teoria da

argumentação. A Nova Retórica possui, em consequência, um valor

epistemológico indubitável, ao se situar como meio ou recurso em virtude da

qual a racionalidade prática se faz possível.

4 Florescu (1970, p. 80) assinala que o ambiente da primeira metade do século passado era propício para a recuperação da retórica. Pontua, em relação a isso, o interesse dos filósofos pelos problemas da linguagem, em coincidência com o desenvolvimento da Linguística, o escasso papel da lógica formal e a revalorização da sofística. Por sua vez, García Amado (1988, p. 23), referindo-se à reabilitação da retórica, sinaliza que “o fundamento da retórica seria o ‘princípio de razão insuficiente’, a constatação de que a ausência de verdades evidentes e indubitáveis como fundamento da ação prática força um permanente processo de fundamentação e intercâmbio comunicativo, visando à convicção e ao consenso”. 5 Conforme Perelman & Olbrechts-Tyteca (1952, p. 3).

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Descreveremos, a seguir, de modo sucinto, os principais aspectos da

Nova Retórica, para depois fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, é

preciso salientar que a competência da retórica circunscreve-se ao âmbito dos

problemas práticos, em que estão em jogo pontos de vistas contrapostos,

como consequência da afirmação de valores em disputa. O império retórico -

tal como o nome que dá Perelman à sua teoria em uma publicação -

estabelece uma divisão metodológica entre o campo do conhecimento

teórico, reservado aos métodos formais e dedutivos - demonstração - e o

prático, no qual se desdobra a argumentação.

A Nova Retórica ou Teoria da Argumentação define-se como “o estudo

das técnicas discursivas que tendem a provocar ou acrescentar a adesão dos

espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 5; PERELMAN, 1968, p. 7). Ficam assim

configurados os três elementos que compõem a relação retórica: o orador, o

auditório e a ponte de comunicação, o discurso. É precisamente neste último

onde se realiza o “encontro” entre orador e auditório, onde é selado o

sucesso ou o fracasso da atividade retórica. É por isso que a argumentação

retórica requer certa preparação, certas condições que devem dar-se de

forma prévia, como se verá mais adiante.

O orador é aquele que deseja exercer influência por meio do discurso. O

caráter do orador dependerá de cada circunstância, conforme a exigência de

determinadas condições para argumentar ou não, como, por exemplo, seria o

caso do parlamento ou de um processo judicial. O auditório não se

circunscreve a um grupo reunido em uma praça pública, como na retórica

antiga, mas sim se considera como tal o conjunto daqueles aos quais chega o

discurso. Assim, o auditório pode ser composto por várias pessoas, por dois -

diálogo - e, inclusive, por um só - diálogo interior6. À ampliação do conceito de

auditório, une-se a incorporação do auditório universal, regulador da

racionalidade prática, aporte mais relevante e discutido de Perelman. Mas,

antes de considerá-lo especificamente, convém tratar do terceiro elemento.

O discurso retórico, como se indicou, requer certas condições que

devem ocorrer de forma prévia. Uma delas é a realização do que Perelman

chama de “contato intelectual” entre os participantes do discurso, o que

supõe: a existência de uma linguagem comum, regras de conversação, a

6 Com este último caso, Perelman quer incluir também, dentro do âmbito retórico, as decisões e escolhas individuais.

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atribuição de valor à adesão do interlocutor e a disponibilidade para ouvir7.

Por sua vez, para que o contato efetivamente ocorra é necessário captar a

atenção do interlocutor. Assim, outro aspecto relevante é o conhecimento

que o orador tem do seu auditório8. Deste conhecimento depende o sucesso

da argumentação. Por isso, Perelman afirma que “a argumentação efetiva

emana do fato de conceber ao suposto auditório o mais próximo possível da

realidade” (1992 [1958], p. 56). A partir do conhecimento do auditório, quanto

às convicções, princípios e hierarquia de valores que sustenta, o orador

construirá as premissas de partida da argumentação, instância denominada

“os acordos prévios” da argumentação. Como se pode notar, tanto o contato

intelectual, que proporciona uma comunicação e entendimento, quanto os

acordos de base da argumentação, próprios do discurso retórico, criam a

opinião comum, endoxas, necessárias para o desenvolvimento do silogismo

típico da retórica, o entinema ou silogismo abreviado, no qual algumas de suas

premissas tornam-se implícitas, pressupostas.

