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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
DHIAÇUY ROSSI
O DIREITO DE INTERROMPER A GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO
São José (SC)
2010
DHIAÇUY ROSSI
O DIREITO DE INTERROMPER A GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito, na Universidade do Vale de Itajaí, Centro de Educação São José, sob a orientação da Profª. Maria Helena Machado.
São José (SC)
2010
DHIAÇUY ROSSI
O DIREITO DE INTERROMPER A GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharel, e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Bioética
São José (SC), junho de 2010
Profª. MSc. Maria Helena Machado
UNIVALI – Campus de São José
Orientadora
Profª. MSc. Luiza Cristina Valente Almeida
UNIVALI
Membro
Esp. Fabiana Ávila
UNIVALI
Membro
Dedico esta monografia à
minha mãe que é e sempre será
meu alicerce, meu porto seguro,
que sempre está ali quando
preciso dela.
A minha nona que, apesar
de ter falecido há mais de dez
anos, sempre esteve presente em
minha vida e em minhas orações.
AGRADECIMENTO
Agradeço ao meu irmão
Jeferson que sempre me apoiou,
servindo como referência em
minha vida, ensinando-me a
sempre lutar por aquilo que
queremos.
Ao meu namorado Willian,
que foi paciente ouvindo meus
desabafos e frustrações.
As minhas amigas, por
tantas horas que passamos
juntas, pela oportunidade que
ofereceram-me com sua
companhia, por terem dado todo
seu apoio e compreendido minha
ausência no período de
elaboração desta.
Agradeço ao Delegado da
Polícia Civil, responsável pela
Divisão de Anti-Seqüestro – DAS
– Renato José Hendges;
Delegado da Polícia Civil, Diretor
da Delegacia de Investigação
Criminal – DEIC – Carlos Silva
Dirceu, e também ao Agente da
Polícia Civil, Mário Luiz Rocha de
Carvalho, por todo apoio e
disponibilização de materiais para
elaboração da presente.
“Talvez não tenha
conseguido fazer o melhor, mas
Lutei para que o melhor fosse
feito... Não sou o que deveria ser,
não sou o que irei ser. Mas
graças à Deus, não sou o que
era.”
(Martin Luther King)
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a
Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José (SC), junho de 2010
Dhiaçuy Rossi
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a necessidade de
descaracterização do crime de aborto nos casos de interrupção da gravidez de
fetos anencéfalos. Não há como configurar aborto não apenas porque o feto
não conseguirá sobreviver fora do útero materno, mas pela morte antes de
nascer do feto anencéfalo, cuja condição é análoga a morte encefálica, prevista
na Lei de Transplantes. Igualmente não se trata de aborto eugênico e sim da
interrupção de uma gravidez de feto já morto. A Lei dos Transplantes de
Órgãos explica claramente que, em não havendo atividade cerebral, o indivíduo
está clinicamente morto, apesar de continuar respirando artificialmente através
de aparelhos, ou seja, não havendo funcionamento cerebral, não há vida. O
Código Penal Brasileiro especifica apenas que, nos casos de estupro ou de
risco de vida à gestante, pode-se realizar a interrupção daquela gravidez,
porém deixou desamparado os casos da anencefalia.
Palavras chave: Aborto por Anencefalia, Princípios da Bioética, Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental.
ABSTRACT
This present work has an objective to descharacterize the crime of
abortion in cases of pregnancy of an anencephalic fetus. There is no way to set
abortion if the fetus can not survive outside the womb. It is not eugenic abortion,
but the interruption of a pregnancy at birth, the fetus will not have any life. The
law of organ transplants explains clearly that if there is no brain activity the
individual is clinically dead. Although he still breathing through the apparatus
and living in a vegetative state on the bed. If there is not brain, the life can not
exist. The Brazil’s Penal Code specifies only that in cases of rape or where
there is risk of death for pregnant women is legal an interruption of that
pregnancy. However it does not list the cases where the fetus will not survive
after birth.
Key Words: Abortion of Anencephaly, Principles of Bioethics, Petition for
Breach of a Fundamental Precept.
ROL DE ABREVIATURAS
ADPF – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
CNTS – Confederação dos Trabalhadores da Saúde
CP – Código Penal
CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de
outubro de 1988
STF – Supremo Tribunal Federal
SUS – Sistema Único de Saúde
TJ – Tribunal de Justiça
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................13 1 Bioética ...............................................................................................................................15
1.1 Síntese Histórica da Bioética.................................................................................15
1.2 Definições de Bioética .............................................................................................16
1.3 Princípios da Bioética..............................................................................................20
1.3.1 Princípio da beneficência ................................................................................21
1.3.2 Princípio da autonomia ....................................................................................22
1.3.3 Princípio da justiça ...........................................................................................23
2 DIFERENCIAÇÃO ENTRE ABORTO EUGÊNICO E INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ POR ANOMALIA INCOMPATÍVEL COM A VIDA EXTRA-UTERINA ................................................................................................................................26
2.1 Anencefalia e morte encefálica .............................................................................28
2.2 Anencefalia e o Código Penal................................................................................30
2.3 Aborto para a medicina e para os aplicadores do direito..............................32
2.4 Direitos humanos e anencefalia............................................................................33
2.5 Direito à vida e anencefalia ....................................................................................35
3. ANENCEFALIA NO DIREITO BRASILEIRO ...............................................................36 3.1 Breve histórico da anencefalia..............................................................................36
3.2 Primeiros casos de anencefalia analisados pelo judiciário brasileiro.......37
3.3 Interrupção de gestação nas classes sociais de poder aquisitivo
elevado ...............................................................................................................................39
3.4 Pedidos de interrupção de gestação de feto anencefálicos julgados
pelo Judiciário Brasileiro divididos por Regiões Brasileiras ..............................39
3.4.2 Região Norte, Exemplos nos Últimos Três Anos .....................................43
3.4.3 Região Sul, Exemplos nos Últimos Três Anos..........................................46
3.4.4 Região Nordeste, Exemplos nos Últimos Três Anos...............................47
3.4.5 Região Centro-Oeste, Exemplos nos Últimos Três Anos.......................48
3.5 PRIMEIRO PROCESSO A CHEGAR À ÚLTIMA INSTÂNCIA DO
JUDICIÁRIO BRASILEIRO, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .........................49
3.6 ASPECTOS CONCEITUAIS DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO
DE PRECEITO FUNDAMENTAL ...................................................................................50
3.7 ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Nº 54 ....................................................................................................................................51
3.8 ANÁLISE DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54 À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA...........................52
CONCLUSÃO ........................................................................................................................55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................57 ANEXO ....................................................................................................................................60
13
INTRODUÇÃO
Diante do crescente avanço biotecnológico, é possível um
acompanhamento no desenvolvimento fetal com precisão, podendo detectar
anomalias do nascituro, como também situações que tornam incompatível a
sua vida extra-uterina. Diagnosticada a mal-formação por anencefalia, não há
na medicina condições de reverter o quadro. O pressuposto deste estudo visa
demonstrar que o direito não pode ficar estático diante de novas situações
provocadas pelo avanço biotecnológico, principalmente quando no seu próprio
sistema há conceitos sobre os fatos, no caso, o conceito de morte encefálica.
O referencial da questão, ou seja, se o Direito Penal deve ou não regular
a matéria relacionada com a interrupção da gestação de um anencéfalo, visto
que atualmente existem decisões judiciais favoráveis e contrárias à prática do
abortamento, não atinge o bem jurídico protegido pelo Direito Penal, em razão
de que a mãe nesse caso está gerando uma criança sem perspectiva de vida
extra-uterina. A interrupção da gestação vem como uma medida terapêutica já
que os pais não podem levar a gestação até o fim, com a certeza de um final
não esperado. As decisões que autorizam baseiam-se ao sofrimento
psicológico; emocional e físico da mulher gestante.
A autorização da Justiça para se fazer a interrupção de gestações de
fetos anencefálicos é algo difícil de ser aceito e, muitas vezes, em razão da
lentidão do Judiciário, quando concedido, a mãe já teve que carregar por nove
meses um feto que sabia, com plenitude de certeza técnica, que não
sobreviveria, causando-lhe dor, angústia e frustração.
Além de todas as ameaças físicas e psicológicas ao feto e à gestante,
existe a angustiante convivência diária com a realidade e a lembrança
ininterrupta do feto dentro de seu ventre, que raramente irá completar mais que
alguns minutos de vida, após o seu nascimento.
Deste modo, a presente monografia tem por objetivo desqualificar a
interrupção de gestação de feto anencéfalo como aborto, perante o atual
momento jurídico brasileiro. Para isso, serão analisadas decisões judiciais a luz
dos princípios da bioética e do direito. O objeto de estudo, portanto, é a
14
natureza jurídica da gestação de feto anencéfalo.
A monografia está dividida em três capítulos. A metodologia empregada
na fase de investigação foi o método indutivo1. No Capítulo I, é abordado os
conceitos de ética, moral, bioética e os princípios norteadores que servirão
para as análises posteriores deste estudo.
No Capítulo II, faz-se uma explanação acerca das decisões proferidas
pelo judiciário no território brasileiro, sendo que em uma região brasileira, não
houve decisão alguma favorável à interrupção desse tipo de gestação.
Por fim, o terceiro e último capítulo trata da análise das decisões
colacionadas no capítulo precedente à luz dos princípios que regem a bioética.
A presente pesquisa se encerra com as considerações finais, nas quais
são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à
continuidade dos estudos e das reflexões sobre os aspectos de mudança e
entendimentos pelas instituições judiciárias brasileiras.
1 [...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...].Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007.p.104.
15
1 Bioética
1.1 Síntese Histórica da Bioética
A introdução do termo bioética na literatura científica deu-se por Van
Rensselaer Potter, quando o mesmo utilizou no título de seu livro publicado em
1971, Bioética: Ponte para o Futuro. Em seu livro Potter se referia a uma ética
de caráter global ou do meio ambiente. A concepção de bioética como um
campo de pesquisa do ser humano passou a designar a ciência envolvida
direta ou indiretamente com as pesquisas médicas e os limites da atuação
humana2.
A obra de Potter influenciou pesquisadores como Beauchamp e
Childress que publicaram o livro Princípios da Ética Biomédica3. Anteriormente
à utilização do termo por Potter, a palavra ‘bioética’ foi utilizada por um pastor
protestante, teólogo, filósofo e professor alemão, Fritz Jahr, em um artigo
publicado no ano de 1927. Esse texto trazia o reconhecimento de obrigações
éticas com todos os seres vivos, inclusive com os animais utilizados em
pesquisas4.
No ano de 1962, na cidade de Seatle, estado norte-americano de
Washington, criou-se um comitê de ética, no qual várias pessoas o integravam
e tinham como responsabilidade decidir quais pessoas teriam prioridade para
realizar a hemodiálise, procedimento novo na época e a busca pelo tratamento
era maior que sua oferta. Muitas das pessoas que integravam esse comitê
eram leigas em medicina, cujas deliberações levaram em conta a história
clínica e a história de vida dos pacientes5.
2 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 49. 3 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. Traduzido por Luciana Pudenzi 4 http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0716-97602008000100013&lng=es&nrm=iso, acesso em 26 de julho de 2009. 5 http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/6452/A_Historia_da_Bioetica_no_Mundo, acesso em 14 de julho de 2009.
16
Em 1967 o Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano criou
comissões para avaliarem os procedimentos empregados nos estudos com
humanos financiados com recursos governamentais. Esse procedimento tinha
cunho de evitar condutas impróprias em relação à conduta ética mínima exigida
em tais pesquisas. Essa preocupação com as condutas médicas baseava-se
em princípios, conhecidos hoje como os princípios bioéticos6. O médico
holandês André Hellegers estabeleceu critérios bem definidos quanto à
discussão da bioética, tendo um enorme papel na formação da bioética7.
No Brasil, o interesse pelo estudo da Bioética deu-se no anos oitenta,
primeiramente assimilando-se à Bioética norte-americana. Em 1988, a
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, situada em Porto
Alegre, abriu um curso de pós-graduação em Bioética8.
1.2 Definições de Bioética
No mundo existem comitês permanentes de ética instituídos que têm
prestado auxílio quando se trata de assuntos relacionados à bioética, porém
nenhum deles deu uma definição única, certa e definitiva de bioética.
Considerando a diversidade moral, a bioética é um campo que ajuda a
pensar os conflitos decorrentes dessa diversidade. Por haver essa concepção
individual de moral é que se busca o estudo da bioética para tratar dos
assuntos correlacionados.
