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Universidade Estadual de Campinas
Mestrado
Instituto de Artes
2007
Olhares Devotos
Anali Cristina Furquim
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Multimeios.
Orientador: Prof. Dr. Antônio Fernando da Conceição Passos.
Campinas, SP
2007
Olhares Devotos
ii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês “Pious eyes” Palavras-chave em inglês (Keywords): Creativity; Imaginary; Imagination; Contemplation; Devotion; Video Art. Titulação: Mestre em Multimeios Banca examinadora: Prof. Dr. Fernando Passos Prof. Dr. Adilson Nascimento (FE) Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann Profa. Dra. Verônica Fabrini (suplente) Prof. Dr. Nuno César Pereira de Abreu (suplente) Data da Defesa: 28-08-2007 Programa de Pós-Graduação: Multimeios
Furquim, Anali Cristina.
F982o Olhares devotos / Anali Cristina Furquim – Campinas, SP: [s.n.], 2007.
Orientador: Fernando Passos. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Processo de Criação 2. Imaginário. 3. Imaginação Ativa
4. Contemplação 5. Devoção 6. Vídeo-arte I. Passos, Fernando
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.
(em/ia)
iii
v
Dedicatória
Àquele que chegando às portas do meu coração como indigente, maltratado,
espezinhado, humilhado, ensangüentado,
por Amor,
fez nascer ali mesmo, uma fonte de consolação sem recompensas, pura, em
seu poético devir
de vida.
Ilustração 2. “Jesus”, pintura de Cláudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.
vii
Ilustração 3. Mãe de Deus, pintura de Cláudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.
Àquela que nos trouxe o Amor Permanente enraizado historicamente.
ix
Agradecimentos
Ao Nosso ABBÁ Uno e Trino de Incomensurável Amor,
MÃE Amorosa de Reciprocidade a Deus - no Céu e na Terra - Única,
Cortes Celestiais dos Anjos, Rosa Abençoada da Comunhão dos Santos,
Ecclesia Universal do Coração de Deus - Sabedoria Eterna,
Amigos da CVX & Humildes Poeiras.
Aos meus Amados Pais, Guilherme & Maria Cássia Furquim,
Amados Irmãos, Flávia Enara & Cristhiano, Guilherme & Aline,
por existirem, serem Pássaros Sonoros Escondidos
e andarem sempre de Mãos Dadas, Sorrindo.
Ao meu Amado Orientador, Antônio Fernando da Conceição Passos,
pelo Despojado Acolhimento, Diálogo Profundo, Caminhada Compartida.
À Amada Amiga Elisabeth Bauch Zimmermann,
pela Amizade, Amparo Anímico, Chás da Tarde, sendo Partes da Família.
E aos Amados Amigos Sr. Arnoldo de Hoyos & Carmelitas,
Braseiros do Coração de Deus no Tempo, Luz Eterna, Tintura da Ternura da Humílima Virgem Maria no Caminho.
xi
E a todos que belamente iluminaram
este caminhar peregrino,
em especial…
Sérgio Massami Sakai
James José de Novaes
André Luís Moraes
Edison de Lima, SJ
Lucas dos Santos Ribeiro
Coral Jornada de Taizé
Ismael Victor Costa
Aninha Lourenzo
Marcos Luporini
Focolarinas Ilustração 4. “Batismo”, desenho de Claudio Pastro SJ. Fonte: Arquivo digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.
xiii
Quisera vivo testemunho
criativo de amplitude universal e
peso humano singular. Meus pés
se condoem nesta estrada da
vida enquanto perco minhas
“asas” queridas. Vôo em
mergulho profundo e me deparo
– assustada, tão assustada,
embora toda crente - com a
fonte, Coração Pacífico de Deus.
Susto, susto, terror infinito cair e
ser levantada. Andar com os
próprios pés, mesmo que sejam
Outros.
Ilustração 5. Still do vídeo produzido Natura fulgens.
xv
RESUMO
Broto vital de açucena nascido do imo das entranhas dos elementos imaginais
e corporais, após longo período de dormência e boa luta. Testemunho árduo e
alegre de um processo criativo artístico - e de vida espiritual - empreendido,
resultando no curta metragem em vídeo Natura fulgens, como parte dos
frutos, após intensa dedicação e cultivo das paisagens anímicas, aqui trilhados
via Imaginação Ativa 1 e Orações Contemplativas 2.
O Cântico Espiritual de São João da Cruz e as amorosas qualidades da
Virgem Maria Santíssima como Stella Maris, Pulchra ut Luna e Domus Dei 3
foram inestimáveis fontes de inspiração, estrelas guias. Participaram do
processo a improvisação em dança, práticas de consciência corporal e a escrita
poética de livre curso que reuniu as imagens emergidas.
Na produção em vídeo, o tema da jornada da alma em busca do retorno à
Presença Divina, verdadeira fonte de Água Viva, labora juntamente com a
assunção do corpo criativo, como domus 4 do Coração de Deus no tempo. Nas
incursões teóricas, o tema da cruz e da redenção – do humano olhar, das
imagens produzidas, e da imaginação – antecede e ilumina a realização. A
trama dos Instantes Fecundos de Significado, poéticos, divinos, em imagem e
som, revelados aos devotos olhares da alma-e-coração, constituíram o cerne
da pesquisa.
1 Técnica da Psicologia Analítica desenvolvida por Carl Gustav Jung. 2 Empreendidas através da metodologia de Santo Inácio de Loyola, no contexto da Mística Cristã. 3 Estrela do Mar, Bela como a Lua e Casa de Deus. 4 Casa.
xvii
ABSTRACT
Vital lily bud born in the inmost entrails of the imaginal and body elements,
after long period of dormancy and good fight. Arduous and joyful testimony of
an artistic - and spiritual life - creative process undertaken, resulting in the
short film on video Natura fulgens, as part of the fruits, after intense
dedication and cultivation of the psychic landscapes, here performed via Active
Imagination 1 and Contemplative Prayer 2.
The Spiritual Canticle of St. John of the Cross and the loving qualities of the
Blessed Virgin Mary as Stella Maris, Pulchra ut Luna and Domus Dei 3 have
been invaluable sources of inspiration, guiding stars. Improvisation in dance,
body awareness practices and free course poetic writing, which gathered the
images emerged, were parts of the process.
In the short film, the theme of the soul's journey in search of a return to the
Divine Presence, true source of Living Water, works together with the
assumption of the creative body, like domus 4 of the Heart of God in time. In
the theoretical incursions, the theme of the cross and redemption - of the
human look, of the produced images, of the imagination - precedes and
illuminates the realization. The web of Instants Fertile of Meaning, poetic,
divine, in image and sound, revealed to the pious eyes of soul-and-heart,
formed the core of the research.
_______________________________________________
1 Analytical Psychology technique developed by Carl Gustav Jung. 2 Undertaken using the methodology of St. Ignatius of Loyola, in the context of Christian Mystic. 3 Star of the Sea, Beautiful as Moon, God’s house. 4 House.
xix
Lista das Ilustrações
Ilustração da Capa. “Mãe do Rosário”, pintura de Cláudio Pastro SJ. 5
Ilustração 2. Jesus .............................................................................. v
Ilustração 3. Mãe de Deus .................................................................... vii
Ilustração 4. Batismo de sementes ........................................................ xi
Ilustração 5. Still do vídeo produzido Natura fulgens ................................ xiii
Ilustração 6. Desenho feito por minha irmã em 1984 ............................... 01
Ilustração 7. Mãe da Contemplação ........................................................05
Ilustração 8. Escultura do Aleijadinho .....................................................13
Ilustração 9. Colagem pessoal ...............................................................17
Ilustração 10. Deus virou Poeta .............................................................18
Ilustração 11. Nuestra Señora de las Angustias.........................................22
Ilustração 12. A Virgem Maria como Pachamama.......................................44
Ilustração 13. Mãe da Luz .....................................................................49
Ilustração 14. Conjunto de imagens do curta metragem Natura fulgens. ......52
Ilustração 15. Fotografia da produção de Natura fulgens ...........................53
Ilustração 16. Cristo Mestre...................................................................57
Ilustração 17. A Samaritana .................................................................58
Ilustração 18. Ecclesia .........................................................................60
Ilustração 19. Mãe de Deus Aparecida ....................................................61
Ilustração 20. Trono da Sabedoria .........................................................62
Ilustração 21. A Moraneta ....................................................................64
Ilustração 22. Coloca-me com o Pai .......................................................67
Ilustração 23. Um coração que voa ....................................................... 75
Ilustração 24. Dracma perdida ..............................................................76
Ilustração 25. Still Ignis Caritatis ..........................................................91
Ilustração 26. Ícone 20/21 do Cântico Espiritual de São João da Cruz........116
Ilustração 27. Ícone 22 do Cântico Espiritual de São João da Cruz.............125
5 Todas as ilustrações de Claudio Pastro SJ foram adquiridas no Arquivo Digital da Companhia de Jesus, Casa de Santo Inácio, Campinas, SP.
xxi
Epígrafe ....................................................................................... xviii
Resumo ....................................................................................... xv
Abstract ......................................................................................xvii
SUMÁRIO
Um novo Outono ........................................................................... 02
I. Stella Maris ...............................................................................21
II. Pulchra ut Luna ..........................................................................43
III. Domus Dei ...............................................................................63
IV. Poema de Amor. Festina Lente ....................................................90
Ternura. Abismo da Graça. Moto Perpetuo. Imo Tempo........................92
Referências....................................................................................93
Bibliografia ....................................................................................95
Glossário Latino .............................................................................98
Apêndices .....................................................................................99
Anexos ........................................................................................104
Ilustração 6. Desenho feito por minha irmã Flávia em 1984.
2
UM NOVO OUTONO
O Praesentis Tempus, o aqui e agora em latim, sempre me
apareceu como um instantâneo do belo e miraculoso jardim de Deus,
fora do movimento cíclico das estações da Mãe Natureza,
particularmente do grande Autumnalis, época outonal da abençoada
gestação dos frutos e doces rebentos, sendo, em si, bastante
escorregadio para mim, por devanear facilmente, desde pequena.
Baú preferido de tesouros, imaginar, criar, silenciar diante da
grandiosidade da vida e suas bonitas relações era o arroz com feijão
de todo-dia. Passava horas e horas no quintal ou na sala, sozinha ou
acompanhada de meus irmãos, inventando histórias, mundos em
fábulas. Anjos, sereias, sacis, boizinhos de batata, pedras raras,
tertúlias fantásticas em miniaturas eram, então, constituídas e
organizadas em deliciosas brincadeiras e sobrevôos infantis.
Desde os quatro, cinco anos de idade, aos domingos, mãos dadas
com os irmãos e amigos, íamos religiosamente à catequese, na
pequena Igreja de Santa Isabel da vila da Fazenda São Francisco,
onde morávamos. Lá estando, a primeira arte sempre sagrada a fazer
era adentrar a sala dos sinos, e subir e descer pelas cordas, tocando
aqueles dois grandes cálices de alto e bom laudo som, em penca
madura e singela de meninos e meninas. Desenhávamos os santos,
recitávamos e compúnhamos versos, encenávamos pequenos trechos
do evangelho com a prestimosa ajuda da Dona Irma, então
aprumados como anjos, pastores e reis magos no Natal e noutras
datas festivas; e pulávamos, também, pelos jardins externos feitos
sapos, contando e ouvindo causos, fazendo piqueniques, molhando os
pés nas águas do rio Atibaia, bem ao lado, escorregando pelas
pequenas colinas de gramado, ríamos e brincávamos a largo. À noite,
como belos vaga-lumes, quase quietinhos, participávamos
afetuosamente das missas.
3
Então mergulhada, menina, naquele universo, para mim, útero do
mundo, repassava os olhos atentos pelas sacras esculturas,
inspecionava-as em tom curioso, incomensuravelmente amoroso,
para tentar atestar algum movimento que fosse, uma respiração,
alento dos lábios durante algum canto, oração, dado um simples
descuido dos santos - sempre tão concentrados e bondosos em seus
incansáveis postos - diante dos cenhos ora e ora distraídos da turba,
bem certa de que ativos participantes e zeladores fecundos daquela
bonita e sinfônica ladainha que ali, nos átrios e lares, se entretecia.
Por vezes, quase fechava os olhos, como se fossem me abrir outros
mais capazes de ver - e ouvir - o invisível do mundo no qual
verdadeiramente orbitavam, São Pedro lavando o chão de nuvens,
Santa Isabel oferecendo rosas, a Virgem Maria com seu manto de
estrelas embalando o Menino Jesus.
Crescendo um pouco, a imaginação que sempre ia além do dado
das histórias e tornava cada vez mais familiar este mundo invisível,
teofânico, sensivelmente presente através dos olhos da alma - tal
quais grandes filósofos e pioneiros da mística e da psicologia a
revelaram: alma-medianeira entre o mundo sensível e espiritual,
através das imagens, local significativo da confluência viva dos
símbolos - foi se tornando luz inspiradora dos meus passos, fio
condutor do caminho. Especialmente porque nunca me pareceram
simples abstrações pessoais, mas sentia pisar delicadamente o solo
sagrado do profundo diálogo, cercando-me de significativas e tão
concretas inspirações.
Obviamente, nem tudo eram rosas e eu constantemente escapava
de sufocantes pesadelos. Incrivelmente, muito de tudo o que ainda
hoje me lembro, tanto do belo quanto do feio, permanecem
significativos marcadores de páginas que volto e releio, como brotos
ou pistas de algum futuro e melhor entendimento, sempre que algo
nesta vida bonita me incita a elaborá-los, ou simplesmente lê-los.
4
Carl Gustav Jung (1875 - 1961), psiquiatra de inestimável valor
teórico-prático, fundador da Psicologia Analítica, desenvolveu muitas
técnicas visando o afloramento e diálogo fecundo com as imagens
arquetípicas inconscientes que “determinam” o desenrolar de nossas
vidas, interesses e desenvolvimento consciente. Segundo Stein
(1998), Jung trouxe à tona desde a simples associação de palavras,
passando pelo aprofundamento do papel da arte no acesso e
materialização simbólica, inaugurando também a Imaginação Ativa,
prática que possibilita emergirem imagens vívidas e carreadoras de
energia do inconsciente com força consciente de imaginação.
Em si mesma, a Imaginação Ativa não é dotada de atributos
artísticos, mas simbólicos, ultrapassando também a simples
descoberta de complexos em nível da análise pessoal, alcançando as
imagens mais profundas e não-pessoais, de caráter universal como
as forças da natureza, as luzes e as trevas, dentre outras,
reveladoras dos primórdios da ética e da cultura, no âmbito mesmo
dos pilares que estruturam a psique, sendo aconselhada no processo
terapêutico a egos mais maduros e experientes.
Sinceramente, não acorreria a tantos perigos e árduo trabalho de
improviso diante das imagens coletivas se não houvesse um primeiro
e insistente chamado: vem “porque meu jugo é suave e o meu fardo
é leve” (Mc 11, 30); e concomitantemente, pela graça: forças,
iluminações e uma premente e intensa necessidade de verem brotar
no mundo, cada vez mais respostas amorosas a este chamado
interior. Trabalhando na área da Arteterapia, desejando
pacificamente o bem coletivo, o desenvolvimento humano, na
verdade, impossível não desdobrar qualquer grande ou pequeno
enfado para desvelar mesmo que uma pequenina resposta pessoal
neste sentido, uma abertura, sentimento ou visão realmente útil,
uma nova poesia...
5
Atualmente, inúmeras linhas de pesquisa do estudo da mente se
dão através de suas reações imaginárias mais complexas, elaboradas,
nas quais as imagens são liberadas e trabalhadas. Invariavelmente,
as práticas espirituais caminham no sentido contrário, do
esvaziamento da atividade mental, do imaginário, egóico, para
mobilizar plenamente o diálogo e comunhão com o divino,
atualizando a vida de maneira significativa. Mesmo práticas
espirituais que conjugam as duas formas sempre lançam suas raízes
no Eterno.
E o Permanente é incrivelmente eficaz, criador, transformador,
tornando testemunho, como contribuição particular deste trabalho, a
expressão de uma imaginação em “vias de redenção”, buscando a
assunção do corpo criativo como símbolo da unidade psicofísica, da
unidade consciente tão almejada entre espírito e matéria com seu
constante apelo ao Praesentis Tempus. Sempre atendendo as
reivindicações éticas das imagens mobilizadas, atendo também as
estéticas, comunicando, assim, em audiovisual, algo deste jovem e
apenas iniciado, percurso.
Ilustração 7. “Mãe da Contemplação”, escultura de Cláudio Pastro SJ.
6
Para a realização do curta metragem em vídeo foram dois os
métodos mais formais vivenciados no processo de criação. O
primeiro, vindo do âmbito da espiritualidade, compõe-se da
metodologia inaciana de Oração Contemplativa, presente nos
Exercícios Espirituais 6 de Santo Inácio de Loyola (1491-1556),
fundador da Companhia de Jesus. Como metodologia, inédita na
época, permanece ainda hoje atual, revigorada por publicações
recentes com linguagem adaptada. E o segundo método, a sobredita
Imaginação Ativa, estabelecida por Jung, no campo fecundo da
Psicologia Analítica. Antecipo, porém, que os dois processos, em seus
entremeios, são próximos, parecidos, embora a contemplação de
Santo Inácio - como obra puramente espiritual, cujo objetivo é
promover o diálogo direto da alma com seu Criador, enraizando seus
conteúdos na vida - conte com um diferencial bastante evidente,
como notaremos adiante.
Felizmente, no “campo das artes”, nos trabalhos que envolvem
processo de criação, produz-se conhecimento duas vezes: um
hodierno e um eterno, uma vez que as obras artísticas estão sempre
renovando, a cada olhar, seus dizeres, assim hoje, assim como daqui
a cem, mil ou mais anos, como todos experienciamos diante de uma
obra de valor inesgotável, universal. Não que me arrogue tal
capacidade, fique anotado, mas a arte em si é assim, fala por ela,
porque materialização de um instante poético, divino, conhecimento
íntimo singular e tão universal que atravessa muitas almas. Se
sincera, algum dia ressoará nos ouvidos, coração de alguém.
Na universidade, consequentemente, produzimos o conhecimento
atual, hodierno, e então, quiçá também eterno, posto que ponto de
vista singular, único e não-repetível, encarnado pelas nossas
vivências e reflexões teórico-práticas, artísticas, produtivas, situando
6 LOYOLA, I. Escritos de Santo Inácio – Exercícios Espirituais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
7
o mundo e a academia a par das criativas paragens experienciadas,
teorias de base, geradas, reinventadas, assumidas. Assim me propus.
Quando adentrei nesta via mais livre das poéticas expressivas,
pensava ainda voltar e me debruçar, futuramente, no campo da
Neurociência e pesquisar as reverberações fisiológicas das imagens,
daquelas que promovem a saúde e florescimento humano. A Ciência
vem abrindo muitas portas neste campo obscuro do conhecimento.
Certa forma, contudo, agora, para mim, nada como o simples, lento e
eficaz respirar da espiritualidade, no corpo-alma das artes, para
seguir inteira e significativamente o caminho.
James Hillman (1983), um pós-junguiano que inaugurou o que
hoje conhecemos por Psicologia Arquetípica, bebendo tanto das
fontes de Jung como dos filósofos orientais, preocupou-se
prioritariamente com os temas da cultura e da imaginação. Ele nos
fala da Anima como alma presente em tudo, como a “interioridade”
de todas as coisas, sendo justamente esta interioridade perdida
aquilo que precisa ser cultivado na cultura ocidental - uma vez que
houve uma generalizada unilateralidade privilegiada desde os
primórdios da educação formal no sentido da racionalidade,
afastando-nos do contato com o discurso mais mítico, poético e
mesmo religioso, próprios da alma, ainda que muitas instituições
educacionais fossem religiosas. Hillman nos traz os arquétipos como
as estruturas básicas da imaginação, que se apresentam como
imagens através das quais toda a experiência se torna possível: nos
planos físicos, social, lingüístico, estético e espiritual.
Assim, certamente, qual não será a suma importância de
trabalharmos a questão imagética, que viabiliza o desenvolvimento
pessoal, coletivo, sem, contudo, absolutizá-la. Em minha caminhada
até aqui, que inclui trabalhos educacionais desenvolvidos durante
anos com crianças em idade escolar, utilizando o recurso
arteterapêutico de reinventar e encenar espontaneamente histórias
8
do folclore popular e mitológicas, realmente só posso concordar que o
discurso mais mítico, poético e naturalmente religioso, próprio da
alma, alcança-nos em primazia, gradativa, mas verdadeiramente,
esta maturidade emocional tão almejada no meio social. Não sendo
somente próprio ao emocional, mas atuando como linguagem
facilitadora de toda uma atualização das potencialidades anímicas
pessoais e interpessoais, dos nossos recursos interiores e exteriores,
múltiplas inteligências. Pude acompanhar inúmeros progressos
individuais, junto às professoras, às crianças.