Pelo descrito até agora, cabe advertir que a retórica supõe uma teoria do

conhecimento em que a afetividade dos interlocutores exige uma função não

inferior à compreensão dos problemas nos quais estão implicados princípios e

valores. Em outras ocasiões, o mesmo autor afirma que a retórica aponta em

direção ao homem total, compreendendo, com esta expressão, a razão e os

afetos, a vontade. E isso é assim, porque a finalidade da retórica é mover-se

em direção à ação graças à persuasão. Porém, antes de aprofundar nisto, é

necessário concluir a dinâmica da retórica, tratando do binômio que a

governa: a adesão-adaptação.

O discurso fica compreendido como o conjunto de argumentos que o

orador elabora para conseguir a adesão do auditório. Para isso, o discurso

deve estar adaptado ao auditório para este possa compreendê-lo e, desse

modo, assentir aos seus argumentos. Por isso, afirma-se que a qualidade do

discurso depende da qualidade do auditório ao qual se dirige (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 32). Perelman sustenta que, na

argumentação, “o importante não está em saber o que o próprio orador

7 Em relação à existência de uma linguagem comum, um acordo prévio implícito nas normas da vida social sobre a forma de conversação, atribuição de valor à adesão do interlocutor e estar disposto a ouvir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 19ss).

8 Na retórica clássica constitui o que se conhece como psicagogia, a análise psicológica do auditório para a construção de uma argumentação que consiga captar e influir no ânimo do público que o compõe.

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considera verdadeiro ou convincente, mas sim qual é a opinião daqueles aos

quais se dirige a argumentação” (1992 [1958], p. 31). A Teoria da

Argumentação, explicita na própria obra, pertence à ordem “adaptativa”,

querendo significar este termo a ausência de qualquer critério, regra ou

método discursivo (1992 [1958], p. 672). Isto explica que os esquemas de

argumentação, agrupados em técnicas de associação e dissociação de ideias,

analisados no Tratado e que constitui a maior parte da obra, só se limitam a

descrever o funcionamento dos mesmos, pontuando os efeitos que

conseguem no auditório.

Portanto, tal como se deve esperar de uma proposta retórica, o

auditório determinará a ordem, qualidade, extensão e, em grande medida, o

conteúdo do discurso. Em consequência, a adesão obtida pelo orador não

poderá ser transferida para outro auditório, alcançando um acordo de fato

que garante uma racionalidade circunscrita aos limites do auditório. A

superação de tal parcialidade se realiza com a introdução do conhecido

auditório universal, que exige uma argumentação que apela não às paixões,

mas às razões9. O discurso que se dirige ao auditório particular caracteriza-se

pela persuasão e o apelo ao universal, à convicção (PERELMAN; OLBRECHTS-

TYTECA, 1992 [1958], p. 67), a argumentação dirigida a ele adquire a categoria

de racional. A intencionalidade do alcance que o orador pretende dar à sua

argumentação é que opera a distinção entre a persuasão e a convicção, uma

vez que é o orador, definitivamente, quem constitui o auditório. Em outras

palavras, o auditório, tanto o particular quanto o universal, são construídos

pelo orador, na medida em que deve se formar uma ideia tanto de um quanto

do outro. O primeiro, que existe de fato, para conhecê-lo e adaptar-se, do

segundo, que não existe de fato, mas sim de direito, para buscar

argumentações que, superando as parcialidades, alcancem o caráter de

imparcialidade. A argumentação frente a este auditório exige que o orador

pense em contra-argumentos e pondere a virtualidade do consenso universal

que possa obter sua argumentação. Esta pauta normativa do auditório

completa-se com o princípio de inércia, que impõe dar razões apenas no caso

em que se propicie a mudança:

9 “Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer ao leitor de caráter crucial das razões alegadas, de sua evidência, de sua validade atemporal e absoluta, independente das contingências locais e históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 72).