Em sua obra, Daury cita Potter para seguinte definição de bioética “uma
nova ciência ética que venha combinar humildade, responsabilidade e uma
competência interdisciplinar, intercultural e que potencializava o senso de
humanidade”9.
6 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 49. 7 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 15. 8 PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Bioética na Ibero-América: história e perspectivas. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 39. 9 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte, Mandamentos, p.74, 2003.
17
Extrai-se o seguinte conceito da Grande Enciclopédia Larousse Cultural
como sendo bioética “o conjunto dos problemas colocados pela
responsabilidade moral dos médicos e biólogos em suas pesquisas teóricas ou
nas aplicações práticas dessas pesquisas”10.
Marilena Corrêa11 define desse modo:
[...] a bioética define-se como um campo de conhecimento, problematização e discussão que tem como objeto situações de conflito moral relacionadas à prática da medicina e da pesquisa biomédica, aos processos de saúde e doença, e à conservação da vida. Com o desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas, o objeto da bioética desloca-se também para os processos de produção e de reprodução da vida, que assumem, a partir da polêmica em torna da reprodução assistida, um caráter preponderantemente ético ou bioético. [...].
De acordo com o observado acima, o campo prioritário da bioética é o
da vida, morte e saúde, como também as discussões morais e éticas
decorrentes das situações concretas que os envolvem.
Veja-se a definição dada por Javier Gafo Fernández: “Puede definirse
como el estúdio sistemático de la conducta humana em el área de las ciencias
humanas y de la antención sanitaria, en cuanto se examina esta conducta a la
luz de valores y principios morales*"12.
A palavra ética é derivada do grego ethos, que significa caráter, modo de
ser de uma pessoa. É a ciência da conduta humana. É um conjunto de valores
que norteiam a conduta do ser humano perante a sociedade no intuito de haver
um bom equilíbrio e funcionalidade social, para que ninguém saia prejudicado.
Ética, por essa razão, está ligada a idéia de justiça social.
Peter Singer afirma que “a idéia de se viver de acordo com padrões
éticos está ligada à idéia de defender o modo como se vive, de dar-lhe uma
razão de ser, de justificá-lo”13.
10 Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultura, 1998, p. 779. 11 CORRÊA, Marilena C. D. V., Bioética e reprodução assistida. In Bioética reprodução e gênero na sociedade contemporânea, Brasília: LetrasLivres, 2005.p. 56. 12 FERNÁNDEZ, Javier Gafo, 10 palabras clave en bioética, Navarra: Editorial Verbo Divino, 2000. p. 10. * Pode definir-se como o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências humannas e da atenção sanitária, enquanto se examina esta conduta a luz de valores e princípios morais. Tradução livre da acadêmica. 13 SINGER, Peter. Ética prática. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 18.
18
Moral é o conjunto das normas e preceitos da conduta humana relativo a
determinado grupo social que os estabelece e os defende. Moral é a
determinação do modo de agir, tal qual o ethos. “Por isso que o que é moral,
diz-se que está dentro dos padrões sociais aceitos por aquele grupo social e a
ética extrapolaria o caráter de grupos, sendo, portanto, universal e, inclusive,
se aproximando do Direito. O Direito não pode ser moral, mas deve ser
ético”1
e caráter, que é de onde surge a
necessidade de se estudar a bioética:
o equilíbrio entre custo e benefício no projeto de adiar a morte.
4.
Engelhardt15 fala sobre virtude
[...] Em um contexto moral secular geral, as virtudes são esvaziadas de essência moral. Aquilo que antes eram importantes questões de caráter moral torna-se questão de gosto. O mundo moral da secularidade proporciona, no máximo, os procedimentos para negociação e acordo. Os direitos e obrigações contratuais deslocam aquilo que antes eram ricas linguagens de caráter e virtude. [...] As instituições morais separadas das visões morais que as sustentavam e lhes davam sentido e significado, persistem como preconceitos, sentimento de insegurança, tabus e intuições morais isoladas. Aqueles que acreditam, aqueles que vivem dentro de comunidades morais intactas e possuem visão morais essenciais, não terá problema algum em discernir caráter e virtude. No entanto, perceberão o imenso abismo entre sua visão de florescimento humano e o pouco que pode ser garantido em termos seculares gerais. As moralidades tradicionais e suas comunidades permanecem. [...] Ofereceram uma variedade de bioéticas, muitas vezes com visões diversas das obrigações humanas. Assim, encontramos católicos romanos impedindo tratamentos que podem salvar vidas, que eles consideram indevidamente custosos, enquanto os judeus se acham obrigados a dar tratamento até que o paciente morra. Vistas de fora, as comunidades morais particulares podem ser consideradas supridoras de atraentes variedades de gosto moral. Suas visões podem ser heurísticas, até mesmo para o ecumista cosmopolita, que pode preocupar-se com estabelecer
Como se observa, cada indivíduo em particular tem sua própria
concepção de caráter, virtude e moralidade. O que para alguns é imoral como,
por exemplo, o aborto, para outros se trata de um direito que a mulher tem
14 BUGLIONE, Samantha, Direito, Ética e Bioética: Fragmentos do Cotidiano. Rio de Janeiro. Lúmen Júris. 2009. 15 ENGELHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 43. Tradução: José A. Ceschin.
19
acerca de seu próprio corpo. Enquanto alguns pensam que a mulher deve levar
a gravidez anencefálica até o final, desprezando os riscos que tal atitude
incorrerá para a gestante, outros avaliam a situação e colocam os prós e
contras para interromper essa gestação e ao final tomam a decisão. O que se
tem é a configuração da diversidade moral que, inclusive, é protegida pelo
direito brasileiro a partir do direito fundamental de liberdade de crença e
pensa
na mesma classe social têm
mais f
erem algo, mas sim que, caso essas pessoas
queria
essini e Barchifontaine19 definem da seguinte forma:
hics, vol. 1, introdução, W. T. Reich, editor responsável, 1978).
mento16.
Levando em consideração que cada indivíduo possui seu conceito de
moral, percebe-se que esse conceito individualizado tem determinações
socioeconômicas, ou seja, apesar de cada ser humano ter sua própria
apreciação de moralidade, os que se encontram
acilidade de partilhar do mesmo conceito17.
Essa discussão entre o que é moral ou imoral, vem desde a época de
Platão e Aristóteles, porém até hoje não se tem uma única definição, sendo
que cada pessoa tem sua própria concepção. Com o estudo da bioética não se
busca obrigar as pessoas a faz
m, tenham esse direito18.
P
Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bio (vida) e ethike (ética). Pode-se defini-la como sendo o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar (Encyclopedia of bioet
16 Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 17 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 5 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 67. 18 No presente trabalho vê-se a necessidade de estudar bioética, pois é essa disciplina que visa explicar e analisar assuntos polêmicos relacionados à vida e moral. Não se busca obrigar uma gestante a praticar a interrupção de sua gravidez anencefálica, o que se pretende é que, caso essa gestante, após estar ciente de tudo o que implica a continuidade ou não dessa gravidez, opte por realizar a interrupção sem que para isso precise passar meses e meses buscando autorização judicial para o procedimento, sem que lhe seja imputado a prática do crime de aborto. 19 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 5 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 32.
20
da vida, sendo que cada indivíduo
tem su
hecer que é necessário sair em busca de soluções para os
conflito
esse sentido é importante buscar
auxílio
rir, dentre eles estão à
beneficência, não-maleficência, justiça e autonomia21.
.3 Princípios da Bioética
ncia é o oposto do princípio da
beneficência, o que acabou caindo em desuso.
Pelo conceito acima explicitado, vê-se que a bioética trata dos assuntos
onde se envolvem questões morais e éticas
a própria definição de moral e ética.
Pode-se, em síntese, entender a bioética como uma disciplina científica
que estuda os aspectos éticos da medicina e da biologia, bem como as
relações entre humanos e, também, com outros seres vivos. É o
reconhecimento da pluralidade moral da humanidade e da idéia de que
inúmeras crenças conduzem os temos polêmicos, entre eles o aborto, a
eutanásia e até mesmo a clonagem de seres, tanto humanos quanto animais,
que em razão da globalização, não fazem parte somente do cotidiano médico.
Sua função é recon
s morais20.
A interrupção das gestações de fetos anencéfalos é um exemplo de
situação fática que cria conflitos morais, n
na bioética para pensar no assunto.
A bioética, como qualquer outra área de estudos é regida por alguns
princípios basilares de obrigação que se deve cump
1
Quando da introdução do termo bioética e aplicação da mesma no
campo médico, viu-se a necessidade de haver princípios norteadores, sendo
que separou-se em quatro princípios: princípio da beneficência, princípio da
autonomia, princípio da justiça e princípio da não-maleficência. Entretanto
atualmente consideram-se apenas três os princípios da bioética: beneficência,
autonomia e justiça. O princípio da não-maleficê
20 GARRAFA, Volnei. Introdução à bioética. In Ética, ciência e conhecimento. Itajaí: Editora da Universidade do Vale do Itajaí, 2006. p. 21. 21 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituicão como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 104.
21
1.3.1 Princípio da beneficência
eauchamp e Childress22 conceituam este princípio desta forma:
promovendo seus interesses legítimos e importantes.[...].
do que esse
interes
no, cuidar da saúde, favorecer a qualidade de vida
e man
ra a gestante em questão, independente de seu posicionamento
religioso.
B
Na linguagem comum, a palavra “beneficência” significa atos de compaixão, bondade e caridade. Algumas vezes, o altruísmo, o amor e a humanidade são também considerados formas de beneficência. [...] A beneficência refere-se a uma ação realizada em benefício de outros: a benevolência refere-se ao traço de caráter ou à virtude ligada à disposição de agir em benefício do outro. Muitos atos de beneficência não são obrigatórios, mas um princípio de beneficência, em nossa acepção, afirma a obrigação de ajudar outras pessoas
Segundo exposto acima, a tipicidade deste princípio baseia-se no bem
estar do outro e não apenas no seu próprio e particular interesse. Constitui-se
em pensar nos interesses do próximo, independentemente
se signifique para o seu próprio bem e evitar prejuízos.
O princípio da beneficência demonstra a obrigatoriedade do profissional
da saúde e do investigador em promover, antes de qualquer coisa, o bem do
paciente, fundamentando-se na regra da confiabilidade. Os culminantes desses
princípios constituem-se no mais antigo aspecto da ética médica, quais sejam:
fazer o bem, não causar da
ter o sigilo médico23.
Conforme demonstrado, uma das principais características da bioética é
a atenção, o cuidado com o ser humano. Quando se trata de interromper uma
gravidez de feto anencéfalo, não se pode levar em consideração única e
exclusivamente o pensamento de um grupo particular, mas sim o que esse fato
gerará pa
22 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 282. Traduzido por Luciana Pudenzi. 23 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 107.
22
Com base nesse princípio, deve-se esquecer por um momento o que em
sua concepção é estar cuidando ou ajudando à gestante. Tem-se que pensar
no que a gestante quer que façam por ela.
1.3.2 Princípio da autonomia
O princípio da autonomia também é conhecido como o princípio do
respeito à pessoa e a não-subordinação. Autonomia é permitir que o sujeito
não se submeta aos interesses de outros, sejam eles morais ou econômicos e
possam ter seus próprios interesses reconhecidos. De forma mais jurídica, a
autonomia resulta no fato de que algumas pessoas podem ser responsáveis
pelos seus atos, não podendo implicar culpa a terceiro por uma atitude tomada,
sendo, ainda, um princípio fundamental no Direito Brasileiro24.
Esse princípio é utilizado diariamente por todos os seres humanos,
sejam eles médicos, advogados, desembargadores, professores, comerciantes,
pintores, entre outros profissionais, quando se tem que tomar uma decisão
acerca de assuntos relacionados ao campo da bioética.
Como é sabido, todos são responsáveis pelos seus atos, quer seja no
âmbito civil, quer seja no âmbito penal, salvo exceções quanto aos menores de
idade que, conforme o Código Penal Brasileiro não sabem distinguir o certo do
errado e, em alguns casos, não são penalizados pelos seus atos25 e aqueles
considerados incapazes pelo Código Civil26.