Digo, contudo, sem absolutizá-la, porque em um contexto de
amplo e histórico descaso pelo seu gradual e pleno desenvolvimento
integrado, um recurso humano que permaneceu tão esquecido na
educação formal ao longo do tempo, quando redescoberto, pode dar
margens a uma euforia mal empregada, ou exagerada, como
particularmente vislumbramos na atualidade, mundos virtuais e
paralelos desconectados da realidade natural e social saudável. Mas
esta questão, que pode se abrir em um leque muito grande de
perspectivas, excede as linhas simples desta introdução, embora
tema bastante discutido no universo teórico atual do imaginário.
E no âmbito da espiritualidade, que tudo permeia, como no da
educação, só posso testemunhar a autenticidade inefável do caminho
que escolhi, que me escolheu. No fluir de um também gradativo,
passo a passo, mas despojamento profundo, de uma descida dos
degraus tão impostos pela sociedade de hoje, de todas as épocas,
para o então, encontro e testemunho de um totalmente Outro
habitando o nosso íntimo, repleto de uma plenitude incalculável de
vida, Fonte Eterna de todo Amor e inusitada humildade, Sabedoria.
Assim como tantos santos católicos sinalizaram, apontando Virgem
Maria como modelo incomparável de alma, humilde serva do “sim”,
ou como os zen-budistas que apontaram simplesmente a lua, que se
deixa iluminar, também eu, com minha vida simples de matéria
9
animada, abraçada pela Luz, deixo algumas marcas através das
produções artísticas, particularmente a partir deste não-lugar
simbólico da Fonte, interior, revigorado - quiçá o Coração como sede
do imaginário, como argumentava Henri Corbin (JAMBET, 2006) -
cujo contato, comunicação e comunhão divinas, com licença poética,
pretendo argumentar que nos tornam domus do Coração de Deus no
tempo, fluentes de criatividade significativa, sentido místico de
integração, muito embora atravessando longas noites escuras.
Em nossas veras primaveras, a jornada solar do herói se faz
bastante edificadora do ego, como centro organizador e estruturador
da consciência, de modo vital para adaptação social, aprendizado.
Contudo, num certo momento do amadurecimento pessoal, desponta
em nós uma força que nos leva a tudo abandonar para mergulhar no
desconhecido, viabilizando a tomada de um nível maior de
consciência, novo centro, mais amplo. Assim o foi, por exemplo, no
desvelar do Surrealismo, ou da Vídeo Arte com sua vocação cultural
antitelevisiva. E é justo desta jornada lunar que nos fala, com tanta
primazia, em um nível mais profundo, toda a obra espiritual e mística
de São João da Cruz (2002), Santa Teresinha do Menino Jesus
(1986), Santa Teresa de Ávila (2005), Beata Elisabete da Trindade
(PHILIPON, 1988), e demais religiosos carmelitas descalços.
De fato, tudo na vida mística da Igreja alenta os ideais e valores
mais nobres que já pude vislumbrar. Visivelmente, muitos erros e
enganos na caminhada histórica das comunidades se fizeram notar,
mas é preciso não desistir no confronto com a sombra, e avançar. Há
um veio muito salutar e fecundo, verdadeiras Águas da Fonte, que
nunca param de jorrar, iluminar, santificar aqueles que empreendem
a busca com amor e confiança. E podemos melhorar estas simples
palavras com o exemplo dos grandes santos e santas, mártires,
pessoas cujas histórias de vida comoveram e continuam comovendo,
pois deixaram marcos indeléveis de amor, incomensuravelmente
10
altruístas, na nossa super-consciência coletiva, como o fez Madre
Teresa de Calcutá.
Em especial, inúmeras vidas de santos me inflamam o coração de
sublimidade. São Paulo mesmo, padroeiro do nosso Estado, com seu
apaixonado testemunho da Ressurreição após o encontro com a Voz e
Semblante de Jesus Cristo: de perseguidor dos cristãos a um gigante
anunciador do Evangelho. Em seu livro Anatomia da Psique,
Edward Edinger (1990) comenta que a descrição clássica do amor
transpessoal ainda hoje é feita por São Paulo em I Co 13, 1 - 7:
Ainda que eu falasse línguas, a dos homens e dos
anjos, se eu não tivesse amor, seria como o sino
ruidoso ou como o címbalo estridente. Ainda que
tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos
os mistérios e de toda a ciência; ainda que tivesse
toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não
tivesse amor, eu nada seria. Se distribuísse todos os
meus bens aos famintos, e entregasse o meu corpo
às chamas, se não tivesse amor, nada disso me
adiantaria. O amor é paciente, é benigno; não é
invejoso, nem se ostenta, não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente, não procura seus próprios
interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se
alegra com a injustiça, mas se regozija com a
verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta.
E São Paulo continua sua descrição do amor transpessoal dizendo
que as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, e a ciência
também desaparecerá, mas que o Amor, como força motriz e sentido
da vida, jamais passará...
11
Relevantemente para este trabalho, um dos marcos significativos
no processo de transformação de Paulo de Tarso em Apóstolo do
Amor Caritativo, foi um período de cegueira após a visão luminosa de
Jesus. Segundo Martini (1996), ele permaneceu dias sem conseguir
enxergar, travando batalhas com as trevas interiores, para depois
ressurgir, pouco a pouco, durante anos, transformado e agente
transformador na vida das pequenas comunidades.
E toda a Mistagogia para avançarmos na dura experiência da
cegueira ou da noite escura da alma – em primazia, vere beata nox 7
– é algo que só se pode encontrar em uma instância de diálogo
superior, interior, vivência donde jorra a alegria do Eterno, superando
todo transitório, infundado no amor. Nesta instância floresceram
muitas obras de grandes mestres, luzes no caminho.
São João da Cruz, místico e doutor da Igreja, outro homem de
Deus de peso em meu processo pessoal artístico. Em particular,
através de seu Cântico Espiritual 8 – que narra, em quarenta
estrofes, a jornada espiritual da alma em busca e união com seu
Amado – e dos conhecidos poemas A Noite Escura e Chama de
Amor Viva, pude encontrar um continente para algumas imagens
emergidas, um diálogo poético, anímico, forças. Como panorâmica da
poética do Cântico, destacam-se quatro momentos da vida do amor
espiritual: um primeiro de busca ansiosa e murmurante da alma por
seu Eterno Amado; um marcado pelo noivado, mas com muitos
percalços e obstáculos a serem superados; um de completa união,
comunhão espiritual, casamento sagrado, com total e mútua entrega
da alma e de seu Amado; e, por último, um estado de ardentes
desejos por estarem completamente unidos na glória eterna.
Este cântico espiritual, como ode de amor a Deus de beleza
irrefutável, descreve de modo ímpar e atemporal os suspiros, marcas
7 Noite, de fato, feliz. 8 Texto integral nos Anexos.
12
e disposições de amor da alma que empreende a jornada espiritual.
São João da Cruz assim inicia seu Cântico “Aonde você se escondeu,
meu Amado, e me deixou suspirando?”...
Segundo Spitzer (2003), a lírica moderna, mesmo a secular, deve
a poetas religiosos como Dante Alighieri e São João da Cruz a força
da carne e do tempo, da intensidade apaixonada, que eles souberam
magistralmente conferir aos seus escritos, revelando os sentimentos
mais íntimos, suas experiências mais insondáveis do divino.
E enveredando mesmo simples passos na via espiritual, poética,
logo percebemos que para colhermos os frutos da interioridade, não
podemos nos desviar dos absurdos próprios de sua linguagem
simbólica, paradoxal, integradora de opostos, que confere ao tempo e
à vida as inflexões atemporais e inefáveis dos caminhos místicos,
espirituais. Até que um auxílio ou sopro divino abrande as feras ou
águas revoltas em significativas calmarias... Mas porquanto tarda a
bonança, continuaremos bradando “Tirem os sapatos, tirem os
sapatos!” 9 uns aos outros, para tocarmos o coração temporalmente
salutar do sagrado, como se descalçou Moisés no Monte Horeb,
diante da Sarça Ardente que não se consumia, adentrando
reverentemente neste solo interiormente fecundo, quando irresistível
e amorosamente atraídos, chamados.
E assim, a humanidade segue compartilhando as suas
experiências...
9 Texto de uma performance teatral, pessoal, desenvolvida em disciplina do Prof. Dr. Ernesto Boccara, 2005.
13
Ilustração 8. Escultura de Aleijadinho, Congonhas do Campo,
MG. Fonte: Fotografia pessoal.
Em 2003, realizei minha primeira incursão via Imaginação Ativa,
em ambiente acadêmico 10. Nesta vivência, apareceu-me uma pálida
jovem espanhola, belamente vestida em longo e antiguíssimo vestido
esmeralda aveludado de rendas, a lançar um olhar de profundo pesar
para a humanidade. Desdobravam-se cenas terríveis de abandono
social. Olhei-a novamente e de suas pálpebras fechadas brotavam
rios de lágrimas carmesins. Torrentes vertiginosas de um sangue
púrpura, vivo, que penetrava e reacendia toda aquela dor nas minhas
próprias entranhas. Saí bastante impactada desta experiência, por
aquele olhar cego, interior, que mantendo a ternura sincera de seu
semblante, tanto via das dores do mundo e, como nas aparições da
Virgem Maria, chorava lágrimas rubras de compaixão. Deus e a vida
continuavam me propondo, cada vez mais, uma elaboração, até
mesmo mais formal, da questão do irreal ou anímico, das visões
abertas por um olhar cego, desprendido das formas conhecidas, mas
10 Em disciplina da pós-graduação, sob orientação da Prof. Dra. Elisabeth Zimmermann.
14
também enraizado, mantendo, simultaneamente, uma forte conexão
com a realidade vivida. Na realidade, as próprias orações e
caminhada intelectual & artística, conectadas, foram me ensinando
este amarelado e modesto fio-terra, como nos ensinam os bons
guias, citando Anselm Grün (1998, p. 29):
É descendo para dentro de nossa condição terrena
(humus, humilitas) que nós entramos em contato
com o céu, com Deus. Pois à medida que nós temos
a coragem de descer até nossas próprias paixões,
elas nos elevam a Deus. Por ser esta humildade o
caminho mais vil e desprezível para se chegar a
Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria
realidade para se alcançar o verdadeiro Deus, é que
ela foi tão exaltada pelos padres monásticos. Aquele,
porém, que almeja o céu com facilidade, nada
encontra além de sua imagem pessoal a respeito de
Deus e suas próprias projeções.
E reduzida ao pó no caminho do amor 11, porque não há como
tomar a via pela metade ou viver parcialmente suas impressões e
declives, espero um dia chegar ao termo da poesia do humus e da
raiz libertadora, porque pressentimos – junto a toda a natureza,
humanidade - que tudo, a partir desta raiz, se manifesta
intensamente como Epifania do Divino, a cada instante e estação
florindo e frutificando Amor, vera beata 12 poesia.
11 Como nos ensina Jesus – então, seus apóstolos e místicos. 12 Feliz, de fato.
15
E quanto ao decurso das práticas de Imaginação Ativa, descrevo,
aqui, os passos gerais empreendidos: 1) A partir de um relaxamento
inicial, no qual a consciência vigil tem oportunidade de abrir mais
espaços para o diálogo com o inconsciente; 2) Faz-se um movimento
contínuo de real envolvimento e concentração, participação, ação por
parte do sujeito, naquilo que emerge de seu interior e segue se
transformando em um fluxo autônomo de imagens; 3) Após este
mergulho, realiza-se algum tipo de objetivação do que foi
experienciado, seja na forma de um relato escrito, desenho,
modelagem, dança, composição, tentando ampliar o relacionamento
consciente e a fixação das imagens e seus conteúdos afetivos sem
muita discriminação racional.
A própria Imaginação Ativa pode ser levada adiante diretamente
no exercício das artes sobreditas, incluindo-se a escrita criativa,
guardando-se os demais passos: 4) Neste ponto, conduz-se o diálogo
mais analítico com o que foi vivenciado e realizado até o momento,
buscando-se uma compreensão mais clara, abrangente, associando
elementos pertinentes, seja da história pessoal ou coletiva, que
permitam uma concepção pessoal satisfatória, em confluência com a
dinâmica da própria vida; 5) A integração final do conteúdo produzido
e elaborado é chamada por Jung de “conseqüência ética” do
processo. Trata-se da prática ou realização na vida do auto-
conhecimento adquirido.
Jung (JAFFÉ, 2000) adverte que aquele que não enxerga seus
conhecimentos como uma obrigação ética, elaborando e vivendo suas
reverberações no cotidiano, fica à mercê do princípio de poder e dos
efeitos negativos do inconsciente.
16
Muitos anos antes, porém, de conhecer a técnica da Imaginação
Ativa, a Oração Contemplativa Inaciana foi a inauguradora das
minhas incursões mais conscientes no universo anímico. Santo Inácio
de Loyola (2006) dava significativa importância para a imaginação
visiva em sua espiritualidade cristã, propondo, através de seus
Exercícios Espirituais, a contemplação do evangelho e outras mais
temáticas como A Contemplação para alcançar Amor, segundo as
cenas e figuras imaginadas pelo próprio fiel. Santo Inácio já
antecipava que “o que sacia e satisfaz a alma não é o muito saber,
mas o sentir e saborear interiormente” (p. 11).
Ao longo dos séculos, a Igreja educou sua assembléia através das
imagens sacras, das pinturas, esculturas, e em Santo Inácio, esta
lógica se inverte, oferecendo-se conhecer o inefável justamente
através da nossa inerente subjetividade. Diz ele, resumidamente, em
sua metodologia de oração:
1) Colocar-se na Presença de Deus, pedindo a graça de mais o
conhecer para mais amar e servir; 2) Compor, através da
imaginação, o lugar onde se passa a cena do evangelho; 3) Ver, ouvir
o que as pessoas falam, como são, o que sentem; 4) Colocar-se em
cena, participando ativamente (opcional); 5) Encerrar com uma
oração de agradecimento pelas graças e iluminações recebidas; 6)
Anotar aquilo que mais marcou, com maior conteúdo emocional ou de
entendimento; 7) Proceder a mudança de vida.
Sábio santo, este simples “colocar-se na Presença de Deus”
anterior a tudo, fez-se iluminativa diferença para mim. Nutro também
boníssimas e profícuas recordações dos ambientes sacros, das velas
acesas, daquela escuridão acolhedora dos amplos corredores, das
celas humildes, do som dos grilos, às noites. Silêncio, silêncio,
silêncio por dias, no mosteiro jesuíta. Anotando, todas as manhãs,
sonhos claros, quase lúcidos, fazendo sempre muitas colagens,
desenhos.
17
Ilustração 9. Colagem pessoal, 2005. Fonte: Arquivo pessoal.
Assim, como “métodos” mais informais de criação, trago e somo
neste bojo, além dos livros, os sonhos e obras plásticas espontâneas,
a performance, a improvisação em dança, a escrita poética de livre
curso.
18
Será notável, futuramente, uma parceria mais refletida entre a
essência daquilo que propõe Santo Inácio e as práticas junguianas,
pertinentes às recentes pesquisas do campo do imaginário, como
conhecimento do humano, do divino. Incontestavelmente, para mim,
de Deus, de um Si-Mesmo que se revelou ser um Tu-Mesmo, em
minhas vivências, confluindo significativamente para as artes, ciência,
em todas as atividades “domésticas” e corriqueiras.
Ilustração 10. “Deus virou poeta”, aquarela de
Cláudio Pastro SJ.
19
A seguir, apresento esta divisão de temas: I. Stella Maris, II.
Pulchra ut Luna, III. Domus Dei e IV. Poema de Amor - Festina Lente 13. Nos três primeiros, temos: 1) A composição poética escrita -
reunindo as imagens emergidas a partir das Imaginações Ativas e
Orações Contemplativas - como substrato fértil para a criação do
curta metragem Natura fulgens (2005/6); 2) Um detalhamento do
processo de pré-produção, concepção e pós-produção; 3) Uma
reflexão fundamentada em Gaston Bachelard e outros filósofos,
cientistas e poetas do imaginário sobre a experiência do processo
artístico & de vida espiritual empreendido.
Em IV. Poema de Amor - Festina Lente, encontraremos mais um
gesto de carinho e gratidão por toda aprendizagem de vida
compartilhada, seguido do Epílogo: Ternura. Abismo da Graça. Moto
Perpetuo. Imo Tempo.
Antes, porém, de Stella Maris, e fechamento destas primeiras
palavras, ofereço-lhes este pequenino trecho de Jó (Jó 5, 17-20).
Não desprezes a lição do Onipotente, porque fere e
pensa a ferida, golpeia e cura com as mãos, de seis
perigos te salva e no sétimo não sofrerás mal algum.
Em tempo de fome livrar-te-á da morte e, na
batalha, dos golpes da espada.
E estas pétalavras soltas, antevendo, mãos dadas com a Virgem
Maria, uma-estação...
13 Ver, por gentileza, Glossário de Expressões Latinas.
20
<< Logo chegará, neste novo ano, o Outono. Tempo de ver os
caquizeiros com seus galhos repletos de vermelhos e robustos
rebentos, a despeito da queda das folhas, da sóbria maturidade e
aparente envelhecimento precoce de seu talo, sempre renovado em
verdes paragens dos pássaros, dada sua adocicada e paciente
sabedoria. Estação da alma, como Drummond bem prescreveu, de
um modo ou de outro, nascida no Outono, algum Novo Outono
sempre aguarda por vir, como início ou fechamento de um ciclo...
Ou dos muitos ciclos e ciclos... >>
<< Se me leva ao simples, ao Instante,
só pode ser bom. >>
21
Stella Maris
Modus Operandi I: Composição Poética escrita, reunido uma seleção das
imagens pessoais emergidas na vida de oração contemplativa e nas
práticas de imaginação ativa, durante os anos de 2005 e 2006.
22
<< Nela tudo se passava no interior. >>
Ilustração 11. Nuestra Señora de las Angustias, com suas lágrimas de cristal e
seu véu de renda, semelhante ao véu negro usado ainda hoje pelas jovens
sevilhanas nas festas religiosas. Fonte: BOYER, M. F. Culto e Imagem da Virgem.
São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 65 p.
23
Aquela luz perolada embebia sua pele azul, o ar suave, os ventos
mansos, instantâneo de Deus a lhe tocar o cimo, beijar a fronte.
Perfume intenso das canelas, enternecido pela brancura de renda das
multíplices florinhas entre gramíneas do verde claro ao musgo, tons de
terra roxa também, estendidas, convidativas ao repouso, estrelas e lua
lá no alto, anjos e virtudes velando.
Havia um emaranhado de raízes salientes de uma grande saboarana
secular, encostou-se. Amparou seu peito aberto, e cobrindo-se com
toda extensão de Seu afeto, sucumbiu ao sono, afugentando a dor.
Intermitente furor de paz infundido por uma fagulha de Amor que a
abrasou, atravessou, fecundou, abrindo-lhe sulcos, eternamente. Noite
adentro, o leite manava do céu bem vermelho, águas, águas e águas
abundantes em tons torrenciais. Tudo, após a ferida, penetrava, era
conhecido, e nada, tanto, até agora, como aquelas águas sulfurais.
24
Em seus sonhos, belíssimo jovem casto, olhos de um verde-amarelado
cristalino, lançou-se, sorrindo, nos terrenos abismos, chamando-a pelo
nome. Flores púrpuras cresciam de seu leito, besouros transeuntes e
vaga-lumes faceiros conduziam alegremente o pólen em seus cenhos.
Alvorada lunar, saudosa do sempiterno e terreno amado, levantou,
começou a vagar. Seu corpo mais pesado pelas águas, antes do deserto
que se aproximava, um rio corrente, translúcido prateado, repleto de
pescados. Dois homens simples, humildes, tratavam com seus anzóis.
<<Tiramos a Mãe Morena dali, bem do meio, onde os peixes gostam
mais.>> E apontaram. Agradecida pela preciosa guia, adentrou, foi
recebida, na bacia das pratas. <<Achamos depois a cabeça>>
continuavam, proseando, já ao longe. Amenidades deliciosas reveladas
naquele meio, temperado de sol, de um vívido colorido interior,
bastante povoado, tal como nas margens. Sua ferida se fechava, seu
corpo se aquecia docemente flutuando leve, naquelas águas.
