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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
ELAINE SIMÕES ROMUAL REBECA
CINEMA NA SALA DE AULA:proposições para uma exploração estética de filmes por professores
Itajaí (SC) 2011
1
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação, Extensão e Cultura – ProPPEC
Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGECurso de Mestrado Acadêmico
ELAINE SIMÕES ROMUAL REBECA
CINEMA NA SALA DE AULA: proposições para uma exploração estética de filmes por professores
Dissertação apresentada ao colegiado do PPGE como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação – área de concentração: Educação – (Linha de Pesquisa – Cultura, Tecnologia e Aprendizagem).
Orientadora:
Prof.ª Dr.a Adair de Aguiar Neitzel
Itajaí (SC) 2011
.
Ficha Catalográfica
R241c Rebeca , Elaine Simões Romual , 1970
Cinema na sala de aula: proposições para uma exploração estética de
filmes por professores. [manuscrito] / Elaine Simões Romual Rebeca. – 2011.
107 f. ; il. ; 30 cm.
Bibliografia: f. 98 100.
Incluí: Apêndice
Dissertação apresentada ao colegiado do PPGE como requisito
parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação – área de concentração:
Educação – (Linha de Pesquisa – Cultura, Tecnologia e Aprendizagem). .
“Orientadora: Profª. Drª. Adair de Aguiar Neitzel ”.
1. Cinemaeducação. 2. Cinemaestética. 3. Educaçãoestética. I.
Universidade do Vale do Itajaí. II. Título.
CDU 37:791.43
Eugenia Berlim 14/963
3
Dedico aos meus pais pelo apoio distante, mas sempre presente, e ao meu marido e filhos pela compreensão e
apoio a minha dedicação aos estudos e muitos momentos de ausência.
4
AGRADECIMENTOS
A Jeová, meu Deus, por me orientar nos caminhos em que devo andar.
Aos meus pais, pelo apoio em todas as horas.
Ao meu marido, pelo apoio e compreensão.
Aos meus filhos, pelos momentos em que estive ausente.
A todos os amigos, pelos incentivos e apoio.
A todos os professores, que fizeram parte desta trajetória.
Ao grupo de pesquisa, por todos os momentos de vivências estéticas.
Aos professores da Escola Estadual Básica Deputado Nilton Kucker, pela participação na pesquisa.
À minha orientadora Adair, pelo apoio e por todo o conhecimento e ideias partilhadas.
À professora Solange, por conduzir-me nos primeiros passos desta pesquisa.
Ao professor Rogério e a professora Regina, por todas as dicas e participação na banca de qualificação.
A todos que trabalham no mestrado pelo carinho e atenção.
Muito obrigada!
5
Aqueles que passam por nós, não vão a sós, não nos deixam a sós... deixam um pouco de si e levam um pouco de nós. Antoine de Saint-Exupéry (BUCHSBAUM, 2004, p. 175).
6
A ARTE DE VER
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria! Aconteceu, entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Entretanto, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora tudo o que vejo me causa espanto...” Ela se calou esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui até a estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ... rosa de água com escamas de cristal...”. “Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver.”
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física ótica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física. William Blake sabia disso é afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei isso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos sinto-me como Moisés, diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa, porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
A Adélia Prado diz: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. O Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso é afirmou que a primeira tarefa da educação era ensinar a ver. O Zen Budismo concorda e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no Zen Budismo, mas o fato é que escreveu “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram...”.
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus Ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão “os seus olhos se abriram”. Vinícius de Moraes adota o mesmo mote no “Operário em Construção”: “De forma que, certo dia, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão – era ele quem fazia, ele um humilde operário, um operário em construção”.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na Caixa de Ferramentas eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e
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ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas quando os olhos estão na Caixa dos Brinquedos eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na Caixa de Ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na Caixa dos Brinquedos são os olhos das crianças. Para ter olhos brincalhões é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas...”.
Por isso, porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar para os assombros que crescem nos desvão da banalidade cotidiana. Como o Jesus Menino do poema do Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos...”.
Rubem Alves (200-).
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RESUMO
Esta pesquisa está centrada na discussão do estatuto do cinema como arte e nas suas propriedades estéticas. Tem como objetivo identificar um conjunto de critérios para uso estético de filmes no contexto escolar, contribuindo para uma compreensão mais ampla do cinema. Para atingir esse objetivo, analisou-se a concepção de cinema dos professores da Escola Estadual Deputado Nilton Kucker, uma escola pública de Itajaí (SC, BR), identificando quais os procedimentos empregados no uso de filmes na escola, e se suas práticas estão em consonância com essa concepção. Por meio da aplicação de um questionário, teve-se um corpus de filmes empregados pelos professores, dos quais três foram escolhidos para, por meio de sua análise, atingir os objetivos traçados. A abordagem teórica metodológica empregada é a qualitativa. Usou-se a técnica de questionário e sua análise, que forneceram elementos importantes para definir os critérios para análise de filmes. Esta pesquisa apoia-se nos estudos de Vàzquez (1999), Peixoto (2003), Teixeira e Lopes (2008) e Setton (2004). Os resultados alcançados permitem indicar seis critérios estéticos básicos para análise das obras de cinema, no caso os filmes: Billy Elliot, O Pequeno Príncipe e O Auto da Compadecida. Estes critérios são: a) texto plurissignificativo: orienta a observar os vários elementos justapostos e articulados do filme que irão induzir o leitor a várias significações; b) relações intertextuais: o jogo das relações intertextuais presentes no filme provoca o leitor a estabelecer conexões com muitos outros textos; c) lugar de diálogo e confronto de ideias: os elementos presentes no filme podem provocar e desestruturar ideias; d) pesquisa e processos criativos: a arte como criação possibilita a produção de algo novo que se relaciona com a realidade social em que o sujeito está inserido; e) presença de elementos artísticos e estilísticos: por meio da pesquisa, há a introdução no filme de elementos que qualificam o filme como arte; f) princípio da reversibilidade: leva o leitor a uma digressão que o impulsionará a construir e reconstruir o enredo. Esta é uma pesquisa desenvolvida no Grupo de Pesquisa Cultura, Escola e Educação Criadora, da linha Cultura, Tecnologia e Processos de Aprendizagem do Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Itajaí.
Palavras-chave: Cinema. Estética. Educação.
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ABSTRACT
This research is focused on the discussion of cinema as art and in its aesthetics properties. Its objective is to identify a set of the criteria for aesthetic use of films in the school context so as to contribute to a broader comprehension of the cinema. To achieve this objective, the teachers‟ conception of cinema of the State School Deputy Nilton Kucker, a public school in Itajaí (SC, Brazil), was analyzed, with the intent to identify the procedures employed in the use of films in the classroom, and if the teachers‟ practices are consistent to their conceptions. Through the application of a questionnaire, a corpus of movies used by the teachers was built, being three of them chosen to, through its analysis, achieve the objective of this research. The theoretical approach is the qualitative methodology. This study uses the technique of questionnaire and content analysis, which provided important elements to define the criteria for film analysis. This research takes as a reference the contributions of Vàzquez (1999), Peixoto (2003), Teixeira and Lopes (2008) and Setton (2004). The results obtained, through the analysis of the films Billy Elliot, The Little Prince and O Auto da Compadecida, allow to indicate six basic aesthetic criteria to analyze the works of cinema: a) plural meanings of a text: guide to observe the various juxtaposed and articulated elements of the film that will induce the reader to several meanings; b) intertextual relationships: the set of the intertextual relationships presented in a film provoke the reader to make connections with many other texts; c) place for dialogue and confrontation of ideas: the elements of a film may provoke and disrupt ideas; d) research and creative processing: art as creation enables the production of something new related to the social reality in which the individual is inserted; e) presence of artistic and stylistic elements: through this research, there is the introduction in the film of elements that qualify it as art; f) reversibility principal: it takes the reader to a digression that will impulse the reader to build or rebuild the plot. This study is developed in the Research Group Culture, School, and Creative Education of the line of research Culture, Technology and Learning Processes of the Master‟s Degree in Education of UNIVALI.
Key Words: Cinema. Aesthetics. Education.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Estrutura da pesquisa 23
Figura 2: Desenvolvimento cultural da criança 25
Figura 3: Percepção singular, sensível e imediata 27
Figura 4: Percepção como experiência psíquica complexa 28
Figura 5: A percepção como ato individual e social 29
Figura 6: Percepção 30
Figura 7: Relação Teórico-Cognoscitiva 31
Figura 8: Arte como forma de conhecimento do homem 32
Figura 9: Arte como criação 33
Figura 10: Filmes divididos em categorias 59
Figura 11: Critérios estéticos de análise de filme 60
Figura 12: Símbolos 76
Figura 13: Visita aos planetas 81
Figura 14: Metáforas em O Auto da Compadecida 86
11
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Uso de filmes pelos professores entrevistados 40
Gráfico 2: Objetivos do uso de filmes 41
Gráfico 3: Objetivo principal do uso de filmes em sala de aula 42
Gráfico 4: O filme como sensibilização estética 43
Gráfico 5: Critérios de seleção do filme para os alunos 45
Gráfico 6: Atividades promovidas com os alunos após assistir ao filme 46
Gráfico 7: Frequência com que o professor utiliza filmes 48
Gráfico 8: Formas de utilização do filme 49
Gráfico 9: Uso de filme pelos professores entrevistados 51
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Billy Elliot 66
Imagem 2: Billy e o boxe 68
Imagem 3: O conflito: boxe e balé 68
Imagem 4: Billy e a dança 68
Imagem 5: Billy e o balé 68
Imagem 6: Varetas e armaduras: o muro dos homens 70
Imagem 7: Símbolo da liberdade 70
Imagem 8: Símbolo da infância 71
Imagem 9: O Pequeno Príncipe 72
Imagem 10: Planeta do menino 78
Imagem 11: Planeta do Rei 79
Imagem 12: Planeta do Homem de Negócios 79
Imagem 13: Planeta do Historiador 80
Imagem 14: Planeta do General 80
Imagem 15: O Auto da Compadecida 83
Imagem 16: A religiosidade em O Auto da Compadecida 88
Imagem 17: O Bem e o Mal 89
Imagem 18: Diversidade: mistura de culturas 89
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 14
2 METODOLOGIA DA PESQUISA 19
2.1 ABORDAGEM TEÓRICO METODOLÓGICA 19
2.2 OS SUJEITOS 20
2.3 PROCEDIMENTOS 22
3 O PROCESSO DE INTERNALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO DA 24 CULTURA
4 O FILME COMO OBJETO ESTÉTICO EM SALA DE AULA - 35 ENCONTRO DO LEITOR/ESPECTADOR COM A OBRA
4.1 ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DOS PROFESSORES 39
5 O FILME COMO OBJETO ESTÉTICO: EM BUSCA DE ALGUNS 58 CRITÉRIOS ESTÉTICOS
5.1 CRITÉRIOS ESTÉTICOS 59
6 EXPLORAÇÃO ESTÉTICA DOS FILMES SELECIONADOS 65
6.1 BILLY ELLIOT: REMINISCÊNCIAS, SONS E IMAGENS 65
6.2 O PEQUENO PRÍNCIPE: ENCONTRO DO PRESENTE COM O 72 PASSADO OU SERIA DO PRESENTE COM O FUTURO?
6.3 O AUTO DA COMPADECIDA: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA 83
6.4 O PAPEL DO PROFESSOR 92
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 94
REFERÊNCIAS 98
APÊNDICES 101
14
1 INTRODUÇÃO
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.
Mário Quintana (200-).
A arte do cinema! Arte do cinema? Muitos podem questionar, pois encarar
uma diversão como arte não é o consenso de muitos. A arte sensibiliza seus
leitores. Leitores? Sim, leitores. Uma arte precisa ser lida, sentida, analisada e por
mais indiferente que um indivíduo seja, ele se sensibilizará. Mas de que forma?
Uma música, por exemplo, pode interferir nas emoções, pode restaurar velhos
sentimentos, despertar outros, valorizar conhecimentos e muitos outros sentimentos
que não podemos descrever em algumas linhas. O que pode despertar nossos
sentidos? Pode ser a composição, ou a sua letra, ou o som, ou o toque de alguns
instrumentos, ou, até mesmo, a época em que canção fazia sucesso, ou o fato de
ela ter marcado, de alguma forma, o leitor ouvinte.
Imagine o que pode fazer a leitura de um livro, a leitura de obras de artes
(pinturas, esculturas, etc.), ou de um filme. O que une tudo isso? A função estética,
ou seja, a concepção de que a arte não tem um fim prático, utilitário, mas existe para
promover a contemplação que sensibiliza, emociona e modifica a percepção do leitor
acerca do contexto em que está inserido.
A arte possibilita que o indivíduo coloque-se em outra situação no real, pode
recriar a vida, permitindo adentrar no campo do imaginário. No cotidiano, depara-se
com a arte do cinema, um envolvente conjunto de imagens, movimentos, diálogos,
cores, elementos que sensibilizam e fazem emergir sentimentos que podem
provocar o repensar de conceitos ou aflorar novos. No entanto, encarar o cinema
como arte na escola é o grande desafio, por isso discuti-lo como arte é algo
necessário nesse território.
Em minha trajetória como professora, pude observar a utilização de filmes na
escola tanto como passatempo, como estratégia de ensino. Compreendê-lo como
objeto estético não foi tão fácil, pois sempre ao tentar compreendê-lo assim, voltava
a utilizá-lo como um recurso para discutir determinado tema, isto é, o filme sempre
era uma estratégia pedagógica, sempre um meio e não um fim. Minha preocupação
estava voltada para o enredo e para a temática. Muitos profissionais da educação
15
utilizam o filme como estratégia de ensino, como se pode observar na obra de
Setton (2005). O enredo de muitos filmes, seja fictício ou baseado em histórias da
vida real, tem sido utilizado para que conteúdos sejam compreendidos e
apreendidos. Após o contato do estudante com o filme, ele recebe roteiros de
estudo, sínteses, análises críticas, etc. Mas o filme como arte, com enfoque
sensibilizador, onde fica na escola? Foi no percurso dessa compreensão,
questionando a minha própria prática em sala de aula, que cheguei ao tema desta
pesquisa que se tornou um desafio para mim: entender a função estética do filme.
Com este intuito, produzi um instrumento para ser utilizado na coleta de
dados - um questionário com o objetivo de analisar a concepção de cinema dos
professores de uma escola pública de Itajaí, identificando quais os procedimentos
empregados no uso de filmes na escola e se suas práticas estão em consonância
com esta concepção. Esse instrumento, o questionário, veio auxiliar a identificar um
conjunto de critérios que contribuem para a compreensão estética do cinema no
contexto escolar.
Por meio da análise desse questionário pude não só compreender como os
professores utilizam o filme, como também perceber que a arte do cinema não tem
apenas uma utilidade prática, sua função é também sensibilizar seus leitores.
Ao participar da disciplina Tópicos Especiais em Desenvolvimento e
Aprendizagem, durante o curso de mestrado acadêmico, a teoria da carnavalização
de Bakhtin foi estudada, e, por meio dela, passei a entender que uma obra artística
ao ser idealizada possui categorias estéticas que vão elevar (ou não) seu estatuto
como arte. Nesse estudo, comecei a desvincular o uso do filme como estratégia de
ensino e apreciá-lo como arte, uma arte que sensibiliza, assim como a leitura de um
livro ou o som de uma melodia ou uma peça de teatro. Percebi, assim, que o filme
exige um olhar estético. Há muito a se observar nele além de seu enredo e de sua
temática. Há elementos como a aproximação da câmera de determinado objeto,
colocando-o em primeiro plano, ou ainda recursos de sonoplastia que são
fundamentais para a produção dos sentidos. O filme é uma arte que dialoga com
várias outras. A escolha por determinados recursos cinematográficos permite a
produção de vários sentimentos como: alegria, paz, ternura, amargura,
estranhamento, etc., que se harmonizam ou se mantém em posição para criar um
conflito no leitor interferindo em seu crescimento social, emocional e cognitivo.
16
Pude compreender, através desse estudo, especificamente com a obra de
Mikhail Bakhtin intitulada Problemas da Poética de Dostoievski (1981), que quanto
mais uma obra explora determinados recursos estéticos, mais se mantém aberta à
interferência do leitor. Essa abertura interfere na recepção da obra como na sua
qualidade estética, pois ao ser apreciada - se colocarmos em parênteses sua função
ideológica, e focarmos, sobretudo, na sua função criadora -, encaminhará o receptor
a uma compreensão pelas vias da percepção, o sensível e o inteligível sendo
acionados de forma concomitante. Peixoto (2003) aponta que a arte tem três
funções: como ideologia, como forma de conhecimento e como criação, funções
estas que irei comentar no decorrer desta pesquisa.
Centro minha discussão, portanto, no estatuto do cinema como arte,
comentando suas propriedades estéticas. Busco apresentar a importância de a
escola lidar com o cinema não apenas como estratégia de ensino, mas,
principalmente, como um objeto que auxilia na formação estética dos alunos. Por
isso, investigo quais os critérios que contribuem para a compreensão estética do
cinema no contexto escolar. Não podemos negar o seu uso pedagógico na escola,
mas também não podemos deixar de evidenciar sua função estética. Quando um
crítico analisa um filme, observa os diversos elementos que auxiliam na sua
estilização. Esses elementos são determinantes para abertura da obra, para sua
construção como arte.
Essa temática é pertinente para a Educação, porque lidar com o cinema é
lidar com a arte, a cultura e com a linguagem. Partimos do pressuposto de que a
arte no contexto escolar possibilita ao estudante relacionar-se melhor consigo
mesmo, com o outro e com o mundo, colaborando para o processo de humanização
do homem. Dessa forma, o cinema extrapola o conceito de projeção e ampliação de
um conjunto de imagens e sons em movimento, de registro cultural reproduzido ou
recriado em uma época, pois ele pode, também, sensibilizar o estudante e colaborar
para que ele ressignifique e reestruture seu meio.
Sabemos que desde o nascimento até a fase adulta o sujeito já faz parte de
um contexto social. Após o nascimento, esse sujeito é inserido no mundo social ao
qual pertence, que tem suas particularidades e significados. Nesse contexto, o
sujeito desenvolve-se, aprende a estar na sociedade, a partir de seu pequeno
contexto familiar. O contato com as artes produz marcas e ao adquirir as funções
culturais que o caracterizarão, o sujeito poderá provocar mudanças no ambiente
17
social que está inserido, seja este familiar ou escolar. Esse sujeito desenvolve-se
por meio do seu contexto cultural e não há como desvincular seu desenvolvimento
de seu percurso histórico cultural (PINO, 2005).
É na mediação do Outro que o sujeito constitui-se, reflete sobre si mesmo,
atribuindo outras significações aos seus conhecimentos, podendo intervir na
realidade em que está inserido. Ao se apropriar das significações culturais,
apresenta marcas culturais que no relacionamento com o outro internaliza, vai
adquirindo a forma humana (PINO, 2005). Ao lidar com a cultura e com a arte
estamos falando do desenvolvimento do sujeito e de seu processo de internalização.