24 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 109. 25 Artigo 27, Decreto Lei nº2.858. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecida na legislação especial. 26 Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
23
Quando uma gestante descobre que seu feto é anencéfalo, a atitude de
procurar auxílio para interromper a gravidez não é por impulso, mas muito bem
pensada, conversada com parentes e inclusive seu médico obstetra. Tomando
a decisão de interromper sua gestação de feto anencefálico, a gestante utiliza
desse princípio para sua deliberação, sabendo as conseqüências que
ocorreram ao interromper a gravidez, porém tendo também consciência do que
ocorrera caso essa gravidez vá até o final, que é o parto seguido da morte do
feto.
1.3.3 Princípio da justiça
No campo da bioética, esse princípio visa garantir uma distribuição justa
e universal dos bens e benefícios da saúde e é colocado ao lado do princípio
da beneficência já que ambos propõem-se ao bem estar das pessoas27.
Achar um conceito para este princípio não é fácil, pois cada ser tem uma
visão única de justiça. Alguns acreditam que possam fazer justiça com as
próprias mãos, esquecendo que é dever do Estado fazer essa justiça.
Com relação a este princípio Daury explica sobre a justiça distributiva:
A expressão ‘justiça distributiva’ não é neutra. Ouvindo a palavra ‘distribuição’, a maioria das pessoas supõe que alguma coisa ou mecanismo utiliza algum princípio ou critério para parcelar um suprimento de coisas. Nesse processo de distribuir parcelas – ou quinhões –, algum erro deve ter-se insinuado. De modo que é uma questão tão aberta se a redistribuição deve ocorrer, se devemos fazer mais uma vez o que já foi feito, embora mediocremente. Contudo, não estamos na situação de crianças que recebem fatias de bolo das mãos de alguém que, nesse momento, faz ajustes de última hora para corrigir o controle desigual da guloseima. Não há distribuição central, nenhuma pessoa ou grupo que tenha o direito de controlar todos os recursos, decidindo em conjunto como devem ser repartidos. O que cada pessoa ganha recebe de outros, que dão em troca de alguma coisa ou como presente. Na sociedade livre, pessoas diferentes podem controlar diferentes e novos títulos de propriedade surgem das trocas e ações voluntárias das pessoas. Não há essa de distribuir (ou de
27 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 111
24
distribuição de parcelas do que há para distribuir) os companheiros em uma sociedade na qual as pessoas escolhem com quem querem casar. O resultado total é produto de muitas decisões individuais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o direito de tomar28.
O que se percebe por justiça na sociedade brasileira são vários
entendimentos, de pessoas diferentes, que os agruparam em Leis, Decretos,
na Constituição Federal. Busca-se equilibrar os entendimentos de justiça
individuais para que possa viver em sociedade e garantir o sentimento de
justiça para todos que ali vivem.
Engelhardt29 define melhor:
A maior parte dos recursos ao princípio da justiça pode ser entendida como, na raiz, uma preocupação com a beneficência. Os princípios de justiça que dão apoio à distribuição de bens conforme uma visão moral particular são exemplos especiais da tentativa de fazer o bem, em Institutes, Justiniano caracterizou a justiça como o “constante e permanente desejo de dar a cada um o que lhe é devido”. Naturalmente, o problema reside em saber o que é devido a quem, e por quê. Por um lado, as interpretações da justiça que se baseiam no princípio do consentimento, como a de Robert Nozick, consideram justas aquelas distribuições que ocorrem sem violência em relação à livre escolha dos proprietários. [...] Tais bases divergentes encontram-se na raiz de complexas reivindicações, como as apresentadas na seguinte afirmação: “É seu direito usar seus próprios fundos privados para a assistência à saúde daqueles que você escolhe e não para outros, mas é errado no sentido de que não mostra reconhecimento da necessidade dos outros”. [...] Naturalmente, existem inúmeras visões particulares concorrentes de justiça distributiva e ação beneficente obrigatória. Estas visões têm raízes nas várias interpretações filosóficas morais essenciais, em relação ao apropriado uso de recursos ou em uma visão moral religiosa ou tradicional.
Para alguns, a interrupção da gestação de feto anencéfalo, é um crime
contra uma vida que está por vir, crendo esses que, por algum certo “milagre”
da medicina, pode reverter o quadro do feto e este vir a nascer saudável e se
desenvolver.
28 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 111. 29 ENGELHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 156. Tradução: José A. Ceschin.
25
Já para outros que passaram por essa experiência e para alguns
médicos ou até mesmo para leigos nessa área, a interrupção da gestação,
nesse caso específico, é uma justiça que abrange mulheres de diferentes
classes sociais, pois, aquelas que não podem pagar um médico particular para
fazer a interrupção sem que ninguém saiba, poderão socorrer-se do Sistema
Único de Saúde para realizar tal procedimento, sem depois ter de responder
um processo criminal por ter pensado primeiramente no seu bem-estar físico,
pois uma gravidez de feto anencéfalo traz riscos muito maiores do que uma
gestação de feto sem esse tipo de anomalia incompatível com a vida30.
Não se quer defender o aborto eugênico, ao contrário, o que se pretende
é dar a gestante o direito de não passar por todos os riscos que uma gestação
de feto anencéfalo produz e muito menos a dor daquela mãe em, após o parto,
ter de providenciar o funeral e enterro de seu filho anencefálico, não se
esquecendo que a anencefalia é uma anomalia incompatível com a vida, o que
não se enquadraria no contexto de uma interrupção eugênica.
30FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 17.
26
2 DIFERENCIAÇÃO ENTRE ABORTO EUGÊNICO E INTERRUPÇÃO DA
GRAVIDEZ POR ANOMALIA INCOMPATÍVEL COM A VIDA EXTRA-
UTERINA
Ao se falar em anencefalia, muitas vezes não se sabe exatamente do
que se trata. Segundo Débora Diniz e Marcos de Almeida “anencefalia é o
exemplo clássico de patologia incompatível com a vida extra-uterina”31.
A interrupção da gravidez de fetos anencéfalos difere-se totalmente das
interrupções eugênicas. Para caracterizar-se a eugenia, Casabona cita a
definição de Galton:
Recordemo-nos que, por eugenia se entendem os procedimentos capazes de melhorar a espécie humana. Como é sabido, foi Francis Galton quem utilizou o termo (eugenics) no Reino Unido, em fins do século passado, e a definiu como a “ciência que trata de todos os fatores que melhoram as qualidades próprias da raça, incluídas as que a desenvolvem de forma perfeita. [...] Galton propugnava o recurso a todos os fatores sociais utilizáveis que pudessem melhorar as qualidades raciais, tanto físicas, como mentais das gerações vindouras32
Tem-se ainda a definição dada por Cancino:
A eugenia costuma ser entendida como a intervenção pré-concebida no chamado pool genético da humanidade com o fim de potencializar a transmissão dos genes que recebem a classificação de “bons” para alcançar melhorias genéticas ao mesmo tempo em que se tenta suprimir, mudar ou anular a expressão e transferência daqueles que se desqualificam. À eugenia tradicional, os conhecimentos genéticos e os conceitos de raça e de classe são consubstancias; assim, os nazistas buscavam potencializar o sangue ariano à custa, inclusive, de eliminação de grupos que não tinham esse sangue, e os movimentos que se inspiravam nas idéias de Galton tratavam de preservar a grandeza das nações, superando os baixos índices de reprodução das classes “melhores dotadas”, levantando barreiras às uniões entre raças: esterilizando os loucos, criminosos e inválidos que viviam entre os pobres, e selecionando cuidadosamente os imigrantes. As decisões
31 COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p.126. 32 CASABONA, Carlos M. Romeo. Do Gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção no genoma humano. São Paulo: IBCCrim, 1999. p. 177.
27
eugênicas foram decisões de política de Estado, não decisões fundadas na liberdade. Dessa maneira, o vocábulo eugenia é empregado com sentido pejorativo e recorda os excessos e extravios políticos, assim como a aplicação deliberada de medidas baseadas em falsidades genéticas na primeira metade do século XX33.
Gisleno Feitosa define anencefalia como sendo:
A ausência parcial ou completa da abóbada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com diversos graus de má-formação e destruição de rudimentos cerebrais. Em suma, anencefalia significa “sem encéfalo”, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa craniana.34
Conforme demonstra o doutrinador, a anencefalia constitui da falta de
encéfalo, qual seja, a falta dos órgãos contidos dentro do crânio. Não se pode
asseverar que um feto que sofre dessa anomalia terá alguma sobrevida extra-
uterina, o que se pode ter certeza é que, sem cérebro qualquer ser humano
não tem vida alguma.
A diferença entre essas qualificações de interrupções gestacionais é que
a eugenia visa uma melhora das raças, como a que Hitler fez com os judeus.
Já a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos ocorre em nome de uma
anomalia fetal incompatível com a vida fora do útero materno, ou seja, o feto
não terá chance alguma de sobreviver após o nascimento, independentemente
de sua cor, raça, religião ou posicionamento social dos pais.
A anencefalia nada mais é do que a má-formação no fechamento do
tubo neural, causando o não fechamento da calota craniana35. Tal anomalia
ocorre entre o 20º e 28 º dia após a concepção e é decorrente, conforme
comprovam estudos, da falta de ácido fólico, bem como de vitaminas como a
B12, no organismo da gestante.36
33 CANCINO, Emilssen Gonzáles. Eugenia: avanço ou retrocesso? In Desafios jurídicos da biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. p. 268. 34FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 18. 35FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In.Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 17. 36 FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 18.
28
2.1 Anencefalia e morte encefálica
Ao tratar deste assunto, tem-se que ter uma idéia de onde termina a vida
do ser humano, uma vez que não se tem uma definição de onde inicia-se a
vida. Segundo a legislação que trata da doação de órgãos, a vida acaba
quando não há mais função cerebral.
A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 199737, em seu artigo 3º regula
quando que poderá haver a retirada dos órgãos, tecidos ou partes do corpo
humano após a morte do indivíduo:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
A lei de doação de órgãos e tecidos, afirma que, em casos de morte
cerebral, pode-se retirar os tecidos e órgãos da pessoa falecida com
autorização da família. Os fetos anencefálicos já “nascem” com a “morte
cerebral”, posto que não possuem tal órgão, que é vital para o desenvolvimento
do ser humano.
A Resolução nº 1.480 de 8 de agosto de 1997 do Conselho Federal de
Medicina38 é que dita os critérios clínicos e tecnológicos a serem utilizados
para a retirada dos órgãos, tecidos ou partes do corpo humano.
Para caracterizar morte encefálica é necessário que se siga um
protocolo, disponível conforme Resolução do Conselho Federal de Medicina nº
1.480 de 08/08/1997, sendo que nesse protocolo deve haver a constatação de:
coma apreceptivo; pupilas fixas e arreativas; ausência de reflexo oculocefálico;
ausência de respostas às provas calóricas; ausência de reflexo de tosse e
apnéia39.
A realização desses exames deve ser feito por profissionais diferentes,
sendo que não podem ser integrantes da equipe de remoção e transplante.
37 http://www.presidencia.gov.br/legislacao, acesso em 20 de julho de 2009. 38 http://portalmedico.org.br/.../1997/1480_1997.htm, acesso em 26 de julho de 2009. 39 http://portalmedico.org.br/.../1997/1480_1997.htm, acesso em 26 de julho de 2009.
29
Além dos exames constantes na primeira parte do protocolo, é
necessário a realização de exames complementares como: angiografia
cerebral; cintilografia radiosotópica; doppler transcraniano; monitorização da
pressão intracraniana; tomografia computadorizada com xenônio; tomografia
por emissão de fóton único; EEG; tomografia por emissão de pósitrons;
extração cerebral de oxigênio40.
Para constatar a morte encefálica, não basta a realização dos exames
constantes na primeira parte do protocolo, é necessário que os exames
complementares sejam realizados para a correta constatação da morte
encefálica.
Engelhardt41 conceitua morte cerebral da seguinte maneira:
Considerando a circunstância de que não têm vida mental os organismos humanos cujos centros do cérebro mais elevado estão mortos (e, portanto não são sujeitos morais, muito menos pessoas), a única base secular geral para hesitação com respeito à adoção de definições de morte dos centros cerebrais mais elevados (na ausência de considerações especiais, por exemplo, religiosas) será orientada pelas conseqüências (questões em parte reconhecidas pela comissão). Devemos observar se os centros cerebrais mais elevados não envolvem risco de um significativo número de determinações falsas positivas, um problema tecnológico provavelmente superável. [...] Certas comunidades, devido a suas crenças, não seriam capazes de aceitar uma definição de morte dos centros cerebrais mais elevados, como muitas não podem aceitar atualmente uma definição de morte de todo o cérebro.