Mergulhava, olhos abertos, perplexos, exuberantes na multiplicidade
abscondida. Assim, encantada, tão consciente, mas absorvida.
Aprofundava os mergulhos, raro respirava, salgava-se tanto daquela
vital amplitude azul esverdeada. Azul profundo de mundo, sempre azul.
Azul, azul, azul, intenso azul de uma realeza e natureza mais
25
intempestiva nesta obtusa cercania dos mergulhos bons. E tudo
incandesceu outro lugar, revoltas serpentes trouxerem águas de um
mar bravio fervente, com toda ferocidade vulgar dos ataques repentes,
mortíferos. Dilaceraram-lhe a pele, a carne, os membros.
Incompreensível, demasiado e cruel tormento. Sem pensar, combativa,
afastou-as todas na própria ira, numa voz e movimento. As águas
tornaram-se denso e vigoroso sangue; sumiram-se as severas,
serpentinas. Sem enxergar naquele extremo vermelho, alguém lhe
ofereceu apoio, o ar novamente. Segurou firme em sua mão,
transportada de pronto ao éter, deixando o corpo retalhado como a
borboleta de intenso amarelo, enlevada, costumeiro casulo.
Havia apenas aquela cor, intenso amarelo, e a lentidão pacífica do
universo. Dadas as mãos, dançavam, eram luz, resplandeciam amor.
Horas, dias, o tempo sem compasso se ampliava, difundia. Almas que
desde a eternidade se conheciam. Acordou, despertou nas margens do
rio prateado, envolta em manto dulcíssimo, repleto de majestosos
brocados. <<O amor é a substância incorruptível>>, ouviu. Olhou, mas
nada mais viu. Novamente inundada, tal imensidão e beleza das
cascatas, prados, florestas, incomensuráveis desertos, montanhas,
flora e fauna exuberantes de viva harmonia em pacífica matéria,
26
generosa natureza em todo o espectro de cores. Seus Olhos eram duas
iluminadas estrelas-irmãs, fontes puras de perfeita candura, bondade,
mansidão em inexprimível proximidade e alvura. Quisera jamais deixar
aquele colo materno, alturas. Os cabelos negros deslizavam-lhe pelos
ombros, como suntuosos espelhos refletindo as divinas maravilhas,
ornados de véus. Toda a abóbada celeste prestava-lhe melífluas
homenagens. Envolta em amorosa luz multiforme, cânticos e louvores,
orquídeas e rosas plenas, hortênsias, violetas, margaridas, e tantas
silvestres inomináveis floradas, reverentes e exalando alegria, aos
Seus pés, quase escondidos.
<< Mãe Morena... >>, entoou. Tendo-a, então, amparado mais
abertamente em Seu divino manto, consolou brandamente << Vivendo no
tempo, tudo cicatrizará. >> Raios transparentes, diamantinos,
encarnaram-na salpicados das luzes que provinham do centro de Sua
Santa Coroa de estrelinhas, repleta de pequeninos rubis, púrpuras da
guia, entranhada beatitude, húmus santo da Misericórdia.
Clara ciência esculpida, naquela tarde, naquele poente. Acolhida para
sempre nas dobras de Seu manto, entre suas palmas santas. Indizível
júbilo, felicidades. Podia morrer, passaria feliz. E justo, continuava
viva, morrendo. Sulcada de todos os lados, sem saber para onde ir.
27
Apenas a graça necessária à Salvação, e aceitava, compreendia. Ali
estava o Céu Aberto, na visão gloriosa da Eterna Mãe, e partia,
precisava partir. Acompanhada incomensuravelmente no imo, segura
então, seguia seu caminho, chamada pelo seu amado, por todo e
qualquer prado, Aquele doce coração ardente de paz que se havia
pronto e tão apaixonadamente lançado na via de todos, sagrada via.
<< Siga devagar, respire profundamente o ar; de oração, com coração,
se alimente. >> Aconselhava a Eterna Mãe, admirável Mulher Vestida de
Sol de sabedoria infinita, Stella Maris, Stella Matutina, aqui, a Nossa
Santa Senhora da Conceição Aparecida...
E seguia. Aquele furor santo de paz a conduzia. Antes, a secura do
deserto ainda não havia deleitado a sua boca, ardendo nela a chama da
vida tal como em densa floresta tropical. Agora, caminhava, sim, com a
gravidade dos profundamente abismados pela graça, abençoados tais
como feridos.
Calma e profusamente, fortalecia-se na oração, vestes e vestes
surradas espalhavam-se pelo chão. Pétalas ou gotas, diariamente, do
poético alento do Eterno, caíam-lhe nas sedentas mãos. Tecia colchas e
colchas para serem abrigo nos maus tempos. Tudo nesta casa,
28
parturiente, suspirava, gemia. Antigo castelo de sonhos descido
abruptamente das brandas nuvens infantis.
Então, certa manhã de sonho intenso, depara-se com estranha mulher
aturdida. Semblante terrificado, mais punhais do que mãos, pedindo
guarida. Inquilino não grato, amaldiçoado, impelido ao anonimato pela
vizinhança. Relutou em recebê-la, quase impossível perguntar a que
vinha. Um cheiro sombrio de matança impregnava o ar, estampado em
horrendas e cálidas cicatrizes onde prontamente se lia << a violência
deste rubro corpo transpira seu cerne febril, neste ímpeto índigo de se
tornar branco, transparente, dissolvente, penetrante água mercurial
que te confundiu a mente >>... Espadas a postos, cravou-lhe uma
firmemente, à obnublada visão, no teto do abdômen. De primo, fora
amedrontada por toda exposta e gratuita revolta, depois, quieta,
ponderava a cura para aquela morte temerária em seu próprio piso,
insondável fumaça.
Girou com vigor a espada cravada com força de boa intenção de
completar a tarefa: verter-lhe o sangue das águas paradas, abrir-lhe à
luz as obscuras cavidades, lavar-lhe o fígado, o baço. Lençóis brancos e
limpos, deixou-a aos cuidados das santas almas, dos anjos, redigiu-lhe
um bilhete, saiu.
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<<Amada Piedade, adormecida e banhada no leite terreno do meu
coração. Fervores desejosos de cura e alívio da pele redescoberta, eu
verti, jubilosamente grata pela mansa dissolução dos temores. Dói. Esta
espada transpassada no centro, teto do abdômen, abre e escoa o
sangue estagnado de feridas antigas. Sinto o cheiro do sangue
acordado correndo. Caem por terra crostas e líquidos abissais,
enquanto dorme, sonhando com a minha atual presença. De olhos
abertos ou fechados, eu estou aqui, por você. Saiba disso. Meus olhos é
que ainda não podem contemplar os seus. Frio na barriga porque eu
muito anseio. Bem sei que algo em mim pode morrer por suas mãos. Mas
confio no tempero Santo da vida. Peço a Deus, pelo mundo
interiormente povoado, a humildade delicada e forte dos pés que abrem
caminhos. Tem palavra e coração. Amor, alma.>>
Compromisso vital, vitalício. Saiu para encontrar a efetiva cura deste
humano vício, cegueira desconsolada: a aterradora brutalidade,
impiedade desvairada e assassina de prestimosos semblantes.
Dignidade perdida quando da primeira Eva caída. <<Afastada de meu
amado, tudo me assusta, me põe em resguardo.>> E andou, andou.
Cansada em um cume, treliças vertiginosas por entre as matas,
passagens difíceis, feras revoltas. <<Meus olhos já nada mais vêem, a
30
não ser o abismo de Suas grandezas, altura, largura e imperscrutáveis,
tão doloridas por vezes, profundezas. Mesmo assim, se esconde de
mim.>> Dor lancinante sentir-se abandonada ao incompreensível fado do
mundo. Olhou para o céu em prece, <<socorre-me Santa Mãe, aparece>>.
Sentia que o Coração de Maria sangrava, escorria. Envolta em névoas,
rasgando as densas neblinas, uma luz clareando seu pranto, consumia.
Surgia a Santa dos Pobres, Maria Menina. De rosas, feitas as faces tão
pálidas, contemplando silenciosamente o lagar. Cenas urbanas de
violência, crianças desoladas, desabrigadas nas sarjetas, pretume
sufocante dos automóveis, panfletos vencidos por todos os lados,
impreteríveis prenúncios do caos, do nada, ausência total de sentido.
Vislumbrou-a novamente e de suas pálpebras fechadas brotavam rios
de um púrpura vivo carmesim. Entranhas vívidas da Misericórdia divina,
Amor tão cálido e cegamente sofrido que lhe fez íntima e
completamente desalojada de si. Impregnada de tão forte ardor, tão
impensável, que mal concebia ser possível sentir tudo aquilo e continuar
existindo. <<Oh, Mãe Menina, tão criança, tão sofrida!>> Calou-se, nada
mais conseguia pensar ou dizer. Emudecia diante da magnitude do amor
de uma Mãe tão menina, tão impensável amor, aberto à humanidade
inteira.
31
Articulava mal as palavras, agora, conseqüente mudez. Silenciada pela
magnitude da vida, do amor divino pela vida, ainda que crescendo
silente, gemendo pelas dores do parto, entre os espinhos escondida.
<< Vem pelo amor, vem >>...
Muda, silente. Brotava, crescia por todo seu corpo, vigorosa e esquia,
aquela santa e sonora Voz Eterna em amada semente. << Pai de Amor,
meu Tudo, meu Criador, meu anseio mais profundo, meu fundamento,
Matéria da minha carne, única luz dos meus olhos, meu Espírito, ata-me
com seu vínculo dourado, fio que me tece e adentra pelo alto da cabeça
até as raízes sonolentas viventes no seio da Terra. Ata-me com intenso
desejo e saudade. Amor, alma. >>
Olhavam-na como louca, desatinada. Caída na lama, despida de casca,
descalça. Mas era mesmo a própria imagem do mal que coberta de olhos
abertos por todos os lados, congelador de imagens disformes, acusava,
perseguia. E ela tropeçava nos percalços simples da vida, de afetos
reunidos, interiormente lacrimosos, devotamente apaixonados. <<Oh,
amado, como sobreviver sem estar na sua devera presença e alegria?
Meus dias, todo meu corpo até os ossos se consome neste atual
estado>>. Dissolvida pela saudade de vida plena, lado-a-lado,
compartilhada, verdadeira. Tudo lhe cansava, o cerne condoia, tremor
32
amargo que lhe consumia as vísceras, os gostos, os sentidos, toda e
qualquer poética, mesmo agradável, que lhe escondia entre as
folhagens, brumas e ondas dos confins, seu eterno amado.
<<Love shook the body like a devastation>>… Suas forças se esvaiam,
esvaiam, vertidas as lágrimas diluentes que lhe deixavam naquele
incompreensível abismo, impelida, no entanto a ir sempre adiante por
aquela indescritível força amorosa, eco da voz amada, sopro bom
daquele suave olhar, carinhoso chamado. Caída por terra, coração
incandescido de amor, pouco podia, ferida potente que lhe arrebatara
toda a vida. <<Oh, amado, nunca amei tanto e fui tão ferida>>...
Sem sopro de voz, recolhera-se, adormecera ainda mais. Casinha
simples, na areia, capelinha branca encimada pela cruz. Ventava muito.
Passaram dias, meses, como anos. Retirada do mundo fulgurante dos
carros e transeuntes, suspirava, costurava colchas e mais colchas para
os sempiternos valores humanos. Vestir os nus, amparar os
animicamente desabrigados. Profusamente convalida, ansiava pela cura
desta chaga fecunda pelos quatro, cinco, seis, infinitos recantos.
<<Chaga aberta incurável, a não ser pela presença de amor fortuita e,
então, eterna de seu inesquecível e compassivo amado>>...
33
Sol escaldante, ventos litorâneos, areinha branca. Olhos parcialmente
cerrados e aquele paradoxal reflexo no pequeno espelho rosa-
amarelado. Quase não se reconhecia, semblante severo, hábito de
monja, verdadeira guerreira lutando com dragões. O primeiro lhe
apareceu nas costas, de um castanho-escuro avermelhado, antipático e
macilento. Tremores, tremores, terremotos. Indizível ungüento, tal
dragão soerguido, bufando mil razões, apetites, labaredas, brasas,
fomentos. Matéria vil caída dos sonhos materiais constrangendo tudo
ao redor. Então, ela mesma caiu de joelhos, contemplou novamente
aquele estranho e paradoxal movimento de almejada paz e santidade, e
então, aquele fogo, fogo amarelado, avassalador.
Terra, uma terra marrom. Foi o que ele virou, de repente. Abria e
fechava os olhos, não acreditava com simplicidade. Nisso, um rasante
de águia levou-lhe os olhos descrentes. Capitulava o episódio, mas
enxergava normalmente. E o que via, agora, diante de si,
majestosamente ornamentado de vermelho e dourado, branquíssimo e
enorme dragão fulgurante. Alto, contra o azul do céu. Pensou consigo
<<este sim é um dragão bem ornado, remido>>...
Ledo e completo engano, o branco dragão, lá no alto, quase não se
movia. Apaixonado por si, exaltando suas douradas algemas, gemia por
34
dentro, não era livre, pior sofrimento que alguém podia. Compadeceu-
se, alcançou-lhe um pouco da fofa terra marrom que tinha nas mãos,
húmus do coração original embebido na poça fraterna da água de seu
próprio core, comunicante. Estrelas brincantes, naquele infindável
terreno abrasado de verdadeiro e humano amor.
Ar, um ar respirável, foi o que ele virou, insuflou. Artérias de um vivo
vermelho do novo oxigênio inalado. Suave beatitude, início das bem-
aventuranças...
<<Que todos os espaços por mim habitados, ó meu amado, incluindo
sôfregos pulmões, terras, casas, todas as vísceras do Corpo Único do
cosmos, sejam a Ti consagrados>>... Cantava, respirava devagar o pleno
ar humilde pelos pulmões. Realmente tudo que não fosse Ele ou dele lhe
doía, mesmo e principalmente, as partes, imagens de si mesma. Gostaria
de restituir-lhe todo aquele alvor e rubor, plenitude dos dias santos,
pacíficos e enamorados, despendidos em sua preciosa e sempiterna
presença. Contudo, uma magreza severa a percorria, dissolvida pelos
recônditos de suas azuladas veias. Dores e dores pelo corpo, algo que
aturdia. Aquele penetrante amargor das sulfas noturnas restava, aos
poucos se esvaía, mas consumava, a consumia.
<<Venha por aqui, venha>>...
35
E << << Fique firme em Minha Presença >> >> ouviu.
Silêncio. Era algo quase impossível de saber responder, tendo-o ouvido
em voz tão centrada, forte e repleta de verdadeira majestade. Reuniu
forças, levantou, oferente, o coração pulsante. Sentiu a força daquela
Sabedoria infinita que todos os espaços perscrutava, conhecia. Duas
lâminas espelhadas de espadas fortíssimas. Vapt, zumm. Acertaram-lhe
num mesmo instante o pescoço pela frente, outra o sacro, por trás,
ambas pela voz.
Caíra completamente, inundada de um misto de terror e gratidão.
<< Negrume, noite, escuridão. >>
Sem pernas, sem cabeça, sem qualquer abreviação.
<<The Light of my eyes itself is not with me >>…
Prostrada pleno chão das desérticas planícies, ao simples som do
coração, em oração... Mundos imaginários inteiros vieram-lhe cobrar as
águas, costumeira afeição, dedicação. E aquele negrume santo dos olhos
36
fechados, colados no chão, plantados cálidos e tão devotamente
apaixonados aos pés da cruz.
Subtraiu-se tudo.
Pó e pó, areia desértica,
desidratada pelo sal <<Peles e peles que me caem, sangue rubro azulado
que se esvai, e eu não O contemplei ainda, despida de mim mesma>>.
Silêncio, silêncio. <<Se não pode servir o vinho puro, sirva ao menos a
pequena dose da mistura, do mosto >>, diziam-lhe vozes, terrores
subalternos, soturnos.
Levantou-se em frente à cruz.
E ela própria era a massa confusa, obtusa ausência de luz.
Ervas amargas. <<Quem as quer?>>
Imperscrutável dor de morte infinitamente profunda, permanecer
velada Àquele incomensurável Amor de Paz, Sabedoria Incriada.
37
E ELE a olhava nos olhos, chamando, amando tanto! Impossível não amá-
Lo ainda mais, abrindo-Lhe os olhos, um a um, por vez, à Luz Eterna do
Rei dos Reis.
<< It can see, and wishes to explain, but can find no word that will
suffice; for what it sees is invisible and entirely formless, simple,
completely uncompounded, unbounded in its awesome greatness. What
I have seen is the totality recapitulated as one, received not in
essence but by participation. Just as if you lit a flame from a flame, it
is the whole flame you receive. 14>>
Transpassada em todas as células por aquele, insondável por outra via,
conhecimento. << A cruz é a resposta máxima e curativa do Amor a todo
envenenamento pelo ódio brutal, pelo insosso medo. >>
Nada mais podia que não fosse proveniente daquela Única Raiz da
liberdade, Luz Inapagável, extrema reconexão, insofismável Alegria.
14 SYMEON THE NEW THEOLOGIAN apud GRANGER, I. M. Sacred Poetry Chaikhana, Campinas, 2005.
Disponível em <http://www.poetry-chaikhana.com>. Acesso: 2005
38
Voltou, contudo, os olhos abertos sobre si mesma, antes cativa do ouro
falso, insuportável tristeza. Uma vergonha profunda, entranhada, de
poeiras do tempo a cobria. Jamais, jamais soubera amar assim, tão
desimpedida-mente.
Incapaz de levantar-se por si mesma, mendicante, no deserto ali jazia.
Forte apenas naquele insistente e eterno chamado recíproco de Amor.
<< Vem meu Amor, vem, despe-me desta dor >>...
<< DEUS IGNIS CONSUMENS 15>> E todo aquele reavivado ardor de
sol no peito manso que incendiava florestas e fazia brotar mananciais
de águas nobres em única cor. Branco que reunia e remia todos os
istmos. Sal que a transportava ao tão premente e esperado deserto do
gosto somente do Eterno Amado. Ali, só poderia encontrá-Lo,
abandonar-se, oferecer-lhe seu indiviso amor, cobri-Lo de beijos, de
flores, de toda ternura.
Sobrevivia na fé, na esperança, e na almejada, em tudo, caridade.
Mas << Oh, Amado, como poderei vir-Lhe à altura? >>
15 Deus consome pelo fogo.
39
<< Faz-me Tu-Mesmo desde as Suas Santas e Amorosas entranhas
corporais e imagéticas neste imo, Amado Esplendor, onde habita
insuperável em Cepas Santas, Eternas Estrelas, fortalezas inesgotáveis
da Misericórdia e Sabedoria Infinita, sustentadoras do mundo,
movedoras da vida >>...
<< Vem renascer em mim qual criança >>.
<< Por amor de Sião, não me calarei, por amor de Jerusalém não
descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não
se acender nela, como uma tocha, a Salvação. As nações verão a tua
justiça, todos os reis verão a tua glória; serás chamada com um nome
novo, que a boca do Senhor há de designar. E serás uma coroa de glória
na mão do Senhor, um diadema real nas mãos do teu Deus. Não mais te
chamarão Abandonada, e tua terra não mais será chamada Deserta; teu
nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-casada, pois o
Senhor agradou-se de Ti e tua terra será desposada. Assim como o
jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva
é a alegria do noivo, assim também és tu a alegria de teu Deus. 16>>
16 Is 62, 1-5.
40
Por um instante, escondeu-se nas cinzas, nas brumas. Era indigna de
tamanha ventura. Mas agora, nada nunca mais a satisfaria longe dEle,
nem mesmo os gozos oblíquos de uma fecunda imaginação, arborescida
longe da Sua Raiz.
<< We do not wish to be unclothed, but we desire to be clothed over, so
that which is mortal may be absorbed in life. 17 >> Ele não quis
sacrifícios, nem oblações, mas tocou-lhe a testa com Sua Humana Mão,
sorrindo, abrindo-lhe os olhos, os ouvidos, do corpo e coração,
perguntando-lhe quem a havia perturbado tanto.
<< When fortified in love we shall see >>.
<< Eu te restituo a integridade, alma amada, há de me servir >>.
Coração quieto, quase sem bater, nulo e repleto.
Transportado de pronto ao incomensurável. Inimaginável alegria. A
sensação daquele toque tão indelével de Amor, recíproco, carinhoso,
era tudo o que ad aeternum existiu, existia: expansão jubilosa da
17 2 Co 5, 4
41
Matéria da vida, Água Viva do Coração de Deus no tempo, eternidade
no corpo, na alma e na mente.