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[...] a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e valorizá-lo, já que se trata de uma situação existente, de uma opinião admitida ou de estado de desenvolvimento contínuo ou regular. A mudança, pelo contrário, deve se justificar; uma decisão, uma vez tomada, só pode ser mudada por razões suficientes (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1992 [1958], p. 189).

Não é o objetivo do presente trabalho analisar os problemas que cercam

o conceito de auditório universal, mas sim destacar os aspectos retóricos da

teoria de Perelman10. No geral, e como será oportuno considerar, é aplaudida

a introdução de um auditório normativo, o auditório universal, como medida

de objetividade, de racionalidade dos argumentos. Entretanto, com a

introdução do auditório universal, abandona-se uma postura de puro corte

retórico. Tendo em vista que, de acordo com a retórica clássica, esta é “a

faculdade de considerar em cada caso o que cabe para persuadir”

(ARISTÓTELES, 1990 [c. 400 a.C.], 1355b, p. 25); a Nova Retórica, com o

auditório universal, afasta-se daquela finalidade, já que, diante de um

auditório ideal, não têm lugar as técnicas de persuasão que supõem a

existência de seres concretos.

Permanecem ainda alguns aspectos da Nova Retórica por desenvolver,

mas, para o propósito que se pretende aqui, o exposto já é suficiente.

Fazendo um balanço, deve-se pontuar o seguinte. Em primeiro lugar, a Nova

Retórica se oferece como uma via alternativa para a racionalidade prática. A

intenção do seu autor não é meramente metodológica, pois aspira constituir-

se em um modelo de racionalidade prática, a racionalidade retórica como

razão histórica, contextualizada, porém sem abandonar a pretensão da

universalização. A equação de harmonizar ambos os aspectos não deixa de

trazer problemas para o seio da teoria, posto que a leva a uma situação de

tensão entre ambas de difícil equilíbrio. A retórica é resgatada para ocupar um

lugar que excede seu objetivo de acordo com a tradição aristotélica. A Nova

Retórica pretende constituir-se em um âmbito graças ao qual o juízo de valor

se objetiva. Mas, se bem que não se pode admitir esse último, não cabe

apenas fazer uma desqualificação da retórica. Na Teoria de Perelman, a base

principal do ponto de vista retórico gira, sem dúvidas, em torno da ideia de

auditório. Este elemento obriga que sejam considerados os aspectos

circunstanciais, históricos e sociais próprios dos problemas práticos. De tal

maneira, o auditório desenha um contorno ou entorno a partir do qual a

argumentação toma corpo e se desenvolve, ao provê-la dos elementos que se

10 Para isso, veja Manassero (2001).

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incorporam na atividade argumentativa do orador. A presença do auditório,

portanto, não é meramente passiva, não se limita a escutar e deixar-se seduzir

pela argumentação persuasiva, mas sim impõe, em certa medida, seus pontos

de vista, que deverão ser considerados pelo orador se quiser ser atendido em

seu discurso. Por isso, o discurso retórico não é absolutamente monológico,

apesar do protagonismo do orador. Em todo caso, realiza certa

intersubjetividade, ainda que atenuada pela mediação do orador, que tem de

testar o grau de adesão que obtém sua argumentação.

Finalmente, se avaliamos a Nova Retórica como teoria da argumentação,

devemos salientar que esta realiza um tipo de redução dos argumentos ao

deixar de lado os argumentos dedutivos. Neste ponto, o problema se explica

pela incompreensão de seu autor, que estabelece uma brecha insuperável

entre os métodos dedutivos e retóricos. Na retórica clássica, pelo contrário, o

argumento retórico por excelência é o entimema que, como já foi

mencionado, trata-se de um silogismo abreviado: a demonstração retórica. As

subsequentes propostas argumentativas, pelo contrário, caracterizam-se por

fazer uso da lógica formal na explicação e desenvolvimento das formas dos

argumentos.