Conforme explicitado acima, a morte cerebral deve ser comprovada via
exames, bem como levar em conta as conseqüências que isso acarreta, ou
seja, quando um indivíduo encontra-se em coma profundo, seu cérebro não
emite mais nenhum sinal de atividade, porém seu corpo continua vivo, pois
está ligado a aparelhos que o auxiliam a respirar e continuar bombeando o
sangue para o coração. Na hora que esses aparelhos forem desligados, o
cérebro, que não emite mais nenhum sinal, a respiração e o coração não
funcionaram para o corpo sair daquele quadro.
40 http://portalmedico.org.br/.../1997/1480_1997.htm, acesso em 26 de julho de 2009. 41 ENGELHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 306. Tradução: José A. Ceschin.
30
Quando a função cerebral do indivíduo não funciona mais e não há
meios de que as funções voltem, tem-se a morte cerebral podendo, nesses
casos, haver a realização de retirada de órgão e tecidos para doação42. Não se
pode afirmar que um feto que não tenha cérebro vá sobreviver fora do útero
materno, já que para se ter função cerebral, princípio de que o indivíduo está
vivo, tem que haver cérebro.
2.2 Anencefalia e o Código Penal
O Código Penal não prevê quaisquer penalizações em casos de aborto
de feto anencéfalo. As únicas hipóteses onde o aborto não é passível de
punição são:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal43
Segundo Débora Diniz, “o aborto é um crime contra a vida e contra uma
pessoa em potencial”44. Um feto ainda não pode ser considerado pessoa, pois
ainda não adquiriu direito, tão pouco pode ser considerado uma pessoa em
potencial, uma vez que tendo ausência de cérebro não terá sobrevida fora do
útero, sendo apenas portador de uma expectativa de direitos.
Engelhardt45 define a morte:
A mera persistência de funções biológicas não é suficiente. Reconhecem-se os centros cerebrais mais elevados como condição para a vida das pessoas, porque eles são necessários até mesmo para uma consciência mínima. Quando
42 Resolução Conselho Federal de Medicina n° 1.826/2007. 43 Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 44 LOYOLA, Maria Andréa (Ord).Bioética reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Brasília: ABEP; LetrasLivres, 2005, pág. 89. 45 ENGELHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 300. Tradução: José A. Ceschin.
31
não há cérebro, não há pessoa. Reconhece-se também que a mera existência do tronco cerebral inferior, da ponte de Varólio e do cerebelo não é suficiente para a vida de uma pessoa (nem para a vida da mente). Mesmo que o tronco cerebral inferior, a ponte de Varólio e o cerebelo estejam intactos e funcionando, eles não garantem por si mesmos a existência de uma pessoa, porque não lhe dá consciência. Em suma, se o cérebro está morto, a pessoa esta morta.
Nos fetos anencéfalos inexiste a presença de cérebro, vivo ou morto.
Portanto, pode-se afirmar que na ausência de cérebro ela também já está
morta.
O artigo 1º do Código Penal46 diz que “não há crime sem lei anterior que
o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Não há o que se falar do
crime de aborto quando o feto não tem cérebro. Tal procedimento é uma
conduta para que não haja mais sofrimento para a gestante.
O único objetivo da interrupção de gestação de feto anencefálico é evitar
danos psicológicos e físicos à gestante, uma vez que, apesar do feto ser
anencéfalo, a mulher corre sérios riscos, pois há um grande número de fetos
com morte intra-uterina, causando grandes e sérias complicações para a
gestante já que a mesma ficará com um feto morto em seu útero.
No que tange este assunto, temos a Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54, onde se extrai “O art. 1º da Lei 9.882/1999 dispõe
ser cabível a argüição de preceito fundamental perante esta Corte, para o fim
de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder
público”47.
Não se quer realizar uma seleção da espécie humana, apenas evitar dor
e sofrimento desnecessários, já que o referido feto não irá sobreviver mais de
alguns minutos, quando chega a um minuto, fora do útero materno.
Portanto, é incabível cogitar como sendo aborto a interrupção da
gestação nestes casos. A lei penal brasileira não prevê punição nos casos de
aborto de feto anencefálico e, como uma premissa legal, não se pode punir
algo que não está defeso em lei48.
46 Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 47 http://www.stf.jus.br, acesso em 10 de agosto de 2009. 48Lei de Introdução ao Código Civil Art. 4°Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
32
2.3 Aborto para a medicina e para os aplicadores do direito.
Para a medicina, o abortamento é a interrupção da gestação até sua
vigésima semana ou quando o feto pesar menos de quinhentos gramas. Já
para os juristas, o aborto é a interrupção da gravidez desde o momento da
concepção, independentemente de quantas semanas ou do peso do feto49.
As Leis brasileiras consideram aborto qualquer interrupção de gestação,
porém com ressalvas dispostas no art. 128 e seus incisos do Código Penal50
que não são consideradas crimes contra a vida.
Acerca do assunto, Mirabete51 conceitua aborto:
Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão. Não deixará de haver, no caso, o aborto. [...] O aborto pode ser espontâneo ou natural (problemas de saúde da gestante), acidental (queda, atropelamento etc.) ou provocado (aborto criminoso|). As causas da prática do aborto criminoso podem ser de natureza econômica (mulher que trabalha, falta de condições para sustentar mais um filho etc.), moral (gravidez extra-matrimônio, estupro etc.) ou individual (vaidade, egoísmo, horror à responsabilidade etc.). Prevê a lei vigente os crimes de auto-aborto e consentimento no aborto (art. 124), aborto sem consentimento da gestante (art. 125) e aborto com o consentimento da gestante (art. 126).
Art. 5ºNa aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum. 49 COSTA, Sérgio; FONTES, Malu e SQUINCA, Flávia. Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 18. 50 Decreto – Lei nº2.848, de 7 de dezembro de 1940 Art. 128. Não se pune aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 51 MIRABETE, Júlio Fabrini, Manual de direito penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 93.
33
Conforme descrito acima, são condenáveis várias formas de aborto,
inclusive os que ocorrem nas primeiras semanas de gravidez, sendo que,
nesse período, inúmeras vezes a mulher desconhece o fato de estar grávida.
Nos casos de fetos anencéfalos, a interrupção da gestação deve estar
enquadrada nos termos do art. 128, II do Código Penal52, pois esse tipo de
gravidez coloca em grande risco a vida da gestante.
No Brasil têm-se Leis que afirmam quando do término da vida53 , porém
não indicam quando ela começa, mas, nos casos de anencefalia, baseando-se
nessas Leis, a vida nunca começou porque nunca existiu cérebro no feto.
A Resolução nº 1.480 de 8 de agosto de 1997, do Conselho Federal de
Medicina dita os parâmetros para ser constatada a morte cerebral, sendo
necessária a realização de exames médicos complementares para sua
constatação54:
Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação da morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral ou, ausência de atividade metabólica cerebral ou, ausência de perfusão sangüínea cerebral55.
De acordo com essa resolução, para estar caracterizada a morte
cerebral, deve haver ausência das atividades acima relacionadas, porém,
quando se trata de anencéfalos, não há como constatar nenhuma atividade ou
sua ausência, uma vez que há ausência do cérebro, portanto, ausência de
suas atividades.
2.4 Direitos humanos e anencefalia
Para alguns autores, direitos humanos e direitos fundamentais são
terminologias utilizadas como sinônimos56, porém, para a bioética são
52 Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 53 Lei nº9.434 de 4 de fevereiro de 1997 – Lei de Doação de Órgãos Humanos. 54 http://www.portalmedico.org.br, acesso em 26 de julho de 2009. 55 http://www.saude.df.gov.br, acesso em 14 de julho de 2009.
34
orientações diferentes. Os direitos fundamentais apresentam-se com gênero,
do qual os direitos humanos são espécies57. Direitos fundamentais são aqueles
inerentes à Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de
1988, já os direitos humanos estão descritos na Carta dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas – ONU58.
Apesar de doutrinadores crerem que ambos direitos são posições
diversas, Daury59 explica desta forma:
Os direitos humanos, assim compreendidos, devem atuar concomitantemente com os direitos fundamentais de cada ordem jurídico-constitucional em particular. Na aplicação de determinado preceito positivado por dado ordenamento particular, deve-se colocar em mira os valores que norteiam os direitos humanos. Verifica-se a necessidade de se promover a reaproximação entre a esfera do Direito, da Moral e da Ética. Há que se destacar, no entanto, que a temática que envolve os direitos humanos deve ser compreendida como uma idéia que deve levar em consideração as mais diversas culturas, sendo o direito à cultura, à língua, por exemplo, desdobramentos desse núcleo, denominado direitos humanos.
Como se demonstra acima, o direito fundamental não pode estar
separado do direito humano e desse mesmo modo não se pode ferir o direito
de uma gestante, que tem dentro de seu útero um feto inviável à sobrevivência
extra-uterina, em optar pela sua saúde e interromper tal gestação.
Quando se fala que a gestação incorre em risco à sua saúde, não se fala
apenas por ser uma gravidez, que é de notório conhecimento que toda
gravidez incumbe em risco à saúde da mulher, pois seu organismo inteiro se
modifica para recepcionar o feto que cresce em seu ventre, mas se fala que
esse tipo de gravidez em particular traz maior risco à saúde da gestante tendo
em vista o grande número de morte intra-uterinas60.
56 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 231 57 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 233. 58 http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php. 59 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 237. 60 FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 19.
35
2.5 Direito à vida e anencefalia
A Constituição Federal/88, em seu art. 5º declara que todos têm direito à
vida, sendo este direito não apenas aos brasileiros, mas também aos
estrangeiros que estão em território nacional61.
A interrupção de uma gravidez de feto anencéfalo não quer afrontar o
direito à vida, pelo contrário, é justamente visando tal direito que se pretende
realizar tal procedimento, pois, como já afirmado anteriormente, as gestações
dessa natureza trazem grande risco à saúde da gestante face do alto número
de mortes intra-uterinas62. É pretendendo manter a gestante viva e saudável
que a interrupção dessas gestações não pode ser caracterizada como aborto,
pois, para configurar aborto, deve-se ter feto viável à vida extra-uterina, o que,
nesses casos, não ocorre.
Há uma grande discussão acerca da realização desse procedimento,
entretanto, não há nenhum entendimento jurisprudencial pacificado, porém, o
judiciário brasileiro demonstra-se sim, favorável à realização desse tipo de
procedimento, visando resguardar a vida e saúde da gestante.
61 Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiro e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, , à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: [...] 62 FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 19.
36
3. ANENCEFALIA NO DIREITO BRASILEIRO
3.1 Breve histórico da anencefalia.
Primeiramente é necessário relatar o significado da anencefalia, qual
seja, ausência no feto dos dois hemisférios cerebrais63. A anencefalia consiste
em malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16º e o 26º dia de
gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota
craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a
formação embrionária. Está é a malformação fetal mais frequentemente
relatada pela medicina, o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o
córtex, havendo apenas resíduos do tronco encefálico64.
A anencefalia não é uma doença dos “tempos modernos”65, porém nas
últimas décadas tornou-se palco de debates na medicina, no direito, na ética e
na religião.
No campo da medicina e saúde, a anencefalia surge quando da
disponibilização do ultrassom, exame que permite o diagnóstico dessa doença
antes do nascimento, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No ano de 1990,
quando se disponibilizou os ultrassons é que se expandiram os
questionamentos acerca de várias doenças, principalmente, da anencefalia66.
Antes de esse exame estar disponível à rede pública de saúde, apenas as
mulheres de classes mais abastadas tinham condições financeiras de fazê-lo.
Com a insurgência desse exame para as mulheres de todas as classes sociais
é que ficou mais conhecida67 a anencefalia, pois as mulheres que não podiam
recorrer a um médico particular para realizar a interrupção da gravidez, em
63 PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola, 2000. p. 243. 64 BEHMAN, Richard E., KIEGMAN, Robert M., JENSON, Hal B. Nelson. Tratado de Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p. 1777. 65 Ao utilizar o termo tempos modernos, quer-se dizer que a anencefalia não é algo que surgiu entre os séculos XX e XXI, como ocorreu com a Síndrome da Imunossuficiência Adquirida (AIDS). Esse tipo de anomalia existe há vários anos, porém somente após o implante do exame de ultra-sonografia no Sistema Único de Saúde – SUS – para detectar esse e outros tipos de anomalias, entre outras funções, é que tornou-se de conhecimento geral da população. 66GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 74. 67 Algo que tornou-se de conhecimento público e geral.