Quando este sujeito está em um ambiente escolar, essas marcas podem ou
não ser dominantes, depende de quão intensas elas estão sendo lidadas,
interferindo, assim, na apreensão ou aquisição do conhecimento. Dessa forma,
quando um professor apresentar uma obra fílmica, sua compreensão irá variar de
acordo com essa base de formação que ele tem, responsável pelo desencadear de
suas percepções.
A percepção comum é um ato singular dos seres humanos, envolve os
sentidos pela relação direta com o objeto. No caso de filmes, envolve-se com tudo
que há por trás do “Luz, Câmera, Ação”, ou seja, imagens, movimento, sons,
palavras, roteiro, um conjunto de elementos que são combinados para aguçar nossa
sensibilidade, que ocasiona uma experiência única que se entrelaça com nossas
compreensões anteriores, resultando em novas que podem fazer a diferença na
sociedade a qual o sujeito está inserido, seja esta escolar ou não.
Compreender como se dá esse processo pode levar a perceber a importância
da arte na escola como elemento formativo e humanizador. Trabalhar com o filme
como arte, respeitando suas categorias estéticas, não é nada fácil, exige tanto do
aluno quanto do professor compreender como se manifesta o estético nos filmes,
além de exigir de ambos a apreciação do filme como obra de arte. Um filme pode
ensinar muito além dos conteúdos explícitos e implícitos, pois “mexe” com a
sensibilidade. Esse processo pode ser ignorado quando se leva um filme para a sala
de aula, explorando-o apenas como estratégia de ensino. A compreensão do filme
como objeto estético não se opõe ao seu uso didático, mas amplia suas
possibilidades de uso e fruição.
Com base nessas aprendizagens, o propósito deste estudo é identificar um
conjunto de critérios para uso estético de filmes no contexto escolar contribuindo
18
para uma compreensão mais ampla do cinema. O problema de pesquisa é: quais os
critérios que contribuem para a compreensão estética do cinema no contexto
escolar?
Para responder a essa questão, e com as leituras feitas, este estudo tem
como objetivos:
discutir o uso do filme como objeto estético em sala de aula;
identificar a concepção de cinema dos professores de uma escola
pública de Itajaí;
mapear os procedimentos utilizados no uso de filmes em sala de aula e
analisar três filmes indicados pelos professores, identificando seus
elementos estéticos.
19
2 METODOLOGIA DA PESQUISA
Esta dissertação é resultado de uma pesquisa na área de Educação a qual
apresenta uma análise quantitativa e qualitativa de dados coletados na Escola de
Educação Básica Deputado Nilton Kucker, localizada na cidade de Itajaí, Santa
Catarina.
2.1 ABORDAGEM TEÓRICO METODOLÓGICA
Esta pesquisa caracteriza-se pela abordagem quantitativa e qualitativa
usando a técnica de questionário que auxiliou a pesquisa. A pesquisa qualitativa
considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, ou seja, um
vínculo indissociável que nem sempre pode ser traduzido em números. Ela não
requer o uso de métodos e técnicas estatísticas. O material observado é fonte direta
para a coleta de dados e para as análises do pesquisador.
Não há análise quantitativa sem interpretação, visto que esta interpretação é
o que auxilia a compreender as concepções até então encontradas nas conversas
com os autores pesquisados. Bauer e Gaskell argumentam,
Pensamos que é incorreto assumir que a pesquisa qualitativa possui o monopólio da interpretação, com o pressuposto paralelo de que a pesquisa quantitativa chega as suas conclusões quase que automaticamente. Nós mesmos nunca realizamos nenhuma pesquisa numérica sem enfrentar o problema da interpretação. Os dados não falam por si mesmos, mesmo que sejam processados cuidadosamente, com modelos estatísticos sofisticados. (BAUER; GASKELL, 2004, p. 24).
Justifica-se, assim, o fato de ser uma pesquisa quanti/quali, pois há dados
fornecidos pelos questionários que foram interpretados de acordo com o diálogo
feito com os autores pesquisados.
Para Menezes e Silva (2003), o estudo qualitativo é a descrição e a análise
de uma simples entidade, fenômeno ou unidade social, de forma intensiva e
holística, sendo uma rica fonte de dados descritivos, que se salienta por ter um foco
particular sobre um evento, programa ou situação específica.
A escolha pelo uso de questionário deu-se devido à grade de horários dos
professores na escola, pois muitos não trabalham somente nessa instituição, sendo
20
assim não seria possível estar com todos reunidos em alguns momentos
específicos, como também não seria possível entrevistas individuais pelo pouco
tempo disponível da maioria. O questionário foi o procedimento viável que permitiu
colher os dados necessários para auxiliar na pesquisa.
Em posse dos dados fornecidos pelos questionários, iniciou-se a
interpretação, realizada com base na técnica de análise de conteúdos a qual,
segundo Marconi e Lakatos,
[...] permite analisar o conteúdo de livros, revistas, jornais, discursos, películas cinematográficas, propaganda de rádio e televisão, slogans. Ela também pode ser aplicada a documentos pessoais como discursos, diários, textos etc. É uma técnica que visa aos produtos da ação humana, estando voltada para o estudo das idéias e não das palavras em si. (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 129).
Após a interpretação dos dados fornecidos pelo questionário, utilizando a
base teórica até então pesquisada, elaborou-se critérios estéticos para analise de
filmes, visto que uma das questões era a sugestão de um filme que o professor já
havia utilizado em sala.
Esses critérios foram elaborados pela autora de acordo com as pesquisas
teóricas feitas. Com os critérios já elaborados, foi feito a escolha aleatória de três
filmes dos trinta e dois que foram sugeridos pelos professores e analisados pela
autora.
Os filmes escolhidos foram: Billy Eliot (2000), O Pequeno Príncipe (1974) e O
auto da Compadecida (2000).
No geral, esta pesquisa apoia-se nos estudos de Vàzquez (1999), Peixoto
(2003), Teixeira e Lopes (2008) e Setton (2004) para fundamentação teórica, dentre
outros autores.
2.2 OS SUJEITOS
Os professores que deram a devolutiva dos questionários são, em sua
maioria, efetivos da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, lotados na Escola
de Educação Básica Deputado Nilton Kucker, oriundos de regiões diferentes do
estado de Santa Catarina e, também, de outros estados como Paraná, Rio Grande
do Sul, Mato Grosso e São Paulo. A formação superior desses professores varia:
21
Língua Portuguesa, Pedagogia, Matemática, Biologia, Filosofia, História, Geografia e
Educação Física, todos, sem exceção, possuem pós-graduação, sendo alguns já
mestres e um doutor na área da educação. A escolha dessa escola deu-se devido a
ser o ambiente onde a autora estava trabalhando e vivenciando a realidade daquela
vida escolar.
A Escola de Educação Básica Deputado Nilton Kucker (EEBDNK) foi criada
pela Lei nº 3.743, de 15/12/1965, e instalada em fevereiro de 1966, com o nome de
Colégio Normal Nilton Kucker. Funcionou por alguns anos nas dependências do
Grupo Escolar Victor Meirelles, no centro da cidade de Itajaí, com o objetivo de
atender às necessidades de uma escola pública de II Grau para formar professores
normalistas e atender à demanda de formação de profissionais, devidamente
habilitados para o Ensino Primário daquela época.
Em 1969, durante o Governo do Sr. Ivo Silveira, o Colégio Normal Nilton
Kucker recebeu seu prédio próprio, no bairro Vila Operária, onde tem funcionado
desde 1970. Atualmente, mantém o ensino fundamental, o ensino médio, e ensino
profissionalizante com o curso de Magistério para habilitação em Anos Iniciais e
Educação Infantil.
A Escola atende a várias comunidades do município de Itajaí. Apresenta uma
matrícula em torno de 1900 alunos (as), oriundo dos diversos bairros do município,
em maior quantidade vindos do Bairro São Vicente. Os que moram em bairros mais
distantes contam com transporte coletivo gratuito por meio de convênio firmado
entre governo estadual e municipal. Os demais se deslocam até a escola utilizando
transporte público ou particular. A escola recebe, também, alunos do município de
Navegantes.
A maioria das famílias atendidas pela EEBDNK é de nível sócio-econômico
baixo a médio-baixo, com escolaridade de Ensino Fundamental. Uma grande parte
dos alunos de Ensino Médio são trabalhadores e contribuem para a renda familiar. O
quadro de profissionais da escola é formado por professores graduados em sua área
de atuação, sendo cinquenta e quatro (54) professores efetivos e os demais são
Admitidos em Caráter Temporário (ACT).
A EEBDNK possui uma estrutura organizacional formada por direção,
assessores de direção, apoio técnico administrativo e pedagógico, corpo docente e
discente, Conselho Deliberativo, Associação de Pais e Professores e Grêmio
22
Estudantil. Os dados desta pesquisa foram coletados no começo do mês de julho de
2010.
2.3 PROCEDIMENTOS
Em primeiro lugar foram feitas pesquisas sobre o uso de cinema na escola, da
estética e do filme como estratégia de ensino. No entanto, o foco era a análise de
filmes com um olhar estético, visto já sabermos que os professores, em sua maioria,
utilizam o filme como estratégia de ensino.
Após várias conversas com vários autores, não encontramos critérios para
análise de filmes elaborados especificamente para este fim. Sendo assim, com base
nos estudos de Teixeira e Lopes (2008), elaboraram-se seis critérios para análise
estética de filmes:
texto plurissignificativo;
permite relações intertextuais;
lugar de diálogo e confronto de ideias;
pesquisa e processos criativos;
presença de elementos artísticos e estilísticos;
princípio da reversibilidade.
Os procedimentos metodológicos empregados para coleta de dados foi a
aplicação de um questionário com duas questões abertas e sete fechadas a
sessenta e dois professores. Entretanto, destes, trinta e três foram analisados, pois
foi a quantidade de questionários respondidos. As respostas foram categorizadas e
analisadas por meio da análise de conteúdo.
Os dados indicaram o grupo de filmes empregados pelos professores, dos
quais selecionamos três para analisar de acordo com os critérios elaborados pela
autora.
A estrutura e procedimentos até então apresentados nesta pesquisa podem
ser observados na figura a seguir:
ESTRUTURA DA PESQUISA
PESQUISA QUANTI/QUALI
1ª FASE DA PESQUISA
Pesquisa
Teórica
Seleção Prévia
das fontes da
pesquisa
Questionário
COLETA DE DADOS (FASE 1)
2ª FASE DA
PESQUISA
Elaboração de
gráficos com os
dados
coletados
3ª
F
A
S
E
D
A
P
E
S
Q
U
I
S
A
Análise de filmes Billy
Eliot (2000), O Pequeno
Príncipe (1974) e O auto
da Compadecida (2000).
Elaboração dos
critérios para análise
estética de filmes
Interpretação dos
dados utilizando a base
teórica pesquisada
ANÁLISE DOS
DADOS
23
Figura 1 – Estrutura da pesquisa
Fonte: Elaborada pela autora para fins de pesquisa.
24
3 O PROCESSO DE INTERNALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO DA CULTURA
A educação do homem começa no momento do seu nascimento,
antes de falar, antes de entender, já se instruiu.
Jean-Jacques Rousseau (1992, p. 42).
Desde o momento em que se espera o nascimento de uma criança, esta já
faz parte de um contexto social, seja ela aguardada com muita ansiedade ou não.
Após o nascimento, a criança é inserida no mundo social a qual pertence, este com
suas particularidades e seus significados. Dentro desse contexto, a criança
desenvolve-se, aprende a estar na sociedade, nem que seja no seu pequeno
contexto familiar. Em um contexto social diferente, ela apresenta marcas que a faz
biologicamente única, em virtude das funções culturais que a caracterizam. Por
exemplo, em uma família em que a leitura de diversas formas faz parte de seu
contexto diário, o indivíduo desenvolverá marcas que já fazem parte de suas
características as quais farão a diferença nas relações sociais que este sujeito
desenvolverá, como também nas significações de bens culturais a que ele for
exposto ou inserido. Dessa forma, a sensibilização pela arte poderá alcançar níveis
diferentes de outro sujeito que não tem uma vivência social diferenciada.
Nesta sociedade globalizada e capitalista em que se vive, muitas crianças
desenvolvem-se em um ambiente não motivador, pois a família já não desempenha
esse papel, e por isso não vivem em núcleo comum, mas se dividem, sendo poucos
os momentos que passam juntos. Diante dessa realidade, que independe da classe
social à qual o sujeito pertence, quem vem desempenhar esse papel cultural, muitas
vezes, é a escola. Desde a educação infantil até os cursos de graduação, o acesso
aos bens culturais deveria ser um dos pontos primordiais. O intuito não é dar
praticidade à arte, mas através dela sensibilizar, fazendo com que este
conhecimento traga novas significações ao sujeito, interferindo tanto em sua
realidade como o instigando a ser crítico e interferir na realidade de outros.
De acordo com Pino (2005, p. 66), “[...] é no meio cultural que a criança
incorpora a cultura que a constitui como um ser cultural, ou seja, como um ser
humano”, conforme podemos visualizar por meio da figura 2 que segue:
25
Figura 2 – Desenvolvimento cultural da criança
CRIANÇA
Mediação semiótica do Outro
CULTURA
Fonte: Pino (2005, p. 66).
De acordo com Pino (2005, p. 152), “cultura é o conjunto das obras
humanas”. Pouco a pouco essas obras adquirem significações para o sujeito. No
entanto, isso só pode acontecer se o sujeito tiver acesso não só aos direitos básicos
(moradia, alimentação, saúde), mas também à cultura, que embora seja um direito
de todos, ainda não faz parte do contexto cultural de muitos.
Faz parte dessa cultura o cinema, que não desempenha o papel só de
diversão, mas de uma educação dos sentidos e sentimentos, oferecendo ao sujeito
de forma consciente uma oportunidade de ver e entender o Outro. Seria uma forma
de compreender, ressignificar, incentivar e incitar a criatividade, provendo a
interação entre “eu” e o Outro e entre o Outro e “eu”, auxiliando a percorrer
caminhos diferentes, que podem trazer benefícios pessoais e para o grupo no qual
está inserido. Esta seria uma relação de significação que pode ser mediada, em que
a imagem sensorial associa-se a uma representação simbólica, por intermédio de
imagens e tudo mais que a arte fílmica pode oferecer; o homem, assim, teria acesso
ao mundo real e imaginário, tornando o conhecimento do mundo algo complexo.
As mediações semióticas na família são realizadas pelos pais e na escola
pelo professor. Elas agem de forma a transformar as funções naturais de um
indivíduo em sociais e em culturais, as quais se desenvolvem conforme seu
crescimento biológico e, também, por meio das interações sociais as quais o
indivíduo expõe-se e é exposto. No crescimento do sujeito acontece o seu
nascimento cultural, sendo assim, há mensagens que podem ser decodificadas e
serem intercessoras de ideias e de ideais, podendo colaborar, assim, na constituição
de um ser cultural.
26
Se a natureza precede a cultura, a cultura supõe a natureza, porque ela é, em última instância, a própria natureza transformadora em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser natureza, torna-se algo novo. Eu a chamaria uma natureza humanizada. (PINO, 2005, p. 268).
A cultura, portanto, auxilia na humanização do ser humano que trará grandes
mudanças e significações em sua formação profissional e pessoal. Ao se apropriar
das significações culturais, o sujeito apresenta suas marcas culturais que no
relacionamento com o outro as internaliza, formando novas significações.
Confrontar, debater, articular ideias com outros podem fazer a diferença no
crescimento cultural do sujeito, e a arte fílmica pode auxiliar nesse crescimento.
Dúvidas, frustrações, alegria, tristeza, melancolia, vingança, poder, lembranças, e
tantos outros sentimentos, podem emergir após a apreciação de um filme, que
podem fazer a diferença, ocasionar as mudanças, o nascimento de um novo ser
humano cultural, cultura esta produzida pelo próprio homem, e neste processo o
homem é produtor e produto dessa cultura. (PINO, 2005).
No momento em que o sujeito vive em um mundo cultural ele está
desenvolvendo suas percepções. Segundo Vázquez (1999), o desenvolvimento da
percepção estética é fundamental no processo de aculturamento, pois a
compreensão da obra de arte depende da formação estética, a qual, por sua vez,
pode ser mais bem compreendida quando se observa como se dá a percepção
comum, que se apresenta em seis níveis. Na sequência, apresentar-se-á cada nível
da percepção, detalhado por Vázquez.
a) Perceber é entrar em uma relação singular, sensível e imediata com um
objeto.
Vázquez (1999) aponta que a percepção é singular porque o ato de perceber é
individual, mesmo que o sujeito viva em sociedade. É sensível porque o sujeito
utiliza seus sentidos para perceber o objeto e é imediata porque nasce do contato
direto entre o sujeito e o objeto.
27
Figura 3 – Percepção singular, sensível e imediata
Ato singular Homem de carne e osso
Percepção
comum
Sensível
Órgão sensorial
Imediata
Relação direta com o
(sentidos) objeto
Capacidade sensorial
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Vázquez (1999).
b) A percepção constitui uma experiência psíquica complexa.
A percepção desencadeia-se a partir de recordações de vivências passadas,
elaboram-se imagens que despertam certas reações afetivas. Dessa forma,
perceber é um processo complexo no qual se recorda, se imagina, se sente e se
pensa. A percepção revela mais do que os órgãos sensíveis captam.
reações
afetivas
28
Figura 4 - Percepção como experiência psíquica complexa
Experiência
Psíquica
complexa
Recordações
e vivências
passadas
Elaboram-se
imagens
e despertam
Recordar Sentir Pensar Imaginar
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Vázquez (1999).
c) Perceber é um ato individual e social.
Sendo o sujeito um ser de carne e osso, o ato de perceber torna-se individual,
mas determinado, em grande parte, pela sua experiência de vida. O indivíduo,
apesar de sua percepção partir de seu contato imediato com o objeto, é, também,
um ser social, e, por isso, perceber torna-se um ato não só individual como social. É
no contexto cultural que se vive, que se constituem os modos como o sujeito
organiza os dados que os sentidos lhe proporcionam. Uma vez que os contextos
culturais mudam, as percepções também variam de uma sociedade para outra.
As mediações semióticas na família são realizadas pelos pais e na escola
pelo professor. Elas agem de forma a transformar as funções naturais de um
indivíduo em sociais e em culturais, as quais se desenvolvem conforme seu
crescimento biológico e, também, por meio das interações sociais as quais o
29
indivíduo expõe-se e é exposto. No crescimento do sujeito acontece o seu
nascimento cultural, sendo assim, há mensagens que podem ser decodificadas e
serem intercessoras de ideias e de ideais, podendo colaborar, assim, na constituição
de um ser cultural.