<< Eu dei a Minha Vida por você. Eu dei a Minha Vida por Amor. >>
Abrasados nAquele Vivo e Presente Amor de Paz...
<<Despe ó Jerusalém, a veste de luto e de aflição e reveste, para
sempre, os adornos da glória vinda de Deus! Cobre-te com o manto da
justiça que vem de Deus e põe na cabeça o diadema da glória do Eterno.
Deus mostrará seu esplendor, ó Jerusalém, a todos os que estão
debaixo do céu. Receberá de Deus este nome para sempre: “Paz-da-
Justiça e Glória-da-Piedade”. As florestas e todas as árvores
odoríferas darão sombra a Israel, por ordem de Deus. Sim, Deus guiará
Israel com alegria, à luz de sua glória, manifestando a misericórdia e a
justiça que dele procedem. 18>>
Uma correnteza calma de águas cobria o deserto, molhava-lhe os pés.
Burburinho gentil de brisa mansa. Repousou, recostou a cabeça em seu
peito.
18 Br 5, 1-4; 8-9.
42
Águas doces que brotavam límpidas do chão.
<< O amor tudo espera, tudo crê, tudo suporta. 19>>
Mãos dadas, simplesmente ouvindo o som de seu amado...
Não tornaria a voltar os olhos sobre si, e caso sim, Ele ali estava.
Com Seus Olhos de amor, entranhados na misericórdia. Semblantes
vistos a serem redimidos pelo olhar do coração...
<< Perfect charity casts out all fear 20>>.
Sim, descobrira a Raiz.
19 I Co 13, 7 20 1 Jn 4, 18
43
Pulchra Ut Luna
Modus Operandi II: Vida corriqueira, poeira, olhares devotos que
brotam de cada fibra e gesto de ternura neste chão, do próprio corpo,
alma e coração, como mananciais, sopros puros...
44
<< Virgem Morena de indizível fecundidade temporal:
Vaso Insigne de Devoção, Casa de Deus. >>
Ilustração 12. A Virgem Maria como Pachamama, encarnada na montanha de
minas de prata de Potosí. Autor não identificado. Fonte: BOYER, M. F. Culto e
Imagem da Virgem. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 93 p.
45
“Eis porque os Meus Anjos, em verdadeiras multidões, se interrogaram
uns aos outros: “Quem é esta, por detrás do Seu véu?”; “Por quem as cristas
das montanhas se inclinam tão profundamente, saudando-A, à Sua
passagem?”; “Quem é A que é como uma fonte que torna os jardins férteis
pelas Suas graças, esse poço de água viva?”; “Quem é Ela, com um Coração
tão puro, com um amor divino, suspirando por Deus dia e noite, e em
perfeita união com o Altíssimo?”; “Quem é esta Virgem, que é tão humilde,
apesar da Sua grande riqueza de virtudes e graças, que os Olhos do supremo
Deus não A deixam nunca?”
Vassula Ryden 21
A Virgem Maria, Mãe de Deus, é um campo fecundo de
inspirações. Como falar das belezas e auxílios insondáveis que tão
generosamente propaga pela terra, tendo já em si, nos trazido o
Menino Deus? De seu Coração Imaculado partem santos amorosos
abraços, inestimáveis zelos de Mãe Carinhosa, e toda-piedosa para
nos conduzir pelo caminho seguro, via crucis do humus ao abismo da
graça, morrendo e renascendo no Amor, com Jesus.
Maria é a encarnação da argila branca e humilde,
apaixonadamente atenta instante a instante, às propostas e ações do
Criador. Participa da criação entregando-se completamente, sempre
unida ao Pai, transbordando o Cálice do Divino Amor em Obras de
Misericórdia e Glórias do Altíssimo. Em Maria os sedentos de infinito
encontram um oásis de águas cristalinas e refrescantes de uma nova
fecundidade temporal, de Reciprocidade Amorosa Infinita. Humilde, e
despojada de tudo o que não é Amor, Deus a faz morada de Sua
Santidade Trina. 21 RYDEN, V. A Verdadeira Vida em Deus - Encontros com Jesus. Vol. VIII. Joinvile, SC: Edições Boa Nova, 2005. Pg 155.
46
Ó Maria, doce luz que alumia e mareja meus olhos, move-me a
vida! Stella Cordis Creatoris 22, move-me ao sopro benfazejo, ao
canto, singelo e sem pranto, de um simples e poético cotidiano, como
empreendido, vivido, sob sua doce tutela, entre tantas pessoas
boníssimas, quase escondidas, em suas pequenas comunidades,
durante este percurso criativo artístico, pondo-me em contato com o
absurdo da fortaleza e simplicidade divinas, movedoras do mundo, e
nelas, em tudo e todos, suas crianças, geradoras de vida divina.
Maria Menina, mulher forte, peregrina, ágil em escutar a voz de
Deus e colocá-la em prática. Grávida, foi ao encontro de sua prima
Santa Isabel atravessando vales e montanhas, levando a Presença de
Cristo, iluminada benção, esperança. Depois, foi com José para o
Egito, quando o Pequeno corria perigo. Adulto, acompanhou-o nas
andanças, nas pregações, contemplativa, pronta e companheira, em
sua vida pública, então, transpassada por espadas de dor, orante e
silente, aos pés da Cruz. Em 1950, foi proclamada, por Pio XII,
Assunta ao Céu em corpo e alma, ao término de sua vida terrestre.
Citada pouquíssimas vezes nos Evangelhos, perduram – como se
multiplicam – títulos e qualidades que os fiéis lhe devotam, existindo
51 invocações diferentes na Ladainha que a Igreja Católica
correntemente lhe dedica, como também 113 variações de títulos
somente no Brasil, sem contar as inúmeras características singulares,
especiais, vislumbradas no interior daqueles que amorosamente a
invocam como Mãe.
Nesta sessão, apresento um detalhamento do processo de
concepção e realização em imagem e som do curta metragem
Natura fulgens (2005-2006), tendo Nossa Senhora como inspiração.
Natura fulgens foi produzido junto a mulheres do Assentamento
Rural “12 de outubro”, ou Horto Vergel, como popularmente
22 Estrela do Coração de Deus.
47
conhecido, na cidade de Mogi-Mirim, SP. Contribuíram neste processo
minhas vivências, tanto interiores, compiladas na sessão anterior
Stella Maris, como também exteriores, saboreadas especialmente em
pequenas comunidades ao longo da vida.
Lembro-me que há bastante tempo atrás, perguntaram-me sobre
quem seria se um destino totalmente outro pudesse ser trilhado.
Surgiu-me à frente a imagem de uma senhora que conheci no sertão
do Rio Grande do Norte, com o semblante tranqüilo, os peitos
compridos de amamentar muitos filhos, mãos rústicas, calejadas de
lavar roupas ao sol, pescar no Assu, fazer doces em tachos para as
crianças. Tantas e tantas santas mulheres, ocultas, devotam a vida
ao amor, aos filhos.
Neste ínterim, no caminhar por pequenas comunidades, labor até
então, por vocação, quisera meus olhos fossem vivas câmeras para
desvelar os belos e tantos pormenores significativos do cotidiano-
coração. Fibras e fibras humanas teciduais, laços e fibras de suado
algodão. Risos impressos nas casas, nas paredes rosadas, azuis, nas
folhagens torcidas do cerrado, mesmo e especialmente nas fecundas
areações. Fibras e fibras - quase óticas, sonoras, sempre cardíacas:
visíveis, audíveis, e mesmo entoadas pelos corações.
Que fazer quando o vento leva algumas telhas e sussurra à nossa
alma peregrina: “Desperta menina! Desperta menina!”? Mãos
calejadas de maduro amor, compartilhadas. Saltam aos olhos a
intensa concretude do mundo, a beleza anímica. E nos movemos
como em valsa nupcial com o real, pairando de gesto significativo a
gesto poético, sintético, fecundo, mesmo já habitual: alegria do verbo
emanado. Investidos de luz e ressurreição permanecem o olhar, as
casas, toda a comunidade, entretecidos por laços de afeto, amizade.
Evocam, contudo, as badaladas da ressurreição, as almas-poetas,
inquietas, que mergulharam ou mesmo foram surpreendidas pelo faro
ou própria noite escura da alma: tempo de angústia, de provação,
48
mas também de redenção, de esperança, nova luz ulterior, abertura,
novo tempo, além-amor.
Maria como Ecclesia, aparece como a Igreja que, como novo
princípio original de unidade, restaurando a imagem decaída de Eva,
reúne, agora, e alimenta seus filhos com o leite da Sabedoria Eterna,
que vem do coração. Eleva o Amor Misericordioso, capaz de se
debruçar sobre e redimir todos os filhos pródigos que batem à porta
de Seu Imaculado Coração.
Significativamente, nesta jornada, no convívio com a força, beleza
sonora e sabedoria pura dos simples de coração, circulando nos
entremeados caminhos das comunidades, mesmo sem o saber, o
“leite terreno” 23 que vertia de meu peito se adoçou de alguma forma,
pelo que sou incomensuravelmente grata, grata, grata, grata, refeita
sem nenhum pingo de desfeita... Sempre aceitando um cafezinho
bom, num canto manso de só-amor e gratidão.
“Penetrabo inferiores partes terrae et inspiciam omnes dormientes et
inluminabo sperantes in Deo” 24
Ecclesiasticus 24, 45 25
23 Diz o dito popular que “quando os olhos estão sãos, todo o corpo fica são”. 24 Penetro as partes inferiores da terra, considero todos os dormentes e ilumino os que esperam em Deus. 25 Biblia Sacra Vulgata.
49
E Pulchra Ut Luna, desponta Sinara, atriz principal do curta
Natura fulgens, como filha da Mãe Terra, como filha de Maria,
mesmo sem o saber, de amor perene, mesmo em Lua Nova, radiante
no íntimo, mergulhada completamente no mistério da vida...26
26 A ilustração “Mãe da Luz” de Cláudio Pastro SJ foi encontrada após a produção de Natura fulgens, configurando-se como imagem de um mesmo universo arquetípico.
Ilustração 13. “Mãe da Luz”, pintura de Cláudio Pastro SJ.
50
Pré-produção de Natura fulgens...
Sol entre nuvens brandas, rodovias, estradinha curta de terra, um
laguinho, eucaliptos, pequenas construções espalhadas, chegamos.
Equipe de pós-graduandos para a produção de documentários,
orientados pelo Prof. Dr. Fernando Passos, no Assentamento Rural
“12 de Outubro”, ou Horto Vergel, em Mogi-Mirim, SP.
Neste primeiro dia, num encontro local de jovens, encontrei
Sinara, falando bem, com força, expoente também de algo além,
doçura. Logo conheci sua mãe Sueli, então, o pai, irmãos, amigos.
Apresentou-me as vizinhas, mulheres doces e fortes, mães, avós,
meninas. Decididamente, diante daquela terra vermelha, calor de
paz, poesia encarnada e transpirável de erva-doce, camomila,
alecrim, florinhas púrpuras nos jardins, minha contribuição seria na
produção de um curta metragem com as mulheres do Vergel.
Reunimo-nos muitas e muitas vezes, durante alguns meses,
conversando sobre e fazendo poesia, trabalhando com dinâmicas de
expressão verbal e corporal, tecendo correlações entre o labor do
corpo e da alma, poético, criativo, com o labor da terra.
E assim, dançamos, nos encantamos com exercícios simples de
consciência corporal - entre muitos, tocamos nossas faces, sentimos
o ar ou sopro da humana e tão vital respiração. Realizamos
imaginações ativas, nas quais profundas imagens pessoais e
transpessoais para elas emergiram. Sueli se lembrou da visão que
teve no justo momento do nascimento, parto, de Sinara – um
extenso e bonito gramado verdinho; Ana Paula viu-se amamentando
sua filha, Jéssica, de um modo cotidiano, mas marcante para ela;
outras trouxeram imagens dos muitos frutos da terra, ipês floridos,
cestas de sementes, colheitas reunidas, feiras dos produtos, vidros de
51
mel e compotas; já outras mulheres, imagens de abraços, círculo de
pessoas de mãos dadas, momentos de partilha.
Concepção de Natura fulgens...
Particularmente, nesta época, vivia interiormente uma inundação
de imagens arquetípicas com relação ao feminino sagrado e suas
manifestações. Certamente, quando temos uma questão evidente
esta atua como catalisadora, aglutinando impressionantemente o que
há de ressonante entre as pessoas, no ambiente, abrindo espaços de
diálogo, de trocas significativas, de criação coletiva.
Nesta produção, tínhamos como pedra de fundação o despertar da
alma poética e a assunção do corpo criativo - a integração dos
sentimentos, pensamentos, percepções, intuições, memórias e
imaginações com o corpo que labora tanto para o sustento da vida,
no campo, como para a nutrição da alma. E este foi o desafio
lançado: aquilo que fossemos produzir juntas teria de ser significativo
para cada individualidade. Assim, todas eram incentivadas a
contribuir, enquanto eu mantinha a firme esperança de conseguir
trabalhar simultaneamente meus densos conteúdos. Aliás, sempre
tive a consciência de não esperar esgotá-los facilmente, com
uma,duas ou três produções que fossem. Então, a liberdade deu
lugar, com o tempo, a uma assertividade e sentimento interno de
estar a realizar o melhor possível com as pessoas e condições
presentes. Considerei tudo, na verdade, um presente e um
aprendizado, percebendo, felizmente, desta vez, que obteria
resultados.
Então, a produção. Não tínhamos um roteiro claramente definido,
mas imagens que queríamos realizar e conectar umas às outras. Eu
iria realizar esta conexão também a partir da qualidade das imagens
52
obtidas. A equipe de alunos da pós-graduação da UNICAMP que
cursavam a disciplina que nos levara até ali, e que também
trabalhavam em seus projetos, ajudou-nos nas gravações.
Gravamos em três dias distintos.
Rose, que permaneceu constantemente em silêncio entrecortado
por risos nas atividades de pré-produção, fora incumbida da cena da
porta, da pequena grade, na produção do vídeo. Neste, Patrícia,
contribuiu alegremente com uma de suas poesias: A Gaivota.
Sinara, a jovem que primeiro conheci e que se encantara com a
imagem do feminino sagrado nascendo da terra, comentado nas
oficinas, dispôs-se a realizá-lo. Ana amamentando sua filha Jéssica.
Cléia, extremamente tímida, mãe de três filhos, apareceu com eles,
brincando, na varanda. Durante as gravações, tivemos a graça de
Ilustração 14. Conjunto de imagens do curta metragem Natura fulgens. Fonte: Arquivo pessoal.
53
ouvir, também, inesperadamente, o alegre depoimento de Neuza,
que vive no Horto Vergel desde seu início, repleto de honesta
fortaleza. E Sueli, mãe de Sinara, investida de Grande Mãe.
Em todo este tempo de convívio, participei também de outros
momentos da comunidade, missa de celebração da Coroação de
Nossa Senhora, festa junina, agradáveis visitas. Algumas impressões
destes momentos também foram incorporadas, acolhidas.
Imagens simples, mas, para mim, aglutinadas pela força de
coesão da alma peregrina encarnada por Sinara, aberta, de olhos
abertos ao novo, com vida nova liberando seu sopro, com caminho
previamente iluminado pela Grande Mãe, porém alma-saudosa, já
com traços de quem busca um amor ou algo longínquo, embora
presente, com vontade de viver presentemente.
Assim, meus olhares de futura editora, então diretora, se
embrenharam no solo fecundo da arte de produzir em imagem e som.
Alegria de realizar. E realizamos, todas juntas, certa forma.
Ilustração 15. Fotografia da produção de Natura fulgens. Fonte: Arquivo pessoal.
54
Seguem, então, desde já, meus intensos agradecimentos às
participantes pelo chão fértil de imagens e sentimentos
compartilhados, aos quais somo a “poesia-roteiro” deste curta, que
escrevi durante o processo de pré-produção, para materializar
minhas impressões primeiras, servindo-me posteriormente de linha-
base para a edição.
POESIA-ROTEIRO de Natura fulgens...
Arde-nos o coração como chama viva, rocha ígnea, a fecundar os espaços
da vastidão. Parturientes do mundo, corpo inundado do fogo do espírito,
ventre do criativo. Sonhos nos brotos e nos filhos, nas mãos, fortalezas
operantes da alma, da terra. Amor que nos lança ao centro, ao único. Amor
que permeia tudo.
55
Pós-produção de Natura fulgens...
Repassando, agora, todo o processo de realização, incluindo a
edição, com relação às minhas vivências e imagens pessoais,
apresentadas em Stella Maris, identifico alguns trechos, logo no início
da composição, que traduzem o sentimento com que criava com as
mulheres do Vergel:
“Noite adentro, o leite manava do céu bem vermelho” (p. 23).
“Chamando-a pelo nome” (p. 24).
“Alvorada lunar, saudosa do sempiterno e terreno amado,
levantou, começou a vagar” (p. 24).
“Seu corpo mais pesado pelas águas, antes do deserto que se
aproximava” (p. 24).
“Mãe Morena...” (p. 26).
“Vivendo no tempo tudo cicatrizará” (p. 26).
“Siga devagar, respire profundamente o ar; de oração, com
coração, se alimente” (p. 27).
“E seguia. Aquele furor santo de paz a conduzia. Antes, a secura
do deserto ainda não havia deleitado a sua boca, ardendo nela a
chama da vida tal como em densa floresta tropical” (p.27).
56
“Agora, caminhava, sim, com a gravidade dos profundamente
abismados pela graça, abençoados, tais como feridos” (p. 27).
“Pai de Amor, meu Tudo, meu Criador, meu anseio mais
profundo, meu fundamento, Matéria da minha carne, única luz
dos meus olhos, meu Espírito, ata-me com seu vínculo dourado,
fio que me tece e adentra pelo alto da cabeça até as raízes
sonolentas viventes no seio da Terra. Ata-me com intenso desejo
e saudade. Amor, alma” (p. 31).
Trechos que são marcos indeléveis da minha história de vida
interior. Em Stella Maris, já vislumbrara, por exemplo, que “Retirada
do mundo fulgurante dos carros e transeuntes, suspirava, costurava
colchas e colchas para os sempiternos valores humanos” (p. 32). E
assim me senti, na segunda etapa do processo de criação, retirada da
vida corrida, quiçá da academia, e imersa na vida doméstica e
amorosamente corriqueira, realizando em imagem e som aquilo que
santamente passou a ser mesmo roteiro de vida, passagem
verdadeira: do interior ao exterior, do exterior ao interior, sempre
amando a novidade do instante “revelador”.
Outros leitores podem ainda encontrar novas correlações do curta
Natura fulgens com as imagens presentes em Stella Maris. Ou
mesmo as poderão associar às minhas futuras produções. O valor
inestimável das Imaginações Ativas e Orações Contemplativas
permanece, contudo, para mim, no cultivo das paisagens anímicas,
na aquisição de símbolos vivos que nos colocam em movimento.
Símbolos promotores de busca, de complexidades crescentes, de
simplicidades reluzentes, sempre de um conhecimento humano maior
a partir da experiência desta atmosfera psíquica comum – e tão
inusitada ao mesmo tempo - a todos os homens.
57
A metodologia mais formal empregada revelou e ratificou aos
meus devotos olhares a magnitude do substrato anímico, criativo,
fazendo-me desprezá-lo também, quando opulento e infértil, para
alcançar o tesouro mais escondido. Digo e confesso aqui, o tesouro
mais escondido, posto que me sinto transformada profundamente por
este processo de criação, um tanto mais amadurecida – e iluminada
por dentro -, muito mais do que consegui realizar ou produzir neste
período. Mas a vida é longa e há muito a ser lapidado.
Tenho comigo que preciso ir cada vez mais, em novas produções,
driblando o fator “alegórico” da transposição da linguagem do
imaginário mais ligado ao inconsciente e arcaico para as realizações
audiovisuais. Encontrar minha fala autêntica em imagem e som, a
partir deste substrato anímico fértil, mas também independente dele,
vencendo as cruzes e percalços próprias do meu processo pessoal
estético, poético, criativo, singular, como escultora do tempo.
Impressionantemente, o caminho de individuação descrito por
Jung, o caminho espiritual trilhado por Santo Inácio e os carmelitas
descalços - como tantos outros - e o caminho dos artistas, da
autenticidade artística, apontam para uma mesma direção: a da fala
Ilustração 16. “Cristo Mestre”, pintura de Cláudio Pastro SJ.