37
razão dessa anomalia, começaram a recorrer ao judiciário para ter o direito da
interrupção deste tipo de gestação.
De acordo com Alcaline68, a freqüência de anencefalia no Brasil é muito
grande:
No Brasil a freqüência estimada de anencefalia é 1:700 nascidos vivos. Seu risco de repetição em famílias sem histórico anterior e sem espinha bífida é da ordem de 5%.
Conforme afirmado acima, a incidência dessa anomalia tem menor
aparecimento quando no histórico familiar não há relatos dessa mesma
anormalidade genética ou de espinha bífida oculta. Contudo, não há na
medicina sobre as causas da anencefalia, se decorrente de fatores genéticos,
externos ou uma conjunção de ambos, há indícios que a falta de ácido fólico
contribui para o mau fechamento do tubo neural, mas este é um entre vários
fatores.
3.2 Primeiros casos de anencefalia analisados pelo judiciário
brasileiro
No ano de 1989 foi concedido, no Brasil, o primeiro alvará judicial para a
interrupção da gravidez de uma paciente gestante de um feto anencéfalo,
ocorrido no município de Ariquemes, estado da Rondônia.
Em sua obra, Thomaz Rafael afirmou que “Na época buscou-se aliar o
conhecimento em medicina ao respeito que as Leis merecem. O magistrado,
ao pronunciar sua decisão, não quis simplesmente autorizar a interrupção
desse tipo de gestação, ele almejou juntar o conhecimento médico com as Leis
brasileiras”69.
Ao conceder o alvará para aquela requerente, o magistrado,
provavelmente, utilizou-se dos princípios da bioética, quais sejam, Princípio da
68 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 75. 69 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 76.
38
Beneficência, “fazer o bem, não causar dano, cuidar da saúde, favorecer a
qualidade de vida e manter o sigilo médico”70; Princípio da Autonomia, “permitir
que o sujeito possa ser responsável pelos seus atos, não podendo implicar
culpa a terceiro por uma atitude tomada71; Princípio da Justiça, “dar uma igual
distribuição de bens conforme uma visão moral particular”72 e o Princípio da
Não-Maleficência, “não infligir dano intencionalmente“73, tratados mais
profundamente no primeiro capítulo.
Outro caso conhecido de concessão de alvará judicial para interrupção
de gravidez de feto anencéfalo, ocorreu em 1992, em Londrina, estado do
Paraná, porém, este caso teve maior repercussão na mídia da época74, em
vista do ano e do acesso do público aos meios de telecomunicação.
O que se pode observar em diferentes análises nos argumentos que
negaram a autorização para interrupção desse tipo de gestação, é que, apesar
de haver uma vasta maioria de decisões favoráveis às mulheres, eles se
baseiam em argumentos religiosos e não técnico-jurídicos75.
No ano seguinte, em 1993, o juiz de direito Doutor Geraldo Pinheiro
Franco, concedeu o alvará, mesmo sendo conhecidamente católico e
totalmente contrário ao abortamento, Thomaz Rafael explica que “Em sua
decisão, o magistrado afirmou que não poderia projetar na sentença seus
valores pessoais, devendo levar em consideração apenas o pedido do casal e
a angústia da gestante”76.
Porém, nem todos os pedidos de concessão desse tipo de alvará são
concedidos. No Brasil, entre os anos de 1993 até 2006, mais de 3.000 (três mil)
alvarás foram concedidos para casos de anomalias fetais incompatíveis com a
70 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 107. 71 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 109. 72 ENGEKHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 156. Tradução: José A. Ceschin. 73 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 209. Traduzido por Luciana Pudenzi. 74 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 76. 75 Buglione, Samantha. A bússola e a balança em tempos de democracias constitucionais: os dilemas e o paradoxo da proteção à vida no Brasil. Florianópolis: UFSC, 2008. p. Tese (Doutorado), Programa de Pós- Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. 76 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 76.
39
vida. Existem casos em que tais alvarás são negados, cerca de três por cento,
em decisão de segunda instância77.
3.3 Interrupção de gestação nas classes sociais de poder aquisitivo
elevado
Na elaboração da presente pesquisa, constatou-se78 que, em sua
maioria, as mulheres que buscam o judiciário para realizar o procedimento de
interrupção da gestação de feto anencefálico, têm poder aquisitivo baixo, ou
seja, são usuárias dos postos de saúde dos municípios e do Sistema Único de
Saúde, para o acompanhamento pré-natal.
Não há nenhuma pesquisa ou estatística elaborada pelo Governo
Federal para se ter dados numéricos de quantas mulheres que utilizam planos
de saúde particulares, quantas que procuram médicos particulares sem planos
de saúde e quantas mulheres que utilizam o Sistema Único de Saúde que
tiveram uma gestação de feto anencéfalo.
3.4 Pedidos de interrupção de gestação de feto anencefálicos
julgados pelo Judiciário Brasileiro divididos por Regiões Brasileiras
Para elaboração dessa pesquisa foram pesquisados todos os Tribunais
de Justiça do Brasil, pelo período dos três últimos anos79. Os acórdãos
selecionados para o presente capítulo são aqueles que concederam a
interrupção de gestações de fetos anencéfalos.
77 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 77. 78 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. 79 Nos anos de 2007 e 2008, os meses pesquisados fora de janeiro a dezembro. Já no ano de 2009, fora pesquisado nos meses de janeiro à setembro.As palavras chaves utilizadas foram: feto anencéfalo; anencefalia, interrupção gestação; vida e aborto. Os sites pesquisados foram: HTTP://www.tjmg.jus.br; http://esaj.tj.sp.gov.br; http://www.tj.sc.gov.br; http://www.tjap.gov.br; http://www.tjrs.jus.br; http://app.tjsc.jus.br/; http://www.tjgo.jus.br; HTTP://www.stf.jus.br.
40
3.4.1 Região Sudeste, Exemplos nos Últimos Três Anos
No estado de Minas Gerais, comarca de Teófilo Otoni, o Desembargador
Pedro Bernardes analisou e julgou procedente o pedido de uma gestante para
a interrupção da gravidez anencefálica. Em sua decisão colocou o seguinte:
[...] A proteção conferida aos nascituros advém da característica de consistirem em seres potenciais, em desenvolvimento para a aquisição de autonomia biológica. [...] Neste ponto, cumpre esclarecer que falar em vida humana e em pessoa humana não é a mesma coisa. [...] Verificado no caso concreto que a imposição à gestante de manutenção de sua gravidez consiste em medida ausente de proporcionalidade e razoabilidade, inflingindo-a e a seus familiares sofrimento injustificado, em infração a sua dignidade, deve-se autorizar a interrupção da gravidez, permitindo a gestante que exerça sua escolha de promover ou não a continuidade de sua gestação que inexoravelmente conduzirá à morte do nascituro em ínfimo lapso temporal. [...] (Apelação Cível nº 1.0686.09.235524-3/001)80.
No teor da decisão, o desembargador juntou inúmeros julgados e
ensinamentos doutrinários para fundamentar sua decisão. Pode-se observar a
aplicabilidade do Princípio do Respeito à Autonomia, o qual afirma que a
pessoa não deve se submeter à vontade dos outros, mas sim que cada um é
responsável pelos seus atos, desde que tenha a liberdade para poder decidir
conscientemente81, “as ações autônomas não devem ser sujeitas a pressões
controladas por outros”82.
Esse desembargador analisou os fatos, buscou informações e, com a
devida clareza, concedeu o direito de a gestante interromper a gravidez do feto
anencéfalo, pois não se tratava de uma vida potencial e sim de um feto que já
nasceria morto pela ausência do cérebro.
Em seu acórdão, ao afirmar que a gestante, após ter ciência de todas as
implicações que podem ocorrer se esta desejar continuar ou não com a
gravidez, o relator aplica o princípio do respeito à autonomia. Posteriormente
80 HTTP://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal, acesso em 26 de julho de 2009. 81 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 109. 82 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípio de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002, p. 143. Traduzido por Luciana Pudenzi.
41
da decisão da gestante, ficará a cargo dela as conseqüências advindas de sua
deliberação.
O princípio da autonomia consiste em “permitir que a pessoa não se
submeta aos interesses de outros e tenha seus próprios interesses
reconhecidos, resulta no fato de que as pessoas civilmente capazes possam
ser responsáveis pelos seus atos, não culpando terceiros pela sua decisão”83.
A aplicação desse princípio se dá pelo motivo de que a gestante após
saber de todas as conseqüências relativas à manutenção ou não de sua
gestação de feto anencéfalo, ela poderá tomar sua decisão sem implicar culpa
a ninguém.
Analisando outra decisão, neste momento do Estado de São Paulo:
Se o Código Penal Brasileiro permite a interrupção da gravidez para expulsão antecipai Ia do feto mesmo naqueles casos em que esse feto tenha conformação viável e apresente perspectiva de vida extra-uterina saudável (art. 128, incisos I e II, CP), não se iria sustentar que, numa situação aflitiva e dolorosa, em presença de feto anencefálico, o rigor empedernido da lei penal devesse impedir que a mulher pudesse, por sua espontânea vontade (tanto quanto no caso de gestação decorrente de estupro), obter a interrupção de uma gravidez c. L, embora desejada um dia depois (graças ao avanço da Medicina) se comprovou ser totalmente inviável. Pelo exposto e em suma, concede-se a segurança para, nos termos do pedido, autorizar a adoção dos procedimentos médicos necessários p a i a interrupção da gravidez da impetrante DENISE APARECIDA PEREIRA TOYAMA, ficando sem efeito a decisão de primeiro grau que a tanto havia indeferido, oficiando-se à origem com urgência (processo n° 902/2005 da Segunda Vara da comarca de Indaiatuba), tudo nos termos do Acórdão. Relator: Pires Neto Mandado De Segurança N° 498.281.3 / 0 - Indaiatuba84.
Na decisão proferida acima, o relator afirma que a decisão por
interromper uma gestação de feto anencéfalo deve vir do mesmo princípio
baseado quando uma mulher é vítima de estupro e engravida. Tal princípio
pode ser interpretado como sendo o princípio da beneficência, que afirma que
“fazer o bem é reconhecer o interesse do outro de forma isonômica”85.
83 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 109. 84 http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/confereCodigo.do, acessado em 26 de julho de 2009. 85 BUGLIONE, Samantha. Direito, ética e bioética: fragmentos do cotidiano. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.
42
Esse princípio reconhece o direito da mulher gestante no que tange ao
seu direito de escolha para a sustentação desse tipo de gestação. A aplicação
desse princípio deve ser norteada juntamente com o mesmo princípio
concedido às vítimas de estupro e que posteriormente descobrem que a
violência sofrida derivou uma gravidez. Tal aplicação não irá contra aos
interesses do feto já que o mesmo não terá nenhuma chance de sobrevida
extra-uterina, posto a ausência do cérebro.
Ainda no teor do acórdão, foi colocada parte da decisão do Ministro
Marco Aurélio de Mello ao conceder a liminar na Argüição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n° 54:
“[...] Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-lo cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar –, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humane1, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. [...] Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de funda da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação. [...] daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na
43
espécie. (In Mandado de Segurança nº 498.281.3/0 – Indaiatuba/SP)86”
Foi com base nessa decisão, nos exames trazidos e laudos médicos
informando a inviabilidade de vida extra-uterina que o relator do acórdão
deferiu o pleito da impetrante, autorizando a mesma a realizar o procedimento
sem cometer crime de aborto. Não se pode autorizar um procedimento desse
porte sem ter, ao menos, exames e laudos médicos que indiquem a não
sobrevivência do feto fora do útero materno, bem como que a continuidade
dessa gestação traga grande abalo emocional e psicológico para a gestante,
levando em consideração, também, a probabilidade desse feto vir a morrer
dentro do útero, causando grande risco à vida da gestante.
3.4.2 Região Norte, Exemplos nos Últimos Três Anos
Outro caso o correu na cidade de Rio Branco, estado do Acre, em que a
gestante ganhou o direito de interromper a gravidez em segunda estância.