Figura 5 - A percepção como ato individual e social
PERCEBER É UM ATO INDIVIDUAL E
SOCIAL
DETERMINADO EM GRANDE PARTE
PELA SUA EXPERIÊNCIA DE VIDA.
DETERMINADO TAMBÉM PELO
CONTEXTO SOCIAL
AS PERCEPÇÕES VARIAM
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Vázquez (1999).
d) A percepção é seletiva.
Nem todos os dados sensíveis são percebidos, só os essenciais para identificar um objeto como tal.
(VÁZQUEZ, 1999, p.138).
São esses dados que constituem os dados primários da percepção, que
dependem da relação do homem com o mundo, com as coisas, sendo a percepção
um elemento necessário dessa relação. Os aspectos essenciais que se percebe são
aqueles que convêm para obter o resultado da ação projetada. Na relação prático
30
utilitária da vida cotidiana, a percepção detém-se, sobretudo, nos aspectos que
permitem reconhecê-la e utilizá-la. (VÁZQUEZ, 1999, p. 138). A percepção é um
processo seletivo pelo fato de que os dados essenciais ocupam o primeiro plano,
enquanto os restantes permanecem em segundo plano, ou, simplesmente,
abstraem- se deles. Sem essa função seletiva, não haveria percepção sensível, mas
sim um conglomerado disforme de sensações. (VÁZQUEZ, 1999, p. 138).
e) A conversão dos dados sensíveis em normas ou regras rotineiras.
A percepção torna-se automática e enfraquecida pela rotina porque se reduz
a aspectos indispensáveis que permitem seu reconhecimento e uso sem o mínimo
de intervenção da consciência.
Figura 6 – Percepção
Enfraquecida pela
rotina Automatizada Percepção
Perde seu frescor e espontaneidade
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Vázquez (1999).
f) A percepção como elemento indispensável do comportamento do homem.
É na sua relação com o mundo que o homem constrói-se, dessa forma, a
percepção é indispensável tanto na relação teórico-cognoscitiva como na prático-
produtiva. O homem, por exemplo, recorre a instrumentos, como microscópios,
quando é necessário ampliar sua percepção sobre determinada doença, vírus, etc.
Essa necessidade de ampliar a percepção não se dá apenas nas investigações
laboratoriais; a percepção é importante, também, nas atividades diárias de um
indivíduo.
31
Figura 7 - Relação Teórico-Cognoscitiva
Relação teórico-cognoscitiva e
prática produtiva
Mediação de
instrumentos
Permitem prolongar a observação além dos limites
Vital em qualquer tarefa cotidiana
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Vázquez (1999).
Após compreendermos como ocorre a percepção comum, podemos refletir
como esta percepção dá-se na arte fílmica, como ela interfere na sensibilização
estética do ser humano. Importante pontuar que, para Vázquez (1999), a percepção
estética partilha de alguns aspectos da percepção comum, como o caráter sensível,
singular e imediato de toda percepção, assim como seu caráter social e individual.
No entanto, em alguns casos, os aspectos não são compartilhados.
Procurando entender melhor como se dá a percepção estética diante da arte
fílmica, busca-se subsídios em Peixoto (2003), que argumenta que a sensibilidade
estética é resultante do desenvolvimento dos sentidos físicos e só é possível ao
homem, pois só ele é capaz da reflexão e de desenvolver a contemplação que pode
se opor ao mundo, mesmo estando nele. A autora aponta três funções da arte, no
pensamento marxista: arte como ideologia, arte como forma de conhecimento e arte
como criação.
Quando se trata da arte como ideologia, refere-se à arte na sociedade de
classes, a qual está vinculada a interesses específicos de classe e expressa divisão
social. Nesse caso, o artista é um “ser social e historicamente datado, [...] sua
posição ideológica exerce certo papel na criação artística” (PEIXOTO, 2003, p. 36),
32
podendo assim a sua “arte lançar pontes, ou estabelecer laços entre os homens de
diferentes épocas, de realidades sociais e históricas distintas”. (PEIXOTO, 2003, p.
36).
A arte como forma de conhecimento, como verdade, é a aproximação com a
realidade. De acordo com Peixoto, essa arte “[...] serve à verdade, é precisamente a
arte realista, aquela que parte de uma realidade existente, objetiva e que projeta e
faz existir uma nova realidade”. (PEIXOTO, 2003, p. 37).
Figura 8 – Arte como forma de conhecimento do homem
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Peixoto (2003).
Outra função da obra de arte, segundo Peixoto, é A arte como criação, sem
essa característica arte não é arte. Ela, nesse sentido, passa a ser percebida como
algo novo que se relaciona com a nova realidade social em que o sujeito está
inserido, em que arte e trabalho se complementam.
Logo, criar é fazer existir algo inédito, um objeto novo e singular que expressa o sujeito criador, e simultaneamente, o transcende, enquanto objeto portador de um conteúdo de cunho social e histórico e enquanto objeto concreto, como uma nova realidade social. (PEIXOTO, 2003, p. 39).
33
Dessa forma, na obra de arte, expressa-se uma finalidade na qual o artista
deseja mostrar seus ideais e a luta por eles. (PEIXOTO, 2003). As determinações
sociais, históricas e culturais não é algo de fora que define a obra, mas é o que a
constitui.
Figura 9 - Arte como criação
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Peixoto (2003).
A arte como criação está ligada à arte como ideologia e como conhecimento
do homem, não há como as desvincular. Como se pode perceber, a arte além da
função de ensinar pode sensibilizar, fazendo com que esse conhecimento traga
novas significações e percepções, é o nascimento do sujeito no mundo cultural
(PINO, 2005).
Discutir os níveis da percepção da arte, de acordo com Vázquez (1999), e as
funções da arte, segundo Peixoto (2003), é um exercício que proporciona
compreender melhor o objeto dessa pesquisa e a perceber a diferença entre um
filme arte de um filme comercial. Vive-se em um mundo cultural que contribui de
várias formas para o desenvolvimento das percepções. O filme é uma arte que se
utiliza de várias linguagens, cuja função será determinante no processo de
34
sensibilização. Nesse sentido, investigar as funções da arte, segundo Peixoto, é de
grande valia, pois elas sinalizam aspectos que auxiliam a compreender os critérios
que contribuem para a compreensão estética do cinema no contexto escolar,
objetivo dessa dissertação.
35
4 O FILME COMO OBJETO ESTÉTICO EM SALA DE AULA - ENCONTRO DO LEITOR/ESPECTADOR COM A OBRA
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento É aquilo que eu nunca tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo... Alberto Caeiro1 (2011, poema II).
Alberto Caeiro, nesses versos, permite pensar sobre a importância do olhar
que se destina ao que está ao redor, em todas as direções. Um olhar que se abre
para o novo, a cada movimento, rejuvenescendo a forma de perceber o mundo. O
olhar é único, mesmo que muitos vivenciem, ao mesmo momento, um filme, uma
peça de teatro, um show musical, uma aula, etc. A percepção que cada um desperta
é sempre “amanhecente” porque está entrelaçada com as vivências, experiências, e
por isso há de ser sempre uma novidade.
Se apropriar do velho e travesti-lo de novo, ressignificando-o, é o desafio do
professor diante do aluno. A atividade da docência é desenvolvida no campo da
subjetividade, quer dizer, na relação com a experiência individual de cada aluno, e
por isso o resultado não acontece de forma imediata e homogênea. Isso porque,
como já dito, cada um tem seus conhecimentos adquiridos pelas vivências sociais.
Sendo assim, provocar uma desacomodação significa oferecer oportunidades para
exercitar o raciocínio lógico, o sensível, o reflexivo. Uma ideia acomodada, de senso
comum, é de que o filme é uma excelente estratégia de ensino. Essa é a ideia que
se vem procurando, nesta dissertação, desacomodar, lançando um desafio já
semeado por Teixeira e Lopes (2008), de que o filme sendo uma arte sem fins
apenas utilitários pode ser empregado no ambiente escolar para fins estéticos.
Quando se pensa em assistir a um filme, logo se envolve por sua temática ou
1 Alberto Caieiro, chamado de “O Mestre”, é um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
36
por seu roteiro, isso é o que pode acontecer com a maioria dos indivíduos. No
entanto, conforme abordado no capítulo anterior, no primeiro momento, é a
percepção comum que toma conta dos sentimentos, e, depois, os dados sensíveis
essenciais são percebidos.
O ato de assistir a um filme pode ocasionar experiências sensíveis que levam
à formação estética do sujeito ou não, pois a maioria das pessoas não tem hábito de
escolher um filme por suas qualidades estéticas, mas sim vê-lo como
entretenimento, influenciados pela indústria cultural. Para melhor compreender a
qualidade estética de um filme, discutir-se-á, primeiramente, o que é estética.
A palavra estética vem do grego aisthesis, e, hoje, ela adquire um significado
diferente daquele atribuído pelos gregos, que é relacionado ao belo. Hoje estética
está relacionada à “sensação”, à “percepção sensível” (VÁZQUEZ, 1999, p. 8).
Segundo Galeffi (2007, p. 100), o termo “estética” foi cunhado por Alexander Gottlieb
Baumgarten e significa “a teoria da ação sensível, compreendida, porém em seu
mais alto grau de perfeição, alcançado na vivência do belo, na poesia e na arte
poética em geral”. De acordo com Soares (2008), foi Baumgarten que apresentou
uma nova concepção de estética relacionada ao belo, mas no sentido da obra
humana, relacionada a percepções sensíveis, associada a um novo sentido para o
estudo da arte e da beleza.
Vázquez (1999) argumenta que há um universo estético na atualidade que
inclui muitas coisas que antes na história não eram percebidos por sua natureza
estética. Pode ser que o que é considerado estético hoje, daqui alguns anos será
considerado ainda como tal. Nesse universo estético, de acordo com Vázquez
(1999), incluem-se seres como uma paisagem, uma flor, um colibri, assim como
objetos da vida cotidiana e produtos como obras de arte. Soares argumenta que,
[...] a estética está ligada a capacidade de sentir, de deleitar-se, de deixar-se tocar pelas experiências, ou seja, tem a ver com a capacidade humana de maravilhar-se ou repugnar-se frente a um gesto, a uma paisagem, som ou ato ou frente a uma obra de arte. Corresponde a momentos em que o homem, exercitando suas capacidades sensíveis e inteligentes, se deixa tocar e frui entregando-se a uma experiência única. (SOARES, 2008, p. 25).
Soares leva a perceber a estética como uma possibilidade de o homem
exercitar sua sensibilidade. Pode-se compreender, assim, que a estética está
37
entrelaçada à percepção, e envolve todos os órgãos sensoriais. Vázquez define
estética como,
[...] a ciência de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos de apropriação humana do mundo e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre. (VÁZQUEZ, 1999, p. 47).
Levando em consideração os conceitos acima, infere-se que a estética pode
levar o sujeito ao estudo da realidade que o cerca, pois por meio da apreciação o
sujeito poderá apropriar-se de significações culturais. Essa discussão interessa
porque o filme construído como obra de arte tem características estéticas que o
diferenciam de um filme comercial.
Na perspectiva estética, o fruidor olha o filme de forma crítica, refletindo sobre
os fatos ali apresentados, construindo e reconstruindo significados, e por isso não se
pode equivocar de que a categoria estética é alienante. O espectador diante da tela
de cinema tenta entender a sua linguagem e dependendo do tipo de filme,
estabelece uma relação diferente com o objeto, desenvolvendo ou não o senso
estético.
É na apreciação da obra fílmica que a sensibilidade aflora o saber, as
vivências entrelaçam-se com o olhar do cineasta e de sua equipe, refletindo sua
postura e crenças, trazendo novas significações. Ao internalizá-las, ressignifica-se
os conhecimentos que até então se possuía, isso, certamente, é o que faz a
diferença na apreciação da obra fílmica, pois traz novos significados. A arte é
construída dentro de um contexto histórico e social e traz estas representações
ideológicas, ou seja, uma maneira própria de pensar individual ou em grupo sobre
um determinado tema.
O filme é construído por meio de linguagens diversas composto de um
conjunto de códigos e invenções. Atrás de cada história narrada há uma equipe que
pensa o filme com seus pontos de vista, seus conhecimentos que veicula por meio
de uma linguagem artística, mas, principalmente, através de suas imagens, sons e
todo o conjunto que forma a arte fílmica.
O filme é um produto artístico e, como tal, possui uma função que não é
apenas de transmitir informações por meio de seu enredo. O cineasta faz escolhas
que dependem de sua intenção, mas, principalmente, de sua concepção de cinema:
38
arte ou entretenimento? Se o filme é pensado como um objeto de arte, suas
características estéticas serão ressaltadas. Como? Uma das possibilidades é pela
montagem. Outra é a de introduzir no filme elementos díspares, ou seja, elementos
diferentes que darão significações. Esses elementos podem ser as cores utilizadas,
um ambiente ao ar livre onde se vê um muro, uma árvore, etc., o qual pode fazer a
diferença, ou, ainda, o som. Todos esses são elementos diferentes, desiguais, mas
que se harmonizam.
A arte é uma das formas do homem manter relações com seus pares e com o
mundo por meio de vários elementos, seja o cinema, a literatura, etc. Ao ter acesso
a esses bens imateriais, o homem passa a construir uma relação estética com esses
bens, o que implica na apreciação do objeto como arte.
Segundo Vázquez (1999, p. 94), para que se estabeleça uma relação estética
entre obra e fruidor, é necessário que a “atenção do espectador se desloque para
sua forma sensível”. A relação estética é uma forma muito particular do ser humano.
A percepção do sensível está atrelada à forma como o leitor/espectador recebe a
obra, o que depende muito de suas bases históricas, seus estudos; afinal, o que ele
possui como conhecimento para poder compreender ou não aquela obra, é
particular de cada ser humano. Os objetos têm funções específicas, entre elas se
encontra a função estética, no entanto, resta observar que para o objeto existir
esteticamente é necessário que o sujeito leitor e fruidor comportem-se
esteticamente.
Para que aconteça esse comportamento, o sujeito necessita ser educado
para tal. Essa educação tanto pode ser na base familiar como na escola. Mas o que
pode acontecer quando o sujeito não está preparado para fazer uma leitura estética
de um filme? Ele pode não extrair as compreensões, não ocasionado as
ressignificações de seus conhecimentos. “O objeto necessita do sujeito para existir,
da mesma maneira que o sujeito necessita do objeto para encontrar-se em um
estado estético”. (VÁZQUEZ, 1999, p. 108). Seja na contemplação de um quadro, de
uma música ou de um filme, a relação do sujeito com o objeto concreto não deixará
de acontecer, pois, de alguma forma, sua percepção comum poderá levá-lo a uma
percepção mais seletiva. Quando se refere ao objeto “cinema” pode-se, muito bem,
perceber que há toda uma preparação em torno dele: imagens, sons, figuras,
diálogos, retratos - tudo que envolve o roteiro do filme, que é a forma sucinta
engendrada por um diretor, tornando-se arte ou não. A relação desse objeto com o
39
leitor/espectador de forma perceptiva e sensível é que fará a diferença, é nesta
relação que o estético será percebido e assimilado por ambos. Na vida escolar a
arte pode humanizar, criar vínculos, propor transformações, sensibilizar, fazendo a
diferença na vida do aluno tanto na escola, como na família ou pelos caminhos que
ele trilhar.
Ao optar-se por essa discussão, anuncia-se a concepção de cinema, tendo
em vista as pesquisas de Teixeira e Lopes (2008) de não focar na “escolarização” ou
na “didatização” do cinema. Não se nega a existência dessa possibilidade, mas se
demarca de que lugar fala-se: o cinema na escola tem uma importância que se
justifica por si só, para ser apreciado como arte, entendendo-o para além de suas
potencialidades didático-pedagógicas.
Como já foi abordado, filme é uma arte que pode ser lida. Sendo uma obra
aberta, possibilita caminho para diversas discussões, compreensões, etc., podendo
sensibilizar o espectador e trazer novas significações que poderão ser internalizadas
e depois socializadas com o Outro.
Ao analisar-se um filme, pode-se, também, avaliar que construções de sentido
ele permite. Ou, ainda, que leituras ele provoca? Para responder essas perguntas, é
preciso voltar para sua estrutura, às bases estéticas que a norteiam, no geral. Um
filme com categorias estéticas diferencia-se de um filme de cunho comercial, de
entretenimento, pois traz várias possibilidades de interpretação, é uma obra aberta,
porque ela foi concebida como tal.
Partindo das reflexões das bases teóricas que até aqui se discute, passa-se,
agora, ao momento de analisar a concepção dos professores sobre o uso de filmes
na escola. O objetivo principal ao promover este questionário é pensar nas
possibilidades de tratamento estético do filme na escola. Em um primeiro momento
partiu-se da necessidade de identificar como os professores lidam com o filme na
escola, quais seus critérios de escolha e quais os filmes que eles consideraram
importantes para a sua disciplina.
4.1 ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DOS PROFESSORES
Os resultados apresentados a seguir mostram a visão dos professores acerca
da concepção de cinema, identificando quais os procedimentos empregados no seu
uso na escola, se suas práticas estão em consonância com a concepção indicada e
40
quais são seus critérios para escolha desses filmes.
Foi empregada, nesta pesquisa, como procedimento metodológico, a coleta
de dados através da aplicação de um questionário com duas questões abertas e
sete fechadas a sessenta e dois professores da Escola Estadual Básica Deputado
Nilton Kucker, Itajaí, SC. Destes, trinta e três professores retornaram seus
questionários respondidos, o que corresponde a 65% do número de professores da
escola. Na sequência, apresentam-se as respostas categorizadas e analisadas. A
primeira questão tinha como objetivo identificar se os professores empregavam
filmes em sala de aula.
Gráfico 1 - Uso de filmes pelos professores entrevistados
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
Conforme se pode observar no gráfico 1 acima, 94% dos professores utilizam
filmes em sala de aula, o que representa um total de 31 professores, apenas seis
por cento do grupo informaram que não empregam filmes. Esse percentual
corresponde a dois professores. Investigando a razão desses professores não
empregarem filmes em sala de aula, observa-se que são professores de Matemática
e Educação Fisica, disciplinas que entendem que o cinema não é uma estratégia
que pode auxiliar o ensino dos conteúdos. No entanto, a exploração do filme como
estratégia de ensino é uma possibilidade reafirmada por Setton:
[...] qualquer produto da cultura da mídia, independente de sua especificidade, filme, jornal, revista em quadrinhos etc. pode ser utilizado como um recurso pedagógico, desde que submetido a uma análise critíca e interpretativa. (SETTON, 2004, p. 67).
