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agosto de 2015 Uminho|2015 Universidade do Minho Escola de Direito Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos Conformidade e risco na venda de bens de consumo Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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agosto de 2015

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Universidade do Minho

Escola de Direito

Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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agosto de 2015

Universidade do Minho

Escola de Direito

Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

Conformidade e risco na venda de bens de consumo

Tese de Doutoramento em Ciências JurídicasEspecialidade em Ciências Jurídico-Privatísticas

Trabalho efetuado sob a orientação doProf. Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveirae doProf. Doutor Pedro Romano Martinez

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Nota Prévia e agradecimentos

A presente dissertação corresponde à continuação de um trabalho de investigação

iniciado aquando da elaboração da nossa dissertação de mestrado em Ciências Jurídicas

apresentada na Faculdade de Direito da Escola de Lisboa da Universidade Católica

Portuguesa e discutida publicamente em 16 de março de 2011, perante um júri constituído

pelos Senhores Professores Doutores Pedro Romano Martinez (orientador), Henrique

Sousa Antunes (arguente) e Maria da Graça Trigo.

***

Ao Senhor Professor Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira, que aceitou o encargo da

orientação desta tese, agradeço a disponibilidade sempre demonstrada, bem como os

valiosos ensinamentos que sempre recebi ao longo do meu percurso académico, como sua

assistente, na Escola de Direito da Universidade do Minho. Ao Senhor Professor Doutor

Pedro Romano Martinez, que esteve sempre presente desde os primeiros passos do meu

percurso académico na Faculdade de Direito da Escola de Lisboa da Universidade Católica

Portuguesa, onde fui sua assistente, agradeço ter aceitado o encargo de co-orientar esta

tese. A ambos devo o estímulo e a confiança que sempre me transmitiram.

Agradeço à Escola de Direito da Universidade do Minho a todos os colegas e

amigos que, nesta instituição ou fora dela, acompanharam e incentivaram o meu percurso

académico e ajudaram a criar as condições para que a elaboração desta tese fosse possível.

Por fim, um agradecimento muito especial à minha família: aos meus pais e à minha

irmã, a quem tudo devo; aos meus sogros, por terem estado sempre presentes e dispostos a

ajudar; ao Roberto, meu marido, e aos nossos três filhos pela força e pelo apoio

incondicional.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

Resumo

O propósito do presente estudo é o de analisar o regime da responsabilidade do

vendedor pela falta de conformidade dos bens com o contrato, consagrado na Diretiva

1999/44/CE, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e

das garantias a ela relativas, transposta para o nosso direito interno pelo Decreto-Lei n.º

67/2003, de 8 de abril, e compará-lo com o regime consagrado no Código Civil português.

Ao regime consagrado no nosso Código Civil subjaz uma diferenciação dogmática

entre o regime aplicável à venda de coisa específica defeituosa e o regime aplicável à

venda de coisa genérica defeituosa que se consubstancia numa dualidade de regimes: o

regime (especial) aplicável à venda de coisa específica defeituosa e o regime (geral)

aplicável ao não cumprimento das obrigações. Por outro lado, dada a opção do nosso

legislador histórico de reconduzir o regime da venda específica de coisa defeituosa ao

instituto do erro ou dolo, não é consensual a afirmação de que sobre o vendedor de coisa

específica recaia a obrigação de entrega de uma coisa com qualidades ou isenta de defeitos.

Pelo contrário, a Diretiva 1999/44/CE, com o propósito assumido de contribuir para

a modernização e simplificação das regras dos Estados-Membros sobre a venda de coisas

defeituosas regula a responsabilidade do vendedor com base no princípio da conformidade

dos bens com o contrato, estabelecendo um regime unitário aplicável quer à venda de coisa

específica, quer à venda de coisa genérica. De acordo com o modelo consagrado na

Diretiva a conformidade dos bens com o contrato faz inequivocamente parte do conteúdo

do dever de prestação do vendedor e, portanto, a entrega de coisa defeituosa configura uma

hipótese de incumprimento desse dever.

De acordo com o modelo consagrado na Diretiva, a exigência de conformidade dos

bens com o contrato, afere-se no momento da entrega dos bens ao consumidor. Assim, o

princípio da conformidade dos bens com o contrato tem, como implicação dogmática, a

dissociação da transferência do risco da contraprestação relativamente à titularidade do

direito real e a consequente inaplicabilidade do artigo 796.º, n.º 1, do Código Civil no

âmbito da venda de bens de consumo. Na venda de bens de consumo, o problema do risco

da contraprestação dilui-se no quadro geral do incumprimento da obrigação da entrega de

bens em conformidade com o contrato.

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Conformity of goods with the contract and passing of risk on the sale of consumer goods

Abstract

The purpose of this study is to analyse the regime of the seller’s liability for non-

conforming goods provided by the Directive 1999/44/EC of the European Parliament and

of the Council of 25 May 1999 on certain aspects of the sale of consumer goods and

associated guarantees, transposed into our national law by the Decree-law n.º 67/2003 of 8

April and to compare this model with the regime provided by the Portuguese Civil Code.

The dogmatic model adopted by the Directive is different from the model adopted by our

Civil Code because the Directive, inspired by the 1980 Vienna Convention on the

International Sale of Goods, take as a paradigm the sale of generic and fungible goods and

the Portuguese Civil Code, like the majority of Continental Civil Codes, is based on the

paradigm of the sale of specific and non-fungible goods. Before the Portuguese Civil Code

is at least controversial the statement that the seller has an obligation of deliver goods with

qualities and without defects. Therefore, our Civil Code makes a dogmatic distinction

between the sale of defective specific goods and the sale of defective generic goods. To

this dogmatic distinction corresponds also a distinction between two regimes: a special

regime applicable to the sale of specific defective goods and a general regime applicable to

the non-performance of obligations.

On the contrary, the Directive, which has the purpose to contribute to the

modernization and simplification of the rules of the Member States on sale of defective

goods, regulates the seller’s liability based on the principle of conformity of the goods with

the contract. Under the Directive the seller will be responsible for non-conformity in the

goods existing at the time of delivery. It means that the Directive, like the Vienna

Convention, links the passing of risk with possession of goods: the time of the passing of

risk is the time in which the seller fulfils his obligation of deliver to the buyer goods that

are conforming with the contract. The rule of article 796.º, n.º 1 of Portuguese Civil Code,

which links the burden of risk with the passing of property is not conform to the Directive

and could not be applicable to consumers sales.

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INDICE

INDICE 11

Abreviaturas 17

1. Apresentação do Tema 19

2. Indicação da sequência 28

3. A transposição da Diretiva 1999/44/CE para o direito interno português 29

4. A importância da Diretiva 1999/44/CE no contexto da harmonização do direito privado dos Estados-

Membros 33

5. Matérias reguladas pela Diretiva 1999/44/CE 35

6. Breve referência ao âmbito de aplicação do regime da compra e venda de bens de consumo

consagrado no DL n.º 67/2003, de 8 de abril 36

6.1. Âmbito subjetivo de aplicação 36

6.2. Âmbito objetivo de aplicação 40

PARTE I

O CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS

CAPÍTULO I – Noção e efeitos do contrato de compra e venda 47

1. Noção e aspetos gerais do contrato de compra e venda 47

2. Características gerais do contrato de compra e venda 49

3. Efeitos do contrato de compra e venda 51

3.1. O efeito real do contrato de compra e venda 51

3.1.1. A origem dos vários sistemas de transmissão ou constituição de direitos reais 51

3.1.2. Os vários sistemas de constituição e transmissão de direitos reais no direito comparado 53

3.1.3. A adoção dos princípios da consensualidade e da causalidade no Direito português 55

3.1.4. Venda real e venda obrigatória 56

3.1.5. As exceções aos princípios da consensualidade e da causalidade: reconhecimento da venda

obrigatória no Direito português? 57

3.2. Os efeitos obrigacionais do contrato de compra e venda 60

3.2.1. O dever de entregar a coisa 60

3.2.2. A obrigação de pagamento do preço 64

CAPÍTULO II – A transferência do risco (da contraprestação) na compra e venda 67

1. Introdução 67

2. Breve referência ao âmbito de aplicação dos arts. 795.º, n.º 1, e 796.º 68

3. O n.º 1 do art. 796.º do Código Civil – o sentido e o alcance da regra res perit domino 70

3.1. Breve referência à regra periculum est emptoris no Direito Romano 70

3.2. A regra res suo domino perit no Código Civil de 1867 71

3.3. A conexão entre a transferência do risco e o momento de constituição ou transferência de direitos

reais no n.º 1 do art. 796.º do Código Civil 72

3.4. Os n.os 2 e 3 do art. 796.º do Código Civil 77

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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3.5. Poderá retirar-se do art. 797.º um princípio geral de acordo com o qual o risco se transfere

sempre com a entrega? 81

PARTE II

AS RAÍZES HISTÓRICAS E OS FUNDAMENTOS DOGMÁTICOS DA SEPARAÇÃO ENTRE O REGIME DA

VENDA DE COISA (ESPECÍFICA) DEFEITUOSA E O REGIME GERAL DO NÃO CUMPRIMENTO

CAPÍTULO I – Breve referência à responsabilidade do vendedor pelos defeitos da coisa vendida no Direito Romano 89

CAPÍTULO II – Os fundamentos dogmáticos da separação entre o regime (especial) da venda de coisas defeituosas e o regime (geral) do não cumprimento: a diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica 95

1. A origem histórica da diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa

genérica 95

2. A distinção entre obrigações específicas e obrigações genéricas 97

3. A diferenciação fundamental entre o objeto da venda de coisa específica e o objeto da venda de

coisa genérica 100

CAPÍTULO III – Breve referência à diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica defeituosa no Código Civil alemão (versão anterior à “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”) e no Código Civil italiano de 1942 103

1. A diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica no Código

Civil alemão (versão anterior à “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”) 103

2. A diferenciação dogmática entre a venda específica e a venda genérica de coisas defeituosas no

Código Civil italiano de 1942 113

PARTE III

O MODELO DO CÓDIGO CIVIL – VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS E CUMPRIMENTO DEFEITUOSO

CAPÍTULO I – O regime da venda de coisas defeituosas 119

1. Introdução 119

2. O regime da venda de coisas defeituosas ou regime da garantia edílica 120

2.1. Noção de defeito – A equiparação entre vício ou defeito e falta de qualidade da coisa 120

3. O problema do enquadramento dogmático do regime da venda de coisa (específica) defeituosa 123

3.1. A remissão para o regime do erro como opção deliberada do nosso legislador histórico 123

3.2. A delimitação do âmbito de aplicação do regime da venda (específica) de coisas defeituosas e os

três pilares em que assenta a opção legislativa de recondução da matéria ao regime do erro 125

3.3. Os aspetos paradoxais da opção legislativa de fundar o regime da venda de coisas defeituosas no

regime do erro 129

4. O erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio 134

4.1. Pressupostos de relevância do erro sobre o objeto do negócio 137

4.2. O âmbito de aplicação do art. 251.º do Código Civil – as facti-species que se subsumem à sua

previsão 140

4.3. A configuração do erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio como erro nos

motivos ou como erro na declaração 143

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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5. O fundamento da recondução do regime da venda de coisas defeituosas ao paradigma do não

cumprimento (cumprimento defeituoso) 151

5.1. A relação entre erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio e o incumprimento: a

possibilidade de cúmulo ou concurso entre as normas relativas aos pressupostos do erro e as

normas relativas aos pressupostos do incumprimento 154

6. Apreciação das teses que defendem a recondução da garantia edílica ao pólo do incumprimento

(cumprimento defeituoso): a dificuldade de distinção entre a venda de coisa específica fungível e a

venda genérica 158

7. Os direitos do comprador de coisa (específica) defeituosa 163

7.1. Anulação do contrato e redução do preço 163

7.2. Indemnização do interesse contratual negativo 165

7.3. O direito à reparação e à substituição da coisa 166

7.4. Garantia de bom funcionamento 167

7.5. Prazos de garantia, prazos de denúncia e prazos para o exercício dos direitos 169

CAPÍTULO II – O regime aplicável aos defeitos supervenientes da venda de coisa específica, da venda de coisa indeterminada de certo género e da venda de coisa futura 172

1. O regime da perda ou deterioração da coisa – posterior à venda e anterior à entrega – na compra e

venda de coisa específica 172

2. O regime da perda ou deterioração da coisa na compra e venda de coisa genérica 174

3. Breve enunciação dos direitos do comprador em caso de não cumprimento defeituoso do contrato 177

PARTE IV

O MODELO DA DIRETIVA 1999/44/CE: A NOÇÃO DE CONFORMIDADE COM O CONTRATO E O SEU

REVERSO – A FALTA DE CONFORMIDADE

CAPÍTULO I – Da génese da noção de conformidade com o contrato à sua consagração expressa pelo legislador português 183

1. A mudança de paradigma: da venda específica de bens infungíveis à venda genérica de bens

fungíveis 183

2. A obrigação de conformidade nas convenções sobre compra e venda internacional, em particular, na

Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias 184

3. Da progressiva afirmação da noção de conformidade à sua adoção pelo legislador comunitário 186

4. A consagração expressa da noção de conformidade com o contrato no ordenamento jurídico

português 189

CAPÍTULO II – A noção de conformidade e de falta de conformidade com o contrato 193

1. Noção de conformidade com o contrato 193

1.1. As facti-species compreendidas na noção de falta de conformidade 194

2. Os critérios ou parâmetros que integram a presunção de não conformidade: critérios objetivos e

critérios subjetivos 199

2.1. Os critérios subjetivos que integram a presunção de (não) conformidade 203

2.1.1. A não conformidade dos bens com a descrição feita pelo vendedor 203

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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2.1.2. A não conformidade dos bens com a amostra ou modelo apresentados durante as negociações 205

2.1.3. A não adequação dos bens de consumo ao uso específico para o qual o consumidor os destine 206

2.2. Os parâmetros objetivos da falta de conformidade 207

2.2.1. A não adequação do bem às utilizações habituais dadas aos bens do mesmo tipo 208

2.2.2. A não apresentação das qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e as

razoáveis expectativas do consumidor 209

3. Relevância contratual da publicidade e da rotulagem 214

4. A função dos critérios objetivos e a sua relação com a liberdade das partes na modulação do

conteúdo do acordo 223

5. A equiparação da falta de conformidade resultante da má instalação do bem de consumo a uma falta

de conformidade do bem 227

6. A inexistência de desconformidade 229

6.1. A inexistência de falta de conformidade devida ao conhecimento ou cognoscibilidade pelo

consumidor da falta de conformidade, no momento da conclusão do contrato 230

6.1.1. Limites à exclusão da responsabilidade do vendedor em caso de defeitos aparentes 237

6.2. A falta de conformidade decorrente dos materiais fornecidos pelo consumidor 241

PARTE V

A REFERÊNCIA À ENTREGA COMO DATA RELEVANTE PARA AFERIR A CONFORMIDADE DOS BENS

COM O CONTRATO E O PROBLEMA DA TRANSFERÊNCIA DO RISCO NA VENDA DE BENS DE CONSUMO

CAPÍTULO I – A desconexão entre a transferência do risco e a transmissão da propriedade na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias 247

1. A regulação autónoma do problema do risco da contraprestação 247

2. A transferência do risco nas vendas que implicam o transporte de bens 249

2.1. Venda com expedição simples 249

2.2. Venda de mercadoria em trânsito 249

3. A regra residual de transferência do risco 251

4. O enfoque contratual e a desconexão com o efeito jurídico-real 252

CAPÍTULO II – A abordagem contratual da transferência do risco no DCFR 254

CAPÍTULO III – A transferência do risco da contraprestação nas diretivas comunitárias de proteção do consumidor 256

1. Responsabilidade do vendedor por não conformidade existente no momento da entrega da coisa 256

2. A referência à data da entrega e a derrogação implícita da regra res perit domino na Diretiva

1999/44/CE 257

2.1. O significado a atribuir ao termo “entrega” e a inaplicabilidade do disposto no art. 797.º do

Código Civil à venda de bens de consumo 263

3. A receção material do bem como critério comunitário explícito na Proposta de Diretiva sobre

direitos dos consumidores 267

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

xv

PARTE VI

OS DIREITOS QUE O CONSUMIDOR PODE EXERCER EM CASO DE FALTA DE CONFORMIDADE DOS BENS

COM O CONTRATO

1. Introdução 275

CAPÍTULO I – Os remédios pela falta de conformidade dos bens com o contrato na Convenção de Viena de 1980 sobre a Venda Internacional de Mercadorias 278

1. A primazia dos direitos orientados para o cumprimento 278

1.1. O direito a exigir do vendedor o cumprimento e a sua concretização nos direitos à reparação e à

substituição das mercadorias não conformes ao contrato de compra e venda 279

1.1.1. O direito à substituição das mercadorias não conformes 279

1.1.2. O direito do comprador à reparação das mercadorias não conformes ao contrato 281

2. O direito de o comprador declarar a resolução do contrato 282

2.1. A noção de violação fundamental do contrato 283

3. O mecanismo Nachfrist na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias 284

4. Redução do preço da compra 287

5. Indemnização 288

CAPÍTULO II – Os direitos consagrados na Diretiva 1999/44/CE 290

1. Introdução 290

2. A ordem hierárquica consagrada no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE 293

3. Fundamento da ordem hieráquica consagrada no art. 3.º, n.º 1, da Diretiva 1999/44/CE 294

4. O sistema adotado pelo legislador português no art. 4.º do DL n.º 67/2003: hierarquia ou

alternatividade? 298

5. Os direitos orientados para o cumprimento: o direito à reparação e o direito à substituição 302

5.1. O direito à reparação 307

5.2. O direito à substituição 309

5.2.1. O Acórdão do TJUE de 17 de abril de 2008 (Quelle AG) 311

5.3. Os limites à faculdade de escolha do consumidor dentro do primeiro nível da hierarquia 313

5.3.1. A concretização da noção de impossibilidade 315

5.3.2. A concretização da noção de proporcionalidade 319

5.4. Poderá o vendedor recusar o único remédio possível, dentro do primeiro nível da hierarquia com

fundamento na falta de proporcionalidade? 321

5.4.1. O Acórdão do TJUE de 16 de junho de 2011 (Weber e Putz) 322

6. Os direitos consagrados no segundo nível da hierarquia 329

6.1. A transição do primeiro para o segundo degrau da hierarquia 329

6.1.1. O princípio das duas oportunidades 330

6.1.2. O “princípio das duas oportunidades” ou mecanismo “Nachfrist” no Código Civil alemão 331

7. O direito à redução do preço 333

8. O direito de resolução do contrato 336

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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8.1. O incumprimento como facto que fundamenta o direito de resolução – a gravidade do

incumprimento 339

8.2. A exclusão da culpa enquanto pressuposto essencial da resolução 341

8.3. Forma de exercício do direito de resolução 343

8.4. Efeitos do exercício do direito de resolução 343

8.4.1. Efeito liberatório 343

8.4.2. Efeito repositivo 345

8.5. Restituição em espécie (in natura) e restituição em valor 347

8.6. Compensação pelo uso do bem 348

8.7. A exclusão do direito de resolução à luz da interpretação do art. 432.º, n.º 2, do Código Civil 349

8.7.1. Impossibilidade de restituição imputável à parte resolvente 352

8.7.2. Impossibilidade de restituição imputável à contraparte 354

8.7.3. Impossibilidade fortuita de restituição do objeto da prestação 355

8.8. O art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, de 8 de abril 359

9. A indemnização cumulável com a resolução do contrato e a indemnização substitutiva da prestação 362

9.1. A indenização cumulável com a resolução do contrato 362

9.2. A indemnização substitutiva da prestação 366

10. Prazos 368

10.1. Prazo de garantia 368

10.2. Denúncia do defeito e caducidade dos direitos 369

Conclusões 369

Bibliografia 373

Jurisprudência 390

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ABREVIATURAS

A. Autor

AA. Autores

AAFDL Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa

ADC Anuario de Derecho Civil

Art. Art.

Arts. Arts.

BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

BGB Bürgerlicher Gesetzbuch (Código Civil alemão)

BMJ Boletim do Ministério da Justiça

CCesp Código Civil espanhol

CCfr Código Civil francês

CCit Código Civil italiano

CDP Cadernos de Direito Privado

CPC Código de Processo Civil

CRP Constituição da República Portuguesa

DL Decreto-Lei

DCFR Draft Common Frame of Reference (Princípios, Definições e Regras

Modelo de Direito Privado Europeu)

ERCL European Review of Contract Law

JZ Juristenzeitung

LDC Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada

pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril)

PECL Principles of European Contract Law (Princípios do Direito Europeu dos

Contratos)

PESL Principles of European Sales Law (Princípios de Direito Europeu da

Compra e Venda)

RDC Rivista di Diritto Civile

REDC Revue Européenne de Droit de la Consommation

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RFDUL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

ROA Revista da

Ordem dos Advogados

segs. seguintes

TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia

UNIDROIT Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado

vol. volume

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1. Apresentação do Tema

A nossa dissertação, com o título “Conformidade e risco na venda de bens de

consumo”, pretende ser uma reflexão sobre os aspetos dogmáticos de um modelo de

responsabilidade do vendedor assente no princípio da conformidade dos bens com o

contrato que se encontra expressamente consagrado no DL n.º 67/2003, de 8 de abril1,

diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento

Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, sobre a venda de bens de consumo e das

garantias a ela relativas2. O nosso propósito é o de comparar o modelo de responsabilidade

do vendedor pela falta de conformidade dos bens com o contrato, consagrado no referido

diploma, com o modelo da venda de coisas defeituosas acolhido no nosso Código Civil3.

Esta reflexão afigura-se-nos pertinente num momento histórico em que se assiste, em

vários países europeus, a um processo de modernização do Direito das Obrigações e dos

Contratos, fortemente impulsionado pela transposição do referido diploma comunitário

para os respetivos direitos internos.

Como refere Paulo Mota Pinto, a Diretiva 1999/44/CE “constitui a mais importante

incursão imperativa das instâncias comunitárias, até à data, no direito contratual interno

dos Estados-Membros, e representa um importante impulso para a harmonização do direito

civil dos países da União”4. Ela é mesmo considerada a pedra basilar sobre a qual poderá

ser edificado um futuro direito europeu dos contratos5.

A Diretiva 1999/44/CE tem por objetivo, segundo o disposto no art. 1.º, n.º 1, a

aproximação das disposições legislativas dos Estados-Membros relativas a certos aspetos

da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, “com vista a assegurar um

nível mínimo uniforme de defesa dos consumidores no contexto do mercado interno” 6.

1 O DL n.º 67/2003 de 8 de abril, foi alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21 de maio. 2 Esta Diretiva está publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias (JOCE), L 171, de 7 de julho de 1999. Sobre o processo

conducente à adoção da referida Diretiva v., por todos, PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”,

in Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, 2000, pp. 197 e segs. 3 Sem esquecer, porém, que muitas das soluções consagradas no referido diploma comunitário já se vigoravam entre nós, nomeadamente

na Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor). 4 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 201. 5 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2005, p. 165. 6 Cfr. GIOVANI DE CRISTOFARO, “Difetto di Conformità al contrato e Diritti del Consumatore, l’Ordinamento Italiano e la Direttiva

99/44/CE sulla Vendita e le Garanzie dei Beni di Consumo, CEDAM, Padova, 2000, p. 4. O fundamento para a adoção da Diretiva foi,

como explica Paulo Mota Pinto, objeto de discussão entre as instituições comunitárias. Assim, a proposta originária da Comissão

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Durante os trabalhos preparatórios conducentes à adoção da Diretiva 1999/44/CE foi

também referida a necessidade de contribuir para a renovação e modernização das regras

dos Estados-Membros sobre venda de coisas defeituosas, as quais, decalcadas sobre

modelos de produção e aquisição de bens já hoje ultrapassados (assim, por exemplo, o

modelo da venda de coisas específicas, em lugar da venda de coisas genéricas, hoje

largamente corrente), em muitos casos já não seriam adequadas “à realidade económica

actual de produção e comercialização em massa”7.

Foi, pois, propósito do legislador comunitário modernizar o regime da garantia

edílica, de procedência romanística, regulado pela generalidade dos Códigos Civis

europeus com base no paradigma da venda específica para o simplificar e adaptar às

características atuais do mercado de bens de consumo, assente no paradigma da venda de

bens fungíveis8.

No cerne da Diretiva está, pois, uma preocupação de modernizar o regime da venda

de coisas defeituosas.

Nos Códigos Civis continentais, de tradição romano-germânica, a compra e venda de

coisas defeituosas é regulada com base num modelo complexo que assenta na consagração,

entre as disposições que regulam o contrato de compra e venda, de um regime especial de

responsabilidade, distinto do regime geral do não cumprimento. Este regime especial, de

clara procedência romanística, é o regime da garantia edílica que classicamente se baseia

fundamentava-se no art. 100.º-A do Tratado (atual art. 95.º) – visava-se particularmente, como resultava dos primeiros considerandos

propostos, facilitar a livre circulação do “consumidor ativo” para se abastecer noutros Estados-Membros e eliminar as distorções de

concorrência entre os vendedores, resultantes de disparidades de regimes relativos às vendas de bens de consumo. O Parlamento

Europeu, entendendo que a Diretiva em questão não relevava exclusivamente do objetivo de construção do mercado interno, decidiu

reforçar a sua base jurídica com a referência ao art. 129.º-A (art. 153.º, após o Tratado de Amesterdão), que prevê autonomamente a

política de defesa dos consumidores, no que não foi acompanhado, nem pela proposta alterada, nem pela posição comum do Conselho.

Após nova proposta de aditamento, chegou-se no Comité de Conciliação à solução de manter a referência ao art. 95.º como base jurídica,

acrescentando um novo Considerando 1, no qual se faz referência à previsão do art. 153.º do Tratado da contribuição da Comunidade

para a realização de um nível elevado de defesa dos consumidores. Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de

bens de consumo”, cit., pp. 207 e 208. Segundo o n.º 1 do art. 153.º do Tratado, com vista a assegurar um elevado nível de proteção, a

Comunidade deve contribuir para a proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos dos consumidores, bem como para a

promoção dos seus direitos à informação, à educação, e a organizar-se em ordem à salvaguarda dos seus interesses. Como refere Paulo

Mota Pinto, com a redação introduzida pelo Tratado de Amesterdão, a referência a direitos dos consumidores fez, pois, a sua entrada no

Tratado da Comunidade Europeia – fala-se agora de verdadeiros direitos dos consumidores e não apenas de uma política de defesa dos

consumidores, autónoma (como anteriormente no art. 129.º-A) ou simplesmente ligada à realização do mercado interno – cfr.

“Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 207. 7 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 208 e 209.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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na ideia de que o vendedor cumpre – e cumpre bem – quando entrega a coisa

individualizada pelo comprador, mesmo que esta apresente defeitos ou falta de qualidades.

De acordo com este modelo, a tutela do comprador consubstancia-se nas duas ações

edílicas concedidas no Direito Romano pelos Edís Curúis – a actio redhibitoria e a actio

quanti minoris –, que seriam meios de reação, ou correção e restabelecimento, de um

equilíbrio entre as prestações contratuais do vendedor e do comprador, que se frustrou pela

ocorrência de vícios da coisa.

Em termos dogmáticos, o modelo da garantia edílica assenta numa diferenciação

entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica que se justifica em virtude do

modo como nestes Códigos se concebe o objeto da venda de coisa específica: estes

Códigos concebem o objeto da venda específica como a coisa concreta, tal qual é,

perfeitamente individualizada no espaço e no tempo, não admitindo, por conseguinte, que a

vontade negocial se possa estender às qualidades da coisa.

É no modo de entender o objeto da venda de coisa específica que reside, segundo

pensamos, a chave para compreender a diferença entre o modelo da garantia edílica e o

modelo de responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade dos bens com o

contrato, consagrado na Diretiva 1999/44/CE e no DL n.º 67/2003.

Porque estes Códigos concebem o objeto da venda de coisa específica como a coisa

concreta, não se pode afirmar que pelo menos na venda de coisa específica o devedor tenha

um dever de prestação, consistente em entregar a coisa com as qualidades pressupostas

pelo comprador; por outras palavras, não se pode afirmar com rigor que a entrega de uma

coisa com qualidades seja conteúdo do direito de crédito do comprador9.

Nestes termos, a questão de saber se a entrega de uma coisa defeituosa representa ou

não um caso de não cumprimento, ou, mais precisamente, um caso de cumprimento

defeituoso da prestação a que o vendedor se encontra adstrito, tem sido, na generalidade

dos ordenamentos jurídicos continentais, alvo de intenso debate doutrinal e jurisprudencial.

A resposta positiva a esta questão pressupõe que se entenda que o vendedor está

obrigado a entregar ao comprador a coisa vendida isenta de defeitos, constituindo a isenção

9 Neste sentido, v. ANTONIO MANUEL MORALES MORENO, “Tres modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”,

Anuario de Derecho Civil, Madrid, tomo LXV, 2012, 1, pp. 5 a 28, p. 6.

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de defeitos conteúdo do dever de prestação do devedor. Este é o ponto de vista daqueles

que defendem a chamada teoria do cumprimento ou teoria do dever de prestação10.

A resposta negativa é dada por aqueles que consideram que o vendedor está obrigado

a entregar a coisa tal qual é e não como seria sem defeito. Porque o vendedor está obrigado

a entregar a coisa tal qual é, a isenção de vícios não faz parte do conteúdo do dever de

prestação do vendedor11. Assim, o regime especial da garantia não pode ser visto como um

regime de tutela do comprador perante o incumprimento (ou cumprimento defeituoso) do

dever de prestação do devedor, representando antes um dever autónomo ao lado do dever

de prestar a coisa tal qual ela é. É isto que defendem, em termos gerais, os adeptos da

chamada teoria da garantia, claramente prevalecente na doutrina alemã, antes da Reforma

do BGB introduzida pela “Lei para a modernização do Direito das Obrigações” ou Gesetz

zur Modernisierung des Schuldrechts12.

No ordenamento jurídico português, muito embora o debate se desenvolva em torno

da mesma questão central – saber se a entrega de uma coisa sem defeitos faz ou não parte

do conteúdo do dever de prestação do vendedor –, os seus contornos apresentam algumas

especificidades.

10 No ordenamento jurídico alemão, antes da Reforma de 2001/2002, a teoria do cumprimento (Erfüllungstheorie), embora minoritária,

tinha alguns adeptos. O problema colocava-se sobretudo em relação à venda de coisa específica, na qual o comprador gozava apenas dos

remédios correspondentes às ações edílicas: a resolução do contrato (Wandelung) ou a redução do preço (Minderung). Nos termos do §

480 do BGB apenas o comprador de coisa genérica podia exigir, em alternativa aos tradicionais remédios edílicos, que lhe fosse

entregue, em substituição da coisa viciada, uma coisa livre de vícios. Este direito, que apenas era reconhecido ao comprador de coisa

genérica, era visto como uma manifestação da originária pretensão ao cumprimento in natura. Entendiam os defensores da

Erfüllungstheorie que o facto de esta pretensão não ser conferida ao comprador de coisa específica não constituía um obstáculo

insuperável no sentido de configurar uma obrigação do vendedor à entrega de uma coisa livre de vícios pois “a uma obrigação de

prestação do devedor não corresponde necessariamente uma pretensão do credor, em caso de violação, ao cumprimento in natura”. Cfr.

PETER HUBER, in Soergel BGB, § 459, Stuttgart, 1991, pp. 830 e ss., p. 837. No ordenamento jurídico italiano, admitindo a existência de

responsabilidade contratual nos casos em que o vendedor entrega ao comprador coisa específica viciada, v. MASSIMO BIANCA, “La

vendita e la permuta”, in Tratt. Vassali, VII, tomo I, Turim, 1993, p. 708. 11 No ordenamento jurídico alemão a doutrina dominante aderia à chamada teoria da garantia (Gewährleistungstheorie), segundo a qual

se considerava que o vendedor cumpre o contrato mesmo quando entrega uma coisa viciada porque a isenção de vícios materiais não faz

parte do conteúdo do seu dever de prestação. Assim, a entrega de uma coisa viciada não representa o parcial inadimplemento da

obrigação de prestação. Cfr. LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, p. 67. A presença de um vício era enquadrada como uma alteração do

equilíbrio querido pelas partes entre a prestação e a contraprestação (Subjective Äquivalenz): se o comprador tivesse tido conhecimento

do vício não teria concluído o contrato ou não o teria concluído naquelas condições. As consequências jurídicas da presença de um vício

são pois a adaptação das condições do contrato ao real estado físico da coisa (Minderung), ou a dissolução da relação contratual

(Wandelung). 12 Sobre a Reforma do BGB de 2001/2002, v. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Modernização do Direito Civil, I, Aspectos Gerais,

Almedina, 2004, pp. 69 e segs. V, ainda, CLAUS-WILHELM CANARIS, “A Transposição da Directiva Sobre Compra e Bens de Consumo

para o Direito Alemão”, in Estudos do Direito do Consumidor, n.º 3, Coimbra, 2001, pp. 49 a 67.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Por um lado, o legislador português associou historicamente a matéria da venda de

coisas defeituosas ao regime do erro (simples ou qualificado por dolo), o que faz com que

o debate oponha os adeptos da teoria do erro aos adeptos da teoria do não cumprimento13.

Por outro lado, porque o legislador português consagrou, no regime (especial) da venda de

coisas defeituosas, os direitos à reparação e à substituição da coisa (art. 914.º do Código

Civil), os quais, por constituírem uma manifestação do direito ao exato cumprimento do

contrato, se afiguram incompatíveis com o regime do erro, abonando assim a posição

daqueles que defendem que a entrega de uma coisa sem defeitos faz parte do conteúdo do

dever de prestação do vendedor. Trata-se, portanto, de um regime paradoxal e obscuro,

embora, como sublinha Calvão da Silva, mais avançado do que o regime consagrado nos

Códigos Civis europeus que apenas reconhecem ao comprador as duas ações edílicas

oriundas do direito romano, como é o caso do Código Civil italiano de 1942, do Código

Civil francês e do Código Civil alemão anterior à reforma do Direito das Obrigações14.

A recondução do regime especial da venda de coisas defeituosas, consagrado nos

artigos 913.º e seguintes do Código Civil, ao regime do erro (simples ou qualificado) é

fruto de uma conceção bem definida acerca do objeto da venda de coisa específica: se o

objeto da venda específica é e só pode ser a coisa tal como é, então, as qualidades

asseguradas pelo vendedor e pressupostas pelo comprador não fazem (nem podem fazer)

parte do conteúdo do acordo, existindo apenas na representação do comprador, o que

legitimaria a recondução da matéria ao instituto do erro (simples ou qualificado). De

acordo com esta conceção, o dever de prestação do devedor não abrange as qualidades da

13 Para uma análise desenvolvida das principais posições, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções

Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 195 e segs. 14 Por esta razão, não faltam, entre nós, vozes que consideram que a Diretiva não trouxe qualquer inovação já que a obrigação de entrega

de bens em conformidade com o contrato já existia entre nós por força do princípio da pontualidade do cumprimento e porque o

verdadeiro fundamento da venda de coisas defeituosas era o contrato. Defende Calvão da Silva que «porque canonizado no nosso direito

[arts. 406.º, 763.º, 879.º, alínea b), e art. 882.º], o princípio da conformidade ou pontualidade do cumprimento dos contratos dispensava

ou não tornava obrigatória a transposição do conceito de “conformidade com o contrato”: na execução da obrigação de entrega da

coisa, o vendedor deve respeitar escrupulosamente o contrato, pela traditio da coisa convencionada e nos termos devidos, isenta de

vícios ou defeitos, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida». E acrescenta: “Não se apresenta, pois,

revolucionária ou sequer inovadora a obrigação de conformidade adotada pela Diretiva, se confrontada com a disciplina da empreitada

e mesmo da compra e venda no Código Civil e na Lei n.º 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor): já em face destas regras o fornecedor

(vendedor e empreiteiro) só cumpre bem (cumprimento exato ou perfeito) a sua obrigação, se entregar uma coisa ou obra conforme ao

contrato, de modo a que a coisa ou a obra recebida seja devida na sua Sollbeschaffenheit, correspondente à vontade das partes vertida nas

cláusulas ou presumida e integrada por aplicação de regras objectivas (arts. 913.º, n.º 2, 236.º e 239.º)”. Cfr. J. CALVÃO DA SILVA ,

Venda de Bens de Consumo, 4.ª ed. – revista, aumentada e atualizada, Almedina, Coimbra, 2010, p. 81.

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coisa, mas apenas a coisa tal como é (com ou sem qualidades, com ou sem vícios). A

decisão legislativa de fundar o regime da venda de coisas defeituosas no regime do erro é,

pois, fruto de uma ideia consistente acerca do objeto da venda específica, que se projeta

ainda na qualificação do erro sobre as qualidades do objeto como um erro-vício (art. 251.º

do Código Civil) e na nulidade do negócio jurídico em caso de impossibilidade originária

da prestação (arts. 280.º e 401.º do Código Civil15).

Por outro lado, a consagração, no art. 914.º do Código Civil, do direito à reparação e

à substituição da coisa afigura-se paradoxal e dificilmente compreensível, à luz desta

conceção restritiva do objeto da venda específica, já que, se qualificarmos as referidas

pretensões como manifestações do direito do comprador ao exato cumprimento, forçoso

seria considerar que as qualidades da coisa fazem também parte do conteúdo do dever de

prestação do devedor, o que, por sua vez, não seria compatível com a recondução da

matéria ao regime do erro (simples ou qualificado).

Note-se, ainda, que o facto de o exercício do direito à reparação e à substituição da

coisa estar dependente da existência de culpa por parte do vendedor coloca a possibilidade

de enquadrar os referidos direitos no âmbito da indemnização, na sua forma primordial de

reparação em espécie16.

O modelo de responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade dos bens com

o contrato, que se encontra consagrado no DL n.º 67/2003, diploma que transpôs para a

ordem jurídica interna a Diretiva 1999/44/CE, sobre a venda de bens de consumo e das

garantias a ela relativas, é um modelo dogmaticamente diferente do modelo que se

encontra consagrado no Código Civil português.

Em termos dogmáticos, este modelo caracteriza-se por assentar numa noção unitária

e objetiva de incumprimento, que se consubstancia no princípio da conformidade dos bens

15 Doravante, os artigos sem referência a diploma são do Código Civil. 16 O Código Civil italiano não prevê o direito à reparação nem o direito à substituição, consagrando apenas os remédios correspondentes

às duas ações edílicas. A admissibilidade destes direitos é discutida pela doutrina e pela jurisprudência sobretudo em relação à compra e

venda específica. Entende-se que estes direitos, porque impõem ao vendedor uma obrigação de dare, no primeiro caso, e uma obrigação

de facere, no segundo, exorbitam o conteúdo da obrigação principal do vendedor. Não obstante, admite-se estas pretensões como

medidas de ressarcimento em forma específica. Já no caso de venda de coisa genérica a doutrina admite a substituição do bem em sede

de condenação ao exato cumprimento. V. GIORGIANNI, “L’inadempimento”, Corso di diritto civile, Milão, 1975, pp. 74 e segs.;

ARMOTH, “In tema di tutela del compratore: può chiedersi la sostituzione di cosa viziata?”, in Giur. It., 1965, I, 1, pp. 337 e segs.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

25

com o contrato17, importada da Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda

Internacional de Mercadorias, que, no n.º 1 do art. 35.º, determina que, “[o] vendedor deve

entregar mercadorias, que, pela quantidade, qualidade e tipo correspondam às previstas no

contrato e que tenham sido embaladas ou acondicionadas de acordo com a forma prevista

no contrato”, estabelecendo o n.º 1 do art. 36.º que “[o] vendedor é responsável, de acordo

com o contrato e com a presente Convenção, por qualquer falta de conformidade que exista

no momento da transferência do risco para o comprador, ainda que esta falta apenas

apareça ulteriormente”.

O facto de a Convenção de Viena vigorar na esmagadora maioria dos países da

União Europeia18 e de o regime nela consagrado representar um compromisso entre

sistemas jurídicos diferentes, em especial, entre os sistemas romano-germânicos e os

sistemas do Common Law19, pesou certamente na escolha dessa Convenção, por parte do

legislador comunitário, como modelo a seguir quanto a alguns aspetos de regime. Refira-se

também que, ainda que com diferentes nunces, o modelo da Convenção de Viena, adotado

também pela Diretiva 1999/44/CE é o modelo presente, na generalidade dos instrumentos

que fazem parte do designado “Direito Europeu dos Contratos”, como os Princípios

UNIDROIT, os PECL, os PESL e o DCFR.

O facto de a Diretiva 1999/44/CE e a Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e

Venda Internacional de Mercadorias serem diplomas com um âmbito de aplicação material

distinto, sendo o primeiro aplicável a relações entre profissionais e consumidores [business

to consumers] e o segundo a relações entre profissionais [business to business]20, em que

17 Como refere Menezes Leitão: “Trata-se de um critério que tem vindo a ser adoptado para unificar a nível internacional as diversas

soluções existentes nos vários ordenamentos sobre a garantia edílica, constando, quer da Convenção de Haia de 1964 sobre a compra e

venda internacional de mercadorias (cfr. arts. 19.º, n.º 1, e 33.º e segs.) quer da Convenção de Viena de 1980 sobre a venda internacional

de mercadorias (arts. 35.º e segs.), e que a Diretiva 1999/44/CE agora transposta decidiu igualmente adotar como critério de

uniformização dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados membros. Os trabalhos preparatórios da Diretiva demonstram ter sido o

art. 35.º da Convenção de Viena a sua principal inspiração, ainda que por vezes esse critério já tenha sido usado nas legislações internas

de alguns Estados membros, como a Holanda, Irlanda, Dinamarca, Suécia e Reino Unido”. Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das

Obrigações, vol. III, – Contratos em especial, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, p. 130. A este propósito v., ainda, DIEGO CORAPI, “La

diretiva 99/44/CE e la Convenzione di Vienna sulla vendita Internazionale: verso un nuovo diritto comune della vendita?”, L’attuazione

della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La Tutela dell’Acquirente di Beni di Consumo, Cedam, Padova, 2001, pp. 135 a 150. 18 Portugal, porém, não ratificou ainda a Convenção de Viena. 19 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, Almedina, Coimbra, 2005, p. 260. V., ainda, Luis Díez-Picazo, “Reforma

de los Códigos y derecho europeu”, Anuario de Derecho Civil, Madrid, t. 56n. 4 (outubro-dezembro de 2003), pp. 1565 a 1574. 20 O art. 2.º da Convenção de Viena exclui do âmbito de aplicação da Convenção, em primeiro lugar, as vendas a consumidores. Nos

termos da alínea a) do referido preceito, a Convenção não regula as vendas “de mercadorias compradas para uso pessoal, familiar ou

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não se faz sentir em primeira linha a necessidade de proteção da parte mais fraca e em que

entram em jogo interesses específicos do comércio internacional, atesta a independência do

modelo em relação aos sujeitos intervenientes21.

Ao modelo consagrado na Diretiva 1999/44/CE subjaz um modo distinto de entender

o objeto da venda específica: o objeto da venda específica não é aqui a coisa concreta, tal

como é, mas a coisa ideal, como deve-ser e deste modo de conceber o objeto da venda

específica resulta a ausência de diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e

a venda de coisa genérica. Porque em ambos os casos o vendedor está obrigado a entregar

ao comprador uma coisa com as qualidades habituais ou normais do género, sobre o

vendedor impende, nos termos do art. 2.º, n.º 1, da Diretiva e do art. 2.º, n.º 1, do diploma

nacional de transposição, uma obrigação “de entregar ao consumidor bens que sejam

conformes com o contrato de compra e venda”, sendo o vendedor responsável, nos termos

do art. 3.º, n.º 1, “por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o

bem lhe [ao consumidor] é entregue”. Esta responsabilidade consubstancia-se numa

panóplia de remédios22, que o consumidor pode exercer, entre os quais se conta, desde

logo, a reposição da conformidade devida, por meio de reparação ou substituição, a

redução do preço e a resolução do contrato23.

Há assim uma objetivação do incumprimento: procura-se remediar um problema,

compondo os diferentes interesses em presença e atendendo às diferentes soluções

possíveis. Esta possibilidade tem que ver com a própria possibilidade material da solução

doméstico, a menos que o vendedor o mais tardar no momento da celebração do contrato, não soubesse nem devesse saber que as

mercadorias eram compradas para tal uso”. V. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 267. Apesar disso, uma

das características da Convenção de Viena é o relativo favorecimento do comprador – v. FABIO BORTOLOTTI, Manuale di diritto

commerciale Internazionale, vol. I – Diritto dei contratti internazionali, 2.ª ed., Milão, pp. 579 e segs. 21 Note-se, porém, que contrariamente à Convenção de Viena de 1980, a Diretiva 1999/44/CE não visa uma harmonização completa do

direito da compra e venda mas apenas uma harmonização mínima de certos aspetos da venda de bens de consumo, regulando em

particular o problema da falta de conformidade dos bens com o contrato. 22 V. ASSUNÇÃO CRISTAS, “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, Estudos em

Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 238 a 266, p. 250. Salientado,

embora em relação ao sistema de remédios consagrado no DCFR, que “[n]ão se atende à óptica do credor, mas sobretudo à melhor

forma de composição dos diferentes interesses em presença, atendendo a que o contrato deve ser visto como um instrumento de

cooperação e não propriamente como um confronto de adversários em que cada um procura retirar vantagens à custa do outro”. 23 A designação de remédios, tradução literal da expressão remedies, utilizada, por exemplo, no DCFR, põe a tónica na situação objetiva

de desconformidade e nos diferentes modos que o ordenamento jurídico encontra para pôr fim a essa desconformidade. Sobre a noção de

conformidade adotada pela Diretiva 1999/44/CE, v. VITTORINO PIETROBON, “La diretiva 1999/44 del Parlamento Europeo e del

Consiglio e i problemi del suo inserimento nel diritto italiano”, L’attuazione della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La tutela

dell’acquirente di beni di consumo, CEDAM, Padova, 2001, pp. 283 a 291, p. 284.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

27

(v. g., da prestação em causa), mas também com a suscetibilidade de essa solução

satisfazer cabalmente o interesse (objetivo) do credor24.

Na medida em que o modelo consagrado na Diretiva 1999/44/CE, assente no

princípio da conformidade dos bens com o contrato, encerra uma conceção objetiva de

responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade dos bens com o contrato, que se

afere no momento da entrega dos bens ao consumidor, o referido princípio não é

compatível com a associação da transferência do risco da contraprestação à transmissão do

direito real, associação esta que se infere da regra res suo domino perit, consagrada no art.

796.º, n.º 1, do Código Civil. O princípio da conformidade dos bens com o contrato

abrange pois, em termos dogmáticos, o problema da transferência do risco da

contraprestação que se autonomiza do momento da transferência da propriedade, sendo

absorvido no quadro geral do cumprimento da obrigação de entrega de bens em

conformidade com o contrato, na linha da Convenção de Viena de 1980 e dos vários textos

de harmonização do “Direito Europeu dos Contratos”.

Muito embora se trate de um regime consagrado num diploma comunitário de

proteção do consumidor, a verdade é que, salvo alguns aspetos pontuais que se prendem

especificamente com a necessidade de proteção do consumidor, enquanto parte mais fraca,

o modelo em si pode bem ser pensado como um modelo mais geral aplicável a todos os

contratos de compra e venda e não apenas à compra e venda de bens de consumo. Foi

justamente o que sucedeu no ordenamento jurídico alemão, em que o legislador, através da

“Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”, modernizou aspetos nucleares da

Parte Geral e do Direito das Obrigações do Código Civil alemão, com o objetivo de tornar

o mais possível conforme à Diretiva 1999/44/CE a disciplina geral dos contratos de

compra e venda e de empreitada, sendo poucas as normas especiais (§§ 474 a 479 do BGB)

aplicáveis apenas às vendas a consumidores25.

24 V. ASSUNÇÃO CRISTAS, “Incumprimento Contratual”, cit., p. 250. 25 É sobretudo nesta perspetiva, ou seja, na perspetiva de que o modelo de responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade dos

bens com o contrato, consagrado entre nós no DL n.º 67/2003, de 8 de abril, poderia ser, através de uma intervenção legislativa,

generalizado a toda a compra e venda e até, eventualmente, a todo o regime do não cumprimento, que vamos procurar refletir sobre ele.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

2. Indicação da sequência

Na primeira parte da nossa dissertação procuraremos, em traços breves, abordar a

noção e os efeitos essenciais do contrato de compra e venda civil, em especial o efeito real,

bem como o problema da transferência do risco da contraprestação no contrato de compra

e venda.

Na segunda parte procuramos refletir sobre as raízes históricas e os fundamentos

dogmáticos da separação entre o regime da venda de coisa (específica) defeituosa e o

regime geral do não cumprimento.

Na terceira parte analisaremos o modelo do Código Civil português em matéria de

compra e venda de coisas defeituosas, em particular, o regime da compra e venda de coisas

defeituosas consagrado nos arts. 913.º e segs. do Código Civil. Partindo da análise daquela

que foi a opção do nosso legislador histórico no que toca ao âmbito de aplicação deste

regime, aplicável apenas aos defeitos da compra e venda de coisa específica existentes no

momento da celebração do contrato, analisaremos a decisão legislativa de recondução do

referido regime ao instituito do erro ou dolo. Esta reflexão, estender-se-á também ao

regime do “erro sobre o objecto do negócio”, previsto no art. 251.º do Código Civil, e, em

particular, ao regime do “erro sobre as qualidades do objecto”. Sem a preocupação de uma

análise exaustiva das diversas teses doutrinárias em torno do enquadramento dogmático do

regime da venda de coisa (específica) defeituosa, vamos, porém, dar conta do fundamento

em que assenta a tese que reconduz aquele regime ao pólo do erro e a tese que recoduz o

referido regime ao pólo do não cumprimento.

Na quarta parte propomo-nos analisar o modelo de responsabilidade do vendedor

pela falta de conformidade dos bens com o contrato, consagrado na Diretiva 1999/44/CE e

no DL n.º 67/2003, analisando, em particular, a noção de conformidade dos bens com o

contrato e o seu reverso: a falta de conformidade ou desconformidade.

Na quinta parte da presente dissertação iremos analisar o problema da transferência

do risco na venda de bens de consumo. Com efeito, apesar de o Considerando 14 da

Diretiva 1999/44/CE dispor que “as referências à data da entrega não implicam que os

Estados-Membros devam alterar as suas normas sobre transferência do risco”, esta

alteração impõe-se, segundo julgamos, como implicação dogmática da adoção do princípio

da conformidade dos bens com o contrato do qual decorre uma responsabilidade objetiva

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

29

do vendedor por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega dos bens

ao consumidor.

Na sexta e última parte da nossa dissertação vamos analisar as consequências

jurídicas do não cumprimento da obrigação de entrega de bens em conformidade com o

contrato, ou seja, os direitos que o consumidor pode exercer em caso de não cumprimento

pelo vendedor da obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato. A nossa

análise cingir-se-á essencialmente à análise dos direitos previstos no art. 3.º da Diretiva

1999/44/CE e no art. 4.º do DL n.º 67/2003: o direito à reposição da conformidade devida

através da reparação ou da substituição, o direito à redução do preço e o direito à resolução

do contrato.

Ao longo da nossa dissertação analisaremos, ainda, alguns aspetos do regime

consagrado na Convenção de Viena de 1980 sobre a Venda Internacional de Mercadorias,

por ter sido este o texto que serviu de modelo ao legislador comunitário na elaboração da

Diretiva 1999/44/CE, e, ainda que de forma pontual, faremos algumas breves referências a

soluções consagradas em vários textos de “Direito Europeu dos Contratos”, como os PECL

e o DCFR.

3. A transposição da Diretiva 1999/44/CE para o direito interno português

A Diretiva 1999/44/CE é, como já referimos, um instrumento enquadrado numa

política comunitária de proteção dos consumidores no contexto do mercado interno.

Apesar disso, o novo modelo que consagra no que diz respeito à proteção do

comprador/consumidor que adquire bens não conformes com o contrato não resulta

(apenas) de uma exigência de proteção do consumidor, enquanto parte fraca ou contraente

débil, mas é fruto de uma assumida intenção de modernizar e simplificar as regras dos

Estados-Membros sobre a venda de coisas defeituosas, essencial para satisfazer a

exigência, várias vezes sublinhada pelo Parlamento Europeu, de “efectuar a nível

comunitário um esforço de aproximação do direito privado dos Estados-Membros”.

Estas razões justificariam, a nosso ver, que se tivesse aproveitado a necessidade de

transposição da Diretiva para modernizar o regime da venda de coisas defeituosas,

consagrado no Código Civil português, até porque este regime, tal como regimes

homólogos consagrados na generalidade dos Código Civis continentais, não corresponde,

como já referimos, a uma exigência de tratamento adequado da matéria, mas é fruto do

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peso de uma tradição histórica que encontra as suas raízes mais profundas no direito

romano e de paradigmas ultrapassados e desajustados à realidade económica atual de

produção e comercialização em massa de bens essencialmente fungíveis.

No que respeita ao método de transposição da Diretiva eram essencialmente três as

vias possíveis.

Uma primeira opção consistia na chamada “solução pequena” ou “solução fraca”,

que se consubstanciava na transposição da Diretiva qua tale, através de um diploma

avulso, aplicável apenas às vendas de bens de consumo a consumidores, tal como definidas

na Diretiva. Esta opção, que a nossa doutrina considerava “desaconselhada”26, acabou por

ser a opção adotada pelo legislador português que transpôs o diploma comunitário através

da emanação de um diploma avulso, o DL n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo DL n.º

84/2008, de 21 de maio.

Trata-se de (mais) uma lei especial fortemente arreigada ao texto do diploma

comunitário, que permitiu manter intacto o direito comum da compra e venda, acentuando

a dispersão por vários diplomas do regime jurídico deste contrato27 e que implicou, ao

mesmo tempo, a intervenção do legislador na Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa

26 A opção do legislador português no que toca ao método de transposição da Diretiva, a saber, a emanação de mais um diploma legal

avulso, corresponde à solução que PAULO MOTA PINTO, Autor do “Anteprojeto de Diploma de Transposição da Diretiva 1999/44/CE

para o Direito Português – Exposição de Motivos e Articulado”, considerava desaconselhada. A solução que o Autor considerava

preferível e que era a proposta em primeiro lugar no referido anteprojeto era a da transposição da Diretiva por alteração do Código Civil

e da Lei de Defesa do Consumidor. Cfr. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 30. Também Calvão da Silva

considerava preferível a “solução grande” de revisão do direito comum da compra e venda, com transposição das novas exigências

comunitárias principalmente no Código Civil e só acessoriamente na Lei de Defesa do Consumidor. A solução grande era, aliás, aquela

que encontrava um acolhimento geral na nossa doutrina. Neste sentido, v. SINDE MONTEIRO, “Proposta de Directiva do Parlamento

Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo”, in Revista Jurídica da Universidade Moderna, 1998, p.

474; FERREIRA DE ALMEIDA , “Questões a resolver na transposição da Directiva e respostas dadas no Colóquio”, in Themis, ano II, n.º 4,

2001, p. 222; DÁRIO MOURA VICENTE, “Desconformidade e garantias na venda de bens de consumo: a Directiva 1999/44/CE e a

Convenção de Viena de 1980”, in Themis, ano II, n.º 4, 2001, p. 143; ANA PRATA, “Venda de bens usados no quadro da Directiva

1999/44/CE”, in Themis, ano II, n.º 4, 2001, p. 152; PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Empreitada de Consumo”, in Themis, ano II, n.º 4,

2001, p. 171; e RUI PINTO DUARTE, “O direito de regresso do vendedor final na venda para consumo”, in Themis, ano II, n.º 4, 2001, pp.

193 e 194. 27 Tendo o legislador português optado pela emanação de um diploma legal avulso, o regime da venda de bens de consumo, resultante da

transposição da Diretiva, passou a coexistir com o regime especial da compra e venda a consumidores que se encontrava já consagrado

na Lei de Defesa do Consumidor (arts. 4.º e 12.º) , com o regime civil geral (aplicável também à venda de imóveis) e com o regime do

Código Comercial (que integra apenas um reduzido número de especificidades). A ser ratificada a Convenção de Viena de 1980, o que

se espera que aconteça, passará ainda a existir um regime próprio para a compra e venda internacional de mercadorias. “Poderia dizer-se,

de certa forma, que ao lado do regime geral da compra e venda passariam a existir, consoante os sujeitos intervenientes e não só, vários

regimes especiais”. V. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 314, nota 268.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

31

do Consumidor), que já continha muitas das soluções consagradas pelo referido diploma

comunitário, não para lhe aditar soluções novas mas para dela retirar boas regras28.

Uma segunda opção, que em relação à primeira se afigura preferível, teria sido a

“manutenção e aprofundamento do regime especial” que já se encontrava consagrado na

Lei de Defesa do Consumidor, através da transposição mínima da Diretiva nessa Lei,

fazendo-se assim uso da liberdade de meios e da equivalência dos resultados consentidas

pelo direito comunitário29. Esta solução, para além de evitar a dispersão do regime da

compra e venda por mais um diploma avulso, teria a vantagem de respeitar o direito

nacional já existente em matéria de proteção do consumidor30. Na verdade, a matéria

regulada pela Diretiva era já, em parte, objeto da Lei de Defesa do Consumidor –

nomeadamente dos seus arts. 4.º e 12.º –, pelo que se poderia ter aproveitado para incorporar

nesta Lei as soluções materiais decorrentes do diploma comunitário, dando assim

continuidade a um já existente direito nacional da venda de bens de consumo. Nos quadros

desta segunda opção teria sido ainda possível transpor a Diretiva num diploma reformador

da matéria jurídica da defesa do consumidor (um “Código do Consumidor”), tendo em

conta que já se encontravam em curso entre nós trabalhos para a reforma do direito do

consumo e elaboração de um Código do Consumidor31.

Por fim, uma terceira opção “mais ousada e ambiciosa” – a chamada “solução forte”

ou “solução grande” – seria a de tentar uma transposição da Diretiva que permitisse o

alargamento de várias das suas disposições a compradores não consumidores. Sob o ponto

de vista formal, esta transposição alargada da Diretiva implicaria a alteração do regime da

compra e venda do Código Civil e a extensão a este da exigência da Diretiva, como é o

28 Neste sentido, v. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 31 e 32. O Autor critica a intervenção do legislador

comunitário na Lei de Defesa do Consumidor, considerando que esta intervenção acabou por retirar desta Lei “boas regras”. Uma delas

foi a regra que se encontrava plasmada no n.º 1 do art. 12.º, que já determinava que “[o] consumidor a quem seja fornecida a coisa com

defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente

de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato”. A outra,

prende-se com os prazos para o exercício dos direitos. A Lei de Defesa do Consumidor previa: garantia mínima de um ou cinco anos,

consoante a coisa fosse móvel ou imóvel (art. 4.º, n.os 2 e 3); ónus de denúncia do defeito no prazo de 30 dias ou de um ano, conforme a

coisa fosse móvel ou imóvel (art. 12.º, n.º 2); caducidade, findo qualquer dos prazos referidos sem que o consumidor tivesse feito a

denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses (art. 12.º, n.º 3). Também estes números dos preceitos citados desapareceram, em vez de

uma mera alteração compatibilizadora (garantia mínima de dois anos e denúncia no prazo de dois meses, tratando-se de coisas móveis) –

art. 5.º da Diretiva. 29 V. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 33. 30 Neste sentido, v. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 33. 31 Estes trabalhos estão a cargo de uma comissão presidida pelo Professor Pinto Monteiro.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

caso da noção de conformidade com o contrato, prevendo apenas (ou no próprio Código

Civil, o que constituiria uma novidade, ou num diploma especialmente dirigido aos

consumidores, como é o caso da Lei de Defesa do Consumidor), algumas (poucas) regras

específicas da compra de bens de consumo que representem especificidades incontornáveis

para os contratos com consumidores32.

Esta solução, para além de proporcionar um sistema jurídico harmonioso, evitando a

dispersão do regime da compra e venda por inúmeros diplomas, permitiria modernizar o

regime comum da compra e venda e adaptá-lo às novas tendências do “Direito Europeu

dos Contratos”, de que a Diretiva constitui uma pedra basilar, reduzindo ao estritamente

indispensável as regras de proteção especial do comprador/consumidor33.