Extrai-se do acórdão:
APELAÇÃO CRIMINAL. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. FETO COM ANENCEFALIA. LAUDO MÉDICO ATESTANDO A ANOMALIA.. INVIABILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA. CAUSA SUPRA LEGAL DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. PROVIMENTO. UNÂNIME. 1. A interrupção da gravidez de feto com má-formação congênita – anencefalia -, devidamente comprovada por laudo médico, consoante uma melhor leitura da Constituição Federal, deve ser autorizada, a despeito da falta de previsão legal, ante a incidência de exculpante supra legal, de inexigibilidade de outra conduta, pois não é lícito exigir-se da mãe, ciente da inaptidão vital de seu filho (feto), que leve adiante a gestação sob intenso sofrimento físico e psicológico. Nestes casos, o direito deve volver-se para tutelar a vida da genitora, que está efetivamente exposta a risco. 2. Precedente desta Câmara Criminal (Acórdão nº. 3.320, publicado no DJ nº 2.853, de 21.10.2004). Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº 2006.002735-8, em que figuram como Apelantes Mirna Ventura de Barros e Francisco Duarte Formiga e Apelado Ministério Público do
86 HTTP://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/confereCodigo.do, acessado em 26 de julho de 2009.
44
Estado do Acre, ACORDAM, à unanimidade, os membros da Câmara Criminal do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Acre, dar provimento aos apelos, tudo nos termos do voto do relator e notas taquigráficas arquivadas. (Apelação Criminal n. 2006.002735-8, Rio Branco: Des. Arquilau Melo. Revisor: Des. Felicinao Vasconcelos. j. 07-03-2007)87
O magistrado de primeiro grau que recebeu o processo, não decidiu,
nem por autorizar a interrupção nem por negar, porém declarou-se
incompetente para tratar desse assunto, requerendo que o processo fosse
redistribuído para a Vara da Família, por entender que o magistrado que atua
lá, entenderia melhor do assunto do que ele.
Ao receber o processo, o juiz da Vara da Família despachou informando
que se tratava de pedido excepcional e mostrou-se favorável a conceder o
pedido da gestante, porém solicitou que os defensores da requerente
apresentassem procuração pública contendo poderes especiais, tendo em vista
que a mesma teria que se submeter a ato cirúrgico.
Ao decidir favoravelmente à gestante, o Ministério Público ingressou
com Apelação que, ao chegar à Câmara Criminal, teve sua apelação negada e
o alvará em favor da gestante concedido.
Outro caso de pedido de alvará para interrupção de gestação de feto
anencéfalo ocorreu no Estado do Amapá:
DIREITO PENAL - Jurisdição voluntária - Alvará de autorização judicial para realização de aborto - Feto portador de anencefalia - Anomalia comprovada em laudo médico - Estado depressivo da gestante atestado por laudo psicológico circunstanciado - Consciência da gestante e de seu marido das possíveis conseqüências de um aborto - Interpretação da norma jurídica em consonância com o art, 5º (Lei de Introdução ao Código Civil) - Provimento da apelação - Demonstrados por laudos médico e psicológico a anencefalia do feto, sua incompatibilidade com a vida extra-uterina, o avançado quadro depressivo da gestante por carregar em seu ventre um ser anormal e sua consciência das possíveis seqüelas que podem decorrer de um aborto mal sucedido, impõe-se a interpretação das normas vigentes segundo os fins a que se destinam e à luz das exigências do bem comum, para o fim de reformar a sentença fustigada e deferir o alvará autorizando a interrupção da gravidez. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1. 242/00 Origem: 2ª
87 Diário de Justiça do Estado do Acre edição 3.421, página 4.
45
VARA CRIMINAL DA COMARCA DE MACAPÁ. Relator: Desembargador MÁRIO GURTYEV88.
De acordo com a decisão acima, constata-se que a gestante estava
consciente de todos os riscos que ocorrem no ato de interromper a gestação,
porém, estava bem mais consciente que aquele ser em seu ventre não
sobreviveria após o parto, deixando-a em estado de depressão, além de poder
causar inúmeros prejuízos à sua saúde, uma vez que esse tipo de gestação é
considerada de risco por seu alto número de morte fetal intra-uterina.
O relator cita o art. 5º da LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, que
aduz: “Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum.” Ao utilizar o art. 5º, o desembargador
empregou a lei para o benefício social que ela deve cumprir, bem como a
proteção à vida e saúde da gestante.
Os relatores das decisões acima se utilizaram do princípio da
beneficência. Para um melhor entendimento desse princípio, Beauchamp e
Childrees89 explicam:
[...] A beneficência refere-se a uma ação realizada em benefício dos outros; [...] Além disso, esse princípio se limita ao balanço dos riscos, benefícios e custos (resultantes de ações), e não determina o balanço global das obrigações.
Para utilizar-se desse princípio, o relator buscou entender o sofrimento
que a gestante, desnecessariamente, iria passar e concedeu-lhe a autorização
judicial para a mesma realizar a interrupção de sua gestação.
A tipicidade deste princípio baseia-se no bem estar do outro. Constitui-se
em pensar nos interesses do próximo, independentemente do que esse
interesse signifique ao seu próprio bem.
88http://www.tjap.gov.br/index2.php?option=com_tjap_consultas&task=Juris&Itemid=176&view=detail&objId=3706&oriId=1, acessado em 26 de julho de 2009. 89 BEAUCHAMP, Tom L., CHILDREES, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 282. Traduzido por Luciana Pudenzi.
46
3.4.3 Região Sul, Exemplos nos Últimos Três Anos
Na comarca de Porto Alegre, a gestante ingressou com apelação
criminal para concessão da antecipação do parto face a anencefalia de seu
feto:
APELAÇÃO CRIME. ABORTO EUGENÉSICO. ANENCEFALIA. Inviabilizada a vida do feto, prenunciada sua morte por malformação – anencefalia comprovada –, hão de volver-se, os cuidados, àquela que o gera, então permitindo-se a interrupção da gravidez, que nestes casos a faz exposta a risco. Inteligência do artigo 128, do Código Penal. PROVIDO O RECURSO. (Apelação Criminal nº 70016858253; Des. Rel. Newton Brasil de Leão, j. 28-12-2006).90
Em primeiro grau a gestante não obteve sua autorização para
interromper a gestação do feto anencéfalo que carregava em seu ventre,
porém o desembargador Newton, relator da apelação interposta por ela,
analisou o caso e por astúcia do artigo 128 do Código Penal Brasileiro,
concedeu a autorização para a realização da interrupção da gravidez, pois, ao
analisar toda a documentação juntada ao processo, ficou claro o risco que a
vida da gestante corria, além, é claro, de sua saúde psicológica ficar abalada.
Na ementa do acórdão já se observa a aplicabilidade do princípio da
justiça. Proferindo decisão desta maneira, o desembargador aplicou o princípio
que versa sobre a distribuição justa e universal dos benefícios, sejam eles na
área da saúde ou na área da justiça91.
Em processo oriundo da Comarca de Araquari, Estado de Santa
Catarina, o Desembargador Torres Marques, proferiu a seguinte decisão:
APELAÇÃO CRIMINAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO DEFERIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PRETENDENDO A REFORMA DA DECISÃO. LEI N. 9.434/97 QUE ESTABELECEU O CONCEITO DE MORTE A PARTIR DA PARALISAÇÃO DAS ATIVIDADES DO ENCÉFALO. DEFORMIDADE QUE EXCLUI O CONCEITO JURÍDICO DE VIDA. CESSAÇÃO DA GESTAÇÃO QUE NÃO CONFIGURA CRIME DE ABORTO ANTE A AUSÊNCIA DO BEM JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA INCRIMINADORA. DECISUM
90 http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc, acesso em 26 de julho de 2009. 91 ENGELHARDT, H. Tristam Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 156. Tradução: José A. Ceschin.
47
MANTIDO. RECURSO DESPROVIDO. EXPEDIÇÃO INCONTINENTI DE ALVARÁ JUDICIAL AUTORIZANDO A INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA DE GRAVIDEZ. (Apelação Criminal n. 2008.021736-2, de Araquari. Relator: Des. Torres Marques, julgado em 13/05/2008)92.
Na ementa do acórdão já se observa a aplicabilidade do princípio da
justiça, ao se falar que ante a ausência de bem jurídico tutelado pela norma
incriminadora. Ao proferir desta maneira, o nobre desembargador aplicou o
princípio que versa sobre a distribuição justa e universal dos benefícios, sejam
eles na área da saúde ou na área da justiça93.
3.4.4 Região Nordeste, Exemplos nos Últimos Três Anos
No Estado do Rio Grande do Norte tem-se o seguinte entendimento
jurisprudencial com respaldo em princípio:
Ementa: Constitucional. Alvará De Autorização Para Intervenção Cirúrgica. Feto Portador De Anencefalia. Preliminar De Suspensão Do Processo. Revogação Parcial Da Liminar Em Argüição De Descumprimento De Preceito Fundamental Nº 54 No Supremo Tribunal Federal. Rejeição. Impossibilidade De Sobrevivência Após O Nascimento. Prolongamento Da Gestação A Implicar Sério Risco À Saúde Da Gestante, Especialmente Mental. Consentimento Expresso Do Pai. Autorização Concedida. Recurso Conhecido E Provido. Precedentes. Apelação Cível Nº 2005.005879-0 – Vara Única - João Câmara-Rn Relator: Desembargador João Rebouças94
Ao proferir a decisão acima, o desembargador relator do processo
utilizou-se de dois princípios da bioética, quais sejam, o princípio da
beneficência e o princípio da justiça.
O princípio da beneficência reza que se deve basear no bem estar do
próximo, e não pensar apenas em seu particular interesse.
92 http://www.tj.sc.gov.br, acesso em 1º de abril de 2009. 93 ENGELHARDT, H. Tristram Jr. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola, 1998, p. 156. Tradução: José A. Ceschin. 94 http://www2.tjrn.jus.br/cjosg/pcjoDecisao.jsp?OrdemCodigo=0, acessado em 19 de dezembro de 2008.
48
Já com o princípio da justiça visa-se a garantia de uma distribuição justa
e universal dos benefícios da saúde e, juntamente com o princípio da
beneficência, propõe o bem estar das pessoas95.
Nesta decisão, o juiz de primeiro grau indeferiu o pedido argumentando
que não estava comprovado o perigo à vida da gestante. Entretanto, em
segunda instância foram analisados os mesmos documentos apresentados ao
magistrado a quo, sendo constatada a veracidade da alegação de perigo à vida
da gestante.
Ainda no corpo da decisão, o relator analisou a preliminar de suspensão
do processo até a votação final da ADPF nº 54, conforme consta na Lei nº
9.882/90, no parágrafo 3º do artigo 5º. Todavia, por haver periculum in mora, o
desembargador fundamentou sua decisão utilizando a mesma lei, em seu
artigo 11, empregando o excepcional interesse social, não ficando a decisão da
ADPF nº 54 prejudicada pela concessão desse alvará para a interrupção da
gestação.
3.4.5 Região Centro-Oeste, Exemplos nos Últimos Três Anos
Nessa região brasileira, percebeu-se uma particularidade, apesar dela
ser composta por poucos estados, em apenas um Tribunal de Justiça fora
pleiteado pedidos dessa natureza, num total de seis pedidos96.
Desses pedidos, dois tiveram o objeto prejudico, um teve a perda do
objeto e os outros três, julgados pelo mesmo desembargador, foram negados,
afirmando na decisão que devia-se proteger primeiramente a vida, em especial,
a vida do feto anencefálico.
Na comarca de Goiânia97, a gestante impetrou um Habeas Corpus para
concessão da interrupção de sua gestação de feto anencefálico:
95 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 111. 96 Apenas no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás houve o requerimento para esse tipo de procedimento. 97 http://www.tjgo.jus.br/index.php?sec=consultas&item=decisoes&subitem=jusrisprudencia&acao=consultar, acesso em 26 de julho de 2009.
49
HABEAS CORPUS. NASCITURO. ABORTO. ANENCEFALIA. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. CONCEDIDA. EFETIVAÇÃO DO ATO. PREJUDICIALIDADE. Com a interrupção da gravidez, torna-se sem objeto a impetração, impondo-se a decretação de sua prejudicialidade, nos termos do artigo 659, do Código de Processo Penal. HABEAS CORPUS PREJUDICADO. (Habeas Corpus 35964-0/217, julgado em 16/09/2009, Relatora Desembargadora Amélia Martins de Araújo).
Conforme demonstrado acima, quando o recurso chegou para
julgamento, não havia mais o que fazer pela gestante impetrante, uma vez que
o parto já acontecera.
3.5 PRIMEIRO PROCESSO A CHEGAR À ÚLTIMA INSTÂNCIA DO
JUDICIÁRIO BRASILEIRO, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
No ano de 2004, pela primeira vez na história do judiciário brasileiro, um
pedido de habeas corpus para a realização da interrupção de uma gestação de
feto anencéfalo chegou ao Supremo Tribunal Federal (habeas corpus nº
84.025)98, que foi antecedido pelo habeas corpus impetrado junto ao Superior
Tribunal de Justiça, sob o nº 32.129.