41
Na continuidade, coloca-se a questão do objetivo do uso do filme em sala de
aula. Há professores que o pensam apenas como um recurso pedagógico, que não
o percebem como elemento humanizador, não encontram nele utilidade em sua
disciplina. No entanto, de acordo com Arroyo, a arte do filme pode propor novas
maneiras de ver e sentir,
O que as artes têm a dizer à pedagogia é ser artes. Introduzir-nos em sua linguagens, suas sensibilidades, seus olhares.Temas de estudo a escola tem demais. Alguns repetitivos e cansativos. Falta-nos deixarmos contaminar por outras formas de ver, sentir e ler a realidade (ARROYO, 2008, p. 127).
Esse outro olhar que é introduzido por Arroyo (2008) apresenta uma das
formas de humanizar, pois ver, sentir e ler a realidade de forma diferenciada é o que
pode fazer mostrar o resultado.
Outra questão que interessou foi descobrir junto aos professores qual seu
objetivo ao empregar filmes em sala de aula.
Gráfico 2 - Objetivos do uso de filmes
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
As respostas dos professores, os quais assinalaram, por vezes, mais de uma
alternativa, revelam que vinte e cinco docentes utilizam o filme para reforçar os
conteúdos trabalhados em sala de aula; vinte e quatro, para promover a reflexão;
vinte e dois professores consideram os filmes como uma estratégia de ensino
42
diferenciada; sete consideram uma forma de sensibilizar os alunos para com o
universo da arte; e um deles indicou que o objetivo é promover o contato com
realidades diferentes.
Dos sujeitos pesquisados, apenas quatro professores colocaram uma opção,
os outros vinte e nove (29) colocaram mais de uma opção sobre seu objetivo em
empregar filmes em sala de aula. No entanto, como demonstra o gráfico 3 a seguir,
76%, ou seja, vinte e cinco professores utilizam o filme para reforçar os conteúdos
trabalhados e não como uma possibilidade de sensibilização estética.
Gráfico 3 – Objetivo principal do uso de filmes em sala de aula
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
Em se tratando do uso do filme como forma de sensibilizar os alunos para
com o universo das artes, apenas 21%, isto é, sete docentes usam filmes em sala
de aula com esse objetivo, como pode ser observado no gráfico 4 a seguir:
43
Gráfico 4 – O filme como sensibilização estética
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010
Diante desses dados, pode-se observar que a maioria dos professores utiliza
os filmes como estratégia de ensino, ou seja, um recurso que colabore para a
compreensão do conteúdo trabalhado. Evidencia-se, assim, que os professores não
conseguem perceber as possibilidades estéticas do filme, o que possibilita que
novas formas de aprendizagem sejam perdidas, e o aluno, já habituado a esse tipo
de trabalho, tende a não apreciar o filme como arte, visto que, muitas vezes, a
escola não prepara o aluno para um olhar sensivel. Conforme Duarte Jr. (2001, p.
183), a arte é transmitida ao aluno de forma formal e reflexiva e não se preocupa
“com a real educação da sensibilidade”. Rubem Alves em seu texto A arte de ver diz:
Por isso, porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar para os assombros que crescem nos desvão da banalidade cotidiana. Como o Jesus Menino do poema do Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos...”. (ALVES, 200-).
“Ensinar a ver, a primeira função do professor”, no entanto, este já está tão
mecanicamente habituado a planejar, cumprir requisitos, estipular, seguir o currículo
da escola, que não consegue também ver essa possibilidade, pois o seu ensinar a
ver resume-se aos conteúdos já estipulados. Quando uma proposta de filme surge-
lhe, logo pensa no roteiro para que se possa utilizar dessa mídia.
44
Há na escola um entendimento de que o filme seja altamente explorado,
explicitando quais os objetivos em utilizá-lo, logo o professor pensa em um roteiro,
em um resumo, em algo que envolva a temática do filme e que se entrelace com o
conteúdo abordado. Não que isso seja errado, mas ter como objetivo sensibilizar
seria uma das formas do aluno, como leitor espectador, absorver tudo o que aquela
obra proporciona-lhe, e, depois, possibilitar colocá-la para fora, ressignificando,
reestruturando novos pensamentos e ações, que podem acontecer por discussões,
debates, diálogos. O professor, dessa forma, seria o agente que apresenta o filme
aos alunos para despertar sua sensibilidade.
Uma das possibilidades para auxiliar o professor a inovar a sua prática seria
se, em sua formação inicial ou na sua formação continuada, tivesse a formação
estética que visasse orientar o professor a apurar esse olhar estético. Uma vez
sensibilizado, o professor teria condições de encontrar formas de levar os alunos à
fruição estética.
Rossi (2001), em seus estudos sobre a compreensão estética, baseada em
Abigail Housen, argumenta sobre os estágios da compreensão estética, os quais
incluem questões como: o quê, como, quem, por quê e quando. Para Rossi, os
indivíduos, no momento de apreciar uma obra de arte, apoiam-se em cinco
diferentes pilares, os quais a autora chama de “estágios”: na descrição, na
construção, na classificação, na interpretação, na recriação da obra. Alguns sujeitos
são capazes, apenas, de descrever a obra; outros tentam relacioná-la com seu
conhecimento de mundo, em um processo de construção; alguns indivíduos mais
envolvidos com a arte procuram classificá-la, relacioná-la com a história da arte; já
os indivíduos que se encontram em um estágio mais avançado de apreciação,
procuram interpretá-la, em um envolvimento afetivo com a obra; por último, os
sujeitos que se apoiam na recriação de uma obra de arte são capazes de perceber o
que está explícito e o que está implícito nela, refletem sobre ela, fruem-na.
Neste último estágio é que devem encontrar-se os docentes, pois, como
Rossi afirma:
Como educadores de arte é importante que conheçamos profundamente a estrutura do desenvolvimento estético, para permitir ao aluno a maior riqueza possível durante a apreciação estética, que é um momento privelegiado de interpretação do simbolismo apresentativo. (ROSSI, 2001, p. 35)
45
Contudo, segundo a mesma autora, a compreensão estética não é somente
para aqueles professores ligados à disciplina de Artes, visto que, para Rossi (2001,
2001, p. 34), “[...] um dos objetivos do ensino da arte, hoje, é a formação estética.
Portanto, o desenvolvimento das habilidades apreciativas é direito de todos, e não
apenas dos profissionais da arte”. Por isso, para que o professor alcance estágios
mais avançados da compreensão estética, a de considerar-se a presença do
desenvolvimento estético nos currículos das licenciaturas, e não somente nos cursos
de Arte2.
A terceira questão tinha a intenção de saber como os professores selecionam
o filme para seus alunos.
Gráfico 5 - Critérios de seleção do filme para os alunos
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
As respostam mostram que vinte e seis professores escolhem o filme pelas
possibilidades pedagógicas; dezessete, pela temática; dois, pela indicação de um
amigo; e um docente, para reflexões pedagógicas. Nenhum dos professores
seleciona o filme pelo cineasta ou pela equipe de produção. Esse resultado sinaliza
que esse grupo utiliza a arte cinematográfica apenas quando este complementa
suas aulas, é uma concepção utilitária, isto é, o filme serve como uma estratégia útil
Para saber mais sobre os estágios da compreensão, leia Rossi (2001): A compreensão do
desenvolvimento estético.
2
46
à sua disciplina. Em vista disso, pode-se perceber que eles não exploram o filme
como criação artística. Teixeira e Lopes afirmam,
[...] o cinema é uma forma de criação artística, de circulação de afetos e de fruição estética. É também uma certa maneira de olhar que organiza o mundo a partir de uma ideia sobre esse mundo. Uma ideia histórico-social, filosófica, estética, ética, poética, existencial, enfim. Olhares e ideias postos em imagens em movimento, por meio dos quais compreendemos e damos sentido às coisas, assim como a reesignificamos e expressamos. (TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 10).
A partir da fruição, ou seja, quando se desfruta dessa arte, o cinema, há
possibilidades de uma experiência estética, ou seja, de se entranhar na obra
deixando todas as emoções revelarem-se, muitas vezes buscando no âmago da
obra, seu sentido, relacionando-o, assim, com a experiência que cada um possui,
podendo-se, dessa forma, escoar uma discussão temática, mesmo que se acredite
que o filme seja uma estratégia de ensino.
Contudo, tornar o filme apenas uma estratégia de ensino é reduzir demais
sua função estética e criativa, conforme apontam Teixeira e Lopes ao declararem
que o cinema permite a experiência estética “[...] porque fecunda e expressa
dimensões da sensibilidade, das múltiplas linguagens e inventividade humana”.
(TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 11).
A questão quatro questionou que atividades o professor promovia com os
alunos após assistirem ao filme.
Gráfico 6 - Atividades promovidas com os alunos após assistir ao filme
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
47
O gráfico 6 mostra que vinte e nove dos trinta e três sujeitos da pesquisa, ou
seja, 88%, usam o filme como forma de promover uma discussão oral; vinte deles,
60%, usam o filme para escrita de resenha; sete docentes, 21%, para
preenchimento de roteiro; e 4 dos sujeitos, 12%, usam o filme para desempenhar
outras atividades, tais quais: a) reforço ao conteúdo dado em sala de aula; c)
preenchimento de determinados trechos da fala das personagens em que há
presença de estruturas de linguagem em estudo e/ou determinado vocabulário.
Nenhum dos professores questionados afirmou não realizar atividades após o filme.
Esses dados revelam que os professores não compreendem a função
estética do filme, apenas o percebem como estratégia pedagógica.
O cinema é uma arte, em suas películas pode-se buscar algo das
experiências estéticas. Mas como encontrar essa experiência estética? Como já
abordado, o professor precisa entender o que são critérios estéticos, os quais serão
abordados no próximo capítulo, o que sentem e veem quando contemplam essa
obra. Uma formação voltada para o olhar estético é o que poderia auxiliar esse novo
olhar do professor. Segundo Duarte Jr.,
[...] a nossa civilização ocidental precisa hoje recuperar uma determinada forma de aproximação às coisas do mundo, uma certa atenção para com a dimensão sensível, fundamento de nossa relação primeira com os fatos da vida.(DUARTE JR., 2001, p. 164).
O autor enfatiza a necessidade de estabelecer-se novamente uma ligação
entre o saber sensível e o intelectivo ou lógico-conceitual, pois se abandonou
completamente a face sensível do conhecimento explorando tão somente sua feição
pragmática.
A quinta questão aborda a frequência com que o professor utilizava filmes em
sala de aula.
48
Gráfico 7 - Frequência com que o professor utiliza filmes
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
Os dados mostram que dos sujeitos pesquisados 39%, doze docentes,
utilizam filme uma vez bimestralmente; 29%, nove sujeitos, uma vez no semestre;
6%, dois professores, uma vez ao ano; e 26%, oito, apresentaram alternativas como
mostradas a seguir:
- Quando existe possibilidade relacionada aos conteúdos [...] várias vezes.- Ultimamente não tenho usado devido à dificuldade de locomoção.- Conforme necessidade pedagógica e disponibilidade de materiais.- Até duas vezes bimestralmente.- Quando há possibilidade, pelo menos uma vez no mês.
Como se pode verificar, o uso do filme está sempre relacionado a conteúdos,
e a estratégias, sendo seu uso, assim, de acordo com as necessidades ou as
possibilidades. Teixeira e Lopes indicam,
[...] tal como a palavra escrita, a imagem precisa ser decifrada e compreendida, para dela melhor se retirar toda a mensagem, para melhor usufruirmos seu prazer e para melhor nos precavermos contra as sua ciladas. É, portanto, urgente exercitar os professores, como também os jovens, nossos estudantes, no seu manuseio. E nenhum outro local será, à partida, mais indicado para fazê-lo do que a escola. (TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 14).
Sendo assim, a reeducação do olhar torna-se uma necessidade. Volta-se,
assim, à importância da educação estética na formação do professor, para que o
49
uso do filme não seja apenas para suprir necessidades curriculares e uma estratégia
de ensino. Setton aponta que,
Trazer para a sala de aula o imaginário da cultura de massa é como oferecer a possibilidade de ampliar o universo de experiências de nossos alunos. É oferecer um espaço de discussão critica para um dos discursos mais visíveis e legitimados da atualidade. É uma oportunidade de desmistificar o mundo ilusório das realizações; é criar possibilidades de politizar os conteúdos; é historicizar comportamentos e práticas sociais. (SETTON, 2004, p. 77).
Mesmo que Setton (2004) valorize o filme como recurso pedagógico, nesses
argumentos encontram-se palavras em que ele pode estar apontando que o filme
seria uma forma de decifrar e compreender a imagem, de encher-se, falando
metaforicamente, desta arte fazendo uma reflexão, ressignificando conhecimentos
direcionando seu crescimento intelectual.
A sexta questão questionava qual a estratégia do professor ao passar o filme.
Gráfico 8 - Formas de utilização do filme
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
O gráfico 8 mostra que vinte e sete dos professores pesquisados reproduzem
o filme por completo no mesmo dia; três reproduzem em duas ou três aulas em dias
alternados; outros três pedem que o aluno assista em casa; três docentes
reproduzem apenas um fragmento do filme; e dois apresentam como alternativas: a)
sugestão para assistir em casa (livre); b) conforme disponibilidade de tempo. Esse
dado apresenta que a grande maioria dos professores, que faz uso do filme na
50
escola, viabiliza para que ele seja visto na íntegra no mesmo dia, o que permite
inferir que os professores movimentam-se para garantir que seu uso efetive-se no
espaço escolar, o que exige uma organização dos horários das aulas.
No que diz respeito à recepção estética, essa é uma estratégia que pode
colaborar para que o aluno perceba a importância desse recurso que se torna foco
do planejamento diário do professor. Importante pontuar que o ato de assistir ao
filme na sala de aula poderá gerar uma demanda criadora que permite a ampliação
do conceito de arte.
Vem-se afirmando ao longo dessa pesquisa a necessidade de pensar-se a
função estética do filme e a contribuição que a exploração do filme como arte pode
trazer para a construção da sensibilidade do sujeito. Essa concepção é altamente
dependente do modo como cada um relaciona-se com o outro e com o mundo ao
seu redor, uma vez que o filme é percebido principalmente por meio da visão.
Aumont comenta sobre o órgão da visão,
[...] esse órgão não é um instrumento neutro, que se contenta em transmitir dados tão fielmente quanto possível, mas, ao contrário, um dos postos avançados do encontro do cérebro com o mundo: partir desse olho induz, automaticamente, a considerar o sujeito que utiliza esse olho para olhar uma imagem, a quem chamaremos ,ampliando um pouco a definição habitual do termo, de espectador. (AUMONT, 2008, p. 77).
Sua reflexão acerca da visão problematiza o mundo que chega por meio do
olho, de como se filtra essa realidade vista por meio das percepções, o que permite
afirmar que ao assistir a um filme mobilizam-se diversas das funções, não apenas
cognitivas e físicas, mas também do universo que se compõe por meio dos outros
sentidos. Sendo o indivíduo um fruidor, ele utiliza este órgão, o olho, para a
compreensão dessa arte, mas a apreciação não depende apenas da captação da
imagem por meio desse órgão, ela se concretiza a partir dos elementos contextuais
e extratextuais que envolvem o processo de recepção, ou seja, as cores, o brilho, o
foco, a fotografia, a instabilidade da câmera, etc. Utilizar o filme apenas como
estratégia pedagógica, com já dito, reduz muito seu potencial. Por isso, a sétima
questão traz a pergunta que vai auxiliar a analisar a concepção de cinema dos
professores.
51
Gráfico 9 - Uso de filme pelos professores entrevistados
Fonte: Dados coletados em Julho de 2010.
O resultado aponta que vinte e cinco dos docentes pesquisados, 75%,
consideram o filme como estratégia pedagógica; dezessete, 51%, consideram-no
arte à serviço da educação; cinco, 15%, consideram-no arte; e dois docentes, 6%,
consideram-no reforço de conteúdo. Importante ressaltar que os sujeitos nessa
questão escolheram, por vezes, mais de uma resposta: um professor optou por
estratégia pedagógica e arte; oito optaram por estratégia pedagógica e arte à serviço
da educação; e quatro optaram por estratégia pedagógica, arte e arte à serviço da
educação.
A justificativa que cada professor trouxe a respeito das razões de usar o filme
em sala de aula aponta que há a consciência de que o filme é arte. O que não há é a
clareza a respeito da função do objeto estético. Essa é uma questão bastante
polêmica que encontra divergências dentro do próprio meio acadêmico e artístico.
Não há dúvidas de que o filme enriquece a aula, possibilita discussões sobre
diversas temáticas e pode, mesmo em uma situação pragmática, sensibilizar o
sujeito para com o mundo ao seu redor. No entanto, a ideia do filme ser usado
apenas com a intenção de estratégia de ensino, explorando sua utilidade, sem
vislumbrar sua potencialidade estética, leva a arte a uma condição subalterna, que
atrofia seu saber sensível e inibe seu caráter fruidor.
[...] a arte, por ser ela própria resultante da práxis, isto é, do fazer, do conhecimento e da posição ética do autor ante a realidade, eleva a humanidade no seu criador e, junto com ele, o público enquanto fruidor ativo. (PEIXOTO, 2003, p. 61).
52
Apreciar o filme como arte, contemplá-lo, sem uma utilidade prática é de difícil
compreensão para muitos, pois isso não significa que o filme não ensina, ele o faz
pelo seu viés artístico. Teixeira e Lopes (2008, p. 10) argumentam que “[...] o cinema
é uma forma de criação artística, de circulação de afetos e de fruição estética”.
Entretanto, os autores reiteram que ele
[...] é também uma certa maneira de olhar. É uma expressão do olhar que organiza o mundo a partir de uma idéia sobre esse mundo. Uma idéia histórico-social, filosófica, estética, ética, poética, existencial, enfim. (TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 10).
Isso faz pensar que o lugar que se deseja para o filme na escola é que ele
seja um mecanismo pelo qual se dá sentido às coisas, as quais se ressignifica e se
expressa. (TEIXEIRA; LOPES, 2008).
Pensando o cinema na escola como um mecanismo, chega-se à
argumentação de Christofoletti,
[...] cada vez mais professores de todas as partes recorrem a filmes para ilustrar suas aulas, para exemplificar teorias, enfim, para enriquecer sua didática. Suas disciplinas ficam mais atraentes, seus métodos e abordagens mais criativos, suas estratégias mais diversificadas. (CHRISTOFOLETTI, 2010, p. 76).
Acredita-se ser nesse sentido que muitos professores utilizam o filme na
escola, como um recurso para tornar suas aulas interessantes e significativas. Mas
“podemos aprender com filmes se neles observarmos condições de espelhamento
de nossas experiências de si” (CHRISTOFOLETTI, 2010, p. 76). Através das
situações que as personagens vivem, pode-se, de alguma forma, sensibilizar-se,
como argumenta Christofoletti (2010, p. 76), “[...] nos tornar porosas as fronteiras
que separam a vida na tela e a vida dos que ocupam as fileiras de poltronas”.
Essa posição de se envolver com o enredo é o que acontece na maioria das
vezes diante dos filmes apresentados em sala de aula, não que essa situação seja
incorreta, mas também é uma forma de sensibilizar-se, utilizar-se de sensações
diante do que é apresentado na tela.