2 A superação da retórica nos trabalhos de Robert Alexy e Aulis Aarnio

A razão de haver eleito os trabalhos de Roberto Alexy (1989) e de Aulis

Aarnio (1991) é que ambos recorrem a Perelman, em seus respectivos estudos,

deixando de lado, porém, a perspectiva retórica na racionalidade.

Alexy (1989), na introdução de sua obra, afirma que seu propósito é

elaborar um modelo “que, por um lado, permita ter em conta as convicções

estendidas e os resultados das discussões jurídicas precedentes e, por outro

lado, deixe espaço aos critérios do correto” (1989, p. 31). Para isso, submete à

revisão crítica algumas das teorias da racionalidade prática, com o objetivo de

ressaltar os pontos resgatáveis de cada uma delas, de tal modo que sirva de

marco de referência para construção de seu modelo. A revisão compreende

quatro teorias, indo da ética analítica, passando pela teoria de Habermas, a

escola de Erlangen e, finalmente, chegando à Teoria da Argumentação de

Perelman.

Em relação a Perelman, o que Alexy propõe é averiguar se,

efetivamente, ele consegue fundamentar uma “teoria consistente da

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racionalidade prática” (1989, p. 157) a partir da qual será viável um uso prático

da razão. Destaca a pretensão lógica da retórica perelmaniana e o conceito

básico da teoria: a ideia de auditório. Conceito que implica, por sua vez, o de

adesão, que deve manter-se em cada passo do discurso, desde as premissas à

conclusão, de modo que a função dos esquemas de argumentação é influir no

auditório. De acordo com Alexy, retrai-se, em consequência, a pretensão

lógica da teoria e se destaca um perfil descritivo e psicológico da

argumentação. Isso motiva a crítica de Alexy pela falta de um tratamento dos

esquemas de argumentação desde o instrumental oferecido pela lógica

contemporânea. Não obstante, Alexy resgata o papel normativo que cumpre

o auditório universal. Se os juízos práticos alcançam o consenso do auditório

universal, permanecem fundados. De todo modo, para o autor, esse critério

resulta insuficiente basicamente por duas razões. Por um lado, porque está

escassamente explicado e desenvolvido na teoria, permanecendo a cargo do

orador forjar a ideia de auditório universal. Por outro lado, a apelação ao

auditório universal seria uma razão necessária de argumentação racional, mas

não suficiente, posto que somente afirma o princípio de universalização: quem

dá uma razão deve ser aceita por todos para que seja racional. Nisto encontra

semelhança com a habermarsiana situação ideal de diálogo. Porém, afirma

Alexy: “não se proporciona nenhuma via que conduza com segurança a um

consenso fundamentado” (1989, p. 169). É claro que Alexy está pensando aqui

nas pautas que guiam o procedimento de obtenção do consenso universal.

Assim, é insuficiente a retórica com a pretensão de universalidade de

Perelman – que só indica o ponto de partida, o admitido e aceito pelo

auditório e o ponto de chegada – alcançar o acordo universal. Tampouco

parece suficiente o princípio de inércia que indica que é preciso somente

justificar a mudança, somente aquele que propõe a mudança deve

argumentar, sendo que não indica em que caso cabe a mudança e como se

deve resolver a mesma.

Em suma, Alexy (1989, p. 172) resgata a ideia de auditório universal,

associando-a à situação ideal de diálogo de Habermas, a combinação da

aspiração a uma universalidade desde uma argumentação situada sócio-

historicamente e, portanto, a impossibilidade de chegar a uma única resposta

correta, o que significa a abertura à tolerância.

Por sua vez, Aarnio (1991) não propõe construir uma teoria da

argumentação como tal, mas sim realizar um estudo abrangente da

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interpretação jurídica que combine elementos analíticos e normativos, com a

finalidade de esclarecer os requerimentos que implica a ideia de justificação,

em que se deve indagar a correção do resultado da interpretação (1991, p. 59).