A requerente do habeas corpus – HC de nº 84.025 era de uma jovem de
dezenove anos, do município de Teresópolis, Rio de Janeiro, que teve
constatado em exames que o feto em seu ventre era portador de anencefalia99.
Apesar de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal terem se
pronunciado favoravelmente, não puderam resolver o caso, pois o parto havia
ocorrido quatro dias antes e o feto sobrevivido por meros sete minutos100.
98 Habeas Corpus nº 84.025 – HTTP://www.stf.jus.br, acesso em 10 de agosto de 2009. 99 FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 20. 100 A peregrinação da jovem foi extenuante, vagando a esmo, enfrentando a tediosa espera por decisões judiciais. No dia 6 de novembro de 2003, o juiz de direito de Teresópolis havia indeferido liminarmente o pedido. O Ministério Público do Rio de Janeiro recorreu da decisão em apelação que foi dirigida à Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado. Em 19 de novembro de 2003, uma desembargadora concedeu liminar autorizando a interrupção da gravidez. Tomando conhecimento da decisão, um desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) e o presidente da União dos |Juristas Católicos do Rio de Janeiro interpuseram um agravo regimental à Segunda Câmara Criminal. Em 21 de novembro de 2003, o presidente da Segunda Câmara Criminal suspendeu a liminar
50
3.6 ASPECTOS CONCEITUAIS DA ARGÜIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Para um melhor entendimento do que se trata a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, necessário um sucinto resumo.
A Constituição Federal/88, em seu art. 102, §1º, dispõe que:
Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: §1º a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei101.
No artigo acima citado, percebe-se que é de Competência do Supremo
Tribunal Federal, através da guarda da Constituição Federal/88 a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental. Além da previsão na Constituição
Federal/88, a Lei Ordinária nº 9.882 de 3 de dezembro de 1999102, regula o
processo e julgamento das Ações de Descumprimentos de Preceitos
Fundamentais.
Para uma melhor compreensão, é indispensável saber que o preceito
fundamental são os princípios escritos nos artigos 1º ao 4º da Constituição
Federal/88103.
expedida pela desembargadora. Em 25 de novembro, o colegiado resolveu negar provimento ao agravo regimental, mantendo a decisão que autorizava a realização do aborto. Quatro dias antes de o procedimento ser realizado, o presidente da Associação Pró-Vida de Anápolis impetrou habeas-corpus em favor do feto junto ao STJ (HC 32150-STJ). O despacho, datado de 25 de novembro por ministra desse Tribunal, sustou a autorização até a apreciação final. A diligência foi requerida pelo TJ/RJ às vésperas do recesso judiciário e o habeas-corpus em favor do feto só foi julgado e concedido pela Quinta Câmara do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no dia 18 de fevereiro de 2004. em face disso, foi impetrado um habeas-corpus com pedido de liminar, junto ao STF, em favor da jovem. O relator designado para o caso chegou a divulgar seu voto favorável à interrupção da gestação. Porém não houve tempo de os ministros do STF fazerem o julgamento final, pois no curso do oitavo mês de gestação a jovem deu à luz um anencéfalo, que resistiu sete minutos após o parto. FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em Teresina. In Tópicos em bioética. Brasília: LetrasLivres, 2006. p. 20. 101 http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm, acesso em 20 de julho de 2009. 102 http://www.presidencia.gov.br/legislacao, acesso em 20 de julho de 2009. 103 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a
51
Pode-se observar na própria Constituição Federal/88, a aplicação dos
Princípios tratados no Primeiro Capítulo. A Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental será proposta perante o Supremo Tribunal Federal,
tendo por objetivo evitar ou reparar certas lesões relacionadas ao preceito
fundamental, “[...] quando for relevante o fundamento da controvérsia
constitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,
incluídos os anteriores à Constituição”104.
A argüição de descumprimento de preceito fundamental é uma ação que
tem por singularidade, o parâmetro de controle constitucional mais restrito, ou
seja, não é qualquer n norma constitucional, mas um preceito fundamental, que
no caso é o da dignidade da pessoa humana, relacionado à gestante.
3.7 ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54
O promotor de justiça de Brasília, Diaulas Ribeiro, articulou junto a um
serviço de atendimento às gestantes carentes, no qual elas obtêm alvarás
judiciais em 24 (vinte e quatro) horas e posteriormente são encaminhadas para
uma unidade de atendimento médico-hospitalar do SUS105.
Em 1º de junho de 2004 foi concedida uma liminar pelo Ministro Marco
Aurélio de Mello, que permitia a interrupção da gestação em casos de
soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. 104 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 642. 105 GOLLOP, Thomaz Rafael. Abortamento por anomalia fetal. In Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir. 2006. p. 77.
52
anencefalia sem a necessidade de alvará judicial. Entretanto, em 20 (vinte) de
outubro de 2004 essa liminar foi cassada pelo plenário do Supremo Tribunal
Federal, tendo sete votos a favor e quatro contra106.
No ano de 2008, entre os meses de agosto e setembro, houve uma
audiência pública, onde vinte e cinco pessoas, representantes de conferências,
igrejas, associações, entre outros, expuseram suas fundamentações acerca do
consentimento ou não do direito de interromper uma gestação de feto
anencéfalo; dentre elas estavam médicos, psiquiatras, padres, entre outros107.
3.8 ANÁLISE DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54 À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA
Na data de 17 de junho de 2004, a Confederação dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS) formalizou a Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, considerando a anencefalia, a inviabilidade do feto e a
antecipação terapêutica do parto108.
Na peça inicial, a CNTS argumenta que a antecipação terapêutica do
parto não pode ser configurado aborto, ainda mais se tratando de feto
anencefálico, uma vez que o mesmo não terá chance de sobrevida extra-
uterina109.
Após analisar os argumentos apresentados, o Ministro Marco Aurélio
concedeu liminar autorizando as gestantes de fetos anencefálicos à
procederem a “interrupção da gestação, a partir do laudo médico atestando a
deformidade”110.
Em trechos de sua decisão, pode-se observar a utilização dos princípios
da bioética, que se passará a análise a seguir.
106http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=54&classe=ADPF-QO&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M, acessado em 14/07/09 às 20:43h. 107http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=54&classe=ADPF-QO&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M 108 HTTP://www.stf.jus.br, acesso em 20 de julho de 2009. 109 HTTP://www.stf.jus.brn acesso em 20 de julho de 2009. 110 HTTP://www.stf.jus.brm acesso em 20 de julho de 2009.
53
Denotam-se, claramente, os princípios da Não-Maleficência e
Beneficência, quando o Ministro Relator redige:
[...] Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina [...] 111.
Como visto anteriormente no primeiro capitulo os Princípios de Não-
Maleficência e Beneficência, regem a bioética e, inconscientemente, o dia-a-dia
em sociedade, ao rezar que não se deve prejudicar o ser humano e considerar
o interesse do outro de forma isonômica112.
Ao proferir sua decisão afirmando que a manutenção desse tipo de
gestação, obriga a gestante a sofrer danos físicos, morais e psicológicos,
imputando tal sofrimento a seus familiares também, vê-se que esses princípios
foram aplicados.
Em outro trecho do texto, pode-se novamente observar a aplicabilidade
de princípio da bioética:
[...] Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar – trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade e a autonomia de vontade. [...] 113.
Na transcrição acima se tem a aplicação do princípio da autonomia, qual
seja, permissão para que a pessoa não se submeta aos interesses do outro e
possa ter seu próprio interesse reconhecido114.
Quando a gestante opta por interromper sua gestação de feto
anencéfalo, ela está aplicando esse princípio em sua decisão. Ela não está
111 HTTP://www.stf.jus.br, acesso em 20 de julho de 2009. 112 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 282. Traduzido por Luciana Pudenzi 113 HTTP://www.stf.jus.brm acesso em 20 de julho de 2009. 114 FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 109.
54
tomando-a em razão de que outra pessoa falou para ela realizar esse
procedimento, e o Ministro Marco Aurélio usou-se, também, desse princípio ao
proferir essa liminar.
O último princípio da bioética, porém não menos importante, destaca-se
da liminar:
[...] A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físicos, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo exdrúxula situação [...]115.
Esse princípio, caracterizado no trecho extraído da liminar proferida pelo
Ministro Marco Aurélio, estipula que a justiça deve abranger a todos,
equilibrando a sociedade para garantir o seu pronto atendimento.
Com a interrupção de gestação de feto anencéfalo, não se busca
afrontar o direito à vida, se requer o direito ao não sofrimento por parte da
gestante e seus familiares envolvidos no desenvolver da gestação, que não
terá a felicidade de ver o feto que carrega em seu ventre crescer e viver.
Busca-se a aplicação dos princípios da bioética, bem como aqueles elencados
nos artigos da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
Conforme a Resolução n° 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina,
quando não há mais atividade cerebral, ocorre à morte cerebral. Nos casos de
fetos anencéfalos, eles nascem com ausência do cérebro, portanto não há
como falar em vida nesse caso, posto não haver o órgão que caracteriza a vida
no ser humano.
Portanto vê-se a necessidade de dar o direito de escolha à gestante de
feto anencefálico para poder interromper sua gestação, caso assim deseje,
sem ser comparado ao crime de aborto.
115 HTTP://www.stf.jus.br, acesso em 20 de julho de 2009.
55
CONCLUSÃO
O interesse pelo tema abordado deu-se em razão da quantidade de
nascimento de crianças com anomalias, que poderiam ser verificadas no pré-
natal através da possibilidade de exames tecnológicos hoje existentes e da
divergência ainda encontrada nos Tribunais de Justiça. O presente trabalho
teve como objetivo analisar, à luz dos princípios da autonomia, beneficência e
justiça que regem a bioética, os entendimentos jurisprudenciais brasileiros,
bem como a análise da liminar concedida na ADPF nº 54.
Para seu desenvolvimento lógico, o trabalho está dividido em três
capítulos:
No primeiro fora abordado as especificações acerca de ética, moral,
bioéticas e os princípios que regem essa última, que, inconscientemente, é
utilizado no dia-a-dia em sociedade.
O segundo capítulo foi destinado a pesquisa, em todos os Tribunais de
Justiça do Brasil, acerca das decisões que concederam autorização para
realização das interrupções de gestações de fetos anencéfalos, bem como o
histórico, primeiros casos, levados aos tribunais de primeiro grau e até a última
instância, o Supremo Tribunal Federal.
Quando se fala em aborto, deve-se ter em mente que aborto “configura-
se ato de interrupção de gestação de feto vivo ou com potencialidade de viver a
vida fora do útero materno”. Sendo assim, é evidente que para ocorrer à
configuração do aborto é necessário à existência do feto vivo ou com
potencialidade para viver a vida fora do útero materno e que no caso do feto
com Anencefalia, não existe esta possibilidade, por tratar-se de problema
irreversível conforme foi analisado no corpo do trabalho com nenhuma chance
de vida.
O que de fato ocorre não pode ser caracterizado como aborto, mas sim
uma antecipação do parto para que não ocorram mais riscos relacionados à
saúde física da gestante e também psicológica.
Analisando o número de casos que envolvem gestantes com o problema
do feto com anencefalia, não é possível precisar essa quantia, uma vez que
56
inúmeras gestantes nem sequer chegam a solicitar este tipo de interrupção da
gestação.
No terceiro e último capítulo estudou-se especificamente as decisões
proferidas nos TJs e a liminar concedida na ADPF nº 54 à luz dos princípios da
bioética, posto serem estes os princípios pelos quais os médicos atendem seus
pacientes, que deveriam, inclusive, servirem de base para os magistrados
fundamentarem-se antes de proferirem qualquer decisão, uma vez que, tantos
médicos quanto juízes, tem em suas mãos as vidas de outras pessoas.
A grande inovação representada pela ADPF nº. 54 está em seus efeitos.
Tal decisão tem caráter vinculante e erga omnes, enquanto a ação individual
ou coletiva é de natureza subjetiva e dificilmente poderá atingir esses efeitos.