58
autêntica e significativa de cada um, individualmente. Tanto, que
apresento nos anexos (no 04) um trecho do comentário carmelita do
Cântico Espiritual de São João da Cruz - referente às estâncias 20 e
21 deste - que trata da necessidade de superação das inundações
emocionais, ruídos da imaginação, e até mesmo medos espirituais,
para a conquista de uma “pureza de intenção” (esvaziamento até o
mais profundo, cerne único, ao invés de engrandecimento), na
jornada que conduz a alma à sua Luz, à sua Fonte - e na linguagem
de muitos místicos, ao seu Amado...
Ilustração 17. “A Samaritana”, pintura de Cláudio
Pastro SJ.
59
E que indescritível paz deixar-se mover, íntima e poeticamente,
mesmo sem perceber, pela Fonte, pelo Amado, por Aquilo dentro de
nós que é mais nobre, mais amoroso e mais despojado, donde
brotam uma fecunda liberdade e alegria espiritual, realizando,
paradoxalmente, nossa devera singularidade, no amor, nos trabalhos,
nas relações que se estabelecem.
Lembrando que para além de uma imaginação redimida, há
também um poético feminino ferido e acuado em quase toda parte,
necessitando de redenção, da sacralização da terra, do espaço
doméstico, do pulsar e agir do próprio Corpo-Coração. Nesta
produção, interagiram imagens interiores, encontros exteriores,
pesquisas dos arquétipos coletivos, sensações, impressões, intuições,
que aos poucos se tornaram também conhecimentos assumidos e
manifestos no corpo criativo que dança, tal como Sinara no vídeo, em
seus primeiros movimentos...
No mundo, percebo, as constantes massificações - que cerceiam
nossa potência poética, de vida - somente reforçam a perda do
espaço habitual onde este feminino reencontra seu vigor: nos círculos
concêntricos que se expandem para o mais universal, partindo do
mais interior. Ali, senhora do próprio íntimo, do próprio corpo, na
beleza anímica melíflua que cuida da terra e da família compondo
poemas e cantigas, as sementes escolhidas - uma a uma – reúnem
forças para a irrupção significativa. E só podemos falar de uma
pluralidade verdadeira a partir de singularidades verdadeiras.
Assim, com força miraculosa de reunião dos filhos dispersos de
Deus, auxiliando cada um que se dispõe no percurso de integração
anímica, de comunhão com o sagrado, nos chega Maria, com Sua
Ternura e Divina Sabedoria, gerando “a vida de Deus em nós”.
Penso que se a humanidade está tão inconsciente da plenitude
espiritual da Vida, que carregamos em humilde semente no peito, é
porque o feminino, alienado de si e da Mãe Ternura, está acuado,
60
massacrado, sem o devido espaço para ser em seu poético e divino
devir. E a humanidade inteira, sem verdadeiro cultivo, acolhimento.
Ilustração 18. Ecclesia, de um manuscrito alemão, séc. XII.
Fonte: NEUMANN, E. A Grande Mãe – Um estudo fenomenológico da
constituição feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 1999.
61
Adélia Prado (1990) 27, em uma de suas entrevistas, nos coloca
esta preciosidade:
Feminista, agora, para mim, só se for filha de
Maria. O problema agora não é Jesus Cristo, é
Maria. A irrupção do feminino. (...) É o papel do
serviço. De servir para que o mundo seja. O
serviço para o grande acontecimento. E o
feminino vai irromper assim. O feminino em
Deus.
Comentário que conflui na irrupção ou despertar da alma poética
feminina, corpo criativo já caminhante, em imagem e som, nesta
criação coletiva. A voz bonita, contudo, de Sinara, no vídeo, ainda
nos vem como um sopro...
27 CANÇADO, J. M. Adélia Prado combate a transparência do mal. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 1990.
Ilustração 19. “Mãe de Deus Aparecida”, aquarela de Cláudio Pastro SJ.
62
Por fim, pude demonstrar que não sou muito prática na elaboração
de roteiros. Eles acabam nascendo do frêmito vivo, da palavra-força
que inaugura um novo tempo, sempre reunindo tudo o que calou
profundo na alma, estava disperso e é significativo, na justa alegria
dos encontros, inundando - das sementes certas - as produções. Em
Natura fulgens, as sementes que já carregava encontraram terra
fofa, água fresca, alento; e as outras, também, as certeiras,
ressonantes, trazidas pelos ventos, obtiveram espaço, sendo
gentilmente adubadas.
Imagino seja o modo intuitivo de gerar.
Ilustração 20. “Trono da Sabedoria”, pintura de Cláudio Pastro SJ.
63
Domus Dei
Reflexões teóricas do processo artístico – & de vida espiritual -
empreendido.
64
<< Mãe Morena de indizível fecundidade temporal:
Causa da Nossa Alegria, Casa de Deus. >>
Ilustração 21. A Moraneta, pintada no século XVII por um
monge beneditino. Fonte: BOYER, M. F. Culto e Imagem da
Virgem. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. 39 p.
65
“A imagem poética, como algo novo, é puro presente, pura presença. E o
estar presente à imagem no minuto da imagem é que justifica a dispensa de
um prévio saber – mediação geralmente deformadora ou mesmo negadora do
ser da imagem. Melhor receber a imagem como dádiva, no despojamento de
quem se defronta com algo inteiramente original, principal, primeiro – no
despojamento e na fruição prazerosa de quem bebe direto da fonte.”
Gaston Bachelard
1. Intuição-do-uno e alteridade.
A intuição é umas das quatro funções psíquicas descritas por Jung
(1971) na sua teoria dos tipos psicológicos – dentre as quais
encontramos o sentimento, o pensamento e a percepção. Todos os
seres humanos possuem as quatro funções, ordenadas em grau
decrescente de utilização ou importância no seu relacionamento com
o mundo. A função principal, de adaptação do indivíduo ao mundo,
junto com o arranjo ordenado das outras funções, aliada também a
uma característica - atitude ou disposição psíquica – de introversão
ou extroversão, fornece, para Jung, uma tipologia psicológica.
Para Jung (1971), a combinação de uma função principal ou
superior e de uma função auxiliar ou secundária - sendo via de regra
uma introvertida e a outra extrovertida - constitui o melhor modo
para adaptação do indivíduo e interação deste com seus mundos
interior e exterior. A quarta função ou inferior, por outro lado, por ser
menos acessível à consciência, desempenha um importante papel de
ponte com o inconsciente no caminho de individuação, ou seja, no
processo de desenvolvimento psíquico que leva ao conhecimento
consciente da totalidade.
66
E foi com esta tipologia que cheguei até aqui: sou uma jovem
Intuitiva Introvertida, tendo por função auxiliar o Sentimento
Extrovertido, com Pensamento também muito utilizado, desde
menina, e por função inferior a Percepção. Esta compreensão me
ajudou a iluminar e potencializar, durante a realização do mestrado,
aspectos do processo criativo artístico, como também foi o
“instrumental anímico” através do qual fui desperta para a vida
espiritual, reconhecendo minha disposição às leituras e metodologias
mais intuitivas e visionárias, e ainda, explorando e selecionando
outros caminhos, mais difíceis para mim, perceptivos, vivenciados na
comunidade e na própria realização em vídeo.
Para a psicologia junguiana, todas as funções psíquicas são
importantes no caminho que leva ao reconhecimento de uma
totalidade, integrada significativamente na vida simbólica e, aos
poucos, na vida quotidiana deste alguém. Para grande parcela dos
místicos 28, entretanto, a intuição possui ampla primazia, por ser um
canal de informações muito aberto e direto sobre “um todo”,
significativo; e ainda mais particularmente por não se deterem,
muitas vezes, na questão da adaptação ao mundo, importando-se
prioritariamente com o relacionamento com o Divino.
Paulo de Tarso Gomes, no prefácio do livro A Intuição do
Instante do querido filósofo da imaginação poética Gaston Bachelard
(2007), antecipa, relembrando, que Hugo de São Vítor (1096 – 1141)
já havia assumido a intuição como conjunção entre uma totalidade e
o vero instante, uma vez que a contemplatio era “a intuição do olhar
contemplativo e o conhecimento último sobre a totalidade e infinitude
divinas” (p. 8). Para Hugo de São Vítor a contemplatio perfazia o
último degrau do conhecimento, precedido pela cognitio – que se
28 Com o devido perdão por esta generalização.
67
referia à observação sensível e à imaginação – e pela meditatio –
como reflexão racional cujo ápice é o reconhecimento do Divino.
Para Paulo de Tarso (BACHELARD, 2007), a contemplatio, como
instância do conhecimento, exige uma metafísica mais profunda e
radical, porém sempre Unitiva, ou seja, concebendo o mundo não
como ruptura, mas como continuidade nos prados da divina
consciência, e mesmo ascensão da observação sensível à
contemplação de Deus. A intuição seria, então, para os místicos, o
que as quatro funções desempenhadas de modo integrado são para
os junguianos: uma prévia ou realização da contemplatio, um
lampejo deste Ato-Uno, de consciência e de mundo, e de um modo
profundo, de vivência do Instante na Presença de Deus.
Ilustração 22. “Coloca-me com o Pai”, apresentando Santo Inácio e Jesus Crucificado, pintura de Cláudio Pastro SJ.
68
Em outro ensaio de filosofia, intitulado A Fratura Humana, de
Castor Bartolomé Ruiz (2004), a alteridade aparece como paradoxo
que estabelece um distanciamento relacional entre o ser humano e a
natureza, entre esse o seu próximo, unindo e separando sujeito e
objeto, condição sine qua non da constituição da própria identidade,
subjetividade. “Unindo” na medida em que movimenta o desejo de
busca de conhecimento e aproximação do outro, do diferente, de si
mesmo, mas “separando” inequivocamente por uma fratura abismal,
nunca superada porque ontológica, contingente. Assim, para Ruiz,
desde os Homo sapiens, que sentiram que a natureza se afastava
deles e se configurava como alteridade, perambulamos entre a
necessidade de plenitude e a busca de sentido, de relação, e toda
sutura eficaz entre estes dois pólos se manifesta através da
linguagem simbólica, num contexto de subjetividades tramadas em
um mesmo universo simbólico, pois sem isso seria impossível pensar
em uma linguagem que possibilitasse alguma aproximação unitiva.
A plenitude, como geralmente abordada, implica em sentimentos
de repouso e satisfação, de um absoluto que praticamente não se
move, mas em extremo júbilo por dentro se instaura e pacifica.
Enquanto a busca de sentido claramente nos põe em movimento
exterior – também interior - possibilitando o ser humano, na
incompletude, recriar pontes de sentido com o mundo e entre seus
semelhantes através de seus símbolos, da comunicação.
Desta forma, o mundo pode ser novamente “incorporado” pela
representação de nossas subjetividades e olhares de criaturas
hermenêuticas que dotam de significado tudo o que tocam - num
modo ativo, criativo e singular de entreter relações, constituindo as
cosmovisões, modeladas a partir do universo social e pessoal - ou
pode mesmo ser “participado” num movimento de apresentação,
revelação [ativo-passivo], como salienta Ruiz e propõem os místicos.
69
Nas diversas situações a integração das funções e potencialidades
anímicas, para alcançarmos simbolismos cada vez mais complexos e
unitivos, como também a inspiração pura, dada pela aparição ou
apresentação de conteúdos, podem estar presentes em diferentes
proporções. São Bernardo de Claraval 29, em consonância, porém,
nos alerta que o ser humano, por mais que usufrua dos elementos do
mundo na tentativa de vivenciá-los e conhecê-los em sua largura e
profundidade, multiplicidade de significados e relações, permanecerá
sempre tocado pela incompletude, de fato, não satisfeito.
Gaston Bachelard (2007) nos ensina que o conhecimento é por
excelência uma obra temporal. E aquilo que transcende o tempo
como o conhecemos – numa conjuntura com o Eterno, mas revelado
histórica e presentemente, no vero instante fecundo (em si
atemporal, dilatado singularmente) - necessita de uma metafísica
superior, inaugurada pela contemplatio através dos olhares devotos,
peregrinos, abertos para o invisível e fonte que o anima.
Em qualquer contexto do conhecimento, todavia, situando a
contemplatio num limite intermediário, mediante a experiência
daquilo que ultrapassa o conhecimento, incluindo as outras
modalidades expostas do “conhecer”: cognitio, meditatio, temos a
linguagem simbólica revelando a cola invisível que une as várias
regiões do real. Assim, um símbolo é sempre unitivo da consciência e
do mundo (ou partes), destes e da consciência de Deus – sendo que
nesta primeira instância, a Comunicação ganha relevo e luz
esclarecedora, e na segunda, de conjunção com a eternidade, a
Comunhão entra completamente em ação, embora participem
numinosamente juntas. E como ainda nos diz Bachelard (2007), uma
intuição fecunda não se explica, vivencia-se, justamente porque
ultrapassa todo conhecimento - temporal - que é parcial.
29 CLARAVAL, São Bernardo de. Traité de l'Amour de Dieu. 1128.
70
Felizes, então, como dizem os bons poetas, os olhos-e-corações
que se voltam para a Fonte da Vida e participam do mistério de todas
as coisas, sem desenraizar-se, sendo o corpo e alento donde jorram o
leite e o mel da eterna sabedoria, temporal e historicamente. A
contemplatio, a oratio (que mesmo prescinde da imaginação) são
verdadeiros modos de alcançar a via que conduz a esta comunhão
consciente, dados inúmeros testemunhos dos místicos, santos, de
tantas criancinhas que descobrem o Amor Encarnado no mundo.
Sto. Inácio de Loyola (1997), inaugurador do modo contemplativo
de oração utilizado, cujo propósito principal era o diálogo com Deus,
aproximando a alma de seu Criador, narra em sua autobiografia um
episódio muito especial que ilustra a “apresentação” de um conteúdo,
ou conhecimento que o ultrapassa, extraordinário. Ia ele, certa vez,
por devoção, a uma igreja que estava a mais de uma milha de
Manresa, onde se encontrava, tendo uma forte experiência de Deus.
Escreve seu redator:
Creio que a igreja se chama São Paulo e o caminho segue
junto do rio Cardoner. Indo assim em suas devoções,
assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava
bem abaixo. Estando ali assentado, começaram a abrir-se-
lhe os olhos do entendimento. Não tinha visão alguma, mas
entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de
espírito, como de fé e letras. Isto com uma ilustração tão
grande que lhe pareciam coisas novas. Não se podem
declarar os pormenores que então compreendeu, senão
dizer que recebeu uma intensa claridade no entendimento.
No decurso de sua vida, até os 62 anos, coligindo todas as
ajudas recebidas de Deus e tudo que aprendera por si
mesmo, não lhe parece ter alcançado tanto, quanto daquela
só vez. Ficou com o entendimento de tal modo ilustrado,
71
que lhe parecia ser outro homem e ter outro entendimento,
diferente do que fora antes. 30
Muitos filósofos ou outros teóricos, como Ruiz (2004), tratam o
imaginário como o sem-fundo da natureza humana: realidade última
a partir da qual o conhecimento humano descobre os imperativos do
ser. E aqui, definitivamente pisamos o limiar entre filosofia e teologia,
racionalidade epistemológica e o solo fecundo da mística ativo-
passiva, do mistério, pois para uns, trata-se da autonomia criativa do
imaginário e para outros, da Fonte do Ser, de Deus.
Ainda em A Fratura Humana, Ruiz (2004), interpretando o livro
bíblico do Gênesis, relembra que a força criativa de Deus fraturou
Adam [Adamah, que significa terra, humanidade] para que não se
sentisse mais só. Primeiro, a nova criatura saída das mãos de Iahweh
emergiu umbilicalmente unida à terra, formando uma unidade natural
com ela, e então ocorreu uma fissura externa, separando Adam do
mundo natural, trazendo-o à vida. E depois, uma fissura interna,
gerando Eva de uma de suas costelas, evoluindo da gênese da
consciência da identidade – na criação de Adam – para a gênese da
intersubjetividade, uma vez que esta segunda fratura irá implicar, de
fato, o desaparecimento de Adam como realidade auto-suficiente e
fechada em si mesma. A partir de Eva, existiu um outro ser que o
completa em um nível mais interior que o meio natural.
Assim, sem a desindentificação inicial com o mundo a pessoa
estaria eternamente condenada ao encerramento monádico primitivo
e indiferenciado, e sem a intersubjetividade não poderíamos dizer
como Adam algo como “esta sim é osso dos meus ossos e carne da
minha carne”, vislumbrando a unicidade ou continuidade em uma
30 LOYOLA, I. Autobiografia. 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1997. Pg. 41.
72
esfera maior, interna e externa, apesar da aparente separação que,
na verdade, foi um bálsamo curativo da solidão.
Muitos filósofos, como Ruiz (2004), tratam da questão metafórica
do Gênesis de modo significativo, mas geralmente sinto falta de algo
essencial, que fica esquecido: que saímos da “Presença de Deus” e
que precisamos também voltar para Ela de um modo mais
consciente, diferenciado. Não só a unidade com o mundo, com o
outro, mas também com Deus. Solidão ontológica, mais profunda
ainda, que foi instaurada após estas duas fissuras da criação de
ambos os seres humanos. Muitos trazem a expulsão do Paraíso como
a gênese da consciência, da alteridade com o mundo, mas reparando
bem, ela é posterior ao fato da ruptura da unidade do homem com a
terra indiferenciada. Para Jung, como para outros teóricos, teólogos,
entretanto, esta questão retrata fielmente a perda da unidade
primordial e não consciente com Deus.
E enquanto não reconhecermos esta necessidade vital de diálogo
com o Criador, retornando à Sua Presença de modo criativo e
diferenciado, ainda percorreremos muitos campos (quase
inanimados) como seres errantes, nas malhas do tempo - sem
tempo, infelizmente, para o instante -, quiçá em uma réplica do
jardim da multiplicidade exuberante, abarrotados de quinquilharias
interessantes, sem, contudo, reencontrar, às significativas
apalpadelas, a fechadura da Porta que nos reconduz ao Reino, e
desta vez, como seres ambulantes, não somente no Jardim Exterior,
mas felizes convidados ao Átrio Interior, à participação infinita,
incomparavelmente bendita, nas fontes de Águas Vivas, adentrando,
amorosamente,
na Domus Dei.
73
“Há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente
e o sentimento da vida.” Gaston Bachelard
2. O remédio feito da matéria do encontro.
Vida, vida bendita. E como Santo Inácio indo assim em suas
devoções... Abrindo-se lhe a grande panorâmica da vista, os oculi
cordis, olhos interiores da alma-unida-ao-coração, e depois,
espirituais, revelando as inesgotáveis obras de arte divinas da
criação... Primeiro, descobri, caminha-se com o músculo do coração,
inflamando o amor e busca do Outro, e logo depois, com os humildes
e lavados, em lágrimas, pés... pela alegria do Encontro.
Uma alma peregrina está sempre empenhada na jornada. E só há
encontro quando há amor. Combustível do alento, fogo suave do
frêmito da vida, bons ventos. E o respirar vital se transfigura num
despojamento de si que abre amplos espaços para o verdadeiro
encontro com Deus, e nEle com todos.
“Se alguém, através da oração, aliena-se, é porque não procura
Deus, mas a si mesmo” 31, lembra-nos a vida de Edith Stein (1987),
que se tornou a carmelita Madre Teresia Benedicta a Cruce, já
famosa como pensadora e discípula predileta do filósofo Edmund
Husserl. Para ela, o deixar-se conduzir pela verdade encontrada e
abraçada é descobrir riquezas interiores não imagináveis que só
esperam ser dinamizadas e colocadas a serviço dos outros. 32 O
mundo não tem fome do que temos ou sabemos, mas do que somos,
a cada gesto concreto, reunindo o visível e o invisível, nas margens
de uma nascente inesgotável. E quando se abrem “os olhos de Deus”,
31 STEIN, E. Na força da cruz. São Paulo: Cidade Nova, 1987. Pg. 25. 32 Conta-se que São Bernardo, por exemplo, em um mesmo dia na Alemanha, curou nove cegos, dez surdos-mudos, dez coxos ou paralíticos, como o fizeram o próprio Jesus Cristo, Maria e tantos santos.
74
os acontecimentos se tornam Kairós de Deus, momentos da graça. E
subitamente compreendemos nossa passagem.
A vida de Edith Stein nos mostra que “cada um de nós tem o seu
Damasco onde a luz fulgurante de Deus lança-nos do cavalo e quase
nos obriga com sua doce e forte violência a aceitar a verdade que
tantas vezes rejeitamos” (pg. 18). Para mim, esta verdade é a de que
nascemos para nos doar, perdendo a nós mesmos, em atos sinceros -
tão ternos! - de extremo e indelével Amor, parindo flores e frutos,
mesmo fora de época, e realizando, assim, nossa devera pluralidade.