Esta terceira opção – correspondente à chamada “solução forte” ou “solução grande”

– foi a adotada pelo legislador alemão com a entrada em vigor em 1 de janeiro de 2002 da

“Lei para a Modernização do Direito das Obrigações” 34, através da qual se modernizaram,

aspetos nucleares da Parte Geral e do Direito das Obrigações do BGB, publicado em

198635. O objetivo prosseguido com a solução ampla foi tornar o mais possível conforme à

Diretiva a disciplina geral dos contratos de venda e de empreitada, introduzindo um

número muito limitado de normas especiais (§§ 474 a 479 do BGB) aplicáveis apenas no

âmbito da venda de bens de consumo36. Isto significa que os preceitos da Diretiva foram

recebidos, no Direito alemão, não apenas para contratos concluídos entre profissionais e

32 Segundo Paulo Mota Pinto, constituiriam especificidades incontornáveis para os contratos com consumidores o caso da

impossibilidade de afastamento, por estipulação em contrário, dos direitos do comprador, e, eventualmente, alguns pontos relativos à

definição e prova da falta de conformidade – cfr. “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”,cit., p. 315. 33 V. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 35. O Autor manifesta claramente a sua preferência por esta terceira

solução. 34 Neste sentido, v. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 35 e 36. Sobre a reforma do BGB de 2001/2002, v.

MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, Almedina, 2009, pp. 71 e segs.; e, ainda,

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “A modernização do direito das obrigações. I – Aspectos gerais e reforma da prescrição”, in ROA, ano

62 (2002), pp. 91 e segs.; II – O direito da perturbação das prestações, idem, p. 319. 35 Cfr. CLAUS-WILHELM CANARIS, “L’Attuazione in Germania Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução

de Giovanni Cristofaro”, in L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La tutela dell’acquirente di beni di consumo,

Cedam, Padova, 14-15 settembre 2001, pp. 235-254, p. 235. 36 CLAUS-WILHELM CANARIS, “L’Attuazione in Germania Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução de

Giovanni Cristofaro”, cit., p. 236. Isto significa que os preceitos da Diretiva deverão, em princípio, ser recebidos não apenas para

contratos concluídos entre profissionais e consumidores, mas para todos os contratos de venda e de empreitada e ainda para contratos

concluídos entre profissionais.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

33

consumidores, mas para todos os contratos de venda e de empreitada e ainda para contratos

concluídos entre profissionais37.

4. A importância da Diretiva 1999/44/CE no contexto da harmonização do direito

privado dos Estados-Membros

Como refere Paulo Mota Pinto, a Diretiva 1999/44/CE “constitui a mais importante

incursão imperativa das instâncias comunitárias, até à data, no direito contratual interno

dos Estados-Membros, e representa um importante impulso para a harmonização do direito

civil dos países da União”38. Ela é mesmo considerada, a pedra basilar sobre a qual poderá

ser edificado um futuro direito europeu dos contratos39. Na verdade, até à adoção da

Diretiva 1999/44/CE, as intervenções do legislador comunitário no domínio do direito civil

patrimonial concentravam-se ou em áreas novas e alheias ao núcleo do direito dos

contratos – o caso da Diretiva 84/450/CEE do Conselho, de 10 de setembro de 1984,

relativa à publicidade enganosa, e da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de

1985, sobre responsabilidade civil do produtor – ou, no domínio contratual, em

determinados contratos, como é o caso, por exemplo, do contrato de crédito ao consumo,

ou em contratos concluídos em determinadas circunstâncias ou situações consideradas de

particular vulnerabilidade para os interesses dos consumidores40.

A Diretiva configura, deste modo, uma etapa fundamental no difícil processo de

construção de um direito privado das obrigações e dos contratos comum a todos os

Estados-Membros da União Europeia41: um processo para o qual os órgãos comunitários

contribuem de modo cada vez mais intenso através da adoção de diplomas de

harmonização setorial, que surgem como os alicerces de um edifício ainda longe de estar

37 CLAUS-WILHELM CANARIS, “L’Attuazione in Germania Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução de

Giovanni Cristofaro”, cit., p. 236. 38 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 201. 39 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 165. 40 É este o caso, por exemplo, da Diretiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores

em contratos negociados fora de estabelecimentos comerciais, ou da Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de

maio de 1997, relativa à proteção dos consumidores em matéria de contratos à distância, ou, ainda, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho,

de 5 de abril de 1993, sobre cláusulas abusivas. 41 Neste sentido, v. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la

Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, Cedam, Padova, 2000, p. 9; e PAULO MOTA PINTO, “Reflexões

sobre a transposição da Directiva 1999/44/CE para o direito português”, in Themis, ano II, n.º 4, 2001, pp. 195 a 218, p. 195.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

completo42 . Poderá questionar-se, neste contexto, se a aprovação de diretivas para

domínios específicos do Direito Privado, como o direito dos consumidores, constitui o

meio mais adequado para uma harmonização do Direito Privado na Europa, considerando,

designadamente, o perigo da inconsistência resultante da falta de um plano geral de

harmonização43. Por outro lado, pode duvidar-se que a diversidade de regimes jurídicos

constitua um obstáculo com significado tal que a sua remoção possa conduzir a um

incremento relevante das compras feitas pelo consumidor num Estado-Membro diferente

do da sua residência. Como observa Paulo Mota Pinto, outros obstáculos de ordem

linguística, económica ou simplesmente prática (distância para comunicação com o

vendedor, devolução, etc.) parecem, de facto, desempenhar um papel de maior relevo44.

De qualquer modo, não pode negar-se que a eliminação de disparidades jurídicas,

acompanhada de informação dos consumidores sobre a harmonização e sobre os direitos

dos consumidores, constitui um fator positivo no incremento das compras realizadas por

consumidores noutros Estados-Membros, sobretudo em zonas transfronteiriças ou por

meios eletrónicos, não parecendo que a adoção de uma diretiva comunitária neste domínio

colida com o princípio da subsidiariedade previsto no art. 5.º, n.º 2, do Tratado da

Comunidade Europeia.

Saliente-se ainda, a este propósito, que a Diretiva 1999/44/CE, inspirada, como já

referimos, na Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda Internacional de

Mercadorias consagra uma regulamentação conforme às novas tendências de Direito

Europeu do Contratos, encontrando-se em sintonia, quer com os PECL, quer com o DCFR.

Isto significa que a sua transposição para as diferentes ordens jurídicas nacionais não

poderá deixar de representar um importante passo no sentido da europeização do Direito

Privado dos vários Estados-Membros45.

42 Sobre a evolução do Direito Europeu dos Contratos nas últimas décadas, v. LUISA ANTONIOLLI, The Evolution of European Contract

Law: A Brand New Code, a Handy Toolbox or a Jack-in-the-box?, in Life Time Contracts, Luca Nogler & Udo Reifner (org.), pp. 75 e

segs. 43 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 209. 44 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 209. 45 Sobre a importância dos PECL e do DCFR no contexto do Direito Europeu dos Contratos, v. LUISA ANTONIOLLI, The Evolution of

European Contract Law: A Brand New Code, a Handy Toolbox or a Jack-in-the-box?, cit., pp. 75 e segs.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

35

5. Matérias reguladas pela Diretiva 1999/44/CE

Na elaboração da Diretiva 1999/44/CE o legislador comunitário inspirou-se, em

grande medida, na Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda Internacional de

Mercadorias (Convenção de Viena) 46, embora, contrariamente a esta, a Diretiva vise

apenas uma harmonização mínima de certos aspetos da venda de bens de consumo,

considerada essencial para remover os obstáculos que se colocam à realização do mercado

interno e assegurar, nesta matéria, um nível elevado de tutela do consumidor47.

A harmonização visada pela Diretiva 1999/44/CE não é uma harmonização completa

do direito da compra e venda, mas sim uma harmonização mínima de certos aspetos da

venda e das garantias de bens de consumo48. O núcleo dogmático da Diretiva centra-se na

noção de conformidade dos bens com o contrato. A Diretiva configura a conformidade dos

bens com o contrato como uma obrigação do vendedor e regula os direitos que assistem ao

consumidor no caso de essa obrigação não ser cumprida, com exclusão, porém, da

obrigação de indemnizar cuja disciplina é integralmente remetida aos Estados-Membros.

Todos os outros “aspetos” dos contratos de compra e venda de bens de consumo que

a Diretiva não regula – em particular, a conclusão do contrato, os vícios da vontade, as

obrigações do adquirente, as obrigações do vendedor diversas da obrigação de entregar

bens em conformidade com o contrato e a transmissão da propriedade – continuam a ser

regulados, em exclusivo, pelas normas nacionais dos vários Estados-Membros.

46 Aprovada em 11 de abril de 1980 pela Conferência das Nações Unidas sobre os contratos de venda internacional de mercadorias que

teve lugar em Viena. A Convenção de Viena foi ratificada por um número elevadíssimo de Estados europeus (33) e, ainda, por um

significativo número de Estados não europeus. Portugal até à presente data ainda não a ratificou. Cfr. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito

Comercial Internacional, cit., p. 260. 47 Cfr. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 52. Isto mesmo se depreende do disposto no seu art. 8.º, n.º 2, que

autoriza os Estados-Membros a adotar ou manter, sobre os pontos regulados pela Diretiva, disposições mais estritas para assegurar um

nível de proteção mais elevado do consumidor. 48 Com efeito, diferentemente da Convenção de Viena, a Diretiva 1999/44/CE não regula a formação do contrato, nem os efeitos da

compra e venda de bens de consumo. O direito de indemnização pelos prejuízos direta ou indiretamente resultantes da venda de coisas

defeituosas também não se encontra previsto no diploma comunitário muito embora o art. 8.º, n.º 1, deste diploma determine

expressamente que o exercício dos direitos nele previstos não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao

abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual. Por regular ficaram, também, os

serviços pós-venda, previstos, entre nós, no art. 9.º, n.º 5, da Lei de Defesa do Consumidor. Neste particular, a Diretiva afasta-se da

solução da Convenção de Viena de 1980 sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias, que consagra uma regulamentação

completa da compra e venda de mercadorias quando tenha carácter internacional.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

A Diretiva 1999/44/CE atribui, no art. 4.º, ao vendedor final que seja responsável

perante o consumidor pela falta de conformidade resultante de um ato ou omissão do

produtor, de um vendedor anterior da mesma cadeia contratual, ou de qualquer outro

intermediário, “o direito de regresso contra a pessoa ou pessoas responsáveis da cadeia

contratual”. O “direito de regresso” regulado no art. 4.º da Diretiva não é, em rigor, um

“aspeto” da venda de bens de consumo, uma vez que a pretensão reconhecida por esta

norma não se destina a ser exercida por um consumidor mas sim por um profissional (o

vendedor final), e com base na relação entre este último e o produtor (ou os operadores que

figurem como anéis intermediários na cadeia contratual). Não obstante, a inserção desta

disposição num diploma destinado a disciplinar apenas negócios concluídos entre

consumidores e profissionais justifica-se tendo em conta a notável influência que a questão

nela tratada exerce nas relações entre consumidores e vendedor final.

6. Breve referência ao âmbito de aplicação do regime da compra e venda de bens de

consumo consagrado no DL n.º 67/2003, de 8 de abril

6.1. Âmbito subjetivo de aplicação

No que diz respeito ao âmbito subjetivo de aplicação, o n.º 1 do art. 1.º-A do DL n.º

67/2003, aditado pelo DL n.º 84/2008, estabelece que “[o] presente decreto-lei é aplicável

aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores”. Sendo

este o âmbito subjetivo de aplicação do diploma, o mesmo não será aplicável quando não

exista uma relação de consumo, o que acontece numa relação entre profissionais, numa

relação entre não profissionais ou, ainda, nos contratos de “venda de consumo invertida”,

em que um profissional compra um objeto a um consumidor, podendo ou não vender-lhe

simultaneamente outro bem49.

49 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, “O Novo Regime da Venda de Bens de Consumo”, in Estudos do Instituto do Direito de Consumo, vol.

II, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 37-73, p. 41. Assim, por exemplo, o diploma não será aplicável quando o alienante é um particular, o

que acontece, por exemplo, quando uma empresa adquire uma coisa em segunda mão. Como refere Jorge Morais Carvalho, fora do

âmbito das relações de consumo, o Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL n.º 18/2008, de 29 de janeiro (retificado pela

Declaração de retificação n.º 18-A/2008, de 28 de março), e alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, e pelos Decretos-Leis n.os

223/2009, de 11 de setembro, e 278/2009, de 2 de outubro, manda aplicar o regime definido no DL n.º 67/2003, com as necessárias

adaptações, a qualquer contrato pelo qual um contraente público compre bens móveis a um fornecedor (art. 437.º). Aplica-se, ainda, este

regime, por remissão, aos contratos de locação de bens móveis (art. 432.º) e aos contratos de aquisição de serviços (art. 451.º). Cfr.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

37

A aplicação do regime jurídico da venda de bens de consumo, consagrado no DL

67/2003, é delimitada pela definição legal de consumidor consagrada no art. 1.º-B, alínea

a), do DL n.º 67/2003, aditado pelo DL n.º 84/2008, que define “consumidor” como

“aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer

direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional

uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”50.

Trata-se, com efeito, da repetição da definição de consumidor já consagrada entre

nós no art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (LDC), a qual, por estar inserida num

diploma que incorpora os princípios gerais do direito do consumo, podemos considerar

como a mais relevante51. A definição dada pelo art. 1.º-B, alínea a), do DL n.º 67/2003

corresponde, ainda, àquela que se acha consagrada na Diretiva transposta, que, no art. 1.º,

n.º 2, alínea a), define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos

abrangidos pela presente directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial

ou profissional”.

É a noção de consumidor em sentido estrito a mais corrente e generalizada na

doutrina e nas Diretivas comunitárias relativas a contratos e que inclui qualquer pessoa que

adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico [na

fórmula da alínea a) do art. 2.º da Convenção de Viena] –, de modo a satisfazer as suas

necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços

para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa52. Sem menção à sua

condição de especial debilidade, fraqueza ou vulnerabilidade estrutural, a imagem do

consumidor visado por esta noção comunitária corresponde “à de um participante no

mercado que, embora isolado, é uma pessoa emancipada, razoável e informada ou que,

pelo menos, procura informação e que é susceptível de ser bem informada, podendo e

devendo, por isso, decidir os seus próprios negócios”53.

JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina,

Coimbra, 2012, p. 230. 50 Na reforma do DL n.º 67/2003 pelo DL n.º 84/2008, a alínea a) do art. 1.º-B dá a definição de consumidor vertida no n.º 1 do art. 2.º

da Lei n.º 24/96, para que remetia o n.º 1 do art. 1.º do DL n.º 67/2003 na primitiva redação. Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de

Consumo, cit., p. 56. 51 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 23. 52 Cfr. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 55 e 56. 53 V. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 31.

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Excluem-se assim desta noção de consumidor as pessoas coletivas54, bem como os

profissionais, mesmo atuando fora do domínio da sua atividade profissional e, portanto, em

áreas nas quais não dispõem, nem devem dispor, por virtude da sua profissão, de qualquer

competência específica para a aquisição dos bens55 . A restrição do âmbito dos

consumidores às pessoas físicas (também designadas pessoas naturais ou pessoas

singulares) é uma característica constante da legislação da União Europeia, explicitamente

confirmada em decisão recente do TJUE respeitante à Diretiva sobre cláusulas contratuais

abusivas56. Foi também esta a orientação que, apesar das críticas de que tem sido alvo, foi

adotada pelo legislador alemão no § 13 do BGB. De acordo com este preceito, a noção de

consumidor inclui a pessoa física que atua com um fim alheio ao seu comércio, negócio ou

profissão, sendo que, ainda nos termos do referido preceito, apenas a ligação a uma

atividade empresarial ou profissional por conta própria exclui a qualidade de consumidor57.

54 As pessoas coletivas já não se encontram excluídas da noção dada pelo art. 2.º, n.º 1, da LDC. Sobre esta noção, v. PAULO DUARTE,

“O conceito jurídico de consumidor segundo o art. 2.º/1 da Lei de Defesa do Consumidor”, in Boletim da Faculdade de Direito de

Coimbra, 75, 1999, pp. 649 a 703. O Autor limita esta noção ao domínio contratual e rejeita uma posição que recuse às pessoas

coletivas, só pelo facto de o serem, a qualidade de consumidores. No mesmo sentido, considerando que do chamado princípio da

especialidade do fim (arts. 160.º, n.º 1, do Código Civil e 6.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais) não se pode extrair um

argumento válido para rejeitar a qualificação como consumidor das pessoas coletivas (mesmo daquelas cujo objeto consiste

exclusivamente no exercício de uma atividade económica), v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de

consumo”, cit., p. 214. Explica o Autor que “[n]ão só se impõe, por várias razões, um entendimento bastante amplo deste princípio,

como, a ser ele afectado, apenas estaria em causa a validade dos actos, alheia à qualificação como consumidor”. Sobre a noção de

consumidor utilizada nas diretivas comunitárias, v. WOLFGANG FABER, “Elemente vershiedener Verbraucherbegriffe in EG-Richtlinien,

zwischen-staatlichen Übereinkommen und nationalem Zivil- und Kollisionsrecht”, ZEuP, 4, 1998, pp. 854 a 892. 55 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 214 e 215. Sobretudo por razões de

manutenção da coerência com outras diretivas comunitárias, não vingou o alargamento da noção de consumidor resultante da definição

contida no art. 2.º, alínea a), da proposta de diretiva, por forma a incluir as pessoas que atuem com objetivos que não são diretamente

relacionados com a profissão – ou seja, profissionais em áreas alheias à sua atividade profissional (profissionais “não especialistas”). 56 O Tribunal decidiu que “apenas as pessoas físicas são abrangidas pela noção de consumidor usada pela diretiva relativa às cláusulas

abusivas em contratos celebrados entre um profissional e um consumidor”. V. LUDOVIC BERNADEAU, “La notion de consommateur en

droit communitaire (à la suíte de l’arrête de la C.J.C.E. du 22 novembre 2001, Idealservice, aff. Jointes C- 541/99 et C-542/99)”, in

REDC, 2001, pp. 341 e segs. 57 A aplicação das regras de proteção do consumidor é problemática também nos casos de atuação com objetivos mistos, em parte

ligados à profissão e em parte ligados à esfera privada (dupla finalidade). O Bundesgerichtshof ainda não lidou explicitamente com esta

questão. Contudo, o Tribunal Europeu de Justiça já considerou que nos termos da Convenção de Bruxelas a pessoa que atua com

objetivos mistos, em parte ligados à profissão e em parte alheios a esta, só pode ser considerada consumidor se os aspetos ligados à

profissão forem totalmente marginais. No Acórdão do TJUE de 20 de janeiro de 2005, proc. C-464/01, o Tribunal conclui que “uma

pessoa que celebrou um contrato relativo a um bem destinado a uma utilização parcialmente profissional e parcialmente estranha à sua

atividade profissional não se pode prevalecer do benefício das regras de competência específicas previstas nos arts. 13.º a 15.º da [...]

Convenção [de Bruxelas], salvo se a utilização profissional for marginal, a ponto de apenas ter um papel despiciendo no contexto global

da operação em causa, sendo irrelevante a este respeito o facto de o aspeto extraprofissional ser dominante”. O Bundesgerichtshof, num

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

39

Nos casos de atuação com objetivos mistos, em parte ligados à profissão e em parte

alheios a esta, poderá questionar-se se se deve atender à finalidade predominante ou se, por

exemplo, basta, para a qualificação como consumidor, que o ato não seja praticado

exclusivamente com objetivos ligados à atividade profissional (objetivos esses a apurar por

interpretação em face do caso concreto)58. Nestes casos, o melhor critério para determinar

se se trata de uma relação de consumo parece consistir no uso predominantemente dado ao

bem59.

No que toca ao vendedor profissional, este é definido no art. 1.º-B do DL n.º

67/2003, aditado pelo DL n.º 84/2008, como “qualquer pessoa singular ou colectiva que,

ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade

profissional”. Esta norma reproduz textualmente o disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 1.º

da Diretiva 1999/44/CE, havendo assim uma coincidência do âmbito subjetivo de

aplicação do diploma comunitário e do diploma nacional de transposição60. Ficam, assim,

excluídas as atuações fora do âmbito da atividade profissional, designadamente, as vendas

privadas de bens de consumo que o profissional efetue (embora este possa ser um

profissional liberal, e não necessariamente um titular de empresa)61.

caso em que o consumidor pretendia agir no exercício da sua profissão com vista a obter um desconto que normalmente só estava

disponível para profissionais, decidiu que só o ponto de vista da outra parte, determinado objetivamente, é relevante para a questão de

saber se foi ou não concluído um contrato de consumo. Quer o Tribunal Europeu de Justiça quer o Supremo Tribunal Alemão fazem

uma interpretação muito estrita da noção de consumidor. Assim, a noção de consumidor de acordo com a nova lei alemã está muito

próxima da noção europeia. Quando se coloca a questão de saber se a parte num contrato é ou não consumidor, os Tribunais Alemães

remetem sempre para a jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça e até agora seguiram sempre a sua linha de decisão. Parece que

deverão fazer o mesmo nos casos de atuação com objetivos mistos. 58 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 215. 59 Neste sentido, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Manual de Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2013, p. 15; FERNANDO BAPTISTA

DE OLIVEIRA , O Conceito de Consumidor: perspectivas nacional e comunitária, Almedina, Coimbra, 2009, p. 88. Em sentido contrário,

v. MENEZES LEITÃO, “Caveat venditor? – A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a venda de bens de

consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda”, in Estudos em Homenagem ao Professor

Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. I, Almedina, Coimbra, 2002, p. 273. 60 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 57. 61 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 216.

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6.2. Âmbito objetivo de aplicação

A delimitação objetiva do âmbito de aplicação do diploma resulta quer do objeto

mediato – que deve ser um bem de consumo –, quer do seu conteúdo – um contrato de

compra e venda62.

A alínea b) do n.º 2 do art. 1.º da Diretiva define bem de consumo como qualquer

bem móvel corpóreo com exceção dos bens vendidos por via de penhora, ou qualquer outra

forma de execução judicial; da água e do gás, quando não forem postos à venda em volume

delimitado, ou em quantidade determinada, e da eletricidade.

O DL n.º 67/2003, na redação que lhe é dada pelo DL n.º 84/2008, não só estende a

aplicação do regime especial transposto a bens imóveis, como ainda a bens móveis que a

Diretiva excepciona63. É o que resulta agora de forma expressa da alínea b) do art. 1.º-B,

que define bem de consumo como “qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os

bens em segunda mão”. Assim, e de acordo com o que já resultava dos arts. 4.º e 12.º da

LDC, na redação anterior ao DL n.º 67/2003, este diploma abrange agora quaisquer bens

corpóreos (móveis ou imóveis), independentemente das suas caraterísticas concretas.

Excluídos do âmbito de aplicação do DL n.º 67/2003 (como se depreende

implicitamente pela referência a bens corpóreos) estão os bens incorpóreos, sendo estes

aqueles que não têm existência física, como os bens inteletuais ou os direitos.

A Diretiva 1999/44/CE exclui do seu âmbito de aplicação a água e o gás, quando não

sejam postos à venda em volume delimitado ou em quantidade determinada (por exemplo,

uma garrafa de água ou uma botija de gás), e a eletricidade. Estas exceções não foram,

porém, transpostas para o DL n.º 67/2003, pelo que este se aplica também a estes bens, os

quais, ainda que sejam fornecidos no âmbito de um contrato de fornecimento continuado,

devem considerar-se bens corpóreos.

Por outro lado, desde que esteja em causa uma relação de consumo, o DL n.º

67/2003 abrange quer os bens novos, quer os bens usados. O legislador nacional não usou

a faculdade reconhecida aos Estados-Membros de excluírem “os bens em segunda mão

62 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 216. 63 Trata-se, como observa Calvão da Silva, de uma extensão legítima, não só porque estamos fora do domínio de aplicação da Diretiva,

num espaço da mais ampla liberdade do legislador nacional, mas também, para evitar um recuo da proteção do consumidor, uma vez que

a Lei de Defesa do Consumidor não se confinava a bens móveis (arts. 4.º, n.º 3, e 12.º, n.º 2, da LDC, na anterior redação) nem

excepciona quaisquer daqueles bens móveis – v. Venda de Bens de Consumo, cit., p. 60.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

41

adquiridos em leilão, quando os consumidores tenham a possibilidade de assistir

pessoalmente à venda” (art. 1.º, n.º 3, da Diretiva 1999/44/CE)64. Não tendo lançado mão

desta liberdade, o diploma nacional de transposição inclui também, no seu âmbito de

aplicação objetivo, as coisas em segunda mão adquiridas em leilão, mesmo que o

consumidor/comprador tenha estado presente65.

Discute-se se o regime consagrado no DL n.º 67/2003 deve ser aplicado à venda de

bens no âmbito de um processo de execução. A alínea d) do n.º 2 do art. 1.º da Diretiva

define bem de consumo como qualquer bem móvel corpóreo, com exceção “dos bens

vendidos por via de penhora, ou qualquer outra forma de execução judicial”. Pelo

contrário, na definição de bem de consumo, a alínea b) do art. 1.º-B do DL n.º 67/2003,

aditado pelo DL n.º 84/2008, não exclui os bens que sejam vendidos no âmbito de um

processo judicial. Calvão da Silva entende que o legislador português, ao não excepcionar,

à semelhança da Diretiva, os bens vendidos por via de penhora, ou qualquer outra forma de

execução judicial, reconhece “ao comprador ou adjudicatário direito à garantia legal nas

vendas forçadas, tal como nas vendas voluntárias”66.

O n.º 2 do art. 1.º-A, introduzido pelo DL n.º 84/2008, estende a aplicação do regime,

“com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um

64 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 60. 65 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 60. Refere-se “mesmo que o consumidor tenha estado presente no leilão”,

para significar que a aquisição em leilão de bens em segunda mão pelo telefone está no domínio da Diretiva, sem espaço de liberdade

deixado aos Estados-Membros. O n.º 2 do art. 5.º reconhece expressamente a inclusão dos bens em segunda-mão ao estabelecer que o

prazo para o exercício dos direitos, no caso de coisa móvel usada, “pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes”. Como refere

Jorge Morais Carvalho, “deve considerar-se contrato de troca de bens de consumo o contrato através do qual o consumidor e o

profissional transmitem reciprocamente a propriedade de duas coisas distintas, sendo que apenas o bem adquirido pelo consumidor é um

bem de consumo, nomeadamente para efeitos da protecção conferida pelo DL n.º 67/2003”. 66 Cfr. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 61 a 63. Posição diferente é sustentada por Jorge Morais Carvalho,

que entende que a venda em processo executivo não se encontra abrangida pelo regime do DL n.º 67/2003, por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, por não se poder considerar que exista nestes casos uma relação jurídica de consumo, uma vez que o vendedor (quer

seja o Estado, o agente de execução ou, numa interpretação muito alargada do conceito, o credor que é pago pelo valor do bem em

causa) não pode ser qualificado como profissional, porque pode não ter contacto mínimo com o bem ou conhecimentos específicos na

área que permitam garantir a conformidade nos termos alargados e de certa forma sancionatórios do DL n.º 67/2003; em segundo lugar,

o art. 908.º do CPC, na redação do DL n.º 38/2003, de 8 de março, regula especificamente os casos em que “existe falta de conformidade

com o que foi anunciado” no processo que antecedeu a venda executiva, podendo o comprador pedir a anulação da venda e uma

indemnização nos termos gerais. Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no

Direito do Consumo, cit., pp. 229 e 230. O Autor refere, no entanto, que, na interpretação da expressão “falta de conformidade com o

que foi anunciado”, podem e devem ter-se em conta, na medida em que se adeqúem ao processo de venda executiva dos bens, os

critérios constantes do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003.

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contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de

consumo”67.

Esta extensão afigura-se compreensível tendo em conta que as Diretivas são

instrumentos de harmonização de ordens jurídicas em que os tipos negociais “compra e

venda” e “empreitada” se encontram definidos com contornos diversos e, ainda, tendo em

conta as dificuldades que surgem frequentemente quando se trata de qualificar um contrato

como sendo de compra e venda ou de empreitada68. A isto acresce que a distinção, por

vezes ténue, entre os dois tipos contratuais, se afigura em grande medida irrelevante do

ponto de vista do consumidor cujos interesses se visa tutelar.

Segundo Calvão da Silva, na amplitude da expressão “contratos de fornecimento de

bens de consumo a fabricar ou a produzir” devem, pois, incluir-se as empreitadas de coisas

– coisas móveis ou imóveis, específicas ou genéricas – firmadas por consumidores, a

fabricar ou produzir com materiais fornecidos pelo empreiteiro ou pelo dono da obra (art.

1212.º, n.º 1, do Código Civil)69. Desta maneira, pela igualdade de regime, o legislador

comunitário e nacional dispensa ao consumidor a qualificação do “fornecimento de bens

de consumo a fabricar ou a produzir” como venda ou empreitada.

A Convenção de Viena de 1980, no art. 3.º, n.º 1, considera também de compra e

venda os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir, a menos que o

comprador tenha fornecido uma parte essencial dos materiais necessários para o fabrico ou

67 Esta norma veio alterar a redação originária do n.º 2 do art. 1.º, que estendia a aplicação do regime, por um lado, aos contratos de

fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir e, por outro lado, aos contratos de locação de bens de consumo. 68 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 219. 69 Assim, por exemplo, António encomenda uma mobília para a sua casa de habitação, a fabricar pelo industrial B, mediante um preço,

sejam os materiais fornecidos pelo primeiro ou pelo segundo. Neste sentido, o disposto no art. 2.º, n.º 3, in fine, em que a falta de

conformidade decorrente dos materiais fornecidos pelo consumidor exclui a responsabilidade do fornecedor do bem. Desta maneira, pela

igualdade de regime, o legislador (comunitário e nacional) dispensa ao consumidor a qualificação do “fornecimento de bens de consumo

a fabricar ou a produzir” como venda ou empreitada – já se A entra num estabelecimento comercial e compra uma mobília de quarto em

exposição, nenhuma dúvida existe quanto à qualificação como compra e venda. Diferente é, porém, o regime resultante do art. 3.º, n.º 1,

da Convenção de Viena de 1980: “São considerados de compra e venda os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a

produzir, a menos que o contraente que as encomende tenha de fornecer uma parte essencial dos elementos materiais necessários para o

fabrico ou produção”. Por força desta norma, na Convenção de Viena só é considerada compra e venda a empreitada de construção

(fabrico ou produção) de coisa móvel com materiais fornecidos, no todo ou na sua maior parte, pelo empreiteiro. É o

“Werklieferungsvertrag”, contrato misto de compra e venda e de empreitada, também chamado “Werkskauf” (compra de obra) e

“Kaufwerkvertrag” (contrato de obra de compra), que pode ser visto como uma espécie de contrato de empreitada (arts. 1210.º e 1212.º,

n.º 1, 1.ª parte, do nosso Código Civil) ou como um tipo especial de compra e venda, a que o § 651 do BGB manda aplicar as

disposições sobre compra e venda. Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 65.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

43

produção70. A Diretiva, assim como o respetivo diploma nacional de transposição, não

estabelecem, porém, idêntica restrição, aplicando-se a contratos de empreitada, ainda que o

preço seja determinado sobretudo em função dos serviços e não da coisa, ou em que a

maioria ou todos os materiais sejam fornecidos pelo consumidor71. Assim, por exemplo, os

referidos diplomas, ao contrário da Convenção de Viena de 1980, aplicar-se-ão a um

contrato para confeção de um fato em que o tecido seja fornecido pelo consumidor72.

O legislador nacional decidiu, ainda, estender o regime especial da compra e venda

de bens de consumo, consagrado no DL n.º 67/2003, à locação de bens de consumo, muito

embora este contrato não estivesse incluído no âmbito de aplicação do diploma

comunitário73.

70 Como observa Lima Pinheiro, nestes casos, o contrato aproxima-se mais de uma prestação de serviços ou de um contrato de trabalho,

devendo a expressão “parte substancial” ser entendida no sentido de “parte considerável” e não de “parte essencial” – cfr. Direito

Comercial Internacional, cit., p. 268. O art. 3.º, n.º 2, da Convenção de Viena de 1980 determina também a inaplicabilidade deste

diploma aos contratos que combinem elementos da venda e da prestação de serviço ou de trabalho, quando este for o elemento

preponderante. Assim, por exemplo, o contrato para a reparação de uma máquina, em que o custo das peças de substituição é inferior ao

da mão de obra, está, em princípio, excluído do âmbito de aplicação da Convenção. 71 Note-se, porém, que não se considerará existir falta de conformidade quando ela “decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”

(art. 2.º, n.º 3, parte final). Sobre a exclusão da responsabilidade do vendedor nos casos em que a falta de conformidade do bem decorre

dos materiais fornecidos pelo consumidor, v. infra ponto 8.2. 72 O diploma não se aplica a outros contratos de prestação de serviço e, em especial, aos contratos de empreitada que tenham por objeto

a reparação ou a limpeza de um bem. O DL n.º 67/2003 já será porém aplicável às peças novas que sejam inseridas num bem no âmbito

da reparação, uma vez que, neste caso, o contrato não é apenas de empreitada de reparação, mas também de compra e venda (ou de

empreitada que consista no fornecimento) da peça inserida no bem e este insere-se no âmbito de aplicação do DL n.º 67/2003. Cfr.

JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 235. 73 Como observa CALVÃO DA SILVA , a “locação de bens de consumo” existe nos clássicos arrendamentos de imóveis para habitação

própria e do agregado familiar de pessoas singulares e nos clássicos alugueres de coisas móveis para consumidores [art. 1022.º e segs. do

Código Civil e do Regime do Arrendamento Urbano]. Assim, a par do direito comum (arts. 1032.º, 1034.º, 1035.º, 1040.º e 1050.º do

Código Civil), os vícios da coisa locada subsumem-se ao regime especial da compra e venda de bens de consumo, com as eventuais e

justificadas acomodações. Por locação de bens de consumo pode entender-se, seguramente, o aluguer de longa duração, nomeadamente

de automóveis, e ainda o leasing ou locação financeira mobiliária ou imobiliária, regulado pelo DL n.º 149/95, de 3 de novembro. Cfr. J.

CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 53. Mas para efeitos dos vícios físicos ou falta de conformidade da coisa locada,

responsável é o vendedor ou o empreiteiro, consoante o caso, e não o locador – locador que só pode ser um Banco [art. 4.º, n.º 1, alínea

b), do DL n.º 298/92, de 31 de dezembro], uma Sociedade de Locação Financeira (DL n.º 72/95, de 15 de abril) ou uma Instituição

Financeira de Crédito (DL n.º 186/2002, de 21 de agosto) –, nos termos do disposto nos arts. 12.º e 13.º do DL n.º 149/95. Já pelos vícios

do direito, previstos no art. 1034.º do Código Civil, responde o locador (art. 12.º, 2.ª parte, do DL n.º 149/95). Também constitui locação

de bens de consumo a chamada locação-venda, prevista no art. 936.º, n.º 2, do Código Civil. Diferentemente da locação financeira, que é

o contrato através do qual a transferência da propriedade para o locatário só ocorre se, no termo do prazo contratual, este optar pela sua

aquisição, a locação-venda é o contrato através do qual se loca uma coisa, com a cláusula de que, no termo do contrato, com o

pagamento da última prestação, ela se tornará imediata e automaticamente propriedade do locatário. Sobre o contrato de locação

financeira, v., por todos, FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Manual da Locação Financeira, Almedina, Coimbra, 2006.

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No que respeita aos contratos de locação de bens de consumo, o DL n.º 67/2003

abrange, por um lado, quer os contratos de arrendamento quer os contratos de aluguer e,

por outro lado, formas contratuais que embora tenham grande afinidade com a locação

(encontrando-se por vezes entre a locação e a compra e venda ou tendo uma forte

componente de financiamento) não se encontram reguladas no Código Civil, como a

locação financeira, o aluguer de longa duração ou o aluguer operacional de veículos, entre

outras.

Ao invés, excluídos do âmbito de aplicação da Diretiva e do diploma nacional de

transposição estão os contratos de mera reparação, conservação ou manutenção de bens

que o consumidor já possua, bem como as demais prestações de serviços, com exceção dos

serviços de instalação da coisa vendida ou fornecida74. Na verdade, o art. 2.º, n.º 4, do DL

n.º 67/3003, na esteira do disposto no art. 2.º, n.º 5, da Diretiva 1999/44/CE, inclui no

campo de aplicação do referido diploma a prestação do serviço de instalação, acessória da

compra e venda, na medida em que equipara a má instalação ou a deficiência nas

instruções a uma falta de conformidade do bem com o contrato75.

74 Cfr. J. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 53. 75 Sobre esta equiparação, v. infra ponto 7.

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PARTE I

O CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CÓDIGO CIVIL PORTUG UÊS

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CAPÍTULO I – Noção e efeitos do contrato de compra e venda

1. Noção e aspetos gerais do contrato de compra e venda

O contrato de compra e venda constitui talvez o mais importante contrato regulado

no Código Civil76, não só em virtude da importante função económica que desempenha,

mas também porque o seu regime se apresenta como paradigmático em relação aos outros

contratos onerosos de alienação ou oneração de bens, como, por exemplo, a troca77.

Nos termos do disposto nos arts. 874.º e 879.º do Código Civil, o contrato de compra

e venda é configurado como um contrato consensual, real quoad effectum, sinalagmático,

oneroso e de execução instantânea78. O art. 874.º do Código Civil define-o como o

“contrato pelo qual se transfere a propriedade de uma coisa ou outro direito mediante um

preço”79. Desta definição resulta que a compra e venda consiste essencialmente na

76 O contrato de compra e venda é neste sentido um contrato nominado, uma vez que a lei o reconhece como categoria jurídica e típico

porque o seu regime se encontra consagrado na lei. No Código Civil, o contrato de compra e venda encontra-se regulado no Livro II,

“Direito das Obrigações”, no Título II, “Dos contratos em especial”, constando a sua disciplina dos arts. 874.º a 939.º. O contrato de

compra e venda encontra-se também regulado no Código Comercial, já que a disciplina da compra para revenda consta dos arts. 463.º a

476.º do Código Comercial. Em geral, sobre o contrato de compra e venda na doutrina portuguesa v., CUNHA GONÇALVES, Tratado de

Direito Civil, em Comentário ao Código Civil Português, VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 1934, n.os 1165 e segs., pp. 326 e segs.; PIRES

DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, anotações aos arts. 874.º e segs., pp.

160 e segs. No que diz respeito à venda de bens de consumo, esta é regulada por um regime especial, consagrado no DL n.º 67/2003, de

8 de abril, alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21 de maio, aplicando-se supletivamente, a tudo o que não se encontre previsto neste

diploma, a disciplina consagrada no Código Civil. 77 É o que resulta do art. 939.º do Código Civil, no qual se determina que “[a]s normas da compra e venda são aplicáveis aos outros

contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua

natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas”. 78 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , “Contrato de Compra e venda...”, cit., pp. 14 a 24; ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações –

Contratos, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 23; MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., pp. 14 a 17; NUNO

AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, Almedina, Coimbra, 2009,

p. 356. 79 O art. 1470.º do CCit define a venda como “o contrato que tem por objeto a transferência da propriedade de uma coisa ou a

transferência de um outro direito mediante um preço”. Esta norma deve ser coordenada com o disposto no art. 1476.º do CCit que

enumera, entre as obrigações principais do vendedor, a obrigação de entregar a coisa ao comprador e a obrigação de fazer adquirir a

propriedade da coisa ou do direito, se a aquisição não for um efeito imediato do contrato. Há ainda uma terceira obrigação do vendedor,

prevista no art. 1476.º, que consiste em garantir o comprador da evicção e dos vícios da coisa. A obrigação do vendedor de garantir o

comprador da evicção e dos vícios da coisa é um efeito “natural” da venda, consequência da obrigação do vendedor de transferir o

direito e a posse da coisa e a sua consideração pelo Código Civil italiano como verdadeira e própria obrigação de garantia deve-se ao

peso da tradição romanística que associava à emptio-venditio uma autónoma relação de garantia, derivada da aposição de uma stipulatio.

Como explica Alessandro Natucci, esta “garantia” (arts. 1476.º, 3480.º e segs., 1512.º e segs. do CCit) não é, na realidade, uma

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transmissão de um direito, ou seja, numa aquisição derivada do mesmo80, contra o

pagamento de um preço. O art. 879.º do Código Civil completa a definição legal do art.

874.º, enunciando, como refere a sua epígrafe, os três “[e]feitos essenciais” do contrato de

compra e venda: a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito [alínea

a)]; a obrigação de entrega da coisa [alínea b)], e a obrigação de pagamento do preço

[alínea c)]81. Isto significa que, a par da produção do efeito real consubstanciada na

transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito82, o contrato de compra e

venda é também um contrato produtor de efeitos obrigacionais.

Apesar disso, é possível vislumbrar a existência de contratos de compra e venda nos

quais a obrigação de entrega da coisa não existe por esta já se achar na posse do comprador

(assim, por exemplo, se as partes celebraram um contrato-promessa de compra e venda

com tradição da coisa objeto do contrato prometido, a conclusão do contrato definitivo não

tem como efeito a constituição da obrigação de entrega da coisa, visto não ser necessário

nenhum ato material para atribuir a posse da coisa ao comprador), bem como de contratos

de compra e venda dos quais não decorre, como efeito, a obrigação de pagamento do

verdadeira e própria garantia, mas representa o conteúdo das obrigações do vendedor a respeito da evicção e dos vícios da coisa. Tal

“garantia” vem determinada pela lei com base na responsabilidade objetiva. Isto significa, segundo o A., que deverá ser idêntico o

tratamento a dar a uma verdadeira e própria garantia prestada por terceiro; não porque se trate de uma obrigação de garantia mas porque

a disciplina da obrigação de garantia modela-se sobre a disciplina da obrigação principal. A natureza da obrigação de garantia é a mesma

da obrigação garantida: se o devedor principal responde objetivamente também o garante responderá objetivamente; se o primeiro

responder com fundamento em culpa o segundo também só responderá com este fundamento. Cfr. ALESSANDRO NATUCCI,

«Considerazioni sul Principio “res perit domino” (Art. 1465 C.C.)», in RDC, 2010, II, pp. 41 a 59, pp. 41 e 42, nota 2. No antigo Direito

Romano, nem a garantia por evicção, nem a garantia por vícios eram consequência direta da venda: o comprador que desejasse ficar

garantido deveria recorrer a uma stipulatio e dispunha então de uma ação autónoma derivada dessa stipulatio (actio ex stipulatu). Só

com o decurso do tempo, por efeito dos usos, as obrigações de garantia do vendedor foram consideradas como nascendo da própria

compra e venda e compreendidas, pois, na actio empti. Cfr. ALESSANDRO NATUCCI , «Considerazioni sul Principio “res perit domino”

(Art. 1465 C.C.)», cit., p. 42, nota 3. 80 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 21. Assim, como explica o A., se as partes convencionam a

aquisição originária de um direito pelo adquirente não se estará perante uma compra e venda. Não há, porém, obstáculo a que a compra e

venda abranja hipóteses de aquisição derivada constitutiva como a constituição de direitos reais menores. 81 Assim, completando a definição dada pelo art. 874.º do Código Civil, podemos afirmar que a função do contrato de compra e venda

consiste essencialmente na transferência da propriedade de uma coisa (ou outro direito) mediante um preço, mas compreende também a

obrigação de entrega da coisa, ou seja, a transferência da sua posse para o comprador, bem como a obrigação de pagamento do preço. 82 Embora o Código refira, como exemplo paradigmático da transmissão do direito, a transferência da propriedade, a compra e venda não

se restringe a esta situação, podendo abranger a transmissão de qualquer outro direito real, e, inclusivamente, de direitos que não sejam

reais, como os direitos sobre valores mobiliários, os direitos de propriedade industrial, os direitos de propriedade intelectual (direito de

autor), os direitos de crédito (por exemplo, a cessão de créditos, regulada nos arts. 577.º e segs. do Código Civil, quando feita

onerosamente é qualificada como compra e venda, nos termos do art. 578.º do Código Civil), os direitos potestativos ou situações

jurídica complexas, como a posição contratual ou as universalidades de direito.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

49

preço. Assim acontece, por exemplo, se as partes celebraram previamente um contrato-

promessa de compra e venda tendo o preço sido integralmente pago pelo promitente-

comprador aquando da celebração desse contrato83.

2. Características gerais do contrato de compra e venda

A compra e venda caracteriza-se, antes do mais, por ser um contrato nominado, uma

vez que a lei o reconhece como categoria jurídica e típico, uma vez que o seu regime se

encontra expressamente previsto na lei, quer para a compra e venda civil (arts. 874.º e segs.

do Código Civil), quer para a compra e venda comercial (arts. 463.º e segs. do Código

Comercial), quer, ainda, para a compra e venda de bens de consumo, cujo regime se

encontra, como já referimos, consagrado no DL n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo

DL n.º 84/2008, de 21 de maio84.

Em matéria de compra e venda vigora o princípio da liberdade de forma previsto no

art. 219.º do Código Civil, pelo que a compra e venda constitui, em regra, um contrato

consensual. No entanto, em determinados casos, a lei sujeita este contrato à observância de

uma forma especial, como sucede, por exemplo, na compra e venda de imóveis, que, por

força do disposto no art. 875.º do Código Civil (redação do DL n.º 116/2008, de 4 de

julho), só é válida se for celebrada por escritura pública ou documento particular

autenticado. Esta exigência de forma é, aliás, extensiva a todos os atos que importem

reconhecimento, constituição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de

propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis e aos

atos de alienação, repúdio e renúncia da herança ou legado de que façam parte coisas

imóveis85.

83 Neste sentido, defende Nuno Oliveira que a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço não podem ser

consideradas efeitos essenciais do contrato de compra e venda – cfr. Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 12.

Refere o Autor que o texto das alíneas b) e c) do art. 879.º carece de uma correção já que a constituição dos deveres (principais) de

entrega da coisa e de entrega (pagamento) do preço não é um efeito essencial do contrato, já que há contratos de compra e venda sem

obrigação de entrega da coisa, por exemplo, os contratos de compra e venda de coisa na posse do comprador, e há contratos de compra e

venda sem obrigação de pagamento do preço, por exemplo, se as partes celebraram um contrato-promessa de compra e venda e o

promitente-comprador pagou o preço. 84 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., pp. 13 e 14. 85 Cfr. art. 22.º, alíneas a) e c), do DL n.º 116/2008, de 4 de julho, e art. 2126.º, n.º 1, do Código Civil, na redação daquele diploma.

Note-se que, para além disso, é exigida a observância de forma escrita em diversas situações por razões de proteção do consumidor.

Assim acontece na venda a domicílio (art. 16.º do DL n.º 143/2001, de 26 de abril, republicado pelo DL n.º 82/2008, de 20 de maio).

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A compra e venda é um contrato oneroso uma vez que pressupõe a existência de uma

contrapartida pecuniária para a transmissão de bens, importando assim sacrifícios

económicos para ambas as partes86. Se não existir qualquer contrapartida o contrato é

qualificável como contrato de doação (art. 940.º) e se a contrapartida não consistir numa

quantia pecuniária o contrato já não constitui uma compra e venda, mas antes um contrato

de escambo ou troca87. Para além de ser um contrato oneroso, a compra e venda é também

um contrato sinalagmático, uma vez que as obrigações do vendedor e do comprador se

constituem tendo cada uma a sua causa na outra (sinalagma genético), o que determina que

permaneçam ligadas durante a fase da execução do contrato, não podendo uma ser

realizada se a outra o não for (sinalagma funcional)88. Isto significa que são, por isso,

aplicáveis à compra e venda as regras relativas ao sinalagma contratual, como, por

exemplo, a exceção de não cumprimento (arts. 428.º e segs.) e a resolução por

incumprimento (art. 801.º, n.º 2).

Embora se configure em termos típicos como um contrato comutativo, em que ambas

as atribuições patrimoniais se apresentam como certas, a compra e venda pode também

funcionar como um contrato aleatório. Assim acontece nas hipóteses da venda de bens

futuros, frutos pendentes e partes componentes ou integrantes, se as partes atribuírem ao

contrato esse carácter aleatório, nos termos do n.º 2 do art. 880.º, e, ainda, na venda de

bens de existência ou titularidade incerta (art. 881.º), na venda de herança ou quinhão

hereditário (arts. 2124.º e segs.), ou na venda de expectativas.

Para além disso, a compra e venda caracteriza-se por ser normalmente um contrato

de execução instantânea, uma vez que, quer em relação à obrigação de entrega, quer em

relação à obrigação de pagamento do preço, o seu conteúdo e extensão não são delimitados

em função do tempo. Essa situação ocorre mesmo na venda a prestações, dado que, apesar

do seu fraccionamento em diversos períodos de tempo, este apenas determina a forma de

86 Não é, porém, necessário que ocorra uma equivalência de valores entre o direito transmitido e o preço respetivo. Se a intenção das

partes é a de atribuir efetivamente um enriquecimento ao alienante ou ao adquirente, a situação já não corresponderá a uma verdadeira

compra e venda, mas antes a um contrato misto de venda e doação. Cf. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 15. 87 O contrato de escambo ou troca estava previsto no art. 1592.º do Código Civil de 1867, mandando o art. 1594.º aplicar-lhe as regras da

compra e venda, exceto na parte relativa ao preço. Atualmente, esse contrato deixou de estar previsto no Código Civil, embora

continuem a ser-lhe aplicáveis as regras da compra e venda, por força do art. 939.º. O contrato continua, porém, a estar previsto no

Código Comercial (art. 480.º). 88 Sobre o conceito de sinalagma, v. MARIA DE LURDES PEREIRA E PEDRO MÚRIAS, “Sobre o conceito e extensão do sinalagma”, in

Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção, Almedina, 2008, pp. 379 a 430.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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realização da prestação, não influenciando o seu conteúdo e extensão. Ao invés, já serão

contratos de execução continuada os contratos de fornecimento, como o contrato de

fornecimento de gás e de eletricidade, pois nestes casos o tempo tem uma influência

decisiva na conformação global da prestação.

3. Efeitos do contrato de compra e venda

No que toca aos seus efeitos, a compra e venda caracteriza-se por ser um contrato

real quoad effectum, uma vez que produz a transmissão de direitos reais [art. 879.º, alínea

a)] e, simultaneamente, um contrato produtor de efeitos obrigacionais, já que determina a

constituição de duas obrigações: a obrigação de entregar a coisa [art. 879.º, alínea b)] e a

obrigação de pagar o preço [art. 879.º, alínea c)].

3.1. O efeito real do contrato de compra e venda

3.1.1. A origem dos vários sistemas de transmissão ou constituição de direitos

reais

Nos países europeus de Direito Civil codificado, os diferentes sistemas de

constituição e transmissão de direitos reais – maxime de aquisição derivada da propriedade

– têm, pese embora as suas diferenças, uma origem comum que se encontra no Direito

Romano89.

No Direito Romano, a transferência da propriedade não dependia da celebração do

contrato de compra e venda – emptio et venditio, considerado como titulus adquirendi –,

uma vez que este tinha efeitos meramente obrigacionais, mas dependia da celebração de

um segundo negócio posterior – o modus adquirendi. No Direito Romano clássico, com

89 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, in Derecho Privado Europeo, Sergio

Cámara Lapuente (coord.), Colex, Madrid, 2003, p. 954. Sendo certo que o efeito essencial do contrato de compra e venda se traduz “na

transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”, importa, porém, referir que constitui um sério obstáculo, na

perspetiva de uma futura unificação do Direito Civil Europeu, ainda que confinada ao Direito patrimonial, a diversidade entre os vários

ordenamentos jurídicos nacionais no que respeita aos sistemas de aquisição derivada da propriedade89. Esta diversidade de sistemas de

transmissão e constituição de direitos reais, estritamente relacionada com a questão da transferência do risco do perecimento ou

deterioração da coisa, acaba por influenciar também o impacto da transposição da Diretiva 1999/44/CE nos vários ordenamentos

jurídicos nacionais.

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base na distinção entre as res mancipi e as nec mancipi, contemplavam-se três modos ou

formas de adquirir a propriedade das coisas: a mancipatio, a in iure cessio e a traditio90.

Com o Direito justinianeo, desapareceu a distinção entre res mancipi e nec mancipi e

a traditio passou a ser o modo de aquisição derivada da propriedade91.

Nas fontes romanas, a traditio tem vários significados e nem sempre conduz à

aquisição da propriedade. Em princípio, a traditio consite no ato material de entrega da

coisa. Mas esta entrega, entendida como ato material, pode destinar-se apenas a transferir a

posse da coisa ou, desde que estejam preenchidos certos requistos, pode servir para

transferir a propriedade sobre ela92. A traditio, como modo de adquirir a propriedade, não é

assim, um simples facto, mas sim um ato jurídico (de disposição), no qual podemos

distinguir um elemento volitivo e um elemento de forma93.

O elemento de forma consiste inicialmente no ato real ou material correspondente à

entrega física do bem pelo tradens, embora se tenha passado posteriormente a admitir que,

em lugar de ser real ou material, a traditio pudesse ser apenas simbólica (como a entrega

das chaves – traditio clavium – ou a entrega dos documentos ou do título da propriedade –

traditio instrumentorum) ou mesmo ficta (como nos casos da traditio brevi manu e do

constituto possessório)94. Para além disso, enquanto ato de disposição, a traditio só produz

a transmissão da propriedade da coisa se o tradens for dono dela. De outro modo, o

accipiens terá de esperar, para se tornar proprietário, possuir a coisa ut dominus o tempo

suficiente (inicialmente curto: um ano para móveis e dois para imóveis) para adquirir a

propriedade por usucapião95. De facto, ao desaparecerem as formas solenes de transmissão

(mancipatio e in iure cesio), a usucapião só conserva a sua funcionalidade como

complemento da traditio, no caso de o tradens não ser proprietário96.

90 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 21. Sobre a compra e venda e as formas de transmissão da propriedade

no Direito Romano, v. A. SANTOS JUSTO, Direito Privado Romano – II (Direito das Obrigações), in BFDUC, Stvdia Ivridica, 76,

Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 48 e segs.; ANTÓNIO A. VIEIRA CURA, «Compra e venda e transferência da propriedade no Direito

Romano Clássico e Justinianeu (A raiz do “sistema do título e do modo”)», in BFDUC, volume comemorativo, 2003, pp. 68 a 112. 91 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 954. 92 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955. 93 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955. 94 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., pp. 21 e 22. 95 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955. 96 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

53

No que diz respeito ao elemento volitivo, a transferência da propriedade só se produz

se existir em ambos os sujeitos um animus transferendi et accipiendi dominii.

Relativamente a este elemento volitivo, os ordenamentos jurídicos que são herdeiros

do Direito Comum Romano situam-se em duas posições distintas, ambas fundadas na

interpretação dos textos de Direito Romano: há aqueles que consideram que basta o mero

acordo dirigido a transferir e a adquirir a propriedade e há aqueles que, pelo contrário,

entendem que é necessária a prévia existência de uma iusta causa, isto é, um negócio

anterior que sirva de fundamento ou razão jurídica da transmissão97. Nesta divergência

interpretativa está a origem dos diferentes sistemas de transmissão da propriedade em que

se posicionam hoje os ordenamentos jurídicos europeus98.

3.1.2. Os vários sistemas de constituição e transmissão de direitos reais no

direito comparado

No direito comparado, podemos distinguir três sistemas de constituição ou

transmissão de direitos reais: o sistema do título e do modo, o sistema do modo e o sistema

do título.

No sistema do título e do modo, vigente na Áustria (§ 425 ABGB) e em Espanha (art.

609 CCesp)99, a produção do efeito real depende simultaneamente da existência, da

validade e da eficácia de um título – de um ato por que se exprima a vontade de atribuir e

de adquirir – e de um modo – de um ato por que se realize a atribuição e a aquisição (como

97 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955. 98 PEDRO DE PABLO CONTRERAS, “La Propriedad y la Transmisión de los Derechos Reales”, cit., p. 955. Como explica o A., a leitura

dos textos romanos com elementos concetuais trazidos pela escolástica e a influência canônica, propicia a aparição, no Direito

intermédio, da chamada teoria do título e do modo. Esta, assente na distinção aristotélico-tomista entre potência e ato, ou entre causa

remota e causa próxima, converte aquilo que eram requisitos da traditio romana como modo de adquirir em elementos concetualmente

diversos. Assim, o elemento volitivo (animus) identifica-se com o contrato que serve de justa causa da tradição, o qual contém a

transmissão da propriedade apenas em potência: torna-a possível, mas não a realiza por si mesmo. Para que a transmissão da propriedade

tenha lugar é necessária a entrega da coisa, real ou fictícia. O primeiro elemento (o contrato com finalidade transmissiva) é o título e o

segundo (a entrega) é o modo. Assim, consolida-se a ideia de que o acordo de vontades requerido pela traditio não tem existência

autónoma, mas está compreendido no título. E foi esta banalização no que toca ao entendimento do modo de adquirir que deu lugar, nos

sistemas de transmissão consensual, por mero acordo de vontades incorporado no contrato ou título, cujo paradigma se encontra no

Código Civil francês. 99 Sobre a transmissão da propriedade no sistema jurídico espanhol, v. ASSUNÇÃO CRISTAS, MARIANA FRANÇA GOUVEIA e VÍTOR

PEREIRA NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 62 e segs.

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a traditio ou o registo)100. Qualquer um destes atos por si só é insuficiente. A realização da

traditio só permite transmitir o direito real se tiver sido precedida de um negócio jurídico

que fundamente essa transmissão (como o contrato de compra e venda). Mas, por outro

lado, se houver só título (como na hipótese de apenas a compra e venda ter sido celebrada),

o negócio terá valor meramente obrigacional, sem produzir efeitos reais101. Trata-se de um

sistema de transmissão causal dos direitos reais, dado que, embora o negócio causal e a

transmissão sejam dois negócios distintos, a validade da transmissão depende do negócio

causal102.

No sistema do modo, o efeito real depende exclusivamente do segundo ato (do

modus adquirendi) – do ato por que se realizem a atribuição e a aquisição (na alienação de

coisas móveis, o efeito real depende exclusivamente da entrega da coisa, e, na alienação de

coisas imóveis, ele depende exclusivamente da inscrição no registo, resultante de um

acordo de transmissão)103, não sendo necessário um título de aquisição). É este o sistema

do Código Civil alemão (§§ 433, 873 e 929), onde o contrato de compra e venda tem valor

meramente obrigacional, não produzindo qualquer efeito real. No Direito alemão, para que

o comprador se torne proprietário do bem vendido é necessário, se o referido bem for uma

coisa móvel, um segundo acordo de transmissão (Einigung) – acordo abstrato translativo,

seguido da traditio ou entrega (übergabe) da coisa; se o bem vendido for uma coisa

imóvel, exige-se também um novo acordo de transmissão (Auflassung) – também ele um

acordo abstrato translativo – e, ainda, a inscrição nos registos da propriedade

(Eintragung)104.

Nos Direitos que utilizam o sistema do título, como é o caso dos sistemas jurídicos

francês105, italiano e português, vigoram os princípios da consensualidade e da causalidade.

100 Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 36. 101 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 23. 102 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 23. 103 Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 36. 104 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 23. 105 A evolução a que se assistiu no Direito Romano no que respeita à traditio, entendida inicialmente como negócio que implicava um

ato real ou material correspondente à entrega física do bem pelo tradens, para posteriormente se admitir que em lugar de ser real ou

material, a traditio pudesse ser apenas simbólica (entrega das chaves) ou mesmo ficta (traditio brevi manu e constituto possessório),

abriu caminho a que no antigo Direito francês se admitisse a estipulação, nos contratos de compra e venda, de cláusulas instituindo a

traditio ficta ou tradition feinte, como a cláusula de “dessaisine-saisine”, ou de constituto e precário, pela qual o vendedor declarava,

logo no momento da celebração do contrato, que abdicava já da propriedade e da posse a favor do comprador, ficando apenas como

possuidor precário da coisa até à sua entrega. Posteriormente, considerou-se mesmo que se deveria presumir a estipulação dessa

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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De acordo com o princípio da consensualidade, a produção do efeito real depende apenas

do título de aquisição (titulus adquirendi), ou seja, do ato porque se exprime a vontade de

atribuir e de adquirir em virtude de uma causa reconhecida pelo Direito106. Esse título é,

por si só, suficiente para produzir o efeito real, pelo que a transmissão da propriedade se

verifica logo com a celebração do contrato de compra e venda, não sendo necessário

qualquer ato posterior de entrega ou qualquer outra formalidade, como, por exemplo, o

registo107. O princípio da consensualidade está ligado ao princípio da causalidade108. Como

a existência de título é necessária para a constituição ou transmissão do direito real, a

validade ou regularidade da causa de aquisição é imprescindível para que essa constituição

ou transmissão se opere, pelo que qualquer vício no negócio causal afetará igualmente a

transmissão da propriedade109.

O princípio da causalidade vigora quer no sistema do título, em virtude de a

transmissão do direito real depender apenas do negócio transmissivo, quer no sistema do

título e do modo, dada a conexão causal entre o título e o modo110. Diferentemente, no

sistema do modo vigora o princípio oposto – o princípio da abstração –, segundo o qual os

vícios no negócio causal não podem afetar a transferência da propriedade111.