O cidadão comum vai ao cinema, assiste a um drama ficcional que o remete a uma circunstância muito particular; emociona-se, enternece-se e mobiliza em si um processo que vai da reflexão sobre
53
a própria condição a modificações efetivas de sua conduta, de suas formas de ser e de colocar na vida. (CHRISTOFOLETTI, 2010, p. 7677).
Nesse sentido, embora o enredo seja o grande precursor dessa mobilização
do sujeito, os elementos artísticos e estilísticos do filme fazem seu papel, como a
trilha sonora, as imagens, os componentes destas imagens, as cores, são todos
fatos que não podemos negar.
Na ilusão óptica de extrair movimento da justaposição rápida de imagens estáticas, no autoengano passageiro de ter para si o cotidiano da mocinha, enfim, no que o cinema tem de si - mesmo, está a sua capacidade de apresentar a vida, de reformular a existência e de nos levar a reconhecer em algo que não é nosso um parentesco indelével do que acreditamos ser. Fazer crer, por alguns instantes, que sou um outro é também me ensinar a ser eu mesmo. E isso tudo com as luzes apagadas. (CHRISTOFOLETTI, 2010, p. 78).
Por meio dessa reflexão junto com Christofoletti (2010), quer-se argumentar
que o filme pode, também, ser trabalhado como estratégia pedagógica, que também
não deixa de ser uma forma atrativa de levar esta sétima arte à escola, não
deixando de focar a sensibilidade.
Continuando a análise do questionário, aqueles sujeitos de pesquisa que na
primeira questão responderam não, deveriam ir direto para a questão nove, cuja
pergunta é “Por que não utiliza filmes?”. As repostas a esta questão foram:
Porque trabalho com aulas de Educação Física e acabo envolvendo as aulas com outras atividades.
Utilizo o recurso vídeo em forma de tele aulas. Bimestralmente, escolho uma tele aula do tele curso da Fundação Roberto Marinho e faço um roteiro para os alunos analisarem o filme. Escolho um vídeo que aborda o conteúdo estudado na sala de aula. Gosto da metodologia utilizada nas aulas de matemática do tele curso, principalmente as situações problema que motivam o aprendizado do conteúdo.
Dessa forma, com base nos dados coletados, podemos afirmar que os filmes
têm sido usados nas escolas exclusivamente como estratégia pedagógica, o que é
segundo Teixeira e Lopes (2008), um uso reducionista, pois ignora que o filme
possibilita um conhecimento sensível, uma forma de apreciar a arte, pelo prazer de
54
assistir e de apreciar, uma proposta que poderá contribuir na reeducação da
sensibilidade, ampliando o olhar perceptivo, sensibilizador, pois a arte é um
conhecimento sensível, inteligível e, por meio de obras fílmicas, podem-se ampliar
as condições de humanização do público.
Quanto ao uso do filme como recurso pedagógico, Setton (2004, p. 68) afirma
que mesmo que o código escrito ainda seja o grande difusor do conhecimento, o
professor precisa estar atento a outros “estímulos criativos em nosso meio cultural”,
visto que se vive em uma sociedade que está sendo socializada pela “cultura das
imagens, do texto fragmentado, da montagem e bricolagem incessante de
informações”, e complementa que “considera relevante o uso da produção midiática
como recurso e como um objeto pedagógico”. (SETTON, 2004, p. 68).
Por meio da produção cinematográfica, os indivíduos podem refletir e
reelaborar o conhecimento formal e informal sobre o mundo. Posicionando-se,
assim, deixa-se aqui evidente a posição acerca do uso do cinema como uma
estratégia de ensino, uma possibilidade que não se pode ignorar, apesar de optar
pelo seu potencial estético.
Ainda acerca da sensibilização do cinema como instrumento reflexivo e
pedagógico, Setton diz:
Procuro uma sensibilização no sentido de usar as fontes midiáticas, como o cinema, como recursos analíticos, espaços heurísticos e legítimos de produção, ampliação e reflexão de um conhecimento, individual e coletivo. [...], a partir da fruição de um espetáculo de arte o individuo ser capaz de modificar sua percepção sobre a realidade social. Creio que é esta a tarefa da educação. Ou seja, oferecer elementos, instrumentos, em outras palavras, caminhos seguros para uma reflexão rumo ao crescimento intelectual e reflexivo. (SETTON, 2004, p. 70-71).
Dessa forma, os filmes podem, por intermédio de seus elementos como som,
imagem, narrativas, etc. (linguagens midiáticas), servir como fonte de informação e
ponto de discussão. Setton conclui, ainda,
Estou convencida de que a análise da produção cultural de uma época, seja midiática ou não, munida de um escopo teórico, hipóteses e objetivos, é seguramente um instrumento pedagógico que estimula a reflexão, explicita uma tomada de posição, contextualiza e questiona comportamentos e práticas sociais. (SETTON, 2004, p. 69-70).
55
Mas sendo o filme um discurso, de acordo com Teixeira e Lopes (2008), ele
fala a um interlocutor, insere-o em uma realidade que o mesmo desconhece,
desestrutura seus conhecimentos para serem formulados novos, sensibiliza e refina
o olhar sobre qualquer que seja a proposta do filme.
Sendo assim, os filmes como produção cultural podem auxiliar no trabalho de
contextualização, ou seja, situar no tempo e no espaço do processo educativo, é
uma forma de ampliar o universo de experiência do aluno. Assim, o filme torna-se
um registro que amplia o conhecimento do aluno e ressignifica seus valores,
podendo ser uma forma riquíssima de linguagem que deveria ultrapassar seu uso
como recurso pedagógico que apenas reforça determinado conteúdo,
transformando-se em uma leitura mais ampla, uma apreciação que possibilita a
sensibilização a qual pode gerar um olhar estético que refina o conhecimento.
O leitor poderia questionar-se sobre as razões que levaria um professor a
explorar o filme pelo viés do estético. Arroyo (2008) aponta que a estética faz parte
do ser humano e que ela está ligada à escola, pois é a arte de constituir humanos,
devido a todo esse universo de representações e percepções a qual ela pertence.
Mas o que há de estético em um filme? Até então este é visto como um
conjunto de imagens e sons em movimento, mas qual a função dessas imagens e
sons? Certamente cada autor quer tocar o leitor/espectador, fazer com que as
reminiscências aflorem e novos significados apresentem-se, ocasionando
sensibilizações, pois há todo um contexto histórico por trás. Como podem acontecer
as interlocuções múltiplas? Como já abordado, através da percepção comum que
todos possuem, mas saber saborear, apreciar a arte fílmica por meio da percepção
estética é a grande questão.
E esse é outro grande desafio que se coloca ao professor, explorar as
qualidades estéticas do filme. No entanto, para utilizar o filme como objeto estético,
ele deve compreendê-lo dessa forma, saborear suas características artísticas para
que o aluno possa saboreá-lo também. Contudo, a formação cultural do professor,
relegada pela sua formação inicial, não contribui, e a arte, principalmente o cinema,
é visto como uma mercadoria da produção capitalista. De acordo com Peixoto,
[...] o sistema de ensino está estruturado para garantir a reprodução de esquemas de ação, expressão, concepção, imaginação, percepção e apreciação objetivamente disponíveis em uma
56
determinada sociedade “(entre eles, os esquemas de percepção e apreciação dos bens simbólicos)”, no caso, a sociedade burguesa. (PEIXOTO, 2003, p. 18, grifos da autora).
A tentativa capitalista de impor uma visão única de arte como mercadoria,
submissa às leis de mercado, como afirma Peixoto (2003), deterioriza, obnubila a
visão estética do leitor.
Sendo assim, o professor com sua formação cultural fragilizada passa a
utilizar a arte como um modo de transmitir os conceitos por ele apreendidos e não
para uma significação cultural. Sacristán (apud NOGUEIRA, 2010, p. 4) afirma que
“se os professores não podem dar o que não tem, é preciso, antes de mais nada,
que sejam cultos para poderem dar cultura”. O professor precisa ampliar suas
referências artísticas, seu olhar estético sobre as obras para poder ser esse agente
cultural de que fala Sacristán.
Por meio de um processo contínuo, o professor pode apropriar-se da cultura,
das artes (música, teatro, dança, artes visuais, cinema e outros), vivenciando
experiências estéticas que podem ser significativas e auxiliar em uma prática
docente mais rica e estimulante (NOGUEIRA, 2010). Para que isso aconteça, é
necessária a real educação da sensibilidade, trabalhar a percepção comum,
melhorá-la para chegar a uma percepção estética.
O oficio do professor é uma das artes humanas mais permanentes ao longo e
tenso processo de humanização. (ARROYO, 2008, p. 126). A arte de ensinar e
aprender traz consigo cuidados, sensibilidades, ternuras e fino trato, e o cinema é
uma das artes que pode auxiliar a refinar a atuação do professor.
Pensa-se que não se pode reduzir o uso do cinema a um recurso didático
para se motivar o estudo de determinada disciplina ou tema, uma vez que sua
função extrapola o caráter didático. Como afirma Arroyo:
As artes podem mostrar-nos que em nosso oficio há poesia, emoção, fantasia, medo, ternura, tragédia... Materiais riquíssimos para um trato estético. Podem revelar perfis de mestres mais plenos e mais frágeis. “Ouro maciço”. A estética costuma ter um olhar penetrante. (ARROYO, 2008, p. 127).
O ofício de ensinar é uma das artes humanas mais antigas no processo de
humanização e, de acordo com Teixeira e Lopes (2008), deve-se deixar-se
contaminar por outras formas de ver, de sentir e de ler a realidade para não se
57
tornar refém de uma única linguagem e leitura. A arte fílmica seria uma dessas
novas formas de sensibilizar-se, seria uma linguagem cultural que proporciona
outros entendimentos. “Abrir a escola à cultura é abrir-nos às múltiplas linguagens
estéticas.” (ARROYO, 2008, p. 128). Por meio da arte pode-se conhecer-se melhor
como docentes, segundo Arroyo (2008, p. 129), “abrir-nos educandos (as) e
educadores (as) à pluralidade dos jogos de linguagem e à multiplicidade de vozes
pode ser uma didática de abertura a uma compreensão mais rica da realidade”.
58
5 O FILME COMO OBJETO ESTÉTICO: EM BUSCA DE ALGUNS CRITÉRIOS ESTÉTICOS
Considerando toda essa discussão acerca do filme como objeto estético, tem-
se como propósito final estabelecer alguns critérios que podem contribuir para a
compreensão estética do cinema no contexto escolar. Para tal, elaborou-se uma
questão aberta ao final do questionário que pedia que o professor recomendasse um
filme apropriado para sua turma e justificasse sua escolha. Os filmes indicados
foram agrupados em três categorias elaboradas de acordo com a classificação feita
por Teixeira e Lopes em seu livro A Escola vai ao cinema (2008). Nessa obra, os
autores reúnem uma coletânea de artigos que se inscreve, a um só tempo, no
campo do cinema, da estética, da educação e das relações entre eles, utilizada
como enfoque teórico desta dissertação. As categorias são:
a) preconceito, discriminação e intolerância;
b) escola, sujeitos e outros contextos;
c) filmes de épocas.
A seguir, apresentam-se, na figura 10, os filmes indicados pelos sujeitos da
pesquisa, divididos em suas categorias:
59
Figura 10 - Filmes divididos em categorias
Fonte: Elaborada pela autora para fins de pesquisa.
Dentre esses filmes que foram recomendados pelos professores, selecionou-
se um de cada bloco com o intuito de sinalizar os elementos estéticos presentes em
cada um. Os filmes escolhidos por meios de critérios aleatórios foram: Billy Eliot, O
Pequeno Príncipe e O Auto da Compadecida.
5.1 CRITÉRIOS ESTÉTICOS
Com base no estudo de Teixeira e Lopes (2008), os seguintes critérios
estéticos a serem analisados nessas três obras foram estabelecidos:
60
Figura 11 - Critérios estéticos de análise de filme
Fonte: Elaborada pela autora para fins de pesquisa.
a) Texto plurissignificativo
Os filmes são obras de arte em que acontecem jogos de discursos
linguísticos. De acordo com Rodrigues (2008), pode-se usar a figura metafórica de
um leque para melhor compreender como podem acontecer esses jogos.
Um leque é uma unidade composta por uma diversidade de hastes justapostas e conectadas entre si. Pelo seu modo de se conectar permite vários estágios de manejo, desde o estágio inicial de fechamento completo até sua máxima abertura. Quem decide sobre o grau de abertura desejada é o usuário, que, aliando força,
61
movimenta o ritmo, impõe ao leque cumprir a função que dele se espera. (RODRIGUES, 2008, p. 29).
Assim como um leque, um filme pode apresentar vários elementos
justapostos e articulados que vão induzir o leitor a várias significações. É um convite
a um diálogo entre filme e interlocutor, que produz várias interpretações, assumindo
uma atitude que Calvino (1990) nomeia como enciclopédica e plural.
É uma obra aberta com várias possibilidades comunicativas e muitas leituras
que se descortinam diante do espectador. Instala um ponto de fuga, ou seja, a visão
do leitor exercitando esse seu olhar, um olhar penetrante sobre uma imagem que
não explica, mas insinua, propõe. Ela exige uma reeducação da sensibilidade para
linguagens estéticas.
b) Permite relações intertextuais
Sendo um sistema de linguagens, os filmes constroem-se como textos que
apresentam palavras, sons e imagens em movimento, permitindo um diálogo
produtivo entre o filme e seus interlocutores, outras formas de ver, de sentir e de ler
a realidade. Os filmes podem, também, cativar por meio das relações estabelecidas
entre o real e o imaginário reproduzido nas películas. As figuras apresentadas na
obra convidam e permitem conhecer, ensinar e aprender. (ARROYO, 2008, p. 128).
Os intertextos que são evocados pelo filme podem despertar várias possibilidades
de sentir e pensar através dos registros da câmera em tempo real, do olhar estético
do cineasta. Um filme com qualidade estética valoriza o jogo das relações
intertextuais, provoca o leitor a estabelecer conexões com muitos outros textos,
estimulando sua reflexão. Segundo Neitzel, uma leitura intertextual provoca a
multilinearidade e multisequencialidade e implica “na aceitação do leitor em adentrar
nas bifurcações semeadas pelo texto”. (NEITZEL, 2009, p. 72). Segundo a autora,
sob o texto edifica-se um palimpsesto que quanto mais intertextual, mais ele permite
relações diversas, estando aberto às interferências do leitor.
62
c) Lugar de diálogo e confronto de ideias
Por meio do filme, o leitor experimenta outras formas de ver, de sentir e de ler
a realidade. Por meio de metáforas e símbolos o cineasta provoca o relembrar, o
refletir, gerando conflitos no leitor que, em muitos casos, mantém-se em uma
posição de estranhamento, pois as ideias expressas podem apresentar-se como
opostas a seus costumes e, muitas vezes, podem causar até o sentimento de
repulsão, aversão.
Metáfora é o que todo mundo faz quando tem que inventar um jeito para falar de algo por intermédio da imagem de uma outra coisa. Em grego, meta quer dizer “além” e fora quer dizer “transferir” e “carregar”. [...] Metáforas são analogias para se representar a imaginação, se associar ou traduzir idéias e podem ser usadas para ajudar o pensamento e facilitar a comunicação de idéias. (ARROYO, 2008, p. 141).
Por meio das metáforas podem-se renovar velhos significados. Assim como
os elementos presentes nos filmes podem provocar e desestruturar ideias. Para tal,
ele se mostra ao leitor por meio de símbolos ambíguos, os quais mantêm a
plurissignificação da obra. Esses símbolos que vão sendo desvelados pelo leitor
constituem-se na obra como em um jogo, que dão a ela certo movimento porque os
sentidos não estão explícitos, eles precisam ser investigados, construídos,
colocando o leitor em uma situação bastante movediça.
d) Pesquisa e processos criativos
Segundo Peixoto (2003), a arte possui três funções básicas: ideológica,
criação ou de conhecimento. A arte como função ideológica aplica-se à arte na
sociedade de classes, vinculada a interesses específicos de classe expressando a
divisão social. Já a arte como forma de conhecimento, é a arte como verdade. A arte
como criação possibilita a produção de algo novo que se relaciona com a nova
realidade social em que o sujeito está inserido, em que arte e trabalho se
complementam; a arte como criação está ligada à arte como ideologia e como
conhecimento do homem, não há como as desligar.
63
Sendo assim, a arte como criação, ou seja, a práxis artística aponta que nela
e por ela o artista pode materializar sua “subjetividade nos objetos que cria e
constrói, ao mesmo tempo em que promove a subjetivação do mundo objetivo,
imprimindo-lhe a marca do humano, quer dizer, humanizando-o”. (PEIXOTO, 2003,
p. 42).
Será que no filme se pode observar um processo criativo elaborado ou
acentuado? Essa é uma das questões que permite observar o filme com este olhar
estético, analisando-o de acordo com este critério: Pesquisa e processos
criativos.
e) Presença de elementos artísticos e estilísticos
Ao ser planejado, um filme mostra-se não apenas pelo seu enredo, mas
principalmente pela escolha que o cineasta faz dos elementos que o compõem,
símbolos artísticos e estilísticos que se articulam trazendo representações, pois
estes constroem um sistema de linguagem que aponta para vários significados. São
exemplos de elementos artísticos e estilísticos: a música, a mobília, o local, as cores,
os sons, o retrato, a paisagem, as roupas. Por meio desses elementos, o leitor
desvelará mensagens codificadas nesses objetos. As cenas vão se construindo por
meio do jogo de sombras e expressões que se tornam símbolos, não para
representar as mensagens, mas para serem elas a própria mensagem.
f) Princípio da reversibilidade
Um filme não pode ter suas qualidades reduzidas à temática ou ao enredo,
mas pode apresentar-se prenhe de possibilidades sinestésicas e comunicativas cujo
foco não é a causa, o enredo em si e as suas consequências. A fragmentação do
enredo é uma estratégia empregada pelo cineasta (ou pelo escritor) para paralisar a
narrativa e manter o princípio da reversibilidade que leva o leitor a uma digressão
que o impulsionará a construir e reconstruir o enredo, de forma interativa. Neitzel
(2009) discute essa questão explicando sobre o conceito de reversibilidade, que,
para a autora, confere à narrativa um aspecto labiríntico e ao mesmo tempo lúdico,
introduzindo nela um composto de galerias e corredores, todos distribuídos de forma
assimétrica e sem saídas.
64
A reversibilidade “quebra os hábitos mentais do leitor”, mata o “leitor fêmea”, termo que Morelli usa para designar o leitor que se escandaliza com a escrita provocativa, com o texto desalinhado, aquele que almeja sempre ter nas mãos o livro como objeto acabado, pronto para ser lido ávida e prazerosamente, apenas se dando ao trabalho de recolher mensagens, mantendo-se distante de noções confusas, penetrando apenas na sua fachada. Graças à reversibilidade, o hipertexto se constitui como uma modalidade de escrita dinâmica, mas essa dinamicidade também se constitui pela ambivalência da linguagem poética. (NEITZEL, 2009, p. 67).