Mas essa vocação plural parte de um mergulho e escuta da Voz
Eterna ecoando uníssona às batidas singulares de nosso coração.
Beleza indescritível da diversidade de dons, chamados, vocações.
Quando iniciei o mestrado, nas primeiras linhas do meu projeto de
pesquisa, estampavam-se as palavras: Parir das próprias entranhas
imagéticas, caminhando do simbólico pessoal como portador de
reverberação essencial e coletiva, singular construção em
audiovisual... No intercurso da vida, sempre fui arrebatada de amor,
atraída, ao mesmo tempo em que repelida, pelo ímpeto do sacrifício
[Sacro-Ofício: ofício do sagrado], do “dar de si” na gestação, contato,
realização de todo e qualquer ato significativo, nas artes, na vida.
Caminhando pelas Artes, fica bem claro que toda vez que não
damos algo de nós, morremos uma pequena morte: pelo frêmito ou
pulso de vida não compartido. Morte da qual nos desviamos,
enquanto pudermos, acercando-nos, sob outro aspecto, de outra
morte, esperada, suave, tão desejada pelos místicos, o “dar tudo de
si”, que constela a vida em abundância.
Oportunamente, constelando, também, o Instante... Embora, a
violência do Amor para nos colocar no sagrado caminho 33 pode
mesmo ser grande, porém doce, se o tesouro do Encontro verdadeiro
33 Via Sacra.
75
com Deus se inscrever no agora, no instante, pois como um divino
remédio, balsâmico, curadas as feridas, estamos inteiros de novo, e
na verdade, infinitamente mais vivos e repletos do que antes.
Ilustração 23. “Um coração que voa”, de Cláudio Pastro SJ.
76
Assim o senti, em parte, dispondo-me a uma vida de oração
contemplativa, desde os dezesseis anos. Aos poucos a pedagogia do
Amor se tornou uma irresistível mistagogia da presença divina. No
júbilo ou na dor, independente, os sentimentos de vida, verdade e
amor são infinitamente enraizados. Sempre que me encontrava com
Deus, dispondo-me conscientemente à Sua presença, e escuta
sincera, havia um diálogo repleto de significativas provisões para a
caminhada. Como o há. E obviamente, Deus não castiga ou machuca
como algumas duras imagens emergidas, expostas em Stella Maris,
podem sugerir; não há o apelo à dor, mas sim, sua substancial e
compreensiva superação. Deus nos faz, acertivamente, amadurecer.
Sair de nós mesmos, com a força de uma gema apical que se rompe,
e estica, para parir nova flor. Daí por diante, até mesmo as
provisões, por viver nEle, são abandonadas.
Ilustração 24. “Dracma perdida”, pintura de Cláudio
77
Assim, mais aptos para a pérola escondida, seguimos. Seja
intensamente a vida interior, primeiramente, como se acenou para
mim, seja agora, o labor concomitante do interior e exterior, como
obras do Amor, sempre revelando divinos encontros, nestes instantes
fecundos, de Deus com todos, em todos.
Ruiz (2004), em suas incursões sobre a história bíblica do Gênesis,
lembrou-me que Adam dormiu um sono profundo e Iahweh retirou
parte de suas entranhas... E as orações contemplativas e práticas de
imaginações ativas 34 fizeram, em minha vida, como modalidade de
ação e vivência interior, o papel deste sono profundo, embora ativo,
criativo, maturando-me para “gestar” e agir no amor. Como se cada
vez que tomada por um sentimento de plenitude, imóvel e sonolenta,
uma costela me fosse tirada, aumentando a chama e a necessidade
de unidade com o real, com o outro, com o mundo exterior. Então, o
labor da vida, em contígua correspondência, fez - como o faz -
impulsionar, animar a luz do coração.
Salientando que nas orações cristãs contemplativas, como o disse,
bem ativas, há o encontro de nosso amor peregrino com instâncias
espirituais vivas. Nós sentimos a presença de Jesus Cristo, Maria, dos
Santos, dadas as iluminações da graça, com todo amor, reverência e
devoção. A fé é realmente um substrato ou solo inconfundível, feito
rocha onde podemos assentar convívio com o Altíssimo. E incrível
como nos sentimos amados depois disso. Seja pela claridade e
amorosidade inconfundíveis, seja pela via do fortalecimento da fé
interior, reconhecemos-nos de mãos dadas, caminhantes, com o
Amor de Deus, com todos nós. Sentimento único, alegria vital,
indizível, húmus do coração provado e mesmo, por vezes, ferido.
E o segundo encontro se faz mergulho em busca do outro, amados
amigos, desconhecidos, ambulantes por estes humanos prados.
34 Cada prática com seu diferencial, no entanto.
78
Antes, porém, de chegar a todos de modo mais livre e
desimpedido, o interior povoado me fez vários importantes convites.
Por um bom tempo – não sei se muito ou pouco, mas intenso! –,
conforme comentado em Um Novo Outono, debrucei-me sobre as
figuras arquetípicas pessoais e coletivas, objetivando conteúdos,
anotando sonhos, dançando, desenhando, pesquisando e assim
elaborando o que me sobrevinha nas práticas de imaginações ativas,
supervisionada por uma terapeuta da psicologia analítica. Passado,
futuro, como um organizar das malas e mapas com que cheguei ao
mundo. Diários e diários, dias e horas a fio, secretado um casulo,
com muito esforço e trabalho anímico.
Hoje abro meus armários e eles estão vazios. Frêmito bom de
repouso após o trabalho, incansável labor da alma. Não sei até
quando, nem pretendo saber, colhendo, agora, outros convites,
chamados, particularmente para deixar as cascas. E estas duas
práticas 35, tão bonitas em suas diferentes instâncias, continuam,
uma como alento cotidiano, outra como instrumento de trabalho, a
viabilizar a arte, poesia e profundo diálogo, lançando-me ao mundo.
Neste meio-de-campo, também, não faltaram boas prosas
literárias com mestres da jornada da alma, particularmente São João
da Cruz, sem falar da Vita Christi, Santae Mariae, Flos Sanctorum 36.
Inúmeros foram os insights e correspondências, mesmo de pequenas
palavras ou expressões pescadas espontaneamente nas imaginações,
contemplações ou escrita criativa, com as leituras, fatos históricos e
repertório imagético sacro que me sobrevieram durante o processo
criativo ou posteriormente. As ilustrações de Cláudio Pastro, padre
jesuíta e artista contemporâneo, presentes nesta dissertação, são um
belo exemplo disso: encontrei-as nos últimos meses de redação,
embora habituada, ao vivo, a muitas outras de suas obras.
35 Orações contemplativas e Imaginações Ativas. 36 Vida de Cristo, de Santa Maria e de todos os Santos.
79
Nossa Senhora Aparecida, também, primeira imagem da Santa
Mãe a aparecer na composição poética Stella Maris, guardando a
alma peregrina nas dobras de seu divino manto, após esta ter o
corpo retalhado pelo ataque de ferozes serpentes 37, resgatando-a
também do éter atemporal, descobri, algum tempo depois, teve sua
imagem concreta, milagrosa, a que foi retirada das águas, retalhada
em quase duzentos pequenos pedaços em um terrível atentado,
havendo de ser restaurada por especialista da área, peritos. O
resumo da história da aparição nas águas do rio de sua sagrada
imagem, e todo seu percurso, incluo nos anexos (n° 2), por coadunar
com o que poeticamente escrito e ampliado diante disto. Em 1967, o
Papa Paulo VI ofertou a Nossa Senhora Aparecida uma rosa de ouro,
símbolo de amor e confiança pelas inúmeras bênçãos e graças por ela
concedidas. Assim também, humildemente, Lhe ofereço.
Riqueza miraculosa de inspirações, intuições, intricada com minha
vida corporal, anímica, espiritual. Há muito que contar, de cada
passagem, detalhe, confrontando, salientando. Desde pequenas
pistas, como meus dois irmãos chorando, ambos, sangue ao nascer.
Mas não o vou fazer. Apresento aqui, então, tudo, como um todo,
indiviso, não segmentado, não racionalizado, como modus vivendi
próprio da arte, arte do ser. Circunscrevendo, como nos alenta
Bachelard (2007), uma Unidade de Força Íntima.
Nos apêndices e anexos, contudo, há alguns escritos pessoais,
pequenos artigos e trechos escolhidos de outros autores, por
dialogarem com o vivido, chegando-me anterior 38, simultânea ou
posteriormente ao processo de criação, conforme salientado.
37 Imagens provenientes de uma Imaginação Ativa empreendida em 2006, em ambiente acadêmico. 38 Anexo n°01. Realizei duas performances, em 2004, inspirada nestes trechos selecionados, escritos por Jean Yves-Leloup.
80
“Poned atención: um corazón solitario no es um corazón.”
Antônio Machado
3. Espaço-tempo de comunicatio.
A trágica ferida da perda da unidade, da perceptível unidade com
o Coração de Deus e com o de toda a humanidade, de cada um,
revelada em meus trabalhos pelas extremas saudades, pela questão
do interior / exterior, evidência de grades, e toda costura artística da
trama dos instantes fecundos, em suas reverberações curativas, após
longo período de dormência e boa luta (redenção do olhar, das
imagens concebidas, da própria imaginação, intrincadas de modo
corporal, anímico e espiritual), constituíram cerne vital da pesquisa.
Mas que fazer com um coração que mesmo clama por ter o peito
aberto, transpassado, para viver, até morrer, na potência da junção?
Comunicar o máximo e o minúsculo, a exemplo de Jesus e Maria, até
morrer-viver de amor... E disto tratam os próprios instantes
fecundos, de potência criadora e alegria do indizível: incansáveis
construtores de pontes de vitalidade significativa. De tal sorte que já
não buscamos enfileirar coisas “com significado”, mas sim, coagulá-
los num agora dilatado, dando-lhes ares de uma única substância,
sempre significativa, na dinâmica densidade do devir, e em seu
frescor, na leveza poética da autenticidade, com devera simplicidade
e cumplicidade.
Todos somos construtores. E a duração íntima de cada um de nós,
de cada um dos instantes, é sempre a Sabedoria, como nos diz
Bachelard (2007), que também nos traz o instante fecundo como
uma síntese poderosa entre a totalidade heterogênea da consciência
e a expressão homogênea de um “significado” simbólico.
81
Significado, aqui, como um instante de luz: hora em que se
compreende subitamente a própria mensagem, ou o próprio devir,
num emaranhado de possibilidades, iluminando o coração, a razão e
se tornando o sucesso do pensamento, da compreensão, do
entendimento. Assim como da autêntica comunicação daquilo que
pescamos, fazemos, em nossa dinamicidade, ou somos, na esfera do
indizível, particularmente nas artes, vislumbrando, do espaço-tempo-
consciência da Comunicatio, através da linguagem simbólica, um
passo para a Comunio...
Clarice Lispector 39 coloca-nos:
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor
da linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que
não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a
linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não
acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu
não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A
linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho
que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias.
Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá
ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só
quando falha a construção, é que obtenho o que ela
não conseguiu.
E desta união do indizível com o poeticamente sensível, no limiar
do tão incomunicável que se torna aquilo que somos, bem
tautológico, reconhecido na vera presença, nascem inúmeras
manifestações nas artes. E assim, produção: aglutinado de
39 LISPECTOR, C. A Paixão segundo G. H. 1964.
82
impressões, percepções, imagens, coaguladas as pertinentes, nos
encontros, nas instantâneas e convergentes tessituras, soluções.
Henri Bergson (BACHELARD, 2007), em seu trabalho inicial Ensaio
sobre os dados imediatos da consciência, propôs um bom
caminho de união entre consciência e totalidade: trouxe-nos como
dado imediato o Tempo Psicológico, por ele nomeado de duração
psicológica, sendo o instante a conjunção entre a duração
compactada, ainda não expressa, e a duração distendida – expressa
em palavras, números e símbolos.
Aqui, modestamente, reconheço aspectos que calam nas minhas
produções. Especialmente por certa fixação e maravilhamento diante
das imagens de esculturas sacras. Sempre compartidas, tão repletas,
imóveis e abarrotadas de palavras, de vida, como úteros fecundos
aguardando o tempo oportuno para se lançarem neste tempo
distendido, penetrado por vozes e sinos.
Imobilidade dramática da plenitude, repleta de conexões,
significados, tão absurdamente fecunda. Fecundo, fecundo. Este
sentimento, muito advindo da contemplação, transbordou ampla e
amorosamente neste realização em vídeo, evidenciado pelos
silêncios, lentos movimentos, tentativa de penetrar e revelar o
abscondido do material, sutil entrelaçamento das fibras de algodão,
ou mesmo imaterial – matéria do coração.
E ainda, com cada pessoa trazendo um universo de possibilidades
consigo: impossível não precipitarmos no desconhecido, com alguma
pauta e direção, sentido, ressurgindo, entre as flores do Paraíso.
Durante a edição também (realizada pessoalmente), o tempo sempre
se faz atual, novo, outro, e tudo se refaz, permanecendo o indizível,
contínuo feito fibra, fiel, porém, aos instantes.
Oh, mas como estou caminhando, aprendendo, o sucesso do
advento nestas pequenas gerações, produções, ora espreita pela
83
janela, ora passa rápido pela porta, deixando no ar, saudoso, suas
impressões. E continuamos.
Bachelard (2007) nos fala que um amor profundo sempre acaba
coordenando todas as possibilidades do ser - e dos seres - num ideal
de harmonia temporal. O tempo em cinema e vídeo é uma palavra-
chave, de peso, força. Tal como continuidade e voluntariedade
própria do inefável devir. Então, bem falamos em harmonia – ética,
estética - singular. Desejo singular do encontro, e no próprio, de
súbito: plural.
E aqui, também para mim:
Toda força do tempo se condensa no instante inovador em
que a vista se descerra, junto à Fonte de Siloé, ao toque de
um divino redentor, que nos dá, num mesmo gesto, a
alegria e a razão, e o meio de ser eterno por via da verdade
e da bondade.
Gaston Bachelard 40
As artes, conduzindo-nos ao pronto diálogo, em sua substância
instantânea, sempre curam a fadiga da alma e remoçam as
percepções gastas. Valorizam a polissemia natural, poética da
linguagem, exigindo mais em sua apreensão e, especialmente, em
sua concepção. Convidam-nos ao vôo, ao mergulho, devolvendo o
frescor das jornadas enamoradas. Aliadas à Imaginação Ativa, abrem
também portas e portas para um passo posterior, amadurecimento e,
segundo Erna Von de Winckel (1985), ultrapassagem do simbólico
para adentrar o ilimitado espaço do sagrado. Aliadas à contemplatio,
seguem direto às Fontes da Alegria, ao contato direto e pessoal com
Deus, fazendo ecoar no tempo a Sua Voz.
40 BACHELARD, G. A Intuição do Instante. Campinas, SP: Verus, 2007. Pg. 93.
84
Com Roupnel, podemos ainda reconhecer:
A arte é a escuta dessa voz interior. Ela traz o murmúrio
enterrado. É a voz da consciência sobrenatural que habita
em nós no fundo inalienável e perpétuo. Ela nos reconduz
ao sítio primordial do Ser e ao Lugar imenso no qual
estamos no Universo inteiro. Nossa parcela miserável
assume aí seu grau universal e nos entrega a autoridade
que ela detém. Triunfando sobre todos os temas
descontínuos que separam o Ser e compõem o Indivíduo, a
Arte é o Senso de Harmonia que nos restitui ao doce ritmo
do Mundo e nos devolve ao Infinito que nos chama. Então,
tudo em nós se faz partícipe do ritmo absoluto em que se
desenvolve o fenômeno completo do mundo. Assim, em
nosso âmago, tudo se ordena nas supremas direções, tudo
se aclara sob as clarividências íntimas. (...) Um amor
veemente, uma simpatia universal nos busca o coração e
quer ligar-nos à alma que freme em todas as coisas. Um
Universo que assume sua beleza é um Universo que assume
seu sentido; e as imagens desusadas que lhe
emprestaríamos tombam da face absoluta que emerge do
mistério.
Gaston Roupnel 41
Belíssimo, belíssimo! Não se pode fugir para sempre da
experiência do infinito que habita em nós, até que esta se torne uma
verdadeira busca, sendo justo satisfeita na indelével e apaixonada
comunhão com um infinito real...
41 ROUPNEL, G. Siloë. Pg. 198. Apud BACHELARD, G. A Intuição do Instante. Campinas, SP: Verus, 2007. Pg.96.
85
Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e
abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele
comigo.
Ap. 3, 20
Felizes os ouvidos da alma bem atenta, bem recolhida para
ouvir esta voz do Verbo de Deus. Felizes também os olhos
desta alma que, sob a luz da fé viva e profunda, pode
assistir à chegada do Mestre em seu santuário interior. Mas
qual é esta chegada? “É uma geração incessante, uma
ilustração sem defeito.” O Cristo vem com seus tesouros;
mas tal é o mistério da rapidez divina, que ele chega
continuamente, sempre pela primeira vez como se jamais
tivesse vindo, porque sua chegada, independentemente do
tempo, consiste num eterno “agora”. E um eterno desejo
renova eternamente as alegrias da chegada. As delícias que
ele traz são infinitas, pois elas são Ele próprio. A capacidade
da alma, dilatada pela chegada do Mestre, parece sair de si
mesma para ultrapassar os muros e chegar à imensidão
daquele que chega. E então acontece o seguinte fenômeno:
É Deus quem, no íntimo de nós, recebe Deus vindo a nós. E
Deus contempla Deus! Deus no qual consiste a beatitude.
Beata Elisabete da Trindade 42
42 PHILIPON, M. M. Doutrina Espiritual de Elisabete da Trindade. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1988. Pg. 270.
86
“O tempo já não corre, ele jorra.”
Gaston Bachelard
4. Espaço-tempo de Comunio.
Ó Abbá, Pai Eterno, se incandesce, dilata e estremece assim o
coração de uma pobre alma, como esta pequena poeira, que dirá dos
grandes santos e santas?
Sobre Maria, em Seu Amor, Sóror Maria de Ágreda, em Cidade
Mística de Deus, relata:
Encontro-me em extrema pobreza de conceitos e
expressões, para dizer algo do estado a que chegou o amor
de Maria Santíssima nos últimos dias de sua vida; os
ímpetos e vôos de seu puríssimo espírito, os desejos e
ânsias incomparáveis de chegar ao estreito abraço da
divindade. Não encontro semelhança apropriada em toda a
natureza. Se alguma pode servir para minha intenção, é o
elemento fogo, pela analogia que tem com o amor.
Admirável é a atividade e força desse elemento, superior as
dos outros. Nenhum é mais intolerante para suportar
prisões porque, ou morre nelas, ou as despedaça para voar
com sua rapidez à sua própria esfera. Se estiver
encarcerado nas entranhas da terra, rompe-a, desmorona
os montes, arranca os penhascos e, com violência
impetuosa, os carrega diante de si, até onde chegar o
impulso que sua força lhe imprime. Ainda que o cárcere seja
de bronze, se não o quebra, abre suas portas com
espantosa violência.43
43 ÁGREDA. M. Cidade Mística de Deus. 2. ed. Ponta Grossa, Mosteiro Portaceli, 2000.
87
Ó Mãe Santíssima, que dirá, então, a força sublime deste
Incomensurável Amor de Paz que justo se faz prisioneiro, por nosso
amor, nos eventos mais simples e pequenos? Desde o Menino Deus
nascendo em manjedoura?
Deus é inapreensível em Sua Infinita Sabedoria. Sempiterna
Doçura. E eu só posso acreditar, viver enraizada, em um Deus que se
deixa encontrar no simples cotidiano, Amando tanto que se dá por
inteiro,
...oferecendo de Suas Próprias Entranhas.
E Maria Santíssima é modelo Perfeito de Amorosa Reciprocidade.
Ensina-nos a amá-Lo. A conviver com Ele, em ardorosos e jubilosos
incêndios, em sua humilde humanidade, de modo incomparável.
Ensina-nos a ter um ímpeto de Amor que rompe os “cárceres de
bronze”...
Aqui, lembro-me de uma poesia pessoal escrita no início do
mestrado, chamada Olhos-Estrelas, ou cálices de bronze. Desta, e
de uma narrativa poética intitulada Illud tempus, que constituem os
dois apêndices (n° 1 e 2) desta dissertação. Ambas ressoam, agora,
em meus ouvidos.