3.1.3. A adoção dos princípios da consensualidade e da causalidade no Direito

português

A regra portuguesa que regula a matéria da constituição ou transmissão do direito de

propriedade consta do art. 408.º, n.º 1, do Código Civil, no qual se determina que “[a]

tradition feinte, mesmo sem qualquer declaração das partes, o que implicou considerar o modus adquirendi como compreendido no

próprio titulus. Essa evolução levou a que se passasse a atribuir à traditio valor meramente teórico, dado que na prática passava a ser a

vontade das partes o fator determinante para a transmissão do direito real. Posteriormente, a escola do jusnaturalismo racionalista

(Grotius, Puffendorf) teorizou dogmaticamente esta nova conceção, consagrando o princípio de que a vontade das partes, manifestada

através do contrato, é só por si suficiente para produzir o efeito real. É em virtude dessa influência que o Código Civil francês de 1804

acolheu o princípio da consensualidade (arts. 1138.º, 1583.º e 938.º CCfr), o qual viria a ser reconhecido por outros Códigos por ele

influenciados, designadamente pelo italiano (cfr. arts. 1583 do Código de 1865 e 1376 e segs. do atual) e pelo português (art. 715.º do

Código de Seabra e 408.º, n.º 1, do Código Civil). Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24. 106 Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 36. 107 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 22. 108 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24. 109 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24. 110 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24. 111 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24.

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constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero

efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”112.

O sistema jurídico português de constituição e transmissão de direitos reais

enquadra-se, assim, entre os sistemas do título: “[p]ara a constituição ou transmissão do

direito real basta normalmente o acordo das partes, pelo que a celebração do contrato de

compra e venda acarreta logo a transferência da propriedade”113 [cfr. arts. 879.º, alínea a),

e 408.º, n.º 1], sujeitando-se assim a transmissão da propriedade aos princípios da

consensualidade e da causalidade114. De acordo com o primeiro, para que o efeito real se

produza é suficiente a existência de um título (contrato de compra e venda), o que significa

que a transmissão da propriedade se verifica logo com a celebração do contrato de compra

e venda, como efeito imediato e automático, não sendo necessário qualquer ato posterior

de entrega ou qualquer outra formalidade como, por exemplo, o registo115. Este princípio –

o princípio da consensualidade – tem grandes vantagens, desde logo, a simplicidade da

forma como se procede à transmissão de direitos reais, a qual se funda apenas na vontade

das partes, não dependendo, assim, de posteriores formalidades116. O segundo princípio, o

princípio da causalidade, está ligado ao primeiro, já que, sendo o título necessário para a

transmissão ou constituição do direito real, a sua validade ou regularidade é imprescindível

para que essa constituição ou transmissão se opere, de tal forma que qualquer vício no

negócio causal afetará igualmente a transmissão da propriedade117.

3.1.4. Venda real e venda obrigatória

O facto de o direito português consagrar o sistema do título significa que, entre nós, a

compra e venda é caracterizada no âmbito da venda real. Neste sistema, o adquirente, após

a celebração do contrato, adquire imediatamente a propriedade da coisa vendida que pode

112 No que diz respeito à compra e venda, esta regra encontra o seu lugar paralelo nos arts. 879.º, alínea a), e 1317.º, alínea a), do Código

Civil, sendo do conjunto destas normas que se pode concluir qual o momento em que a propriedade se transfere. Cfr. ASSUNÇÃO

CRISTAS, MARIANA FRANÇA GOUVEIA e VÍTOR PEREIRA NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, cit., p. 50. 113 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 21. 114 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24. 115 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 22. 116 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 21. Criticando o art. 408.º, n.º 1, v. Pedro Múrias, “Panfleto sobre o

Ridículo em Direito Civil”, in http://www.muriasjuridico.no.sapo.pt . 117 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 24.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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imediatamente opor erga omnes, no caso de bens não sujeitos a registo, ficando, no caso

dos bens sujeitos a registo, essa oponibilidade a terceiros dependente do cumprimento do

ónus registral. A transmissão da propriedade surge, assim, ligada à celebração do contrato,

da qual depende como efeito automático118.

A venda real opõe-se à venda obrigatória119 que corresponde ao modelo original do

contrato no âmbito do direito romano e hoje existe nos Direitos alemão, austríaco,

espanhol e brasileiro120. De acordo com esta modalidade de venda, o contrato, por si só,

não transfere a propriedade. O contrato gera apenas uma eficácia obrigacional, no sentido

de que dele nascem tão-só obrigações para as partes: a obrigação de pagar o preço e de

transferir a propriedade da coisa, que se irá operar através de um ulterior ato translativo, o

qual, no caso de coisas móveis, se concretiza com a tradição, e, no caso das coisas imóveis,

com o registo121.

3.1.5. As exceções aos princípios da consensualidade e da causalidade:

reconhecimento da venda obrigatória no Direito português?

Embora consagre o sistema do título, o art. 408.º, n.º 1, do Código Civil admite a

possibilidade de existência de exceções a este sistema: “A constituição ou transferência de

direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as

118 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 25. 119 Sobre a contraposição entre a venda obrigatória e a venda real, v. GALVÃO TELLES, “Venda obrigatória e venda real”, in RFDUL 5

(1948), pp. 76 a 87; e RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, in ROA, 43, 1983, pp. 588 e segs. 120 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 25. No Direito italiano é controversa a admissibilidade da chamada

venda obrigatória. Com efeito o art. 1470.º do CCit define a venda como “o contrato que tem por objeto a transferência da propriedade

de uma coisa ou a transferência de um outro direito mediante a contrapartida de um preço” e o art. 1476.º do CCit enumera entre as

obrigações do vendedor “quella de fargli acquistare la proprietà dela cosa o il diritto, se l’acquisito non è effetto imediato del

contrato”. A aquisição da propriedade da coisa ou da titularidade do direito pode ser efeito imediato do contrato nos termos do art.

1376.º: nos contratos que têm por objeto a transferência da propriedade de uma coisa determinada, a constituição ou a transferência de

um direito real ou a transferência de um outro direito, a propriedade e o direito transmitem-se e adquirem-se por efeito do consenso das

partes legitimamente manifestado. Perante estes textos, a doutrina italiana reconhece em regra a natureza real da venda, mas discute

também a admissibilidade de casos de venda obrigatória. A dificuldade reside essencialmente em saber em que consiste neste caso o

carácter obrigatório da compra e isso depende, em grande medida, da interpretação do art. 1476.º do CCit, na parte em que este

estabelece uma “obrigação de o vendedor fazer adquirir a propriedade da coisa ou o direito, se a aquisição não é efeito imediato do

contrato”, questionando a doutrina se, por essa via, não se estabelece a admissibilidade excepcional da venda obrigatória. Sobre esta

questão, v. ALESSANDRO RIZZIERI, La Vendita Obligatoria, Milano, Giuffrè, 2000. 121 Cfr. ASSUNÇÃO CRISTAS, MARIANA FRANÇA GOUVEIA e VÍTOR PEREIRA NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, cit., p. 50.

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excepções previstas na lei” 122 . As “excepções previstas na lei” dizem respeito aos casos

em que a transferência da propriedade se encontra dissociada da celebração do contrato –

contratos de compra e venda sem eficácia real imediata. Poder-se-á questionar se, nestes

casos, o direito português admite a possibilidade de a transferência da propriedade não

estar sujeita aos princípios da consensualidade e da causalidade, o que equivaleria a

reconhecer a admissibilidade da chamada venda obrigatória123.

Na verdade, embora a compra e venda tenha, em regra, eficácia real imediata, o

nosso Código Civil admite dois tipos de situações em que se verifica uma dissociação entre

o momento da celebração do contrato e o da transmissão da propriedade124. A primeira

ocorre sempre que a lei proceda a uma separação, mesmo que meramente cronológica,

entre o momento em que se verifica a conclusão do contrato e o momento em que ocorre o

fenómeno translativo125. A segunda sucede quando o fenómeno translativo não se pode

verificar por um impedimento originário (venda de coisa alheia)126.

A primeira situação ocorre nos casos de compra e venda de coisa indeterminada, nos

casos de compra e venda de bens futuros, de frutos pendentes, de partes componentes ou

de partes integrantes e, ainda, na compra e venda com reserva de propriedade. Nos casos

de compra e venda de coisa indeterminada o direito real só se transfere no momento em

que ocorre a determinação da coisa com conhecimento de ambas as partes (art. 408.º, n.º 2,

do Código Civil). Excetuam-se os casos das obrigações alternativas e das obrigações

genéricas: nas obrigações alternativas, o direito real transfere-se com a escolha; nas

obrigações genéricas, no momento da concentração (arts. 540.º e 541.º do Código Civil)127.

Na venda de bens futuros, o direito real só se transfere “quando a coisa for adquirida pelo

alienante” (art. 408.º, n.º 2, do Código Civil). Tratando-se de venda de frutos pendentes,

partes componentes ou de partes integrantes de uma coisa, a transferência do direito real

ocorre no momento da colheita ou da separação (art. 408.º, n.º 2, do Código Civil). Por

fim, na venda com reserva de propriedade, a aquisição integral da propriedade apenas

122 Itálico nosso. 123 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 25. 124 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 26. 125 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 26. 126 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 26. 127 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 38.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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ocorre no momento do pagamento do preço ou do evento em relação ao qual as partes

determinaram essa verificação (art. 409.º, n.º 1, do Código Civil)128.

A segunda situação verifica-se na compra e venda de coisa alheia, prevista no art.

892.º do Código Civil. Nesta situação, o direito real não se transmite em virtude de o

vendedor não ser o proprietário do bem vendido. Por esta razão, o efeito translativo não se

produz desde logo (no momento da celebração do contrato), mas sim num momento

posterior: (se e) no momento em que o vendedor adquirir por algum modo a propriedade

da coisa ou do direito vendido (art. 895.º do Código Civil).

Pode questionar-se se o contrato de compra e venda sem eficácia real imediata é um

contrato com eficácia obrigacional, configurando-se como um caso de venda obrigatória,

ou se, ao invés, se trata de um contrato com eficácia real diferida ou mediata129.

Consideramos preferível o segundo termo da alternativa. Na verdade, em todos estes casos,

o fenómeno translativo é transferido para um momento posterior, mas não fica dependente

de uma obrigação de transferir (dare) em sentido técnico130. A compra e venda é sempre a

causa da constituição ou da transmissão do direito real, decorrendo esta constituição ou

transmissão, automaticamente, da verificação de um facto posterior à celebração do

contrato131. Isto significa que, mesmo nas hipóteses em que não possui eficácia real

128 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 26. 129 No ordenamento jurídico português discute-se, em face do disposto no art. 408.º, n.º 1, do Código Civil, a admissibilidade da

chamada venda obrigatória. Os Autores que consideram admissível a figura da venda obrigatória no ordenamento jurídico português

fundamentam a sua posição na interpretação da parte final do art. 409.º, n.º 1, do Código Civil que determina que “[n]os contratos de

alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte

ou até à verificação de qualquer outro evento”. Assim, por exemplo, ASSUNÇÃO CRISTAS, MARIANA FRANÇA GOUVEIA e VÍTOR

PEREIRA NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, cit., pp. 61 e 129, concluem que, em virtude da supletividade do n.º 1 do art.

408.º, e dado não constituir a entrega da coisa “mero” elemento exterior, será o evento que produz a transmissão do direito e não o

contrato; FERREIRA DE ALMEIDA , “Transmissão contratual da propriedade – entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos

regimes”, in Themis, ano VI, n.º 11, pp. 5 a 17 [pp. 8, 11-12 e 16], considerando a transmissão do direito real como “efeito de um facto

complexo de formação sucessiva” e equacionando a compra e venda meramente obrigacional por acordo das partes nesse sentido,

relativamente a títulos de crédito em papel e valores mobiliários, e na venda de coisa alheia e, concluindo que “o princípio da

transmissão solo consenso é quase um mito”. Ainda no domínio do Código de Seabra, também ANTUNES VARELA, Ensaio Sobre o

Conceito de Modo, Atlântida, Coimbra, 1955, p. 62, n.º 2, suscitando dúvidas quanto à validade da venda obrigacional quando tenha

ocorrido a entrega prévia da coisa. 130 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 27. 131 É maioritária a orientação que defende, com base no n.º 1 do art. 408.º a não admissibilidade, entre nós da chamada venda

obrigatória. Neste sentido, v. GALVÃO TELLES, “Contratos Civis – Exposição de motivos”, in RFDUL, v. IX, 1954, pp. 144 a 221, p.

128, considerando que a alienação pode ser diferida (no exemplo da alienação de coisa genérica, alternativa ou de bens futuros), mas

“ainda lança as suas raízes no contrato de compra e venda sem necessidade da interferência de um subsequente acto alienatório”; RAUL

VENTURA, Compra e Venda – Efeitos essenciais, pp. 593 e 595, sublinhando que o substantivo “mero”, constante do n.º 1 do art. 408.º,

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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imediata, o contrato de compra e venda integra sempre um esquema negocial translativo,

que é a causa da transmissão ou constituição do direito real, ainda que esta só se venha a

verificar em momento posterior.

Refira-se, no entanto, que as divergências em relação a esta questão são mais

aparentes que reais. Com efeito, mesmo que se admita que a parte final do n.º 1 do art.

409.º viabiliza que a produção do efeito real se verifique – pressupondo um contrato

anteriormente celebrado – com a entrega da coisa alienada ou com o registo, e se configure

nestes termos o contrato de compra e venda como um contrato obrigatório, cujos efeitos

reais se encontram dependentes de um fenómeno ulterior à manifestação do consentimento

das partes, que poderá ou não coincidir com um ato a praticar pelo devedor alienante, será

sempre inviável assimilar este contrato à figura da venda obrigatória, pelo menos nos

moldes em que esta se apresentava no Direito Romano e em que se apresenta atualmente

no Direito alemão132. Com efeito, mesmo que as partes manifestem a sua vontade no

sentido de configurar o contrato como um negócio jurídico real quoad constitutionem – o

qual exigiria, por exemplo, a entrega da coisa –, é insufragável que a conjugação da

entrega da coisa vendida com a invalidade do contrato de compra e venda possa ocasionar,

se acompanhada de um acordo real, a produção de efeitos transmissivos133. Assim, pelo

menos neste sentido, de afastamento a priori do sistema puro do modo, deve entender-se

que no contrato de compra e venda não existe uma obrigação de dare em sentido técnico.

3.2. Os efeitos obrigacionais do contrato de compra e venda

3.2.1. O dever de entregar a coisa

O contrato de compra e venda tem como efeito obrigatório a constituição da

obrigação de entrega da coisa que recai sobre o vendedor. A entrega, nos termos do art.

se destina a reforçar que a regra é “a constituição ou transmissão do direito unicamente por efeito do contrato”. No mesmo sentido, v.

ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações – Contratos, cit., p. 36, referindo a transferência do direito real como direta, ainda que não

necessariamente imediata pois pode ser complementada por outro facto; NUNO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções

Fundamentais, cit., p. 39, defendendo que “a compra e venda é sempre a causa da constituição ou da transmissão do direito real e, por

isso, a constituição ou transmissão dos direitos reais decorre automaticamente de um facto posterior à conclusão do contrato”. 132 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 27. 133 Neste sentido, v. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português,

cit., pp. 357 e 358.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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879.º, alínea b), constitui um efeito essencial do contrato, embora não seja um elemento

essencial, por não se encontrar mencionada no art. 874.º que contém a noção de compra e

venda134.

Isto significa que o comprador, para além de se tornar proprietário da coisa por mero

efeito da celebração do contrato, adquire ainda um direito de crédito à entrega da coisa por

parte do vendedor, o qual concorre com a ação de reivindicação (art. 1311.º), que pode

exercer enquanto proprietário da coisa135.

No que diz respeito ao que se deve entender por entrega da coisa, o Código Civil de

1867 continha duas disposições. No art. 1569.º determinava-se que a entrega das coisas

móveis efetua-se pela transferência delas para o poder do comprador, ou pelo facto de

serem postas à sua disposição, e o art. 1571.º dizia que a entrega dos bens imóveis e dos

direitos reputa-se feita logo que o vendedor entrega ao comprador o respetivo título

abandonando-lhe o gozo da coisa ou do direito, não havendo estipulação em contrário136. O

Código Civil de 1966 não contém preceitos semelhantes, deixando, pois, ao intérprete a

determinação do que seja a entrega da coisa137.

No entender de Raúl Ventura, na ausência de uma definição legal de entrega, e na

esteira de uma ideia generalizada quer na doutrina portuguesa quer na estrangeira,

podemos considerar como “essencial da entrega a aquisição da posse pelo comprador.

Transmitir a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito retirando ao

134 Neste sentido, v. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 618. Observa o Autor que é estranho que

um “efeito essencial” não seja ao mesmo tempo um “elemento essencial” e que para nenhum outro contrato usou o legislador do Código

Civil sistema idêntico. Sublinha também que a inspiração não veio do Código Civil italiano, pois este, ao enumerar no art. 1476.º as

obrigações principais do devedor, coloca à cabeça a obrigação de “fazer o comprador adquirir a propriedade da coisa ou o direito, se a

aquisição não é efeito imediato do contrato”. Refere ainda que “[o] nosso legislador imbuído do preconceito contra a compra e venda

obrigacional [...] não quis admitir, em hipótese alguma, que do contrato nascesse a obrigação de transmitir a propriedade e por isso

colocou a própria transmissão da propriedade (não a obrigação de a transmitir) como efeito essencial do contrato”. Procurando conciliar

o art. 874.º e o art. 879.º, entende RAÚL VENTURA que “[e]nquanto os das alíneas a) e c) constituem também elementos essenciais

típicos do contrato de compra e venda, o da alínea b) é só efeito essencial; a diferença entre essas duas situações reside em que, para o

requisito da alínea b) não é necessário que sobre ele incida a vontade das partes, aparecendo ele como um efeito legal ou conteúdo

legalmente obrigatório do contrato de compra e venda”. 135 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 29. Como observa Raul Ventura, ao criar a obrigação de entrega da

coisa, a lei mostra que não se contenta com a atribuição do direito de propriedade ou da titularidade do direito, independentemente da

situação em que a coisa se encontre e da disposição do vendedor de entregar ou não a coisa vendida; a lei pretende que o vendedor

realize aquilo que for necessário para o comprador poder exercer efetivamente o direito que adquiriu pelo contrato – v. O contrato de

compra e venda no Código Civil, cit., p. 621. 136 V. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 622. 137 Ver o art. 882.º, n.º 2, quanto à normal extensão do objeto da entrega.

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adquirente a possibilidade de exercer o direito de propriedade ou outro, não é

efectivamente transmitir o direito, o qual existe para poder ser exercido”138. Nestes termos,

deverá considerar-se que o cumprimento da obrigação de entrega corresponde, em regra, a

um ato material, a tradição física ou simbólica do bem, que permite ao comprador a sua

apreensão física, se se trata de móveis, ou a aquisição do gozo sobre ele se se trata de

imóveis139. Em virtude do cumprimento da obrigação de entrega, verificar-se-á, pois, a

atribuição da posse da coisa entregue ao comprador [art. 1263.º, alínea b)].

Note-se, porém, que considerar-se a coisa entregue ao comprador não significa

necessariamente que tenha havido, por parte do vendedor, o cumprimento de uma sua

obrigação de entrega. Assim, não deixa de haver entrega e aquisição da posse pelo

comprador quando se mantém uma detenção anterior por terceiro, designadamente quando

quem possuía em nome do vendedor passa a possuir em nome do comprador, assim como

há entrega quando o vendedor que possuía em nome próprio passa a possuir em nome do

comprador140. No caso de a coisa vendida já estar na posse do comprador ou de a venda

respeitar a direitos sobre coisas incorpóreas, nem sequer a entrega se torna necessária, o

que demonstra que, sendo esta obrigação um efeito legalmente obrigatório do contrato, não

constitui um elemento essencial do contrato de compra e venda141.

No que respeita ao âmbito da obrigação de entrega, esta abrange, salvo estipulação

em contrário, além da própria coisa comprada, as suas partes integrantes, os frutos

pendentes e os documentos relativos à coisa ou ao direito (art. 882.º, n.º 2). Assim, não é

lícito ao vendedor, após a venda, proceder à separação de coisas móveis que se encontrem

ligadas materialmente ao prédio vendido com carácter de permanência, ou proceder à

138 V. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 623. Observa o Autor que constitui convicção

generalizada, quer na doutrina portuguesa quer estrangeira, que o vendedor deve não só transferir a posse da coisa ou direito mas ainda

colocar o comprador numa situação que lhe permita o gozo normal do direito adquirido. 139 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 29. 140 Nestas hipóteses, reunidas no art. 1264.º como de constituto possessório, a posse considera-se transferida para o comprador e,

portanto, a coisa vendida considera-se entregue a este. Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p.

624. Sobre o constituto possessório, v. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Reais, 5.ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora,

Coimbra, 2000, pp. 120 e 121, defendendo que o constituto possessório, sendo uma forma de aquisição derivada é também uma forma

de transmissão da posse. “Se a transferência da posse é mero efeito do negócio jurídico e não se estabeleceu contacto entre o sujeito e a

coisa, parece só poder ser explicada como uma transmissão da situação jurídica.” 141 Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 619, salientando que na descrição do tipo legal do art.

874.º não se faz referência à obrigação de entrega da coisa.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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colheita de frutos pendentes, ou ainda conservar quaisquer documentos relativos à coisa ou

ao direito142.

A obrigação de entrega pode ainda incluir outros objetos, como, por exemplo, a

embalagem necessária ao acondicionamento do bem vendido, designadamente quando se

trata de bens sujeitos a risco de deterioração ou perecimento com o transporte. A

Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias

prevê, no art. 35.º, a inclusão da embalagem no âmbito da obrigação de entrega. Entre nós,

a embalagem deverá ou não ser incluída consoante os usos relativos a esses bens143.

A obrigação de entrega por parte do vendedor está sujeita às regras gerais quanto ao

tempo (arts. 777.º e segs.) e ao lugar do cumprimento (arts. 772.º e segs.). No que toca ao

tempo do cumprimento, se as partes não convencionaram prazo certo para a sua realização,

o comprador pode exigir a todo o tempo a entrega da coisa, assim como o vendedor pode a

todo o tempo proceder a essa entrega (art. 777.º, n.º 1). Nesta hipótese, o vendedor ficará

constituído em mora com a interpelação do comprador (art. 805.º, n.º 1). No caso de ter

sido convencionado prazo certo, ou este resultar da lei, o vendedor terá de entregar a coisa

até ao fim desse prazo, sob pena de incorrer em mora [art. 805.º, n.º 2, alínea a)], podendo,

no entanto, optar pela antecipação do cumprimento, uma vez que o prazo se presume

estipulado em seu benefício. A obrigação de entrega da coisa vendida está sujeita ao prazo

ordinário de prescrição de vinte anos (art. 309.º).

Quanto ao lugar do cumprimento, e caso não ocorra qualquer estipulação das partes,

haverá que distinguir consoante se trate de coisas móveis ou imóveis. Relativamente às

coisas móveis, caso se trate de coisas determinadas, coisas genéricas a ser escolhidas de

um conjunto determinado, ou coisas a ser produzidas em certo lugar, o art. 773.º determina

que a coisa deve ser entregue no lugar em que se encontrava ao tempo da conclusão do

negócio. Nos outros casos, a coisa deverá ser entregue no domicílio do vendedor (art.

772.º). Em relação às coisas imóveis, a entrega física apenas poderá ocorrer no lugar onde

o imóvel se encontra, devendo aplicar-se o critério supletivo geral do domicílio do devedor

142 V. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 31. 143 MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 31. A solução mais frequente será o bem já ser vendido dentro da

embalagem ou de esta ser fornecida acessoriamente. Noutros casos, porém, a embalagem é necessária para a entrega do bem mas não é

objeto do contrato, devendo ser posteriormente devolvida pelo comprador (venda de gás em botijas). Noutros casos ainda, a embalagem

pode ser objeto do contrato, mas o vendedor acordar com o comprador a sua posterior reaquisição (é o que acontece, a título de exemplo,

com as garrafas de vidro).

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(art. 772.º), no caso de as partes convencionarem que essa entrega deverá ser realizada

apenas simbolicamente.

Em caso de não cumprimento da obrigação de entrega por parte do vendedor, pode o

comprador nos termos gerais intentar contra o vendedor uma ação de cumprimento (arts.

817.º e segs.) que, tratando-se de coisa determinada, pode incluir a execução específica da

obrigação (art. 827.º). O vendedor está igualmente sujeito a ter de indemnizar o comprador

pelos danos que lhe causar o incumprimento da obrigação (arts. 798.º e segs.) ou a mora no

cumprimento (arts. 804.º e segs.), podendo o comprador, desde que se achem preenchidos

os respetivos pressupostos, resolver o contrato (art. 801.º, n.º 2).

3.2.2. A obrigação de pagamento do preço

A celebração de um contrato de compra e venda tem ainda, como efeito obrigacional,

a constituição da obrigação de pagamento do preço que recai sobre o comprador. A

obrigação de pagamento do preço, que recai sobre o comprador, é uma obrigação

pecuniária, sujeita ao regime dos arts. 550.º e segs., que se traduz na entrega de uma

quantia em dinheiro ao vendedor como contrapartida da entrega da coisa por parte deste144.

Aquando da celebração do contrato de compra e venda, o vendedor torna-se, pois, titular

de um direito de crédito sobre o comprador, apenas se tornando proprietário das espécies

monetárias correspondentes aquando do cumprimento por parte do comprador da

obrigação de pagamento do preço, através da realização da datio pecuniae145.

Não é necessário que, no momento da celebração do contrato, o preço se encontre

determinado146, bastando que seja determinável para efeitos do art. 280.º, n.º 1 do Código

Civil147.

144 V. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 33. 145 V. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 34. 146 Esta determinação pode contudo ocorrer quer como resultado da sua imposição por uma autoridade pública (preço de império), quer

como resultado da sua fixação pelas partes. 147 O preço será indeterminado, mas determinável, desde logo, quando as partes fixem uma forma de o preço ser determinado. Essa

forma pode consistir em confiar essa determinação a uma das partes ou a terceiro, caso em que o art. 400.º, n.º 1, estabelece que a

determinação não pode ser arbitrária, devendo ser feita segundo juízos de equidade se outros critérios não tiverem sido estabelecidos.

Neste caso, se a determinação não puder ser feita no tempo devido, sê-lo-á pelo tribunal com base nos mesmos juízos. Sobre o caso

especial da determinação do preço por terceiro, v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , “Determinação do preço por terceiro”, em CDP, n.º

30 (abril/junho 2010), pp. 3-15. Pode também acontecer que a lei, supletivamente, indique a forma de determinabilidade do preço, o que,

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A obrigação de pagamento do preço está sujeita a regras específicas quanto ao tempo

e ao lugar do cumprimento. Em relação ao tempo do cumprimento, na falta de convenção

ou de usos, o art. 885.º, n.º 1, determina que o preço deve ser pago no momento da entrega

da coisa vendida148. Trata-se de um afloramento do carácter sinalagmático do contrato

(sinalagma genético) no momento da execução da venda149. A imposição do pagamento do

preço no momento da entrega pressupõe, por outro lado, que nesse momento a obrigação

do vendedor seja integralmente cumprida. Assim, se a entrega for feita por fases, a

prestação do preço apenas deve ser efetuada aquando da realização da última entrega,

salvo se as partes convencionaram o preço em função da quantidade de coisas vendidas,

caso em que o vendedor terá legitimidade para exigir o pagamento à medida em que for

realizando as sucessivas entregas150.

Quanto ao lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço, caso as partes

nada tenham estipulado, nos termos do art. 885.º, n.º 1, o preço deve ser pago no lugar da

entrega da coisa vendida, o que se impõe em virtude de a lei fazer coincidir o cumprimento

da obrigação de entrega com o pagamento do preço (venda a pronto ou a contado). Se,

contudo, por estipulação das partes ou por força dos usos, o momento do pagamento do

preço não coincidir com o momento e com o lugar de cumprimento da obrigação de

entrega da coisa vendida, o mesmo deverá ser pago no domicílio que o credor tiver ao

tempo do cumprimento (art. 885.º, n.º 2), o que está de acordo com a regra geral relativa às

obrigações pecuniárias, prevista no art. 774.º do Código Civil151.

nos termos do art. 883.º, se estabelece não apenas para a hipótese de as partes nada dizerem sobre o preço (n.º 1), mas também no caso

de as partes se referirem ao “preço justo” (n.º 2). O art. 883.º estabelece uma ordem de critérios (supletivos) para a fixação do preço, no

caso de não haver preço fixo (tabelado), nem ele ter sido determinado pelas partes. Esses critérios legislativos mandam atender, em

primeiro lugar, ao preço do vendedor (o que normalmente praticar à data da conclusão do contrato: como sucede muitas vezes com a

venda de coisas fungíveis); em segundo lugar, ao preço corrente, ou seja, o do mercado ou da bolsa no momento do contrato e no lugar

em que o devedor haja de cumprir. Caso nenhum destes critérios se possa aplicar, o preço será determinado pelo Tribunal segundo juízos

de equidade (art. 883.º, n.º 1, in fine). O processo judicial para a fixação do preço encontra-se previsto no art. 1004.º do CPC. 148 Defende MENEZES LEITÃO que a norma pressupõe naturalmente que a transmissão da propriedade já se tenha verificado ou coincida

com a entrega, uma vez que o preço aparece como contrapartida dessa aquisição da propriedade. Assim, se a entrega ocorrer

antecipadamente a essa transmissão, naturalmente não obrigará o comprador a pagar o preço – cfr. Direito das Obrigações, vol. III, cit.,

p. 35. 149 Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 176. 150 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 35. 151 A aplicação a este caso da regra geral expressa no art. 774.º do Código Civil, relativa ao cumprimento das obrigações pecuniárias,

justifica-se até porque a cláusula de pagamento em momento diferente da entrega funciona, em regra, no interesse do comprador, sendo

justo por isso o benefício que, em contrapartida, se estabelece a favor do vendedor. Deve entender-se, por isso, que são também

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A obrigação de pagamento do preço está sujeita ao prazo ordinário de prescrição de

vinte anos (art. 309.º). Tratando-se, no entanto, de créditos de comerciantes pelos objetos

vendidos a quem não seja comerciante e não os destine ao seu comércio, existe uma

prescrição presuntiva ao fim de dois anos [art. 317.º, alínea b)].

Apesar de a obrigação de pagamento do preço se encontrar ligada por um nexo de

reciprocidade (sinalagma) à obrigação de entrega da coisa, o art. 886.º do Código Civil

vem restringir consideravelmente a faculdade de resolução do contrato por não

cumprimento da obrigação de pagamento do preço ao referir que “[t]ransmitida a

propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode,

salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”.

Isto significa que, no caso de ter sido definitivamente efetuada a atribuição

patrimonial do vendedor – através da transferência da propriedade e entrega do bem –, não

poderá o vendedor, em princípio, fazer reverter essa atribuição patrimonial por meio da

resolução por incumprimento, e reclamar por essa via a restituição do bem152. As suas

ações contra o comprador ficam assim restringidas à ação de cumprimento para cobrança

do preço (art. 817.º) e respetivos juros moratórios (art. 806.º, n.º 1)153.

A resolução do contrato por incumprimento da obrigação de pagamento do preço só

é possível nos casos em que as partes tenham estipulado que o incumprimento da

obrigação de pagar o preço por parte do comprador constitui fundamento de resolução; nos

casos em que, apesar de se ter já transmitido a propriedade da coisa para o comprador, o

contrato ainda não se encontra totalmente executado, por ainda não ter sido entregue a

coisa; e, nos casos em que, podendo o bem já ter sido entregue ao comprador, a

transmissão da propriedade ainda não ocorreu (art. 409.º). Nesta hipótese, uma vez que o

vendedor conserva a propriedade com fins de garantia, poderá naturalmente, em caso de

incumprimento, proceder à resolução do contrato e exigir a restituição do bem.

aplicáveis as regras gerais dos arts. 775.º e 776.º que completam aquela. Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado,

cit., p. 177. 152 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 36. 153 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 36. Como explica Menezes Leitão, a ratio deste regime explica-se

“em virtude de não ser muito conveniente, por tornar indefinida a situação jurídica dos bens, admitir que a transmissão da propriedade

pudesse ser facilmente revertida, sempre que o adquirente faltasse ao pagamento do preço”.

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CAPÍTULO II – A transferência do risco (da contraprestação) na compra e venda

1. Introdução

Sendo a compra e venda, como já referimos, um contrato bilateral sinalagmático, o

problema da transferência do risco (da contraprestação), nos contratos de compra e venda

com eficácia real imediata (contratos de compra e venda de coisa específica e presente),

não está sujeito, pelo menos aparentemente, à regra do art. 795.º, n.º 1, que consagra o

funcionamento do risco obrigacional, nos contratos bilaterais (com eficácia meramente

obrigacional), com base no funcionamento do sinalagma existente entre a obrigação de

entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço.

Porque o contrato de compra e venda é um contrato real quoad effectum, o problema

da transferência do risco (da contraprestação), ou seja, o problema de saber se, apesar do

perecimento ou deterioração da coisa por caso fortuito ou de força maior, ocorrido depois

da celebração do contrato e antes da entrega, o comprador continua obrigado a pagar o

preço, deve ser resolvido de acordo com o disposto no art. 796.º do Código Civil. Este

preceito, apenas aplicável a contratos “que importem a transferência do domínio sobre

certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela”, estabelece, no n.º 1,

a regra res perit domino, ou seja, determina que “o perecimento ou deterioração da coisa

por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente”. Não fazendo o n.º 1

do art. 796.º qualquer referência à entrega da coisa, poderá afirmar-se que esta norma

contrasta com as recentes tendências de “Direito Europeu dos Contratos”, que reconduzem

o problema do risco nos contratos de alienação ao princípio regulador dos contratos

bilaterais em geral154.

Em termos gerais, importa averiguar se a perda do objeto ocorre antes ou depois do

alienante ter cumprido: se a perda ocorre antes do cumprimento da obrigação de entrega, o

risco é do alienante, que fica privado da coisa e da contraprestação; no segundo caso, o

risco é do adquirente, que fica sem a coisa mas sujeito à contraprestação. Manifesta-se aqui

a interdependência própria dos contratos bilaterais: o alienante só pode exigir do

adquirente que cumpra se de seu lado também cumprir155.

154 Assim sucede, por exemplo, na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias, no DCFR e nos PECL. 155 GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, cit., p. 468.

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2. Breve referência ao âmbito de aplicação dos arts. 795.º, n.º 1, e 796.º

Nos contratos bilaterais sinalagmáticos, quer sejam meramente obrigacionais, quer

tenham eficácia real instantânea ou diferida, o regime da impossibilidade superveniente da

prestação, não imputável ao devedor, não se esgota na extinção da obrigação do devedor

ou no pedido, feito pelo credor, do “commodum” de representação (com a realização

proporcional da contraprestação). Em ambos os casos, é necessário determinar por conta

de quem corre o risco da impossibilidade superveniente ou, por outras palavras, é

necessário determinar se o credor, apesar da impossibilidade, continua adstrito à realização

da contraprestação, ou seja, ao pagamento do preço.

Nos contratos com eficácia meramente obrigacional, o risco da impossibilidade

superveniente não imputável ao devedor é regulado pelo art. 795.º, n.º 1, do Código Civil.

Esta norma, que regula o funcionamento do risco obrigacional assente no funcionamento

do sinalagma existente entre a obrigação de entrega da coisa e a sua contraprestação,

reparte o risco da impossibilidade de cumprimento de uma forma igualitária156: o credor

perde o direito à prestação, mas o devedor, por seu turno, também perde o direito à

contraprestação, arcando, em regra, com as despesas que, porventura, haja já realizado. Na

eventualidade de o credor recorrer ao “commodum” de representação, o efeito liberatório

será apenas parcial, devendo o credor, neste caso, realizar a contraprestação, tendo em

conta o valor do sub-rogado157.

Em todo o caso, o efeito liberatório do credor, nos termos do n.º 1 do art. 795.º, in

fine, não pressupõe a existência de qualquer declaração de resolução158. Esta, a existir, nem

156 Cfr. JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra,

2011, p. 183. Galvão Telles configura esta situação como um caso de caducidade do contrato por inexecução: “Quando a obrigação de

uma das partes se torna impossível por caso fortuito ou de força maior e portanto se extingue, a obrigação da outra parte também se

extingue, simultânea e necessariamente. O contrato caduca; os pactuantes ficam reciprocamente desligados dos seus compromissos;

nenhum deles obtém qualquer vantagem, mas também nenhum deles faz qualquer sacrifício. Por conseguinte o risco acha-se

eliminado.”. Segundo o Autor, esta solução tem o seu fundamento na ideia de justiça comutativa, sendo mais uma aplicação do princípio

da interdependência das obrigações sinalagmáticas. Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7.ª ed., (reimpressão),

Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 465 e 466. 157 Ver art. 12.º, n.º 2, do articulado de Vaz Serra (BMJ, n.º 46, p. 129) e o regime do § 326, IV do BGB. 158 A extinção automática e necessária da relação contratual, nos casos de impossibilidade não imputável ao devedor, contrasta com a

solução dada pela lei aos casos em que a impossibilidade é imputável ao devedor. Sendo a impossibilidade imputável ao devedor, o

credor tem a possibilidade de optar entre a manutenção do contrato ou a destruição do mesmo, através do exercício do direito potestativo

de resolução (art. 801.º, n.º 2). Analisando a disparidade de regimes e concluindo que “[o] conflito (teleológico) entre o art. 795.º, n.º 1, e

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sequer justificaria a restituição da contraprestação (eventualmente) já realizada pelo credor,

já que a parte final do n.º 1 do art. 795.º determina que a referida restituição deve ser feita

segundo as regras do enriquecimento sem causa159. Isto significa que, nos termos do art.

795.º, n.º 1, aplicável a contratos com eficácia meramente obrigacional, o risco da

impossibilidade superveniente da prestação (não imputável ao devedor) recai sobre o

devedor da prestação que se tornou impossível (que perde o direito à contraprestação como

consequência da extinção da prestação a que ele próprio se encontrava adstrito, sofrendo

assim a perda que se traduz na destruição ou frustração do valor económico correspondente

a esta prestação).

No caso, porém, de impossibilidade parcial, deve prestar-se o que for possível,

reduzindo-se, proporcionalmente, a contraprestação – art. 793.º, n.º 1 –, salva a hipótese de

resolução na falta justificada de interesse no cumprimento parcial – art. 793.º, n.º 2160.

Diferentemente, nos contratos com eficácia real, seja esta imediata ou diferida, dos

quais constitui exemplo paradigmático o contrato de compra e venda, a questão de saber se

o credor, apesar do perecimento ou deterioração da coisa por caso fortuito ou de força

maior, continua obrigado a realizar a contraprestação, deve ser resolvida nos termos do art.

796.º, aplicável apenas a contratos que “importem a transferência do domínio sobre certa

coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela”. Contrariamente ao art.

795.º, n.º 1, que faz recair o risco da impossibilidade superveniente da prestação sobre o

devedor (da prestação que se tornou impossível)161, o art. 796.º (cuja doutrina exclui a

o art. 801.º, n.º 2, deve resolver-se dando prioridade ao art. 801.º, n.º 2 – logo, aplicando-o quer à impossibilidade imputável quer à

impossibilidade não imputável ao devedor”, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra,

2001, p. 841. A declaração de resolução, a existir, apenas iria confirmar o efeito de libertação do credor, não justificaria a recuperação da

contraprestação paga por antecipação (a parte final do n.º 1 do art. 795.º manda aplicar as regras do enriquecimento sem causa e não as

da eficácia retroativa da resolução) e teria por último significado o desejo de o credor não pretender o “commodum” de representação.

Neste sentido, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 183. 159 Note-se que esta solução (restituição segundo as regras do enriquecimento sem causa) foi inspirada na solução consagrada no § 323,

III do BGB (anterior à reforma de 2001), mas a verdade é que já não é esta a solução que se encontra consagrada no direito alemão, pois

o atual § 326 do BGB admite no seu n.º 5 o princípio de que a impossibilidade objetiva, definitiva e total não imputável ao devedor

produz os seus efeitos com uma declaração negocial do credor (resolução). 160 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 1093 e 1094. Acrescentando o A.: “Esta

geometria altera-se quando a impossibilidade se deva ao devedor ou ao credor, correndo, nessa altura, o risco, apenas pelo responsável –

arts. 801.º, 802.º e 795.º, n.º 2”. 161 Considerando os contratos translativos como exceção ao brocado res perit debitori, v. ALAIN BÉNABENT – La Chance et le Droit,

Paris, LGDJ, 1973, p. 37; e FRANCESCO DELFINI – Autonomia Privata e Rischio Contrattuale, Milano, Giuffrè, 1999, p. 51, na

dissociação entre os arts. 1465.º e 1463.º do CCit.

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aplicação do art. 795.º, n.º 1162) consagra, no seu n.º 1, a tradicional regra res perit domino,

oriunda do Direito Romano clássico, a qual faz recair sobre o adquirente, titular do direito

real, o risco do perecimento ou deterioração da coisa por caso fortuito ou de força maior.

Na medida em que o n.º 1 do art. 796.º não menciona a entrega da coisa, parecendo

associar a transferência do risco ao momento da transmissão ou constituição do direito

real, poderá discutir-se se este preceito bloqueia efetivamente o funcionamento do

sinalagma existente entre a obrigação de entrega da coisa e a sua eventual contraprestação

(que coincide, no contrato de compra e venda, com o pagamento do preço pelo

adquirente)163, ou se, ao invés, pode ser vista como uma manifestação específica do

sinalagma, que, nos contratos com eficácia real, se estabeleceria, não entre a obrigação de

entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço, mas, ao invés, entre aqueles que são

os elementos essenciais do contrato de compra e venda: a transferência da propriedade e a

obrigação de pagamento do preço, sendo esta especificidade ditada pela própria eficácia

jurídico-real do contrato de compra e venda.

3. O n.º 1 do art. 796.º do Código Civil – o sentido e o alcance da regra res perit

domino

3.1. Breve referência à regra periculum est emptoris no Direito Romano

No Direito Romano, no período clássico, o contrato de compra e venda assumia

contornos meramente obrigacionais164. A transferência da propriedade estava dependente

de uma formalidade subsequente – originalmente a mancipatio ou a in iure cessio para a

162 Neste sentido, v. ADRIANO PAES VAZ SERRA, Impossibilidade superveniente, in Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 46,

Lisboa, 1955, p. 113, nota 202, e p. 115, de acordo com o n.º 3 do art. 14.º e o art. 15.º do seu anteprojeto; PIRES DE LIMA /ANTUNES

VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. II, p. 50, afastando o art. 796.º do risco obrigacional coberto pelo art. 795.º ; ANTUNES

VARELA, Das Obrigações, II, p. 84, n. 1, e p. 86; PESSOA JORGE, Lições de Direito das Obrigações, Lisboa, 1975-1976, p. 632;

MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, cit., p. 1093, defendendo que “as normas específicas referentes à repartição do risco,

[...], derrogam as regras da impossibilidade”. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e

na Empreitada, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2001, p. 325, distinguindo entre o risco da prestação e o risco da coisa, no qual o jogo

do sinalagma é afastado pela regra res perit domino. 163 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 287,

nota 846. Discutir se o art. 796.º pode ser encarado como manifestação específica do sinalagma contratual. 164 Neste sentido, v. REINHARD ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, Juta, C. H. Beck,

München, 1992, p. 239.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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res mancipi, e a traditio ou a in iure cessio para as res nec mancipi. Nestes termos, o ato de

alienação não consistia, em rigor, no contrato de compra e venda, mas antes na execução

desse vínculo165 . Em matéria de transferência do risco, como se pode deduzir de

numerosos passos do Corpus Iuris Civilis, a regra que vigorava era a de que o risco era

suportado pelo comprador a partir do momento em que existisse uma emptio perfectae – a

qual se traduzia num contrato de compra e venda em condições de ser cumprido166. Era a

regra correspondente ao brocado periculum est emptoris, a qual significa que o risco era

imputado ao comprador que mantinha a sua obrigação de pagamento do preço ao

vendedor, não obstante a perda da coisa e apesar de ainda não ser proprietário dela.

Essencial para que o risco fosse imputado ao comprador era que existisse uma emptio

perfectae. Assim, por exemplo, em relação às coisas que devessem ser pesadas, contadas

ou medidas, o comprador assumiria o risco apenas no momento da sua pesagem, contagem

ou medição, numa regra que poderá constituir um paralelo remoto da distribuição do risco

nas obrigações genéricas167.

3.2. A regra res suo domino perit no Código Civil de 1867

O Código Civil de 1867 consagrava a regra res suo domino perit: a coisa perece por

conta do seu dono, ficando o risco a cargo do adquirente logo que lhe é transmitida a

propriedade da coisa168.

165 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 108. 166 São inúmeras as tentativas de justificação da regra periculum est emptoris realizadas pela doutrina romanista e jusprivatista. Para

além da consideração pragmática de que a regra favorecia o vendedor, ao conferir-lhe, nomeadamente, a possibilidade de evitar os riscos

da navegação, é também admissível que a regra consista num reaproveitamento clássico ou justinianeu das normas vigentes para a

configuração real primitiva do contrato de compra e venda romano, em que, coincidindo o pagamento do preço e a entrega da coisa com

o momento da celebração do contrato, o risco de perecimento daquela era atribuído ao comprador. Outras tentativas de justificação

equacionam a remissão para a bona fides enquanto elemento aglutinador da facti-specie contratual, a configuração de uma situação de

ressarcimento indireto do vendedor pela mora na execução do contrato por parte do comprador (mora credendi), e, ainda, na ponderação

do substrato económico do contrato, dado que, em contraposição ao preço, a coisa assumia um valor oscilante, cujo aumento deveria ser

compensatoriamente atribuído ao comprador. V. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do

Direito Privado Português, cit., p. 119. Uma última justificativa consistia na ignorância do sinalagma funcional por parte dos

jurisconsultos romanos. Referindo, porém, a existência de um sinalagma funcional entre a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de

pagamento do preço, v. VIEIRA CURA, «Compra e venda e transferência da propriedade no Direito romano clássico e justinianeu (a raiz

do “sistema do título e do modo”)», cit., pp. 69 a 112, p. 95. 167 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 118. 168 Nos termos do art. 717.º do Código de Seabra: “Se a cousa transferida por efeito do contrato se deteriorar ou perder em poder do

alienante, correrá o risco por conta do adquirente”.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

72

Este Código (arts. 715.º e 1549.º), perfilhando a inovação introduzida pelo Código

napoleónico (art. 1138), estabelecia o princípio de que o acordo de vontades do alienante e

do adquirente era suficiente para operar a transmissão da propriedade (no que foi seguido

pelo Código português ora vigente: art. 408.º, n.º 1). E, ainda a exemplo do Código

napoleónico (art. 1138), associava à transferência da propriedade a transferência do risco.

Este era suportado pelo proprietário. Por conseguinte, o adquirente ficava-lhe sujeito logo

que a coisa se tornasse sua, em consequência da convenção e independentemente da

entrega. Assim o estatuía o art. 717.º do Código de 1867169.

3.3. A conexão entre a transferência do risco e o momento de constituição ou

transferência de direitos reais no n.º 1 do art. 796.º do Código Civil

Na esteira do disposto pelos arts. 717.º do Código de 1867 e 1465.º, n.º 1, do CCit, e,

ainda, em consonância com a orientação sufragada por Vaz Serra e Galvão Telles nos

respetivos anteprojetos – relativos à parte geral da impossibilidade obrigacional e ao

contrato de compra e venda170 –, o n.º 1 do art. 796.º estabelece que nos contratos que

importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um

direito real sobre ela, “o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao

alienante corre por conta do adquirente”.

169 Ainda perante o Código de Seabra, Paulo Cunha justificava a estatuição dos arts. 715.º e 717.º pela circunstância de a entrega da coisa

representar um efeito secundário ou complementar nos contratos translativos, sendo a transmissão da propriedade o seu efeito principal.

Cfr. PAULO CUNHA, Direito das Obrigações – O Objecto da Relação Obrigacional, coligido por Orlando Courrège, Lisboa, 1943, p.

338. No mesmo sentido, ainda na vigência do Código de Seabra, MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed.,

Almedina, Coimbra, 1966, p. 428; e VAZ SERRA, Impossibilidade Superveniente, cit., p. 85, nota 150, e p. 86, nota 152, considerando a

realização pelo alienante da prestação principal e a acessoriedade da entrega da coisa. Esta orientação não era, porém, sufragada por

JAIME DE GOUVEIA, Da Responsabilidade Contratual, Lisboa, ad. do Autor, 1932, p. 270, que aludia à existência de uma íntima ligação

entre “o risco do contrato e o risco da cousa”. 170 No art. 13.º, n.º 1, do anteprojeto de Vaz Serra, estabelecia-se que “no caso de contrato, que transfere a propriedade de coisas

determinadas, ou constitui ou transfere direitos reais sobre elas, se a coisa se deteriorar ou perecer por causa não imputável ao alienante,

correrá o risco por conta do adquirente, salvo se a coisa ficou em poder do alienante em virtude de um termo, em seu favor, para a

entrega, hipótese em que o risco só com o vencimento do termo ou com a entrega ou colocação da coisa à disposição do adquirente se

transfere para este”, esclarecendo o n.º 5 da mesma disposição que, “correndo o risco por conta do adquirente, deve este fazer a

contraprestação, ainda que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado”. Cfr. VAZ SERRA, Impossibilidade superveniente, cit., p. 130.

Por sua vez, o § 1 do art. 21.º do anteprojeto de Galvão Telles determinava que “o risco da perda ou deterioração casual da coisa é

suportado pelo comprador a partir do momento em que adquire a propriedade da mesma coisa ou o direito que a tem por objecto”,

dispondo o § 2, sem paralelo no direito vigente, que “se, todavia, a aquisição não for efeito imediato do contrato e o vendedor entregar a

coisa ao comprador antes dela, o risco passa ao comprador no momento da entrega”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Nos termos deste preceito existe pois uma conexão inequívoca entre a transferência

do risco e a transmissão do direito real sobre a coisa171. A referência à conexão existente

entre o art. 796.º (em particular, ao seu n.º 1) e o art. 408.º, n.º 1, do Código Civil afigura-

se essencial para compreender o exato alcance da regra res perit domino, no ordenamento

jurídico português. Com efeito, ao determinar que “[a] constituição ou transferência de

direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções

previstas na lei”, o art. 408.º, n.º 1, sujeita a transmissão da propriedade aos princípios da

consensualidade e da causalidade, adotados em ordenamentos jurídicos, como é o caso do

português, onde vigora o sistema do título: para a constituição ou transmissão do direito

real basta normalmente o acordo das partes, pelo que a celebração do contrato de compra e

venda acarreta logo a transferência da propriedade172 [v. arts. 408.º, n.º 1, 879.º, alínea a), e

1317.º, alínea a), do Código Civil]173. A transferência da propriedade não depende, no

nosso ordenamento jurídico, do ato subsequente da entrega, que visa dar ao adquirente não

a propriedade mas a posse do objeto. Por conseguinte, dada a associação estabelecida entre

propriedade e risco, geralmente este correrá por conta do adquirente desde a data do

contrato. Regressou-se assim, sob tal aspeto, já desde o Código de 1867, à doutrina do

Direito Romano. Com uma diferença: o risco do adquirente passou a ser contrapartida da

propriedade em que ele se encontra investido174.

São várias as tentativas de justificação da regra consagrada no art. 796.º, n.º 1. Tal

regra tem sido justificada com a asserção de que, nos contratos com eficácia real, como é o

caso do contrato de compra e venda, a transmissão da propriedade constitui o efeito

principal, sendo acessória a obrigação do vendedor de conservar e entregar a coisa

vendida175. Assim, constituindo a transferência da propriedade um “benefício económico-

171 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 291.

Como observa Galvão Telles, depois de estabelecer como regra a associação da transferência do risco à transmissão do direito real, o

legislador abriu-lhe a seguinte exceção: se, apesar de transferida a propriedade para o adquirente, a coisa continuar em poder do

alienante por este dispor (a seu favor) de prazo ou termo para a sua entrega, só com essa entrega se transfere o risco (art. 796.º, n.º 2). 172 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol III, cit., p. 21. 173 Defendendo que é do conjunto destas normas que se pode concluir qual o momento em que a propriedade se transfere, v. ASSUNÇÃO

CRISTAS, MARIANA FRANÇA GOUVEIA e VÍTOR PEREIRA NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, cit., p. 50. 174 V. PEDRO MÚRIAS, Panfleto sobre o ridículo em Direito Civil, cit.. 175 A regra res perit domino, consagrada no art. 796.º do Código Civil, merece alguma reflexão por fazer coincidir o risco com a

transmissão da propriedade e não com a entrega da coisa devida. De facto, devendo o art. 796.º articular-se com o disposto no art. 408.º,

n.º 1, do Código Civil, as soluções a que conduz a aplicação da regra res perit domino não podem deixar de suscitar alguma

perplexidade. Assim, utilizando um exemplo de Pedro Múrias, num artigo em que defende com veemência que “[o] art. 408.º, n.º 1, é

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jurídico susceptível de justificar a contraprestação”, não haveria razão para negar ao

vendedor o direito à contraprestação, nos casos em que a coisa pereceu ou se deteriorou,

por caso fortuito ou de força maior, depois da conclusão do contrato, mas antes da sua

entrega efetiva ao comprador. O sinalagma contratual estabelecer-se-ia, pois, no art. 796.º,

entre a transferência da propriedade e a respetiva contraprestação (no contrato de compra e

venda, o preço a pagar pelo comprador), pelo que o art. 796.º consistiria somente numa

transposição do n.º 1 do art. 795.º, ditada pela eficácia jurídico-real do contrato176.

Aduz-se, ainda, em abono da regra res perit domino, que a transferência da

propriedade, que ocorre logo no momento da celebração do contrato, atribui um importante

benefício ao adquirente, uma vez que, tornando-se ele logo proprietário da coisa vendida e

não apenas credor do vendedor relativamente à sua entrega, deixa de estar sujeito ao

concurso de credores no património do alienante em relação a essa coisa (art. 604.º,

n.º 1)177, e que, por outro lado, uma vez celebrado o contrato, o adquirente, na sua

qualidade de proprietário, pode, se assim lhe aprouver, dispor da coisa, inclusivamente,

alienando-a a terceiros, pertencendo-lhe o aumento do valor da coisa, posterior à alienação,

sem que deva pagar por isso um preço mais alto, mas devendo em troca suportar o risco da

perda ou deterioração da coisa por caso fortuito ou de força maior. Temos dúvidas que a

transferência da propriedade, sem a transferência da posse, ou, pelo menos, se isso resultar

de convenção das partes, sem a possibilidade de o comprador ficar em condições de por si

tomar posse da coisa, constitua o benefício económico-jurídico, suscetível de justificar a

ridículo”, estando dois amigos de férias no Algarve, e combinando com firmeza que um vende ao outro o seu carro, que ficara em

Coimbra, se o carro for furtado nessa noite, o comprador tem de pagar o preço acordado. Esta solução que decorre da aplicação do art.

796.º, n.º 1, do Código Civil e que faz recair integralmente sobre o comprador o risco do perecimento furtuito da coisa ocorrido

posteriormente à conclusão do contrato, mas anterior à entrega, parece contrariar o bom senso, razão pela qual o referido Autor não se

acanha em referir que “[s]ó não é provável que ocorra ao vendedor sem formação em leis ir a tribunal exigir o pagamento”. PEDRO

MÚRIAS, Panfleto sobre o ridículo em Direito Civil, cit., p. 2. 176 De acordo com esta asserção, quer o art. 795.º, n.º 1, quer o art. 796.º poderiam ser vistos como manifestações específicas do

sinalagma contratual. No caso do art. 796.º, tendo em conta a eficácia jurídico-real do contrato, o sinalagma seria entendido por um

prisma económico-funcional, estabelecendo-se entre a transferência da propriedade e a contraprestação (obrigação de pagamento do

preço). Em sentido contrário, defendendo que “o n.º 1 do art. 796.º se traduz num afastamento do disposto no n.º 1 do art. 795.º, devendo

a sua previsão ser ainda objeto de delimitação perante o risco-estático inerente à titularidade de um direito real”, v. NUNO AURELIANO, O

Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 289. 177 V. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 9.ª ed., 2014, p. 28. Como refere o A., por força do princípio ubi

commoda ibi incommoda, se o comprador adquire esse benefício, é justo que suporte também os riscos inerentes e que, portanto, seja

igualmente ele a suportar o prejuízo, caso a coisa se deteriore ou pereça após a transmissão da propriedade.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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contraprestação178. Sobretudo, não nos parece que o fundamento do art. 796.º, n.º 1, do

Código Civil possa residir numa suposta acessoriedade da obrigação de entrega da coisa,

nos contratos com eficácia real, suscetível de fundamentar uma descaracterização do

sinalagma contratual.

É verdade que o art. 874.º, que consagra a noção de compra e venda179, não

menciona a obrigação de entrega da coisa, mas refere apenas a transmissão da propriedade

da coisa ou da titularidade do direito e a obrigação de pagar o preço, os quais surgem,

assim, como elementos essenciais típicos do contrato de compra e venda180.

A obrigação de entrega da coisa encontra-se expressamente prevista na alínea b) do

art. 879.º, como um efeito essencial ou conteúdo legalmente obrigatório do contrato de

compra e venda, mas não como um elemento essencial deste contrato181. Daqui não resulta,

porém, que se possa afirmar que a obrigação de entrega é meramente acessória, de tal

178 É verdade que, uma vez celebrado o contrato, o adquirente, na sua qualidade de proprietário, pode, se assim lhe aprouver, dispor da

coisa, alienando-a a terceiros, pertencendo-lhe o aumento do valor da coisa, posterior à alienação, sem que deva pagar por isso um preço

mais alto, mas estas razões não nos parecem decisivas para fundamentar a regra res perit domino. Se é verdade que o adquirente, uma

vez concluído o contrato, por se ter tornado titular do direito real sobre ela, pode dispor da coisa, alienando-a a terceiros, também é

verdade que a mera celebração do contrato – e a transferência da propriedade que desta resulta como mero efeito sempre que o contrato

tenha por objeto uma coisa perfeitamente individualizada e presente – não lhe proporcionou, ainda, o benefício económico-jurídico

suscetível de justificar a contraprestação. Por outras palavras, para que o alienante adquira o direito de exigir do comprador a

contraprestação, apesar de o cumprimento da obrigação de entrega se ter tornado impossível em virtude do perecimento ou deterioração

da coisa por caso fortuito ou de força maior, é preciso que o comprador, à data do referido perecimento ou deterioração, se encontrasse

na situação de, por si só, tomar posse da coisa. Relembre-se que a obrigação de entrega constitui um “efeito essencial” do contrato não

pelo comportamento exigido ao vendedor, mas pela situação pretendida pela lei para o comprador. Vejamos o seguinte exemplo: A

vende a B uma cómoda antiga, pelo preço de 100 euros. B, que não obteve a entrega da cómoda (por esta se encontrar num armazém em

Coimbra), revende-a, logo em seguida, a C, coleccionador de antiguidades, por 200 euros, ignorando, porém, que a cómoda já perecera,

em momento anterior à celebração deste segundo contrato, em virtude de um incêndio fortuito ocorrido no armazém onde esta se

encontrava. Neste caso, tendo em conta que no momento da celebração do contrato entre B e C a coisa já se encontrava destruída, este

contrato será nulo por impossibilidade originária da prestação. Isto significa que C não terá de pagar a B o preço acordado e se já o tiver

pago ser-lhe-á este restituído. B, por seu turno, permanece obrigado a realizar a contraprestação, ou seja, a pagar a A os 100 euros

acordados. Se, ao invés, a coisa (não entregue) for revendida quando era ainda existente, o contrato celebrado entre B e C será válido,

mas o vendedor não irá poder cumprir a sua obrigação de entrega, em virtude do perecimento da coisa ocorrido em momento posterior à

celebração do contrato (impossibilidade superveniente). Pode acontecer que, antes da verificação do facto que determinou o perecimento

da coisa, tenham tido lugar vários contratos de alienação. Se A vende a B um bem pelo preço de 100 euros sem efetuar a entrega e B

vende a C a mesma coisa que pereceu fortuitamente quando ainda se encontrava na posse de A, pelo preço de 200 euros, do que se trata

é de justificar racionalmente porque é que C e B devem pagar respetivamente a B e A o preço da coisa adquirida mas não entregue. V.

ALESSANDRO NATUCCI, Considerazioni sul Principio “Res Perit Domino” (Art. 1465 C.C.), in Rivista di Diritto Civile – 1/2010, pp. 41

a 59, p. 53. 179 Refere o art. 874.º que “[c]ompra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante

um preço”. 180 Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 623. 181 Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 619.