O trabalho de Aarnio revaloriza a contribuição teórica oferecida pela disciplina

filosófica para a compreensão da tarefa do jurista, de modo que seu estudo

harmoniza três propostas filosóficas diferentes: a filosofia da linguagem do

último Wittgenstein, a teoria de Habermas e a Nova Retórica de Perelman. As

duas primeiras são as que incidem de forma mais pronunciada em seu

pensamento, retendo de Perelman a ideia de auditório. Ele aborda o tema no

último capítulo de sua obra, dedicado à aceitabilidade de um enunciado

interpretativo. Igualmente a Alexy, Aarnio (1991, p. 280) destaca o auditório

como a ideia central da Nova Retórica, salientando que a justificativa tem

lugar sempre perante o outro, seja este concreto, um ou vários, auditório

particular ou imaginário, auditório universal. Rapidamente, Aarnio ignora o

problema da argumentação dirigida ao auditório particular – persuasão –

regida pela eficácia, preocupando-se em assinalar o papel do auditório

universal, graças ao qual as valorizações alcançam objetividade. Mas também

afirma a ambiguidade do conceito de auditório universal, porque é ideal,

porém circunstanciado social e culturalmente. Para obter melhores

rendimentos teóricos, Aarnio propõe a distinção entre audiência concreta e

ideal e audiência universal e particular.

A combinação de ambos os termos resulta em quatro classes de

audiência: a) audiência concreta universal; b) audiência concreta e particular;

c) audiência ideal universal; d) audiência ideal particular. Esta distinção

permite-lhe analisar, entre as diferentes classes de audiências, aquela que

reúne melhores condições para desenvolver a ideia de “aceitabilidade

racional”. Descarta a audiência concreta ideal, entendendo-a como aquela que

se configura a todos os homens racionais viventes em um dado momento.

Além de ser quase impossível sua configuração, porque se alteraria a cada

instante, também é impossível alcançar a aceitação de todos os seus

componentes (AARNIO, 1991, p. 283). Deixa de lado também a audiência

particular e concreta, o auditório particular de Perelman, porque, embora se

possa obter aí a aceitação, esta poderia se dar sobre a base de uma

argumentação não racional, persuasiva. A audiência ideal universal, o auditório

universal de Perelman, tampouco satisfaz a Aarnio, porque em sua opinião

significa admitir a evidência de critérios valorativos, tese que o autor não

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admite por aderir a um relativismo axiológico. Finalmente, permanece de pé a

audiência ideal particular. Ideal, porque seus componentes se comprometem

a se deixar convencer somente pelos meios racionais, cumprem as condições

e seguem as regras do discurso racional. Particular, porque compartilham um

conjunto de valores, uma forma de vida (AARNIO, 1991, p. 284). Nesse

aspecto, aproxima-se do auditório particular perelmaniamo. Uma audiência

semelhante permite desenvolver a ideia de aceitabilidade racional, posto que

seus componentes movimentam-se racionalmente e partem de valores

concretos e vigentes em uma comunidade. A partir daí, Aarnio obtém um

princípio regulador para a racionalidade jurídica, o da aceitabilidade racional

que reza assim: “a dogmática jurídica deve tentar alcançar as interpretações

jurídicas que puderam contar com o apoio da maioria em uma comunidade

jurídica que refletem racionalmente” (AARNIO, 1991, p. 286). A argumentação

acerca dos valores será racional se conseguir produzir o consenso de um

auditório assim concebido, ou ao menos a maioria deste auditório. Salva-se a

racionalidade do discurso jurídico ao introduzir um critério regulador do

mesmo.