Cálices de bronze 44. Redenção do olhar, mesmo pela via do
amargo, captando o régio esplendor do sagrado! Mãos, também,
redimidas, em seu fazer artístico, porque opera-escultoras. E o
imobilizado corpo, sendo liberado em circunspeta dança: manancial
de águas vivas brotando do chão, do coração da matéria, em oração,
44 Ler, por gentileza, a poesia Olhos-Estrelas no Apêndice! J
88
suaves movimentos, cantantes, unindo o céu e a terra, no despertar
tranqüilo das poeiras, germinar das sementes aladas...
em infinitas e insones cascatas...
Cascatas que caem do céu, jorrando do imo Coração de Deus...
unido ao nosso imo e humanitário coração...
Vôo-mergulho, mergulho-fonte, fonte de vida, palavra-forte. Mãos
dadas, todos os corações unidos, moto perpetuo, abismo da graça,
imo tempo...
Lembrando, ainda esta vez, o que disse a serpente à Eva, no
Gênesis, antes de saírem da Presença: “Seus olhos se abrirão e serão
como deuses” 45. Oh, noite e cegueira abençoada! que nos devolvem
a verdadeira estatura de filhos amados, inebriados no húmus santo
do coração original.
Fechados os olhos da utopia, ou Utopos, para vivermos na Domus
Dei, ou Teostopos: do impossível idealizado, irreal, ao infinitamente
fecundo, palpável, simples e belíssimo. Intenso respirar da realização,
humanamente próximo, verdadeiramente divino,
melífluo caminho compartido.
O germe, em tudo e todos, é benção divina, substância atual,
tempo e espaço atualizados. Bornal repleto, vazio de pretensões.
45 Gn 3, 5b
89
Então, peregrinos da jornada da alma: doces instantes sejam bem
coagulados, entretecidos e animados no leite e mel da Eterna
Sabedoria, na substância própria da divina vida, incorruptível no
tempo e espaço: no Amor.
Faço aqui meus votos.
Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que
se veja que este extraordinário poder é de Deus e não
nosso. Em tudo somos atribulados, mas não esmagados;
confundidos, mas não desesperados; perseguidos, mas não
abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Trazemos
sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também
a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo. Estando
ainda vivos, estamos continuamente expostos à morte por
causa de Jesus, para que a vida de Jesus seja manifesta
também na nossa carne mortal. Assim, em nós opera a
morte, e em nós, a vida. Animados do mesmo espírito de fé,
conforme o que está escrito: “Acreditei e por isso falei,
também nós acreditamos e por isso falamos”. 46
“Et sit splendor Domini Dei nostri super nos,
et opera manuum nostrarum dirige super nos,
et opera manuum nostrarum dirige! 47”
Sl 90,17
46 2 Co. 4, 7-15. 47 Faze estar sobre nós, Senhor Nosso Deus, a Tua Doçura, a obra de nossas mãos sobre nós confirmai, a obra de nossas mãos confirmai!
90
Poema de Amor
Festina Lente
“As delícias que Ele traz são infinitas, pois elas são Ele Próprio”.
Santa Elisabete da Trindade
FESTINA LENTE
FESTINA LENTE
91
Ilustração 24. Still modificado do vídeo produzido Ignis caritatis.
Ilustração 25. Still de minha próxima produção em vídeo Ignis Caritatis.
92
TERNURA. ABISMO DA GRAÇA. MOTO PERPETUO. IMO
TEMPO.
<< Ele mudou os espinhos e o triste aspecto do cardo em
Ternura. Fez-me conhecer claramente as profundezas
alegres, as inumeráveis riquezas incrustadas nas abissais
veias douradas dos mares inconscientes, aos primos raios
da Luz matinal... Fez-me mover as entranhas corporais e
imagéticas ao simples Som da sua harpa, em indizível júbilo
atemporal. Fez-me parir maravilhas em Ação de Graças e,
simplesmente, me desfez...
Renasci do Seu Eterno Íntimo. >>
*****************
<<Auditu auris audiui Te, nunc autem oculus meus videt Te 48... >>
48 Tu foste bem ouvido, agora, também meus olhos Te vêem.
93
“O Reino é como a semente de mostarda que um homem pega e joga no seu
jardim. A semente cresce, torna-se árvore, e as aves do céu fazem
ninhos nos ramos dela.”
Lu 13, 19-19
REFERÊNCIAS 49
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Mosteiro Portaceli, 2000.
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49 Baseadas na norma NBR 6023, de 2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
94
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2003.
· TARKOVSKI, A. Esculpir o Tempo. 2. ed. São Paulo: Martins
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97
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· ZIMMERMANN, Elisabeth Bauch. Integração de Processos
Interiores no Desenvolvimento da Personalidade.
Dissertação (Mestrado em Saúde Mental) - Faculdade de Medicina,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992.
98
GLOSSÁRIO LATINO
Deus Ignis Consumens – Deus pelo fogo consome.
Domus – Casa
Domus Dei – Casa de Deus.
Ecclesia – Igreja
Festina Lente – Apressa-te lentamente.
Ignis Caritatis – Fogo do amor, da misericórdia.
Illud Tempus – Tempos Imemoriais.
Laus Gloriae – Louvor de Glória.
Modus Operandi – Modo de Operar, Proceder.
Modus Vivendi – Modo de vida.
Moto Perpetuo – Movimento Perpétuo.
Natura fulgens – Natureza fulgurante, ou “A natureza iluminada
desde dentro”.
Oculi Cordis – Olhos do Coração.
Praesentis Tempus – Tempo Presente.
Pulchra ut Luna – Bela como a Lua.
Stella Cordis Creatoris – Estrela do Coração de Deus.
Stella Maris – Estrela do Mar.
99
APÊNDICES
100
Apêndice 01. Illud Tempus
Dormitava, serena, nas cristas suaves das águas salinas,
translúcidas de sol, relâmpagos de um marinho profundo –
insondável de mundo –, mas mornas, mornas, de desapego,
ondulantes e castas de improviso – como se todo movimento
houvesse em sua ordem cósmica fundamental, natural, dilatado
instante atemporal. Células redondas bailando carinhosamente no
espaço a circundar, matrizes incorporando algas, peixinhos e
aspirantes estrelas do mar. Circuitos paradisíacos de luz, músculos
claros, lisos, estriados, sincícios extensos, brandos conjuntivos,
brincantes osteócitos, e neurônios irradiados a se alongar, girar,
trepidar... Enfim, caiu. Penetrante azul que em sua deslumbrante
tintura visionária a absorveu, envolveu, acolheu, revelando os
infinitos espaços miraculosamente imaginados das netúnias pradarias
– repletas da animosidade da fauna e da flora vicejante de cor
sulfural – naqueles largos espaços, suntuosamente vazios –
imensidão apenas escultora das crostas longínquas das regiões
abissais. Fronteiras movediças no vasto-vertical horizonte a se
desvelar. Um e outro organismo ali, apenas, navegador, desbravador,
orientados pela interna luz. E os sempre cálidos e oceânicos convites
das grutas, da lúcida dormência e da boa luta, ecoando os cânticos
sinceros dos gigantes e fabulosos cetáceos – baleias aladas em seus
mansos e harmoniosos nados - no cerne labiríntico da intensa
matéria escura.
Adentrou, curiosa, enternecida. Caminhando reverentemente pelas
trilhas de um negrume santamente cego, tateando com a carne do
próprio coração, centro pulsante inebriado de amor pela vida,
semblante agora circunspeto de quem afasta as sombras da humana
101
história, gemas antigas que já germinaram com falsas raízes suas
quimeras, dores e entregues glórias - algumas sepultadas, outras
ávidas. Saturada de imagens, prolixas reverberações, densas
prisões... Mãos e mãos segurando-a firmemente. Lutas febris,
descompassos, destratos, obsoletas ilusões. Caminhos e
descaminhos, constantes e alternadas visões.
“Olhos abertos
Frio cortando lábios
Alma que voa.”(1)
Cabelos negros,
Sol vermelho poente,
Coração fiel.
Olhos cerrados, imo fiel. Mais adentro, terra adentro, calor
fenomenal. Avançando sempre, mesmo desfazendo-se. Sistemas
arborescentes, ditos grandes saberes, pensamentos, enegrecendo,
carbonificando. Terras e terras, em brancas cinzas, ganhando sua cor
humilde e natural. Sacrificatio; quase somente solutio, quase - sê
mente! - sublimatio (2). Porque do negrume quente da taça ávida de
Sol, entornou - bebeu - o áureo líquido da Luz. Coração-fonte de
Misericórdia infinita, tão visível e abscondita, insones cascatas
límpidas brotando veementemente do terrestre chão, um despertar
de amor cantante. Move-a, agora, apenas um sopro suave, Único
vento.
102
Ó Santo Espírito Criador, consciente de uma fagulha de Seu Amor,
a vida é um Supremo e Inigualável Sempiterno Advento...
(1) Haicai feito por uma amiga, Luciana Bonadia, em 1999, para mim. Seguido no
texto por um de autoria própria, da mesma época.
(2) Mortificatio, Solutio e Sublimatio: termos que nomeiam processos da alquimia
medieval, utilizados pela psicologia analítica para designar fases do processo de
amadurecimento psicológico. A mortificatio (no texto designada por Sacrificatio)
simboliza a própria morte, a morte simbólica do ego, os sacrifícios conscientes
necessários ao processo de individuação. A solutio é a operação que provoca o
desaparecimento doloroso de uma forma para o reaparecimento de algo novo, uma
outra forma regenerada. A sublimatio é a operação que pertence ao ar,
transformando o material em questão por meio da sua elevação e volatilização.
Outras operações poderiam ter sido nomeadas no texto, como a calcinatio (atuação
do fogo purificador) ou coagulatio, a materialização das formas dissolvidas, mas
foram suprimidas pela força da expressão poética.
103
Apêndice 02. Olhos-estrelas, poesia de autoria própria.
Estrelas castanhas de bronze,
cálices de sagrado e fluente amargor,
rutilam, visionárias, na prata liquefeita,
fecunda paisagem de régio esplendor.
Palmas alvas, escultoras e estacadas,
Aberto a esmo o coração – bendito seja,
Amor Profundo, sábio fogo do céu: clarão!...
Dançam frêmitos, suaves e circunspectos,
Nesta terrena sequidão – são sementes, aladas,
Cascatas insones germinando na escuridão.
104
ANEXOS
105
Anexo 01. Trechos de O Romance de Maria Madalena, Jean-Yves
Leloup (2004).
“Maria tinha levado seus olhos a essas aberturas fecundas, onde não se
trata de não ver nada, mas de ver todas as coisas na luz Una do Vidente.”
“Mas, para olhar para outros lugares, ainda é necessário que haja em nós
um órgão capaz de perceber. O Evangelho de Maria nos revela que tal olhar
existe – o olhar de um psiquismo aberto à Presença do Espírito.”
“Cada órgão responde a um canto, a um som...”
“Maria buscava um equilíbrio impossível entre todos os contrários. Um
excesso de estudo exigia um excesso de dança. Tempos de recolhimento,
silêncio e jejuns alternavam-se aos tempos de festas e divertimentos...”
“Maria tocava em si uma fonte estranha, não aquela de lágrimas de dor ou
de amargura, mas a fonte das lágrimas de compaixão. Seus olhos estavam
como que inundados de pérolas de luz e ela se sentia mãe pela primeira
vez. Mas seu filho, seu único filho, era o mundo inteiro. Ela gostaria de
confortá-lo, aquecê-lo contra seus seios, dar-lhe leite, cobri-lo de ternura,
livrá-lo de toda maldade e de todo o mal.”
“Ela só tem suas lágrimas para defendê-los e o amor desse homem que
fala, que arrisca sua vida, para fazer ouvir o ruído da fonte que corre no
coração de cada um.”
“Existe uma intimidade mais profunda que a do Mestre e a do discípulo? Os
amantes se tornam um único corpo, o Mestre e o discípulo se tornam um
único coração, um mesmo Espírito...”
106
““Não há amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos”...
Desde o primeiro instante, Maria havia dado a sua vida, toda a sua vida a
Jesus.”
“Amava-o como um arco-íris, com todas as suas nuanças, com todas as
cores do amor. Amava-o apaixonadamente, sem reservas, sem condições,
com esse amor forte como a morte...”
“Ele mesmo se apagou na marca que não cessa de cavar, cada vez mais
fundo em mim.”
“Os olhos de Maria não estão nem cegos nem extasiados: eles vêem o que
vêem, as fronteiras abertas do visível e invisível.”
“Eu saí do mundo graças a um outro mundo;
uma representação se apagou
graças a uma representação mais elevada.
De agora em diante eu vou para o repouso
Onde o tempo repousa na Eternidade do tempo.
Eu vou para o Silêncio.”
Evangelho de Maria 17, 1-6
“Suas giestas já estavam esverdeadas e douradas, era suficiente uma
centelha para que ela se tornasse chama.”
107
Anexo 02. História de Nossa Senhora Aparecida in Jornal Visão Campinas,
05/10/2006.
No dia 12 de Outubro comemora-se o dia de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, padroeira oficial do Brasil, e embora Sua
devoção remonte aos idos do século XVIII, somente foi decretado em
1980.
Há duas fontes sobre o achado da imagem, que se encontram no
arquivo da Cúria Metropolitana de Aparecida e no Arquivo Romano da
Companhia de Jesus, em Roma. Segundo estas fontes, em 1717, os
pescadores Domingos Martins García, João Alves e Felipe Pedroso
pescavam no Rio Paraíba, denominado, na época, de Rio Itaguaçu.
Ou melhor, tentavam pescar, pois toda vez que jogavam a rede, ela
voltava vazia, até que lhes trouxe a imagem de uma santa, sem a
cabeça. Jogando a rede uma vez mais, um pouco abaixo do ponto
onde haviam pescado a Santa, pescaram, desta vez, a cabeça que
faltava à imagem e as redes, até então vazias, passaram a voltar ao
barco repleta de peixes. Esse é considerado o primeiro milagre da
Santa. Eles limparam a imagem apanhada no rio e notaram que se
tratava da Imagem de Nossa Senhora da Conceição, de cor escura.
Durante os próximos 15 anos, a imagem permaneceu com a família
de Felipe Pedroso, um dos pescadores, e passou a ser alvo das
orações de toda a comunidade. A devoção cresceu à medida que a
fama dos milagres realizados pela santa se espalhava. A família
construiu um oratório, que, logo, constatou-se, era pequeno para
abrigar os fiéis que chegavam a número cada vez maior. Em meados
de 1734, o vigário de Guaratinguetá mandou construir uma capela no
alto do Morro dos Coqueiros para abrigar a imagem da Santa e
receber seus fiéis. A imagem passou a ser chamada de Aparecida e
deu origem à cidade de mesmo nome.
108
Em 1834, iniciou-se a construção da igreja que hoje é conhecida
como Basílica Velha. Em 06 de Novembro de 1888, a princesa Isabel
visitou pela segunda vez a Basílica e deixou para Nossa Senhora uma
coroa de ouro cravejada de diamantes e rubis, juntamente com o
Manto Azul. Em 08 de Setembro de 1904, foi realizada a solene
coroação da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e, em
1930, o Papa Pio XI decreta-a padroeira do Brasil, declaração esta
reafirmada em 1931, pelo presidente Getúlio Vargas.
A construção da atual Basílica iniciou-se em 1946, com projeto
assinado pelo Engenheiro Benedito Calixto de Jesus. A inauguração
acontece em 1967, por ocasião da comemoração do 250º aniversário
do encontro milagroso da imagem, ainda com o templo inacabado. O
Papa Paulo VI ofertou à Santa uma rosa de ouro, símbolo de amor e
confiança pelas inúmeras bênçãos e graças por ela concedidas. A
partir de 1950 já se pensava na construção de um novo templo
mariano devido ao crescente número de romarias. O majestoso
templo foi consagrado pelo Papa, após mais de vinte e cinco anos de
construção, no dia 4 de Julho de 1980, na primeira visita de João
Paulo II ao Brasil.
A data comemorativa a Nossa Senhora Aparecida (aniversário do
aparecimento da imagem no Rio) foi fixada na Santa Sé em 1954,
como sendo 12 de Outubro, embora as informações sejam
controversas. É nesta época do ano que a Basílica registra a presença
de uma multidão incontável de fiéis, embora eles marquem presença
notável durante todo o ano.
A imagem encontrada e até hoje reverenciada é de terracota e
mede 40 cm de altura. A cor original foi certamente afetada pelo
tempo em que a imagem esteve imersa na água do rio, bem como
pela fumaça das velas e dos candeeiros que durante tantos anos
foram os símbolos da devoção dos fiéis à Santa. Em 1978, após o
atentado que a reduziu a quase 200 pedaços, ela foi reconstituída
109
pela artista plástica Maria Helena Chartuni, na época, restauradora do
Museu de Arte de São Paulo. Peritos afirmam que foi moldada com
argila da região, pelo monge beneditino Frei Agostinho de Jesus,
embora esta autoria seja de difícil comprovação.
Seja qual for a autoria da imagem ou a história de sua origem, a
esta altura ela pouco importa, pois as graças alcançadas por seu
intermédio têm trazido esperança e alento a um sem número de
pessoas. Para saber mais sobre a Basílica e sua programação, basta
visitar o site www.santuarionacional.com.br.
Além da farta pescaria, muitos outros milagres são atribuídos a
Nossa Senhora Aparecida. Como por exemplo a libertação do escravo
Zacarias, o caso do cavaleiro ateu e a cura da menina cega,
explicitados abaixo.
A libertação do escravo Zacarias: este escravo havia fugido de
uma fazenda do Paraná e acabou sendo capturado no Vale do
Paraíba. Foi caçado e capturado por um famoso capitão do mato e, ao
ser levado de volta, preso por correntes nos pulsos e nos pés, e como
passassem perto da Capela da Santa, pediu permissão para rezar
diante da imagem. Rezou com tanta devoção que as correntes
milagrosamente se romperam, deixando-o livre. Diante do ocorrido,
seu senhor acabou por libertá-lo.
O cavaleiro ateu: era um cavaleiro que passava por Aparecida,
vendo a fé dos romeiros, zombou deles e tentou entrar na Igreja a
cavalo para destruir a imagem da Santa. Na tentativa, as patas do
cavalo ficaram presas na escadaria da Igreja, onde até hoje se pode
ver a marca de uma ferradura, mas já transportada para a sala dos
milagres da Basílica Nova.
A cura da menina cega: esta menina, ao aproximar-se da Basílica,
olhou em direção a ela e, de repente, exclamou “Mãe, como aquela
Igreja é bonita”. Estava enxergando, perfeitamente curada.
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Anexo 03. Cántico Espiritual, de San Juan de La Cruz (1542-1591). In JEHLE, F. Antología de poesía española. Disponível em
<http://users.ipfw.edu/jehle/poesia.htm>.