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modo que, perecendo a coisa por caso fortuito ou de força maior, depois da venda mas

antes da entrega, o vendedor possa exigir do comprador a realização da contraprestação, ou

seja, o pagamento do preço, não tendo ele próprio realizado ainda a prestação a que estava

adstrito. A consagração expressa da obrigação de entrega da coisa prova que o legislador

não se contenta com a atribuição do direito de propriedade ou da titularidade do direito,

independentemente da situação em que a coisa se encontre e da disposição do vendedor de

entregar ou não a coisa vendida182. A lei pretende que o vendedor realize aquilo que for

necessário para o comprador poder exercer efetivamente o direito que adquiriu pelo

contrato, pelo que, a transferência da propriedade, em si mesma, não poderá considerar-se

o “benefício económico-jurídico susceptível de justificar a contraprestação”183. Como

refere Raúl Ventura, “[t]ransmitir a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um

direito retirando ao adquirente a possibilidade de exercer o direito de propriedade ou outro,

não é efetivamente transmitir o direito, o qual existe para poder ser exercido”184.

A isto podemos ainda acrescentar duas boas razões contra a tentativa de fundamentar

a regra res perit domino numa pretensa descaracterização do sinalagma, que nos contratos

com eficácia real se estabeleceria entre a transferência da propriedade e a contraprestação.

A primeira prende-se com o facto de no nosso ordenamento jurídico ser excepcional a

configuração de uma obrigação de dare em sentido técnico e a segunda diz respeito à

exceção de não cumprimento do contrato, que, constituindo uma das manifestações típicas

do sinalagma obrigacional, encontra também aplicação no contrato de compra e venda de

coisa certa e determinada, embora o comprador seja já titular de um direito real sobre a

coisa desde o momento da celebração do contrato.

182 Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 621. 183 «Se atentarmos na finalidade do “efeito essencial” da chamada obrigação de entregar a coisa, verificamos que a essencialidade não

reside no comportamento exigido ao vendedor, mas na situação pretendida pela lei para o comprador; aquele é um meio – um dos meios

– para esta situação ser alcançada. A lei pretende que, pela execução do contrato de compra e venda, o comprador possa exercer

plenamente os seus poderes sobre a coisa e é isso que exprime por “entrega ao comprador”, atendendo a que normalmente é

indispensável uma atividade do vendedor, objeto possível e adequado de uma obrigação deste. Na realidade, porém, é o efeito que a

entrega normal produz, mas a produção de tal efeito supõe, conforme os casos, atitudes diversas do vendedor: ou essa atitude é

indiferente porque da conjugação de preceitos legais e de negócios jurídicos anteriores resulta o efeito – caso de constituto possessório;

ou essa atitude consiste em não impedir que o comprador tome para si a coisa posta à sua disposição (a atividade para colocar à

disposição não é a entrega mas sim preparativo da entrega); ou se trata de o vendedor proceder à entrega, no sentido estrito de haver uma

atividade do vendedor que efetua a transmissão da posse». Cfr. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit.,

p. 625. 184 RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 623.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Por outro lado, a afirmada “acessoriedade” da obrigação de entrega deixaria por

explicar o n.º 2 e a 1.ª parte do n.º 3 do art. 796.º, em que a entrega da coisa é decisiva para

a assunção do risco pelo adquirente após a celebração do contrato de alienação.

3.4. Os n.os 2 e 3 do art. 796.º do Código Civil

O n.º 2 do art. 796.º do Código Civil estabelece que “[s]e, porém, a coisa tiver

continuado em poder do alienante em consequência de termo constituído a seu favor, o

risco só se transfere com o vencimento do termo ou com a entrega da coisa, sem prejuízo

do disposto no art. 807.º”. Assim, através de uma interpretação a contrario do art. 796.º,

n.º 2, poder-se-á afirmar que se o contrato estiver sujeito a termo (inicial) constituído a

favor do adquirente ou a termo final, o risco transferir-se-á, de acordo com a regra geral

consagrada no n.º 1 do art. 796.º, no momento da conclusão do contrato.

O n.º 2 do art. 796.º consente uma dissociação entre a transferência do risco e a

titularidade do direito real: o alienante, que já não é titular de um direito real sobre a coisa,

continua a suportar o risco do seu perecimento ou deterioração até ao vencimento do termo

ou até à sua entrega ao adquirente. Resulta claramente desta norma que o legislador tomou

(também) como princípio orientador de distribuição do risco a sua atribuição ao contraente

em cujo interesse a entrega foi diferida. A transferência do risco surge aqui associada à

entrega, conclusão que não pode, em nosso entender, ser prejudicada pela referência ao

vencimento do termo em alternativa à entrega da coisa.

Sustenta Galvão Telles que a referência ao vencimento do termo em alternativa à

entrega da coisa é desnecessária, uma vez que, “[s]e o prazo expira sem o alienante ter

entregue a coisa, o risco, dentro do espírito do preceito em referência, continua

manifestamente a cargo do alienante, devedor da entrega, salvo o caso de mora do

adquirente, credor da mesma entrega” 185. Portanto, em caso de termo constituído a favor

do alienante, o risco transferir-se-ia sempre pelo cumprimento da obrigação de entrega,

salvo o caso de mora do adquirente, credor dessa mesma entrega.

185 Cfr. GALVÃO TELLES, Obrigações, cit., p. 470, nota 1. Como acrescenta o A., “[s]ó neste caso (mora do adquirente) é que com o

vencimento do termo se dá a inversão do risco; mas tal consequência é um efeito inerente ao regime geral da “mora creditoris” (art.

815.º). Como refere, e bem, Galvão Telles, o mero “vencimento do termo só por si não transfere o risco, já que o alienante pode incorrer

em mora (do devedor) ou pode beneficiar de uma eventual mora do credor/titular do direito real.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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Segundo Maria de Lurdes Pereira, a escolha por uma ou outra alternativa depende da

forma de cumprimento prevista no contrato186. Assim, tendo as partes convencionado uma

dívida de entrega, caso em que o alienante fica incumbido de transportar a coisa até ao

local de cumprimento (suportando os inerentes riscos) e de oferecê-la aí ao credor-

adquirente, parece que se deve entender que o risco não se transfere senão com a entrega

(art. 796.º, n.º 2, 2.ª alternativa). Assim sendo, se o credor adquirente recusar a aceitação da

coisa oferecida, a transferência do risco de contraprestação só poderá tornar-se efetiva

através do art. 815.º, n.º 2. Diversamente se passam as coisas quando seja o adquirente que

se deva dirigir às instalações do alienante para levantar a coisa adquirida (dívida de

levantamento). Nestes casos, a solução mais ajustada, segundo a Autora, parece ser a de o

risco se transferir com o vencimento do termo e, portanto, antes da sua entrega efetiva ao

comprador187.

Pensamos que o vencimento do termo só será relevante para efeitos de transferência

do risco quando as partes tenham convencionado que é o adquirente que se deve dirigir às

instalações do alienante para levantar a coisa adquirida e desde que no momento do

vencimento do termo o vendedor já tenha colocado a coisa à disposição do comprador para

ser levantada188. Se no vencimento do termo o vendedor ainda não tiver colocado a coisa à

disposição do comprador, o risco continua a cargo do vendedor, nos termos do art. 807.º do

Código Civil189. Note-se, porém que, neste caso, porque as partes assim o estipularam –

convencionando uma dívida de levantamento –, a colocação da coisa à disposição do

comprador é, ainda, forma de entrega.

Assim sendo, porque em ambos os casos se pressupõe que o vendedor tenha feito

tudo o que estava ao seu alcance para que o comprador pudesse tomar posse da coisa,

poder-se-á afirmar que, em caso de termo constituído a favor do alienante, o risco se

186 Neste sentido, v. MARIA DE LURDES PEREIRA, Conceito de Prestação e Destino da Contraprestação, Almedina, Coimbra, 2001, p.

183, nota 497. 187 MARIA DE LURDES PEREIRA, Conceito de Prestação e Destino da Contraprestação, cit., p. 183, nota 497. 188 Como refere RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 624: “a colocação à disposição do comprador

é forma de entrega mas a sua utilização no caso concreto depende de estipulação das partes”. 189 Como observa NUNO AURELIANO, não há fundamento para que o alienante corra o risco na pendência do termo, e, após o seu

vencimento – encontrando-se em mora quanto ao cumprimento da obrigação de entrega da coisa –, beneficie da relevância negativa da

causa virtual (art. 807.º, n.º 2), v. O Risco nos Contratos de alienação, cit., p. 323.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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transfere sempre com a entrega, salvo no caso de “mora” do adquirente, credor da

entrega190.

Nos termos do n.º 3 do art. 796.º, “[q]uando o contrato estiver dependente de

condição resolutiva, o risco do perecimento durante a pendência da condição corre por

conta do adquirente, se a coisa lhe tiver sido entregue; quando for suspensiva a condição, o

risco corre por conta do alienante durante a pendência da condição”.

Assim, resulta da 1.ª parte do n.º 3 do art. 796.º que, estando o contrato sujeito a uma

condição resolutiva, o risco transfere-se para o adquirente com a entrega da coisa. Na falta

de entrega, é o alienante que suporta o risco durante a pendência da condição.

Diversamente, estando o contrato sujeito a uma condição suspensiva, o legislador

estatui apenas, na 2.ª parte do n.º 3 do art. 796.º, que “o risco corre por conta do alienante

durante a pendência da condição”, omitindo qualquer referência à entrega da coisa191.

190 Vale a pena expor aqui a teoria da culpa “Verschuldentheorie”, desenvolvida por Jhering, jurista alemão, como tentativa de justificar

o acolhimento do princípio periculum est emptoris pelo Direito Romano (ao menos, do período clássico). Segundo Jhering, a razão que

está na base desse acolhimento consiste em “sacrificar” o contraente em cujo interesse a entrega foi diferida. Segundo Jhering este

interesse é, na maior parte dos casos, do comprador pelo que é justo que sobre ele recaia o risco do perecimento fortuito da coisa. Para

além disso, a compra e venda romana (emptio venditio) teria como efeito, por assim dizer, “amarrar as mãos do vendedor”. Este obrigar-

se-ia a deixar a coisa vendida à disposição do comprador, privando-se de poder fazer valer qualquer direito sobre a mesma. Em

contrapartida, é justo que sobre o comprador recaia o risco do perecimento fortuito da coisa. Por outro lado, o comprador, na grande

maioria dos casos, incidiria em culpa (“Schuld”) pelo não cumprimento imediato da prestação e da contraprestação. A partir desta

afirmação, relativa à culpa do comprador, os seguidores desta teoria passaram a conceber que o fundamento jurídico do princípio

periculum est emptoris residiria na falta de retirada tempestiva (“Nichtabholung”) da coisa vendida por parte do comprador: se a merx

tivesse sido retirada em tempo, o comprador, quando do perecimento fortuito, seria já seu proprietário, o que justificaria, em face do

princípio res perit domino, a atribuição dos riscos ao emptor. Neste sentido, a “Verschuldentheorie” baseia-se numa ficção: admite-se

como transferido o dominium mesmo não se tendo verificado qualquer modo legal de aquisição do direito de propriedade. Poder-se-ia

dizer que o fundamento do princípio periculum est emptoris residiria, em conclusão, na mora da retirada da merx por culpa do

comprador. A partir destas ideias, postas à luz pelos partidários da “Verschuldentheorie” de Jhering, desenvolveram-se ulteriores

tentativas de justificação do princípio periculum est emptoris, nomeadamente as de Seckel-Levy e a de Beseler. Seckel-Levy partia do

corolário, derivado daquelas ideias, de que a não retirada (“Abholung”) tempestiva da coisa vendida por parte do comprador dependeria,

evidentemente, da possibilidade de estar a mesma à disposição para ser entregue. Assim, Seckel-Levy tentou provar ser pressuposto do

princípio periculum est emptoris a exigência de “retirabilidade” (“Abholbarkeit”) da coisa. Já Beseler partia de uma consequência ou

efeito não anteriormente previstos pelos partidários da “Verschuldentheorie”: em rigor, aplicando-se tal teoria, enquanto o comprador

não incidisse em mora na retirada da coisa, os riscos pelo perecimento da coisa não lhe seriam transmitidos, permanecendo a correr por

conta do vendedor. Nos fragmentos em que se atribuem os riscos ao comprador (periculum est emptoris), entendia Beseler pressuposta a

inserção “se por culpa do comprador não tiver a coisa ainda sido retirada”). Para uma análise destas teorias, v. EDUARDO CÉSAR

SILVEIRA VITA MARCHI, Dos Riscos pela Perda Fortuita da Coisa Vendida no Direito Romano, disponível em www.revistas.usp.br. 191 BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 185: a aplicação rígida da 2.ª parte do n.º 3

do art. 796.º, ao não prever uma eficácia parcelar antecipada do contrato, parece levar à conclusão de que nos contratos com reserva de

propriedade, com ou sem entrega imediata da coisa ao comprador, o risco que a atinja, antes da transmissão, corre por conta do

alienante. É certo que a norma não refere a entrega da coisa, o que permite a Galvão Telles (p. 473) sustentar, “como solução mais

razoável”, que “não obstante o silêncio da lei, deve entender-se que ... o risco se desloca para o adquirente com a entrega do objecto”.

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Defende Nuno Oliveira que o texto da 2.ª parte do n.º 3 do art. 796.º contém uma

lacuna oculta, por não aplicar a regra consagrada na 1.ª parte do n.º 3 do art. 796.º – a regra

de que o risco se transfere com a entrega da coisa ao adquirente –, aplicável quer aos casos

de condição resolutiva, quer aos casos de condição suspensiva192. A lacuna consistiria aqui,

nos termos de Larenz193, na ausência de uma proposição jurídica restritiva, cabendo assim

ao aplicador do direito fazer a restrição que o legislador queria fazer e não fez.

Se a condição resolutiva ou suspensiva se vencer sem que a coisa tenha sido

entregue, o risco transfere-se para o adquirente com a verificação da condição. Tal como

referimos a propósito do vencimento do termo, não é a mera verificação da condição que

produz aqui a transferência do risco. A verificação da condição só terá como efeito a

transferência do risco da destruição ou deterioração da coisa se, no momento em que ela se

verifica, a obrigação de entrega do vendedor se puder considerar cumprida.

Se, verificada a condição, o não cumprimento da obrigação de entrega for imputável

ao vendedor, que, por exemplo, não colocou a coisa à disposição do comprador para ser

levantada, haverá mora do devedor (no sentido do art. 804.º, n.º 2) e o risco correrá por sua

conta. Ao invés, se a condição se verifica sem que o vendedor entregue a coisa por facto

imputável ao comprador, este constituir-se-á em mora e, constituindo-se em mora, o risco

correrá por sua conta, nos termos do art. 815.º194.

Este ponto de vista, que para Galvão Telles não tem suporte legal, é sufragado expressamente por outra doutrina [e alguma

jurisprudência: v. os Acórdãos do STJ, de 5 de março de 1996 (Pereira da Graça), in CJ (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça), ano

IV, I, 1996, p. 119, e de 7 de julho de 2010 (Moreira Alves) e do Tribunal da Relação do Porto de 19 de janeiro de 2009 (Isoleta Costa),

todos em www.dgsi.pt.]. Menezes Leitão repudia as teses da qualificação da reserva de propriedade como condição suspensiva ou

resolutiva e afirma que “o comprador fica já integralmente investido nos poderes de uso e fruição da coisa”, justificando-se, face à sua

“expectativa real de aquisição e à função que a conservação da propriedade, enquanto meio de segurança, tem junto do vendedor, que

seja o comprador a suportar o risco do pagamento do preço, apesar da perda, do desaparecimento ou da deterioração da coisa – cfr.

Direito das Obrigações, I, p. 206. Segundo Brandão Proença, esta solução poderia ser alcançada com o “princípio”, ínsito no n.º 2 do

art. 796.º, dada a comum dissociação entre a titularidade do direito real e o efetivo aproveitamento das potencialidades do bem pelo

detentor e pelo comprador/possuidor em nome próprio. Como afirma o A., “no seio do art. 796.º, é indesmentível que o risco está

particularmente associado ao chamado “domínio fáctico”, “domínio” este manifestamente potenciado (argumento de maioria de razão

relativamente ao caso descrito no n.º 2 do preceito) na situação do comprador com reserva de propriedade investido no uso/fruição do

bem – cfr. Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 186. Sobre a Reserva de Propriedade, v., ainda, MARIA

ISABEL HELBLING MENÉRES CAMPOS, A Reserva de Propriedade: Do Vendedor ao Financiador, Coimbra Editora, 2013. 192 Cfr. NUNO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 853. 193 Cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, pp. 530 e 535. 194 V. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, cit., p. 470 (nota 1): “Se o prazo expira sem o alienante ter entregue a coisa,

o risco, dentro do espírito do preceito em referência, continua manifestamente a cargo do alienante, devedor da entrega, salvo o caso de

mora do adquirente, credor da mesma entrega”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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3.5. Poderá retirar-se do art. 797.º um princípio geral de acordo com o qual o risco

se transfere sempre com a entrega?

A análise do art. 796.º permitiu-nos concluir que apesar de o seu n.º 1 associar a

transferência do risco à transmissão do direito real, elegendo, assim, como momento

relevante para aquela transferência o momento da celebração do contrato, as regras

consagradas nos seus n.os 2 e 3 tornam indesmentível a associação do risco a uma ideia de

domínio fáctico sobre a coisa, considerando (também) relevante para efeitos de

transferência do risco, quer a entrega da coisa, quer a mora do comprador, credor da

entrega, na falta de retirada tempestiva da coisa.

Cumpre agora averiguar se será possível retirar do art. 797.º do Código Civil um

princípio geral de acordo com o qual o risco se transfere sempre com a entrega.

O art. 797.º do Código Civil refere-se às chamadas obrigações de envio ou de

remessa (Schickschulden), que são aquelas em que, por força de convenção das partes, o

vendedor se obriga a enviar a coisa vendida para um lugar diferente do lugar do

cumprimento, caracterizando-se, assim, pela circunstância de o lugar do cumprimento ser

diverso do local para onde a coisa deve ser enviada195. Isto significa que, tendo as partes

convencionado uma dívida de envio, nos termos da referida norma, o risco (da

contraprestação) transfere-se para o adquirente “com a entrega ao transportador ou

expedidor da coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio”. A regra da

transferência do risco com a entrega da coisa ao transportador ou a expedidor, consagrada

no art. 797.º do Código Civil, parece conflituar com a regra prevista no art. 796.º, n.º 1, do

Código Civil, de acordo com a qual o risco se transfere com a conclusão do contrato de

alienação e, portanto, antes da entrega196. A aplicação do art. 797.º aos contratos de compra

e venda com eficácia real imediata – contratos de compra e venda de coisa específica e

presente – teria como consequência o protelar da transferência do risco para o momento da

entrega da coisa ao transportador ou expedidor, pelo menos nos casos em que fosse

aplicável a regra consagrada no n.º 1 do art. 796.º de acordo com a qual o risco se transfere

no momento da celebração do contrato.

195 Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, Almedina, Coimbra, 1995, p. 80. 196 Neste sentido, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 857.

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A este propósito, pondera Paulo Mota Pinto que «esta norma se tem de perfilar como

mais do que apenas uma exceção [ao art. 796.º, n.º 1], pois terá de conduzir, se formos

consequentes, a considerar, também para as dívidas que não são “de envio”, que o risco se

transfere apenas com o cumprimento da obrigação de entrega, e não logo com a

transmissão do direito real»197. Assim, segundo o Autor, sempre que exista uma obrigação

de entrega, o princípio é o de que o risco se transfere sempre pelo cumprimento dessa

obrigação e não logo com a transmissão do direito real198.

E isto seria assim, entende o Autor, seja qual for o tipo de obrigação de entrega de

coisas199 e, portanto, não apenas para as dívidas de envio ou de remessa mas também para

as dívidas de entrega200, em que o vendedor está vinculado a levar o objeto da prestação

até ao lugar do cumprimento201, e para as dívidas de levantamento202, que são aquelas em

que é ao credor que cabe ir buscar o objeto da prestação ao domicílio do devedor ou a

lugar diverso. Com efeito, observa o Autor, «se nas “dívidas de remessa” (por exemplo, de

envio de um conjunto de mercadorias de Lisboa a Faro) o risco da contraprestação se

transfere com a entrega ao transportador (em Lisboa), nas dívidas de entrega

Bringschulden (em que o devedor tem de levar o objecto mesmo até ao lugar do

cumprimento e não apenas de o expedir) não poderia passar para o adquirente em

momento anterior a esta entrega, logo com o negócio»203. A ideia é a de que, tendo as

partes celebrado um contrato de compra e venda de uma coisa determinada, não faria

sentido que o comprador ficasse mais desprotegido, em matéria de risco, estando em causa

uma dívida de entrega do que estaria na eventualidade de se tratar de uma dívida de envio.

Por esta razão, explica o Autor, nas dívidas de entrega, sendo o lugar do cumprimento o

lugar da receção da coisa, o vendedor deveria, por maioria de razão, continuar a suportar o

risco durante o transporte e até ao momento da entrega da coisa ao comprador (neste caso,

o risco só se transferiria, portanto, em Faro)204.

197 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, 1995, p. 595,

nota 396. 198 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 592 e 593. 199 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 593. 200 Na terminologia alemã: Bringsschulden. 201 Cfr. VAZ SERRA, “Obrigações Genéricas”, BMJ, n.º 55, 1956, p. 37. 202 Na terminologia alemã: Holschulden. 203 Cfr. P. MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 595, nota 396. 204 Cfr. P. MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 595, nota 396.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Importa, antes do mais, averiguar a ratio do art. 797.º do Código Civil. O preceito

corresponde ao § 447, n.º 1, do BGB, que determina que “[s]e o vendedor a pedido do

comprador enviar a coisa vendida para um lugar diferente do lugar do cumprimento o risco

transfere-se para o comprador logo que o vendedor entregue a coisa ao expedidor, ao

transportador ou à pessoa ou entidade indicada para a execução do envio”. A função que o

§ 447, n.º 1, do BGB desempenha na ordem jurídica alemã traduz-se em antecipar a

transferência do risco para o momento da entrega da coisa ao primeiro transportador205.

Isto é assim, porque, no ordenamento jurídico alemão, diferentemente do que sucede entre

nós, a regra geral é a de que o risco se transfere apenas com a entrega (Übergabe) da coisa

ao comprador e não no momento da conclusão do contrato206.

205 Sobre as várias interpretações acerca da ratio legis subjacente ao § 447 do BGB, v. J. VON STAUDINGERS, Kommentar zum

Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, Buch 2, Recht der Sculdverhältnisse, §§ 433-487 (Kaufrecht und

Leasingrecht), p. 392. 206 Isto mesmo resulta do diferente sistema de transferência do risco a que, nos dois ordenamentos, conduzem as diferentes regras sobre a

transferência da propriedade. Entre nós, a transferência da propriedade dá-se, nos termos do art. 408.º, n.º 1, do Código Civil, por mero

efeito do contrato e, em matéria de transferência do risco, seguiu-se o sistema do Direito Romano, que põe o risco a cargo do comprador

a partir do momento da celebração do contrato. Na lei alemã, a transferência da propriedade opera-se apenas com o Verfügungsgeschäft

(negócio de disposição), integrado pelo acordo das partes sobre a transmissão da propriedade (Einstimmung) e pela entrega material da

coisa (Übergabe), tratando-se de coisas móveis, ou pelo registo em caso de imóveis, tal como resulta dos §§ 929, 873 e 925 do BGB.

Cfr. HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.

608. O risco, por sua vez, transfere-se para o adquirente com a entrega da coisa comprada (Übergabe). Há, no entanto, duas situações

que importa distinguir. Assim, se o vendedor cumpriu plenamente o seu dever de prestação, isto é, se, nos termos do § 433/I do BGB,

entregou a coisa ao comprador livre de vícios ou de defeitos jurídicos ou materiais e lhe proporcionou a propriedade, o comprador está

obrigado a pagar o preço, desde que ainda o não tivesse pago e, como proprietário, suporta o risco de coisa (Sachgefahr). Já na fase em

que o vendedor ainda não cumpriu plenamente o seu dever de prestação, a repartição do risco entre as partes é regulada pelo § 446 do

BGB, que regula o chamado risco da contraprestação (Gegenleistungs-(Preis)gefahr) Esta norma, na sua nova redação, determina que a

partir da entrega (Übergabe) o risco do perecimento ou deterioração da coisa por caso fortuito, também designado risco da

contraprestação, corre por conta do comprador. Cfr. HAAS/MEDICUS/ROLLAND / SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, Verlag

C. H. Beck, Munique, 2002, p. 251. Como salienta Medicus, o § 446 do BGB, primeira frase, constitui uma exceção ao disposto no §

326 do BGB, que regula o destino da contraprestação, na medida em que, segundo o § 446 do BGB, a impossibilidade de proporcionar

ao comprador a propriedade da coisa livre vícios que tenha surgido após a entrega e que não seja imputável nem ao vendedor nem ao

comprador não libera o comprador do dever de pagar integralmente o preço. Cfr. DIETER MEDICUS, Schuldrecht II, Besonderer Teil,

12.Auflage, Verlag C. H. Beck, Munique, 2004, p. 14. O § 446 do BGB aplica-se nos casos em que há uma dissociação cronológica

entre a transferência da propriedade e a entrega da coisa, o que sucede, por exemplo, na compra com reserva de propriedade. Nestes

casos, se a coisa comprada perecer por caso fortuito após a entrega, o risco da contraprestação recai sobre o comprador, como recairia

caso o vendedor tivesse cumprido plenamente o seu dever de prestação, isto é, caso tivesse já proporcionado ao comprador a

propriedade. Isto significa que o vendedor pode exigir o pagamento integral do preço e o comprador não se pode opor invocando a

exceção de não cumprimento do contrato. O mesmo sucede quando a coisa se deteriora antes de o vendedor ter cumprido plenamente o

seu dever de prestação, isto é, no período que medeia entre a entrega e a transferência da propriedade. Também nestes casos o risco da

contraprestação recai sobre o comprador que está obrigado a pagar o preço e não pode exercer os direitos previstos no § 437 do BGB.

Cfr. HAAS/MEDICUS/ROLLAND / SCHÄFER/ WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, cit., p. 251. A aplicação do § 446 do BGB é também

convocada nos casos de compra de imóveis, já que, nestes casos, nos termos dos §§ 873 e 925 do BGB, a transferência da propriedade

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Sendo idêntica a ratio do art. 797.º do Código Civil, a sua aplicação faz sentido nos

casos em que a dívida de envio tem por objeto uma coisa indeterminada de certo género.

Com efeito, na venda de coisa indeterminada de certo género, a que alude o art. 408.º, n.º 2

do Código Civil, o direito de propriedade não se transfere no momento da celebração do

contrato, mas no momento da concentração que é aquele em que a obrigação passa de

genérica a específica207. A concentração, de acordo com uma interpretação a contrario do

art. 541.º do Código Civil, ocorre, em regra, com o cumprimento, sendo também este o

momento em que se transfere para o comprador o risco do perecimento ou deterioração da

coisa.

Assim, estando em causa a venda de coisa indeterminada de certo género e tendo as

partes convencionado uma dívida de envio, podemos afirmar que, por força da remissão do

art. 541.º para o art. 797.º do Código Civil, a obrigação se concentra (pelo menos

aparentemente) antes do cumprimento (da entrega material da coisa ao comprador), ou

seja, no momento da entrega ao transportador, ou expedidor da coisa ou à pessoa indicada

para a execução do envio, sendo também neste momento que o risco do perecimento ou

deterioração da coisa se transfere para o comprador (art. 797.º, in fine).

A ratio da referida remissão reside em que, estando em causa uma dívida de envio, a

partir do momento da entrega das coisas a um terceiro incumbido de as levar ao

comprador, o devedor já não tem a possibilidade física de as substituir208.

Se a regulamentação constante do art. 797.º do Código Civil nos parece inteiramente

justificada nos casos em que a dívida de envio tem por objeto uma coisa indeterminada de

não depende da entrega da coisa, mas da inscrição no registo. Assim, pode suceder que o vendedor proporcione ao comprador a

propriedade da coisa antes de esta lhe ter sido entregue. O § 446/2, antiga redação, antecipava, nestes casos, a transferência do risco da

contraprestação para o momento da inscrição no registo, e, portanto, para um momento anterior à entrega. Esse ponto foi alterado pela

Lei de modernização do Direito das Obrigações alemão por se entender que não faz sentido que sobre o comprador recaia o risco do

perecimento ou deterioração, por caso fortuito, de um imóvel que não está na sua posse. Assim, também nestes casos, o risco da

contraprestação só se transfere para o comprador com a entrega. Cfr. HAAS/MEDICUS/ROLLAND /SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue

Schuldrecht, cit., pp. 251 e 252; DIETER MEDICUS, Schuldrecht II, cit., p. 14. 207 Defendendo que as regras a que estão sujeitas as obrigações genéricas, em matéria de transmissão da propriedade, que são as

previstas nos arts. 539.º a 542.º do Código Civil, constituem uma exceção, perfeitamente justificada, ao regime do art. 408.º, n.º 2, e,

portanto, ao regime previsto para a transmissão da propriedade das coisas indeterminadas, v. J. MORAIS CARVALHO , “Transmissão da

propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas genéricas”, in Themis, ano VI, n.º 11, 2005, pp. 23 e 24. 208 Cfr. J. MORAIS CARVALHO , “Transmissão da propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas genéricas”, cit., p. 51.

O mesmo não sucede estando em causa uma dívida de entrega, já que, com a simples entrega ao transportador ou expedidor, “o devedor

não faz ainda o preciso, pela sua parte, para o cumprimento, não ficando ainda as coisas à disposição do credor”. Cfr. VAZ SERRA,

“Obrigações Genéricas”, cit., p. 37.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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certo género, o mesmo não sucede nas hipóteses em que a dívida se refere a uma coisa

determinada, já que, aqui, a referida norma, ao invés de antecipar o momento em que, em

regra, se considera existir transferência do risco, teria o efeito de retardar essa transferência

em comparação com o momento decisivo segundo a regra geral (art. 796.º, n.º 1).

O conflito entre a regra consagrada no art. 796.º, n.º 1, e o disposto no art. 797.º do

Código Civil poderia resolver-se de duas formas. Uma primeira forma seria compatibilizar

as duas normas através de uma (adequada) redução ou restrição teleológica do art. 797.º209,

o que pressupõe que se considere existir uma lacuna oculta, que consistiria aqui na

ausência de uma restrição210 , devendo o art. 797.º do Código Civil, por redução

teleológica, aplicar-se apenas às dívidas de envio ou de remessa que tenham por objeto

uma coisa indeterminada de certo género211. Uma outra solução, defendida por Maria de

Lurdes Pereira, consistiria em interpretar restritivamente o art. 797.º, considerando que,

apesar da sua formulação bastante abrangente, a norma apenas se aplica às dívidas de

envio ou de remessa cujo regime de risco, de acordo com a disposição primariamente

competente, dependa da entrega da coisa ao adquirente (por exemplo, dívidas de remessa a

que se aplicasse primariamente o art. 796.º, n.º 2)212.

209 É esta a posição defendida por Paulo Mota Pinto, que defende que por “redução teleológica”, o art. 797.º, aplicar-se-ia apenas às

obrigações genéricas, nas quais, justamente, estando em regra a produção do efeito real vinculada ao cumprimento (art. 408.º e 541.º), a

deslocação do risco depende na prática da entrega – cfr. Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p.

595, nota 396. No mesmo sentido, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 857. 210 Segundo Karl Larenz, «[f]alamos de uma lacuna “oculta” quando a lei contém precisamente uma regra aplicável a casos desta

espécie, mas que, segundo o seu sentido e fim, não se ajusta a este determinado grupo de casos, porque não atende à sua especificidade,

relevante para a valoração. A lacuna consiste aqui na ausência de uma restrição. Por isso, a lacuna está “oculta”, porque, ao menos à

primeira vista, não falta aqui uma regra aplicável» – cfr. Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 535. Para Baptista Machado,

estamos perante uma lacuna oculta quando a lei contém uma regra aplicável a certa categoria de casos, mas, atendendo ao próprio

sentido e finalidade da lei, verifica-se que essa categoria abrange uma subcategoria, cuja particularidade ou especialidade,

valorativamente relevante, não foi considerada. Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,

Almedina, Coimbra, 1996, pp. 196 e 197. 211 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 595, nota 396. Neste

sentido, MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 176. 212 V. MARIA DE LURDES PEREIRA, Conceito de Prestação e Destino da Contraprestação, cit., p. 206, nota 556. Como explica a A.,

“[n]o restrito campo de aplicação que lhe é reconhecido, o art. 797.º tem consequentemente a função, não já de atrasar, mas antes de

antecipar o momento da transferência do risco, prescindindo de uma entrega ao credor e bastando-se com a entrega ao expedidor ou ao

transportador para que se consume a passagem do risco. Dito de outra forma, o disposto no art. 797.º não cobre as dívidas de remessa

onde o risco da contraprestação se transfira independentemente da entrega. Ele não regula pois, segundo a nossa interpretação, as

situações-regra, em que a passagem do risco opera com a transmissão ou constituição do direito real e esta, por seu turno, dependa do

mero consenso (cf. arts. 796.º, n.º 1, e 408.º; o preceito já se aplica sempre que o risco acompanhe a produção dos efeitos reais mas estes

pressuponham entrega – cf. arts. 796, n.º 1, e 541.º)”. Para Maria de Lurdes Pereira, no entanto, o âmbito de aplicação do art. 797.º não

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Sendo assim, não nos parece possível extrair do art. 797.º o princípio segundo o qual

o risco da contraprestação se transfere sempre pelo cumprimento da obrigação de entrega e

não logo com a transmissão do direito real, até porque, circunscrevendo-se a aplicação do

art. 797.º às hipóteses em que a transferência do risco não ocorre nos termos do n.º 1 do

art. 796.º, nem sequer se poderá defender que esta norma constitua uma verdadeira exceção

à regra res suo domino perit, consagrada no n.º 1 do art. 796.º213.

Isto não significa, porém, como demos conta ao analisar os n.os 2 e 3 do art. 796.º do

Código Civil, que a associação da transferência do risco à titularidade do direito real sirva

para explicar todos os fenómenos de distribuição do risco contratual.

Está também subjacente ao art. 796.º (n.os 2 e 3) uma associação do risco a uma ideia

de domínio fáctico sobre a coisa, considerando-se (também) relevante para efeitos de

transferência do risco, quer a entrega da coisa, quer a mora do comprador, credor da

entrega, na falta de retirada tempestiva da coisa. No que toca ao art. 797.º, a distribuição do

risco contratual parece atender (também) ao critério da satisfação do interesse contratual

prevalente no vínculo jurídico assumido pelas partes bem como a um vetor de controlo ou

influência efetiva do devedor sobre a coisa alienada214.

se circunscreve às obrigações genéricas, mas estende-se, também, às restantes dívidas de remessa em que, de acordo com a regra

primariamente aplicável (v. g., o art. 796.º, n.º 2), o risco da contraprestação só passaria a correr por conta do adquirente a partir do

momento em que a coisa fosse entregue ao adquirente. 213 Parecem pronunciar-se neste sentido PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, cit., p. 52. 214 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., pp. 499 e

segs. O A. entende que após uma ponderação global do regime jurídico vigente em matéria de distribuição do risco nos contratos de

alienação não é possível formular um princípio geral nesta matéria. Sem postergar a vigência do brocado res perit domino, a distribuição

do risco contratual de acordo com a satisfação do interesse contratualmente prevalente constitui, segundo o A., um vetor insofismável no

ordenamento jurídico vigente. De acordo com a opinião do Autor, é este o fundamento subjacente ao n.º 2 do art. 796.º e ao art. 797.º do

Código Civil, ainda que, nesta última norma, se conjugue com um vetor de controlo da coisa. Segundo o A., o vetor da satisfação do

interesse contratualmente prevalente consiste na imputação do risco contratual à parte cujo proveito é contratualmente maximizado,

harmonizando-se, assim, com um dos postulados basilares do instituto da responsabilidade civil objetiva (ubi commoda ibi incommoda).

Em sentido diverso, sublinhando a inexistência de nenhuma vantagem em aproximar os institutos do risco e da responsabilidade civil

objetiva, v. PEDRO MÚRIAS/MARIA DE LURDES PEREIRA, “Prestações de coisa: transferência do risco e obrigações de reddere”, in CDP,

n.º 23 julho/setembro 2008, pp. 3 a 16, p. 4.

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PARTE II

AS RAÍZES HISTÓRICAS E OS FUNDAMENTOS DOGMÁTICOS DA

SEPARAÇÃO ENTRE O REGIME DA VENDA DE COISA (ESPECÍF ICA)

DEFEITUOSA E O REGIME GERAL DO NÃO CUMPRIMENTO

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CAPÍTULO I – Breve referência à responsabilidade do vendedor pelos defeitos da

coisa vendida no Direito Romano

Os Códigos Civis continentais, de tradição romano-germânica, entre os quais se

inclui o Código Civil português, foram profundamente influenciados pelo Direito Romano.

No que respeita à responsabilidade do vendedor pelos defeitos da coisa vendida, o modelo

adotado pelos Códigos Civis continentais é o modelo das ações edílicas – a actio

redhibitoria e a actio quanti minoris – introduzidas pelos Edís Curúis romanos, no uso dos

seus poderes de polícia na fiscalização dos mercados, aplicadas inicialmente apenas às

vendas de escravos e de animais e posteriormente generalizadas a todas as vendas.

Vamos, pois, dar breve conta das soluções consagradas no Direito Romano, desde o

modelo inicial, em que vigorava a regra do caveat emptor até ao modelo posterior, das

ações edílicas, que, como referimos, influenciou em grande medida os Códigos Civis

continentais215.

No Direito Romano, o modelo de responsabilidade do vendedor pelos defeitos da

coisa vendida correspondia, numa fase inicial, ainda antes da introdução das ações edílicas,

ao princípio do caveat emptor, que também vigorava no Common Law e no Direito alemão

anterior216. De acordo com o modelo do caveat emptor, se o vendedor estivesse de boa-fé e

não tivesse prometido ao comprador que a coisa tem determinadas qualidades ou está

isenta de determinados defeitos não era responsável perante o comprador pela ausência

dessas qualidades ou pelos defeitos da coisa vendida. O comprador adquiria o bem talis

qualis217. Nesta fase inicial, a venda (emptio venditio) era uma operação de troca, realizada

nos mercados, concluída na presença de ambas as partes, e que tinha por objeto escravos e

215 É este modelo (o modelo da garantia edílica) que a Diretiva 1999/44/CE – na linha da Convenção de Viena de 1980 e de outros textos

de harmonização do direito civil dos países da União Europeia – pretende agora modernizar e simplificar. 216 Morales Moreno diferencia e compara três modelos de vinculação do vendedor às qualidades que deve ter a coisa específica vendida:

o primeiro modelo rege-se pelo princípio caveat emptor; o segundo modelo, que é aquele que encontramos nos Códigos Civis

continentais, que ainda não modernizaram o seu Direito das Obrigações, é aquele em que o vendedor está em certa medida vinculado a

entregar uma coisa com qualidades, traduzindo-se esta vinculação na possibilidade dada ao comprador de exercer as duas ações edílicas

provenientes do Direito Romano; o terceiro modelo é o modelo adotado pela Convenção de Viena. V. MORALES MORENO, “Tres

Modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., pp. 5 a 28. Poderiamos considerar que o regime da venda de

coisas defeituosas consagrado no Código Civil português corresponde ao segundo modelo, embora o nosso legislador não se limite a

reconhecer ao comprador os direitos correspondentes às duas ações edílicas, tendo também consagrado, no art. 914.º do Código Civil, o

direito à reparação e à substituição da coisa, que tem apenas como limite a sua fungibilidade. 217 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 81.

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animais. O princípio do caveat emptor reflete a ideia de que o comprador deve ser capaz de

curar dos interesses que o levam a concluir o negócio e que, tendo a coisa, objeto da venda,

diante dos seus olhos, deve examiná-la, para verificar se esta realmente tem as qualidades

por ele pressupostas.

Vigorava o princípio da auto-responsabilidade do comprador218, bem expresso no

aforismo germânico “Augen auf, Kauf ist Kauf!”219. Assim, por exemplo, entendia-se que o

comprador, podendo examinar o objeto comprado, não pagaria o preço normal por um

escravo que não tinha um braço ou uma perna220.

Tanto a evolução posterior do Direito Romano como do Common Law se orientaram

no sentido da vinculação do vendedor à entrega de uma coisa com qualidades, ainda que

por vias diferentes. A regra da não responsabilidade do vendedor pelos defeitos da coisa

vendida, consubstanciada no princípio do caveat emptor, ainda que pudesse ser aceitável

em pequenas comunidades rurais em que a venda era uma operação realizada nos

mercados e à vista do comprador que se podia certificar das suas qualidades, não se adequa

aos canônes da boa-fé do período clássico.

Aos poucos, a jurisprudência romana foi evoluindo do princípio do caveat emptor

para a regra da responsabilidade do vendedor por defeitos da coisa. Para isso terá

contribuído a bona fides que impunha ao vendedor o dever de declarar os vícios da coisa

de que tinha conhecimento221. O princípio do caveat emptor passou, pois, a conhecer duas

exceções. Inicialmente, o vendedor só era responsável pelos defeitos da coisa se tivesse

usado de dolo, cuja prova incumbia ao comprador (D. 22.3.18.1)222. Numa fase não muito

posterior, pelo menos desde a Lei das XII Tábuas (meados do século V a.C.), o vendedor

passou também a responder pela sua promessa (stipulatio), adequadamente formalizada,

218 Supõe-se que a falta de qualidades da coisa vendida corre a risco do comprador; o vendedor, salvo convenção em contrário, não

garante ao comprador as qualidades da coisa. No Common Law pretendia-se estimular com esta regra a atividade de autoproteção do

comprador. 219 REINHARD ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, Juta, C. H. Beck, 1992, p. 307. 220 V. REINHARD ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 307. 221 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 82. 222 V. ANTÓNIO MORALES MORENO, “Tres Modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., pp. 5 a 28, p. 11. O

dolo do vendedor, referido às qualidades da coisa, torna-o responsável perante o comprador. Tal responsabilidade pode ser exigida

através da actio empti, quer dizer, da própria ação do contrato de compra e venda.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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através da qual garantia a existência de certas qualidades da coisa223. No primeiro caso, o

fundamento da responsabilidade consistia numa atuação contrária às exigências da boa-fé.

No segundo caso, o fundamento seria a violação da promessa (stipulatio). Esta

responsabilidade concretizava-se numa indemnização, exigível por meio de ações

diferentes em cada um dos casos (a actio empti e a actio ex stipulatio) e com um conteúdo

também diferente224.

O dolo do vendedor, referido às qualidades da coisa, torna-o responsável perante o

comprador. Em tal caso, como dispõe o Digesto (D. 19.1.13.4), o comprador podia recorrer

à actio empti225. O seu pressuposto não era o incumprimento de um dever de prestação mas

de um dever de conduta imposto pela boa-fé na fase pré-contratual226. Esta categoria

abrangia dois grupos de casos (dolus e dicta in venditione). Em primeiro lugar, o vendedor

era responsável quando tivesse fraudulentamente (dolo malo) ocultado ao comprador um

defeito que conhecia227.

No Direito Romano, o dolo incluía, por um lado, o dolo malo, a atuação fraudulenta

do sujeito (por exemplo, o vendedor, de modo consciente, não revela ao comprador um

defeito da coisa que conhece), mas ultrapassava os limites deste228.

Quanto às afirmações do vendedor acerca da qualidade do bem vendido, no Digesto

(21.1.19.2) distingue-se entre o que era declarado (dicta) e o que era prometido (promissa).

O dictum era uma enunciação sem forma; enquanto o promissum implicava uma stipulatio,

uma afirmação categórica (spondeo) 229. Embora a distinção fosse mais formal que

substancial230. Assim, o vendedor também era responsável, de acordo com a actio empti,

quando tinha especificamente assegurado ao comprador, no momento da conclusão do

223 Em ambos os casos, o vendedor fica vinculado. No primeiro caso, de acordo com as exigências da boa-fé; no segundo caso, conforme

o prometido. Assim, também, o § 463 do BGB (versão anterior previa a responsabilidade do vendedor pelas qualidades asseguradas ou

prometidas. 224 Quer a actio empti quer a actio ex stipulatu confinavam os seus efeitos ao ressarcimento do dano, sem que o comprador de coisa

defeituosa pudesse resolver o contrato. Cfr. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1999, p. 265. 225 A actio empti era a própria ação do contrato de compra e venda (visto numa perspetiva atual, situa esta indemnização no âmbito da

responsabilidade contratual). 226 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 308. 227 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 308. O Autor dá o exemplo de Paul. Di.

19, 1, 4. 228 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 309. 229 ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 83. 230 ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 83.

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contrato, que o objeto estava isento de algum ou todos os defeitos ou que possuía certas

qualidades231, e seria assim, ainda que o vendedor estivesse de boa-fé, entendendo-se que

estava de boa-fé quando não tinha a intenção de enganar. Aquilo que justificava neste caso

um desvio à regra caveat emptor não era tanto a má-fé por parte do vendedor, mas o facto

de as suas afirmações terem criado no comprador uma confiança razoável232 . As

declarações do vendedor podiam ser positivas, no sentido de assegurar a existência de uma

determinada qualidade (por exemplo, que o barril tinha certa capacidade, D. 19.1.6.4), ou

negativas, se se garantia a ausência de um defeito (por exemplo, que o vinho não estava

estragado, D. 18.6.16). Mas, em qualquer um dos casos, o regime era o mesmo233.

O outro caso em que não se aplicava a regra caveat emptor era o da promessa do

vendedor. Se o comprador queria assegurar-se de que a coisa vendida estava isenta de

determinados defeitos específicos, ou que tinha certas qualidades, poderia requerer ao

vendedor uma stipulatio para esse efeito234. Começou por ser frequente estabelecer-se a

stipulatio duplae, por exemplo, nas vendas de imóveis e animais, e, com o tempo, a

estipulação passou a fazer parte integrante do próprio negócio235.

Havia algum debate em torno da questão de saber se estas promessas deveriam ser

consideradas válidas. Há uma passagem do Digesto que se refere a este problema. A

questão que se colocava era a de saber se poderia ter força vinculante a promessa

(stipulatio) de que o escravo carece de determinados defeitos que na realidade tem236.

Assim, por exemplo, quanto à promessa de que o escravo vendido é saudável, dizia-se que

231 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 309. 232 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 309. O Autor dá a este proósito o

exemplo da venda de animais que sofrem de doença contagiosa. O vendedor é responsável não só pelo valor reduzido dos objetos em si

mesmos mas também pelos danos consequenciais. Se todos os animais do comprador morrerem em consequência dessa infeção, a

compensação por esses danos cabe dentro da actio empti. É uma responsabilidade pelas suas próprias afirmações. Pode ser considerada

uma espécie de garantia resultante do exercício da própria autonomia negocial, ou uma responsabilidade pela confiança gerada no

comprador. 233 ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 83. 234 Cfr. MORALES MORENO, “Tres Modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., p. 12. Refere o Autor que é

interessante notar como, neste caso, o sistema romano admite uma vinculação pelos meros dicta, expressos pelo vendedor sem

formalidade. Quando o vendedor promete ao comprador a existência de certas qualidades na coisa vendida, a “autonomia da vontade”

modifica a regra geral caveat emptor. A responsabilidade do vendedor é aqui a consequência da força vinculativa da promessa, expressa

na forma requerida. 235 ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 83. 236 V. MORALES MORENO, “Tres Modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., p. 9. Neste caso, o conteúdo da

promessa circunscreve-se ao facto de a coisa ter determinadas qualidades.

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se o escravo é saudável, a stipulatio não teria qualquer relevância prática; se o escravo não

é saudável, então o vendedor prometeu algo que é objetivamente impossível. No Digesto,

Ulpiano supera adequadamente esta dificuldade colocada pela impossibilidade originária

(Ulp. D. 21, 2, 31). Segundo Ulpiano, o facto de o escravo não ter as qualidades

prometidas não impede que exista vinculação contratual. A vinculação não se refere neste

caso à prestação (à entrega do escravo sem esses defeitos), mas à indemnização do

interesse do credor, no caso de o escravo não ter as qualidades (ou ausência de defeitos)

prometidas237. Ao prometer que a coisa, por exemplo, tem determinadas qualidades ou está

isenta de certos defeitos, aquilo que o vendedor promete não é a ausência do defeito ou a

presença de uma certa qualidade, mas sim que indemnizará o comprador se,

contrariamente à sua promessa, a coisa vendida tiver esse defeito ou se lhe faltar aquela

específica qualidade238.

Num período posterior os Edís Curúis, nos uso dos seus poderes de polícia sobre os

mercados, deparando-se com a frequência com que os vendedores de escravos e de animais

enganavam o comprador e com a dificuldade em provar a sua má-fé239, introduziram e

tornaram obrigatórias estipulações de garantia na venda de escravos e de animais. Assim,

para protegerem os compradores impuseram a obrigação de os vendedores celebrarem uma

stipulatio e estabeleceram, no seu edictum, que deviam declarar, no momento da conclusão

das vendas, as enfermidades crónicas (morbi) e os defeitos físicos (vitia) não aparentes que

afetassem os escravos e os animais240. Deviam declarar, ainda, se alguma vez tentaram

fugir, se se entregavam à vadiagem e se já tinham cometido algum delictum cuja

responsabilidade (noxal) os afetasse a um terceiro241. No caso de os defeitos não

declarados se manifestarem depois da compra e venda, o comprador podia demandar o

vendedor através da actio redhibitoria ou da actio quanti minoris que permitiam ao

comprador “desfazer” o contrato (através da repetição do preço pago e devolução do

comprado) ou obter a redução do preço242. No período justinianeu, esta inovação dos Edís

237 MORALES MORENO, “Tres Modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., p. 9. 238 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 310. 239 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 311. 240 V. A. SANTOS JUSTO, Direito Privado Romano – II, cit., p. 58. 241 A. SANTOS JUSTO, Direito Privado Romano – II, cit., p. 59. 242 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 266. Como explica A. Santos Justo, a actio redhibitoria produzia

a resolução da compra e venda e a condenação do vendedor no pagamento do dobro da pecunia recebida, a menos que quisesse restituir

o pretium com juros. O vendedor recuperava a res que tinha vendido. Esta actio devia ser instaurada no prazo de dois meses a partir do

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Curúis, de responsabilizar o vendedor de boa-fé pelos vícios da coisa, foi recebida pela

actio empti; as ações edílicas inicialmente aplicáveis às vendas de escravos e de animais

estenderam-se a todas as vendas, isto é, a qualquer tipo de objeto vendido.

Este novo sistema, que implica um certo nível de vinculação do devedor às

qualidades da coisa, foi o que influenciou os Códigos continentais243. O vendedor garantia

a ausência de defeitos ocultos da coisa vendida – só ocultos porque dos patentes podia

defender-se o próprio comprador. Perfila-se assim um sistema de responsabilidade objetiva

em que o vendedor garante ao comprador a ausência de defeitos ocultos na coisa vendida.

Esta garantia concretiza-se nas duas ações, conhecidas hoje com o nome de ações edílicas:

a actio redhibitoria e a actio quanti minoris. A primeira desempenha no Direito Romano,

que não conhece uma ação geral de resolução por incumprimento, salvo quando seja

pactuada, uma função similar à da ação resolutória. A segunda, a actio quanti minoris,

permite restabelecer a equivalência das prestações. Com o tempo, estas ações

transformaram-se em remédios civis, integrados na regulação típica do contrato de compra

e venda. No sistema romano, em que fundamentalmente se regulam os tipos contratuais,

não tinham a natureza de ações especiais que acabaram por ter no momento da

codificação244.

A codificação supõe uma técnica de regulação das obrigações e dos contratos

diferente da que era utilizada no Direito Romano245. No Direito Romano, sendo ainda

desconhecido o paradigma do negócio jurídico bilateral produtor de efeitos obrigacionais,

os juristas recorriam a um método casuístico, de carácter empírico e indutivo, que apenas

reconhecia os contratos particulares ou típicos, identificando-se a própria noção de

contrato, no limite, não com o ato jurídico celebrado, mas antes com o conteúdo ou os

momento em que o defeito se revelou. A actio quanti minoris (ou aestimatoria) permitia ao comprador obter a diminuição do pretium

proporcionalmente ao valor menor que a res tinha em consequência do vício. Esta actio devia ser instaurada no prazo de seis meses a

partir do momento em que o vício se manifestou. Estas ações conferiam ao comprador uma proteção mais completa porque o vendedor

estava obrigado a declarar os vícios e o comprador podia demandá-lo pelos vícios não declarados, independentemente de aquele ter

atuado com ou sem dolo. V. A. SANTOS JUSTO, Direito Privado Romano – II, cit., p. 59. 243 V. MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, Anuario de derecho civil, t. 56, n. 4

(outubro-dezembro 2003), p. 1615. 244 V. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, p. 102. Sobre

as ações edílicas no Direito Romano, v. LUIGI GAROFALO, “Le Azioni Edilizie e La Direttiva 1999/44/CE”, in Études Offertes À Jacques

Ghestin, Le contrat au début du XXI siècle, L.G.D.J., pp. 479 a 419. 245 MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., p. 1615.

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efeitos da vinculação negocial assumida246. Assim, o regime jurídico da compra e venda

está fundamentalmente contido na regulação específica do tipo contratual.

Os Códigos Civis, pelo contrário, utilizam uma técnica diferente, uma técnica

desagregadora. Por um lado, mantêm a regulação típica do contrato de compra e venda,

inspirada, como em outros contratos, na regulação romana do correspondente tipo

contratual; mas, ao mesmo tempo, agregam a esta regulação especial um regime especial

das obrigações e dos contratos, elaborado, em boa medida, a partir de regras romanas sobre

obrigações unilaterais247.

Esta divisão de conteúdos normativos explica, em parte, a separação de dois sistemas

de responsabilidade do vendedor: o regime especial de responsabilidade do vendedor pelos

defeitos da coisa e o regime geral do não cumprimento das obrigações248.

CAPÍTULO II – Os fundamentos dogmáticos da separação entre o regime (especial)

da venda de coisas defeituosas e o regime (geral) do não cumprimento: a

diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica

1. A origem histórica da diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e

a venda de coisa genérica

Depois de termos dado conta das raízes históricas que explicam a separação entre o

regime (especial) da venda de coisas defeituosas e o regime geral do não cumprimento

cumpre agora referir que aquela separação se deve também a uma diferenciação dogmática

entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica, oriunda do Direito Romano,

e, em particular, ao modo de entender o objeto da compra e venda de coisa específica.

Julgamos poder mesmo afirmar que a chave dogmática da separação entre o regime

(especial) da venda de coisas defeituosas e o regime (geral) do não cumprimento, reside no

objeto (ou no modo de entender o objeto) da venda específica249.

246 V. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 102. 247 MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., p. 1615. 248 Quer o Código Civil francês quer o Código Civil espanhol separam nitidamente as obrigações do vendedor. O art. 1603 do Código

Civil francês dispõe: “Il y a deux obligations principales: celle de délivrer et celle de garantir la chose qu’il vend”. A garantia tem dois

objetos: a pacífica posse da coisa e os vícios ocultos (art. 1625 do CCfr). O mesmo faz o Código Civil espanhol (arts. 1461, 1474). 249 MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., p. 1616.

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O nosso Código Civil tomou como paradigma o modelo típico de compra e venda do

Direito Romano que era a venda específica (emptio venditio), que tinha por objeto, numa

fase inicial, a venda de escravos e de animais. A venda genérica, nos moldes em que nós

hoje a conhecemos, não existia no Direito Romano250. As coisas sujeitas a pesagem,

contagem ou medição podiam ser vendidas, mas para tal seria necessário que estivessem

especificadas (“estas duas ânforas de vinho”) ou que todo o stock desses bens sujeitos a

pesagem, contagem ou medição fosse vendido (“todo o vinho da minha adega”)251. Neste

sentido, no Direito Romano, a venda (emptio venditio) era sempre específica, pois só

poderia ter um objeto determinado. A venda genérica, nos moldes em que nós hoje a

conhecemos, por exemplo, a venda de “vinte ânforas de vinho branco” ou de “um

escravo”, não era conhecida no Direito Romano252.

Foi este modelo de venda específica que o nosso Código Civil tomou como

paradigma e muitas das suas disposições se compreendem a esta luz253. Assim, por

exemplo, a regra consagrada no art. 408.º, n.º 1, em conjugação com o art. 879.º, n.º 1,

alínea a), que prevê a eficácia translativa imediata do contrato de compra e venda. É

também a esta luz que se compreende a diferenciação dogmática, em matéria de venda de

coisas defeituosas, entre o regime (especial) da venda de coisas defeituosas, regulado em

sede de contrato de compra e venda e aplicável apenas à venda de coisa específica, e o

regime geral do não cumprimento, aplicável à venda de coisa genérica.

250 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., pp. 236 e 237. 251 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 236. 252 ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 237. Isto explicava-se, segundo

Zimmermann, pelo facto de a emptio venditio ser, na sua origem, uma transação celebrada nos mercados, concluída na presença de

ambas as partes e em que a conclusão do contrato e a execução das obrigações que dele resultavam para as partes (i. é., a transferência

do objeto e o pagamento do preço) coincidiam no tempo. 253 V. MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., p. 1616.

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2. A distinção entre obrigações específicas e obrigações genéricas

Diferentes das obrigações específicas, que são aquelas cujo objeto mediato está

individual ou concretamente determinado, as obrigações genéricas são aquelas em que o

objeto mediato da prestação está apenas determinado pelo género e por uma certa medida

ou quantidade dentro desse género (art. 539.º do Código Civil)254.

As obrigações específicas têm um objeto determinado (por exemplo, A vende a B o

seu barco de recreio), pelo que o cumprimento, sem violação do princípio da pontualidade,

incide sobre esse mesmo objeto; as obrigações genéricas, ao invés, têm um objeto

indeterminado, mas determinável255, cumprindo-se a obrigação mediante a entrega de uma

qualquer das unidades vendidas (assim, por exemplo, se A vende a B uma garrafa de vinho

maduro da sua adega) ou da quantidade pertencente ao género estipulado (por exemplo, se

A vende a B 200 litros de azeite). Nos termos do art. 400.º do Código Civil, o vendedor

terá de entregar as coisas correspondentes à qualidade e quantidade convencionadas no

contrato de compra e venda e deverá escolher coisas de qualidade média, a menos que

tenha sido convencionado o contrário256.

Embora o nosso legislador civil tenha tomado como paradigma a obrigação

específica, as obrigações genéricas são aquelas que se adequam às características atuais do

comércio jurídico de produção em série de bens com as características que as partes

acordaram.

Estando em causa obrigações de prestação de coisa, a obrigação genérica terá em

regra por objeto coisas fungíveis, isto é, que podem ser substituídas por outras iguais, sem

perda do seu valor. Nem sempre é clara a distinção entre as categorias genérica/específica

e fungível/não fungível, havendo uma certa sobreposição entre prestação de coisa fungível

e obrigação genérica. Nos termos do art. 207.º do Código Civil, “[s]ão fungíveis as coisas

254 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 112. 255 O n.º 1 do art. 280.º do Código Civil admite a indeterminação do objeto dos negócios jurídicos. Apenas se exige que ele seja

determinável. A determinação do género pode ser maior ou menor, mas não tão restrita que deixe de todo indeterminável o objeto da

obrigação (v. g., um animal, uma pedra). Essa determinação pode fazer-se indicando meros carateres muito gerais (por exemplo, vinho,

trigo) ou outros mais particulares (v. g., vinho de Colares, vinho de Colares da colheita de 1940, trigo da propriedade X, trigo existente

no celeiro Y). Teremos, nestas últimas hipóteses, uma obrigação de género limitado, limitação que pode fazer-se expressa ou

tacitamente. V. VAZ SERRA, “Obrigações Genéricas”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 55, Lisboa, 1956, pp. 5 a 58, p.

6. 256 V. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 30.

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que se determinam pelo seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objecto de

relações jurídicas”257. Como ensina Manuel de Andrade, dizem-se fungíveis as coisas

(corpóreas) que intervêm nas relações jurídicas não in specie, isto é, como individualmente

determinadas, mas in genere, isto é, enquanto identificadas somente através de certas notas

genéricas (mais ou menos precisas) e da indicação de uma quantidade, a verificar por meio

de contagem, pesagem ou medição258.