Esta breve consideração da prova da orientação que tomaram os

estudos sobre racionalidade jurídica posteriores a Nova Retórica. Comparando

os autores resenhados, ambos coincidem em resgatar a ideia de auditório, isto

é, a ideia de uma racionalidade constituída intersubjetivamente que a Nova

Retórica insinuou, mas não desenvolveu. O ponto de dissidência entre ambos

é o auditório que revalorizam. Enquanto Alexy resgata a ideia de um auditório

universal, graças ao qual os juízos de valor se objetivam, Aarnio toma a ideia

do auditório particular, concebendo-a com a exigência de que seus membros

se conduzam racionalmente. A explicação é simples e se deve às diferentes

posturas éticas que esses autores defendem. Alexy, inscrito na orientação da

filosofia de Habermas, inclina-se a um universalismo ético; Aarnio, tomando a

ideia das “formas de vida” de Wittgenstein, mantém-se dentro de um

relativismo axiológico. Mas, para além desta diferença, ambas as teorias

coincidem em desqualificar a argumentação persuasiva do auditório

particular, concentrando-se em aperfeiçoar os critérios da racionalidade

jurídica que a Nova Retórica deixou pendente de resolução, segundo seus

pontos de vista. Desta forma, Alexy encontra suas soluções nas regras do

discurso racional, ao passo que Aarnio, no critério da aceitabilidade racional.

Nessa linha, também contribuíram trabalhos de outros autores, tais como

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.

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MacCormick, Atienza entre outros. Desse modo, isto significa a saída da

retórica em relação a racionalidade jurídica? No próximo ponto, procurar-se-á

justificar seu aporte.

3 Retórica e racionalidade jurídica, seu alcance, função e limites

Em primeiro lugar, não se admite a ideia de uma razão retorizada, ou

uma racionalidade retórica se por tal expressão se pretende imprimir uma

distorção ontológica ao termo. Já se advertiu anteriormente que a Nova

Retórica distorce a função da retórica ao concebê-la como “modelo” de

racionalidade prática. Talvez este seja um erro de excesso provocado pelo

dualismo epistemológico de Perelman que distinguia, claramente, o âmbito

teórico, da prova demonstrativa, do âmbito prático, o das argumentações.

Porém, advertidos do erro, este não deve levar à recusa da retórica como tal.

Para isto, é preciso perguntar em sua natureza, objeto, alcance, segundo sua

gênesis para lhe devolver o lugar que lhe corresponde dentro da racionalidade

prática.

A Retórica reconhece uma origem judicial na Sicília, com os tratados de

Corax e Tisias, mas é com Aristóteles que se alcança sua sistematização e

categoria de técnica ou arte. A partir daí, é que se pode tomar o texto de

Aristóteles como base de análise. Assim, a primeira afirmação feita pelo

estagirita é o vínculo da retórica com a dialética11:

A Retórica é correlativa da Dialética, pois ambas tratam de coisas que em certo ponto são de conhecimento comum a todos e não correspondem a nenhuma ciência determinada. Por isso, todos, de certo modo, participam uma e outra, já que todos, até certo ponto, procuram inventar ou opor uma razão e se defender e acusar (ARISTÓTELES, 1990 [c. 400 a.C.], 1354).

Ambas configuram uma técnica de raciocínio sobre determinadas

questões, não sendo próprios da retórica os recursos externos à razão que

apenas se encaminham para sensibilizar o árbitro12. O objeto da retórica são

os argumentos retóricos, e este é por excelência o entimema. O entimema é

um silogismo cujo objeto é o verossímil. Assim afirma Aristóteles:

11 Para Reboul (1991, p. 161), a afirmação inicial da Retórica sobre ela ser a antístrofe da dialética é uma provocação que Aristóteles fez a seu mestre Platão, que havia condenado a retórica e exaltado a dialética.

12 Aristóteles (1990, Livro I, 1354a) afirma que “não se deve perverter o juiz, levando-o à cólera ou à compaixão, o que distorceria a regra que se pretende utilizar”.

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.

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[...] tanto o verdadeiro como o verossímil são próprios da mesma faculdade, já que os homens são suficientemente capazes para a verdade e a alcançam na maior parte; por isso ter hábito de conjecturar frente ao verossímil é próprio de quem também está com o mesmo hábito em relação à verdade (ARISTÓTELES, 1990, Livro I, 1355).