Esses critérios estéticos para análise de filmes foram estabelecidos com base
nos estudos realizados, com o propósito de auxiliar os professores a ter um olhar
sensível quanto aos filmes.
Vive-se em uma sociedade globalizada em que os avanços são simultâneos
em todas as áreas, cada vez mais os roteiristas, diretores e escritores têm inovado
em sua obra, utilizando esses avanços e tornando presentes em suas obras vários
elementos que propõem vários significados. Cabe aos professores compreender e
levar esse olhar a mais para os alunos.
65
6 EXPLORAÇÃO ESTÉTICA DOS FILMES SELECIONADOS
O cinema! A sétima arte! Uma linguagem visual que pode induzir a muitas
coisas. Uma forma ardilosa de envolver o público em suas tramas, suas imagens,
seus sons e seus movimentos. O cinema dialoga com outras formas de linguagem
advindas dos romances, da poesia, do teatro, das pinturas, etc., envolvendo o
espectador, estruturando suas emoções, às vezes, desestruturando-as, provocando-
o a encontrar uma solução ou participação na história, ressignificando-a de forma
fugaz, eloquente, prazerosa.
Essa comoção que essa arte provoca, leva ao prazer de apreciá-la, à
exploração além de seus enredos, pois cada olhar em uma mesma obra leva a
diferentes provocações, a diferentes significados.
Neste capítulo, ter-se-á esse olhar explorativo, estético nos filmes
selecionados entre os que foram indicados pelos professores. Serão utilizados os
critérios estéticos estabelecidos pela autora no capitulo anterior.
6.1 BILLY ELLIOT: REMINISCÊNCIAS, SONS E IMAGENS
No cinema, as relações entre visível e invisível, a interação entre o dado imediato e sua significação
tornam-se mais intricadas. A sucessão de imagem criada
pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre
levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela.
Ismael Xavier (2003, p. 368).
66
Imagem 1 – Billy Elliot
Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
Billy Elliot é um filme do gênero drama dirigido por Stephen Daldry, com
roteiro de Lee Hall, produzido por Greg Brenman e Jonathan Finn e editado por John
Wilson. Foi lançado no ano de 2000.
A história desse filme é sobre um menino que vive com seu pai, irmão e avó
em uma cidade da Inglaterra cuja economia depende das minas. O menino, Billy
Elliot, treina boxe, uma tradição de família que é realizada de forma obrigatória, mas
sua fascinação é pelo balé, cujo contato surgiu nas aulas de dança clássica
realizadas na mesma academia onde treinava boxe. A professora vê em Billy um
talento nato para a dança e o incentiva a dedicar-se a ela. O menino resolve largar
as luvas de boxe e devotar-se de corpo e alma à dança, enfrentando com isso o pai
e o irmão que se opõem a sua nova vocação.
Billy Elliot (2000) é um filme instigante, alguns de seus componentes fílmicos
oferecem reminiscências através de sons e imagens. É o lado visível e invisível do
filme proporcionando, de alguma forma, uma experiência estética. No que diz
respeito à temática, jogos de imagens e sons mostram a tensão entre a repressão e
o desejo pela liberdade que muitos jovens passam na fase da adolescência. A
repressão por terem que seguir o que os pais determinam, mas com o anseio de
fazer o que realmente desejam. A temática é acima de tudo a arte e sua poderosa
67
capacidade de mudar destinos. Eisenstein (1990) afirma que a imagem incorpora o
tema. Nesse caso, a imagem do dançarino e de sua arte de dançar é o próprio tema.
A trilha sonora é um elemento que amplia o grau de expressividade do filme.
Som e imagem constroem uma metáfora que leva o espectador a criar a
representação da liberdade desejada: um menino que se despede da ideia inicial de
um cisne aprisionado e alça voo por meio da dança. Uma metáfora musical para
criar a representação da transformação. Sua trilha sonora é um dos elementos mais
utilizados que o complementa - a sequência das músicas acompanha a trajetória do
menino, sendo finalizado com O lago dos cisnes. Um repertório clássico para indicar
a dança em uma apresentação de balé.
Há cenas em que ele dança na penumbra. Lembra Einsenstein (1990, p. 54),
“[...] qualquer tom de uma cor imprime em nossa visão um determinado ritmo de
vibração”. É o conflito das cores que faz com que as vibrações intensifiquem-se.
Essas cenas na penumbra podem ou não intensificar as percepções, depende do
olho de quem vê.
A sensibilidade do espectador vai sendo ampliada à medida que se depara
com cenas que apresentam contrastes, seja de espaço, seja de ideias. Peixoto
escreve: “[...] a sensibilidade estética é resultante do desenvolvimento dos sentidos
físicos e espirituais humanos pari passu ao domínio da natureza, o que só é possível
ao homem”. (PEIXOTO, 2003, p. 44, grifo da autora). O contraste de espaço pode
ser observado nas construções de imagens entre conflitos individuais ou de grupos,
uma película sobrepondo a outra, contemplando, opondo-se. Um filme arte
preocupa-se com a sensibilidade do espectador, e esta pode ser ampliada por meio
das percepções que ele passa a ter com o filme.
É uma obra que provoca certo desconforto para seus espectadores, pois não
apresenta uma solução imediata, ou que está por vir, e deixa dúvidas, é uma obra
que pode apresentar plurissignificados em suas cenas. Como nas cenas a seguir:
68
CONFUSÃO ENTRE BOXE E BALÉ
Imagem 2 – Billy e o boxe Imagem 3 - O conflito: boxe e balé
Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000). Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
Imagem 4 - Billy e a dança Imagem 5 - Billy e o balé
Fonte: Filme em DVD: Billy Elliot (2000). Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
Entre o conflito de treinar boxe ou dançar balé, a personagem encaminha o
espectador a uma flutuação de sentidos. “Seu universo mostra-se caótico, a
suposta estabilidade infantil se desfaz.” (ALVARENGA, 2008, p. 52). Essa
oscilação vai repetir-se em outras cenas mantendo um jogo de mostra e esconde
que deixa o espectador a derivas interpretativas. Há cenas em que dúvidas e
incertezas podem pairar no ar e fica a cargo de cada espectador chegar a uma
conclusão.
Alvarenga (2008), ao analisar esse filme, discute a metáfora do corpo que é
apresentada por algumas cenas. O corpo de Billy retrata uma infância abandonada
e talvez pulada. Há várias cenas que mostram as mudanças que a personagem
principal vai sofrendo, o corpo é o símbolo metafórico, como aponta Alvarenga,
A adolescência é narrada, ao longo do filme, como um tempo definido por uma tarefa, período ao longo do qual o sujeito volta-se para si mesmo como diante da Esfinge: decifra-me ou devoro-me. (ALVARENGA, 2008, p. 51).
69
A personagem principal, Billy, também vê sua infância desfazendo-se
juntamente com a imagem da mãe morta que é o signo de sua infância perdida. À
medida que seu corpo vai crescendo, há, também, um crescimento interno, em que
muitos símbolos de sua infância desfazem-se como a vaga lembrança da mãe, da
carta que guardava, do piano que virou cinzas em uma noite fria - que é outro
símbolo presente no filme que personifica a figura materna. Mesmo ausente, a
presença da mãe é constante pela imagem do piano. “[...] o piano da mãe que lhe
conforta e suporta.” (ALVARENGA, 2008, p. 55). Quando queima o piano, ou o pai
penhora as jóias da mãe, a imagem materna dilui-se, pois a força da mãe
concretizava-se por meio dos objetos.
É no aparente conflito desse crescimento, que a infância parece ser
roubada, que suas decisões vão sendo tomadas. Os objetos do filme têm seus
significados como a luva de boxe, que pertenceu ao avô, e as sapatilhas.
Billy descalça as botas e veste a sapatilhas, passaporte não mais para o universo masculino adulto de trabalhador inglês, mas de individuo que se descobre capaz de dançar e que, aos poucos, a partir desse gesto, por meio deste ato, estabelece outros parâmetros para a construção de sua identidade adulta, pela transgressão absurda da escolha. (ALVARENGA, 2008, p. 56).
É uma obra com cortes temporais e espaciais em que ora as personagens
estão em casa, ora estão em reivindicações. Um conjunto de contradições e
indiferenças instaura-se, como na cena da imagem 6 a seguir, em que aparecem
homens com suas armaduras, firmes, mas mudos, apenas tomando as suas
posições. A Menina com uma vareta passa por esse muro de homens mudos e
indiferentes acentuando os contrastes. A vareta e a armadura dos homens são
símbolos que se contrastam, em um crescimento interno da personagem principal.
Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
70
Imagem 6 - Varetas e armaduras: o muro dos homens
Fonte: Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
Muitas imagens são enquadradas para remeter a determinadas temáticas
abordadas. A exemplo do mar, símbolo da liberdade (ver imagem 7). Os vestuários
são, também, símbolos que indicam diferenças sociais e conflitos, os quais fazem
parte de todo o contexto desse crescimento interno e externo das personagens.
Imagem 7 – Símbolo da liberdade
Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
Elliot foi construindo-se como dançarino, vivendo as indiferenças e as
dúvidas constantes, assim como a sensibilização dos outros frente às questões
71
apresentadas contrastam-se. Não se sabe, contudo, se compreenderam essa
construção da personagem. Vem-se, até este momento, apresentando análises
sobre a construção do filme para ter-se condições de indicar quais critérios
estéticos podem ser observados nessa obra.
O filme é um texto plurissignificativo porque é uma obra aberta a várias
possibilidades de compreensões e leituras. Os elementos selecionados pelo
cineasta indicam uma preocupação não com a causa e o efeito, mas com a
caminhada que o espectador opera diante do filme.
Os sentidos não se encontram prontos, eles são insinuados e depende do
espectador a compreensão das significações obnubiladas, o que exige do leitor que
ele exercite seu olhar. Os símbolos que aparecem no filme, como o piano e as jóias
da mãe, são símbolos que podem ser desvelados pelo espectador e dão certo
movimento, porque os sentidos não estão explícitos, são construídos de acordo
com as cenas em que estes símbolos tomam sentidos junto às personagens. Essa
plurissignificação torna o filme o lugar de diálogo e confronto de ideias,
perceptíveis principalmente pelas mudanças que vão sucedendo-se com as
personagens: transformações, descobertas e preconceitos, que vão sendo
derrubados, como afirma Alvarenga (2008), é o patinho feio que se torna um cisne
e dança.
Imagem 8 – Símbolo da infância
Fonte:Filme em DVD: Billy Elliot (2000).
72
Billy Elliot é construído com elementos artísticos e estilisticos como a
música, a mobília, o local, as cores, os sons, o retrato, a paisagem, as roupas os
quais visam à sensibilização do espectador. As imagens empregadas têm forte
apelo poético. De certa forma, isso exige do espectador maior interação,
principalmente se se pensar que as cenas finais do filme, embora sejam de uma
obra singular, podem trazer a possibilidade de reconstruir-se o enredo, brincando
com sua reversibilidade.
De acordo com essa análise, e os estudos realizados, pode-se notar que um
filme é construído através de diversas linguagens, as quais são códigos e
invenções de toda uma equipe que está por trás da obra. No entanto, para que se
possa perceber todas estas linguagens, é importante que se estabeleça uma
conexão entre fruidor (espectador) e a obra fílmica. (VÀZQUEZ, 1999). Ou seja, o
espectador tem que saber identificar os elementos artísticos e estilísticos. Pode ser
que o espectador tenha a sensibilidade, mas, para não se remeter apenas ao
enredo, ele precisa ter uma educação estética.
6.2 O PEQUENO PRÍNCIPE: ENCONTRO DO PRESENTE COM O PASSADO OU SERIA DO PRESENTE COM O FUTURO?
Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
Antoine de Saint-Exupéry (2006, p. 38).
Imagem 9 – O Pequeno Príncipe
Fonte:Filme em DVD - O Pequeno Princípe (2009).
73
O Pequeno Príncipe, um filme baseado em um clássico da literatura - uma
história de Antoine de Saint-Exupéry escrita em 1944 -, chegou às telas do cinema
em 1974. O filme, dirigido por Stanley Donen, conta a história de um encontro de
um menino que vem de um lugar distante com um piloto perdido no deserto.
Juntos, eles compartilham experiências que divertem, encantam e tocam o
coração. É uma obra que não está centrada na ação, no movimento, na causa e na
consequência. Seu discurso metafórico é peça chave na sua composição. Como
traduzir em imagens um texto que esconde muitos outros textos, que se revela
como um grande labirinto de ideias?
Epstein argumentando sobre a estética das metáforas diz: “O princípio da
metáfora visual é o exato na vida onírica ou normal; na tela, ele se impõe”.
(EPSTEIN, 2003, p. 273).
As diversas metáforas retratadas nesse filme impõem-se no sentido de fazer
uso dos diversos símbolos (as imagens, a trilha musical) apresentados como
formas de instigar o espectador. Pode-se destacar, assim, a categoria estética:
Lugar de diálogo e confronto de ideias. Quando em um filme observa-se esse
critério, significa que o cineasta, através do uso de diversos símbolos, dá ao filme
um movimento que pode levar o espectador a uma situação desconfortante, ideias
opostas podem ser a causa desse desconforto, e sentimentos podem aflorar
como: repulsa, aversão, como também recordação.
Esse filme pode envolver o espectador em um emaranhado de
representações que o fazem sentir-se confuso. São metáforas que evocam
mudanças, ideias ambíguas que cada imagem remete, provocando o espectador,
que desvela por meio de suas várias metáforas, suas percepções. São
experiências sensíveis e únicas de cada espectador, que poderá levá-lo a
apropriações culturais, construindo a identidade visual e sensorial do momento.
As imagens são organizadas de forma que o espectador construa não uma
mensagem dita verdadeira, mas que, pela sua ambiguidade, coloca-o em uma
posição de dúvida sobre o que é dito. São diversos símbolos que querem dizer algo
e aparecem nessa inusitada história, como um asteróide B-612, uma raposa e uma
rosa que falam e tantos outros seres inanimados do dia a dia, como pombas e
serpentes.
O filme traz a riqueza do clássico livro, que é lido, relido e ressignificado por
várias gerações. Calvino em sua obra Por que ler os clássicos indica, dentre outras
74
coisas, que “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”
(CALVINO, 1995, p. 16), e que nem sempre se aprende algo novo com os
clássicos, pois se pode com eles descobrir algo que sempre se soube, mas mesmo
assim ele causa surpresa.
Para Calvino (1995, p. 11): “Toda releitura de um clássico é uma leitura de
descoberta como a primeira”, já que os modos do leitor ver modificam. O autor
complementa: “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.
(CALVINO, 1995, p. 11), sendo assim, seja para quem for ver/ler pela primeira,
segunda, ou terceira vez, a obra, para cada um e para cada vez, pode trazer novos
significados, quando percebida pelo prisma inspirador dessa obra clássica de
Antoine de Saint-Exupéry.
Uma das categorias elencadas para identificar elementos estéticos no filme
é que ele precisa ser apresentado às telas como um texto plurissignificativo. A
leitura dos clássicos, que podem ser obras abertas, incita a diversas leituras e
releituras. Fazer uma releitura desse clássico por meio da arte do cinema é
instigante - é o visual, o sonoro e o audiovisual justapondo-se através dos
fragmentos, comovendo a cada instante através de toda esta composição.
O Pequeno Príncipe é mais do que um filme que apresenta um enredo que
conta a história mágica de um piloto perdido no deserto e um menino vindo de um
lugar distante. É uma obra que apresenta plurissignificados para seus
espectadores. Para muitos pode incomodar e para outros pode ser o encontro do
passado com o presente ou seria do presente com o futuro?
São as diversas figuras de linguagem apresentadas nessa obra que leva o
espectador a pensá-la como uma obra plurissignificativa. Os desenhos que o
menino apresenta no início do filme para os adultos, o deserto, o aviador, que é o
narrador, a água, todos os planetas visitados e os personagens ali presentes, a
serpente, a raposa, a rosa, são montagens, movimentos, expressões, olhares,
ruídos, vozes, imagens e sons, composições únicas em uma obra para diversas
significações e reestruturações.
Teixeira e Lopes (2008) apontam que são figuras que permitem conhecer e
aprender, que permitem relações intertextuais. No caso dessa obra, o objetivo do
menino é ampliar seu conhecimento porque ele se acha ignorante. Nessa sua
busca, ele encontra vários personagens, em espaços diversos que o fazem avaliar
o sentido das coisas, e sua busca torna-se incessante pelos conhecimentos que
75
ele achava ser necessário para sanar suas dúvidas. Só que, a cada aventura pelos
planetas, torna-se um desafio, e, a cada conhecimento adquirido, novas dúvidas
surgem que o fazem ir à busca de mais.
Esses processos envolvem símbolos que compõem toda a obra: as
imagens, a trilha musical, os componentes, os quais fazem parte da montagem das
cenas, tais quais: as cores, as roupas, os móveis, etc. Todos esses elementos
reunidos fazem com que o espectador sinta-se envolvido com o filme. Sendo
assim, outra categoria que podemos elencar nesse filme é a Presença de
elementos artísticos e estilísticos, os quais são escolhas que o cineasta faz dos
símbolos artísticos e estilísticos que constroem um sistema de linguagem e
apontam para diversos significados. Em O Pequeno Príncipe, dentre seus diversos
símbolos, pode-se destacar as cores e a trilha musical que foi composta para o
filme. A respeito das cores Eisenstein afirma,
Qualquer tom de uma cor imprime em nossa visão um determinado ritmo de vibração. Isso não é dito figurativamente, mas num sentido puramente fisiológico, porque as cores são distinguidas umas das outras por seu número de vibrações de luz. (EISENSTEIN, 2002, p. 54).
É nessa distinção de cores que as percepções são aguçadas, estimuladas e
pode-se, dessa forma, assimilar a mensagem interagindo entre este e outros
elementos artísticos e estilísticos presentes no filme como, por exemplo, a música.
Em se tratando de vibrações visuais e acústicas, Eisenstein explica
Por isso, dando apenas um passo, das vibrações visuais para as vibrações acústicas, nos encontramos no campo da música. Do império do espacial – pictórico - para o império do temporal-pictórico - onde vale a mesma lei. Porque o contraponto é, para a música, não apenas para uma forma de composição, mas ao mesmo tempo o fator básico para a possibilidade da percepção do tom e de diferenciação do tom. (EISENSTEIN, 2002, p. 54).
Através dessas vibrações, ou do choque delas, é que o cineasta constrói,
como diz Eisenstein, a premissa básica, o plano que é “a célula (ou molécula) da
montagem” (EISENSTEIN, 2002, p. 54), e são essas moléculas que se unem
formando toda a obra cinematográfica com seus significados.