Pode falar-se de coisas fungíveis em geral, sem referência a uma relação jurídica

concreta, ou em especial, com vista a uma tal relação jurídica259. No primeiro sentido, são

fungíveis as coisas que como tais costumam entrar nas relações jurídicas, por exemplo,

“livros e outros artigos de fabrico estandardizado quando em estado de novos (não usados)

se for caso disso”. No segundo sentido, diz-se que uma relação jurídica está constituída

sobre coisas fungíveis quando o seu objeto se mostra configurado nos termos já ditos,

ainda que as coisas do tipo visado costumem ser tratadas diferentemente no comércio

jurídico260. Coisas não fungíveis são todas as outras. O seu conceito define-se por

contraposição com o de fungíveis261. Se bem que, em geral, o objeto das obrigações

genéricas sejam coisas fungíveis (v. g., dez pipas de vinho), não existe uma coincidência

257 O art. 207.º insere-se no Livro I, Título II “Das relações jurídicas”; Subtítulo II: “Das coisas”. O art. 202.º estabelece a equivalência

entre o conceito de coisa e o de objeto de relações jurídicas. Como refere Mota Pinto, “[o]bjecto da relação jurídica é aquilo sobre que

incidem os poderes do titular activo da relação. Não é, pois, o próprio direito subjectivo e o correspondente dever jurídico: estes formam

o conteúdo da relação jurídica. Não se trata igualmente dos poderes que integram o direito subjectivo, estes são o conteúdo do referido

direito”. V. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1996,

p. 181. Pode distinguir-se entre objeto imediato e objeto mediato. Objeto imediato é o conjunto direito-dever (o conteúdo ou estrutura da

relação jurídica); o objeto mediato é o bem que a relação jurídica garante ao sujeito ativo (a que chamamos objeto “tout court”). Neste

sentido, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol. I, pp. 20 e 21. 258 Uma relação jurídica versa sobre coisas fungíveis quando tem por objeto uma certa quantidade de coisas de determinado género,

quantidade a preencher na altura própria (cumprimento da obrigação de entregar ou de restituir), com quaisquer coisas do género

previsto, desde que perfaçam o montante indicado. 259 MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol. I, p. 252. 260 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol. I, pp. 252 e 253. A distinção entre coisas fungíveis e coisas

não fungíveis (infungíveis) assenta na posição por elas ocupada na relação jurídica. Em certos casos, as coisas são consideradas pela sua

individualidade, ou seja, pelas suas características específicas. Ao invés, noutras relações as coisas são tomadas segundo o seu género e

determinadas apenas pela sua qualidade e quantidade. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Introdução,

Pressupostos da Relação Jurídica, 3.ª edição revista e atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2001. 261 “A fungibilidade ou não-fungibilidade não está escrita inapagavelmente nas coisas, não radica de modo inalterável em qualidades

próprias delas. Anda conexa aos usos da vida ou à vontade das partes, nos negócios jurídicos constitutivos de cada relação concreta. Não

se afere pois por um critério naturalístico, mas por um critério – digamos – económico ou social. Coisas de certo género, que

normalmente aparecem como fungíveis, podem num dado caso, por vontade das partes, funcionar como não-fungíveis. E não é

impossível a hipótese contrária”.

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total entre estas classificações. Assim, uma obrigação genérica pode ter por objeto uma

coisa que as partes acordaram ser infungível (v. g., um automóvel usado, que, segundo a

opinião usual, não é coisa fungível), do mesmo modo que coisas fungíveis podem ser

objeto de obrigação específica (v. g., certo exemplar de um livro de uma determinada

edição, toda a colheita anual de uma vinha)262.

Dentro das obrigações genéricas podemos distinguir as obrigações genéricas puras

ou de género ilimitado, em que o género é limitado apenas por notas intrínsecas (por

exemplo, venda de 10 Kg de laranja), das obrigações de género limitado, em que o género

está mais circunscrito, encontrando-se limitado não apenas por notas intrínsecas, mas

também por notas extrínsecas resultantes da vontade das partes (A obriga-se a entregar a B

50 garrafas da sua garrafeira ou 100 litros de azeite de um determinado lagar)263.

O nosso Código Civil assenta no paradigma da obrigação específica à qual é possível

aplicar, sem dificuldades, normas como as dos arts. 408.º, n.º 1, que consagra a

transferência da propriedade por mero efeito do contrato, 796.º, n.º 1, que consagra a regra

res perit domino, e, ainda, 882.º, n.º 1, no qual se estabelece que a coisa deve ser entregue

no estado em que se encontrava ao tempo da venda. Em relação às obrigações genéricas

haverá que aplicar o disposto nos arts. 539.º e segs. do Código Civil. Assim, nas

obrigações genéricas, ao contrário do que sucede nas obrigações específicas, o direito real

não se transfere no momento da celebração do contrato. As obrigações genéricas têm de

ser concentradas, consistindo a concentração na determinação da prestação dentro do

género estipulado, a qual pressupõe uma escolha ou separação mesmo que por medição,

contagem ou pesagem264.

262 Cfr. VAZ SERRA, “Obrigações Genéricas”, cit., p. 6. Como explica o A., na obrigação genérica, as coisas compreendidas no género

podem, na intenção das partes, ser substituídas umas pelas outras e são, portanto, segundo essa intenção, fungíveis. Se A vende a B um

automóvel de certa marca e características comuns a outros (v. g., um Citroen de 1950, tantos cavalos), a obrigação é genérica, podendo

A escolher um de entre todos os carros com os carateres indicados. Esses carros são aqui, na opinião das partes, coisas fungíveis, embora

possam não o ser na opinião do tráfico. Conquanto porventura a fungibilidade dependa da opinião do tráfico para outros efeitos, parece

nada se opor a que, no caso presente, dependa da opinião das partes, havendo, assim, também uma fungibilidade subjetiva para este

efeito. Cfr. VAZ SERRA, “Obrigações Genéricas”, cit., pp. 5 e 6, nota 2. 263 Pode distinguir-se ainda as obrigações genéricas de quantidade ou de especificação (a estrita fungibilidade só reclama meras

operações de pesagem, contagem ou medição) e obrigações genéricas de escolha (não há estrita fungibilidade na venda de um cavalo

não individualizado ou na venda de um quadro, não individualizado, de certo autor). V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e

Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 113. 264 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 315. Nos termos do art. 539.º, a escolha

cabe em regra ao devedor, podendo este seu privilégio ser afastado, nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, e 542.º, n.º 1, atribuindo-se a

escolha ao credor ou a terceiro. Independentemente da pessoa a quem incumba a escolha, esta deverá sempre ser feita, nos termos do n.º

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3. A diferenciação fundamental entre o objeto da venda de coisa específica e o

objeto da venda de coisa genérica

Na venda de coisa genérica, porque as partes, no momento da celebração do contrato,

se referem apenas ao género, só há uma forma de entender o objeto do contrato: o objeto

da venda genérica é sempre algo ideal, é o género, enquanto categoria lógica,

representativa de todas as coisas que o compõem, ou, por outras palavras, é “a coisa ideal”,

ou seja, “a coisa com as qualidades habituais ou normais do género”, neste sentido, é

sempre um dever-ser. Porque na venda genérica as “qualidades habituais ou normais do

género” são sempre devidas, quando o vendedor entrega uma coisa sem as referidas

qualidades, o problema é (e só pode ser) de não cumprimento (cumprimento defeituoso do

contrato)265.

Na venda específica, as partes referem-se no momento da conclusão do contrato, não

ao género, mas a uma coisa certa e determinada (que pode ser um espécime do género,

desde que perfeitamente individualizado no momento da conclusão do contrato)266. Por

conseguinte, na venda específica, há duas formas de entender o objeto do contrato: o

objeto pode ser entendido como a coisa concreta (porção de matéria, na sua “nua entidade

espácio-temporal”) ou como a coisa ideal, com as qualidades que deve ter segundo o

contrato, devidamente interpretado e integrado.

O regime da compra e venda consagrado no Código Civil português, à semelhança

de outros Códigos Civis continentais, de derivação romanística, reflete claramente aquela

primeira forma de entender o objeto. O objeto do contrato de compra e venda de coisa

determinada é a “coisa concretamente determinada ou individualizada”, ou seja, a coisa

concreta e não a coisa ideal. Por esta razão terá o legislador considerado que a venda de

1 do art. 400.º, segundo juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados. Nos termos dos arts. 540.º e 541.º, a

contrario sensu, a concentração ocorre em regra com o cumprimento. O art. 541.º consagra, porém, quatro casos em que a obrigação se

concentra antes do cumprimento: acordo das partes, extinção parcial do género, mora do credor e existência de uma dívida de envio. 265 Na venda genérica, o dever de entregar ao comprador uma coisa com as qualidades habituais ou normais do género resulta

implicitamente do n.º 1 do art. 400.º do Código Civil, que estabelece que “[a] determinação da prestação pode ser confiada a uma ou

outra das partes ou a terceiro; em qualquer dos casos deve ser feita segundo juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido

estipulados”. 266 A doutrina distingue, nas obrigações de prestação de coisa certa e determinada, o objeto imediato, isto é, a prestação, o ato de entrega

da coisa, e o objeto mediato, a própria coisa que deve ser entregue ao credor. V. CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil,

cit., p. 330.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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coisa específica defeituosa coloca um problema de erro e que este erro sobre as qualidades

do objeto é um erro-vício (art. 251.º) e, por essa razão também, terá o legislador

considerado que se a coisa vendida perecer antes da conclusão do contrato, este é nulo

(arts. 401.º, n.º 1, e 280.º, n.º 1, do Código Civil)267.

É também esta forma de entender o objeto da venda específica que explica que,

perante o regime consagrado nos Códigos Civis continentais, a entrega de uma coisa sem

qualidades ou com vícios não consubstancie um não cumprimento do contrato268. O

vendedor de coisa específica não estaria obrigado a entregar uma coisa com qualidades e

sem vícios, mas apenas a coisa concretamente determinada e individualizada com ou sem

qualidades, com ou sem vícios269. Por isso se entende que o vendedor cumpre – e cumpre

bem – quando entrega a coisa individualizada pelo comprador. Os meios edílicos seriam

apenas formas de reação, ou correção e restabelecimento, de um equilíbrio entre as

prestações contratuais do vendedor e do comprador que se frustrou pela ocorrência de

vícios da coisa270. A isto poderíamos ainda acrescentar que, na venda específica, o dever de

entregar uma coisa com qualidades ou isenta de vícios seria inconciliável com o dogma da

eficácia translativa imediata do contrato de compra e venda Tendo o comprador adquirido

o direito de propriedade sobre a coisa com a conclusão do contrato de compra e venda

[arts. 408.º, n.º 1, 874.º e 879.º, alínea a), do Código Civil], “o vendedor não pode

entregar-lhe uma coisa (ainda que uma coisa sem defeitos) de que o comprador não é

proprietário e recusar-se a entregar-lhe a coisa (ainda que uma coisa com defeitos) de que o

comprador já é proprietário”271.

Note-se, porém, que este modo de entender o objeto da venda específica não parece

ser uma exigência decorrente da própria natureza da obrigação específica, nem algo de

absolutamente inultrapassável. Como demonstrou Baptista Machado, a superação deste

dogma ficou a dever-se, na doutrina alemã, a Werner Flume, que veio pôr em destaque que

“a vontade jurídico-negocial não se limita à identificação do objecto, antes se reporta

267 Muito embora nos pareça que o nosso legislador se deixou influenciar, de forma consistente, pela conceção de objeto da venda

específica como a “coisa concreta”, não podemos deixar de notar que esta conceção é fruto de um paradigma ultrapassado e que poderá

ser até perigoso encarar o objeto da venda específica como a coisa concreta. Note-se, desde logo, que esta forma de conceber o objeto da

venda específica não serve, por exemplo, para distinguir o erro do incumprimento. 268 V. MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., p. 1616. 269 V. NUNO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 233. 270 V. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 687, nota 747. 271 NUNO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 233.

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também, em regra, à entidade (à constituição e às qualidades) do objecto”272. De acordo

com esta perspetiva, tal como na venda de coisa genérica, também na venda de coisa

específica, a vontade negocial poderia estender-se às qualidades da coisa, não como algo

que é (dado que a vontade só pode referir-se a um dever-ser e nunca a um ser), mas como

algo que deve-ser, isto é como coisa dotada de determinadas qualidades273.

A Diretiva 1999/44/CE, ao consagrar, na senda da Convenção de Viena de 1980

sobre a Venda Internacional de Mercadorias, a exigência de conformidade dos bens com o

contrato, veio romper abertamente o dogma tradicional de entender o objeto da venda

específica. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º do diploma comunitário, “[o] vendedor tem o

dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e

venda”. À noção de conformidade com o contrato subjaz um modo distinto de entender o

objeto da obrigação do vendedor, aplicável tanto à obrigação genérica como à obrigação

específica: se o objeto da obrigação do vendedor é entregar uma coisa conforme ao

contrato, pode afirmar-se que o objeto não é a coisa concreta, tal qual é, mas a coisa ideal,

como deve-ser. E assim, concebendo o objeto da venda específica como a coisa ideal,

poder-se-á considerar como verdadeiro incumprimento a entrega de uma coisa não

conforme com o contrato274.

272 V. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, in BMJ, n.º 215, 1972, p. 17. 273 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 17; e CARNEIRO DA FRADA, “Erro e

incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, in O Direito, 121, 1989, p. 474. Pode ver-se a este

propósito o exemplo dado por Calvão da Silva: “se A compra a B determinado terreno com a finalidade expressa e por ambos assumida

de nele construir uma vivenda com certas características, não se pode negar que no acordo contratual entra este terreno com a

qualidade ou função prevista – a edificação da vivenda. É que a vontade das partes não se dirige apenas a este terreno, hie et nunc

determinado, mas unitária e incindivelmente a este terreno suposto ou representado como aedificandi” – cfr. Compra e Venda de

Coisas Defeituosas, cit., p. 55. 274 Neste sentido parece-nos muito esclarecedora a opinião de MASSIMO BIANCA, Diritto Civile, il Contratto, 3, seconda edizione, giuffrè

editore, Milano, 2000, pp. 321 e 322, relativamente aos dois significados possíveis de bem objeto do contrato. De bem como objeto do

contrato pode falar-se também com um diverso significado, isto é, como bem real, como porção de realidade material sobre a qual

recaem os efeitos do contrato. Este significado encontra confirmação na linguagem legislativa e principalmente naquelas disposições que

se referem ao bem em ordem ao qual se produzem os efeitos obrigatórios ou reais (v. art. 1472 CCit). A possibilidade de entender como

bem real o objeto do contrato apresenta o perigo de referir inteiramente a tal bem a vinculação contratual que, ao invés, deve ser

determinada segundo o complexo das indicações convencionais e da integração legal. É necessário por isso distinguir entre o bem

devido e o bem real. Se as partes identificam um bem real como objeto do contrato, a vinculação contratual tem por objeto esse bem com

referência à sua identidade. Mas para além da sua identidade importa atender também a determinados aspetos do bem, tendo em conta a

complexa previsão contratual e os critérios legais: o bem devido, o bem que o credor espera, não é o bem real, mas o bem que se

conforma aos parâmetros convencionais e legais de determinação da prestação. O bem real pode concorrer na determinação ainda que

apenas implícita do bem devido. Por exemplo, o adquirente que escolhe um específico bem adquire-o no estado material aparente em

que este se encontra. Cfr. MASSIMO BIANCA, Diritto Civile, cit., pp. 321 e 322.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

103

Note-se, porém, que, concebendo o objeto da venda específica como a coisa ideal,

perde sentido a diferenciação dogmática entre venda de coisa específica e venda de coisa

genérica.

Assim, e retomando a nossa consideração de partida, a chave dogmática da separação

entre o regime (especial) da venda de coisas defeituosas e o regime (geral) do não

cumprimento reside não tanto na distinção entre a venda específica e a venda genérica mas

sobretudo na conceção do objeto da venda de coisa específica como a coisa concreta.

CAPÍTULO III – Breve referência à diferenciação dogmática entre a venda de coisa

específica e a venda de coisa genérica defeituosa no Código Civil alemão (versão

anterior à “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”) e no Código Civil

italiano de 1942

1. A diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa

genérica no Código Civil alemão (versão anterior à “Lei para a Modernização do

Direito das Obrigações”)

Na Alemanha, antes da publicação do Código Civil de 1896, foi amplamente

debatida a questão da diferenciação entre a venda específica e a venda genérica275. Em

caso de vícios materiais276, o BGB dava ao comprador as duas ações edílicas, oriundas do

Direito Romano, colocadas entre si numa relação de alternatividade. Assim, o comprador

de coisa específica poderia, à sua escolha, desvincular-se do contrato através da resolução

(Wandelung) ou conformar-se com a redução do preço (Minderung) 277. Em relação à

venda genérica discutia-se se o comprador podia exercer estas ações, correspondentes à

garantia edílica, ou se a sua tutela deveria ficar confinada à possibilidade de exigir do

275 Sobre o debate acerca da venda genérica, anterior à publicação do Código Civil alemão, v. RAYMOND SALEILLES, Etude sur les

sources de l’obligation dans le projet de Code civil allemand, F. Pichon, Paris, 1889, pp. 20 e 21. 276 O § 433 (versão anterior) do BGB referia-se exclusivamente aos vícios materiais. Relativamente aos vícios de direito, dispunha o §

434 (versão anterior) do BGB que o vendedor estava obrigado a proporcionar ao comprador a coisa livre de direitos que pudessem ser

feitos valer por terceiros. V. HAAS/MEDICUS/ROLLAND /SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, cit., p. 173. Segundo o novo §

433/1, 2.º §, o vendedor deve proporcionar ao comprador um bem isento de vícios materiais ou jurídicos. No que diz respeito aos vícios

jurídicos esta norma não é, pois, inovadora já que esta obrigação já recaía sobre o vendedor nos termos do § 434 (versão anterior) do

BGB. 277 V. NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, inédito, p. 37.

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vendedor a substituição da coisa viciada. A este propósito eram duas as posições em

confronto. As posições que consideravam que também na venda genérica deveriam valer

os antigos remédios edílicos – argumentando com o facto de que depois da concentração a

posição jurídica do vendedor se tornava a mesma em ambos os tipos de compra e venda

(específica ou genérica)278 – e a tese daqueles que, ao invés, defendiam que a venda de

coisa genérica deveria ser sujeita à disciplina geral do incumprimento, e isto porque, com a

entrega de coisa viciada, a obrigação do vendedor não se poderia considerar cumprida,

estando este adstrito a procurar bens “mittler Art und Güte” (§ 243/1 do BGB) e assim,

antes do mais, sem vícios279.

O § 480 do BGB, na versão anterior à Schuldrechtsreform, representava uma solução

de compromisso entre estas duas posições extremas. Nos termos do referido preceito, o

comprador teria a possibilidade de optar entre o regime da garantia edílica, podendo à sua

escolha desvincular-se do contrato através da resolução (Wandelung) ou conformar-se com

a redução do preço (Minderung) 280, ou pela não aplicação do regime da garantia edílica,

atuando ou exercendo o direito à substituição da coisa defeituosa281. O comprador de coisa

específica, por seu turno, poderia apenas exercer as duas ações edílicas, oriundas do

Direito Romano, previstas no § 462 do BGB (versão anterior à Schuldrechtsreform), mas

278 Explicitando esta tese dizia-se que o facto de a coisa ter sido entregue ao comprador era suficiente para que a venda genérica se

convertesse em venda específica e que, ainda que a venda genérica não se convertesse em venda específica, o facto de a coisa entregue

não ter as qualidades normais do género, não seria suficiente para que se dissesse que a coisa entregue era uma coisa diferente da devida.

V. NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 38. 279 Cfr. HUBER, in Soergel BGB, Stuttgart, 1991, § 480, p. 1370: a entrega de uma coisa viciada impede a concentração da obrigação

sobre a coisa entregue, o devedor fica obrigado à entrega de uma outra coisa do mesmo género e privada de vícios. De acordo com esta

tese, existiria, pois, uma diferença essencial entre o regime da venda específica e o regime da venda genérica. Argumentava-se,

explicitando esta teoria, que a aplicação da garantia edílica pressupunha que tivesse sido entregue ao comprador a coisa devida. V.

NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 37. 280 Em concorrência eletiva estava ainda a indemnização por incumprimento, se ao tempo da compra falta à coisa vendida uma qualidade

assegurada pelo vendedor ou se este tiver ocultado dolosamente um defeito (§ 463 do BGB, versão anterior). 281 Através do § 480 BGB o legislador pretendeu esclarecer, por um lado, que o comprador de coisa genérica podia exercer também os

tradicionais remédios edílicos – a Wandelung e a Minderung – e que, por outro lado, a expressa previsão de tais ações não servia para

excluir, como lei especial, o direito do comprador a exigir do vendedor de coisa genérica, depois da entrega do bem viciado, o exato

cumprimento da prestação. A solução do legislador alemão antes da Reforma de 2001/2002 era justificada positivamente pela doutrina

do seguinte modo: se ao comprador de coisa genérica não fossem também concedidos os remédios edílicos, para além da pretensão à

substituição, a possibilidade de resolver o contrato ou de pedir o ressarcimento do dano imediatamente, isto é, sem a necessidade de

prévia fixação de um prazo para o cumprimento, ficaria irrazoavelmente subordinada, no sentido do § 362/2 do BGB (versão anterior), à

circunstância de que o cumprimento posterior não tivesse nenhum interesse para o credor devido ao atraso com que seria realizado. V.

CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e nel

pensiero giuridico italiano”, in RDC, Ano L-2004, Parte II, Padova, Cedam p. 640.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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não podia exigir do vendedor a substituição da coisa mesmo que esta fosse fungível e, por

isso, suscetível de ser substituída por outra282. A razão invocada pela doutrina alemã, para

negar o reconhecimento de uma pretensão à entrega de uma coisa isenta de vícios ao

comprador de coisa específica, prendia-se com o facto de esta pretensão incidir sobre uma

coisa diversa daquela que era originariamente devida, e que, portanto, não faz parte do

objeto do contrato283.

O Código Civil alemão, anteriormente à Reforma de 2001/2002, não contemplava,

de todo, a possibilidade de o comprador (de coisa específica ou genérica) exigir a

reparação do bem defeituoso. A doutrina alemã, no entanto, pronunciava-se a favor da

possibilidade de exercício deste direito, no caso de venda de coisa genérica, salientando

que, em alguns casos, por exemplo, no caso de venda de objetos tecnológicos (em regra, de

elevado valor), que apresentem vícios que possam ser eliminados através de uma simples

reparação – que poderia consistir na mera substituição de um singular componente do bem

–, constranger o vendedor à substituição da coisa, na sua totalidade, poderia resultar para

este prejudicial em termos económicos284.

No que toca à qualificação dogmática do direito do comprador de coisa genérica à

substituição da coisa viciada, tratava-se, segundo a tese maioritária na doutrina e acolhida

também pela jurisprudência, do exercício do crédito originário, uma vez que o vendedor de

coisa genérica, com a entrega de bens viciados, não podia considerar-se adimplente da

própria obrigação285. Consequentemente, o comprador podia recusar a oferta de bens que

não fossem de qualidade pelo menos igual à média e pretender a entrega de um outro

exemplar ou, no caso em que a descoberta do vício fosse posterior à entrega, poderia

restituir a coisa ao vendedor e exigir a entrega de um bem isento de vícios. Também nesta

282 Nos termos do § 433 (versão anterior) as obrigações do vendedor eram apenas a obrigação de entrega do bem (die Sache zu

übergeben) e a transferência da propriedade sobre o mesmo (das Eigentum an der Sache zu verschaffen). O vendedor de coisa específica

não estava, pois, obrigado a entregar uma coisa isenta de vícios. 283 Cfr. CLAUS-WILHELM CANARIS, “L’Attuazione in Germania Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução

de Giovanni Cristofaro”, cit., p. 240-241. 284 O vendedor ficaria com um bem usado que só poderia revender por um preço inferior, perdendo assim, pelo menos em grande parte,

o lucro do negócio. 285 Cfr. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto

tedesco e nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 640. Segundo uma posição diversa (embora minoritária), também o pedido de

substituição seria reconduzível à área da prestação de garantia do vendedor.

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última hipótese se considerava que o exercício desta pretensão constituía uma

manifestação do originário direito ao cumprimento que ainda não se tinha extinto286.

Apesar de este quadro normativo traçar uma distinção entre a venda de coisa

específica e a venda de coisa genérica, permitindo apenas ao comprador de coisa genérica

cumular os antigos remédios edílicos com a pretensão à entrega de uma coisa isenta de

vícios (§ 480 do BGB, versão anterior), uma parte da doutrina tentava reconduzir a um

fundamento comum a responsabilidade do vendedor, sustentando que também sobre o

vendedor de coisa específica recaía a obrigação de entregar um bem isento de vícios. Era a

denominada “teoria do cumprimento” ou “Erfüllungstheorie”, na nomenclatura alemã. De

acordo com esta posição, em ambos os tipos de venda os direitos do comprador

encontravam o seu fundamento no inadimplemento de uma obrigação que recaía sobre o

vendedor. Corolário de tal reconstrução era a possibilidade de o comprador de coisa

viciada, fosse genérica ou específica, exercer também os remédios previstos em geral para

os contratos sinalagmáticos, entre os quais, por exemplo, a exceção de não cumprimento

(§§ 320 segs. do BGB)287. Segundo os defensores desta tese, o facto de, para a venda de

coisa específica, o legislador não ter previsto o remédio da substituição, não representava

um obstáculo insuperável para que se pudesse entender que também o vendedor de coisa

específica está obrigado a entregar uma coisa isenta de vícios. Argumentava-se que a uma

obrigação de prestação do devedor não corresponde necessariamente uma pretensão do

credor, em caso de violação, ao cumprimento in natura288.

Esta afirmação era contestada por outros Autores, que entendiam que era muito

forçado, do ponto de vista concetual, a configuração de uma obrigação de prestação à qual

não corresponde uma pretensão do credor ao cumprimento289. Argumentava-se que se o

286 LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 78: a pretensão à entrega de uma coisa privada de vícios não representa uma nova

posição jurídica, mas o originário direito ao cumprimento, ainda que parcialmente modificado, direito que não se encontra agora extinto

porque o vendedor, com a entrega de um exemplar não conforme ao contrato, não cumpriu a própria obrigação. 287 Cfr. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto

tedesco e nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 641. 288 Cfr. HUBER, in Soergel BGB, § 459, Stuttgart, 1991, pp. 830 e segs., e p. 837: a uma obrigação de prestação do devedor não deve

necessariamente corresponder uma pretensão do credor ao cumprimento in natura. No que diz respeito à venda de coisa específica, a

pretensão ao cumprimento, no caso normal de vício não reparável, seria privada de objeto e nos casos, excepcionais, de vício reparável

seria de todo supérflua já que o comprador poderia obter a apropriada reparação do bem, em concurso com a Wandelung ou a

Minderung. 289 W. FLUME, “Gesetzereform der Sachmängelhaftung beim Kauf? Zu dem Entwurf der Komission zur Überarbeitung des Sculdrechts”,

in AcP, 1993, p. 99.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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vendedor de coisa específica estivesse obrigado a entregar uma coisa isenta de vícios,

deveria dispor de uma ação destinada a exigir o cumprimento ainda que retardado, ou seja,

a produzir aquela situação que se verificaria em caso de cumprimento espontâneo.

Para fundamentar que sobre o vendedor de coisa específica não recaía a obrigação de

entrega de uma coisa isenta de vícios, era posta em relevo a dificuldade concetual de

configurar um inadimplemento na conduta do vendedor que transferiu a propriedade do

bem determinado assumido como objeto do contrato no estado em que se encontra290. Pelo

contrário, o regulamento de interesses subjacente a uma venda específica deve entender-se

no sentido de impor ao vendedor o dever de transferir, contra um certo preço, aquele bem

determinado, no estado em que ele se encontra. Seria, pois, contrário à vontade das partes

fazer recair sobre o vendedor o risco típico conexo com as obrigações genéricas, ou seja, o

de procurar uma coisa pertencente ao género prometido e de qualidade não inferior à

média “mittler Art und Güte” 291.

Tendo em conta a dificuldade em configurar uma obrigação do vendedor de coisa

específica à entrega de uma coisa livre de vícios, a doutrina alemã dominante aderia à

chamada “teoria da garantia” (“Gewährleistungstheorie”) 292, a qual partia do pressuposto

segundo o qual o vendedor de coisa específica cumpre a prestação a que está adstrito

quando entrega a coisa individualizada pelo comprador, mesmo que esta se encontre

viciada. No entanto, para os defensores desta teoria, como o contrato de compra e venda é,

pela sua natureza, orientado para a prestação de uma coisa isenta de vícios, a entrega de

um bem viciado representaria uma incorreta execução do regulamento contratual293. A

presença de um vício viria frustrar o equilíbrio entre as prestações contratuais do vendedor

e do comprador (Subjektive Äquivalenz): se o comprador tivesse tido conhecimento do

vício não teria concluído o contrato, ou não o teria concluído naquelas condições. Neste

sentido, as ações edílicas seriam formas de reação ou correção e restabelecimento desse

290 LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 67, considera, relativamente à venda de coisa específica, que a entrega de uma coisa

isenta de vícios não faz parte do conteúdo da obrigação de prestação do devedor, o qual deve prestar a coisa no estado de facto em que

ela se encontra. Por isso, a entrega de uma coisa viciada, no caso de venda específica, não representa o parcial inadimplemento da

obrigação de prestação. 291 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 642. 292 V. LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 67. 293 Cfr. W. FLUME, “Gesetzesreform der Sachmängelhatung beim kauf? Zu dem Entwurf der Kommission zur Überartbeitung des

Schuldrechts”, cit., p. 99.

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equilíbrio que se frustrou com a ocorrência do vício, permitindo a adaptação das prestações

acordadas ao real estado físico da coisa (Minderung), ou, ainda, a dissolução da relação

contratual (Wandelung)294.

Assim, em conclusão, segundo a opinião dominante da doutrina alemã, antes da

Reforma de 2001/2002, os remédios que assistiam ao comprador teriam um fundamento

diferente consoante estivesse em causa uma venda específica ou uma venda genérica.

Estando em causa uma venda específica, o vício viria frustrar a relação de equilíbrio entre

as prestações contratuais do vendedor e do comprador, destinando-se os meios edílicos a

repor esse equilíbrio; no caso de venda genérica, a entrega de uma coisa viciada

representaria o inadimplemento do dever de prestação do vendedor.

Depois da Reforma introduzida pela “Lei para a Modernização do Direito das

Obrigações”, o Código Civil alemão, no § 433/1, impõe ao vendedor (de coisa específica

ou genérica) a obrigação de entregar ao comprador uma coisa livre de defeitos materiais ou

jurídicos. Esta norma, que está em linha com o disposto no art. 2.º, n.º 1, da Diretiva

1999/44/CE, representa uma adesão, por parte do legislador da Reforma, e a consagração

definitiva, da “teoria do cumprimento” (“Erfüllungstheorie”). Podemos afirmar que,

perante o BGB Reformado, perdeu sentido a diferenciação dogmática entre a venda de

coisa específica e a venda de coisa genérica295.

Note-se, porém, que mesmo perante o BGB Reformado a diferenciação dogmática

entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica ainda continua viva em

alguma literatura alemã que defende a exclusão a priori do direito à substituição na venda

de coisa específica (Stückkauf), por considerar inadmissível que um bem diverso daquele

que foi individualizado no momento da celebração do contrato possa constituir objeto da

pretensão do comprador ao exato cumprimento296. Neste sentido, Huber considera que

294 V. LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., II/1, p. 68. Escreve Larenz que “o fundamento da responsabilidade do devedor não está

na violação do seu dever de prestar, mas na frustração das expectativas do comprador acalentadas justificadamente, segundo as

circunstâncias no momento da celebração do contrato, a respeito das características [Besschaffenheit] da coisa”. 295 Em ambos os casos a entrega de uma coisa isenta de vícios faz parte do conteúdo do dever de prestação do devedor e confere ao

comprador, nos termos do § 437 do BGB, o direito de exigir o cumprimento ainda que retardado (Nacherfüllung), através da eliminação

dos defeitos ou da entrega de uma coisa isenta de defeitos (§ 439 do BGB); o direito à resolução do contrato (§§ 440, 323 e 326/5 do

BGB); o direito à redução do preço (§ 441 do BGB); e, ainda, o direito a uma indemnização (nos termos dos §§ 440, 280, 281, 283 e 311

ou 284 do BGB). 296 Cfr. T. ACKERMANN, “Die Nacherfüllungspflicht des Stückverkäufers”, in JZ, 2002, pp. 378 e segs., p. 379; sublinhando, ainda, que,

a distinção entre venda específica e venda genérica resulta do conteúdo do contrato e não da lei e que esta última não poderia prescindir

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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ainda que também o vendedor de coisa específica esteja obrigado a entregar uma coisa

isenta de vícios, a substituição da coisa (a pretensão à entrega de uma outra coisa livre de

vícios) constituiria nesta hipótese uma obrigação impossível no sentido do § 275/I do

BGB, já que o único bem a cuja entrega o vendedor é contratualmente obrigado é aquele

que, ainda que com vícios, foi já entregue ao comprador297.

A doutrina maioritária, porém, fiel à interpretação do diploma comunitário, considera

que na venda específica a substituição não pode ser excluída a priori, já que, ao consagrar

a obrigação de o vendedor entregar uma coisa isenta de vícios (§ 433/I 2 do BGB), o

legislador impôs ao vendedor (de coisa específica ou genérica) a satisfação do interesse do

comprador através da entrega de uma (não da) coisa isenta de vícios298.

Nesta perspetiva, a substituição só se poderá qualificar como impossível quando o

vendedor não possa objetivamente procurar uma outra coisa da mesma espécie e que não

esteja afetada por vícios. A noção de impossibilidade (Unmöglichkeit) do § 275 I do BGB

parece dever adquirir uma morfologia mais específica se referida à Nacherfüllung do que à

desta distinção sem violar a autonomia privada. Note-se que, tendo em conta a hierarquia consagrada no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE,

e reproduzida na lei alemã, a questão de saber se é ou não possível a substituição em caso de venda específica apresenta consequências

práticas relevantes, na perspetiva do comprador. A eventual afirmação da impossibilidade de substituição na venda de coisa específica

comportaria a possibilidade, para o comprador, de aceder a um segundo nível de tutela constituído pela resolução do contrato e pela

redução do preço ou pelo ressarcimento do dano. Ao invés, se se considerar que a Nacherfülung (“cumprimento sucessivo”) é possível e

não é excessivamente oneroso para o vendedor, ao comprador é afastada a tutela restitutória-ressarcitória, mesmo que esta última seja

mais adequada à satisfação do seu interesse, como na hipótese em que tenha perdido a confiança na capacidade do vendedor quanto ao

“cumprimento sucessivo”. Na verdade, a prioridade da substituição relativamente aos outros remédios à disposição do comprador, que

podemos retirar da fórmula do § 437, representa uma peça central da nova disciplina, resultante da transposição da hierarquia

consagrada no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE. 297 Cfr. HUBER/FAUST, Schuldrechts-modernisierung, München, 2002, pp. 321 e segs.: quando as partes concluem uma compra e venda

de coisa específica é devido só o bem concretamente individualizado. A pretensão ao cumprimento sucessivo pode, pois, dirigir-se

apenas à reparação do bem. Do ponto de vista dogmático isto significa que a entrega de uma outra coisa não viciada é, na hipótese de

venda específica, uma obrigação impossível no sentido do § 275/1 BGB. HUBER, “Der Nacherfüllunganspruch im neuen Kaufrecht”, in

NJW, 2002, p. 1006. No mesmo sentido, considerando que em caso de venda de coisa específica viciada a reposição da conformidade

possa ter lugar apenas mediante a eliminação do vício e não mediante a substituição do bem, ainda que este último seja fungível, v.

LORENZ/RIEHM, Lehrbuch zum neuen Schuldrecht, München, 2002, p. 271. 298 Note-se, porém, que, na prática, as duas teses acabam por conduzir a resultados convergentes, o que se explica pela diferente forma

como os seus Autores concebem a venda específica e como traçam os limites entre esta e a venda genérica. Isto é particularmente

evidente no debate entre Canaris e Ackermann quando ambos se referem à aquisição de bens de consumo de massa em supermercados

ou outras lojas self-service, em que o comprador vai para casa depois de ter escolhido aquilo que pretende comprar. Enquanto Canaris

qualifica esta venda como venda específica, Ackermann qualifica-a como venda genérica. É, porém, evidente que na qualificação desta

venda como venda genérica (posição à qual aderiram de forma substancial os Autores que negam a possibilidade de substituição do bem

contratado especificamente) está pressuposta uma posição bem definida no sentido de negar a possibilidade de substituição na venda

específica. Cfr. C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, in JZ, 2003, p. 836; e T.

ACKERMANN, “Die Nacherfüllungspflicht des Stückverkäufers”, cit., pp. 378 e segs.

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Erfüllung. Em caso de patologia da relação contratual, a possibilidade da prestação

exigível do devedor deve ser valorada com respeito a um interesse do credor a uma plena e

tempestiva reposição, de tal modo que a substituição deve considerar-se impossível quando

não corresponda aos interesses do adquirente consagrados no contrato de alienação.

Afirma Canaris que, reentrando a “Mangelfreiheit” da coisa entre as obrigações do

vendedor299, é natural e dogmaticamente coerente que ocorram modificações ao programa

obrigacional no momento em que se passa da pretensão primária (Erfüllungsanspruch) à

pretensão secundária (Nacherfullungsanspruch) 300. Na mesma linha, Gsell afirma que, ao

prever a reparação, a nova disciplina consagrada no BGB impõe de facto um desvio

relativamente àquele que era o programa negocial originário301: o vendedor não se teria

obrigado originariamente a uma prestação consistente num facere e, no entanto, não se

poderá opor a um pedido de reparação alegando que este não faz parte do conteúdo do

contrato.

O carácter específico da venda não funciona, pois, em face do atual BGB, como um

limite preclusivo do direito à substituição. Isto não significa que a substituição seja sempre

admissível, em qualquer venda específica. Deve averiguar-se se o eventual carácter

fungível do bem pode influir sobre a correspondência da substituição aos interesses do

adquirente. A fim de isolar os casos em que ao bem vendido especificamente falta uma tal

individualidade, consideram alguns Autores que o critério adotado deverá ser a

fungibilidade. Assim, a substituição seria admitida se os bens contratados especificamente

fossem fungíveis (§ 91 do BGB); se assim não fosse seria excluída por ser impossível; era

esta a solução adotada no § 438 da proposta de modificação do BGB apresentada em 1992

pela Schulrechtskommission302.

Mérito desta tese é a sua clareza: faz-se recurso a um critério que torna possível

distinguir a priori, valorando unicamente as características do bem vendido, que bens são

substituíveis e quais não o são. Esta tese é, no entanto, puramente objetiva, e acabou por

299 O legislador da Schuldrechtsmodernisierung aderiu de facto indubitavelmente à Erfüllungstheorie, ou seja, à tese que reconduz a não

conformidade dos bens com o contrato aos termos do inadimplemento de uma obrigação que recai sobre o vendedor, em detrimento da

Gewährleistungstheorie, que a reporta, ao invés, ao instituto da garantia: no § 433 do BGB a isenção de defeitos da coisa e de direito é

de facto inserida expressamente entre as obrigações resultantes do contrato de venda. 300 Cfr. C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, cit., p. 836. 301 B. GSELL, “Beschaffungsnotwendigkeit und Ersatzlieferung beim Stück – und beim Vorratskauf”, in JuS, 2007, p. 99. 302 Não se esqueça, porém, que aqui se exclui a substituibilidade de todos os bens infungíveis também se contratados genericamente.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

111

não ter o acolhimento da doutrina por não ter em conta os interesses das partes na venda303.

O modo como as partes fizeram entrar os seus interesses no contrato é, ao invés,

particularmente importante e não pode ser de todo descurada304.

Sem valorar as circunstâncias em que foi concluída a venda, quais os interesses do

comprador e do vendedor que entraram a fazer parte do contrato, acabar-se-ia por impor às

partes um bem que não as satisfaz, o que constituiria uma violação da autonomia

contratual. Na tentativa de encontrar um critério que permita estabelecer um limite à

admissibilidade de substituição na venda específica, a doutrina alemã desenvolveu duas

teses: a da venda específica funcionalmente equiparável à venda genérica e a que defende

o aparecimento de uma nova categoria – “a substituibilidade”.

A doutrina alemã dá conta de que se tem vindo a criar uma nova figura de venda,

difusa no comércio de massa e, portanto, na maior parte das aquisições de bens de

consumo, a qual apresenta uma natureza híbrida: é dotada da estrutura formal da venda

específica, mas repousa em interesses típicos da venda genérica305. Esta natureza híbrida

explica a sua designação: “venda específica funcionalmente equiparável à venda genérica”.

303 Para dar algum espaço aos interesses das partes na venda, a jurisprudência alemã criou a figura da fungibilidade no plano económico;

trata-se, porém, de um conceito obscuro que não teve seguimento no debate doutrinário. V. caso LG Ellwangen de 13 de dezembro 2002,

in NJW, 2003, pp. 517 e segs.: “também no caso de venda específica a reposição da conformidade mediante substituição é

fundamentalmente possível, na medida em que se trate de coisas que correspondam no plano económico a uma coisa fungível e

satisfaçam o interesse do vendedor”. 304 Na doutrina italiana é prevalente a afirmação, em linha com aquilo que é sustentado no debate alemão, da impossibilidade da

substituição numa venda específica que tenha por objeto um bem infungível. Tratar-se-ia aqui de um limite intrínseco à substituição,

devido às características da coisa contratada. A fungibilidade é um critério objetivo, que se baseia na comum apreciação daquilo que é

relativo àquela categoria de bens segundo a sua própria função e destinação. Coisas fungíveis são aquelas que geralmente não são

consideradas com base na sua identidade, mas segundo critérios meramente quantitativos e não qualitativos, pois as características

individuais, embora diferenciando os singulares exemplares de outros, são desprezíveis. Só aceitando esta noção de fungibilidade é

possível tê-la como distinta da indicação genérica no âmbito da caracterização objetiva da relação, que se deve, ao invés, ao modo como

as partes quiseram estruturar o negócio. Tal distinção é irrenunciável pelas suas consequências práticas: para admitir a extinção de uma

obrigação por compensação ou para qualificar o mútuo como contrato releva unicamente a dicotomia fungibilidade/infungibilidade; para

a disciplina da transferência da propriedade deve valorar-se, ao invés, o carácter específico ou genérico do negócio do qual deriva a

transferência. Ficam assim afastadas aquelas tentativas de revisão que, ao delinear a fungibilidade, introduzem uma chamada à

valorização das partes e outras que referem tal dicotomia à relação obrigacional e não à coisa em si. A. ZARRELLI, Fungibilità ed

infungibilità dell’obbligazione, Napoli, 1969, pp. 20 e segs. A tese deste Autor, segundo o qual os bens não seriam fungíveis em si mas

só porque assim foram considerados pelas partes, podendo estas considerar insubstituíveis coisas que não o são na valoração social, não

consegue impor-se enquanto não resulta motivada a sua premissa pela qual não seria possível a construção de uma “teoria geral dos

bens”. É, pelo contrário, precisamente pelas características objetivas (comuns a todos os outros bens do mesmo género, tipo e qualidade)

que certos bens são igualmente idóneos a satisfazer o interesse do credor e assim aparecem como seus substitutos equivalentes. 305 Cfr. M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum Schicksal von Stuckkauf, Baden-Baden, 2005,

pp. 174 e segs.

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112

Neste tipo de venda, o bem é individualizado antes da conclusão do contrato, mas a

vontade do comprador não é a de adquirir aquele preciso bem, mas um qualquer exemplar

do mesmo. Falta, pois, neste tipo de venda, um interesse das partes em que o bem vendido

seja o que foi individualizado antes da conclusão do contrato306.

Esta sua natureza híbrida permitiria um desvio àquela que seria a regra na venda

específica, admitindo-se, neste caso, que o comprador pudesse exigir a substituição do bem

quando este se revela viciado. Assim, o critério para distinguir os casos em que se admite a

substituição baseia-se na representação das partes em relação aos possíveis

Mangelfolgen307.

Diversamente, outros Autores consideram que emerge neste contexto uma nova

categoria, distinta mas em certo sentido contígua às categorias de genérica e específica,

fungível e infungível: a substituibilidade308. Esta deve ser valorada caso a caso, tendo em

conta as circunstâncias objetivamente reconhecíveis, mas também fatores subjetivos de

modo a garantir o respeito dos interesses programados no contrato concreto309.

Para tal, seria necessário reconstruir a vontade hipotética das partes (ou seja,

reconstruir aquilo que as partes teriam querido se tivessem tomado em consideração, no

momento da conclusão do contrato, a possibilidade de vir a recorrer ou não à substituição),

tomando como referência partes razoáveis e honestas310 . Se, tendo em conta a

Sollbeschaffenheit da coisa com base naquilo que foi estabelecido pelas partes, for possível

encontrar um bem do mesmo tipo e que tenha o mesmo valor de mercado e se isso não

colidir com os interesses que fazem parte do contrato, então esse bem será substituível. O

primeiro destes requisitos (a Gleichartigkeit) vem previsto para evitar a violação da

autonomia privada, o segundo (a Gleichwertigkeit) para manter o equilíbrio contratual311.

Respeitando estes pressupostos, pode modificar-se aquele que era o programa contratual

306 Para ilustrar esta característica Schürholz fala de konkretisierte Gattungskäufe: falta às partes contratuais um

Individualisierungsinteresse e não há motivo para excluir a substituição, vantajosa para ambos os contraentes. O sentido da nova

disciplina é fornecer uma tutela que se adapte o mais possível aos interesses das partes. M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen

kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum Schicksal von Stuckkauf und Gattungskauf, cit., p. 159. 307 M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum Schicksal von Stuckkauf, cit., p. 175. 308 C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, cit., p. 835. 309 B. GSELL, “Beschaffungsnotwendigkeit und Ersatzlieferung beim Stück – und beim Vorratskauf”, cit., p. 100. 310 C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, cit., p. 832. 311 C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, cit., p. 835.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

113

originário, que previa a prestação de um objeto determinado, e considerar devido um bem

diverso, porque conforme ao contrato e aos interesses das partes.

2. A diferenciação dogmática entre a venda específica e a venda genérica de coisas

defeituosas no Código Civil italiano de 1942

O Código Civil italiano de 1942 constrói a responsabilidade do vendedor pelos

defeitos da coisa vendida com base no paradigma da venda de coisa específica, venda em

que o interesse típico do comprador consiste na própria obtenção daquele bem determinado

que constitui o objeto do contrato com as características que em tal acordo lhe foram

atribuídas. Perante este paradigma, se a coisa vendida se revela viciada, a tutela do

comprador (de coisa específica ou genérica) confina-se às duas ações edílicas procedentes

do Direito Romano: a actio quanti minoris, através da qual o comprador pode exigir a

redução do preço, e a actio redhibitoria, através da qual o comprador se pode desvincular

do contrato e exigir a restituição da contraprestação312.

O Código Civil italiano de 1942 não contempla nem a substituição nem a reparação

entre os remédios que o comprador pode exercer em caso de vícios da coisa vendida.

A doutrina italiana, tal como a alemã, sempre tentou afastar a responsabilidade por

vícios do vendedor do incumprimento de uma obrigação em sentido-técnico313. Contra a

possibilidade de configurar no comportamento do vendedor de coisa viciada o

incumprimento de uma obrigação em sentido técnico, observava-se que a qualidade e o

estado atual da coisa não podiam, por si só, constituir objeto de uma obrigação, já que esta

312 Cfr. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica:i termini dela questione nel diritto tedesco

e nel pensiero giuridico italiano”, cit., pp. 638 a 666, p. 638. A estas duas ações acresce, ainda, a possibilidade de exigir uma

indemnização caso exista culpa do vendedor. 313 O esforço doutrinal de enquadrar sistematicamente a garantia legal por vícios da coisa vendida deu origem a inúmeras teorias nas

quais podemos identificar duas perspetivas de base, distinguindo as opiniões interpretativas que, distanciando-se do conceito de

obrigação e de responsabilidade por incumprimento, recorrem a institutos como o erro ou a pressuposição, e as opiniões interpretativas

que mais arreigadas à utilização da categoria de obrigação e de responsabilidade por incumprimento substituem tais conceitos por

figuras como “irregularidade da atribuição patrimonial” (RUBINO, “La Compravendita”, in Tratt. Cicu – Messineo, Milano, 1962, p.

639-759) ou “violação dell’impegno traslativo” (BIANCA, “La vendita e la permuta”, in Tratt. Vassalli, VII, tomo I, Torino, 1993, p.

710; LUMINOSO, La compravendita, Torino, 2003, pp. 215 e segs.). Bianca afirma a existência a cargo do comprador de coisa específica

viciada de uma ordinária responsabilidade contratual – cfr. “La vendita e la permuta”, cit., p. 708, p. 710.

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consiste num dever de conduta que não pode ter por objeto um “modo de ser da coisa”314.

Argumentava-se, ainda, que uma obrigação de entrega de uma coisa isenta de vícios seria

inconciliável com o dogma da eficácia translativa imediata 315.

Este seria, na verdade, um obstáculo lógico que impediria a admissibilidade da

substituição como condenação ao exato cumprimento. A transferência do bem contratado

como coisa específica esgota a possibilidade de cumprimento do devedor, já que a conduta

devida é representada exclusivamente pela transferência – e pela entrega – daquele bem

determinado: uma vez que isto tenha sido realizado não resta espaço para um novo

cumprimento, tal não podendo ser a transferência de uma coisa diversa da única que era

devida. O conteúdo da prestação do devedor não poderia, pois, estender-se a

comportamentos ulteriores destinados a realizar ou a repor um modo de ser da coisa, pois

não poderia ser imposta ao vendedor uma obrigação de facere estando ele adstrito, por

força do contrato, apenas a uma prestação translativa316. Em segundo lugar, na perspetiva

do comprador, a substituição da coisa afetada por vícios não pode representar a satisfação

do seu interesse primário no cumprimento, já que, na venda específica, o interesse do

comprador é (ou parece ser) satisfeito exclusivamente através da aquisição daquela coisa

determinada ainda que viciada.

Perante a falta de previsão da substituição como remédio próprio da garantia por

vícios, a doutrina italiana tentou afirmar sua existência – pelo menos relativamente à

compra e venda de coisa genérica317. A admissibilidade da substituição, na venda de coisa

genérica, prendia-se com o facto de a entrega de coisa viciada representar um

314 Cfr. BIANCA, L’obbligazione. Corso di diritto civile, IV, Milano, 1993, p. 38 segs.; e, ainda, GIUSEPPE AMADIO , “Conformità al

contrato e tutelle satisfattorie”, in L’attuazione della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La tutela dell’acquirente di beni di

consumo, CEDAM, Padova, 2001, p. 155. 315 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica:i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 660. 316 Há no entanto doutrina e jurisprudência que demonstram a compatibilidade da reparação, entendida como medida de ressarcimento

em forma específica, com o conteúdo da obrigação originária que recai sobre o vendedor. BIANCA, “La vendita e la permuta”, cit., p.

894. No mesmo sentido, v. PLAIA , “Sull’ammissibilità dell’azione dii esatto adempimento in presenza di vizi del bene venduto o

promesso in vendita”, in Contr. e impr., 1998, p. 142. 317 V. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco

e nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 636. A admissibilidade da substituição ora se reportava à área do exato cumprimento, ora se

reportava à do ressarcimento em forma específica, fazendo-se depender, neste caso, o remédio da verificação dos pressupostos da culpa

e do dano. Havia também quem a configurasse como “uma técnica de reação à violação da obrigação do vendedor que teria como função

remover a lesão contratual sofrida pelo comprador, corrigindo ou substituindo a imperfeita atribuição patrimonial realizada, de modo a

restabelecer um resultado translativo (o devido) conforme ao resultado prometido”, v. LUMINOSO, La compravendita, cit., p. 291.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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incumprimento contratual, uma vez que na venda de coisa genérica o vendedor se obriga a

transferir uma coisa pertencente ao género indicado e de qualidade não inferior à média,

isenta de vícios materiais. Isto explica porque é que em sede de compra e venda de coisa

genérica se encontram vozes na doutrina a admitir a substituição do bem em sede de

condenação ao exato cumprimento318. Aduz-se, ainda, que, na venda de coisa genérica, o

inexato cumprimento, ainda que do ponto de vista qualitativo, deixa inalterada a pretensão

originária do credor, o qual tem legitimidade para recusar o cumprimento inexato e/ou

restituir a prestação inexata que entretanto recebeu e exigir um novo (exato)

cumprimento319 . Pode, assim, concluir-se pela admissibilidade da ação de exato

cumprimento no caso de venda de coisa genérica viciada, justificando tal conclusão

também à luz da homogeneidade entre a substituição, consequente à condenação ao exato

cumprimento, e a prestação originariamente devida pelo vendedor (transferência da

propriedade de uma coisa pertencente ao género indicado e de qualidade não inferior à

média). Para além disso, argumentava-se ainda que, na perspetiva do interesse do

comprador de coisa genérica, a tutela consagrada no Código Civil seria insuficiente, já que

o seu interesse é o de obter um dos exemplares que integram o género indicado e de

qualidade não inferior à média320.

O debate foi recentemente alimentado pela transposição da Diretiva 1999/44/CE

sobre a venda de bens de consumo, a qual prevê o remédio da substituição a favor do

adquirente-consumidor de um bem que apresente uma falta de conformidade com o

318 Cfr. GIORGIANNI, L’inadempimento. Corso di diritto civile, Milano, 1975, pp. 74 e segs.; AMORTH, “In tema di tutela del compratore:

può chiedersi la sostituzione di cosa viziata?”, in Giur. It., 1965, I, 1, pp. 337 e segs. 319 Na doutrina italiana, defendendo a autonomia do cumprimento in natura relativamente ao ressarcimento em forma específica, v.

LUMINOSO, “Risoluzione per inadempimento”, in Comm. Scialoja-Branca, sub arts. 1453-1454, Bolonha, Roma, 1990, p. 12, o qual

sublinha que a ação de inadimplemento ou de excato cumprimento prescinde da culpa do devedor e, em última análise, do dano; DI

MAJO, La Tutela Civile dei Diritti, Problemi e Metodo del Diritto Civile, III, Milão, 2001, p. 280: “Não é possível considerar que o

cumprimento in natura contenha em si uma satisfação, em via ressarcitória, como consideram alguns (Castronovo), uma vez que se trata

de um remédio diverso já que garante a satisfação específica e não por equivalente (em termos de dano) do direito lesado”;

MAZZAMUTO , “L’inattuazione dell’obbligazione e l’adempiento in natura”, in Europa e dir. Privato, 2001, pp. 518 e segs., o qual

sublinha que, “na coação ao cumprimento pela forma de execução direta ou indireta, trata-se exclusivamente da exigência de dar atuação

ao direito de crédito (ainda que recorrendo à ação de terceiros) e isto independentemente da culpa do obrigado e do dano; GIUSEPPE

AMADIO , “Diffeto di conformità e tutele sinallagmatiche”, in RDC, 2001, p. 878. 320 Cfr. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica:i termini dela questione nel diritto tedesco

e nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 663. Na venda de coisa genérica o vendedor está obrigado a transferir a propriedade de um dos

bens pertencentes ao género indicado, perante um cumprimento qualitativamente inexato parece agora possível a este cumprir, através

da substituição do bem prestado. Deve assim admitir-se que o adquirente possa, em tal hipótese, restituir a coisa viciada e pretender um

novo cumprimento.

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contrato321. Apesar disso, subsiste, ainda, um intenso debate doutrinal e jurisprudêncial em

torno da possibilidade de o comprador de coisa específica exigir a substituição do bem que

se revele viciado. Tem-se observado, no entanto, que os argumentos que levam a

considerar inadmissível a substituição na venda de coisa específica perdem a sua força

persuasiva no que respeita à venda de bens de consumo regulada pela Diretiva

1999/44/CE, na qual o estado em que o bem se encontra à data da entrega parece estar

dependente de um comportamento do vendedor, o qual, graças à sua qualidade de

profissional, pode intervir sobre a coisa, antes de a entregar ao comprador, para a tornar

conforme com as determinações contratuais, mediante a sua reparação ou substituição,

desde que estas sejam possíveis pela essencial fungibilidade do bem e graças à organização

técnica de que dispõe o vendedor322.

Na verdade, observa-se que o tipo de venda regulado pelo diploma comunitário, “a

venda de bens de consumo”, é um modelo de venda bem distante daquele que foi tomado

como paradigma pelo legislador civil. A venda disciplinada pela Diretiva 1999/44/CE é

uma venda de bens produzidos em série, fungíveis, inserida numa cadeia de distribuição

organizada e assistida de um serviço pós-venda323. Este modelo de venda explicaria a

obrigação de o vendedor intervir sobre o estado da coisa, reparando-a ou substituindo-a,

como aliás resulta expressamente do art. 2.º, n.º 1, da Diretiva 1999/44/CE, que prevê que

o vendedor está obrigado a entregar ao consumidor não a coisa vendida, mas um bem que

seja conforme com o contrato de compra e venda324.

321 É diferente, como já vimos, o que se passa no ordenamento jurídico alemão, que antes da Reforma limitava o remédio da substituição

à compra e venda de coisa genérica (§ 480 do BGB) e depois da Reforma reconhece o referido remédio em ambos os tipos de compra e

venda, genérica ou específica, independentemente de o adquirente ser um consumidor ou um profissional. 322 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica:i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 660. 323 V. GIUSEPPE AMADIO , “Conformità al contrato e Tutelle Satisfattorie”, cit., p. 158. 324 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e conttratazione di cosa specifica:i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 648, nota 36.

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PARTE III

O MODELO DO CÓDIGO CIVIL – VENDA DE COISAS DEFEITUO SAS E

CUMPRIMENTO DEFEITUOSO

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CAPÍTULO I – O regime da venda de coisas defeituosas

1. Introdução

O Código Civil português de 1966, no título “Das Obrigações em Geral”, regula o

não cumprimento das obrigações num enquadramento sistemático que tem por base

(apenas) duas das suas manifestações: a impossibilidade (total ou parcial) e a mora325.

Não consagra, pois, o nosso Código Civil, um regime (geral) aplicável ao

cumprimento defeituoso, limitando-se o legislador a referi-lo, no n.º 1 do art. 799.º do

Código Civil, mas apenas com o propósito de o equiparar à falta de cumprimento no que

respeita à presunção de culpa que recai sobre o devedor. Ora, aquelas duas manifestações

de incumprimento não esgotam todas as hipóteses possíveis de incumprimento.

Embora o Código Civil português não consagre, na Secção relativa ao “Não

cumprimento”, um regime aplicável ao cumprimento defeituoso, imperfeito ou inexato,

consagrou, em sede de alguns contratos em especial (com destaque para a compra e venda,

a locação e a empreitada), uma disciplina mais ou menos completa sobre tal tipo de

incumprimento. Assim, procurando colmatar aquela lacuna, a doutrina tem entendido que

o regime do cumprimento defeituoso se pode achar através de uma articulação entre

aqueles regimes específicos (e dos meios de tutela neles previstos) e certas normas gerais,

como, por exemplo, os arts. 793.º e 802.º em conjugação com o art. 808.º do Código Civil.

Como explica Baptista Machado, o legislador considera os casos de cumprimento

defeituoso ou imperfeito decorrentes de uma inexatidão quantitativa da prestação nos arts.

793.º e 802.º do Código Civil e não considera os casos de inexatidão qualitativa. Assim, os

325 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991,

pp. 343 e 344. A presença de uma sistematização bipartida do não cumprimento centrada nestes dois tipos – o incumprimento definitivo

e a mora – encontra-se, aliás, na maior parte dos Códigos Civis Europeus que ainda não modernizaram o seu Direito das Obrigações,

adotando uma noção ampla de incumprimento semelhante à que se encontra consagrada no art. 35.º da Convenção de Viena e também

na Diretiva 1999/44/CE. É o caso do Código Civil francês (art. 1147.º) e do Código Civil italiano (arts. 1218, 1219 e 1223). Também o

Código Civil alemão, antes da Reforma de 2001/2002, assentava nesta bipartição das Leistungsstörungen (perturbações da prestação):

impossibilidade (§§ 280 e segs.) e mora (§§ 284 e segs.). Não obstante, a doutrina e a jurisprudência acrescentavam a estas duas

modalidades uma terceira via designada “violação positiva do contrato”. Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial

na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 120.

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princípios e regras aplicáveis à inexatidão quantitativa deveriam aplicar-se (por analogia) à

inexatidão qualitativa326.

Uma das características essenciais do regime da venda de coisas defeituosas,

consagrado no Código Civil português, é a distinção entre a venda de coisa específica

defeituosa (arts. 913.º e segs.) e a a venda de coisa genérica defeituosa (art. 918.º do

Código Civil).

À venda de coisa específica defeituosa aplica-se o regime da garantia edílica, assente

na noção de defeito (arts. 913.º e segs.); à venda de coisa genérica defeituosa aplica-se o

regime geral do não cumprimento (cumprimento defeituoso) do contrato (art. 918.º).