Como se desprende do anterior, a retórica é uma técnica de

argumentação racional, mesmo que diferente do silogismo científico em razão

da matéria da qual trata o verossímil, o plausível. A retórica, como técnica,

adapta-se ao seu objeto. Se a matéria sobre a qual raciocina admite ser de

outra maneira, não é adequado pretender um raciocínio rigoroso. Na Ética a

Nicômano, Aristóteles (1967) salienta que é:

[...] próprio do homem culto não se afobar em conseguir a precisão em cada gênero de problemas, sem tomar consciência da natureza do assunto. Igualmente absurdo seria aceitar de um matemático raciocínios de probabilidade como exigir de um orador demonstrações conclusivas (ARISTÓTELES, 1967, Livro I, 1094b).

A retória é então a arte de raciocinar sobre os contrários, não porque

sejam equivalentes. A esse respeito, diz Aristóteles (1990) que “não se deve

persuadir o mal” se não for para conhecer o contra-argumento e desfazê-lo, e

acrescenta que “sempre o verdadeiro e o bom são naturalmente de raciocínio

melhor tramado e mais persuasivo, por dizê-lo absolutamente” (Livro I, 1355).

Mas, além disso, a finalidade da retórica é buscar os meios para

persuadir e não simplesmente persuadir, tal como o faz a sofística. Esta última

tem por finalidade obter a persuasão ainda por meio dos argumentos

erísticos, isto é, aqueles que parecem raciocínios, mas não o são

(ARISTÓTELES, 1988, 65 b5). Assim, a crítica e a desqualificação devem recair

sobre esta e não sobre a retórica.

Dentre os meios para persuadir, além dos meios lógicos (o entimema e o

exemplo), estão os que apelam para o aspecto afetivo da persuasão: aqueles

que se referem ao ethos e ao pathos. O primeiro é relativo ao caráter do

orador, ao prestígio deste enquanto disposição ética e moral13, ao passo que o

pathos é relativo às emoções que o discurso desperta no auditório14. Talvez

este seja um dos aspectos da retórica que oferece certas dificuldades em sua

13 “Pelo caráter, quando o discurso se diz de tal maneira que se faz digno de fé ao que o diz, pois cremos mais e antes nas pessoas decentes, e sobre qualquer questão, em geral, e nas que não há segurança mas também duvida por completo”, Retórica, 1356 a 5.

14 Cf. Retórica, 1356 a 15.

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compreensão e faz de seu nome um termo pejorativo. O caminho para

entender o valor do aspecto afetivo da argumentação retórica é começar

salientando a particularidade do conhecimento prático em Aristóteles. Em

primeiro lugar a finalidade do conhecimento ético não é meramente teórica,

mas sim prática:

Nossa tarefa atual, diferentemente das outras, não tem por fim a especulação. Não empreendemos esta pesquisa para saber o que é a virtude – o que não teria nenhuma utilidade –, mas para chegar a ser virtuosos (ARISTÓTELES, 1967, Livro II, 2, 1103b).

Prático é o conhecimento cuja compreensão e realização se resolvem em

ações. Por isso, em segundo lugar, o conhecimento prático é contingente,

nada tem de estável e de absolutamente certo15. Considerando ambos, a

retórica como técnica argumentativa da práxis que move os afetos pelo

discurso, cumpre uma função pedagógica (REBOUL, 1991, p. 11). Na

argumentação sobre questões práticas, em que se trata do que é correto,

justo ou bem fazer, o prestígio ético da pessoa que argumenta não é algo a se

desdenhar, porque aquele que pratica a justiça e a bondade é quem sabe

elaborar melhores argumentos. E, da mesma forma, carece de importância a

afetividade que o discurso desperta no auditório, pois compreenderá melhor o

juízo acerca da bondade, justiça ou equidade, como de qualquer virtude, quem

estiver disposto a escutar e for conduzido a uma captação integral do

problema apresentado.