57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. Traduzido por Luciana Pudenzi. BEHMAN, Richard E., KIEGMAN, Robert M., JENSON, Hal B. Nelson. Tratado de Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. BUGLIONE, Samantha. A bússola e a balança em tempos de democracias constitucionais: os dilemas e o paradoxo da proteção à vida no Brasil. Florianópolis: UFSC, 2008. p. Tese (Doutorado), Programa de Pós- Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. BUGLIONE, Samantha. Direito, ética e bioética: fragmentos do cotidiano. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. CANCINO, Emilssen Gonzáles. Eugenia: avanço ou retrocesso? In Desafios jurídicos da biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. CASABONA, Carlos M. Romeo. Do Gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção no genoma humano. São Paulo: IBCCrim, 1999. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988 CORRÊA, Marilena C. D. V., Bioética e reprodução assistida. In Bioética reprodução e gênero na sociedade contemporânea, Brasília: LetrasLivres, 2005. COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Diário de Justiça do Estado do Acre edição 3.421, página 4.
58
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59
http://www.tj.sc.gov.br, acessado em 1º de abril de 2009. http://www.tjap.gov.br, acessado em 26 de julho de 2009. http://www.tjgo.jus.br, acessado em 26 de julho de 2009. http://www.tjmg.jus.br, acessado em 26 de julho de 2009. http://www.tjrs.jus.br, acessado em 26 de julho de 2009. http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/6452/A_Historia_da_Bioetica_no_Mundo, acessado em 14 de julho de 2009. Lei nº9.434 de 4 de fevereiro de 1997. MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de direito penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2005. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola, 2000. SINGER, Peter. Ética prática. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez: tradução de João Dell’Anna. Ética. 24 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
60
ANEXO
RESOLUÇÃO CFM nº 1.480/97
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958 e, CONSIDERANDO que a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, determina em seu artigo 3º que compete ao Conselho Federal de Medicina definir os critérios para diagnóstico de morte encefálica; CONSIDERANDO que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial; CONSIDERANDO o ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da atividade encefálica; CONSIDERANDO a necessidade de judiciosa indicação para interrupção do emprego desses recursos; CONSIDERANDO a necessidade da adoção de critérios para constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte; CONSIDERANDO que ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros,
RESOLVE:
Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo de declaração de morte encefálica" anexo a esta Resolução. Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens. Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária,
61
conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas c) de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas d) acima de 2 anos - 6 horas Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral. Art. 7º. Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) acima de 2 anos - um dos exames citados no Art. 6º, alíneas "a", "b" e "c"; b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º , alíneas "a", "b" e "c". Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com intervalo de 12 horas entre um e outro; c) de 2 meses a 1 ano incompleto - 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas entre um e outro; d) de 7 dias a 2 meses incompletos - 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48 horas entre um e outro. Art. 8º. O Termo de Declaração de Morte Encefálica, devidamente preenchido e assinado, e os exames complementares utilizados para diagnóstico da morte encefálica deverão ser arquivados no próprio prontuário do paciente. Art. 9º. Constatada e documentada a morte encefálica, deverá o Diretor-Clínico da instituição hospitalar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado. Art. 10. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação e revoga a Resolução CFM nº 1.346/91.
Brasília-DF, 08 de agosto de 1997.
WALDIR PAIVA MESQUITA Presidente
ANTÔNIO HENRIQUE PEDROSA NETO Secretário-Geral
Publicada no D.O.U. de 21.08.97 Página 18.227
IDENTIFICAÇÃO DO HOSPITAL
TERMO DE DECLARAÇÃO DE MORTE ENCEFÁLICA (Res. CFM nº 1.480 de 08/08/97)
NOME:___________________________________________________________________ PAI:______________________________________________________________________
62
MÃE:_____________________________________________________________________ IDADE:______ANOS______MESES_____DIAS DATA DE NASCIMENTO____/____/____
SEXO: M F RAÇA: A B N Registro Hospitalar:___________________
A. CAUSA DO COMA A.1 - Causa do Coma: A.2. Causas do coma que devem ser excluídas durante o exame a) Hipotermia ( ) SIM ( ) NÃO b) Uso de drogas depressoras do sistema nervoso central ( ) SIM ( ) NÃO Se a resposta for sim a qualquer um dos itens, interrompe-se o protocolo
B. EXAME NEUROLÓGICO - Atenção: verificar o intervalo mínimo exigível entre as avaliações clínicas, constantes da tabela abaixo:
IDADE INTERVALO 7 dias a 2 meses incompletos 48 horas 2 meses a 1 ano incompleto 24 horas 1 ano a 2 anos incompletos 12 horas Acima de 2 anos 6 horas (Ao efetuar o exame, assinalar uma das duas opções SIM/NÃO. obrigatoriamente, para todos os itens abaixo)
Elementos do exame neurológico Resultados 1º exame 2º exame Coma aperceptivo ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Pupilas fixas e arreativas ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Ausência de reflexo córneo-palpebral ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Ausência de reflexos oculocefálicos ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Ausência de respostas às provas calóricas ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Ausência de reflexo de tosse ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Apnéia ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO
C. ASSINATURAS DOS EXAMES CLÍNICOS - (Os exames devem ser realizados por profissionais diferentes, que não poderão ser integrantes da equipe de remoção e transplante.
1 - PRIMEIRO EXAME 2 - SEGUNDO EXAME DATA:____/____/____HORA:_____:_____ DATA:____/____/____HORA:_____:_____ NOME DO MÉDICO:__________________ NOME DO MÉDICO:__________________ CRM:____________FONE:_____________ CRM:_____________FONE:___________ END.:______________________________ END.:______________________________ ASSINATURA: ______________________ ASSINATURA: ______________________
63
D. EXAME COMPLEMENTAR - Indicar o exame realizado e anexar laudo com identificação do médico responsável.
1. Angiografia Cerebral 2. Cintilografia Radioisotópica 3. Doppler Transcraniano 4. Monitorização da pressão intra-craniana 5. Tomografia computadorizada com xenônio 6. Tomografia por emissão de foton único 7. EEG 8. Tomografia por emissão de positróns 9. Extração Cerebral de oxigênio 10. outros (citar)
E. OBSERVAÇÕES
1 - Interessa, para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente a arreatividade
supraespinal. Consequentemente, não afasta este diagnóstico a presença de sinais de
reatividade infraespinal (atividade reflexa medular) tais como: reflexos osteotendinosos
("reflexos profundos"), cutâneo-abdominais, cutâneo-plantar em flexão ou extensão,
cremastérico superficial ou profundo, ereção peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de
retirada dos membros inferiores ou superiores, reflexo tônico cervical.
2 - Prova calórica
2.1 - Certificar-se de que não há obstrução do canal auditivo por cerumem ou qualquer outra
condição que dificulte ou impeça a correta realização do exame.
2.2 - Usar 50 ml de líquido (soro fisiológico, água, etc) próximo de 0 grau Celsius em cada
ouvido.
2.3 - Manter a cabeça elevada em 30 (trinta) graus durante a prova.
2.4 - Constatar a ausência de movimentos oculares.
3 - Teste da apnéia
No doente em coma, o nível sensorial de estímulo para desencadear a respiração é alto,
necessitando-se da pCO2 de até 55 mmHg, fenômeno que pode determinar um tempo de
vários minutos entre a desconexão do respirador e o aparecimento dos movimentos
respiratórios, caso a região ponto-bulbar ainda esteja íntegra. A prova da apnéia é realizada de
acordo com o seguinte protocolo:
3.1 - Ventilar o paciente com 02 de 100% por 10 minutos.
3.2 - Desconectar o ventilador.
3.3 - Instalar catéter traqueal de oxigênio com fluxo de 6 litros por minuto.
3.4 - Observar se aparecem movimentos respiratórios por 10 minutos ou até quando o pCO2
atingir 55 mmHg.
4 - Exame complementar. Este exame clínico deve estar acompanhado de um exame
complementar que demonstre inequivocadamente a ausência de circulação sangüínea
intracraniana ou atividade elétrica cerebral, ou atividade metabólica cerebral. Observar o
disposto abaixo (itens 5 e 6) com relação ao tipo de exame e faixa etária.
5 - Em pacientes com dois anos ou mais - 1 exame complementar entre os abaixo
mencionados:
5.1 - Atividade circulatória cerebral: angiografia, cintilografia radioisotópica, doppler
transcraniano, monitorização da pressão intracraniana, tomografia computadorizada com
64
xenônio, SPECT.
5.2 - Atividade elétrica: eletroencefalograma.
5.3 - Atividade metabólica: PET, extração cerebral de oxigênio.
6 - Para pacientes abaixo de 02 anos:
6.1 - De 1 ano a 2 anos incompletos: o tipo de exame é facultativo. No caso de
eletroencefalograma são necessários 2 registros com intervalo mínimo de 12 horas.
6.2 - De 2 meses a 1 ano incompleto: dois eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas.
6.3 - De 7 dias a 2 meses de idade (incompletos): dois eletroencefalogramas com intervalo de
48 h.
7 - Uma vez constatada a morte encefálica, cópia deste termo de declaração deve
obrigatoriamente ser enviada ao órgão controlador estadual (Lei 9.434/97, Art. 13).
ADPF 54 MC/DF* DECISÃO-LIMINAR ARGÜIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO
INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E
5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE -
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO -
FETO ANENCEFÁLICO. 1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de
descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a
inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia,
afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que
este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais,
a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº
9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que
estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta
de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz
da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si
compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos
dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando
à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que,
interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se
a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras
decorrentes do enquadramento no Código Penal. Articula com o envolvimento,
no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade
65
da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e
autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a
literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo
neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e
o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à
sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto
anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo
gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à
mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude
de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração,
resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e
a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de
colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da
Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência
de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código
Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que,
principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública. Sobre a
inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do
parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento
retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo
Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da
admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero
como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº
9.868/99. Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento
de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a
aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação
terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito
constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à
interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que
atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia. O pedido final visa à
declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito
vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código
Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica
do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico
66
habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a
necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra
forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente,
uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida
como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob
esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos
citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem
adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle
concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente. A
argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se
conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e
autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso,
credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26,
anexaram-se os documentos de folha 27 a 148. O processo veio-me concluso
para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-
me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em
21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato. No
mesmo dia, prolatei a seguinte decisão: AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO -
REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE. 1. Eis as informações prestadas pela
Assessoria: A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a
intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme
preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração.
Pede vista pelo prazo de cinco dias. 2. O pedido não se enquadra no texto
legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por
analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação
direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade.
Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito
subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a
inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto
processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de
ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal. 3. Indefiro o pedido. 4.
Publique-se. A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência
dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº
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9.882/99, diante do perigo de grave lesão. 2. Tenho a Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização
do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº
9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da
categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos
a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal. Quanto à
observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra
de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito
fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é
emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria
do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo,
gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis
prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a
relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar,
viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou: A vida é um
bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável,
não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.
O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José
Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento
de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a
autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante
decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a
autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica,
assentando: HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA
A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA.
INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA
RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA
DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO
NASCITURO. 1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses
previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima,
irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já
que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir,
o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro. 2.
Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas
68
acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente
satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus
efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença
de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser
analisado por aquele ou este Tribunal. 3. A legislação penal e a própria
Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem
maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela
estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva,
tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o
princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das
hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o
caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores
da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado,
intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída
de forma propositada pelo Legislador. 5. Ordem concedida para reformar a
decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim,
pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação
interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva
da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo
regimental. Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto,
na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do
parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período
de sete minutos. Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de
entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do
processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha
decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a
nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final
do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra
eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da
Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do
Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente
causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam
enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à
uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando
69
insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e
sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação
jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes -
artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo. Em questão
está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma
pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em
discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do
direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à
preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da
dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher
seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São
nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando
o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu
interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a
sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a
desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes,
reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação
irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos,
postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de
sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da
anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%.
Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos
morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega
ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que
possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na
sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em
impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica,
além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado
na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a
lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser
vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta
que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a
legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido
pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos
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físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o
desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de
preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no
tempo esdrúxula situação. Preceitua a lei de regência que a liminar pode
conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de
decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior,
considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que
esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de
lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos
processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida
acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e
qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de
modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República,
presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para,
diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o
ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-
se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em
julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante
de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir
de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É
como decido na espécie. 3. Ao Plenário para o crivo pertinente. 4. Publique-se.
Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas. Ministro MARCO AURÉLIO Relator *
decisão publicada no DJU de 2.8.2004