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Vários elementos portadores de grande simbologia dão ao filme O Pequeno
Príncipe diferentes sentidos. Por meio desses elementos, o leitor desvelará
mensagens codificadas. As cenas vão se construindo por meio do jogo de
sombras, de expressões, de símbolos e de elementos.
Figura 12 - Símbolos
Fonte: Representação da pesquisadora com base nos conceitos de Teixeira (2008).
Como um leque, o filme apresenta esses elementos justapostos e
articulados que podem induzir o leitor a várias significações; um convite a um
diálogo entre filme e interlocutor, produzindo várias interpretações.
[...] tal como a palavra escrita, a imagem precisa ser decifrada e compreendida, para dela se retirar toda a mensagem para melhor usufruirmos seu prazer e para melhor nos precavermos contra suas ciladas. (TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 14).
Pode-se experimentar outras formas de ver, sentir e ler a realidade por meio
das fantasias do príncipe. As montagens provocam o leitor a “[...] tornar manifestas
as contradições do Ser. Formar visões justas despertando contradições na mente
do espectador”. (EISENSTEIN, 2002, p. 50). É o choque de ideias e visões
despertando, contradições entre o que o “eu” achava certo e o novo que se
renovará. Metaforicamente falando, é o grilinho que fica zunindo no ouvido,
incomodando até se tomar uma posição ou solução para ver-se livre do barulho
77
que incomoda. Por meio de símbolos o autor provoca o relembrar, o refletir,
gerando conflitos no leitor que em muitos casos se mantém em uma posição de
estranhamento.
Esses símbolos vão sendo montados nas películas do filme formando toda a
trama. “A montagem tem um significado realista quando fragmentos isolados
produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema, isto é, a imagem
que incorpora o tema.” (EISENSTEIN, 1990, p. 26).
São essas composições e justaposições que invocarão no espectador a
consciência e os sentimentos que envolvem toda a trama ali representada através
de toda a montagem do filme, que remetem a ideia original ou tema do autor.
Dessa forma, pode-se destacar outra categoria estética: Pesquisa e processos
criativos.
Nesse filme, pode-se destacar, como arte criação, a possibilidade da
produção de algo novo que se relaciona com a nova realidade social em que o
sujeito está inserido. (PEIXOTO, 2003). Construindo emaranhados impensados, o
filme apresenta abismos para discutir a vida do homem contemporâneo como
aquele que é dividido e hostil a si mesmo. O espectador divaga por cinco planetas,
cada um encerra uma lógica de vida diferente da outra, em cada um vai mostrar a
mesquinhez humana. O primeiro planeta mostra a avareza do ser humano que não
quer dividir nada, representado pelo rei; o segundo planeta mostra o egoísmo do
ser humano através do homem de negócios; o terceiro planeta mostra o historiador
que quer ser o dono da verdade; e o quarto planeta mostra a general, denotando a
autoridade que muitos querem ter. No entanto, a questão do enredo não interessa,
o que interessa é que devido às possibilidades sinestésicas e comunicativas que o
filme apresenta, o espectador é levado a um desvio que o auxiliará a construir e a
reconstruir o enredo. É a presença de mais uma categoria estética nesse filme: O
princípio da reversibilidade. Em O Pequeno Príncipe, cada planeta é construído
pelo cineasta por meio dos focos visuais. O planeta do menino, por onde ele circula
em sua totalidade, pode ser comparado à casa a qual se tem o domínio - sabe-se
para onde se vai, sabe-se a sua ordem; é, assim, um refúgio. Segundo Eliade,
[...] construir uma cidade, uma nova casa, é imitar mais uma vez e, em certo sentido, repetir a criação do mundo. Com efeito, cada cidade, cada casa, encontra-se no „centro do universo‟ e, nessas circunstâncias, a sua construção só é possível graças à abolição do
78
espaço e do tempo profanos e à instauração do espaço e do tempo sagrados. A casa é um microcosmos, do mesmo modo que a cidade é sempre uma imago mundi. (ELIADE, 1993, p. 305).
Pode-se compreender que é o mundo representado por intermédio dos seus
simbolismos, que podem ser as imagens, as fotos, etc., ou seja, a sua forma de
representar o mundo na casa onde se vive. No filme cada planeta é representado
de uma forma, podendo ser, assim, interpretado como casas diferentes com uma
ordem própria. Podemos ver as representações desses planetas nas imagens a
seguir:
Imagem 10 - Planeta do menino
Fonte:Filme em DVD - O Pequeno Princípe (2009).
79
Imagem 11 - Planeta do Rei
Fonte:Filme em DVD - O Pequeno Princípe (2009).
Imagem 12 - Planeta do Homem de Negócios
Fonte: Filme em DVD - O Pequeno Príncipe (2009).
80
Imagem 13 - Planeta do Historiador
Fonte:Filme em DVD - O Pequeno Princípe (2009).
Imagem 14 - Planeta do General
Fonte:Filme em DVD - O Pequeno Princípe (2009).
Esse movimento do menino pelos planetas parece ser um movimento cíclico
em busca de seu conhecimento, conforme mostra a figura a seguir:
81
Figura 13 - Visita aos planetas
Fonte: Elaborada para fins de pesquisa.
As imagens desfocadas quando o príncipe encontra-se com o historiador
são elementos artísticos e estilísticos que demonstram bem o conflito de ideias
recônditas que o autor tenta suscitar no leitor/espectador, para colocá-lo em uma
situação desconfortante em que o próprio príncipe encontra uma saída
estruturando novamente suas ideias.
Luis Buñuel (2003), em seu artigo Cinema: instrumento de poesia, faz
algumas considerações pertinentes que contribuem para a análise de O Pequeno
Príncipe, dentre elas de que o cinema é "o melhor instrumento para exprimir o
mundo dos sonhos, das emoções, do instinto” (BUÑUEL, 2003, p. 336). Essa
expressão com certeza exprime da melhor forma como as imagens
cinematográficas desse filme aproximam o espectador de um estado de sonho,
uma incursão pelo inconsciente. Segundo Buñuel, filmes que expressam o sonho
trazem para a tela imagens que "aparecem e desaparecem mediante fusões e
escurecimentos; o tempo e o espaço tornam-se flexíveis, prestando-se a reduções
e distensões voluntárias”. (BUÑUEL, 2003, p. 336). Ao flexibilizar o tempo e o
espaço, a realidade é transgredida e o espectador coloca-se em outro tempo e em
outro espaço. Deleuze (1990), à luz dos conceitos filosóficos de Bergson, propôs
82
um novo olhar, um novo pensar sobre o tempo, que não é o cronológico, é o
movimento até onde as relações mentais e psicológicas possam entrar.
Silva e Rebeca mostram um significado bem preciso do que seria a imagem-
sonho: “O sonho. Imagem virtual que se atualiza indiretamente através de outra
imagem. Uma série de anamorfoses que traçam um grande circuito. Um devir que
pode prosseguir ao infinito.” (SILVA; REBECA, 2010, p. 86).
Tanto Buñuel e Deleuze, como Silva e Rebeca, apresentam um conceito de
tempo que se mostra ao espectador no filme O pequeno príncipe por meio do jogo
de imagens ópticas e oníricas que levam o espectador a metamorfosear-se, ou
seja, pode levá-lo a mudanças, a transformações.
Buñuel enfatiza que o mistério e o fantástico são categorias inerentes ao
bom cinema, do cinema escapista, "que desdenha a realidade cotidiana" (BUÑUEL,
2003, p. 337), as quais diferenciariam o cinema arte de produções banais, de uma
comédia bufa ou de um tosco folhetinesco, calcadas no sentimentalismo e no
conformismo, características que colocam o espectador em uma zona de conforto.
Ao contrário, o cinema escapista, como O Pequeno Príncipe, desequilibra o
espectador porque seu jogo de imagens e sons é produção de um modelo de
cinema arte própria para articular as ideias, mas de forma bem sucinta, que ao
mesmo tempo em que parece ser uma obra frágil, infantil, é forte e constrangedora,
no sentido de levar o espectador a uma confusão de sensações que incomodam,
mas que ao mesmo tempo é confortante.
O livro O pequeno príncipe é um clássico para todas as idades e para
diversas gerações, um cânone, do qual foi produzido o filme aqui analisado. Esse
olhar mais apurado, voltado para seus elementos estéticos, faz compreender as
suas várias linguagens, em que o enredo pouco importa, mas sim todos os
elementos que constituem essa obra e que levam a compreendê-la como uma obra
fílmica. Para finalizar este capítulo, e, para reflexão, citam-se as palavras de
Calvino,
E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran [...] “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. „Para que lhe servirá?‟, perguntaram-lhe. „Para aprender esta ária antes de morrer‟. (CALVINO, 1995, p.16, grifos do autor).
83
6.3 O AUTO DA COMPADECIDA: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Não sei, só sei que foi assim... O Auto da Compadecida (2000).
Imagem 15 – O Auto da Compadecida
Fonte:Filme em DVD - O Auto da Compadecida (2000).
“Não sei, só sei que foi assim...” é o jargão mais utilizado durante o filme
pela personagem Chicó todas as vezes que ele finaliza alguma história, como uma
forma de mostrar que ele sabe sobre o que está contando, mesmo que ele não
saiba a origem. O Auto da Compadecida é uma obra que apresenta as crendices
do povo nordestino que estão relacionadas à religião, aos mitos e às lendas que
passam de geração em geração, por isso que a personagem sempre finaliza suas
histórias com esta fala: “Não sei, só sei que foi assim...”.
O filme O Auto da Compadecida foi lançado no ano de 2000, com a direção
de Guel Arraes e roteiro de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, baseado
na obra de Ariano Suassuna (1955).
A obra conta a história de João Grilo e Chicó, dois nordestinos sem eira nem
beira, que andam pelas ruas do vilarejo de Taperoá, sertão da Paraíba, anunciando
A Paixão de Cristo, "o filme mais arretado do mundo". A sessão é um sucesso, eles
conseguem alguns trocados, mas a luta pela sobrevivência continua. João Grilo e
Chicó preparam inúmeros planos para conseguir um pouco de dinheiro. Novos
84
desafios vão surgindo, provocando mais confusões armadas pela esperteza de
João Grilo, sempre em parceria com Chicó, mas a chegada da bela Rosinha, filha
de Antonio Moraes, desperta a paixão de Chicó, e ciúmes do cabo Setenta. Os
planos da dupla, que envolvem o casamento entre Chicó e Rosinha e a posse de
uma porca de barro recheada de dinheiro, são interrompidos pela chegada do
cangaceiro Severino e a morte de João Grilo. Todos os mortos reencontram-se no
Juízo Final, onde serão julgados no Tribunal das Almas por um Jesus negro e pelo
diabo. O destino de cada um deles será decidido pela aparição de Nossa Senhora,
a Compadecida e traz um final surpreendente, principalmente para João Grilo.
É uma obra com muitas simbologias, em que se podem explorar vários
recursos e linguagens retratados nas cenas. As cores, as roupas, o cenário, as
personagens apresentam os costumes do sertão nordestino. A temática apresenta
a luta do bem contra o mal. O bem é retratado por Chicó, em toda sua ingenuidade;
e o mal por João Grilo, Dorinha, o padre, o bispo, dentre outros, os quais querem
sempre levar vantagem em tudo. Róder argumentando sobre as personagens
criadas por Ariano Suassuna diz
[...] ancoram-se na realidade rural nordestina e submetem-se a mais alta autoridade possível: a de Deus. Porém, antes disso ocorrem submissões que poderiam ser identificadas como “menores”, quais sejam; autoridades do senhor da terra, do patrão, do pai, do marido etc. Desta forma o escritor tematiza, prioritariamente, a situação daqueles que se encontram em posição inferior na ordem social, segundo a ideologia própria dos folhetos de cordéis. (RÓDER, 2009, p. 73).
Em se tratando do perfil de uma sociedade, a obra coloca-se no mesmo
patamar da peça de Gil Vicente, O Auto da Barca do Inferno. Ariano Suassuna
mostra a realidade da sociedade nordestina, e Gil Vicente oferece uma amostra de
como era a sociedade lisboeta nas décadas iniciais do século XVI3. Róder ao falar
sobre o repertório de Ariano argumenta,
Na análise mais profunda, ou até mesmo numa simples leitura é possível identificarmos elementos determinantes que fazem com
3 A obra O Auto da Barca do Inferno pode ser encontrada na íntegra neste endereço:
http://xoomer.virgilio.it/jornallasalle/bv000107.pdf.
85
que um texto mantenha relações textuais com outros textos, num claro processo de intertextualidade. (RÓDER, 2009, p. 72).
Sendo assim a obra de Ariano mantém essa conversa com a obra de Gil
Vicente, como aponta Róder, quando argumenta sobre os diálogos presentes tanto
na obra de Ariano como de Gil Vicente:
Outro exemplo deste presente diálogo com cultura erudita, expressa-se através de alguns personagens alegóricos, como heranças dos Autos de Gil Vicente que representam arquétipos da sociedade cristã medieval, com figurações da luta maniqueísta entre o Bem e o Mal, sem posições intermediárias de tal forma que todos pertencem ou ao mundo celeste ou então ao mundo infernal, os quais representam o sobrenatural, atuando também como função narrativa e épica, bem como, para a conclusão moralizante. (RÓDER, 2009, p. 73).
Além disso, para Róder, a obra de Ariano tem traços de temas romanceiros
europeus “especialmente o francês e outros de origem oriental; dos mouros, judeus
e ciganos; legados à cultura nordestina através da interferência ibérica” (RÓDER,
2009, p.75, grifo nosso). Assim, através de Portugal, foram legados elementos
culturais com fortes traços arcaicos e cosmopolitas, dessa forma, outro critério
estético que se pode observar é: permite relações intertextuais, porque a obra de
Ariano permite conexões com outros textos, conforme aponta Róder.
Dois elementos que possuem características opostas ganham os holofotes
nessa obra: o Mal e o Bem que, também, pode-se traduzir por Diabo e Deus. Há
uma oposicão de valores que leva o leitor a refletir sobre uma luta interior entre o
bem e o mal - oposição bem retratada pelos protagonistas João Grilo e Chicó. O
julgamento do bispo, do padre, do padeiro, da mulher, do João Grilo, é uma cena
que exemplifica bem essa oposicão de elementos em que o fogo representa o mal,
o inferno, trazendo o Diabo como personagem; e o bem, representado por Jesus
Cristo e Nossa Senhora. O fato de termos presente no filme O Auto da
Compadecida a oposição entre o bem e o mal, revela que ele é lugar de diálogo e
confronto de ideias, pois o espectador pode experimentar outras formas de ver,
sentir e ler a realidade, provocando o relembrar. Por intermédio de metáforas e
símbolos, o cineasta provoca o relembrar, o refletir, renovando velhos significados
entre a questão do bem e do mal.
86
Há, também, elementos importantes que se contrapõem nas cenas: anjos e
demônios, o jogo de imagens com o passado e o presente de forma não linear; são
elementos artísticos e estilísticos, outro critério estético observado nesta obra.
Figura 14 – Metáforas em O Auto da Compadecida
Fonte: Elaborada para fins de pesquisa (2000).
Essa imagem mostra alguns dos elementos que compõem o universo do
filme que surge em forma de metáforas. De acordo com Teixeira e Lopes (2008),
”metáforas são analogias para se representar a imaginação” e podem auxiliar a
compreensão de ideias, assim como ampliam suas possibilidades interpretativas. A
fumaça do cigarro é, por exemplo, como uma cortina que se abre para uma nova
história narrada pela personagem Chicó. As imagens desenhadas em preto e
branco são para lembrar de que se trata de um corte na narrativa, uma história
dentro da história. Além disso, é uma obra que apresenta a sátira social, pois
acontece em uma cidade do nordeste e possibilita enxergar sua sociedade por
meio de seus personagens, seus casos e suas histórias.
87
Pode-se ver, também, ainda sobre esta chave do nacional e popular, a profunda sátira social que está contida no filme. Para esta sátira é empregada uma linguagem visual, palpável e concreta – são casos, estórias, fatos evocados. (PEREIRA, 2006, p. 5).
As metáforas mostram-se carregadas de uma dimensão simbólica e
instigam a pensar na representação daquela história. A obra possui uma
pluralidade de vozes, que pode, como diz Linhares, renovar os velhos significados.
[...] entrar em contacto com uma produção cinematográfica pode significar uma tentativa de conciliar a escola com outras linguagens – não só as imagéticas, as sonoras e auditivas, mas também, as olfativas, as táteis e as gustativas – usando-as como um trampolim para aproximar-nos mais da vida, em sua infinita complexidade. (LINHARES, 2008, p. 148).
A trilha sonora é um repertório feito para provocar o ouvinte - são vibrações
acústicas que segundo Eisenstein, “[...] não [são] apenas uma forma de
composição, mas ao mesmo tempo o fator básico para a possibilidade da
percepção do tom e de diferenciação do tom”. (EISENSTEIN, 2002, p.54). A trilha
sonora desse filme foi criada especialmente para ele e para cada personagem, são
músicas pernambucanas do grupo Sagrama baseadas nas manifestações da
cultura popular, com uma linguagem mais elaborada e erudita4. As músicas O pulo
da gaita e O aboio têm toques que remetem a lembranças do povo nordestino.
Nessa obra, há caracteres populares e folclóricos. Segundo Sábato Magaldi,
o texto de Ariano Suassuna consegue aliar o “espontâneo ao elaborado, o popular
ao erudito, a linguagem comum ao estilo terso, o regional ao universal”. (MAGALDI,
2004, p. 237). Há uma diversidade de temas em que o popular relaciona-se com o
erudito, ou seja, há uma mistura de culturas, no caso, as crendices do povo
nordestino, a aliança da Igreja com os bens temporais, sendo assim, as
personagens são caracterizadas para dar ênfase a essa diversidade.
As personagens se são necessárias ao desenrolar da trama, sucedendo-se com uma lógica irrepreensível, dão a impressão de que surgem à mercê dos acontecimentos, isto é, são chamadas a
4 Fonte: Música de Pernambuco. Disponível em:
<http://www.musicadepernambuco.pe.gov.br/release.php?idArtista=43>. Acesso em: 15 fev. 2011.
88
participar da ação, pois do contrário, ela não prosseguiria. (MAGALDI, 2004, p. 239).
As personagens alternam-se, por meio das cenas, e os acontecimentos são
sempre algo inesperado. João Grilo sempre está nas cenas contracenando com o
padre, o fazendeiro, o vigário, o padeiro e sua mulher, Dorinha, os cangaceiros,
formando um emaranhado que se desdobra no céu sob a interferência da Nossa
Senhora. Quanto aos personagens criados por Ariano, Pereira (2006, p. 4)
argumenta, “[...] note-se, por exemplo, que os personagens foram caracterizados
de modo exagerado e caricato, o que faz com que o filme tenha inclusive um
caráter frenético na sua montagem”.