Chegando a este ponto, cabe perguntar-nos pelo papel da retórica na

racionalidade jurídica. Descartado seu papel de modelo de racionalidade, a

retórica cumpre uma função mais modesta, porém significativa. Como técnica

ou arte que busca os meios para persuadir, tem seu lugar no discurso de

justificativa da decisão judicial, porque é ali onde pode servir de ferramenta

para o juiz decisor que deve fundamentar seu juízo. Mas, diferente de uma

teoria da argumentação, a retórica não oferece nenhum critério normativo

externo aos argumentos para avaliar sua racionalidade. A retórica, por ser

uma arte, não é boa nem má em si, em todo caso, cabe ao orador os dizeres

qualificativos. Por isso, os argumentos retóricos só podem ser qualificados

15 “Deve também conceder-se preliminarmente que todo discurso sobre a conduta prática há de expressar-se somente em generalidades e não com exatidão, já que, como dissemos no início, o que se deve exigir de todo o raciocínio é que seja adequado a sua matéria; agora, tudo o que concerne às ações e a sua convivência nada tem de estável, como tampouco no que corresponde a saúde” (ARISTÓTELES, 1967, Livro II, 2, 1104a).

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como mais ou menos persuasivos, mas não de argumentos corretos ou

incorretos, sem que por eles se possa afirmar a irracionalidade do seu

discurso. Não podemos esquecer que a persuasão é fruto de uma

argumentação que é racional, utiliza do silogismo abreviado para persuadir. A

normatividade da argumentação retórica é intrínseca à matéria que se debate.

Por outro lado a retórica tem o acerto de localizar a racionalidade prática

no contexto histórico-social, porque obriga a considerar a quem se dirige a

argumentação pela qual se justifica uma pauta de ação. Este aspecto é

relevante para a racionalidade prática em sua função de aplicação de uma

norma geral ao caso particular, como é a problemática própria da metodologia

do direito. Não é o da universalidade, mas como afirma Klaus Günther (1995),

o do “ajuste”, da norma geral ao caso concreto, a “faculdade de juízo” em

termos kantianos, e o problema da “prudência” em termos clássicos. Daí que

aspirar a uma racionalidade universalista não é próprio a essa instância, na

qual, pelo contrário, as peculiaridades e circunstâncias que rodeiam cada caso

resultam ser o mais importante a considerar se quiser realizar um juízo não

meramente racional – em sentido formal – mas também correto em sentido

material, realização dos valores de justiça e equidade.

Começou-se salientando que a renovação das propostas metodológicas

no século XX surgiu como esgotamento de um modelo de racionalidade que

depositava nos métodos dedutivos a garantia de uma racionalidade objetiva.

Nas propostas atuais, a depositária dessa confiança passou às teorias da

argumentação. Elas significaram e significam uma importante contribuição

para a reflexão da racionalidade prática, mas é preciso precaver-se de não

incorrer no erro consistente, no empenho por aperfeiçoar os critérios que

garantam uma racionalidade objetiva no contingente, pois talvez se caía numa

armadilha e num engano maior do que se atribui à ação da retórica.

MANASSERO, María de los Angeles. Racionalidade jurídica, Argumentação e Retórica. Trad. Ingrid Bomfim Cerqueira e Raquel da Silva Ortega. Rev. Trad. Eduardo L. Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.5, p. 248-265, dez.2013.

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REFERÊNCIAS

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REBOUL, Olivier. Introduction à la rhétorique. Presses Universitaires de France: Paris, 1991. VIEHWEG, Theodor. Topik und Jurisprudenz. Beck: München, 1953. WRÓBLEWSKI, Jerzy. Sentido y Hecho em el Derecho. Trad. Ezquiaga Ganuzas e Igartúa Salaverría. J. Caballero Harriet: Bilbao, 1989. ______. The judicial application of Law. Kluwer academic Publishers: Dordrech; Boston; London, 1992. Tradução: Ingrid Bomfim Cerqueira

Graduanda em Letras/Espanhol pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

E-mail: [email protected]

Raquel da Silva Ortega

Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: [email protected]

Revisão da tradução: Eduardo Lopes Piris

Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz

E-mail: [email protected]

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Universidade Estadual de Santa Cruz Reitora: Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro Vice-Reitor: Evandro Sena Freire

Departamento de Letras e Artes Diretor: Samuel Leandro Oliveira de Mattos Vice-Diretora: Lúcia Regina Fonseca Netto Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16 Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/dla/index.php Fone/Fax: 55 73 3680-5088

EID&A Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação ISSN 2237-6984 Editores Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio Ferreira Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/revistas/eidea