Porque na venda específica, que tem por objeto uma coisa certa e determinada, o

vendedor cumpre mediante a entrega dessa coisa determinada, o nosso legislador

reconduziu o regime da garantia edílica aos institutos do erro e do dolo: embora o regime

da garantia edílica assente na noção de defeito, que é simultaneamente objetiva e subjetiva,

uma vez que o comprador tomou a decisão de adquirir aquela coisa concreta, a existência

de defeitos na coisa só pode consistir numa situação de erro por parte do comprador

(simples ou qualificado por dolo)327.

2. O regime da venda de coisas defeituosas ou regime da garantia edílica

2.1. Noção de defeito – A equiparação entre vício ou defeito e falta de qualidade da

coisa

O regime da venda de coisas defeituosas, consagrado nos arts. 913.º a 922.º do

Código Civil, assenta na noção de defeito. Embora o Código Civil não consagre uma

definição de defeito, podemos considerar que ele ocorre, nos termos do art. 913.º, se a

coisa (específica) “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é

destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a

326 No mesmo sentido, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 496. Como defende o Autor, “[o]s arts.

793.º, n.º 2, e 802.º devem aplicar-se diretamente – através de uma (simples) interpretação declarativa – aos casos de inexactidão

quantitativa da prestação realizada, e, diretamente ou indiretamente – através de uma interpretação extensiva ou de uma extensão

teleológica –, aos casos de inexactidão qualitativa”. 327 V. MENEZES LEITÃO, “Caveat venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a venda de bens de

consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda”, cit., p. 266.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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realização daquele fim”, esclarecendo o n.º 2, que “[q]uando do contrato não resulte o fim

a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma

categoria”. O art. 913.º abrange assim quatro tipos de situações: vícios que desvalorizem a

coisa; vícios que impeçam a realização do fim a que é destinada; falta de qualidades

asseguradas pelo vendedor; falta de qualidades necessárias à realização daquele fim328. Em

primeiro lugar, resulta deste preceito que o legislador incluiu no âmbito da venda de coisas

defeituosas quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias 329. A distinção não constitui tarefa fácil330, nem se apresenta como relevante, tendo em

conta que, nos termos do art. 913.º, o regime jurídico aplicável a ambas as situações é o

mesmo 331. Tendencialmente, o vício abrangerá as características da coisa que levam a que

esta seja valorada negativamente332, constitui uma desconformidade com os padrões

comuns naquele tipo de bens e com as finalidades normais exigíveis em qualquer negócio.

A “falta de qualidades”, por sua vez, embora não implicando a valoração negativa da

coisa, coloca-a em desconformidade com o contrato333. Como explica Ferreira de Almeida,

“uma coisa viciada é uma coisa anormal que não satisfaz os mínimos de aptidão ou de

valor; uma coisa é desconforme com aquela que era devida, mesmo que não tenha vício,

328 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 113. O art. 913.º não abrange, no entanto, situações de deficiência

quantitativa da coisa, que correspondem ou a casos de não cumprimento parcial na venda genérica (art. 918.º) ou desencadearão a

aplicação dos arts. 887.º e segs. Paralelamente, não se consideram abrangidos pelo art. 913.º, estando, pois, excluídos da noção de

defeito, os casos em que a coisa entregue pelo vendedor é diversa da que era devida, constituindo, portanto, um aliud. 329 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 113. 330 A redação do art. 913.º foi influenciada pelo sistema do Código Civil italiano que regula separadamente, embora sem consequências

ao profundas em termos de regime jurídico, os vícios que tornem a coisa inidónea para o uso a que se destina, ou lhe diminuam, de modo

apreciável, o valor (art. 1490.º), e a falta de qualidades prometidas ou essenciais para o seu uso (art. 1497.º). Sobre a distinção entre

vícios e falta de qualidades no ordenamento jurídico italiano, v. DOMENICO RUBINO, La compravendita, 2.ª ed., Giuffrè, Milão, 1971,

pp. 759 e segs.; GRECO/COTTINO, Della Vendita, cit., pp. 185 e segs.; BIANCA, La Vendita, cit., pp. 795 e segs. Também o BGB

(anteriormente à Reforma), no § 459, distinguia, sob a designação genérica de defeito (Sachmängel), entre vício (fehler) e falta de

qualidades asseguradas (zugesicherten Eigenshaften). Contudo, a doutrina prevalente na Alemanha, antes da Reforma do BGB, tendia a

equiparar as duas noções, defendendo que a diferença na previsão dos dois números do preceito estaria apenas na origem da referência

de qualidade, conforme ela fosse apenas pressuposta ou acordada (“assegurada”). V. LARENZ, Schuldrecht, cit., pp. 39 e segs.;

Staudinger/Honsell, § 459, n.os 16 e segs. 331 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, 1992, p. 647. A sua

explicação poderá, no entanto contribuir para esclarecer os padrões de referência da conformidade, bem como o critério de distinção

entre defeito e aliud pro alio. 332 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 113. 333 Sobre a distinção entre vício, falta de qualidades e aliud pro alio, v. LUIS DIEZ PICAZO, “I Problemi Della Attuazione della Direttiva

1999/44/CE nei Diritti Nazionali”, L’attuazione della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La Tutela dell’Acquirente di Beni di

Consumo, Cedam, Padova, 2001, pp. 255 a 262, p. 259.

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quando não se adequa a uma funcionalidade específica ou tem um grau de qualidade

inferior ao prometido”. Por isso, “o vício é objectivamente mais grave e, de certo modo,

inerente à própria coisa, enquanto a falta de qualidade é objectivamente menos grave e

decorre mais directamente de especificações negociais particulares”334.

Em segundo lugar, para que o defeito possa desencadear a aplicação do regime da

venda de coisas defeituosas é necessário que esse defeito se repercuta no programa

contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa, a não

correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a

que é destinada335, sendo que, nos termos do n.º 2 do preceito, “[q]uando do contrato não

resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da

mesma categoria”.

Podemos, pois, afirmar que, nos termos do art. 913.º do Código Civil, a noção de

defeito assenta em critérios objetivos e subjetivos336. Em primeiro lugar, importa verificar

se o bem corresponde à qualidade normal de coisas daquele tipo e, em seguida, terá de se

determinar se é adequado ao fim, implícita ou explicitamente estabelecido no contrato337.

A desvalorização da coisa enquadra-se numa conceção objetiva de defeito,

resultando do facto de o vício implicar que a coisa valha menos do que sucederia se não o

tivesse. O vício corresponde assim a uma imperfeição relativamente à qualidade normal338.

334 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., p. 648. Assim, segundo o A., “[a] falta

de qualidade que constitui defeito, não influindo por definição na identificação, é uma desconformidade nas qualidades apositivas, a

ausência de um atributo adicional que caracteriza uma coisa, mas não a diferencia, por si só, de outra coisa da mesma classe nem implica

uma mudança de classe”. Assim, por exemplo, «[u]m frigorífico de marca diferente daquela que deveria ser prestada é um objecto com

“qualidades” diferentes, porque pertence a outra classe de frigoríficos. A sua entrega envolve incumprimento, porque a coisa é outra em

relação aquela que era devida. A entrega de um frigorífico da marca acordada que se verifica não ter a capacidade de congelação que

fora assegurada constitui cumprimento defeituoso, por falta de qualidades apositivas.». No mesmo sentido, considera Romano Martinez

que “os vícios correspondem a imperfeições relativamente à qualidade normal, enquanto as desconformidades são discordâncias com

respeito ao fim acordado” – cfr. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 166. 335 A primeira situação refere-se aos vícios, a segunda à falta de qualidades, enquanto a terceira abrange estas duas situações. 336 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 166. “A noção de

defeito deverá, por conseguinte, ser entendida num sentido híbrido, pois ela é, em simultâneo, objectiva e subjectiva.” 337 ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 166. 338 Em sentido objetivo, o defeito corresponde a um desvio relativamente à qualidade normal de coisas daquele tipo (por exemplo, um

produto alimentar deteriorado). Esta noção de defeito tem uma origem histórica. Nos éditos dos Edís Curúis eram indicados,

taxativamente, os vícios que podiam dar azo às ações redhibitória e quanti minoris (D. 21.1.1.1). Todas as outras divergências só seriam

tuteladas, mediante a actio ex stipulatu, na medida em que correspondessem a um desvio ao acordo. V. ROMANO MARTINEZ,

Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 163.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Parece, no entanto, de exigir que a desvalorização tenha algum significado, recusando-se a

aplicação do regime da venda de coisas defeituosas quando esta seja insignificante339.

A não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor ocorre sempre que

este tenha certificado ao comprador a existência de certas qualidades na coisa e esta

certificação não corresponda à realidade. A certificação pelo vendedor de que a coisa tem

certas qualidades tanto pode ser efetuada expressa como tacitamente nos termos gerais (art.

217.º), podendo essa certificação inclusivamente resultar da exibição de amostra ou

modelo (art. 919.º).

O impedimento da realização do fim a que a coisa se destina corresponde, por sua

vez, a uma conceção subjetiva do defeito, estando em causa as utilidades específicas que o

comprador pretende que lhe sejam proporcionadas pela coisa. Esta indicação do fim tem,

no entanto, de ser aceite pelo vendedor, ainda que tacitamente, como sucederá no caso de o

comprador indicar ao vendedor que pretende dar um uso específico ao bem, concordando

ele com esse facto. Se, no entanto, não resultar do contrato o fim a que a coisa de destina,

nos termos do n.º 2 do art. 913.º, entende-se que a coisa se destina à função normal das

coisas da mesma categoria.

3. O problema do enquadramento dogmático do regime da venda de coisa

(específica) defeituosa

3.1. A remissão para o regime do erro como opção deliberada do nosso legislador

histórico

Por força da remissão feita pelo art. 913.º para o disposto na secção precedente,

respeitante à “Venda de bens onerados”, em particular, para o disposto no art. 905.º, se a

coisa (específica) vendida “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim

a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias

339 Como observa Romano Martinez, a própria qualidade normal resulta do negócio jurídico, pois esta não será, por via de regra,

totalmente abstrata. “Assim, é relevante que o automóvel antigo seja vendido para coleção ou para circular com assiduidade. O mesmo

se diga no caso de venda de um touro como reprodutor ou para abate. A qualidade normal só pode ser determinada tendo em conta o fim

que se depreende do acordo das partes. Dito de outra forma, a qualidade normal é apreciada em função de um determinado tipo, o qual

vem definido no acordo” – cfr. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 167.

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para a realização daquele fim”, “o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso

se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”.

O legislador histórico associou, pois, o problema da venda (específica) de coisa

defeituosa ao regime do erro, como aliás o confirma o Projeto de regulamentação da

compra e venda elaborado por Galvão Telles, em cuja exposição de motivos se refere que

“a solução mais simples e mais razoável seria a recondução da matéria à doutrina geral do

erro e do dolo” e que “não haveria motivo para excluir aqui o regime jurídico geral sobre

esses vícios da vontade”340. No mesmo sentido, refere-se ainda que “[o]s vícios da coisa,

como os do direito […] não constituem segundo o projecto fundamento autónomo de

anulação: integram-se nos institutos jurídicos do erro e dolo”341.

De resto, era também esta a opinião maioritária da nossa doutrina, no domínio da

vigência do Código Civil de 1867, acerca dos vícios redibitórios. Os vícios redibitórios,

sumariamente definidos, são os vícios ocultos da coisa vendida, que a tornam imprópria

para o uso a que é destinada ou lhe reduzem por tal forma a aptidão para esse uso que, “se

o comprador o soubesse, ou não a teria querido ou não daria tal preço” 342.

O Código Civil de 1867 tinha duas disposições sobre os vícios redibitórios. O art.

1568.º determinava que o vendedor é obrigado “[...] a entregar ao comprador a cousa

vendida e [...] a responder pelas qualidades da cousa”. Já o art. 1582.º estabelecia que “o

contrato de compra e venda não poderá ser rescindido com o pretexto de lesão ou de vícios

da cousa [...], salvo se essa lesão ou esses vícios envolverem erro que anule o

340 Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Contratos Civis, Exposição de motivos”, in Separata da Revista da Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa, vol. II (1954), Lisboa, 1954, p. 22. 341 Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Contratos Civis, Exposição de motivos”, cit., pp. 144 e segs., pp. 162 e 163. Já na vigência do

Código de Seabra se entendia, em virtude do disposto no art. 1582.º, que os vícios redibitórios não constituíam, em tese geral, um vício

autónomo da compra e venda, um motivo específico de nulidade deste contrato, pois só o podiam invalidar quando, no caso concreto,

concorressem os pressupostos legais da anulação por erro. Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação

Jurídica, vol. II, Coimbra, 1998, p. 231. 342 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, cit., p. 230. A noção de vícios redibitórios foi desenvolvida

por Pires da Cruz que distinguia três características fundamentais nos vícios redibitórios: a anterioridade, a gravidade e a oculticidade. A

característica da anterioridade concretizar-se-ia em que os defeitos ou vícios da coisa alienada deveriam ser anteriores à transmissão da

coisa, a característica da gravidade, em que os defeitos ou vícios deveriam “prejudica[r] [a coisa] no uso a que convencional ou

usualmente é destinada”, e a característica da oculticidade, em que os defeitos ou vícios não poderiam ser “conhecidos do adquirente”,

“ou [poderiam ser] dele conhecidos apenas como facto”. Cfr. EMÍDIO PIRES DA CRUZ, Dos Vícios Redibitórios no Direito Português,

Livraria Portugália, Lisboa, p. 72. No mesmo sentido, v. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, cit., p. 197.

Como observa o Autor, também aqui se está perante uma falha do negócio manifestamente afim de um dos vícios na formação da

vontade, o erro. Não revestem, porém, estes vícios, no sistema jurídico português atual, valor autónomo como causa geral de anulação

do negócio. Tal como no Código de Seabra só são atendíveis se se verificarem os requisitos do erro relevante.

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consentimento [...]”. Com base nestas disposições, a doutrina maioritária, na vigência do

Código de 1867, defendia que os vícios redibitórios deixaram de constituir um vício

autónomo da compra e venda, um motivo específico de nulidade deste contrato, “pois só o

podem invalidar quando concorram os pressupostos legais da anulação por erro”, não

sendo aceite a hipótese de redução do preço.

Parece pois que a vontade do nosso legislador histórico terá sido a de

deliberadamente fundar o regime da venda de coisas defeituosas nos vícios da vontade erro

e dolo343.

3.2. A delimitação do âmbito de aplicação do regime da venda (específica) de coisas

defeituosas e os três pilares em que assenta a opção legislativa de recondução da

matéria ao regime do erro

A análise do âmbito de aplicação do regime da venda de coisas defeituosas, traçado

pela aplicação conjugada dos arts. 913.º e 918.º do Código Civil, ajuda a compreender o

fundamento da opção do nosso legislador histórico de fundar o regime da venda de coisas

defeituosas no conceito de erro, revelando, ao mesmo tempo, aqueles que, segundo

pensamos, constituem os três pilares da opção legislativa: a diferenciação fundamental

entre o regime aplicável à venda de coisa específica e o regime aplicável à venda de coisa

genérica; a conceção (restritiva) do objeto da venda de coisa específica como algo que é; a

relevância do momento da celebração do contrato, como consequência da eficácia

translativa imediata do contrato de compra e venda.

O regime da compra e venda de coisas defeituosas, consagrado no Código Civil

português, assenta numa diferenciação fundamental entre o regime aplicável à compra e

venda de coisa específica e o regime aplicável à compra e venda de coisa genérica344. Esta

diferenciação fundamental, explicável, em grande medida, pela procedência romanística do

343 Note-se, porém, que esta aplicabilidade do regime do erro às hipóteses a que se refere a garantia edílica, é alvo de forte contestação.

V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 264. O Autor argumenta

que o regime do erro, estabelecido nos arts. 247.º e segs., não se destina a regular as situações de error in qualitate e que mesmo a

anulação por erro ou dolo, a que se refere o art. 905.º, não deve ser vista como uma verdadeira anulação por erro, mas como uma medida

destinada a restabelecer o equilíbrio entre as prestações. Não sendo esse equilíbrio possível, então, pode pôr-se termo ao contrato. “Em

caso de erro, parte-se de um pressuposto inverso: o contrato é, em princípio, inválido, mas pode ser convalidado.” 344 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 111.

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instituto, tem como base o facto de o nosso legislador civil ter construído o regime da

venda específica a partir de uma remissão para o regime do erro (art. 905.º, aplicável à

compra e venda de coisas defeituosas ex vi art. 913.º) e o regime da venda genérica a partir

de uma remissão para o regime geral do não cumprimento (cumprimento defeituoso) do

contrato (art. 918.º, 2.ª alternativa)345.

Na venda de coisa específica a vontade das partes incide sobre uma coisa certa e

determinada no momento da conclusão do contrato. Ao invés, na venda genérica, as partes

não se referem, no momento da celebração do contrato, a uma coisa concreta, mas apenas

ao próprio género, enquanto representação de todas as coisas que o compõem.

Porque na venda de coisa genérica as partes não se referem, no momento da

celebração do contrato, a nenhuma coisa concreta, mas apenas ao próprio género, enquanto

representação de todas as coisas que o compõem, o objeto do contrato, na venda genérica,

é a coisa como deve-ser, ou seja, com as qualidades e características próprias do género a

que pertence. Assim, porque na venda de coisa genérica o vendedor está obrigado a

entregar uma coisa com as qualidades habituais ou normais do género, a entrega de uma

coisa sem as referidas qualidades é (e só pode ser) um problema de incumprimento do

contrato, ao qual se aplicam as regras gerais do não cumprimento (art. 918.º, 2.ª parte) e

não o regime (especial) da compra e venda de coisas defeituosas. Pelo contrário, porque na

venda de coisa específica o objeto do contrato é uma coisa certa e determinada, a entrega

de coisa defeituosa pode suscitar – e o nosso legislador terá entendido que suscita sempre –

um problema de erro (art. 913.º).

Mais do que a diferenciação, dogmaticamente sustentável, entre a venda de coisa

específica e a venda de coisa genérica, a opção legislativa de reconduzir o regime da venda

de coisas defeituosas ao regime do erro prende-se com uma determinada conceção acerca

do objeto da venda específica. Na venda genérica, o objeto é necessariamente um dever-

ser: é o género, enquanto categoria lógica, representativa de todas as coisas que o

compõem por serem dotadas das qualidades e características que lhe são próprias. Afigura-

se pois inevitável a remissão feita pelo art. 918.º, 2.ª parte, para o regime geral do não

345 Defendendo que “[o] art. 918.º do Código Civil quer, seguramente, significar que o comprador de uma coisa indeterminada de certo

género não tem o direito potestativo de anulação do contrato por erro simples ou por erro qualificado (por dolo)”, v. NUNO PINTO

OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 29. No mesmo sentido, v. JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de

coisas defeituosas”, cit., p. 98; CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do

comprador”, cit., pp. 478 e 479.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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cumprimento. Na venda genérica, como já referimos, o vendedor está obrigado a entregar

uma coisa com as qualidades habituais ou normais do género, pelo que a entrega de uma

coisa sem as referidas qualidades coloca necessariamente um problema de não

cumprimento (cumprimento defeituoso do contrato).

Ao invés, na venda específica, o objeto é a coisa certa e determinada, perfeitamente

individualizada no momento da celebração do contrato. Na venda específica, também já o

referimos, há duas formas possíveis de entender o objeto. A decisão legislativa de fundar o

regime da venda de coisas defeituosas no regime do erro só se compreende à luz da

conceção que defende que o objeto da venda específica é a coisa como tal, a coisa em si,

na sua concreta individualidade espaço-temporal, não abrangendo as suas qualidades346. Só

à luz desta conceção restritiva do objeto da venda específica, que não admite que este

objeto possa ir além daquilo que a coisa determinada no espaço e no tempo efetivamente é,

se poderá considerar fundada a decisão legislativa de considerar que “o contrato é anulável

por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”,

sempre que a coisa (específica) vendida “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a

realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor

ou necessárias para a realização daquele fim”. É que, de acordo com esta conceção, as

qualidades a que se refere o art. 913.º do Código Civil, muito embora possam ter fundado a

decisão de adquirir aquela coisa, só existem na representação das partes, não fazem parte

do acordo negocial que não pode ter por objeto uma coisa diferente daquela que a coisa

determinada no espaço e no tempo efetivamente é.

Por último, ao demarcar o regime da garantia edílica relativamente ao regime geral

do não cumprimento, o legislador histórico atribuiu ainda relevância ao momento da

celebração do contrato347, diferenciando, na venda específica, o regime dos defeitos

anteriores ou contemporâneos da conclusão do contrato (defeitos originários) do regime

dos defeitos que ainda não existiam no momento em que foi celebrado o contrato de venda

de coisa específica (defeitos supervenientes)348. Nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do art.

346 ZITELMANN , Irrtum und Rechtsgechäft, 1987, em especial pp. 433 e segs. 347 A relevância dada pelo nosso legislador ao momento da celebração do contrato prende-se com o facto de o contrato de compra e

venda de coisa específica ser um contrato com eficácia real translativa imediata [arts. 408.º, n.º 1, 874.º e 879.º, alínea a)]. 348 Também no Código Civil francês (art. 1641.º) e no espanhol (art. 1484.º) o regime especial de saneamento por vícios ocultos aplica-

se aos defeitos da coisa existentes no momento do contrato, mas já não aos defeitos ocultos que surjam posteriormente a esse momento,

quer se devam a caso fortuito, quer sejam imputáveis ao vendedor. De acordo com o Código Civil espanhol, o regime do saneamento por

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918.º, “[s]e a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios

ou perdendo qualidades, [...], são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das

obrigações”. Como observa Júlio Gomes, “a contraposição [...] não é apenas entre venda

de coisa específica e venda de coisa genérica. O que se contrapõe é, por um lado, a venda

de coisa determinada que apresenta defeitos ou vícios no momento da conclusão do

contrato e que, sendo a identidade da própria coisa já existente e concretizada conteúdo do

acordo negocial, pode suscitar, na perspetiva do legislador histórico, um problema de erro

do comprador e, por outro lado, o defeito superveniente à conclusão do contrato na

hipótese de venda de coisa certa e determinada”349.

Pela mesma razão, se a “venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de

certo género”, aplicar-se-á, ainda, por força do disposto na 2.ª parte do art. 918.º, o regime

geral do não cumprimento350 . Na venda de coisa genérica, não estando o objeto

determinado no momento da celebração do contrato, a ausência, na coisa entregue, das

qualidades habituais ou normais do género, não coloca um problema de erro, que a existir

teria de se verificar na fase de formação do negócio, mas sim um problema de não

cumprimento (cumprimento defeituoso) da obrigação de entrega, próprio da fase executiva

do negócio. Do mesmo modo, na venda de coisa futura, porque a coisa ainda não existe, no

momento da celebração do contrato, nem sequer se poderia falar da existência de um erro

do comprador, até porque, de acordo com a doutrina dominante, não se pode admitir a

existência de erro quanto ao futuro351.

vícios não se aplica aos vícios que tenham a sua origem depois da perfeição do contrato e antes da entrega, salvo se resultarem de

defeitos da coisa existentes já no momento da celebração do contrato (arts. 1487.º e 1488.º). À deterioração da coisa posterior ao

momento de perfeição do contrato e anterior à entrega, que não tenha a sua origem em defeitos latentes na coisa no momento da

celebração do contrato, aplicar-se-ão, ou as normas de transferência do risco no contrato de compra e venda (art. 1452.º), se a

deterioração resultar de caso fortuito (não imputável ao vendedor); ou as regras gerais da responsabilidade contratual, se a deterioração

for imputável ao devedor. Cfr. MORALES MORENO, “Tres modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., pp. 13

e 14. 349 Cfr. JÚLIO GOMES “O art. 918.º do Código Civil e o tratamento da venda de coisa genérica”, (inédito), p. 3. 350 Determina o art. 918.º que “[s]e a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo

qualidades, ou a venda respeitar a coisa futura [...], são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações”. Sendo o

defeito (superveniente) imputável ao vendedor, aplicam-se as regras sobre o não cumprimento imputável (arts. 798.º e segs. ex vi art.

918.º do Código Civil); se o defeito não é imputável ao vendedor, aplicam-se as regras sobre o não cumprimento não imputável (arts.

790.º e segs. ex vi art. 918.º do Código Civil). 351 Neste sentido, v. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 200. O erro-vício consiste num desconhecimento ou

na falsa representação da realidade que determinou ou podia ter determinado a celebração do negócio. Por exemplo, quando alguém

compra um quadro por pensar que ele é da autoria de um pintor célebre. O elemento não considerado ou falsamente representado tem de

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

129

Deste modo, poder-se-á afirmar, na esteira daquilo que já se encontrava consagrado

no Código Civil de 1867352, que o regime da venda de coisas defeituosas se aplica (apenas)

aos defeitos contemporâneos da conclusão do contrato de compra e venda de coisa

específica (defeitos originários) e aos casos em que a coisa vendida é presente.

Sendo o defeito posterior à conclusão do contrato de compra e venda (defeito

superveniente), ou respeitando a venda a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo

género, aplicar-se-á, por força do disposto no art. 918.º, o regime geral do não

cumprimento.

O momento decisivo para distinguir os dois grupos de casos é, pois, o da celebração

do contrato e não o da entrega.

3.3. Os aspetos paradoxais da opção legislativa de fundar o regime da venda de

coisas defeituosas no regime do erro

Uma vez analisada a decisão legislativa de associar o regime da venda (específica)

de coisa defeituosa ao regime do erro, e depois de identificarmos os seus pilares, ou seja,

respeitar a uma realidade passada ou presente em relação ao momento da declaração. Quanto a factos futuros não pode haver erro; se, no

momento da celebração do negócio, o declarante admite a sua verificação e esta se dá em sentido diferente, quando ocorrerem, ou se não

atende à sua verificação e eles ocorrem, então dá-se uma previsão deficiente ou uma imprevisão. Fala-se a este respeito de error in

futurum, mas a expressão é de evitar por ser inexata e enganadora: em rigor, não há erro. Mas a imprevisão poderá ser relevante noutra

sede (arts. 437.º a 439.º). 352 O Código Civil de 1867 continha duas disposições sobre vícios redibitórios. O art. 1568.º determinava que o vendedor é obrigado a

entregar ao comprador a coisa vendida e a responder pelas qualidades da coisa. O art. 1582.º daquele Código estabelecia que “o contrato

de compra e venda não poderá ser rescindido com o pretexto de lesão ou de vícios da cousa [...], salvo se essa lesão ou esses vícios

envolverem erro que anule o consentimento [...]”. O art. 1582.º aplicava-se apenas à venda específica, ou seja, à venda de uma coisa que

era “certa e determinada no próprio momento em que se fez o contrato” e à venda de uma coisa que se tornou certa e determinada depois

do momento em que o contrato se fez (venda “duma cousa de género, mas cuja escolha já foi feita de acordo com o adquirente”). Para

além disso, o problema configurar-se-ia de forma diferente consoante o defeito consistisse na falta de qualidades (apenas) pressupostas

pelo comprador ou na falta de qualidades prometidas pelo vendedor. No primeiro caso, não tendo o vendedor assumido a

responsabilidade por determinadas qualidades da coisa, poderia aplicar-se a teoria do erro ou a teoria dos vícios redibitórios. No segundo

caso, verificando-se que a coisa entregue não apresenta as qualidades prometidas pelo vendedor, não deveria aplicar-se nem a teoria do

erro nem a teoria dos vícios redibitórios. Segundo Guilherme Moreira, tratar-se-ia, neste caso, “duma garantia convencional, duma

cláusula do contrato, pela qual o vendedor se responsabilizou por determinadas qualidades da cousa”. Cfr. GUILHERME MOREIRA,

Instituições do Direito Civil Português, vol. II, Das Obrigações, Coimbra Editora, 1925, p. 610. Diferentemente, o problema da venda de

uma coisa genérica “cousa de género”, cuja escolha ainda não foi feita (“de acordo com o adquirente”), configurar-se-ia sempre como

um problema de não cumprimento (de “inexecução” do contrato). Como observa Manuel de Andrade, “[n]a medida em que as

qualidades da mercadoria foram especificadas, o vendedor só cumpre entregando mercadoria correspondente. Na medida em que tais

qualidades não foram especificadas, então temos de partir do princípio de que os contraentes se quiseram referir às qualidades normais

da mercadoria [...], valendo, pois, a doutrina anterior”.

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aqueles pressupostos que, em nosso entender, podem fundamentar o acerto desta decisão,

cumpre agora evidenciar alguns aspetos de regime que se revelam contraditórios com

aquela decisão.

O primeiro ponto prende-se com uma (pelo menos aparente) contradição dentro do

próprio art. 913.º. Já referimos que, de acordo com uma conceção restritiva do objeto da

venda específica, que parece estar subjacente à remissão operada pelo art. 905.º, aplicável

à venda de coisas defeituosas por força da remissão do art. 913.º, as qualidades a que se

refere o art. 913.º, “as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a

realização daquele [do] fim [a que a coisa se destina]”, não fazem parte do acordo negocial

de venda de coisa específica, visto que este acordo se dirige apenas à coisa em si, tal como

é, na sua individualidade, não abrangendo as suas qualidades. Estas qualidades, que podem

ter motivado a vontade negocial sobre a escolha “dessa” coisa certa e determinada, ficam

fora da vontade, são-lhe exteriores, pelo que a sua ausência na coisa em si, bem poderia

suscitar um problema de erro.

Refira-se o exemplo dado por Larenz: «se alguém compra um determinado anel

“como de ouro”, dirá não haver recebido o que lhe é devido, se o anel não é de ouro.

Todavia deve ter-se em conta que não comprou pura e simplesmente um anel de ouro (o

que seria uma compra de coisa genérica), mas sim este anel individual, determinado, que

ele escolheu e foi aceite pelo vendedor como de ouro. Não pode, por isso, exigir um outro

anel que tenha a qualidade de ser de ouro, mas só precisamente este anel».

Pensamos que, ainda que se aceite esta conceção restritiva no que diz respeito ao

objeto da venda de coisa específica, “as qualidades asseguradas pelo vendedor” deveriam,

por se tratar de qualidades asseguradas ou prometidas, considerar-se abrangidas no acordo

negocial, de tal modo que a sua ausência na coisa entregue não suscitaria um problema de

erro, mas sim de incumprimento (cumprimento defeituoso) do contrato353.

Se assim não fosse, teríamos de aceitar a objeção de Larenz, no exemplo do anel, de

que “por este anel determinado e individualizado não ser de ouro, mas o vendedor estar

obrigado a entregá-lo como de ouro, a prestação é então originariamente impossível, com a

consequência de o contrato dever ser nulo (§ 306 do BGB, versão anterior)”.

353 Como observa ROMANO MARTINEZ, “[f]alar-se de erro sobre as qualidades acordadas é uma antinomia; se uma qualidade especial foi

acordada e não existe há incumprimento do acordo”. V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda

e na Empreitada, cit., p. 54.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

131

Nuno Oliveira defende que na venda de coisa específica o alienante não está adstrito

(apenas e só) à entrega de uma coisa concretamente determinada ou concretamente

individualizada. O vendedor está antes “adstrito à entrega de uma coisa concretamente

determinada ou individualizada (com ou sem qualidades, com ou sem vícios)”354. Assim,

sustenta o Autor, faltando as qualidades (apenas) pressupostas (pelo comprador)355, o

problema será de erro, devendo aplicar-se os arts. 251.º ou 253.º, por remissão dos arts.

905.º e 913.º do Código Civil; ao invés, faltando as qualidades prometidas (pelo vendedor),

porque o vendedor assumiu o dever de entregar uma coisa com qualidades, se entrega uma

coisa sem as qualidades por si asseguradas, sem as qualidades por si prometidas, o

problema deslocar-se-ia da “divergência entre dois factos” para a “divergência entre um

facto e uma norma (contratual)”, configurando pois um cumprimento defeituoso do

contrato de compra e venda356.

Relativamente à objeção de que a falta das qualidades asseguradas ou prometidas de

uma coisa concretamente determinada ou individualizada (coisa específica) configuraria

um caso de impossibilidade originária do objeto do contrato e, portanto, um caso de

nulidade do negócio jurídico (art. 280.º e 401.º do Código Civil), Nuno Oliveira responde

que “ainda que haja uma impossibilidade originária do objecto do contrato de compra e

venda de coisa específica, parece-nos seguro que não devem aplicar-se os arts. 280.º e

354 NUNO PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 233. 355 Caberiam aqui as qualidades necessárias à realização do fim a que a coisa concretamente determinada ou individualizada se destina

desde que, através de uma adequada interpretação ou de uma adequada integração das declarações do contrato de compra e venda, não

devessem considerar-se como qualidades asseguradas ou como qualidades prometidas. Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Contrato de

Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 233. Já o termo “qualidades asseguradas pelo vendedor” do art. 913.º do Código Civil

compreende, segundo o Autor, qualidades afirmadas (“dicta”) e qualidades prometidas (“promisa”): às qualidades afirmadas, aos

“dicta”, pode aplicar-se, sem restrições significativas, o regime dos arts. 913.º a 917.º; às qualidades prometidas, aos “promisa”, talvez

não. Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 21. 356 NUNO PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 233, e Venda de Coisa Genérica, cit., p. 21. São

três os argumentos que o Autor invoca para sustentar que a falta das qualidades asseguradas ou prometidas não consubstancia um

problema de erro. Em primeiro lugar, o problema do erro (simples ou qualificado por dolo) pressupõe uma divergência entre dois factos

e, existindo promessa, o que está em causa é uma divergência entre um facto e uma norma (contratual); em segundo lugar, ainda que

haja uma impossibilidade originária do objeto do contrato de compra e venda de coisa específica, não devem aplicar-se os arts. 280.º e

401.º, n.º 1, do Código Civil. Como refere o Autor, “[o] vendedor, ao prometer que uma coisa específica (absolutamente) não fungível,

tem determinadas qualidades, está a assumir o risco da impossibilidade originária do objeto do contrato de compra e venda, resultante de

a coisa específica não ter as qualidades prometidas”. Em terceiro lugar, afirma o Autor “parece-nos seguro que não devem aplicar-se os

arts. 908.º e 909.º do Código Civil: “O vendedor ao assumir o risco da impossibilidade originária, resultante de a coisa específica

vendida não ter as qualidades prometidas, está a prometer que indemnizará o comprador dos danos (de todos os danos) compreendidos

no interesse contratual positivo”. Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., pp. 21 e 22.

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401.º, n.º 1, do Código Civil”357. E refere: “[o] vendedor, ao prometer que uma coisa

específica, (absolutamente) não fungível, tem determinadas qualidades, está a assumir o

risco da impossibilidade originária do objecto do contrato de compra e venda, resultante de

a coisa específica não ter as qualidades prometidas”358.

Pensamos pois que, se perante a falta das qualidades (apenas) pressupostas pelo

comprador ainda é possível sustentar, de acordo a conceção sobre o objeto da venda

específica perfilhada pelo nosso legislador, a recondução da matéria da venda de coisas

defeituosas ao regime do erro, no caso de falta das qualidades asseguradas ou prometidas,

porque o vendedor se obrigou a entregar uma coisa com certas qualidades ou sem

determinados defeitos, o problema será necessariamente de incumprimento do contrato,

não fazendo sentido, neste caso, a remissão para o regime do erro, operada pelos arts. 905.º

e 913.º, nem se afigurando adequada a concessão ao comprador de um direito de anulação

por erro, que é por natureza uma exceptio, tendo em conta que, neste caso, o negócio

corresponde à vontade real do comprador.

O outro ponto que, em nosso entender, se revela contraditório com a opção

legislativa de fundar o regime da compra e venda de coisas defeituosas no instituto do erro

é o facto de este regime consagrar o direito do comprador à reparação da coisa ou, se for

necessário e a coisa tiver natureza fungível, à substituição dela (art. 914.º, n.º 1, do Código

Civil).

Trata-se aqui, como já referimos, da consagração expressa de pretensões que

constituem uma explicitação do direito do credor ao cumprimento e que, por isso, se

afiguram dogmaticamente incompatíveis com a recondução da matéria ao regime do

erro359.

357 NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 21. 358 V. ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., p. 310. 359 Com base no facto de o nosso legislador conceder ao comprador o direito à reparação ou substituição da coisa, manifestações do

direito ao exato cumprimento do contrato, aparentemente incompatível com a recondução da matéria ao regime do erro, e, em particular,

com o direito à anulação por erro, defende Calvão da Silva “um dualismo estrutural e sucessivo no fundamento da garantia”. Nas

palavras do Autor, “o legislador terá considerado que, se os vícios da coisa existirem já no momento estático da formação da venda, é

legítimo configurá-los como uma hipótese de erro sobre as qualidades do objecto, vício da vontade sacionado pela anulabilidade, desde

que no caso se verifiquem os respectivos requisitos legais; mas se os mesmos vícios se revelarem depois da venda e esta não for, por

isso, invalidada, e persistirem na fase dinâmica do seu cumprimento, turbando ou rompendo a relação sinalagmática querida pelas partes,

podem ter-se, ainda, por cumprimento defeituoso do programa contratual, por forma a facultar o restabelecimento da equivalência ou

equilíbrio prestacional rompido, proporcionando ao credor a satisfação legítima do seu interesse no cumprimento, mediante a reparação

ou a substituição da coisa defeituosa” – v. Responsabilidade Civil do Produtor, cit., pp. 232 e 233.

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Não obstante, e apesar de o art. 914.º constituir uma simples explicitação do direito

do credor ao cumprimento, é de realçar o enorme alcance e clarividência da sua

previsão360.

A importância do art. 914.º resulta, desde logo, da amplitude com que é reconhecido

o direito do comprador à reparação ou substituição da coisa. Na verdade, o referido

remédio não se cinge às coisas genéricas (art. 918.º), pois também o comprador de coisa

certa e determinada pode exigir a eliminação dos seus defeitos ou, se for necessário e a

coisa tiver natureza fungível, a sua substituição361. Repare-se que a letra do art. 914.º fala

de coisa fungível e não de coisa genérica. A fungibilidade da coisa vendida in specie, isto

é, determinada ou especificada já no momento da conclusão do contrato, aferir-se-á, como

ensina Manuel de Andrade, não “por um critério naturalístico, mas por um critério –

digamos – económico ou social”362, critério que na interpretação do contrato conduza à

equivalência funcional entre a coisa vendida e a coisa substituta no cumprimento do

contrato, segundo os ditames da boa-fé.

O art. 914.º representa assim um grande avanço, mesmo sobre legislações, como é o

caso da alemã anterior à Reforma de 2001/2002, que, só no caso de venda de coisa

genérica, concedia ao comprador, nos termos do § 480 do BGB (versão anterior) o direito

de exigir a substituição da coisa, em alternativa aos tradicionais remédios edílicos que se

consubstanciavam no direito à resolução do contrato (Wandelung) ou no direito à redução

do preço (Minderung). Pelo contrário, o comprador de coisa certa e determinada apenas

podia exercer, nos termos do § 462 do BGB (versão anterior), os tradicionais remédios

edílicos – e isto, mesmo que a coisa objeto do contrato fosse fungível – ou, em vez destes,

nos termos do § 463 do BGB (versão anterior), a indemnização por não cumprimento, nos

casos de ausência na coisa vendida de uma qualidade assegurada pelo vendedor ou de este

ter ocultado dolosamente um defeito.

360 Não consagrando o Código Civil italiano o direito do comprador à reparação ou substituição da coisa, salvo o caso da garantia de

bom funcionamento (art. 1512.º), “é duvidoso, e ao mesmo tempo discutido, se o comprador – para além da escolha entre redhibitoria e

quanti minoris – goza da ação de cumprimento. As opiniões doutrinais estão divididas”. Defendendo que sim, embora só na hipótese de

haver culpa do vendedor e de se tratar de coisa genérica, e admitindo apenas a substituição da coisa e não já a reparação ou eliminação

dos defeitos, v. PAOLO GRECO e G. COUTTINO, “Della vendita”, in Commentario del Codice Civile de Scialoja e Branca, 1964, p. 225. 361 Cfr. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 222. Defendendo que “o regime do erro não tem cabimento se

estiverem em causa as pretensões de eliminação do defeito, de entrega de prestaçãoo substitutiva, de redução do preço e de

indemnização”, v. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 264. 362 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, cit., p. 253.

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4. O erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio

A relação entre o regime da venda de coisa (específica) defeituosa e a teoria do erro

constitui uma das questões mais debatidas de todo o direito da compra e venda.

Em Portugal, a questão assume especial acuidade tendo em conta a remissão feita

pelo nosso legislador histórico para os regimes do erro e do dolo. Apesar de esta remissão

feita pelo art. 905.º (aplicável à venda de coisas defeituosas ex vi art. 913.º) sugerir que a

vontade do nosso legislador foi a de fundar o regime da venda de coisas defeituosas no

regime daqueles vícios da vontade, a verdade é que, como adverte Baptista Machado, o

referido enquadramento pode assentar num vício de raciocínio. É que, “bem pode a

relevância do vício da coisa (ou do direito) estar na dependência da verificação de um erro

e todavia não ser este, o erro, o verdadeiro fundamento daquela relevância”363. Neste

contexto, pensamos que se justifica analisar em traços gerais o regime jurídico do erro no

ordenamento jurídico português, para posteriormente nos podermos debruçar sobre o

problema da fronteira entre o erro e o incumprimento.

Em primeiro lugar importa sublinhar que, segundo o nosso legislador histórico, os

vícios redibitórios, cuja regulamentação consta dos arts. 913.º a 922.º do Código Civil, não

constituem um fundamento autónomo de anulação, mas integram-se antes nos institutos

jurídicos do erro e do dolo, constituindo, pois, simples aplicações destes regimes. Assim,

faltando as qualidades pressupostas pelo comprador ou asseguradas pelo vendedor, a que

se refere o art. 913.º, o contrato seria anulável por erro ou dolo, desde que, no caso

concreto, se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade. Estando aqui em causa um

erro sobre o objeto do negócio, previsto no art. 251.º do Código Civil, mais precisamente

um erro sobre as qualidades do objeto, o negócio seria anulável nos termos do art. 247.º do

Código Civil, aplicando-se, pois, a este erro, que é um “erro nos motivos”, o regime

previsto para o erro na declaração.

O Código Civil português de 1966, ao contrário do Código Civil anterior, consagra,

na regulamentação geral do erro, a distinção entre erro na declaração – isto é, o erro que se

traduz numa divergência entre a vontade e a declaração – e o erro-vício que incide na

formação da vontade, distinção que sempre foi muito contestada pela doutrina, quer

363 V. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 6.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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nacional, quer estrangeira, atendendo à sua falta de justificação e, sobretudo, às

dificuldades de enquadramento de algumas hipóteses de fronteira, como, por exemplo, os

casos de erro sobre a identidade e de erro sobre o conteúdo da declaração364.

No Código Civil português, o erro-vício (simples ou qualificado por dolo)365 consiste

no desconhecimento ou na falsa representação da realidade que determinou ou podia ter

determinado a celebração do negócio366. Neste sentido, o erro abrange a própria ignorância

da realidade. Assim, por exemplo, haverá erro na formação da vontade quando alguém

compra um quadro por pensar que ele é da autoria de um determinado pintor célebre

quando na realidade é apenas uma cópia367. De um modo geral, poderia dizer-se que

quando alguém declara querer comprar certa coisa isso significa que, no campo

psicológico, ponderou previamente as vantagens e desvantagens do negócio, os fins que

ele permite alcançar, bem como a existência de certas qualidades da coisa que lhe

asseguram a realização desses fins368. Como observa Carvalho Fernandes, “[s]e, neste

fenómeno deliberativo, psicológico, se dá como verificado certo elemento que não existe,

ou existe de modo diferente daquele que foi mentalmente representado, ou se não se toma

364 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 347. 365 Atendendo à sua causa, o erro pode ser simples (ou espontâneo) ou qualificado por dolo (erro provocado). No primeiro caso, a falsa

representação da realidade ou a ignorância dela podem ter na sua origem fatores que respeitam apenas à pessoa do declarante. Este

formou uma vontade errada, por não ser diligente, não se informando devidamente sobre circunstância relevantes para a sua decisão de

contratar, por apreender mal factos ou circunstâncias que lhe foram transmitidas, por ter entendido mal uma declaração que lhe foi feita,

etc. No segundo caso, a falsa representação da realidade tem a sua origem numa atuação de outrem orientada no sentido de criar ou

manter o erro. Neste caso, o comportamento enganatório de outrem só relevará se for determinante do erro. Isto significa que pode haver

dolo e este ser irrelevante, não afetando o valor do negócio, enquanto viciado por erro. Como se pode ler no Acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2005 (Ferreira de Almeida), disponível em www.dgsi.pt, «[c]omete dolo ilícito o “deceptor” –

autor do artifício, sugestão ou embuste – que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria»; “Para a

anulação do negócio exige a lei que se trate de um dolus malus (art. 253.º, n.º 2) que não de meras sugestões ou artifícios usuais

considerados legítimos segundo as conceções dominantes do comércio jurídico (dolus bonus)”, o STJ entendeu que «a alteração

artificiosa da quilometragem de um veículo (para menos) ou a sua dissimulação por estabelecimento comercial especializado nesse ramo

não pode ser qualificada como prática comercial “normal”, usual ou corrente, mera sugestão propiciadora do comércio jurídico (atos de

compra e venda) ou como uma forma habilidosa de apresentar a mercadoria, vulgar expediente ou técnica de marketing mais ou menos

agressiva». 366 Cfr. CARVALHO FERNADES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II., cit., p. 199. “Deste modo, o erro, em Direito, e neste campo,

abrange a própria ignorância da realidade.”. 367 Note-se que a realidade inexatamente representada pode consistir numa circunstância de facto ou de direito. Assim, também haverá

erro “quando certa pessoa dá de arrendamento o seu andar por tempo indeterminado, convencido de que o pode fazer cessar a todo o

tempo, por ignorar o correspondente regime de denúncia (art. 1101.º do Código Civil)”. V. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do

Direito Civil, cit., p. 199. 368 CARVALHO FERNADES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 200.

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em conta outro, por se desconhecer a sua existência, a vontade formou-se erradamente”369.

O nosso legislador terá configurado as hipóteses previstas no art. 913.º como casos de erro-

vício, na modalidade de “erro sobre o objecto do negócio”, regulado no art. 251.º do

Código Civil, cuja relevância como fundamento de anulação do negócio estaria

dependente, nos termos do art. 247.º, aplicável por força do art. 251.º, da cognoscibilidade

pelo declaratário da essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o

erro370.

O legislador português, para além de atribuir relevância ao erro sobre o objeto do

negócio quando este recaia sobre a pessoa do declaratário ou sobre o objeto do negócio,

consagrou ainda, no n.º 1 do art. 252.º, uma previsão residual de erro-vício371.

Nos termos do n.º 1 do art. 252.º, “[o] erro que recaia nos motivos determinantes da

vontade, mas se não refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa

de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo”.

Pode questionar-se o próprio sentido do art. 252.º, n.º 1. Segundo Paulo Mota Pinto, a

possibilidade de as partes submeterem por acordo a subsistência (se não da validade, pelo

menos) dos efeitos do negócio à verificação de um determinado elemento, reconhecido

como essencial, já resultaria da autonomia privada, pelo que, nas palavras do Autor, “[o]

art. 252.º, n.º 1, não consagra, portanto, quase nada mais do que aquilo que já seria de

aceitar por força dos princípios gerais, desempenhando, em primeira linha, uma função

negativa”372. Assim, depois de atribuir relevância no art. 251.º a determinados casos de

369 V. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 200. Esclarecendo o Autor que o elemento não considerado ou

falsamente representado tem de respeitar a uma realidade passada ou presente em relação ao momento da declaração. 370 Isto significa que, para além da essencialidade, requisito geral de relevância do erro quando este se refere à pessoa do declaratário ou

ao objeto do negócio, é ainda necessário, para que o negócio seja anulável, que o declaratário conheça a essencialidade para o declarante

do motivo sobre que recaiu o erro; ou, em alternativa, que o declaratário, não conhecendo essa essencialidade, não a devesse, contudo,

ignorar. Este conhecimento ou cognoscibilidade respeita à essencialidade do motivo e não ao erro. Neste sentido, v. CARVALHO

FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 214. Observando que de iure condendo deveria ser outra a solução, v. C. MOTA

PINTO, “Observações ao regime do Projeto de Código Civil sobre o erro nos negócios jurídicos”, in RDES, ano XIII, pp. 3 e segs., e

Teoria Geral do Direito Civil, cit. 371 Como observa Carvalho Fernandes, esta modalidade de erro corresponde fundamentalmente ao erro acerca da causa, previsto nos

arts. 659.º e 660.º do Código Civil de 1867 e abrange ainda o erro sobre a pessoa do declarante ou de terceiro, como resulta a contrario

do art. 251.º do Código Civil – cfr. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 200. 372 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 354 e 355. Como observa o

Autor, o sentido útil que se pode retirar do n.º 1 do art. 252.º é este: «A ideia de que os motivos em geral não são só por si relevantes

para efeitos de erro, pois apenas um acordo sobre a sua essencialidade vem fazer depender a validade do negócio da exatidão daqueles,

podendo portanto notar-se que o legislador atendeu, ao fixar o regime do art. 252.º, n.º 1, “a tópicos como a proteção das expectativas do

destinatário e a certeza da segurança das transacções”» – idem, p. 360.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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erro nos motivos (erro sobre a pessoa do declaratário ou sobre o objeto do negócio),

através de uma remissão para o regime do erro na declaração, previsto no art. 247.º, o

legislador pretendeu através do n.º 1 do art. 252.º limitar a relevância do erro nos motivos,

por razões que se prendem com a segurança do tráfico e com a necessidade de tutela da

confiança do declaratário e de terceiros. Ao contrário do que sucede nas hipóteses de erro-

vício previstas no art. 251.º, nas hipóteses de erro que se subsumem à previsão do n.º 1 do

art. 252.º não basta a cognoscibilidade pelo declaratário da essencialidade do motivo, mas

é necessário que as partes hajam “reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo”373.

A preocupação de proteger a confiança do destinatário e a segurança das transações, que

está subjacente ao art. 252.º, n.º 1, justifica que noutras legislações se tenha adotado um

regime ainda mais restritivo que o adotado pelo legislador português. É o que sucede, por

exemplo, no ordenamento jurídico alemão, em que o regime é o da irrelevância em geral

do erro nos motivos, remetendo-se apenas algumas hipóteses consideradas especialmente

importantes – erro sobre as qualidades da pessoa e do objeto que sejam consideradas

essenciais para o tráfego (§ 119/2 do BGB) – para o regime do erro na declaração.

4.1. Pressupostos de relevância do erro sobre o objeto do negócio

O legislador português distinguiu os casos de erro-vício dos casos de erro na

declaração374, embora tenha sujeitado ambos ao mesmo tratamento jurídico, por força da

remissão feita pelo art. 251.º, que se refere ao erro-vício (sobre a pessoa ou o objeto do

negócio), para o disposto no art. 247.º, que prevê o erro na declaração. Com efeito,

determina o art. 251.º que “[o] erro que atinja os motivos determinantes da vontade,

373 No que toca ao reconhecimento por acordo da essencialidade do motivo a que o erro respeita, defende Paulo Mota Pinto que se exige

aqui um “condicionamento” da validade do negócio à verificação de um determinado motivo, “condicionamento” este que pode resultar

de acordo tácito (devendo entender-se que o simples facto de o declaratário aceitar a celebração do negócio, após o declarante ter

afirmado a essencialidade que para ele reveste certo motivo, não vale como acordo tácito, pois aquele comportamento do declaratário

não revela “com toda a probabilidade” a intenção de aceitar essa essencialidade). Considerando que neste acordo estão em causa duas

declarações de ciência mas apenas a do declaratário tem natureza negocial, v. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil,

cit., p. 218. Particularmente relevante é a questão de saber se este acordo integra ou não o conteúdo do negócio. Segundo Carvalho

Fernades, a resposta deve ser negativa, o que implica que o acordo não esteja sujeito às formalidades do próprio negócio quando este

seja formal. 374 Como salienta Titze, esta distinção, em comparação com as divisões clássicas (designadamente a separação error in persona, in

corpore, in substancia e in negotio) ou outras distinções é a única resultante de elementos internos ao próprio erro. V. HEINRICH TITZE,

“Vom sogenannten Motivirrtum”, in FS Ernst Heymann, II, Weimar, 1940, pp. 72 a 11, pp. 73 e segs.

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quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos

termos do art. 247.º”. Isto significa que a relevância anulatória do erro-vício não depende

da sua simples existência, mas da verificação de certos requisitos sem os quais o erro,

apesar de existente, é irrelevante375.

No que toca ao erro “sobre os motivos determinantes da vontade” que se reporte à

pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, a lei exige, como condição de relevância,

desde logo, os requisitos gerais previstos no art. 251.º (é o caso da essencialidade, pela

referência desta norma aos “motivos determinantes da vontade”376), e do próprio tipo de

objeto do erro (trata-se aqui do chamado requisito da propriedade do erro377)378.

No entanto, para além destes requisitos gerais, é necessário atender aos requisitos

especiais de relevância deste erro-vício, que se encontram previstos no art. 247.º, aplicável

ao erro sobre o objeto por força da remissão operada pelo art. 251.º379. No art. 247.º, o

legislador de 1966 adotou, na esteira daquela que já era a orientação dominante na vigência

375 V. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 202. 376 O requisito da essencialidade do erro, também designado por alguma doutrina como requisito da causalidade, traduz-se na exigência

de que o erro tenha, em concreto, levado o declarante a realizar o negócio, em si, ou nos seus elementos essenciais. Assim, por exemplo,

A compra por certo preço um cavalo, por pensar que ele ganhara determinado prémio; se soubesse que tinha ficado em segundo lugar só

o compraria por outro preço. V. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol., p. 201. O Autor esclarece que no exemplo

só está a ser considerada a causalidade dando-se como verificados os demais requisitos do erro. O apuramento da verificação deste

requisito faz-se pelo confronto entre o conteúdo de duas vontades: o correspondente à vontade efetiva do declarante – vontade real,

negocial – e o correspondente à vontade que ele formaria se tivesse conhecido a realidade que ignorou ou falsamente representou no seu

espírito – vontade conjetural ou hipotética. V. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., vol. II, p. 202. Sobre o

sentido da essencialidade no caso de erro na declaração, v. A. FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, 2.ª

ed., Coimbra, 1968, pp. 254 e segs. 377 O requisito da propriedade do erro consiste na circunstância de o erro não incidir sobre requisto legal de validade do negócio. A

relevância da propriedade do erro é negada por MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em

especial Negócio Jurídico, Coimbra, 1998, p. 239, e por CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 509 a 510 e nota

690 da p. 510. Carvalho Fernandes considera que “o erro impróprio não deixa de ser relevante, embora, em certos casos, a

correspondente anulabilidade não seja invocável” – v. Teoria Geral, cit., p. 207. 378 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 361 e 362. Em sentido

diverso, considerando o problema como um simples concurso normativo, em que se coloca uma questão de interpretação de normas, v.

PEDRO NUNES DE CARVALHO , “Considerações acerca do erro em sede de patologia da declaração negocial”, in ROA, abril 1992, pp.

169-182, p. 178. 379 O facto de o erro não relevar por si, mas pressupor a verificação de determinados pressupostos, “radica na necessidade de, no regime

do erro, harmonizar dois vectores não coincidentes e, por vezes, mesmo contrapostos. O reconhecimento de que, embora por força do

Direito objetivo, o negócio jurídico consubstancia a atividade autónoma dos particulares, obriga à relevância do erro: a vontade

declarada, que não corresponda à vontade real, não exprime a autonomia do sujeito, mas antes a confluência casual que originou a

discrepância. O admitir, sem limites, a impugnabilidade, por erro dos negócios, conduz, no entanto, a um desrespeito total pela confiança

da contraparte, com o consequente postergar das aspirações de previsibilidade e estabilidade que o sistema, em honra de precisões sócio-

económicas claras, tem de tutelar”. V. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, cit., p. 520.

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do Código de 1867, a necessidade, como condição de relevância do erro, de pressupostos

objetivos de atendibilidade380. Determina o art. 247.º que “[q]uando, em virtude de erro, a

vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é

anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade,

para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”. Isto significa que a impugnação

por erro pressupõe a verificação e prova quer dos requisitos gerais previstos no art. 251.º,

quer dos requisitos objetivos de relevância, atinentes ao declaratário, previstos no art.

247.º, ou seja, nos termos deste preceito, o erro só é relevante se ao declaratário for

conhecida ou, pelo menos reconhecível de modo que ele a não deva ignorar, “a

essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”381. A exigência de

pressupostos objetivos de atendibilidade, em detrimento de uma conceção puramente

sujetivista, revela a preocupação do nosso legislador em tutelar a confiança do declaratário

e o interesse geral da segurança do comércio jurídico382.

380 Que foi intenção do legislador de 1966 consagrar a orientação que já resultava do Código de Seabra pode ver-se em RUI DE

ALARCÃO, “Breve motivação do anteprojecto sobre o negócio jurídico na parte relativa ao erro, dolo, coação, representação, condição e

objecto negocial”, in BMJ, n.º 138, Lisboa, 1964, p. 21 (da separata). No Código de Seabra, no caso de erro sobre o objeto do contrato

ou sobre a pessoa com quem se contratava – ou, ainda, em atenção à qual o contrato fora celebrado (arts. 661.º e 662.º) –, o contrato era

nulo (nulidade relativa), havendo o errante declarado ou provando-se pelas circunstâncias, igualmente conhecidas da outra parte, que só

por essa razão e não por outra contratara. Para a anulação por erro sobre o objeto ou a pessoa (ou por erro na declaração) exigia-se a

prova de que o declaratário conhecia ou tinha podido conhecer, por lhe ter sido declarado ou resultar das circunstâncias, o valor de

“pressuposto essencial”, atribuído a certo elemento pelo declarante. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II,

cit., p. 224. 381 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., 369. Como observa o Autor, a

lei não concede relevância decisiva à vontade do declarante, tendo optado, antes, por conferir relevância ao interesse do declaratário e ao

interesse geral do comércio jurídico. Afastou-se, pois, o nosso legislador de uma conceção puramente voluntarista de “anulação contra

indemnização”, que é a que se encontra consagrada no § 119/1 do BGB. Nos termos desta disposição, “quem ao emitir uma declaração

de vontade estava em erro sobre o seu conteúdo ou não queria emitir de todo uma declaração com esse conteúdo pode anular a

declaração se for de supor que ele, conhecendo os factos e numa apreciação razoável do caso, não a teria emitido”. No entanto, o errante

que impugne a declaração fica sujeito ao dever de indemnizar o declaratário pelo interesse contratual negativo, independentemente de

culpa, nos termos do § 122/1 do BGB. Como observa Menezes Cordeiro, o § 119/1 do BGB tem subjacente “um juízo objetivo sobre o

erro em si; quando o estudo deste revele um afastamento intolerável da autonomia privada, a confiança cede e o erro releva” – cfr. Da

Boa Fé no Direito Civil, cit., p. 520. Este dever de indemnizar, independente de culpa, tal como previsto no § 122/1 do BGB não existe

no ordenamento jurídico português, havendo, entre nós, apenas um dever de indemnizar com fundamento em culpa in contrahendo. 382 Para uma justificação teleológica da solução consagrada no art. 247.º do Código Civil, pode ver-se PAULO MOTA PINTO, Declaração

Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 372 e segs. O Autor considera que “a solução adoptada pelo nosso

legislador não traduz a melhor ponderação dos interesses do declarante, do declaratário e do comércio jurídico”. O pressuposto de

relevância requerido pelo art. 247.º significa que a cognoscibilidade de um valor ou elemento essencial para o declarante deverá levar o

declaratário a procurar esclarecer completamente esse elemento, assegurando-se que o declarante exprime bem a sua vontade”. Como

refere o A., “[j]ulgamos que esta oneração do declaratário com base na mera indicação de uma circunstância como essencial talvez não

seja a mais razoável, e que ela se adequa mais dificilmente aos dados da realidade do tráfico jurídico. Neste, cada parte cura dos

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Em termos práticos, o pressuposto objetivo de relevância consagrado no art. 247.º

implica que, “pelo simples facto do conhecimento ou da perceptibilidade do valor essencial

de um elemento para o declarante (por exemplo, devido a este o ter referido como tal na

sua declaração), incumbe ao declaratário um ónus de esclarecimento da situação:

esclarecimento da verificação do elemento considerado pelo declarante como essencial

(ónus de investigação), ou, pelo menos, esclarecimento da existência e termos do negócio

(ónus de proposta de condicionamento do negócio ou de recusa de contratar)”383. A

solução consagrada no art. 247.º, ainda que criticada de iure condendo por alguns Autores,

traduz a solução de compromisso encontrada pelo nosso legislador entre o dogma da

irrelevância do erro sobre os motivos e a necessidade de tutela da confiança do declaratário

e da segurança do tráfico jurídico.