Cántico espiritual
Canciones entre el alma y el esposo
Esposa: ¿Adónde te escondiste, amado, y me dejaste con gemido? Como el ciervo huiste, habiéndome herido; salí tras ti, clamando, y eras ido. 5 Pastores, los que fuerdes allá, por las majadas, al otero, si por ventura vierdes aquél que yo más quiero, decidle que adolezco, peno y muero. 10 Buscando mis amores, iré por esos montes y riberas; ni cogeré las flores, ni temeré las fieras, y pasaré los fuertes y fronteras. 15 (Pregunta a las Criaturas) ¡Oh bosques y espesuras, plantadas por la mano del amado! ¡Oh prado de verduras, de flores esmaltado, decid si por vosotros ha pasado! 20 (Respuesta de las Criaturas) Mil gracias derramando, pasó por estos sotos con presura, y yéndolos mirando, con sola su figura
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vestidos los dejó de hermosura. 25 Esposa: ¡Ay, quién podrá sanarme! Acaba de entregarte ya de vero; no quieras enviarme de hoy más ya mensajero, que no saben decirme lo que quiero. 30 Y todos cantos vagan, de ti me van mil gracias refiriendo. Y todos más me llagan, y déjame muriendo un no sé qué que quedan balbuciendo. 35 Mas ¿cómo perseveras, oh vida, no viviendo donde vives, y haciendo, porque mueras, las flechas que recibes, de lo que del amado en ti concibes? 40 ¿Por qué, pues has llagado aqueste corazón, no le sanaste? Y pues me le has robado, ¿por qué así le dejaste, y no tomas el robo que robaste? 45 Apaga mis enojos, pues que ninguno basta a deshacellos, y véante mis ojos, pues eres lumbre dellos, y sólo para ti quiero tenellos. 50 ¡Oh cristalina fuente, si en esos tus semblantes plateados, formases de repente los ojos deseados, que tengo en mis entrañas dibujados! 55 ¡Apártalos, amado, que voy de vuelo! Esposo:
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Vuélvete, paloma, que el ciervo vulnerado por el otero asoma, al aire de tu vuelo, y fresco toma. 60 Esposa: ¡Mi amado, las montañas, los valles solitarios nemorosos, las ínsulas extrañas, los ríos sonorosos, el silbo de los aires amorosos; 65 la noche sosegada, en par de los levantes de la aurora, la música callada, la soledad sonora, la cena que recrea y enamora; 70 nuestro lecho florido, de cuevas de leones enlazado, en púrpura tendido, de paz edificado, de mil escudos de oro coronado! 75 A zaga de tu huella, las jóvenes discurran al camino; al toque de centella, al adobado vino, emisiones de bálsamo divino. 80 En la interior bodega de mi amado bebí, y cuando salía, por toda aquesta vega, ya cosa no sabía y el ganado perdí que antes seguía. 85 Allí me dio su pecho, allí me enseñó ciencia muy sabrosa, y yo le di de hecho a mí, sin dejar cosa; allí le prometí de ser su esposa. 90 Mi alma se ha empleado, y todo mi caudal, en su servicio;
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ya no guardo ganado, ni ya tengo otro oficio, que ya sólo en amar es mi ejercicio. 95 Pues ya si en el ejido de hoy más no fuere vista ni hallada, diréis que me he perdido; que andando enamorada, me hice perdidiza, y fui ganada. 100 De flores y esmeraldas, en las frescas mañanas escogidas, haremos las guirnaldas en tu amor florecidas, y en un cabello mío entretejidas: 105 en sólo aquel cabello que en mi cuello volar consideraste; mirástele en mi cuello, y en él preso quedaste, y en uno de mis ojos te llagaste. 110 Cuando tú me mirabas, tu gracia en mí tus ojos imprimían; por eso me adamabas, y en eso merecían los míos adorar lo que en ti vían. 115 No quieras despreciarme, que si color moreno en mí hallaste, ya bien puedes mirarme, después que me miraste, que gracia y hermosura en mí dejaste. 120 Cogednos las raposas, que está ya florecida nuestra viña, en tanto que de rosas hacemos una piña, y no parezca nadie en la montiña. 125 Deténte, cierzo muerto; ven, austro, que recuerdas los amores, aspira por mi huerto, y corran sus olores, y pacerá el amado entre las flores. 130
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Esposo: Entrado se ha la esposa en el ameno huerto deseado, y a su sabor reposa, el cuello reclinado sobres los dulces brazos del amado. 135 Debajo del manzano, allí conmigo fuiste desposada, allí te di al mano, y fuiste reparada donde tu madre fuera violada. 140 O vos, aves ligeras, leones, ciervos, gamos saltadores, montes, valles, riberas, aguas, aires, ardores y miedos de las noches veladores, 145 por las amenas liras y canto de serenas os conjuro que cesen vuestras iras y no toquéis al muro, porque la esposa duerma más seguro. 150 Esposa: Oh ninfas de Judea, en tanto que en las flores y rosales el ámbar perfumea, morá en los arrabales, y no queráis tocar nuestros umbrales. 155 Escóndete, carillo, y mira con tu haz a las montañas, y no quieras decillo; mas mira las compañas de la que va por ínsulas extrañas. 160 Esposo: La blanca palomica al arca con el ramo se ha tornado, y ya la tortolica al socio deseado
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en las riberas verdes ha hallado. 165 En soledad vivía, y en soledad he puesto ya su nido, y en soledad la guía a solas su querido, también en soledad de amor herido. 170 Esposa: Gocémonos, amado, y vámonos a ver en tu hermosura al monte o al collado do mana el agua pura; entremos más adentro en la espesura. 175 Y luego a las subidas cavernas de la piedra nos iremos, que están bien escondidas, y allí nos entraremos, y el mosto de granadas gustaremos. 180 Allí me mostrarías aquello que mi alma pretendía, y luego me darías allí tú, vida mía, aquello que me diste el otro día: 185 el aspirar del aire, el canto de la dulce filomena, el soto y su donaire, en la noche serena con llama que consume y no da pena; 190 que nadie lo miraba, Aminadab tampoco parecía, y el cerco sosegaba, y la caballería a vista de las aguas descendía. 195
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Anexo 04. Stanzas 20 and 21 of Carmelite Commentary of St. John
of the Cross’ Spiritual Canticle. In <http://www.karmel.at/ics/john/cn.html>.
STANZAS 20 and 21
Introduction
1. The attainment of so high a state of perfection as that for which the soul here aims, which is spiritual marriage, requires the purification of all the imperfections, rebellions, and imperfect habits of the lower part, which, by being stripped of the old self [Eph. 4:22-23], is surrendered and made subject to the higher part; but a singular fortitude and a very sublime love are also needed for so strong and intimate an embrace from God. For in this state the soul obtains not only a very lofty purity and beauty but also an amazing strength because of the powerful and intimate bond effected between God and her by means of this union.
2. In order that she reach him, it is necessary for her to attain an adequate degree of purity, fortitude, and love. The Holy Spirit, he who intervenes to effect this spiritual union, desiring that the soul attain the possession of these qualities in order to merit this union, speaks to the Father and the Son in the Song of Songs: What shall we do for our sister on the day of her courtship, for she is little and has no breasts? If she is a wall, let us build upon it silver bulwarks and defenses; and if she is a door, let us reinforce it with cedar wood [Sg. 8:8-9]. The silver bulwarks and defenses refer to the strong and heroic virtues covered with faith, which is signified by the silver. These heroic virtues are those of spiritual marriage, and their
Ilustração 26. Ícone das Estâncias 20 e 21, Cântico Espiritual de São João da Cruz.
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foundation is in the strong soul, referred to by the wall. The peaceful Bridegroom rests in the strength of these virtues without any weakness disturbing him. The cedar wood applies to the affections and properties of lofty love. This lofty love is signified by cedar and it is the love proper to spiritual marriage. The bride must first be a door in order to receive the reinforcement of cedar wood; that is, she must hold the door of her will open to the Bridegroom so he may enter through the complete and true "yes" of love. This is the yes of betrothal that is given before the spiritual marriage. The breasts of the bride also refer to this perfect love that she should possess in order to appear before the Bridegroom, Christ, for the consummation of this state.
3. The text, however, mentions that the bride answered immediately by stating her desire to be courted: I am a wall and my breasts are as a tower [Sg. 8:10]. This means: My soul is strong and my love lofty, and so I should not be held back. Desiring this perfect union and transformation, the bride also manifested this strength in the preceding stanzas, especially in the one just explained, in which to oblige her bridegroom further she sets before him the virtues and preparative riches received from him. As a result the Bridegroom, desiring to conclude this matter, speaks the two following stanzas in which he finishes purifying the soul, strengthening and disposing her in both sensory and spiritual parts for this state. He speaks these lines against all the oppositions and rebellions from the sensory part and the devil.
In the Canticle, the Bridegroom says:
Swift-winged birds,
lions, stags, and leaping roes,
mountains, lowlands, and river banks,
waters, winds, and ardors,
watching fears of night:
By the pleasant lyres
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and the siren's song, I conjure you
to cease your anger
and not touch the wall,
that the bride may sleep in deeper peace.
Commentary
4. In these two stanzas the Bridegroom, the Son of God, gives the bride-soul possession of peace and tranquility by conforming the lower part to the higher, cleansing it of all its imperfections, bringing under rational control the natural faculties and motives, and quieting all the other appetites mentioned in these two stanzas. The meaning of these stanzas is:
First, the Bridegroom conjures and commands the useless wanderings of the phantasy and imaginative power to cease once and for all.
He also puts under the control of reason the two natural powers, the irascible and the concupiscible, which were previously somewhat of an affliction to the soul.1
And, insofar as is possible in this life, he perfects the three faculties (memory, intellect, and will) in regard to their objects.
What is more, he conjures and commands the four passions (joy, hope, fear, and sorrow) so from now on they will be mitigated and controlled by reason.
Such is the meaning of the terms used in the first of these stanzas. The Bridegroom makes these disturbing activities and movements cease by means of the immense delight and sweetness and strength received in the spiritual communication and surrender he makes of himself at this time. Because God vitally transforms the soul into himself, all these faculties, appetites, and movements lose their natural imperfection and are changed to divine. And thus he says:
Swift-winged birds,
5. He calls the wanderings of the imagination "swift-winged birds," for these digressions are quick and restless in flying from one place to
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another. When the will is enjoying the delightful communication of the Beloved in quietude, these wanderings usually displease her by their restless flights and put an end to her satisfaction. The Bridegroom says that he conjures them by the pleasant lyres, and so on (by sweetness and delight so abundant and frequent that they cannot be the impediment they were before she reached so high a state), to cease their restless flights, impulses, and excesses. This should be understood similarly regarding the other verses we will comment on here, such as:
lions, stags, and leaping roes,
6. By the "lions" he refers to the acrimony and impetuosity of the irascible power, for in its acts this power is bold and daring like the lion.
By the "stags" and the "leaping roes" he refers to that other power, the concupiscible, which is an appetitive power. This faculty causes two classes of effects: one of cowardice and the other of daring. It produces the effects of cowardice when things are found difficult, for it then retires, withdraws within itself, and becomes cowardly. Because of these effects this faculty is comparable to stags, for since the stag has a more intense concupiscible power than many other animals, it is very cowardly and withdrawn. This faculty produces the effects of daring when things are found easy, for then it does not withdraw and become cowardly but makes bold to accept these things with its appetites and affections. And because of these effects this faculty is compared to the roes, which have such concupiscence that they do not merely run after their desires but even leap after them. And thus he calls them leaping roes.
7. In conjuring the lions he bridles the impulses and excesses of anger. And in conjuring the stags he strengthens the concupiscible power against the cowardice and pusillanimity that previously made it withdrawn. And in conjuring the leaping roes he satisfies the appetites, previously restless and leaping like roes from one thing to another, trying to satisfy concupiscence. This concupiscence is now satisfied by the pleasant lyres whose sweetness it enjoys, and by the siren's song, the delight of which it feeds on.
It should be observed that the Bridegroom does not conjure anger and concupiscence to cease, for these powers are never wanting to the soul. But he conjures their disturbances and inordinate actions, signified by the lions, stags, and leaping roes, to cease. It is necessary that in this state these inordinate movements be lacking.
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mountains, lowlands, and river banks,
8. These expressions denote the vicious and inordinate acts of the three faculties, memory, intellect, and will. These acts are inordinate and vicious when they reach either a high level or a low level, or even when they are inclined toward one of them without actually reaching it.
Thus the "mountains," which are high, refer to acts that are extreme through an inordinate excess. The "lowlands," being low, refer to acts that are extreme through defect. The "river banks," which are neither high nor low but still not level, participate somewhat in both extremes and refer to the acts that exceed or lack something of the mean or right measure. Although these are not extremely inordinate, as would be the case with mortal sin, they are nonetheless partly so, either through venial sin or through imperfection, however slight, in the intellect, memory, and will.
He also conjures, by means of the pleasant lyres and the siren's song, all these acts in excess of the just measure to cease. These lyres perfect the three faculties of the soul by bringing them to an operation that lies in the just measure, without extremes or even any part in extremes. The remaining verses follow:
waters, winds, and ardors,
watching fears of night:
9. These four references indicate the four passions: sorrow, hope, joy, and fear.2 The "waters" denote the emotions of sorrow that afflict the soul, for they enter like water. David, referring to them, says to God: Salvum me fac, Deus, quoniam intraverunt aquae usque ad animam meam (Save me, my God, for the waters have come in even unto my soul) [Ps. 69:1].
The "winds" allude to the emotions of hope, for like the wind they fly toward the absent object. David also says: Os meum aperui et attraxi spiritum, quia mandata tua desiderabam (I opened the mouth of my hope and drew in the breath of my desires because I longed and hoped for your commandments) [Ps. 119: 131].
The "ardors" refer to the emotions of the passion of joy that inflame the heart like fire. David says: Concaluit cor meum intra me, et in meditatione mea exardescet ignis (My heart grew hot within me, and in my meditation a fire shall be enkindled) [Ps. 39:3]. This is like saying: In my meditation joy shall be enkindled.
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By the "watching fears of night" are understood the emotions of fear, the other passion. These fears are usually very great in spiritual persons who have not reached this state of spiritual marriage of which we are speaking. Sometimes when God wishes to grant them some favors, he causes fear and trembling in the spirit and also shriveling of the flesh and the senses, because the sensory part is not fortified, perfected, and habituated to such favors. Sometimes, too, the devil, being envious and sad over the soul's peace and good when God grants it recollection and sweetness in himself, strives to put horror and fear in the spirit so as to hinder that good. And sometimes he does this as though he were threatening her there in the spirit. When he becomes aware of his inability to reach the inmost part of the soul because of her deep recollection and union with God, he tries to cause distraction, wanderings, conflicts, sorrows, and dread, at least in the sensory part, to see if in this way he can disturb the bride in her bridal chamber.
He calls these emotions "fears of night" because they are produced by the devil, who endeavors by their means to diffuse obscurity in the soul and darken the divine light she enjoys.
He calls them "watching fears" because of themselves they awaken her from her peaceful interior sleep, and also because the devils are always awake and watching for their chance to cause these fears. These fears, as I said, are passively introduced by God or the devil into the souls of those who are already spiritual. I am not speaking here of other temporal or natural fears, for such fears are not characteristic of spiritual people; but these spiritual fears are.
10. The Beloved also conjures these four passions of the soul and makes them cease and be calm insofar as he gives the bride in this state riches, strength, and satisfaction through the pleasant lyres of his sweetness and the siren's song of his delight. He does this so they may not only cease to reign in her but also cease to cause her any displeasure.
If previously the waters of sorrow over something reached the soul - especially concerning her own sins or those of others, since sin is what usually causes the most sorrow in spiritual persons - her grandeur and stability are now so great that even though she knows what these sins are, they do not produce sorrow or grief. And she does not have compassion, that is, the feeling of compassion, even though she possesses its work and perfection. In this state the soul lacks what involved weakness in her practice of the virtues, though the strength, constancy, and perfection of them remains. For the soul in this transformation of love resembles the angels who judge
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perfectly the things that give sorrow without the feeling of sorrow, and exercise the works of mercy without the feeling of compassion. Sometimes, however, and at certain periods, God allows her to feel things and suffer from them so she might gain more merit and grow in the fervor of love, or for other reasons, as he did with the Virgin Mother, St. Paul, and others. Yet in itself the state does not include this feeling of sorrow.3
11. Neither is she afflicted with the desires of hope. Being now satisfied in this union with God insofar as is possible in this life, she has neither anything to hope for from the world nor anything to desire spiritually, for she has the awareness and experience of the fullness of God's riches. In life and in death she is conformed to the will of God, saying in both the sensory and spiritual part without the impulse of any other longing or appetite: Fiat voluntas tua [Mt. 6:10]. Thus her desire for the vision of God is painless.
Neither do the emotions of joy, which usually caused her a feeling of possessing more or less, make her aware of any want; nor do they add a sense of new abundance. What she ordinarily enjoys is so great that, like the sea, she neither decreases by the outflow of waters nor increases by the inflow. For this is the soul in which is established the fount whose waters, as Christ says through St. John, leap up unto life everlasting [Jn. 4:14].
12. Because I asserted that this soul does not receive anything new in this state of transformation, in which it seems that accidental joys are taken from her (which are not lacking even in the glorified), it should be pointed out that even though these joys and accidental sweetnesses are not lacking - ordinarily they are numberless - they do not on this account add anything to the substantial spiritual communication. She already possesses everything that could come to her anew. Thus what she possesses within herself is more than what comes to her anew.
Hence, every time joyous and happy things are offered to this soul, whether they are exterior or interior and spiritual, she immediately turns to the enjoyment of the riches she already has within herself, and experiences much greater gladness and delight in them than in those new joys. She in some way resembles God who, even though he has delight in all things, does not delight in them as much as he does in himself, for he possesses within himself a good eminently above all others. Thus all new joys and satisfactions serve more to awaken the soul to a delight in what she already possesses and experiences within herself than to new delights, for, as I say, what she already possesses is greater than these.
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13. If something gives the soul joy and contentment but she esteems another even more, it would be natural for her, on enjoying the former, to turn her thoughts at once to the latter and find her satisfaction and joy in that. Thus what is accidental in these new spiritual joys is so little in comparison with the substantial good the bride already has within herself that we can call it a nothing. The soul that has attained this fulfillment, which is transformation, in which she has reached full stature, does not grow through these new spiritual things as do others who have not arrived. Yet it is a wonderful thing to behold how, although the soul receives no new delights, it always seems to her that she receives them anew and also that she has had them before. The reason is that she ever takes pleasure in them anew, since they are her good that is ever new. Thus it seems to her that she is always receiving new things without need.
14. Yet were we to desire to speak of the glorious illumination he sometimes gives to the soul in this habitual embrace, which is a certain spiritual turning toward her in which he bestows the vision and enjoyment of this whole abyss of riches and delight he has placed within her, our words would fail to explain anything about it. As the sun shining brightly on the sea lights up great depths and caverns and reveals pearls and rich veins of gold and other minerals, and so on, the Bridegroom, the divine sun, in turning to the bride so reveals her riches that even the angels marvel and utter those words of the Song of Songs: Who is she that comes forth like the morning rising, beautiful as the moon, resplendent as the sun, terrible as the armies set in array? [Sg. 6:10]. In spite of the excellence of this illumination, it gives no increase to the soul; it only brings to light what was previously possessed so she may have enjoyment of it.
15. Finally, the "watching fears of night" do not reach her, for she is now so clearly illumined and strong and rests so firmly in her God that the devils can neither cause her obscurity through their darknesses, nor frighten her with their terrors, nor awaken her by their attacks. Nothing can reach or molest her now that she has withdrawn from all things and entered into her God where she enjoys all peace, tastes all sweetness, and delights in all delights insofar as this earthly state allows. The Wise Man's words refer to this soul: The peaceful and tranquil soul is like a continual banquet [Prv. 15:15]. As one at a banquet enjoys the taste of a variety of foods and the sweetness of many melodies, the soul at this banquet, which she now receives at the bosom of her Beloved, enjoys every delight and tastes every sweetness.
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So little of this is describable that we would never succeed in fully explaining what takes place in the soul that has reached this happy state. If she attains the peace of God that, as the Church says, surpasses all understanding,4 all understanding will be inadequate and mute when it comes to explaining this peace.
Verses from the stanza follow:
By the pleasant lyres
and the siren's song, I conjure you
16. We have already explained that by "the pleasant lyres" the Bridegroom refers here to the sweetness bestowed on the soul in this state. By it he causes all the disturbances we mentioned to cease. As the music of the lyres fills the soul with sweetness and refreshment and so absorbs and suspends her as to keep her away from bitterness and sorrow, so this sweetness takes such an inward hold on her that nothing painful can reach her. These words are like saying: May all bitter things cease for the soul by means of the sweetness I place in her.
We also said that the "siren's song" signifies the soul's habitual delight. He calls this delight the "siren's song" because, as they say, this song is so charming that it enraptures and enamors its hearers and makes them forget all things as though they were in a transport. Similarly, the delight of this union absorbs the soul within herself and gives her such refreshment that it makes her insensible to the disturbances and troubles mentioned. These disturbances are referred to in this verse:
to cease your anger
17. He calls these troubles and disturbances of the inordinate passions and operations "anger." Just as anger is a certain impulse that troubles peace by going beyond its limits, so all the passions and so on that we mentioned exceed by their movements the limits of peace and tranquility, and when they touch the soul they cause disquietude. As a result he says:
and not touch the wall,
18. By "the wall" he refers to the enclosure of peace and the fence of virtues and perfections by which the soul is shut in and protected, for she is the garden mentioned above that is enclosed and protected solely for the Beloved, among whose flowers he browses. In the Song
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of Songs he calls her an enclosed garden: My sister is an enclosed garden [Sg. 4:12]. Thus he tells them here not to touch even the wall of his garden
that the bride may sleep in deeper peace.
19. That she may delight more freely in the quietude and sweetness she enjoys in her Beloved. It should be known that now no door is closed to the soul, but it is in her power to enjoy this gentle sleep of love at will, as the Bridegroom indicates in the Song of Songs: I conjure you, daughters of Jerusalem, by the roes and harts of the fields that you do not stir up or wake the beloved until she wishes [Sg. 3:5].
Ilustração 27. Ícone da Estância 22, Cântico Espiritual de São João da Cruz.
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“The bride has entered
the sweet garden of her desire,
and she rests in delight,
laying her neck
on the gentle arms of her Beloved.”