Até certo momento, O Auto da Compadecida é uma obra linear, no entanto,
durante o julgamento, quando Nossa Senhora evoca o passado das personagens,
aparecem flashbacks, trocando-se a linearidade pelo confronto de imagens.
O Auto do Compadecida é, assim, uma obra de arte, segundo Magaldi
(2004), católica, vinda das formas medievais que se centra na condenação dos
maus e na absolvição dos bons. Essa filiação religiosa, aproxima-a da arte como
conhecimento, uma obra que mostra bem, nas diversas cenas, a verdade sobre o
povo nordestino, a simplicidade e as crendices de um povo, conforme se pode ver
nas cenas a seguir:
Imagem 16 – A religiosidade em O Auto da Compadecida
Fonte: Filme em DVD - O Auto da Compadecida (2000).
89
Imagem 17 – O Bem e o Mal
Fonte:Filme em DVD - O Auto da Compadecida (2000).
Imagem 18 – Diversidade: mistura de culturas
Fonte: Filme em DVD - O Auto da Compadecida (2000).
90
De acordo com Fantim podemos compreender filmes,
[...] como texto, linguagem, lugar de representação, momento de narração que, com seus múltiplos significados, é uma das formas
como nossa cultura dá sentido a si própria. (FANTIM, 2006, p.104).
Quanto às experiências estéticas, Fantim acrescenta que,
[...] a experiência estética tende a evidenciar e exprimir aquilo que na obra provoca uma intuição e desperta emoção. É manifestada por um juízo expresso através de uma opinião. Assim, a participação estética, que se vale antes de tudo da sensibilidade, não possui garantia nenhuma de que vai ocorrer, uma vez que é construída e atua quando é suscitada em quem a experimenta (como acontece com outras práticas também). (FANTIM, 2006, p. 129).
Segundo Fantim, são esses elementos estéticos que vão sensibilizar ou não
o leitor. Nesse filme o cineasta utiliza-se da simplicidade do povo retratadas em
suas roupas, nas crendices, por intermédio das histórias, da música, com tons que
reportam ao povo nordestino, e a própria literatura de cordel que, de acordo com
Pereira, é:
Poesia encenada, cômica, a ser recitada em voz alta, e em que o verso se transforma em prosa, transmuta-se de narrativa indireta, em que se conta a história de um personagem, em narrativa direta, em que o personagem é visto vivendo a história. (PEREIRA, 2006, p. 3).
Contudo, a experiência estética só pode acontecer se o espectador for
apresentado a ela. Muitas vezes, pode-se apresentar o filme aos interlocutores,
mas não passarão de sensações, pois não foram instigados a perceber essas
novas significações, assim como também não saberão exprimi-las, pois não foram
preparados para isso.
E a beleza deste percurso é que cada espectador, por mais desatento ou seguro que seja em sua aproximação, deixa-se envolver naquilo que nem sempre o filme explicita. O filme com sua história, seus significados e sua linguagem procura antes de tudo uma apaixonante e co-envolvente ilusão de imediaticidade através de suas cores, formas, movimentos, sons. Porém, neste processo
91
da participação estética, o espectador pode ser tomado por uma força misteriosa, experimentando uma sensação de distanciamento em relação àquilo que é proposto. A aparência do mundo à qual o espectador está habituado, os sinais e as representações do seu cotidiano parecem diferentes, fora do lugar, e essa sensação não coincide com qualquer hábito de padronização. (FANTIM, 2006, p. 129).
Quando o espectador é preparado para essa experiência estética, ele vai
passando pelos diversos estágios: primeiramente, ele envolve-se com a história do
filme através de seus elementos como cores, movimentos, sons, e, nesse
processo, ele pode experimentar diversas sensações, as quais o levarão a
submeter-se a experiências diferenciadas, fora daquelas com as quais ele está
acostumado. Fantim argumenta que,
[...] emoção, prazer, gozo e intuição são condições preliminares e necessárias à participação estética, pois o espectador tocado pelas qualidades do filme pode deixar-se seduzir pelo envolvimento suscitado nesse momento. Mas essa apreensão estética inicial também pode permanecer de alguma forma nele e transformar-se. (FANTIM, 2006, p. 130).
O prazer inicial de ver o filme poderá levar o espectador a uma apreensão
estética levando-o a novas experiências nesse campo. Dessa forma, ver o filme é a
condição inicial para tocar o espectador e motivá-lo a passar por essa experiência
estética. Todos os simbolismos do filme,
Cores, timbres, luzes, gestos e histórias estão presos em oscilações permanentes entre aquilo a que o filme se refere e a impressão que ele suscita, e muitas vezes adquire vida própria, desenvolvendo-se, modificando-se, completando-se e contradizendo-se na imaginação de cada espectador. (FANTIM, 2006, p. 130).
Sendo assim, um filme como O auto da compadecida pode, através de seus
elementos estéticos, modificar e contradizer a imaginação do espectador.
92
6.4 O PAPEL DO PROFESSOR
Entendemos a educação como uma complexa e delicada arte de tecer vidas e identidades
humanas, fazendo fruir as capacidades lógico-cogntivas, estético-expressivas e ético-morais existentes, potencialmente,
em cada criança e em cada jovem. Sabemos, ainda que os educadores
também devem ser educados, desenvolvendo tais capacidades e
sensibilidades, para realizarem seu ofício e responsabilidade histórica e social. (TEIXEIRA E LOPES, 2008, p. 9).
Despertar os professores para este mundo maravilhoso de imagens, sons e
movimentos! Este seria o primeiro aspecto para incitá-lo a não didatizar o filme, não
que este procedimento esteja incorreto, mas quer-se um olhar a mais dele (do
professor, e depois dos alunos), para que suas sensibilidades aflorem, e estes
passem a usufruir desta arte: o cinema, não a utilizando, mas sim usufruindo-a,
fruindo-a.
Mas, para que isso aconteça, é necessário que o professor não só assista
ao filme, mas faça leituras de artigos sobre o filme, como diz Teixeira e Lopes
(2008, p. 14) “lapidando seus gostos e formação estética”. Com esse exercício,
com um maior envolvimento com a obra, ele poderá “ter bons momentos de prazer
e fruição” (LOPES, 2008, p. 14, grifo nosso).
Após esse exercício ele, o professor, poderá incitar seu aluno a ter esses
momentos de fruição também, mas lembrando de que o olhar, a visão que cada um
terá, será diferente. É o (des)estruturar da obra, provocações que levarão a
plurissignificações. Dessa forma, o professor poderá tecer novas vidas e
identidades de jovens e crianças.
Thiel e Thiel (2009) argumentam que somente “passar um filme” é como
manusear o livro sem lê-lo. É importante assistir ao filme com prazer, mas devem-
se aprimorar os conhecimentos sobre o filme, dialogar com os alunos sobre os
elementos do filme para que estes possam compreendê-los. Esses elementos são
as imagens, os sons, os movimentos da câmera, a linguagem, o cenário, a
fotografia.
93
Assim, esta obra, o filme, passa a ter outro sentido para o aluno, fazendo-o
refletir sobre ela, e, por meio dessa reflexão, ele passa a fruí-la e a trabalhar sua
capacidade lógico-cognitiva, estético-expressiva e ético-moral, ou seja, ele pode se
tornar um leitor/espectador crítico e rever seus valores.
O papel do professor nesse sentido é o de realizar seu ofício, professor-
mediador com ideais plenos e atingidos, não preconizando seus ideais, mas
ajudando a formar novos.
94
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só sei que nada sei.... Sócrates
Assim como Sócrates, descobri que quanto mais aprendemos, menos
sabemos. Por quê? Porque queremos saber sempre mais, pois estamos abertos a
novos conhecimentos e ressignificações. Essa “fome” de conhecimento é que nos
permite dizer as palavras da citação acima.
Ver filmes sempre foi para mim uma explosão de sentimentos, emoções,
sensações, muitas vezes inexplicáveis diante de todos os elementos: as imagens,
os sons e os movimentos que em composição fazem da obra, seja ela para fins
comerciais, ou não, com começo meio e fim, ou não, algo que realmente “mexe”
comigo. Entender, diferenciar, caracterizar, compreender o que faz de um filme
uma obra de arte foi o diferencial nesta minha caminhada.
Realizar esta pesquisa, em um primeiro momento, era um desafio, e, depois,
foi tornando-se cada vez mais um prazer.
Pesquisar e escrever sobre a aprendizagem na escola há muito se tem feito.
Escrever, pesquisar e falar sobre cinema na escola também é assunto de muitos
debates, artigos, pesquisas. No entanto, a temática ou objetivo dessa pesquisa era
identificar um conjunto de critérios para uso estético de filmes no contexto escolar,
contribuindo para uma compreensão mais ampla do cinema. Neste momento, o
desafio era não ser repetitiva ou apresentar algo óbvio. Muitas leituras de livros, de
artigos, de revistas, de debates em sala de aula, pesquisas em sites, leituras de
documentos, leituras de filmes, tudo contribuiu para que a pesquisa crescesse e
tomasse forma.
Saber que se pode trabalhar com temáticas, com roteiros, com reflexão
acerca de filmes de cinema, todos nós professores sabemos. Mas como se
“encher” desta sétima arte e fazê-la transbordar através de nossas percepções,
sensações, emoções? Como ter esse olhar diferenciado para o que o cineasta, o
diretor querem nos mostrar nas películas? Como ter esse olhar estético? O que é
estética? Quais os critérios para ter esse olhar estético sobre os filmes? Há esses
critérios estéticos em todos os filmes? Como ressignificar? Incomodar?
Reestruturar através dos filmes de cinema? Essas eram questões que surgiam e
lançavam os desafios.
95
Muitos escritores foram pesquisados, mas foram as leituras de Teixeira e
Lopes (2008), Setton (2004) e Vázquez (1999) que contribuíram significativamente
para a compreensão e respostas às questões acima apresentadas. Depois de idas
e vindas chegou-se a sete capítulos.
Toda a pesquisa com suas bases teóricas e o objeto de estudo, o
questionário, concentra-se nos cinco capítulos iniciais. Já o capítulo seis traz a
análise de três filmes com o objetivo de verificar se há objetos estéticos nesses
filmes. Era o treino do olhar com o objetivo de ressignificar e reestruturar ideias e
pensamentos.
Com a análise dos questionários e com base nos conceitos teóricos
analisados, em especial Teixeira e Lopes (2008), seis critérios estéticos básicos
foram elaborados: texto plurissignificativo; permite relações intertextuais; lugar de
diálogo e confronto de ideias; pesquisa e processos criativos; presença de
elementos artísticos e estilísticos e o princípio da reversibilidade. Tais critérios
estéticos auxiliaram na análise dos três filmes escolhidos entre os indicados pelos
professores sujeitos dessa pesquisa: Billy Eliot (2000), O Pequeno Príncipe (1974)
e O auto da Compadecida (2000).
Os critérios estéticos encontrados no filme Billy Elliot foram: texto
plurissignificativo, por ser uma obra aberta a várias possibilidades de
compreensões e leituras; lugar de diálogo e confronto de ideias, pelas mudanças
que se sucedem com as personagens; e elementos artísticos e estilísticos, tais
quais: música, mobília, local, roupas, etc., os quais são trazidos para sensibilizar o
espectador. No filme O Pequeno Príncipe, os critérios encontrados foram: lugar de
diálogo e confronto de ideias, já que o espectador é envolvido em um emaranhado
de representações que o fazem sentir-se confuso; texto plurissignificativo, pelo
encontro do passado com o presente, do presente com o futuro; presença de
elementos artísticos e estilísticos, pelos vários símbolos presentes nessa obra;
pesquisa e processos criativos, pelas composições e justaposições que invocam no
espectador consciência e sentimentos; e princípio da reversibilidade, visto que o
espectador é levado a construir e reconstruir o enredo. Já no filme O Auto da
Compadecida, os critérios encontrados foram: lugar de diálogo e confronto de
ideias, pois o espectador é colocado a experimentar outras formas de ver, sentir e
ler a realidade; permite relações intertextuais, já que a obra conversa com outras,
como O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; e elementos artísticos e
96
estilísticos, os quais são trazidos por meio das várias metáforas carregadas de
dimensão simbólica.
Esses critérios auxiliaram nesse olhar a mais sobre os filmes e foram
elaborados pensando no que Teixeira e Lopes (2008) argumentam sobre a redução
da função estética de um filme, quando se pensa nele apenas como recurso
pedagógico. Em seu livro A Escola vai ao Cinema Teixeira e Lopes (2008) dizem:
“Desejamos que a viagem pelos filmes, textos, perplexidades, imagens e sonhos
desta coletânea seja prazerosa, feliz e envolvente como a Educação e o Cinema”.
(TEIXEIRA; LOPES, 2008, p. 24).
Ao ler-se Teixeira e Lopes (2008), Pino (2005), Vàzquez (1999), Peixoto
(2003), Setton (2004) e outros, assim como, ao se analisar os questionários e os
filmes indicados pelos professores, percebe-se como pode ser difícil compreender
o que é uma análise estética de filmes para alguns profissionais da educação.
Pensando-se assim, vários critérios observados nos filmes foram elaborados.
Contudo, ao tentar explicá-los, muitos se tornaram repetitivos, chegando-se, assim,
aos seis critérios já mencionados.
Após releitura desses autores, com estes critérios já formulados, percebeu-
se que eles transcendem os muros da Universidade, visto que ainda não há nada
parecido para que possam ser estudados e utilizados pelos professores desde a
educação infantil até a pós-graduação, como base para análise estética de filmes.
O filme, como recurso pedagógico, também é uma boa estratégia, conforme
Setton,
A intenção é mostrar a função dos filmes como veículos transmissores de representações, discursos e valores sociais, no sentido de reforçá-los ou questioná-los. Ou seja, observar que ao mesmo tempo em que a ficção midiática tem o poder de retratar uma realidade, toma partido sobre ela. Ao mesmo tempo em que propõe e seleciona a discussão de algum comportamento e/ou padrão de conduta, reforça e legitima outros. (SETTON, 2004, p. 70).
Além de usá-lo dessa forma, pode-se, também, ter este olhar a mais, um
olhar com critérios mais apurados, em que não só o seu enredo é o que vale, mas
sim tudo o que envolve a obra: desde sua montagem até chegar às telas de
cinema.
97
Esse “outro” olhar para as películas do cinema pode auxiliar o professor em
seu dia a dia, ou seja, na sua prática em sala de aula. Não é necessário que ele
seja um expert, perito ou cineasta para compreender como é o processo do
cinema, como se faz o cinema, como se produz um filme. Mas boas leituras a
respeito do que podemos ver a mais nas películas de cinema, além de seu roteiro,
leva o professor a concentrar-se não apenas em achar um fim prático para o filme.
Espero que essa pesquisa seja o ponto de partida para outras com os
objetivos lançados para a comunidade escolar, e que, também, sirva de subsídios
para outros na compreensão deste “outro olhar” para as películas de cinema no
contexto escolar.
As coisas são sempre as mesmas, o que muda é a maneira de vê-las, o que muda é a composição; e como a composição muda, as coisas deixam de ser
o que eram, mudam também. José Carlos Avellar (apud THIEL; THIEL, 2009, p. 89).
98
REFERÊNCIAS
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101
APÊNDICES
102
LISTA DE APÊNDICES
Apêndice A: Termo de consentimento livre e esclarecido 105
Apêndice B: Informações sobre a pesquisa 106
Apêndice C: Questionário aplicado com os sujeitos da pesquisa 107
______________________________________
_______________________________________
103
Apêndice A - Termo de consentimento
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
Centro de Ciências Humanas e da Comunicação
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa.
Após ser esclarecido (a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer
parte do estudo, assine ao final deste documento, que está em duas vias. Uma
delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. Em caso de recusa você não
será penalizado (a) de forma alguma.
INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:
Título do Projeto: CINEMA NA ESCOLA: CONCEPÇÕES E ESTRATÉGIAS
Pesquisador Responsável: Elaine Simões Romual Rebeca
Telefone para contato: 47-9180-0039
Email: [email protected]
Esta pesquisa tem como objetivo investigar qual a concepção de cinema
que os professores possuem, quais os procedimentos empregados no seu uso na
escola e se suas práticas estão em consonância com a concepção indicada. No
transcorrer desta pesquisa será analisado como acontece o processo de
internalização e apropriação da cultura e sua influência no processo de
humanização do homem e serão discutidas as propriedades estéticas do filme O
homem que copiava.
Pesquisadora: Elaine Simões Romual Rebeca
Orientação: Professora Dra. Adair de Aguiar Neitzel
104
Apêndice B - Informações sobre a pesquisa
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
Centro de Ciências Humanas e da Comunicação
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
TÍTULO: CINEMA NA ESCOLA: CONCEPÇÕES E ESTRATÉGIAS
Orientadora: Profª. Drª. Adair de Aguiar Neitzel
Mestranda: Elaine Simões Romual Rebeca
OBJETIVO GERAL
Analisar a concepção de cinema dos professores de uma escola pública de Itajaí
identificando quais os procedimentos empregados no uso de filmes na escola e se
suas práticas estão em consonância com esta concepção.
105
Apêndice C – Questionário aplicado com os sujeitos da pesquisa
QUESTIONÁRIO
1.Você emprega filmes em sala de aula?
( ) sim
( ) não
* Se você respondeu não, vá direto para a questão 9.
2. Qual seu objetivo ao empregar filmes em sala de aula:
( ) promover estratégias de ensino diferenciadas
( ) sensibilizar seus alunos para com o universo da arte
( ) reforçar conteúdos trabalhados em sala de aula
( ) promover a reflexão
( ) Outro: ................................................................
3. Como você geralmente seleciona o filme para seus alunos? (assinale apenas
uma opção)
( )Temática
( ) Cineasta / produção
( ) Indicação de um amigo
( ) Possibilidades pedagógicas
( ) Outra. Qual? ...............................................
4. Que tipo de atividade você geralmente promove com seus alunos após assistir
ao filme?
( ) preenchimento de roteiro
( ) resenha
( ) discussão oral
( ) não há atividade após o filme.
( ) Outra: ............................................................
5. Com que frequência você utiliza filmes?
( ) uma vez bimestralmente
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
106
( ) uma vez no semestre
( ) uma vez no ano
( ) Outra: ...................................
6. Quando utiliza o filme você:
( ) reproduz o filme completo no mesmo dia
( ) o exibe em duas ou três aulas em dias alternados
( ) pede que o aluno assista em casa
( ) reproduz apenas um fragmento
( ) outra: .....................................
7. Você costuma empregar o filme em sala de aula porque considera o filme como:
( ) estratégia pedagógica
( ) arte
( ) arte à serviço da educação
( ) Outro: ................................
8. Cite o nome de um filme que você recomenda e indique o porquê.
Caso você respondeu às perguntas anteriores, não responda a próxima pergunta.
Obrigada pela participação!
9. Por que não utiliza filmes?