Julgamos que o facto de o legislador ter dispensado aqui o “reconhecimento, por

acordo, da essencialidade do motivo”, que se exige, no n.º 1 do art. 252.º, para a relevância

do erro nos motivos que não seja um erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio,

pode ajudar a demarcar o âmbito de aplicação do art. 251.º, esclarecendo

concomitantemente o sentido da norma residual prevista no n.º 1 do art. 252.º.

4.2. O âmbito de aplicação do art. 251.º do Código Civil – as facti-species que se

subsumem à sua previsão

A compreensão da opção do nosso legislador histórico de fundar o regime da venda

de coisas defeituosas no regime do erro implica ainda um esclarecimento sobre o âmbito

interesses que a levam a concluir o negócio e deve verificar se realmente as circunstâncias que se pressupõe existirem são ou não reais.

Parece-nos, efetivamente, que qualquer vendedor ou comprador diligente estranharia se lhe dissessem que ele tem obrigação de verificar

se, por exemplo, o tecido que vende ou o automóvel que compra têm ou não a composição ou a antiguidade que são determinantes para a

outra parte (comprador ou vendedor) concluir o negócio. Este é que, como interessado nessa circunstância, deve ter o ónus de a levar a

ser tomada em consideração no conteúdo do negócio, não se limitando a meras indicações sobre a sua essencialidade. Se propuser o

condicionamento ao vendedor, este poderá então, ou aceitar, ou, se preferir, ficar livre para concluir um outro negócio firme”. V. PAULO

MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 381. O A. observa que o pressuposto de

relevância exigido pelo art. 247.º acaba por conduzir a resultados aos interesses do declaratário e da segurança do comércio jurídico,

dispensam uma proteção ainda menor do que o sistema do tipo “livre indemnização contra anulação” consagrado no BGB. É que aqui o

errante fica obrigado, independentemente de culpa, a indemnizar o declaratário pelo interesse contratual negativo (§ 122/1 do BGB), o

que permite cobrir até à medida do “dano da confiança” os prejuízos do declaratário, que confiou na validade da declaração. Entre nós

não existe esta possibilidade já que a única indemnização possível é a prevista no art. 227.º que pressupõe a culpa do errante. 383 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 379.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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de aplicação do art. 251.º. Vamos abordar apenas as hipóteses de erro sobre o objeto do

negócio, pois é este que releva, tendo em conta a sua relação com a garantia edílica.

É entendimento corrente na nossa doutrina que o erro relevante, para efeitos do art.

251.º, que recaia sobre o objeto do negócio, abrange tanto o objeto material como o

jurídico (conteúdo)384 e no que respeita ao objeto material pode reportar-se quer à sua

identidade, quer às suas qualidades385. O erro sobre a identidade do objeto (ou sobre as

suas qualidades identificativas) engloba as hipóteses de error in corpore e de error in

substantia386. O error in corpore é um erro sobre a identidade do objeto. Assim, utilizando

um exemplo dado por Baptista Machado387, será o caso de determinada pessoa que compra

uma caneta porque julga erroneamente que foi com ela que Bismark assinou o tratado de

paz de Frankfurt. Cabem também nesta categoria os casos de diversidade de autoria de

obras de arte. Assim, “se se presume que certo quadro é da autoria do pintor X, quando, na

realidade, foi pintado pelo artista Y, o objeto do negócio jurídico não é o quadro tido em

consideração pelas partes”388. O error in substantia é um erro sobre a matéria389. Assim,

384 Neste sentido, pode ver-se OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., vol. II, pp. 147 e 147; e MENEZES CORDEIRO,

Tratado de Direito Civil, cit., vol. I, pp. 825 e segs. 385 O facto de o erro relevante quando referido ao objeto do negócio se poder reportar quer à sua entidade, quer às suas qualidades denota

a influência no regime do erro consagrado no Código Civil, da doutrina preconizada por Zitelmann. Zitelmann entendia que o erro

poderia recair sobre os motivos da ação (“Motivirrtum”), sobre a sua consciência (“Bewusstseinsirrtum”), ou na intenção reportada aos

efeitos da ação (“Absichsirrtum”). O primeiro momento não faria parte da declaração de vontade pelo que o erro nos motivos seria

considerado, em princípio, irrelevante, apenas se tornando atendível por força do direito positivo como “erro nos motivos”. Este era,

aliás, segundo Zitelmann, o único erro com relevância própria. V. ERNST ZITELMANN , Irrtum und Rechtsgeschäft, cit., pp. 435 e segs.

Partindo da distinção entre intenção e motivos, Zitelmann concluiu que o erro sobre a identidade e sobre as qualidades do objeto só pode

ser um erro sobre os motivos, pois a representação da identidade e dos motivos não entraria a fazer parte daquela intenção. 386 Romano Martinez distingue a este propósito o error in corpore, o error in substantia e o error in qualitate, e considera que só os dois

primeiros seriam casos de erro em sentido técnico-jurídico, subsumíveis ao art. 251.º, e aos quais se poderia aplicar o regime geral do

erro. Pelo contrário, existindo um error in qualitate encontrariam aplicação as regras do cumprimento defeituoso. O error in corpore é

um caso de erro sobre a identidade. Como refere o Autor, “[h]á erro sobre a identidade se o objecto do negócio jurídico é distinto

daquele que as partes tinham em vista ao ajustarem o contrato; isto é, se as características indicadas não pertencerem àquela coisa, mas a

outra do mesmo tipo”. Cabem também nesta categoria os casos de diversidade de autoria de obras de arte. O error in substantia é um

erro sobre a matéria. Segundo Romano Martinez, estes dois tipos de erro, em que o comprador atribui ao objeto comprado qualidades ou

préstimos próprios de outro tipo de coisas. Diversamente, nos casos de error in qualitate, que seriam os casos em que a coisa não tem as

qualidades próprias das coisas do seu tipo – como se alguém adquire um automóvel que devido a uma avaria no motor não funciona, não

haveria erro mas sim defeito, aplicando-se, por isso, as regras do cumprimento defeituoso – v. Cumprimento Defeituoso em especial na

Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 55. 387 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 48. 388 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 55. Segundo o Autor,

estas situações de diversidade de autoria de obras de arte distingue-se das de falta de autenticidade. Nas primeiras há erro sobre a

identidade e nas segundas error in substantia. No entanto, como a estas duas modalidades de erro se aplica, segundo o Autor, o mesmo

regime, não seria necessária uma delimitação exaustiva.

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por exemplo, se alguém adquire um colar pensando que é de pérolas naturais quando na

realidade é de pérolas de cultura390. Caberiam também nesta categoria as hipóteses de falta

de autenticidade de obras de arte.

Diversamente, os casos em que o erro se reporta às qualidades do objeto, que seriam

os casos de “erro sobre as qualidades” (error in qualitate), seriam os casos em que a coisa

não tem as qualidades próprias das coisas do seu tipo. Assim, por exemplo, “se alguém

compra um automóvel na convicção errónea de que ele não tem defeitos de

funcionamento”391.

Nos dois primeiros casos há erro (error in corpore e error in substantia), que é um

erro sobre a identidade do objeto (ou sobre as qualidades identificativas): o declarante

(comprador) atribuiu à coisa qualidades ou préstimos que são próprios de outro tipo de

coisas. Discute-se, no entanto, se este erro, embora previsto no art. 251.º como um erro-

vício, não deveria ser antes um erro na declaração. Não é, porém, a estas hipóteses que se

reporta a garantia edílica.

A garantia edílica reporta-se às hipóteses em que faltam à coisa as qualidades

próprias das coisas do seu tipo. Assim, os vícios redibitórios seriam casos de error in

qualitate. A inclusão do error in qualitate no âmbito de aplicação do art. 251.º do Código

Civil é, porém, controversa na doutrina. Embora na perspetiva do nosso legislador exista

uma coincidência entre os pressupostos de facto entre erro sobre as qualidades e garantia

edílica, os Autores que defendem o enquadramento do regime da venda específica de

coisas defeituosas no regime do incumprimento (cumprimento defeituoso) excluem o error

in qualitate do âmbito de aplicação do art. 251.º. Assim, relativamente ao error in qualitate

pode discutir-se se há erro ou incumprimento, pode discutir-se a relação entre erro e

incumprimento e pode discutir-se se este erro é um erro na declaração ou nos motivos.

389 Como refere Romano Martinez, no Digesto, considerava-se existir error in substantia se era vendido vinagre em vez de vinho, bronze

por ouro ou chumbo por prata. (D. 18.1.9.2) e ainda se havia engano quanto ao sexo do escravo comprado (D. 18.1.11.1). Neste caso,

considerava-se que a venda era inválida. Mas, em contrapartida, estabelecia-se que a venda era válida se fosse vendida coisa de outro de

pior qualidade da que o comprador estimava (D. 18.1.10). 390 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 47. O A. observa que na

doutrina alemã há opiniões contrárias por influência do princípio da especialidade, que consideram as divergências relativas à substância

como um defeito. Assim, por exemplo, relativamente ao exemplo de Larenz, de alguém que adquire um anel julgando que é de ouro

quando na realidade é de prata dourada, Larenz qualifica esta falta de identidade como um defeito, considerando que só há diferença de

identidade (na venda específica) quando a coisa entregue seja outra em relação àquela que foi individualmente designada – v. Lehrbuch

des Schuldrechts, cit., II, p. 38. 391 PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. I, anotação ao art. 251.º, p. 235.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Todas estas questões dependem de saber o que se pode considerar abrangido no objeto do

acordo e, por isso, da conceção que se adote quanto ao objeto da compra e venda de coisa

específica.

4.3. A configuração do erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio

como erro nos motivos ou como erro na declaração

Tendo em conta a regulamentação do erro, tal como ela se encontra consagrada no

Código Civil de 1966, poderia considerar-se descabida a questão da qualificação do erro

sobre o objeto do negócio como erro-vício ou como erro na declaração.

O legislador português distinguiu os casos de erro-vício dos casos de erro na

declaração, embora tenha sujeitado os primeiros, previstos no art. 251.º, aos pressupostos

objetivos de relevância do erro na declaração. Isto significa que o erro sobre o objeto do

negócio e, portanto, também o chamado “erro sobre as qualidades”, a que se refere a

garantia edílica, está previsto no art. 251.º do Código Civil como um caso de erro-vício,

que é um erro nos motivos, e não um erro na declaração, apesar de a lei o equiparar a este

último, no que diz respeito aos pressupostos objetivos de relevância. Note-se, porém, que

apesar desta equiparação, que resulta da remissão feita pelo art. 251.º para o art. 247.º, a

distinção entre o erro-vício e o erro na declaração poderá ter ainda alguma relevância392.

Com efeito, nos termos do art. 247.º, para que o erro-obstáculo seja atendível, basta que

seja essencial, podendo incidir sobre qualquer elemento da declaração e não apenas sobre

determinados elementos, como se prevê no art. 251.º, que apenas considera atendível o

erro-vício que se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio. Por outro lado, o

art. 248.º, que permite que o declaratário obste à anulação do negócio se se dispuser a

aceitá-lo como o declarante o queria, apenas será aplicável ao erro na declaração393.

Assim, a discussão sobre a qualificação do erro sobre o objeto como erro-vício ou

como erro na declaração teria relevância, pelo menos, quanto à possibilidade de se aplicar

aqui o art. 248.º, o que dependeria da qualificação deste erro como erro na declaração.

A questão assume naturalmente maior importância no direito alemão devido ao

próprio regime do erro sobre as qualidades. Para efeitos do § 119/2 do BGB só relevam as

392 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 347. 393 V. PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., p. 347.

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qualidades tidas como essenciais no tráfico, e, por outro lado, coloca-se aqui o problema da

relação com preceitos especiais, designadamente relativos à garantia por vícios da coisa394.

Assim, discute-se na doutrina alemã, desde o início do século, a relação do § 119/2 com o

§ 119/1 do BGB, dependendo a resposta da qualificação do erro sobre as qualidades

(“Eigenschaftsirrtum”), previsto § 119/2 do BGB, como um erro-vício ou como um erro na

declaração. A resposta a esta questão, por sua vez, prende-se com o objeto do acordo

negocial e, portanto, anda também conexa com os limites do erro em relação à inexecução

do contrato, que a nossa doutrina discute a propósito da remissão feita pelo art. 905.º,

aplicável por força do art. 913.º, para o regime do erro. Na doutrina alemã, a posição

tradicional, que corresponde à de Zitelmann, e que é atualmente defendida por Larenz,

configura este erro como um erro-motivo, excepcionalmente relevante, que apenas por

força da lei seria equiparado ao erro na declaração395. A esta posição contrapõe-se a

394 O problema da relação entre a garantia por vícios e o erro foi sempre muito debatida mas o seu vigor veio a perder-se com a

modernização. 395 É esta a opinião sufragada por LARENZ – v. Derecho Civil, Parte General, Editorial Revista de Derecho Privado, Editoriales de

Derecho Reunidas, (traducción y notas de Miguel Izquierdo y Macías-Picavea), pp. 519 e 520. O A. defende que o erro na qualidade é

normalmente um erro nos motivos, que apenas por força da lei seria equiparável ao erro na declaração. O erro na identidade seria o caso

limite em que o erro na qualidade, dado que se refere precisamente à qualidade pela qual o declarante identifica o objeto, se converte em

erro na declaração: “Excepcionalmente, o erro na qualidade é, por sua vez, um erro na declaração quando aquele que efetuou a

declaração tiver individualizado o objeto no seu conceito só mediante a qualidade a respeito da qual incidiu o erro e, por isso, tiver

figurado um objeto distinto do designado por ele na sua delaração”. Larenz explica a sua posição recorrendo a um exemplo de Titze. A

oferece a B por escrito o seu cavalo de corrida “Nixe”. Devido a uma confusão no nome, B supõe que o cavalo Nixe é famoso por ter

ganho vários prémios e por esse motivo aceita a oferta. Na realidade, quem ganhou os prémios foi um outro cavalo de A; o cavalo

“Nixe” nunca foi galardoado. Segundo Larenz, esta hipótese poderia ser qualificada como uma situação de erro nas qualidades (erro nos

motivos) no caso de o cavalo oferecido a B com o nome de “Nixe” já lhe ter sido apresentado, de tal forma que este o identificou porque

já conhecia o seu aspeto físico, embora tendo acreditado erroneamente que o cavalo que lhe tinha sido apresentado ganhara vários

prémios. Neste caso, no momento em que emitiu a sua declaração, B queria efetivamente comprar o cavalo “Nixe” que conhecia pelo

seu aspeto, embora na ideia errônea de que este havia sido galardoado. O caso seria distinto, configurando uma situação de erro na (no

conteúdo da) declaração, se B nunca tivesse visto o cavalo e sob o nome de “Nixe” tivesse pensado num cavalo distinto daquele que

tinha esse nome, um cavalo de que ele apenas sabia que tinha ganho já vários prémios e se, portanto, a suposta qualidade de ter sido

galardoado o cavalo que lhe foi oferecido em venda tivesse sido para ele a única característica a partir da qual o identificou. Neste caso,

B teria pensado, de facto, num cavalo distinto do designado por esse nome. O seu erro seria um erro sobre a identidade e seria um erro

sobre o conteúdo, sobre o significado da declaração. Larenz reconhece que ambos os casos são muito semelhantes entre si e portanto

justifica-se que a lei dê o mesmo tratamento jurídico ao erro sobre uma qualidade essencial no tráfico da pessoa ou da coisa e ao erro na

declaração. Não obstante (e contra a opinião de Titze que considera irrealizável a distinção entre erro na declaração e erro na qualidade),

Lazenz considera que se pode, em princípio, distinguir: o erro na qualidade é, segundo Larenz, normalmente, um erro nos motivos. O

erro na identidade é o caso limite em que o erro na qualidade, dado que se refere precisamente à qualidade pela qual o declarante

identifica o objeto, se converte em erro na declaração. Esta posição de Larenz foi comentada, entre nós, por BAPTISTA MACHADO,

“Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 63 a 65, que considera que em ambos os casos estamos perante erros

na declaração, pois mesmo se o objeto foi identificado espácio-temporalmente, o declarante empregaria o nome “Nixe” para identificar o

cavalo premiado: «errar sobre o quid designado é errar sobre o significado da expressão designativa enquanto expressão destinada a

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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posição defendida por Flume396, que configura este erro como um “erro negocial sobre as

qualidades”, que entram a fazer parte do conteúdo contratual. Há ainda uma posição, mais

recente, defendida por Schmidt-Rimpler397, que configura este erro como um erro no

conteúdo da declaração e, por fim, uma outra, defendida por Kramer, à qual adere, entre

nós, Baptista Machado, que considera que estamos aqui perante um “erro sobre a

realidade”. Como refere Baptista Machado, este erro deve configurar-se como “um erro

sobre a base do acordo relativo à especificação do objeto, verificado no momento em que

simultâneamente se conclui e se faz aplicação do negócio. Trata-se, pois, de um fenómeno

de divergência entre o negócio (como norma) e a realidade, capaz de interferir com a

possibilidade, ou com a exigibilidade, de um cumprimento pontual (perfeito).”398.

Entre nós, uma análise desta problemática poderia partir da seguinte interrogação:

tendo em conta que quer o art. 251.º, quer o art. 252.º, n.º 1, se referem a casos de erro nos

motivos, porque terá o legislador sujeitado os primeiros (e só os primeiros) ao regime do

erro na declaração? A razão apontada para a sujeição dos primeiros – erro sobre a pessoa

do declaratário ou sobre o objeto do negócio – ao regime do erro na declaração é o facto de

existir, por um lado, uma grande dificuldade de distinção e, por outro, “uma semelhança

tão profunda” entre as hipóteses previstas no art. 251.º e o erro na declaração que tornaria

recomendável que o tratamento jurídico fosse o mesmo 399. Assim, por exemplo, “se A

propõe a B a compra do prédio n.º 10 da rua Z, querendo dizer n.º 20 ou pensando

(erroneamente) que este n.º 20 tem o n.º 10, por ser esse o prédio em que viveu a sua mãe,

temos um erro na declaração. Se A diz n.º 10 e quer mesmo dizer n.º 10, e se o prédio é

manifestar uma vontade. É intuitivo que, para efeitos de regulamentação jurídica, não há diferença entre atribuir B ao nome “Nixe” um

sentido erróneo ou atribuir ao cavalo “Nixe” (seu conhecido) qualidades de outro cavalo». No mesmo sentido, v. CARNEIRO DA FRADA,

“Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., nota 27. 396 WERNER FLUME, “Eigenschaftsirrtum und kauf”, Münster, 1948, pp. 100 e segs. 397 SCHMIDT-RIMPLER, “Eingenschaftsirrtum und Erkärungsirrtum”, FS Heinrich Lehmann, I, 2.ª ed. (Berlin – Tübingen – Frankfurt a.

M., 1965), pp. 213 e segs., pp. 220 e segs. 398 V. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 76. O Autor considera que o regime

jurídico que melhor se adequa a este fenómeno é um regime jurídico sui generis que pode ser concebido como uma adaptação ao caso do

regime do cumprimento defeituoso. “É que, se, por um lado, o vendedor se acha obrigado a prestar uma coisa sem defeito, por outro

lado, dada a especificação do objeto sobre que recaiu a venda, ele não tem desde logo a possibilidade de cumprir exatamente essa

obrigação, por isso que também se acha obrigado, e em primeira linha, a entregar a coisa escolhida, a qual não tem as qualidades

devidas”. Idem, p. 76. 399 V. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. I, anotação ao art. 251.º, p. 235.

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realmente aquele a que pretende referir-se, mas ele está enganado porque não foi nesse,

mas no n.º 20, que a mãe viveu, a hipótese já será de erro-vício”400.

Tendo em conta a dificuldade da tarefa, para muitos irrealizável401, de distinção entre

erro sobre a identidade do objeto (ou sobre as qualidades identificativas) e erro na

declaração, muitos Autores qualificam o erro na identidade como um erro na declaração

(erro-obstáculo), excluindo-o, pois, do âmbito de aplicação do art. 251.º402.

A problemática da qualificação do “erro sobre o objecto do negócio” como erro-vício

ou como erro na declaração não se cinge, porém, a estas hipóteses de fronteira, como é o

caso do erro sobre a identidade do objeto, (ou sobre as qualidades identificativas) mas

estende-se à própria qualificação do “erro sobre as qualidades”, que é configurado por

alguns Autores como sendo sempre um erro na declaração. A qualificação do “erro sobre

as qualidades” como erro-vício ou como erro na declaração depende daquilo que se

considere fazer parte do conteúdo do acordo de venda específica – na venda genérica, já o

referimos, estando o vendedor obrigado a entregar uma coisa com as qualidades normais

do género, a falta destas qualidades consubstancia sempre um problema de não

cumprimento –; neste sentido, aquela qualificação depende em última análise da conceção

que se adote sobre o objeto do acordo na venda específica e até certo ponto da fronteira

entre erro e incumprimento.

Se, na esteira de Zitelmann, se entender que, “quando, através de um acordo, se

estabeleça a obrigação de prestar uma coisa determinada, a vontade jurídico-negocial

abrange apenas a prestação dessa coisa determinada, não se estendendo também às

400 V. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. I, anotação ao art. 251.º, p. 235. 401 Titze defende que a figura do erro é uma figura unitária e que não restaria qualquer espaço para o “Motivirrtum”) (erro sobre os

motivos). V. HEINRICH TITZE, “Vom sogenannten Motiverrtum”, in Fs Ernst Heymann, II, Weimar, 1940, pp. 72 a 111. Entre nós,

considerando o erro nas qualidades identificativas como um erro na declaração, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação

Jurídica, cit., pp. 248 e segs., p. 252. CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, p. 507; H. HÖRSTER, A Parte Geral do

Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil , Almedina, Coimbra, 1992, p. 574. E ainda FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e

Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., vol. I, p. 107, considerando excluído do domínio de aplicabilidade do art. 251.º, para

além de outros, “a generalidade dos casos de erro sobre a identidade aos quais se deve assimilar os de erro sobre as qualidades que

funcionam como identificação, porque se qualificam como erro-obstáculo”. 402 Neste sentido, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, cit., p. 236; FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e

Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol I, cit., p. 107, considerando que do âmbito de aplicação do art. 251.º se excluí “a

generalidade dos casos de erro sobre a identidade, aos quais se devem assimilar os de erro sobre qualidades que funcionam como

identificação, porque se qualificam como erro obstáculo”; no mesmo sentido, LARENZ, que considera que o erro na identidade é o caso

limite em que o erro nos motivos se converte num erro na declaração; JAQUES GHESTIN, La notion d’erreur dans la droit positif actuel,

Paris, 1971, pp. 4 e segs. JEAN CARBONIER, Droit Civil. 4 – Les obligations, 9.ª ed., Paris, 1976, p. 136.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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qualidades da coisa”, os casos em que o vendedor entrega uma coisa sem as referidas

qualidades consubstanciariam necessariamente casos de erro sobre os motivos ou erro-

vício403. É que, de acordo com este entendimento, as qualidades que motivaram ou

fundaram a escolha daquela coisa concreta nunca podem entrar a fazer parte do objeto

negocial, que não pode ser diverso daquilo que a coisa perfeitamente determinada no

espaço e no tempo efetivamente é.

E assim, porque a coisa em si não tem as qualidades que naquele fenómeno

psicológico se deram como verificadas, ou porque as qualidades da coisa em si são

diferentes daquelas que foram mentalmente representadas, a vontade formou-se

erradamente – haverá erro e este erro será um erro nos motivos ou erro-vício404.

E haveria erro nos motivos ou erro-vício quer nos casos em que o comprador adquire

a coisa (específica) por a supor dotada das qualidades próprias das coisas do mesmo

género, quer naqueles em que o comprador a adquire por a supor dotada de uma qualidade

singular que não é própria do género a que pertence a coisa específica mas de outro género

de coisas405. Em qualquer um destes casos, a vontade declarada do comprador – tendo por

403 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 5 a 95, p. 16. Como refere o Autor,

partindo desta ideia, a doutrina tradicional, baseada na teoria do erro de Zitelmann, encarou o erro sobre as qualidades da coisa como um

erro-motivo, o qual apenas por força da lei seria equiparável ao erro na declaração. Defendendo que “o erro sobre as qualidades do

objecto é sempre – fora das hipóteses da garantia edílica, em que não há verdadeiro erro – um erro na declaração”, v. BAPTISTA

MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 58. 404 A vontade declarada do comprador, tendo por objeto a coisa específica, coincide com a sua vontade real, pois que o comprador quis

efetivamente aquela coisa concreta; só que esta vontade real acha-se viciada por erro na sua formação, visto o comprador ter querido

aquela coisa por a supor dotada de determinadas qualidades. Por esta razão, a doutrina tradicional alemã encarava o erro sobre as

qualidades da coisa como um erro-motivo, o qual apenas por força da lei seria equiparável ao erro na declaração. 405 A doutrina que configura nestes termos o objeto da venda de coisa específica não distingue, assim, os casos em que o erro incide

numa característica ou qualidade singular da coisa (não fungível) – por exemplo, o caso em que A adquire um quadro por pensar

erroneamente que é da autoria de um determinado pintor célebre quando, na realidade, é de um outro pintor da sua escola – dos casos em

que o defeito consiste na falta de uma característica ou qualidade comum a todas as coisas da categoria ou do tipo da coisa individual

designada – por exemplo, o caso em que A adquire uma máquina de barbear e a máquina não barbeia. Os casos em que o comprador

adquire a coisa por a supor dotada de qualidades que não são próprias desse género, mas de outro género de coisas, podem constituir um

erro em sentido técnico (erro sobre a identidade) desde que se trate de qualidades que foram apenas pressupostas pelo comprador

(afigurando-se a nosso ver duvidoso que possa existir erro no que diz respeito a qualidades asseguradas ou prometidas pelo vendedor).

Já nos casos em que o comprador adquire a coisa por a supor dotada de qualidades que são próprias do género a que pertence a coisa

específica poderão ou não ser configurados como casos de erro em sentido técnico, consoante a posição que se adote acerca do objeto da

venda específica. Se entendermos, na esteira de Flume, que a vontade negocial se pode referir à coisa como algo que deve-ser, então,

estes casos não seriam casos de erro em sentido técnico, desde que se entenda que estas qualidades por força do uso ou de lei supletiva

(art. 913.º) podem entrar a fazer parte do objeto do acordo. Assim, e porque a interpretação do acordo é um prius em relação ao erro, o

âmbito do erro resultaria desta forma comprimido. Mas não parece poder ser outra a solução, não sendo de admitir um concurso eletivo,

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objeto a coisa determinada e individualizada – coincide com a sua vontade real, pois que o

comprador quis aquela coisa concreta, mas esta vontade real acha-se viciada por erro na

sua formação, visto o comprador ter querido aquela coisa por a supor dotada de

determinadas qualidades, que, na realidade, ela não tem406.

A situação seria naturalmente diferente se estivesse em causa uma compra e venda

de coisa genérica, pois aqui as partes não se referem, no momento da celebração do

contrato, a nenhuma coisa concreta, mas apenas ao próprio género, determinando-se o

objeto do contrato por referência a este, ou seja, por referência às qualidades habituais ou

normais do género407. Assim, na compra e venda de coisa genérica, o conteúdo do acordo

abrangeria as qualidades próprias das coisas que cabem no género declarado, pelo que, se a

coisa entregue não apresenta as referidas qualidades, o problema será (e só poderá ser) de

incumprimento (cumprimento defeituoso).

Note-se, porém, que quer aqueles que, na esteira de Zitelmann, entendem que o

objeto do acordo na venda específica é a coisa concreta, como é, e não a coisa ideal, como

deve-ser, quer aqueles que, com Flume, defendem que a vontade negocial se pode referir à

coisa como algo que deve ser, admitem que, mesmo na venda genérica, o erro só está

afastado nesta situação, ou seja, quando o vendedor entrega uma coisa sem as qualidades

habituais ou normais do género. Como observa Baptista Machado, se com a designação do

género o comprador pretendeu designar qualidades próprias de outro género de coisas, por

estar erroneamente convencido que a coisa (a que se refere a expressão designativa

utilizada) apresentava essas qualidades, o problema já será de erro, e não de

incumprimento (cumprimento defeituoso) do contrato. É curioso notar, como refere o

Autor, que os partidários da conceção de Zitelmann qualificam este erro na venda genérica

pelo facto de as normas se situarem em planos diferentes e se excluírem mutualmente. V. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro

na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 24. 406 Como observa Romano Martinez, “[o] problema da distinção entre o erro e o defeito depende do que se entenda estar abrangido na

declaração negocial. Para Zitelmann os erros sobre a qualidade e sobre a identidade têm a mesma natureza psicológica, pelo que é

indiferente estar enganado quanto à identidade da coisa ou em relação à sua qualidade. Daí que, para este Autor, o erro sobre a qualidade

não pode ser visto como um defeito e não há consenso sobre o objeto contratual sempre que uma parte estiver enganada quanto à

qualidade” – v. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 51. 407 A venda de coisa genérica distingue-se da venda de coisa específica na medida em que naquela as partes não se referem, no momento

da celebração do contrato, a nenhuma coisa concreta, mas tão-só ao próprio género, enquanto representação de todas as coisa que o

compõem. Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , “Transmissão da propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas

genéricas”, in Themis, ano VI, n.º 11 (2005), p. 20. Sobre a distinção entre obrigações específicas e obrigações genéricas, v. ANTUNES

VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pp. 819 e segs.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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como um erro na declaração, por considerarem que, se o comprador (declarante) está em

erro sobre as qualidades da coisa a que se refere a expressão designativa que utiliza,

também houve erro na escolha desta expressão, pois com ela o comprador quis designar

um quid que, não estando na coisa designada, também não está, ao contrário do que ele

supunha, contido no significado da expressão designativa utilizada408. A ser assim, poder-

se-ia questionar porque é que a mesma doutrina, na venda específica, qualifica o erro do

comprador que adquire a coisa por a supor dotada de qualidades que não são próprias do

género a que pertence a coisa determinada, mas de outro género de coisas, como um erro

nos motivos. A resposta, mais uma vez, prende-se com o facto de os adeptos da teoria de

Zitelmann considerarem que na venda de coisa específica a coisa determinada e

individualizada há de ser sempre objeto da vontade, não podendo funcionar em vez disso

ou ao lado disso como meio de expressão da vontade negocial409.

O nosso legislador histórico, ao fundar o regime da venda de coisa específica

defeituosa no conceito de erro, considerou que se os defeitos da coisa existirem já no

momento estático da formação da venda é legítimo configurá-los como uma hipótese de

erro sobre as qualidades do objeto, vício da vontade, regulado entre nós no art. 251.º do

408 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 54. 409 Assim, se alguém compra uma coisa determinada por lhe atribuir qualidades próprias de outro género de coisas (alguém compra um

candeeiro de mesa em forma de caixa por supor que se trata de uma máquina de barbear da mesma marca), teríamos aqui, segundo a

doutrina tradicional, um erro nos motivos. Todavia, estando em causa uma venda genérica, se o comprador atribui ao género designado

qualidades próprias de outro género de coisas, a mesma doutrina tradicional qualifica este erro como um erro na declaração. Assim, por

exemplo, se o comprador encomenda uma partida de “álcool industrial” – quando efetivamente lhe interessa adquirir “álcool para

perfurmarias” – por estar erroneamente convencido que o “álcool industrial”, que ele aliás sabia bem o que era, tinha as qualidades e os

préstimos próprios do “álcool para perfurmarias”. A doutrina, mesmo a tradicional, qualifica esta espécie de erro, na venda genérica,

como erro na declaração por considerar que se o comprador (declarante) está em erro sobre as qualidades da coisa a que se refere a

expressão designativa que utiliza, também houve erro na escolha desta expressão, pois com ela o comprador quis designar um quid que,

não estando na coisa designada, também não está, ao contrário do que ele supunha, contido no significado da expressão designativa

utilizada. Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 58. O Autor considera que este

erro, na venda genérica, deveria merecer o mesmo tratamento que o erro semelhante na venda específica, devendo pois ser qualificado

como erro nos motivos: na venda específica, o comprador (declarante), com a indicação individual da coisa, pretendeu designar

qualidades ou préstimos que não são próprios daquele tipo mas de outro tipo de coisas; na venda genérica, o comprador (declarante),

com a expressão designativa utilizada, pretendeu designar qualidades ou préstimos que não são próprios do quid a que se refere aquela

expressão. Note-se que o comprador pode encomendar uma partida de “álcool industrial” quando efetivamente lhe interessa adquirir

“álcool para perfumarias”, por lapso, por simples troca das designações, ou por se convencer que a designação álcool industrial

significava álcool para perfumarias. Nestes últimos casos, já o erro deveria inequivocamente ser qualificado como erro na declaração.

No fundo, está aqui evidenciada a dificuldade de distinção entre erro-vício e erro na declaração, nos casos limite em que está em causa

um erro sobre a identidade do objeto (da venda de coisa específica). Só uma conceção do objeto negocial como a defendida por

Zitelmann pode justificar que se dê o mesmo tratamento jurídico ao erro sobre a identidade e ao erro sobre as qualidades.

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Código Civil e sancionado pela anulabilidade, desde que no caso se verifiquem os

respetivos requisitos legais. Ao considerar que os “vícios redibitórios” não constituem

fundamento autónomo de anulação, por constituírem simples especializações dos regimes

do erro e do dolo, o legislador parece ter considerado que existe uma identidade de

pressupostos de facto nas duas figuras, uma coincidência de facti-specie entre “erro sobre

as qualidades do objecto” e “vícios ou defeitos da coisa vendida”410.

Em suma, a decisão histórica de fundar a garantia edílica no regime do erro parece

arrancar do dogma tradicional, ancorado na doutrina do erro de Zitelmann, de que o objeto

da venda de coisa específica é a coisa tal como é, a coisa concreta, e não a coisa ideal,

como deve-ser. Porque para o nosso legislador histórico o objeto da venda específica é a

coisa concreta, na venda de coisa específica as qualidades pressupostas ou asseguradas

pelo vendedor, a que se refere o art. 913.º, não entram a fazer parte do dever ser contratual,

não são contratualmente devidas. Assim, o vendedor cumpre – e cumpre bem – quando

entrega a coisa individualizada, da qual, aliás, o comprador já é proprietário, dado o

princípio da eficácia translativa imediata do contrato de compra e venda de coisa específica

[arts. 408.º, n.º 1, e 879.º, alínea a)]411.

410 O exemplo dado por Pires de Lima e Antunes Varela, de “alguém [que] compra um automóvel na convicção errónea de que ele não

tem defeitos de funcionamento”, parece corroborar este entendimento. Teria sido uma forma de contornar a vexata quaestio das relações

entre a garantia edílica e o regime do erro. 411 Refira-se, aliás, que, nos termos do art. 882.º do Código Civil, o vendedor está obrigado a entregar a coisa no estado em que ela se

encontrava no momento da venda. Esta conceção, de acordo com a qual o vendedor cumpre – e cumpre bem – quando entrega a coisa

individualizada pelo comprador, mesmo que esta apresente defeitos ou falta de qualidades, está em linha com aquela em que

classicamente se baseia a garantia edílica na generalidade dos sistemas de direito codificado, de tradição romano-germânica. Os meios

edílicos seriam apenas formas de reação, ou mecanismos de correção e restabelecimento, de um equilíbrio entre as prestações contratuais

do vendedor e do comprador (Subjektive Äquivalenz) que se frustrou pela ocorrência de vícios da coisa. É esta a posição perfilhada por

LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., II/1, pp. 67 e 68. O A. considera que na venda de coisa específica a entrega de uma coisa com

qualidades e sem defeitos não faz parte do conteúdo do dever de prestar do devedor. O devedor teria apenas de prestar a coisa no estado

de facto em que ela se encontra, pelo que o fundamento da responsabilidade do devedor não está na violação do seu dever de prestar,

mas na frustração de expectativas do comprador acalentadas justificadamente, segundo as circunstâncias, no momento da celebração do

contrato. V. Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 68. 411 CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p. 463.

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5. O fundamento da recondução do regime da venda de coisas defeituosas ao

paradigma do não cumprimento (cumprimento defeituoso)

A recondução do regime da venda de coisas defeituosas ao paradigma do não

cumprimento aproxima a compra e venda de coisa específica da compra e venda de coisa

genérica, já que nesta, a entrega de coisa defeituosa consubstancia sempre um não

cumprimento (cumprimento defeituoso) do contrato de compra e venda412, aplicando-se-

-lhe, por força do art. 918.º, 2.ª alternativa, do Código Civil, as regras relativas ao não

cumprimento das obrigações, (arts. 790.º a 812.º do Código Civil)413.

O fundamento da recondução do regime da compra e venda de coisas defeituosas ao

paradigma do não cumprimento tem como premissa a ideia, surgida de um estudo

elaborado por Flume, e desenvolvida, entre nós, por Baptista Machado, de que, tal como na

venda de coisa genérica, também na venda de coisa específica a vontade negocial pode

estender-se às qualidades da coisa como algo que “deve ser”. Assim, na compra e venda de

coisa específica, o acordo negocial referir-se-ia à coisa concretamente determinada e

individualizada, não como algo que é, mas como algo que deve-ser, isto é, como coisa

dotada de determinadas qualidades414. Podendo conceber-se o objeto da venda específica

como a coisa ideal, com qualidades, o problema do enquadramento do regime da venda de

coisas defeituosas, e a sua relação com o regime do erro, passou a ser visto a uma luz

completamente diferente: “em toda a medida em que as qualidades da coisa vendida devam

considerar-se abrangidas pelo acordo não se põe um problema de erro na formação do

contrato”415.

Partindo deste pressuposto, Baptista Machado procurou demonstrar que o

fundamento da recondução do regime da venda específica de coisas defeituosas ao

412 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 195. 413 Isto mesmo resulta do disposto no art. 918.º, 2.ª alternativa, do Código Civil, no qual se determina que, “[quando] a venda respeitar a

coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género [...], são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações”. 414 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 17; e CARNEIRO DA FRADA, “Erro e

incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p. 474. Pode ver-se a este propósito o exemplo dado

por Calvão da Silva: “se A compra a B determinado terreno com a finalidade expressa e por ambos assumida de nele construir uma

vivenda com certas características, não se pode negar que no acordo contratual entra este terreno com a qualidade ou função prevista –

a edificação da vivenda. É que a vontade das partes não se dirige apenas a este terreno, hie et nunc determinado, mas unitária e

incindivelmente a este terreno suposto ou representado como aedificandi” – cfr. Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 55. 415 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 18.

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paradigma do erro é equivocado: na compra e venda de coisa específica, tal como na

compra e venda de coisa genérica, o acordo negocial abrangeria as qualidades da coisa416.

A consequência seria, pois, a recondução do regime da venda de coisas defeituosas ao

paradigma do não cumprimento (cumprimento defeituoso). Como explica o Autor, se as

qualidades que a coisa vendida deve possuir – que são as qualidades próprias das coisas do

mesmo tipo e essenciais à sua destinação económica – ingressam, mediante um acordo

expresso ou tácito, no conteúdo vinculativo do contrato, então, o vício da coisa, que

consiste precisamente na falta daquelas qualidades, encontra o seu fundamento na não

conformidade da coisa com o conteúdo do contrato417.

Ficaria assim afastada a recondução do regime da venda de coisa específica

defeituosa ao paradigma do erro sobre as qualidades da coisa vendida, já que não existiria

aqui qualquer divergência entre a vontade real do comprador e o sentido juridicamente

válido da sua declaração, mas antes uma desconformidade entre a coisa entregue tal como

é e a coisa contratualmente devida, como deve-ser. Esta desconformidade entre o ser e o

dever ser, por consubstanciar um problema de não cumprimento ou cumprimento

defeituoso do contrato, deveria, assim, reconduzir-se a esse paradigma418.

416 Entre os Autores que defendem a recondução do regime da venda de coisas defeituosas ao conceito de erro, merece uma referência a

posição defendida por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Cumprimento Defeituoso e a Venda de Coisas Defeituosas, in Ab Uno ad Omnes,

75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 567 e segs. O Autor defende que o regime da venda de coisas defeituosas, quando

referido a coisas específicas (não genéricas), se fundamenta na base do negócio e, consequentemente, no regime do erro ou dolo do

comprador. Assim, o autor entende que existe uma distinção clara entre o campo de aplicação do regime da venda de coisas defeituosas

e o do cumprimento defeituoso. A aplicação do primeiro pressupõe que o comprador se encontre em erro sobre as qualidades da coisa

que o vendedor está vinculado a prestar por efeito do negócio; assim sucede, por exemplo, quando o comprador convenciona a aquisição

de uma coisa pensando que ela tem certas qualidades, que na realidade não possui. Já no segundo, considera o Autor, “o comprador tem

direito a receber, em cumprimento da estipulação negocial, uma coisa com qualidades diferentes daquelas que possui a coisa

efectivamente (mas indevidamente) prestada (por exemplo: o comprador negoceia, com ou sem erro, a aquisição de uma coisa com

certas qualidades e o vendedor entrega uma outra coisa sem essas qualidades)”. Pires de Lima e Antunes Varela, por sua vez, defendem

que são as conotações de carácter objetivo, mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes, que servem de real

fundamento do regime especial da venda de coisas defeituosas, consagrado nos arts. 913.º e segs. do Código Civil. Cfr. PIRES DE

LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. II, pp. 205 e segs. As soluções da lei não visam assim, segundo os Autores,

garantir o estrito cumprimento dos deveres de prestação contraídos pelas partes, mas “mergulham as suas raízes mais fundas no princípio

da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos em geral e à compra e venda em especial”. Isto explica, no entender dos

Autores, que o regime da venda de coisas defeituosas seja indistintamente aplicável a casos de simples erro nos motivos, de verdadeiro

erro na declaração e a situações em que nenhum erro existe por parte do comprador na formação do contrato. 417 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 75. No mesmo sentido, v. CARNEIRO DA

FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p. 463. 418 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 58.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Como refere Baptista Machado, as qualidades que a coisa específica deve possuir

seriam, na falta de um acordo expresso, as qualidades próprias das coisas do mesmo tipo,

ou seja, das coisas a cujo género pertence a coisa específica, valendo a própria coisa

individualizada, objeto do contrato, como meio de expressão da vontade de adquirir uma

coisa com as referidas qualidades419. Assim sendo, tal como na compra e venda de coisa

genérica, também na compra e venda de coisa específica o acordo negocial poderia

estender-se às qualidades da coisa, estando, por conseguinte, o vendedor, em ambos os

casos, obrigado a entregar uma coisa com as qualidades normais do género420. Em caso de

compra e venda de coisa genérica, o dever de entregar ao comprador uma coisa com as

qualidades normais decorreria implicitamente do art. 400.º, n.º 1, do Código Civil, no qual

se dispõe que a determinação da prestação “deve ser feita segundo juízos de equidade, se

outros critérios não tiverem sido estipulados”. Isto significa, que nem o devedor pode

entregar, em prejuízo do credor, “coisas da pior qualidade”, nem o credor pode exigir, em

prejuízo do devedor, “coisas da melhor qualidade”. Em caso de compra e venda de coisa

específica, o dever de entregar ao comprador uma coisa com as qualidades normais do

género resultaria explicitamente do art. 913.º do Código Civil, que seria, assim, uma norma

de interpretação e integração das declarações de compra e venda421.

Baptista Machado salienta, contudo, que (apenas) nos casos em que, através de uma

operação de interpretação do negócio jurídico, se apure que determinadas qualidades da

coisa vendida, muito embora tenham motivado o comprador a adquiri-la, não integram o

conteúdo vinculativo do contrato, que não corresponde, assim, à vontade que o comprador

419 Neste sentido, v. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 49. O Autor entende que as

qualidades da coisa podem ser cobertas pela vontade negocial e que essa vontade se expressa por meio da própria coisa individualmente

designada. Ora, isto obriga a fazer passar a coisa “de objecto da declaração e da vontade para meio de expressão da própria declaração

de vontade”. No mesmo sentido, v., ainda, CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse

do comprador”, cit., pp. 475 e 476; e FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., pp. 654 e segs. 420 Cfr. NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 8. O comprador de coisa específica designaria o género de uma forma

indireta – ao declarar que quer adquirir uma coisa determinada, o comprador de coisa específica estaria a dizer que quer adquirir uma

coisa (determinada) “com as qualidades e os préstimos próprios das coisas daquele género”. Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Acordo

negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 78. O comprador de coisa genérica, esse, designaria o género de uma forma

direta. 421 Cfr. NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 8. Por força do art. 913.º as qualidades próprias do género a que pertence a

coisa específica incluir-se-iam na própria declaração negocial, pelo que o comprador não estaria em erro relativamente a essas

qualidades.

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154

quis emitir, se poderia falar na existência de um erro sobre as qualidades do objeto, erro

este que teria a sua origem na fase estipulativa do negócio422.

5.1. A relação entre erro-vício na modalidade de erro sobre o objeto do negócio e o

incumprimento: a possibilidade de cúmulo ou concurso entre as normas

relativas aos pressupostos do erro e as normas relativas aos pressupostos do

incumprimento

Admitindo que na venda de coisa específica a vontade negocial se pode estender às

qualidades da coisa como algo que deve-ser, é possível fundar a garantia edílica no pólo do

incumprimento (cumprimento defeituoso do contrato). Importa, pois, esclarecer qual é o

critério de distinção entre erro e incumprimento. Em termos gerais, podemos afirmar que o

critério que permite distinguir as situações de erro (em sentido técnico) das situações de

incumprimento é o da adequação do negócio efetivamente celebrado entre comprador e

vendedor à vontade que aquele quis manifestar em ordem à prossecução do seu

interesse423. Por outras palavras, para destrinçar as hipóteses de incumprimento das de erro,

o essencial seria averiguar como se relacionam entre si o ponto de vista subjetivo do

comprador e o próprio negócio424. Nestes termos, haveria erro sempre que o defeito resulte

da falta de qualidades que apenas existem na representação das partes, não fazendo parte

do conteúdo do acordo; pelo contrário, dir-se-ia haver incumprimento quando o defeito

resulte da falta de qualidades que se podem considerar abrangidas pelo conteúdo do

acordo.

422 Neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p.

463. Como salienta o A., o critério que permite distinguir as situações de erro das situações de incumprimento é o da adequação do

negócio efetivamente celebrado à vontade que o comprador quis manifestar em ordem à prossecução do seu interesse. No mesmo

sentido, pode ver-se, ainda, CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., pp. 57 e 58. O Autor dá o seguinte

exemplo: A compra uma determinada cómoda porque supunha erroneamente que a mesma fosse de pau-santo, mas na realidade não é.

Neste caso, na medida em que o comprador não deu relevância negocial ao seu interesse real, a qualidade que ele erroneamente supunha

existir não faz parte do conteúdo vinculativo do contrato, não sendo, portanto, uma qualidade devida pelo vendedor. Assim sendo, o

problema é de erro, visto que o negócio tem um sentido diferente do correspondente à vontade real do comprador. 423 CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p. 463. 424 Neste sentido, BARCELLONA, Profili dela teoria dell’errore nel negozio giuridico, Milão, 1962, p. 43. Se o negócio tem um conteúdo

correspondente à vontade que o comprador quis emitir, então a sua correta execução permitirá a satisfação do interesse que o comprador

teve em vista ao contratar (compra de uma coisa com determinados préstimos); quando a coisa efetivamente entregue é inidónea à

satisfação dos interesses do comprador, o problema é de incorreta execução do acordado.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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Quando se admite a recondução do regime da venda (específica) de coisas

defeituosas, previsto nos arts. 913.º e segs., ao regime geral do não cumprimento, deverá

ainda resolver-se o problema de um possível cúmulo ou concurso entre as normas relativas

aos pressupostos do erro e as normas relativas aos pressupostos do incumprimento. Em

concreto, deveria analisar-se a relação entre o erro sobre as qualidades e o regime da venda

de coisas defeituosas, consagrado nos arts. 913.º a 922.º do Código Civil. Importa, a este

propósito, analisar duas posições extremas: as que admitem a existência desse cúmulo ou

concurso e as que rejeitam essa possibilidade por entenderem que os dois tipos de normas

se excluem reciprocamente. As posições que defendem a possibilidade de existência de um

cúmulo ou concurso podem enveredar por dois caminhos. Um dos caminhos consiste em

considerar que as normas legais sobre vícios ocultos, por se tratar de normas especiais,

preferem relativamente às regras gerais do erro425 – foi este o caminho trilhado de forma

quase unânime pela doutrina alemã antes da Modernização do BGB, embora se

considerasse duvidoso que as normas legais sobre os vícios redibitórios afastassem as

disposições do dolo 426. Em Inglaterra, a jurisprudência acabava por chegar a idêntico

resultado, embora sem invocar o princípio da especialidade, na medida em que se limitava

425 Sobre as diferentes orientações na doutrina italiana, v. GUIDO ALPA e MARIO BESSONE, “I contratti in generale”, in Giurisprudenza

Sistematica di Diritto Civile e Commerciale, organizada por Walter Biglavi, UTET, Turim, 1992, pp. 644 e segs. Os Autores dão conta

de três orientações diversas. Para uma, a disciplina do inadimplemento deveria prevalecer no caso de venda genérica, mas no caso de

venda de coisa específica a disciplina do erro absorveria a disciplina do incumprimento. A justificação era a de que no primeiro caso o

vendedor se tornaria inadimplente com a entrega, na fase de execução do contrato, de uma coisa de qualidade inferior ao género

considerado. Estaria em causa uma anomalia funcional do contrato. Na venda de coisa determinada, ao invés, a anomalia produzir-se-ia

na fase de formação (na fase genética) do contrato, no momento em que o comprador incorre em erro na escolha da coisa específica

individualizada privada das qualidades presssupostas. Defendendo esta tese, v. CARNELUTTI, Error o inadimpimento?, cit., pp. 259 e

segs., MIRABELLI , “Della vendita”, in Comm. Ute tal cod. Civ., Turim, 3.ª ed., 1988, p. 96. Uma segunda orientação considerava

absorvente e exclusiva a disciplina do inadimplemento, por força de uma relação de especialidade entre o art. 1497 e os arts. 1429 e

segs. do CCit. Neste sentido, pode ver-se RUBINO, “La compravendita”, cit., p. 906, onde se pode ler: “Para o direito positivo a falta de

qualidades, ou mais exatamente, das qualidades previstas no art. 1497, é configurada não como uma forma de erro, mas como uma

forma de inadimplemento; e isto não só para as coisas genéricas mas também para as coisas específicas”. ID. “Mancanza di qualità,

consigna di aliud pro alio ed errore su qualità”, in Giur. Compl. Casegs. Civ., 1952, II, 398. Segundo BARCELLONA, Profili dela teoria

dell’errore nel negozio giuridico, cit., p. 184, a norma consagrada no art. 1492, n.º 2, do CCit (que prevê o chamado erro sobre as

qualidades) seria aplicável apenas às qualidades que se referem à função económica do objecro, e deveria aplicar-se apenas quando o

comprador atribui à coisa qualidades não suas mas próprias de uma coisa diversa, fora destas hipóteses, designadamente quando falta à

coisa qualidades que lhe são próprias, prevaleceria a disciplina do art. 1497 (que consagra a garantia edílica). Por fim, para uma terceira

orientação, claramente minoritária, seria permitido ao comprador escolher entre exercer um ou outro remédio, configurando-se uma

clássica hipótese de cúmulo de ações. VITTORINO PIETROBON, L’errore nella dottrina del negozio giuridico, Cedam, Padova, 1963, pp.

415 a 420. 426 V. BLOMEYER, “Rechts- und Sachmängelhaftung”, Beiträge zum Bürgerlichen Recht, Berlim, 1950, pp. 35 a 52, p. 49.

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a aplicar o Sale of Goods Act sem reconhecer o erro do comprador427. Outro caminho,

admitindo um cúmulo ou concurso entre as normas relativas aos pressupostos do erro e as

normas relativas aos pressupostos do incumprimento, seria permitir que as normas

relativas ao erro e as normas relativas ao incumprimento se pudessem aplicar,

alternadamente, à escolha do lesado428.

Pela nossa parte, julgamos não ser possível o cúmulo ou concurso entre as normas

relativas aos pressupostos do erro e as normas relativas aos pressupostos do

incumprimento429. O erro e o incumprimento situam-se em planos de regulação distintos e

têm âmbitos de aplicação diversos. O erro pressupõe uma “representação inexata” da

realidade, e resulta da divergência entre dois factos – entre as qualidades da coisa e a

representação das qualidades da coisa430. Pelo contrário, o não cumprimento consiste na

divergência entre um facto (as qualidades da coisa) e uma norma (contratual).

Romano Martinez, por exemplo, depois de considerar que no erro sobre o objeto do

negócio se poderia distinguir o error in corpore, o error in substantiam e o error in

qualitate, considerava que só os dois primeiros seriam casos de erro em sentido técnico-

jurídico, subsumíveis ao art. 251.º. O último, o error in qualitate, não seria um erro em

sentido técnico-jurídico, mas sim um caso de defeito, ao qual seriam aplicáveis as regras

do não cumprimento (cumprimento defeituoso do contrato)431. Não haveria pois cúmulo

entre erro e incumprimento. A solução passaria por excluir do âmbito de aplicação do art.

251.º as hipóteses a que se refere a garantia edílica, ou seja, os casos em que faltam à coisa

as qualidades próprias das coisas do mesmo tipo (error in qualitate). Estes não seriam

427 V. ATIYAH , The Sale of Goods, 8.ª ed., Londres, 1990, p. 199. 428 ROMANO MARINEZ, Cumprimento Defeituoso, cit., p. 45, critica esta posição, já que, se as pretensões fundadas no erro e no

incumprimento pudessem ser exercidas em opção, tornar-se-iam ilusórias as limitações temporais impostas em quase todas as

legislações ao cumprimento defeituoso. “De facto, se depois de decorrido o prazo de caducidade estabelecido na lei se pudesse recorrer

ao erro, cujo prazo de exercício se inicia com o conhecimento (art. 287.º, n.º 1), de pouco serviria a limitação legal.” 429 Defendendo que a característica da garantia tal qual se encontra regulada no direito positivo português é “uma situação de concurso

electivo de pretensões decorrentes do erro ou do cumprimento inexacto”, v, CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor,

cit., pp. 230 e 231. Refere o Autor que “[s]e a coisa vendida apresentar os vícios aludidos no art. 913.º, poderá o comprador, conforme

lhe aprouver, anular o contrato por erro ou dolo, se no caso se verificarem os requisitos legais de anulabilidade (art. 905.º), reduzir o

preço (art. 911.º) ou exigir o exacto cumprimento, mediante a eliminação dos defeitos ou a substituição da coisa (art. 914.º)”. Cfr. ob.

cit., p. 230. 430 NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 21. 431 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 55.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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casos de erro sobre o objeto, mas casos de defeito, aos quais se aplicaria o regime do não

cumprimento (cumprimento defeituoso)432.

Por aqui se vê que ainda que se aceite a recondução da responsabilidade do vendedor

por defeitos da coisa à dogmática geral do incumprimento contratual, nem por isso a

possibilidade de recurso ao regime geral do erro ficará afastada. Tratar-se-ia tão-só de

reduzir o âmbito de aplicação do art. 251.º, dele retirando os casos de error in qualitate.

De resto, nos casos em que o comprador adquire o quadro por presumir que ele é da

autoria do pintor X, quando, na realidade, foi pintado pelo artista Y, haveria erro em

sentido técnico, que seria um erro sobre a identidade do objeto do negócio, que, neste caso,

seria um quadro diferente daquele que foi tido em consideração pelas partes. Do mesmo

modo, se “A, convencido de que a aguardente vínica é o mesmo que bagaceira, compra a B

5 litros da dita aguardente”433, o comprador atribui à coisa comprada qualidades ou

préstimos que são próprios de outro tipo de coisas, pelo que não haveria defeito, mas sim

erro.

Na perspetiva do nosso legislador histórico, o problema de um possível cúmulo ou

concurso nem sequer se chega a colocar, visto que, como já vimos, não sendo os vícios

redibitórios um vício autónomo, estes vícios seriam subsumíveis ao art. 251.º, seriam casos

de erro sobre o objeto, mais precisamente um caso de “erro sobre as qualidades”. Se,

porém, abandonarmos o dogma de Zitelmann, que poderá explicar a recondução do regime

da venda de coisas defeituosas ao regime do erro, e aceitarmos, com Flume, que a vontade

pode referir-se às qualidades da coisa como algo que deve-ser, podendo o objeto do

contrato de venda específica ser a coisa ideal, então do que se trata é de destrinçar, por

referência a ela, as hipóteses de incumprimento das hipóteses de erro. Esta destrinça

pressupõe uma operação de interpretação e integração das declarações negociais que é

necessariamente um prius em relação ao erro434.

Concebendo o objeto da venda específica como a coisa ideal, compreende-se a

posição de Baptista Machado que considera impossível o cúmulo ou concurso entre as

normas relativas aos pressupostos do erro e as que se reportam aos pressupostos do regime

432 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 55. 433 O exemplo é dado por CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”,

cit., p. 462, erro este que o Autor qualifica como um caso de erro na declaração (p. 469). 434 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 24.

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dos vícios redibitórios. Nas palavras do Autor, «os dois tipos de normas excluem-se

reciprocamente. Não por a sua aplicação simultânea implicar uma antinomia insanável

(uma “lacuna de colisão”), ou por se verificar um fenómeno de consunção, ou ainda por

existir uma relação de especialidade (substitutiva) entre os dois tipos de normas. Não; a

razão é antes esta: as normas relativas ao erro são normas materiais ou de regulamentação

direta que colhem na sua hipótese o dado de facto consistente na divergência entre a

intenção e vontade real do declarante e o sentido juridicamente válido da sua declaração –

ou, por outras palavras, a divergência entre a consequência jurídica negocial efetivamente

querida pelo declarante e aquela que efetivamente se produz por força dos critérios legais

relativos à interpretação e integração das declarações negociais. Portanto, a determinação

do conteúdo juridicamente vinculante do negócio é necessariamente um prius

relativamente à determinabilidade dos pressupostos do erro»435.

6. Apreciação das teses que defendem a recondução da garantia edílica ao pólo do

incumprimento (cumprimento defeituoso): a dificuldade de distinção entre a

venda de coisa específica fungível e a venda genérica

As teses que reconduzem o fundamento da garantia edílica ao pólo do

incumprimento (cumprimento defeituoso) partem de uma conceção do objeto da venda

específica como a coisa ideal. Ao explicar que as declarações de vontade negocial que

integram um contrato de compra e venda de coisa específica deveriam interpretar-se como

“abrangendo as qualidades essenciais do género”, Baptista Machado tinha em vista

(apenas) um certo sub-tipo de venda de coisa específica: a venda de uma coisa determinada

de certo género.

De facto, só nos casos em que a coisa concretamente determinada e individualizada

pertence a um certo género é que se poderá afirmar que as qualidades que a coisa

específica deve possuir e que são, na falta de um acordo expresso, as qualidades normais

do género, integram o conteúdo vinculativo do contrato. Quanto a este tipo de compra e

435 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 27 e 28. A figura do erro “não pode de todo

em todo ser atingida pelas convenções das partes: escapa-lhes sempre, como algo envolvente e inarredável” (p. 38), de modo que “tentar

resolver o problema do erro por acordo seria como perseguir a própria sombra ou saltar por cima dela”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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venda de coisa específica, a diferença fundamental de regime relativamente à venda de

coisa genérica parece, de facto, dificilmente sustentável436.

Utilizando um exemplo dado por Nuno Oliveira, se A diz “quero um exemplar do

livro O deserto dos tártaros”, há uma venda de coisa genérica. O comprador encontra uma

página rasgada: aplica-se o regime do cumprimento defeituoso (por remissão do art. 918.º

do Código Civil). Se A diz “quero este exemplar do livro O deserto dos tártaros”, há uma

venda de coisa específica. O comprador encontra uma página rasgada: aplica-se o regime

do erro e do dolo (por remissão dos arts. 905.º e 913.º do Código Civil) 437. Este exemplo

ilustra bem a dificuldade de distinguir a venda específica de coisa fungível da venda de

coisa genérica. É que, apesar de o objeto do contrato se encontrar determinado no

momento da sua celebração, a vontade da parte não foi a de adquirir aquele livro,

determinado, posto que já escolhido pelo comprador no momento da celebração do

contrato, mas sim a de adquirir um qualquer exemplar igual àquele, o que é uma

característica da venda de coisa genérica438.

Este sub-tipo de venda de coisa específica é a venda de uma coisa determinada de

certo género e a venda genérica a venda de uma coisa indeterminada de certo género439.

No primeiro caso, o comprador designaria o género de uma forma indireta – ao declarar

que quer adquirir uma coisa determinada, o comprador de uma coisa específica estaria a

dizer que quer adquirir uma coisa (determinada) “com as qualidades e os préstimos

próprios das coisas daquele género”440 –, no segundo fá-lo-ia de forma direta.

Se tivermos em mente este sub-tipo de venda de coisa específica, a recondução do

seu regime ao paradigma do erro parece, de facto, pelas razões já apontadas, dificilmente

sustentável. Neste sub-tipo de venda de coisa específica, tal como na venda genérica, o

conteúdo vinculativo do contrato corresponde à vontade subjetiva do comprador, que é a

de adquirir uma coisa dotada de determinadas qualidades, pelo que a sua correta execução

436 O facto de o bem se achar ou não determinado no momento da conclusão do contrato faz com que subsista uma diferença no que toca

à produção do efeito real. 437 Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, cit., p. 300. 438 V, NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 18. O Autor interroga-se sobre se o art. 913.º não deveria interpretar-se

restritivamente, para que se aplique apenas às coisas específicas não fungíveis (em que a coisa designada é uma amostra de si mesma;

em que o comprador quer aquela coisa) e não se aplique às coisas específicas fungíveis (em que a coisa designada é uma amostra de um

género; em que o comprador quer uma coisa igual àquela). 439 NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 7. 440 BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., p. 78.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

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permitirá a plena satisfação daquela vontade441. Assim, se a coisa entregue não apresentar

as referidas qualidades, o problema que se suscita não é (nem poderá ser) de erro mas sim

de não cumprimento (cumprimento defeituoso) do contrato de compra e venda.

Poderíamos, pois, concluir que a discussão dogmática em torno do fundamento da

garantia edílica se poderia deixar esclarecer através de uma destrinça entre venda genérica

e venda específica que permitisse discriminar as aquisições de coisas que o comprador

individualiza mas caracteriza apenas por referência a certas qualidades do género em que

elas se integram e aqueloutras em que tais qualidades são apenas pressupostas sendo

diversa a razão determinante da aquisição442.

Nas vendas de bens fungíveis, produzidos em série, mesmo que o bem se encontre

individualizado no momento da celebração do contrato, individualização que pode ter

lugar mediante um simples gesto, não existe, em regra, por parte do comprador um

interesse em que o objeto do contrato seja aquela coisa, mas um interesse em adquirir um

bem que tenha as características próprias do género a que pertence aquele espécime. O

bem que foi individualizado, por se tratar de um bem fungível, pode bem ser uma “amostra

de si mesmo”. E assim, se a vontade das partes não se formou sobre a coisa concreta,

individualizada, mas sobre uma coisa ideal, com as características próprias do género a que

pertence a coisa concreta designada, poder-se-ia afirmar que o dever de prestação do

vendedor não consiste na entrega daquela coisa, mas de uma coisa que tenha as

características do género a que pertence a coisa concreta designada.

Na Alemanha, mesmo depois de a “Lei para a Modernização do Direito das

Obrigações” ter consagrado, de forma legislativa expressa, a “teoria do cumprimento”,

subsiste, como já demos conta, um intenso debate doutrinal a propósito da admissibilidade

da substituição na compra e venda específica. Não sendo defensável, de acordo com a

doutrina dominante, excluir a priori a substituição em qualquer venda específica, visto que

a lei (§§ 437 e 439 do BGB) não faz qualquer diferenciação entre a venda específica e a

venda genérica, a doutrina tem procurado um critério para seleccionar os casos em que é

possível a substituição na venda específica e, ao mesmo tempo, para justificar a sua

441 Como explica Baptista Machado, a integração ou não das qualidades da coisa vendida no conteúdo vinculativo do contrato e a

correspondência ou não correspondência deste conteúdo à vontade que o comprador quis emitir constitui o critério que permite traçar a

fronteira entre erro e incumprimento. No mesmo sentido, v. CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa

com o interesse do comprador”, cit., p. 463. 442 Neste sentido, v. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., p. 689, nota 748.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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admissibilidade. Para este efeito, a doutrina dá conta de que se tem vindo a criar uma nova

figura, difusa no comércio de massa e, portanto, na maior parte das aquisições de bens de

consumo, e que apresenta uma natureza híbrida: é dotada da estrutura formal da venda

específica, mas repousa em interesses típicos da venda genérica443. Esta natureza híbrida

explicaria a sua designação: “venda específica funcionalmente equiparável à venda

genérica”. Caberiam aqui a generalidade das vendas celebradas em estabelecimentos de

auto-serviço, em que, apesar de o comprador individualizar o bem antes da celebração do

contrato, não o caracteriza pela sua individualidade mas sim pelas qualidades habituais ou

normais do género a que pertence444. Repare-se que, enquanto os Autores que perante o

Código Civil alemão Reformado, consideram que a substituição não pode ser excluída a

priori em qualquer venda específica, qualificam esta venda como venda específica445, os

Autores que, arreigados a uma conceção de objeto da venda específica como coisa

concreta, se recusam a admitir a substituição em qualquer venda específica, qualificam este

tipo de venda como venda de coisa genérica446.

Desta forma, qualificando como genérica a venda de coisa que o comprador

individualiza mas caracteriza por referência a certas qualidades do género em que ela se

integra, dir-se-ia estar em parte superada a razão que acalenta a discussão em torno do

fundamento da garantia edílica. Nestes casos, haveria que tomar como objeto da venda a

coisa ideal (correspondente às qualidades habituais ou normais do género) e considerar o

vendedor vinculado a entregar ao comprador uma coisa com aquelas qualidades447.

443 Cfr. M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum Schicksal von Stuckkauf, Baden-Baden, 2005,

pp. 174 e segs. 444 Para ilustrar esta característica Schürholz fala de konkretisierte Gattungskäufe: falta às partes contratuais um

Individualisierungsinteresse e não há motivo para excluir a substituição, vantajosa para todos os contraentes. Neste caso, a substituição

resulta não só correta, mas também conforme ao contrato. O sentido da nova disciplina é fornecer uma tutela que se adapte o mais

possível aos interesses das partes, agora que se chega, através de uma interpretação teleológica, a concluir pela admissibilidade da

substituição neste peculiar caso de venda específica. M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum

Schicksal von Stuckkauf und Gattungskauf, cit., p. 159. 445 C.-W. CANARIS, Die Nacherfullüng durch Lieferung einer mangelfreien Sache beim Stückkauf, cit., p. 836. 446 T. ACKERMANN, “Die Nacherfüllungspflicht des Stückverkäufers”, cit., pp. 378 e segs. 447 Como observa Romano Martinez, “a obrigação genérica transforma-se em específica com a concentração e esta, por via de regra,

verifica-se com o cumprimento, mas nunca depois deste (art. 541.º). Assim sendo, não pode haver cumprimento defeituoso de obrigação

genérica; o defeito da prestação só pode reportar-se a uma coisa específica” – v. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e

Venda e na Empreitada, cit., p. 202. E não poderá mesmo qualificar-se esta venda como venda de coisa genérica? Nas obrigações

genéricas a concentração dá-se, em regra, com o cumprimento (arts. 540 e 541.º, a contrario). Brandão Proença parece configurar estas

situações como venda de coisa genérica, dando como exemplo de um caso em que a concentração se dilui no ato de cumprimento efetivo

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Ao invés, qualificando esta venda como específica, poder-se-ia colocar a seguinte

questão: tendo o comprador individualizado o bem antes da celebração do contrato –

“escolha” que pode ter lugar através de uma simples indicação direta e presencial – por que

forma se podem considerar devidas aquelas qualidades? Diremos agora que a coisa, que o

comprador individualizou por referência às características habituais ou normais do género,

porque se trata de uma coisa fungível, pode ser também meio de expressão da vontade,

pode servir como “amostra de si mesma”, porque a “escolha” implica também “a

significação imanente às coisas do mesmo género e às características aparentes ou

conhecidas dos declarantes”448. Na venda específica, o dever de entregar ao comprador

uma coisa com as qualidades habituais ou normais do género poderia decorrer do art. 913.º

do Código Civil que assumiria, assim, o carácter de norma interpretativa e integradora das

declarações de compra e venda449.

De facto, como observa Ferreira de Almeida, na construção do art. 913.º, a distinção

parece evidente entre qualidades como elemento de referência (“qualidades asseguradas

pelo vendedor”; qualidades julgadas como necessárias para uma função) e qualidades

como propriedade do objeto referido (qualidades verificadas na própria coisa em função da

comparação com os padrões de referência). Em segundo lugar, ao equiparar as qualidades

asseguradas pelo vendedor às qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa

se destina, o preceito parece indicar, como nota Ferreira de Almeida, que as referências

qualitativas têm o seu lugar próprio no texto negocial: “as qualidades asseguradas pelo

aquele em que A entra numa livraria e compra um exemplar do livro a Ilustre Casa de Ramires – v. Lições de Cumprimento e Não

Cumprimento, cit., p. 116. 448 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I, cit., p. 619. 449 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., vol. I, pp. 622 e 623. O art. 913.º aplica-se a

situações em que a coisa não tenha “as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização [do] fim a que a coisa se

destina” e esse fim é o que resulta do contrato ou, não sendo ele indicado no contrato, da “função normal das coisas da mesma

categoria”. A previsão do art. 913.º incide, pois, sobre casos em que a coisa não tenha as qualidades correspondentes às qualidades

asseguradas” ou que não tenha as “qualidades correspondentes às “qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se

destina”. Sendo que “[q]uando do contrato não resulte o fim a que a coisa se destina atender-se-á à função normal das coisas da mesma

categoria”. Em primeiro lugar, a distinção parece evidente entre qualidades como elemento de referência (“qualidades asseguradas pelo

vendedor”; qualidades julgadas como necessárias para uma função) e qualidades como propriedade do objeto referido (qualidades

verificadas na própria coisa em função da comparação com os padrões de referência). Em segundo lugar, ao equiparar as qualidades

asseguradas pelo vendedor às qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina, o preceito parece indicar, como

observa Ferreira de Almeida, que as referências qualitativas têm o seu lugar próprio no texto negocial: “as qualidades asseguradas pelo

vendedor são as qualidades que foram referidas na declaração do vendedor e que, por acordo do comprador, se inseriram na composição

textual do contrato; as qualidades necessárias para a realização do fim são as qualidades decorrentes de uma finalidade particular

eventualmente indicada no contrato, pressupostas pelo tipo ou subtipo contratual ou pela classe e sub-classe a que a coisa pertence”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

163

vendedor são as qualidades que foram referidas na declaração do vendedor e que, por

acordo do comprador, se inseriram na composição textual do contrato; as qualidades

necessárias para a realização do fim são as qualidades decorrentes de uma finalidade

particular eventualmente indicada no contrato, pressupostas pelo tipo ou subtipo contratual

ou pela classe e sub-classe a que a coisa pertence”450.

Mesmo que se atenda à “função normal da coisa da mesma categoria”, é a partir da

menção dessa categoria, tal como é descrita no texto negocial, que se estabelece qual seja

essa função normal451.

Postas as coisas nestes termos, teremos de aceitar que entre esta venda específica e a

venda genérica, as fronteiras são de tal forma ténues que perde sentido uma diferenciação

dogmática.

Note-se, porém, que não foi esta a venda específica que o nosso legislador tomou

como paradigma e que justifica a recondução da matéria aos regimes do erro e do dolo. Na

medida em que na venda específica a vontade das parters tenha sido a de adquirir a coisa

concreta, perfeitamente determinada e individualizada no momento da celebração do

contrato e que o comprador caracteriza não pelas características habituais ou normais do

género a que pertence mas pelas suas características únicas ou singulares, não seria

possível, sob pena de se violar a autonomia das partes, admitir que o vendedor pudesse

cumprir mediante a entrega de um bem diverso daquele que é objeto do contrato.

Relativamente a este tipo de venda específica, que será a venda de bens

tendencialmente infungíveis, a recondução da matéria ao regime do erro, para além de ser

a solução consagrada de iure conditio, afigura-se também defensável de iure condendo.

7. Os direitos do comprador de coisa (específica) defeituosa

7.1. Anulação do contrato e redução do preço

Para tutelar o comprador de coisas defeituosas, o art. 913.º do Código Civil

estabelece a aplicação do regime da venda de bens onerados, em tudo o que não for

modificado pelas disposições do próprio regime da venda de coisas defeituosas. Isto

450 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., vol. I, pp. 622 e 623. 451 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., vol. I, pp. 622 e 623.

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164

significa que o comprador de coisa (específica) defeituosa tem, nos termos do art. 905.º

(aplicável ex vi art. 913.º), o direito de anular o contrato por erro ou dolo, verificados os

requisitos legais da anulabilidade. Assim, em caso de erro, exige-se a essencialidade e a

cognoscibilidade dessa essencialidade do erro para o declaratário (arts. 251.º e 247.º). Em

caso de dolo, basta que o dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (art. 254.º,

n.º 1), salvo se se tratar de dolo de terceiro, caso em que se exige igualmente que o

destinatário conhecesse ou devesse conhecer a situação (art. 254.º, n.º 2).

Porém, nos termos do art. 911.º, aplicável ex vi art. 913.º, se as circunstâncias do

contrato “mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os

bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço […], além da

indemnização que no caso competir”452. Esta solução, que corresponde a uma das ações

edílicas do direito romano – a actio quanti minoris –, é imposta ao comprador sempre que

se possa comprovar que o erro ou dolo não influíram na sua decisão de adquirir o bem,

mas apenas no preço que estaria disposto a pagar por ele453.

Isto demonstra que a ação de anulação e a ação estimatória ou quanti minoris não

estão numa relação de concorrência eletiva: o comprador não pode escolher (optar) entre as

duas, pois, no caso de as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador

teria igualmente adquirido os bens, a lei expressamente lhe impõe a segunda solução, ou

seja, “apenas lhe caberá o direito à redução do preço”, cumulável com a indemnização454.

Como observa Calvão da Silva, “o normal conteúdo alternativo da garantia, em que o

comprador pode escolher qual direito quer fazer valer, é aqui excluído, optando a lei pela

452 Defendendo que o art. 911.º representa um afloramento do regime da redução do negócio jurídico (art. 292.º), v. CASTRO MENDES,

Direito Civil – Teoria Geral, III, cit., pp. 181 e 182; MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 510, nota 2 – assim, segundo o

Autor, “não haverá, na compra de bens onerados, redução, se se provar que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada”. Em

sentido contrário, v. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 82 e segs. Como referem

Pires de Lima e Antunes Varela, “para a redução não é necessária a prova de que o contrato teria sido concluído sem a parte viciada”, ao

passo que neste caso (no caso a que se refere o art. 911.º) “é necessário que as circunstância mostrem que o comprador não teria deixado

de comprar”. 453 Como refere Calvão da Silva, esta solução mostra, por um lado, que no caso contemplado, a não essencialidade do erro ou dolo não

confere ao comprador o direito de anulação e evidencia, por outro, que não se trata de erro ou dolo indiferente, irrelevante, mas sim de

erro incidental ou dolo incidental conducente à redução do preço (ação estimatória) – cfr. Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p.

194. 454 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 195. No Direito alemão anterior à Reforma, o § 462 do BGB

consagrava uma concorrência eletiva do direito de redibição da compra (Wandelung) e do direito de redução do preço (Minderung).

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165

conservação do negócio jurídico, corrigido ou rectificado através do restabelecimento da

relação de correspectividade económica entre prestação e contraprestação”455.

7.2. Indemnização do interesse contratual negativo

Um outro direito reconhecido ao comprador, no caso de anulação da compra de

coisas defeituosas, é o direito a indemnização pelos danos eventualmente sofridos456,

previsto no art. 908.º, aplicável por remissão do art. 913.º, havendo apenas em sede de

coisas defeituosas uma especialidade constante do art. 915.º. Trata-se de uma

indemnização pelo interesse contratual negativo, quer dizer, do prejuízo que o credor

sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, e destinada a colocá-lo na posição em que se

encontraria se o mesmo não tivesse sido celebrado. O quantum da indemnização será

porém diferente consoante se trate de anulação por dolo ou por erro457.

A indemnização em caso de dolo encontra-se prevista no art. 908.º, norma que não é

objeto de qualquer derrogação no âmbito da venda de coisas defeituosas e que, portanto, se

aplica integralmente nesta sede, por força da remissão do art. 913.º. Assim, uma vez que o

art. 913.º não limita o objeto de ressarcimento, a indemnização, nos termos do n.º 1 do art.

564.º, abrange quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes458, sendo, porém,

455 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 196. O Autor acrescenta que nada impede o pedido de redução

do preço em via subordinada, como pedido subsidiário da anulação, para a eventualidade de esta resultar infundada. 456 Há, assim, também nesta sede três fundamentos de indemnização, no âmbito dos quais se estabelece um concurso de pretensões:

indemnização em caso de dolo; indemnização em caso de simples erro; indemnização por incumprimento da obrigação de reparação ou

de substituição da coisa. 457 O art. 911.º, aplicável por força do art. 913.º, prevê também uma indemnização que se cumula com o direito à redução do preço. A

esta indemnização deverá aplicar-se a distinção feita nos arts. 908.º, 909.º e 915.º. Assim, em caso de dolo, o vendedor deve restituir

todo ou parte do preço, consoante aquele seja essencial ou incidental, e indemnizar ao comprador os danos emergentes e os lucros

cessantes a que não teria havido lugar se a compra não tivesse sido celebrada ou se o tivesse sido por preço inferior; em caso de simples

erro, à restituição de todo ou parte do preço, consoante aquele seja essencial ou incidental, acresce a indemnização, mas aqui limitada

aos danos emergentes. No entanto, porque, no caso de redução do preço, ao contrário do que sucede em caso de anulação, há uma

manutenção do contrato reequilibrado, considera o Autor que não é ilógica, neste caso, a possibilidade de o comprador pedir uma

indemnização pelo interesse contratual positivo, podendo este reclamar o dano in contractu que excede o dano in contrahendo, de forma

a ficar colocado na situação em que estaria se o contrato tivesse sido exatamente cumprido, através da entrega da coisa sem vício ou

defeito. Isto é sobretudo importante em caso de erro em que a indemnização não abrange o lucro cessante. Cfr. CALVÃO DA SILVA ,

Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 199. 458 Sobre a distinção entre danos emergentes e lucros cessantes, v. PEREIRA COELHO, O problema da causa virtual na responsabilidade

civil, Coimbra, 1955, p. 91, nota 43, e p. 40, nota 19; GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, cit., pp. 373 e segs.; GOMES DA SILVA ,

O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, Lisboa, 1944.

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limitada aos danos que o comprador não teria sofrido se o contrato não tivesse sido

celebrado, o que constitui uma solução típica da culpa in contrahendo prevista no art.

227.º459.

Em caso de anulação por simples erro, encontra-se também prevista, por força da

remissão do art. 913.º, uma indemnização pelo vendedor ao comprador, ainda que limitada

aos danos emergentes do contrato (art. 909.º). Esta indemnização abrange, assim, os danos

emergentes (incluindo as despesas voluptuárias) mas não os lucros cessantes, resultantes

da aquisição da coisa com defeito. Contudo, o art. 915.º vem restringir as condições em

que pode ser exigida esta indemnização, estabelecendo que ela não é devida nos casos em

que o vendedor ignorava sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece.

Trata-se, pois, de uma responsabilidade subjetiva do vendedor460.

7.3. O direito à reparação e à substituição da coisa

Para além do direito de anulação e de redução do preço, cumuláveis com a

indemnização pelo interesse contratual negativo, o comprador de coisas defeituosas tem

ainda direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver

natureza fungível, a substituição dela. Esta pretensão, consagrada na primeira parte do art.

914.º, parece constituir uma explicitação do direito comum do credor ao cumprimento e

não um ressarcimento do dano em forma específica decorrente de responsabilidade civil461.

Já a segunda parte da norma, ao conceder ao vendedor a faculdade de se eximir da

obrigação de reparação ou substituição mediante a alegação e prova de que “desconhecia

459 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 109. 460 Assim, em sede de venda de coisas defeituosas, já não há uma responsabilidade integralmente objetiva do vendedor pelos danos

causados ao comprador em resultado dos defeitos da coisa, admitindo o art. 915.º que o vendedor se possa exonerar de responsabilidade,

demonstrando que desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade da coisa. 461 Neste sentido, v. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 218. Como refere o A.: “Obter a reparação ou

substituição da coisa é realizar especificamente o próprio direito do comprador, pois efectua a prestação originária, isenta de vícios, que

lhe é devida; é, portanto, o meio de remover um estado de coisas antijurídico, de suprimir o próprio ilícito – fonte ou não de danos –,

atacando o mal pela raiz, e que não pode ser confundido com o ressarcimento em forma específica, com o que se opera, no quadro da

responsabilidade civil, sobre a consequência (dano) resultante do ilícito cometido pelo devedor, ao não cumprir exatamente a prestação.

Assim, se o comprador de um automóvel novo detecta, logo nas primeiras viagens, alguns defeitos, por exemplo, barulhos, desvio na

direção, etc., não se contesta que tem o direito à sua eliminação, apesar de não causarem ou não terem causado danos, como também se

lhe reconhecerá o direito à reparação mais o direito a indemnização se os houver, tendo a substituição da prestação imperfeita e a

eliminação dos vícios por direito ao exacto cumprimento.” – idem, pp. 218 e 219, nota 6.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

167

sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”462, vem estabelecer um

favor venditoris, não só injustificado, como também incongruente com o disposto na

primeira parte da norma, já que, constituindo a reparação e a substituição uma explicitação

do direito do credor ao exato cumprimento, o seu exercício não deveria estar dependente

da existência de culpa463.

7.4. Garantia de bom funcionamento

Nos termos do n.º 1 do art. 921.º do Código Civil, quando, por convenção das partes

ou por força dos usos, o vendedor estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da

coisa vendida, o comprador pode exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e esta

tiver natureza fungível, a sua substituição independentemente de culpa do vendedor464. A

garantia de bom funcionamento visa precisamente fixar um período de “rodagem” da

coisa, ou seja, um período durante o qual o vendedor assegura um determinado resultado,

que, neste caso, é a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para

o uso) da coisa, sendo responsável por que na sua utilização normal e correta nenhuma

anomalia, avaria ou defeito de funcionamento aparecerá465.

O facto de o vendedor assumir a garantia de um resultado466 tem relevância, desde

logo, ao nível do ónus da prova: ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento

462 O desconhecimento do vício ou falta de qualidade de que a coisa padece tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto

tratar-se de um facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (art. 342.º, n.º 2). 463 Isto significa que na venda de coisas defeituosas o comprador pode, nos termos do art. 907.º aplicável por força do art. 913.º, com as

devidas adaptações, pedir ao vendedor uma indemnização pelo não cumprimento da obrigação de reparação ou substituição da coisa,

prevista no art. 914.º, ou por mora no cumprimento da referida obrigação. O art. 910.º, n.º 1, aplicável por força da remissão do art.

913.º, admite um concurso de pretensões neste âmbito, ao referir que “a correspondente indemnização acresce às reguladas nos artigos

anteriores excepto na parte em que o prejuízo seja comum”. Esta cumulação vem a ser excluída, no entanto, em relação à indemnização

por lucros cessantes resultantes de dolo do vendedor, nos termos do art. 908.º, aplicável ex vi art. 913.º, admitindo-se aí apenas um

concurso alternativo de pretensões, dado que o art. 910.º, n.º 2, estabelece que “no caso previsto no art. 908.º, o comprador escolherá

entre a indemnização dos lucros cessantes pela celebração do contrato que veio a ser anulado e a dos lucros cessantes pelo facto de não

ser sanada a anulabilidade”. 464 O art. 921.º do Código Civil determina que “[s]e o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a

garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver

natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”. 465 Cfr. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 201. A garantia de bom funcionamento apenas pode ser

afastada no caso de a deterioração do bem resultar de facto imputável ao comprador. 466 Sobre a distinção entre obrigações de resultado e obrigações de meios, v. CALVÃO DA SILVA , Cumprimento e sanção pecuniária

compulsória, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, p. 78, nota 154.

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da coisa no período de duração da garantia, “sem necessidade de identificar ou

individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de

provar a sua existência no momento da entrega”467. É ao vendedor que caberá o ónus de

provar, para se ilibar da sua responsabilidade, que a causa concreta do mau funcionamento

é posterior à entrega da coisa e imputável ao comprador (por exemplo, a uma má utilização

do bem), a terceiro, ou devida a caso fortuito.

A garantia vigora pelo prazo estipulado no contrato ou imposto pelos usos. No

silêncio do contrato, ou se os usos não estabelecerem prazo maior, aplica-se o prazo de seis

meses, contados da entrega da coisa (art. 921.º, n.º 2, do Código Civil) ou da sua efetiva

receção pelo comprador, quando se trate de coisas objeto de transporte (art. 922.º do

Código Civil)468. Nesses casos, o defeito de funcionamento deve ser denunciado ao

vendedor, dentro do prazo de garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias

depois de conhecido (art. 921.º, n.º 3, do Código Civil), caducando a ação logo que finde o

tempo para a denúncia sem o comprador a ter efetuado, ou passados seis meses sobre a

data em que a denúncia foi efetuada (art. 921.º, n.º 4, do Código Civil). Uma vez que

apenas se refere ao vendedor, o art. 921.º não abrange os casos em que a garantia é

prestada pelo fabricante469.

Em caso de garantia de bom funcionamento o comprador terá também direito à

indemnização dos danos causados pelo mau funcionamento da coisa, quer dizer, pelos

prejuízos derivados do cumprimento inexato da prestação prometida ou do atraso com que

o comprador recebeu a coisa em perfeito funcionamento470. Embora, em caso de garantia

de bom funcionamento, o exercício dos direitos à reparação e à substituição da coisa não

esteja dependente da existência de culpa por parte do vendedor, a referida indemnização

pressupõe a existência de culpa, ainda que presumida (art. 799.º, n.º 1), por parte do

vendedor, solução que se compreende pelo facto de que a responsabilidade subjetiva é a

467 Cfr. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 202. Como refere o Autor, um segundo corolário desta

obrigação de resultado é o reforço da posição do comprador, oferecendo-lhe uma tutela que acresce à emergente da garantia legal

regulada nos arts. 913.º e segs.: “a garantia de bom funcionamento é complementar e adjuvante, não substitutiva da comum ou ordinária

garantia legal” – idem, p. 205. 468 Como observa Calvão da Silva, este elemento [a limitação no tempo] é essencial e caracterizante do instituto, “revelando a práxis ser

normal a sua determinação temporal em cláusula contratual” – cfr. A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 203. 469 LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 9.ª ed., cit., p. 123. 470 Cfr. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 207.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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regra, entre nós, só existindo obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos

casos especificados na lei (art. 483.º, n.º 2)471.

7.5. Prazos de garantia, prazos de denúncia e prazos para o exercício dos direitos

A análise do regime jurídico da venda de coisas defeituosas pressupõe ainda uma

referência aos prazos de garantia, prazos de denúncia e prazos para o exercício dos direitos

expressamente previstos na lei.

Nos casos em que o desconhecimento do defeito corresponda a um erro espontâneo

do comprador (erro simples), o n.º 1 do art. 916.º impõe ao comprador o ónus de denúncia

ao vendedor, por qualquer meio, do vício ou a falta de qualidade da coisa. Este ónus visa

permitir que o vendedor adquira conhecimento dos defeitos da coisa vendida que podia

ignorar, e deve ser cumprido, no caso de bens móveis, no prazo de trinta dias depois de

conhecido o defeito e dentro de seis meses a contar da entrega da coisa (art. 916.º, n.º 2).

Tratando-se de imóveis os prazos serão mais longos, sendo respetivamente de um e de

cinco anos (art. 916.º, n.º 3). Uma vez que a lei não sujeita a denúncia dos defeitos a forma

especial, aplica-se o regime geral da liberdade de forma do art. 219.º, podendo a denúncia

ser realizada por qualquer das formas admitidas para a declaração negocial (art. 217.º),

podendo o comprador para o efeito usar também da notificação judicial avulsa (art. 256.º

do CPC) ou da citação para a ação (art. 225.º do CPC)472.

Enquanto o prazo a contar da descoberta dos defeitos vale independentemente para

cada defeito, podendo, por isso, renovar-se sempre que se verifiquem novos defeitos, o

prazo a contar da entrega da coisa vale para a generalidade dos defeitos da coisa473. Para

que este prazo se inicie é, porém, necessário que a entrega da coisa seja material, com

receção efetiva da coisa pelo comprador, uma vez que em caso de entrega simbólica ou

formal o comprador não ficará em condições de se aperceber dos defeitos da coisa474.

471 Neste sentido, v. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 208. 472 Neste sentido, v. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., vol. II, anotação ao art. 916.º, p. 212. MENEZES

LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 118. 473 Neste sentido, v. PIRES DE LIMA /Antunes Varela, Código Civil Anotado, cit., vol. II, anotação ao art. 916.º, p. 212. MENEZES LEITÃO,

Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 118. 474 É neste sentido que o art. 922.º refere que na venda de coisas que devem ser transportadas de um lugar para outro, os prazos que a lei

manda contar a partir da entrega só começam a correr no dia em que o credor as receber e não da entrega ao transportador ou expedidor

como poderia resultar do art. 797.º. Neste sentido, v. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., anotação ao art.

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170

Estes prazos (de garantia) são cumulativos e a sua não observância pressupõe a

caducidade dos direitos conferidos ao comprador em caso de erro simples – anulação,

redução do preço, indemnização e reparação ou substituição da coisa (art. 298.º, n.º 2)475.

Só não será assim se ocorrer causa impeditiva da caducidade, nomeadamente o

reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (art. 331.º, n.º

2)476.

Nos termos do art. 917.º do Código Civil, a ação de anulação com fundamento em

simples erro, além de pressupor a denúncia dentro desses dois prazos, deve ainda ser

instaurada no prazo de seis meses a contar da data da denúncia tempestiva477, salvo se o

contrato ainda não estiver integralmente cumprido, caso em que poderá ser instaurada a

todo o tempo (art. 287.º, n.º 2). Apesar de a letra da lei se referir apenas à ação de

922.º, pp. 217 e 218: “O momento da entrega, para efeitos daquelas disposições [arts. 916.º e 921.º], não é o momento em que se

considera transferido o risco por defeitos supervenientes. Para este último efeito, é aplicável, por força do art. 918.º, o disposto no art.

797.º: o risco transfere-se pela entrega da coisa ao expedidor ou à pessoa indicada para a execução do envio. Nos casos previstos pelos

arts. 916.º e 921.º, o critério adoptado foi o da receção efectiva ou da entrega material, porque só a partir do contacto directo com a coisa

o comprador poderá descobrir os seus defeitos, e só a contar daí será razoável principiar a contagem dos prazos de caducidade do direito

de reação contra tais defeitos”. 475 Criticando a brevidade dos prazos estabelecidos nos arts. 916.º e 917.º e a contradição valorativa que existe se confrontarmos estes

prazos com os prazos previstos em sede de contrato de empreitada (art. 1224.º do Código Civil), v. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento

Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 387. O Autor entende que, na ausência de uma intervenção

legislativa que elimine esta contradição, estas divergências deveriam ser eliminadas pela via da interpretação, embora reconheça, na

esteira de Canaris, que se torna “problemática a redução teleológica de normas que estabelecem prazos, na medida em que se põe em

causa a segurança jurídica”. No mesmo sentido, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 506. 476 Como explica Vaz Serra, o reconhecimento do direito só impede a caducidade se tiver o mesmo resultado que se obteria com a

prática tempestiva do ato sujeito a caducidade: “o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a

situação”. VAZ SERRA, “Prescrição extintiva e caducidade”, in BMJ, n.º 107, p. 24. 477 Entre o contrato civil de compra e venda e o contrato civil de empreitada há grandes disparidades em matéria de prazos. No contrato

civil de compra e venda de coisas móveis o prazo de garantia é de seis meses a contar da entrega da coisa (art. 916.º, n.º 2, do Código

Civil) e no contrato civil de empreitada o prazo de garantia é de dois anos a contar da entrega da obra. A mesma disparidade existe no

que toca aos prazos para o exercício dos direitos. No contrato civil de compra e venda de coisas móveis o prazo para o exercício do

direito à reparação ou à substituição da coisa defeituosa é de seis meses (art. 917.º do Código Civil), enquanto no contrato de empreitada

o prazo para o exercício do direito à eliminação dos defeitos é de um ano a contar da recusa da aceitação da obra ou da aceitação com

reserva (n.º 1 do art. 1224.º do Código Civil). Também no caso de dolo se verifica idêntica disparidade. Assim, enquanto no contrato

civil de compra e venda não há prazos de garantia ou de denúncia e há um prazo para o exercício do direito à reparação ou substituição

de um ano a contar do conhecimento do defeito; no contrato civil de empreitada há um prazo de garantia – de cinco anos a contar da

entrega da obra –, há um prazo de denúncia – de um ano a contar do conhecimento do defeito – e há um prazo para o exercício do

direito à eliminação dos defeitos – de um ano a contar da denúncia. Criticando esta disparidade de prazos, por envolver uma contradição

valorativa e teleologicamente insustentável, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, pp. 502 e segs. O Autor

defende mesmo que, em termos político-legislativos, o atual regime deveria ser substituído, devendo, desde logo, eliminar-se as

diferenças entre os regimes dos contratos previstos e regulados no Código Civil, como é o caso do contrato de compra e venda e do

contrato de empreitada.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

171

anulação, parece que este prazo deverá ser aplicado igualmente, por interpretação

extensiva, em relação a todas as ações conferidas ao comprador com base em simples erro

– a actio quanti minoris, a ação de indemnização e a ação de reparação ou substituição da

coisa. Na verdade, uma vez que através de todas elas “se fazem valer pretensões no quadro

da garantia e à garantia ligadas”478, relativamente a elas colhe perfeitamente a razão de ser

do prazo breve, ou seja, evitar, no interesse do vendedor e do tráfico jurídico, o

prolongamento de um estado de incerteza sobre o destino do contrato e as dificuldades de

prova dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam

naturalmente por surgir caso fosse aplicável a estas ações o prazo longo de prescrição479.

No caso de o desconhecimento do defeito se dever a dolo do vendedor, como se o

vendedor insinuou a existência infundada de certa qualidade na coisa ou dissimulou o erro

em que o comprador visivelmente se encontrava, não há qualquer ónus de o comprador

denunciar os defeitos (art. 916.º, n.º 1, in fine), o que se afigura compreensível, já que,

tendo o vendedor usado de dolo, não valem aqui as razões que justificam aquele ónus de

denúncia. Assim, em caso de dolo, o comprador poderá instaurar a ação de anulação dentro

do prazo de um ano a contar da cessação do vício (art. 287.º, n.º 1), independentemente de

denúncia. Relativamente ao exercício dos direitos à reparação ou substituição da coisa,

previsto no art. 914.º, a lei não estabelece qualquer prazo, em caso de dolo do vendedor.

No entanto, pelas razões já referidas a propósito do art. 917.º, também aqui o prazo de um

ano para a propositura da ação deverá valer para os restantes direitos do comprador,

nomeadamente para o exercício do direito à reparação ou substituição da coisa, previsto no

art. 914.º480.

478 Cfr. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 211. 479 Neste sentido, v. CALVÃO DA SILVA , A Responsabilidade Civil do Produtor, cit., pp. 211 e 212. Como observa o Autor, “seria

incongruente não sujeitar as referidas ações da garantia aos mesmos prazos, pois, de contrário, permitir-se-ia ao comprador obter

resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade”. No mesmo

sentido, defendendo que não faria sentido sujeitar estas ações ao prazo geral de prescrição, v. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações,

vol. III, cit., p. 119. 480 Neste sentido, defendendo que todos os remédios em que a ação de garantia se concretize e, portanto, também o direito à reparação

ou substituição da coisa, devem ser exercidos no prazo de um ano subsequente à cessação do vício, v. CALVÃO DA SILVA , A

Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 212. Em sentido contrário, defendendo que, por a lei não impor um prazo, o exercício do

direito à reparação ou substituição da coisa está sujeito ao prazo ordinário de prescrição, v. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código

Civil Anotado, vol. II, cit., p. 211. Defendendo que relativamente à indemnização em caso de dolo parece valer o regime geral da

responsabilidade pré-contratual (arts. 227.º e 498.º, n.º 2), v. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 119.

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CAPÍTULO II – O regime aplicável aos defeitos supervenientes da venda de coisa

específica, da venda de coisa indeterminada de certo género e da venda de coisa

futura

1. O regime da perda ou deterioração da coisa – posterior à venda e anterior à

entrega – na compra e venda de coisa específica

Num contrato de compra e venda de coisa específica, se a coisa se perder antes de ter

sido entregue ao comprador, por facto não imputável a nenhuma das partes, a consequência

é a impossibilidade (total) da prestação com a consequente exoneração do devedor, nos

termos do art. 790.º, n.º 1, do Código Civil. Existindo impossibilidade total da prestação,

coloca-se a questão de saber por conta de quem corre o risco.

Nos contratos de compra e venda de coisa específica, tendo o contrato eficácia real

imediata, a conclusão do contrato de compra e venda determina, em princípio, a

transferência do risco para o comprador, por força do disposto no art. 796.º, n.º 1, do

Código Civil.

O art. 796.º, n.º 1, que trata conjuntamente do risco do perecimento e do risco da

deterioração da coisa481, consagra a tradicional regra res perit domino ou casum sentit

creditor, oriunda do Direito Romano clássico482, que se encontra relacionada com o

princípio da transferência consensual do domínio, consagrada entre nós no art. 408.º, n.º 1,

do Código Civil. Por força desta regra, nos contratos de compra e venda de coisa

específica, o risco transfere-se, em princípio, para o comprador, no momento da celebração

do contrato e, portanto, antes da entrega da coisa ao comprador.

Assim, num contrato de compra e venda de coisa específica, se a coisa se perder

depois da celebração do contrato e antes da entrega ao comprador, por facto não imputável

a nenhuma das partes, o risco corre (em regra) por conta do comprador. Isto significa que,

apesar de a obrigação de entrega da coisa do vendedor se extinguir, o comprador de coisa

481 RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, cit., p. 639. 482 No Direito Romano vigorava, no que respeita à transferência do risco, a regra periculum est emptoris. O risco referia-se à

possibilidade de o bem, objeto da venda, se perder, destruir ou deteriorar. Este risco era naturalmente suportado pelo vendedor até ao

momento da conclusão do contrato de compra e venda, passando a correr por conta do comprador a partir do momento da transferência

da propriedade: res perit domino ou casum sentit dominus. Sobre a regra periculum est emptoris no Direito Romano, v. REINHARD

ZIMMERMANN , The Law of Obligations, Roman Foundations of the Civilian Tradition, cit., pp. 281 segs.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

173

específica continua obrigado a pagar o preço, suportando, assim, o risco de ficar sem a

coisa e sem o seu valor.

Se, num contrato de compra e venda de coisa específica, a coisa se deteriorar depois

da celebração do contrato e antes da sua entrega ao comprador, aplica-se o disposto no art.

918.º do Código Civil, na parte em que este determina que “[s]e a coisa, depois de vendida

e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, […] são

aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações”483.

A obrigação de entrega de coisa específica é objeto de regulação pelo art. 882.º, n.º 1,

onde se estabelece que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo

da venda. Esta norma faz recair sobre o vendedor um dever específico relativo à custódia

da coisa, dever que ele deve executar com a diligência de um bom pai de família, nos

termos gerais (arts. 799.º, n.º 2, e 487.º, n.º 2) 484. Ao estabelecer uma presunção de culpa

do devedor em caso de incumprimento obrigacional, o n.º 1 do art. 799.º do Código Civil,

aplicável por remissão do art. 918.º, soluciona a questão da distribuição do ónus da prova

dos factos ou eventos que consubstanciem uma situação de risco, colocando-a na esfera

jurídica do devedor485. Assim, presume-se que o não cumprimento, na modalidade de não

cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, é um não cumprimento imputável

ao vendedor486. Note-se, porém, que, neste caso, o que está em causa é o incumprimento de

uma obrigação de custódia que recai sobre o vendedor, e que se considera incumprida se o

vendedor, por causa que lhe é imputável, não entrega os bens no estado em que estes se

encontravam ao tempo da venda.

483 Cfr. RAUL VENTURA, “O Contrato de Compra e Venda no Código Civil”, in ROA, n.º 43 (1983), p. 629. Como observa LUÍS

MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 30. 484 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 30. 485 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 60. 486 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 82. Sendo a deterioração imputável ao vendedor, o problema causado

pelo defeito superveniente na venda específica é um problema de impossibilidade parcial qualitativa, ao qual se aplicam indiretamente

(por analogia) o disposto nos arts. 793.º, n.º 1, e 802.º do Código Civil. Caso o vendedor não consiga ilidir a presunção de culpa,

consagrada no art. 799.º, n.º 1, do Código Civil, o comprador terá o direito de exigir “a reparação da coisa ou, se for necessário e esta

tiver natureza fungível, a substituição dela” (aplicando-se o art. 914.º), dentro de um prazo razoável (aplicando-se o art. 801.º por

remissão do art. 918.º do Código Civil). Se o vendedor aproveita a segunda oportunidade para cumprir, reparando ou substituindo a

coisa vendida dentro do prazo razoável que lhe seja fixado pelo comprador, este só terá direito a uma indemnização cumulativa com a

prestação pelos danos moratórios (art. 804.º, n.º 1, do Código Civil). Se o vendedor não aproveitar a segunda oportunidade para cumprir

dentro do prazo razoável, o comprador terá duas alternativas: pode resolver totalmente o contrato (art. 802.º, n.os 1 e 2) ou pode resolver

parcialmente o contrato, através da redução do preço (art. 802.º, n.º 1, aplicável por remissão do art. 918.º em ligação com o art. 911.º,

n.os 1 e 2, aplicável por remissão do art. 913.º).

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174

Se, porém, o vendedor conseguir ilidir a presunção de culpa, consagrada no art.

799.º, n.º 1, do Código Civil, o problema da deterioração na venda específica deve

resolver-se através da aplicação indireta (por analogia) dos arts. 793.º, n.º 1, e 796.º do

Código Civil487. O art. 793.º, n.º 1, pronuncia-se sobre o destino da prestação – a obrigação

do vendedor extingue-se parcialmente por impossibilidade – e o art. 796.º, n.º 1, sobre o

destino da contraprestação – a obrigação do comprador não se extingue, nem total, nem

parcialmente. O risco da deterioração da coisa específica, por causa não imputável ao

vendedor, corre, assim, por conta do comprador488.

2. O regime da perda ou deterioração da coisa na compra e venda de coisa genérica

Se nos contratos de alienação de coisa certa e determinada a lei elege como marco

fundamental, para efeitos de transferência do risco, a transmissão do direito real sobre a

coisa, o mesmo não sucede num contrato de compra e venda de coisa genérica, já que este

não goza de eficácia real imediata, uma vez que tem por objeto uma coisa indeterminada.

Sendo o regime das obrigações genéricas objeto de expressa ressalva pelo n.º 2 do

art. 408.º do Código Civil, no que diz respeito ao momento da transmissão dominial, a

transmissão do risco há de ocorrer também num momento distinto da determinação da

coisa devida com conhecimento de ambas as partes. Pelo menos nos casos em que a

487 Caso o vendedor consiga ilidir a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do Código Civil, o comprador não terá direito de exigir “a

reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela”. Em relação aos defeitos originários de coisa

específica, o art. 914.º, segunda parte, diz que o vendedor não tem o dever de reparar ou de substituir desde que o defeito não seja por si

conhecido; em relação aos defeitos supervenientes, o art. 914.º deveria dizer que o vendedor não tem o dever de reparar desde que o

defeito não seja (não tenha sido) por si causado. Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Violação positiva do contrato – Cumprimento

imperfeito e garantia de bom funcionamento da coisa vendida; âmbito da excepção do contrato não cumprido (acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 1980)”, in Estudos de Direito Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 1987, p. 139. 488 Na verdade, como já observou Baptista Machado, o nosso Código Civil, no Título “Das Obrigações em Geral”, regula o não

cumprimento das obrigações num enquadramento sistemático que tem por pólos de referência a impossibilidade (total ou parcial) e a

mora. Estas duas categorias não esgotam, porém, todas as hipóteses de incumprimento. Há outras formas de incumprimento, às quais

poderemos dar a designação genérica de “cumprimento defeituoso”, “execução defeituosa ou cumprimento imperfeito”, que não são

configuráveis como casos de impossibilidade ou de mora. Segundo Baptista Machado, “para apreendermos em toda a sua extensão o

instituto da resolução legal por incumprimento, devemos partir de um conceito geral de incumprimento que abranja todas as outras

situações de inadimplência além da impossibilidade de mora – seguindo neste ponto o exemplo da Lei Uniforme sobre a venda

internacional de objectos móveis (cfr. o respectivo art. 10.º). Assim, devemos assentar desde já em que toda a violação ou desvio de

certa importância do programa contratual deverá conferir em princípio ao credor (à outra parte no contrato com prestações

correspectivas) um direito de resolução”. Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra

Dispersa, vol. I, Sientia Iuridica, Braga, 1991, p. 344.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

175

escolha incumbe ao devedor – o que constitui a regra supletiva nos termos do art. 539.º –, o

momento da transferência da propriedade, consequentemente da transmissão do risco, deve

obter-se através do disposto nos arts. 541.º e 540.º do Código Civil.

Através de uma interpretação a contrario sensu do art. 541.º, 1.ª parte, deduz-se que

a concentração das obrigações genéricas ocorre com o cumprimento, fenómeno que, num

contrato de compra e venda, coincidirá com a entrega da coisa pelo devedor/alienante ao

credor/adquirente. Por outro lado, o art. 540.º do Código Civil, ao determinar que

“ [e]nquanto a prestação for possível com coisas do género estipulado, não fica o devedor

exonerado pelo facto de perecerem aquelas com que se dispunha a cumprir”, depõe

igualmente a favor da irrelevância da escolha, ou de qualquer outra conduta do devedor

que não a efetiva entrega da coisa, para efeitos de transmissão do direito real. Como

observa Nuno Aureliano, a regra do art. 540.º extravasa a solução da simples titularidade

dominial da coisa objeto de alienação, pretendendo regular, em conformidade com a

orientação proveniente do Direito Romano, a questão da distribuição do risco contratual489.

Nos contratos de compra e venda de coisa genérica, que tenham por objeto uma

obrigação de género ilimitado, o art. 540.º, afirmado como contrapartida da atribuição da

escolha do objeto da prestação ao devedor, obsta ao funcionamento do art. 790.º do Código

Civil, inviabilizando a existência de impossibilidade de prestação por parte do devedor de

obrigação genérica490 . Assim, o perecimento da coisa determinada, escolhida pelo

vendedor, antes da sua entrega ao comprador, por facto não imputável a nenhuma das

partes, não tem como consequência a impossibilidade (total ou parcial) da prestação, com a

consequente extinção da obrigação de entrega e exoneração do vendedor. Pelo contrário, o

art. 540.º determina a manutenção do dever prestacional com a consequente oneração do

devedor.

Segundo Nuno Aureliano, a oneração do devedor, nos termos do art. 540.º do Código

Civil, pode ser vista como uma manifestação do risco estático inerente à titularidade do

direito real sobre a coisa (não) alienada, o qual não se funda no nexo obrigacional

sinalagmático que se deduz da articulação entre os arts. 790.º a 795.º do Código Civil, nem

489 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 310. 490 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 306.

Isto será assim nas obrigações de género ilimitado. Nas obrigações de género limitado existem dados que circunscrevem ou delimitam o

objeto da prestação, com consequências em sede de impossibilidade da prestação.

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no art. 796.º, cuja aplicação é afastada pela não produção do efeito real em momento

anterior à entrega da coisa ao adquirente491. Como explica o Autor, se, neste caso, “o

alienante suporta o risco do perecimento ou deterioração da coisa, o mesmo sucede, não na

sua qualidade de devedor da prestação de entrega da coisa, ou de credor da contraprestação

correspectiva, mas antes com base no facto de, permanecendo imodificada a relação

obrigacional, o alienante dever arcar com um sacrifício patrimonial que se encontra

inscrito na sua esfera jurídica”492. O certo é que, ao contrário do comprador de coisa

específica, que suporta o risco da impossibilidade da prestação, o comprador de coisa

genérica não suporta o risco de ficar sem a coisa e sem o seu valor493. Note-se, contudo,

que, se é verdade que, nas obrigações de género ilimitado, o funcionamento do art. 540.º

do Código Civil obsta à aplicação do art. 790.º do Código Civil, o mesmo não sucede nas

obrigações de género limitado. Com efeito, na hipótese de perecimento integral do género

limitado é inequívoca a exoneração do devedor nos termos do art. 790.º do Código Civil,

com a consequente aplicação, dada a não produção de um efeito real pelo contrato, do art.

795.º, n.º 1, o qual veda ao vendedor a exigência da realização da contraprestação494.

Num contrato de compra e venda de coisa genérica, se a coisa com que o vendedor

se dispunha a cumprir se deteriorar depois da celebração do contrato e antes da sua entrega

ao comprador, aplica-se, por força do art. 918.º do Código Civil, o regime geral do não

cumprimento das obrigações495. O problema da deterioração da coisa na venda genérica

deverá resolver-se através da aplicação direta (por interpretação extensiva) do art. 540.º496,

491 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 311. 492 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., pp. 310 e

311. Como refere o A., o risco antes da concentração é suportado pelo devedor, não enquanto risco de impossibilidade mas enquanto

risco de propriedade. Trata-se de um fenómeno distinto do risco sinalagmático. Não é adequado falar de risco do vendedor nas

obrigações genéricas “uma vez que não sobrevindo a impossibilidade este não existe, muito menos um seu titular”. 493 NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 81. 494 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., pp. 311 e

312. 495 Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p.

478. 496 Embora o texto do art. 540.º só considere o caso de perda (do perecimento) das coisas determinadas/escolhidas pelo vendedor –

“Enquanto a prestação for possível com coisas do género estipulado, não fica o devedor exonerado pelo facto de perecerem aquelas com

que se dispunha a cumprir” –, o “pensamento legislativo” contido no art. 540.º deve aplicar-se ao caso de deterioração: enquanto a

prestação for possível com coisas da qualidade estipulada, não fica o devedor exonerado pelo facto de se deteriorarem aquelas com que

se dispunha a cumprir. A deterioração das coisas com que o vendedor se dispunha a cumprir não afecta o negócio e não limita a sua

responsabilidade. Cfr. NUNO OLIVEIRA , Venda de Coisa Genérica, cit., p. 84.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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não se aplicando nem o art. 793.º, n.º 1, já que a prestação do vendedor não se tornou nem

total nem parcialmente impossível, nem o art. 796.º, n.º 1, já que este pressupõe a produção

do efeito real. Assim sendo, o risco da deterioração da coisa genérica corre por conta do

vendedor, não enquanto risco de impossibilidade, mas enquanto risco de propriedade.

3. Breve enunciação dos direitos do comprador em caso de não cumprimento

defeituoso do contrato

O cumprimento defeituoso, imperfeito ou inexato é aquele que resulta da violação

dos três princípios fundamentais que regem o cumprimento, ou seja, a boa-fé, a

pontualidade e a integralidade, traduzindo-se na execução de prestações qualitativas e

quantitativas diversas das estipuladas ou na inobservância dos chamados deveres

laterais497. Deste modo, quando o devedor realize uma prestação desconforme com os

referidos princípios a primeira e a mais natural atitude do credor será recusar a prestação

defeituosa498. O art. 763.º, n.º 1, dá implicitamente ao credor o poder de recusar o

cumprimento parcial, podendo este preceito, aplicável diretamente aos casos de inexatidão

quantitativa, aplicar-se (por analogia) à inexatidão qualitativa499 . Se o comprador,

conhecendo o vício de que a coisa entregue padecia, no entanto, a aceitar, “cabe averiguar,

perante o caso concreto, se houve dação em cumprimento, novação, remissão ou outra

figura, seguindo-se o regime correspondente”500.

497 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., p. 355. 498 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., p. 358. Sobre a possibilidade de invocar a exceção de não

cumprimento em caso de cumprimento defeituoso, imperfeito ou inexato, v. JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção de Não Cumprimento

do Contrato, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 80 e segs. 499 Neste sentido, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., p. 358; JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção

de Não Cumprimento do Contrato, cit., p. 84. Pode ver-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de novembro de 1975,

no qual se afirma que “da regra de pontualidade, inserta no art. 406.º do Código Civil, resulta a conclusão de que a prestação debitória

deve ser efectuada integralmente e não por partes, não podendo o outro contraente ser compelido a aceitar o cumprimento parcial,

princípio que, em matéria de cumprimento das obrigações se encontra estabelecido no art. 763.º do mesmo diploma” – in BMJ, n.º 251,

pp. 156 e 157. A atitude de recusa por parte do credor deve igualmente ser controlada à luz do princípio da boa-fé. Segundo Menezes

Cordeiro, “a questão deve ser resolvida segundo as regras gerais dos conflitos de direitos”, não sendo até de excluir soluções de meio

termo. “O todo deve ser sempre ponderado à luz da boa fé – art. 762.º, n.º 2 – não sendo de afastar a possibilidade de abuso do direito –

art. 334.º – por parte do credor que, por uma pequena falha, recuse a prestaçãoo, causando, com isso, prejuízos muito maiores ao

devedor”, v. MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, vol. II., A.A.F.D.L., Lisboa, 1986 (reimpressão), 2001, p. 441. 500 V. CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit., p. 478.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

178

Recusando a prestação defeituosa, o comprador colocará a contraparte numa situação

de incumprimento total, a que é oponível a exceção de não cumprimento do contrato,

podendo assim o comprador suster legitimamente a realização da contraprestação501.

O problema do cumprimento defeituoso autonomiza-se, porém, quando o credor

aceita a prestação defeituosa, imperfeita ou inexata – e a aceita como cumprimento.

Normalmente, o comprador aceita a prestação, precisamente porque desconhece o

defeito da coisa502. Neste caso, o credor tem o direito de exigir que a prestação defeituosa,

imperfeita ou inexata seja retificada ou substituída. O direito à retificação e o direito à

substituição da prestação defeituosa traduzem-se no direito do credor a exigir um novo

cumprimento em conformidade com os três princípios que informam o cumprimento. O

pedido de novo cumprimento, através da reparação ou da substituição da coisa, está

expressamente previsto no art. 914.º do Código Civil, no que toca ao contrato de compra e

venda, bem como no art. 1221.º, no que se refere ao contrato de empreitada503. O art. 802.º,

que consagra o regime da inexatidão quantitativa definitiva, determina que o credor tem a

faculdade de exigir a realização da prestação quantitativamente inexata, reduzindo

proporcionalmente a sua contraprestação, ou de resolver o contrato504. Esta norma aplica-

se indiretamente (por analogia) à inexatidão qualitativa temporária ou transitória

(reversível), devendo aqui conciliar-se ou harmonizar-se com o art. 808.º de forma a

admitir-se a resolução do contrato, por aplicação do art. 802.º, sempre que, mas só quando,

haja um não cumprimento definitivo, ainda que parcial dos deveres de prestação: “o credor

501 JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, cit., p. 85. Como observa o Autor, já se afigura, porém,

duvidosa a invocação da exceção de não cumprimento se o credor tiver recebido a prestação sem reserva ou protesto apesar dos seus

vícios ou defeitos. Aí, já a invocação da exceção poderá aparecer como ilegítima – pelo menos em relação a parte da prestação a que está

adstrita. 502 Se aceita a prestação defeituosa, imperfeita ou inexata conhecendo o defeito, importa distinguir se o credor aceitou a prestação com

reserva ou sem reserva. Se o credor aceitou a prestação defeituosa com reserva, conserva os direitos relacionados com o cumprimento

defeituoso – em particular, conserva os direitos à retificação e à substituição da prestação; se o credor aceitou a prestação defeituosa sem

reserva, o devedor não responde pelos defeitos da prestação. Esta última solução resulta do art. 1219.º, n.º 1 que deve interpretar-se

como o afloramento de um princípio geral do regime do cumprimento defeituoso. V. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos

Contratos, cit., p. 497. 503 Do mesmo modo, o comprador de uma coisa onerada dispõe da faculdade de exigir do vendedor a expurgação dos ónus existentes

(arts. 905.º, 906.º, 907.º do Código Civil). 504 Nos termos do n.º 1 do artigo 802.º, “[s]e a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o

negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos

casos o credor mantém o direito à indemnização”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

179

só pode recorrer [à resolução do contrato] depois de ter operado a conversão da mora em

incumprimento definitivo, nos termos e segundo o processo indicados no art. 808.º”505.

Isto significa que, com exceção dos casos em que a inexatidão qualitativa conduz à

inutilidade da prestação, o credor deve, em primeiro lugar, fixar um prazo adicional ou

suplementar para que o devedor realize uma prestação qualitativamente exata (por

exemplo, para que o devedor repare ou substitua a coisa prestada); antes de este prazo

adicional ou suplementar terminar sem que o devedor realize uma prestação

qualitativamente exata, o credor só pode atuar o direito subjetivo propriamente dito ao

cumprimento506.

Se a reparação ou a substituição não forem material ou juridicamente possíveis507,

ou se o prazo adicional terminar, sem que o devedor realize uma prestação

qualitativamente exata, o comprador poderá o exercer o direito à redução do preço ou o

direito à resolução do contrato508. Não havendo culpa do vendedor, o comprador deve

contentar-se em princípio com a redução do preço (art. 793.º, n.os 1 e 2). Só quando o

defeito da coisa a tornar completamente inadequada ao fim contratual é que poderá haver

resolução do contrato (arts. 793.º, n.º 2, e 1222.º, n.º 2). Havendo culpa, o comprador pode

em geral resolver o contrato. Só quando o defeito da coisa tiver escassa importância é que

deverá contentar-se com a redução do preço (art. 802.º, n.os 1 e 2)509.

Em caso de incumprimento total ou de cumprimento defeituoso imputável ao

vendedor, assiste ao comprador o direito de ser indemnizados dos prejuízos resultantes.

505 V. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 171. 506 Cfr. NUNO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 813. 507 C. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., p. 359. Aos casos em que a reparação ou a substituição

não são materialmente possíveis poderíamos ainda acrescentar aqueles em que, apesar de materialmente possíveis, são excessivamente

onerosas para o vendedor relativamente ao proveito que delas possa advir para o comprador (art. 1221.º, n.º 2). V. BRANDÃO PROENÇA,

Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., p. 359. 508 Cfr. NUNO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 813. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit.,

p. 247. 509 A escassa importância do defeito funciona aqui como um limite ao exercício do direito de resolução do contrato.

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PARTE IV

O MODELO DA DIRETIVA 1999/44/CE: A NOÇÃO DE CONFORM IDADE COM

O CONTRATO E O SEU REVERSO – A FALTA DE CONFORMIDAD E

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183

CAPÍTULO I – Da génese da noção de conformidade com o contrato à sua

consagração expressa pelo legislador português

1. A mudança de paradigma: da venda específica de bens infungíveis à venda

genérica de bens fungíveis

A análise que até agora empreendemos permitiu-nos concluir que o legislador

português tomou como paradigma a venda de coisa específica e consagrou uma

diferenciação, em matéria de venda de coisas defeituosas, entre a venda de coisa específica

e a venda de coisa genérica. Se na venda de coisa genérica a tutela do comprador se funda

no não cumprimento (cumprimento defeituoso do devedor), ao entregar uma coisa sem as

qualidades que fazem parte do conteúdo do acordo, já no caso de venda de coisa específica

as soluções parecem justificar-se apenas pela tutela do erro do comprador.

Vimos, também, que em relação a um sub-tipo de venda específica – a venda de

bens que o comprador individualiza mas caracteriza por referência às características

normais do género a que pertence –, venda que, por apresentar a estrutura formal da venda

específica mas repousar em interesses típicos da venda genérica, se afigura aliás de

qualificação duvidosa, a tutela do comprador, se não de iure conditio, pelo menos de iure

condendo, deve achar-se no incumprimento do vendedor da sua obrigação de entrega de

um bem com as características normais do género.

Esta mutação do velho paradigma proveniente da tradição romanística da venda

específica de bens infungíveis para o paradigma da venda genérica de bens fungíveis,

protótipo da comercialização em massa que tem por objeto bens produzidos em série e

fungíveis, foi-se afirmando e consolidando ao longo dos últimos decénios, tendo a

cobertura jurídica desta mutação, particularmente nítida no âmbito do comércio para

consumo, tido a sua origem no âmbito do comércio internacional510.

Tal mutação permitiu a transição da obrigação do vendedor de entregar “a coisa

vendida” para a obrigação do vendedor de entregar “uma coisa conforme ao contrato”,

tanto na venda genérica como na venda de coisa específica (fungível ou infungível).

510 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 155.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

A Diretiva 1999/44/CE, assumidamente inspirada na Convenção de Viena de 1980,

consagrou expressamente uma obrigação de conformidade dos bens com o contrato511. Nos

termos do n.º 1 do art. 2.º, “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que

sejam conformes com o contrato de compra e venda”, e o n.º 2 estabelece uma série de

critérios que permitem estabelecer a falta de conformidade dos bens com o contrato.

Estando o vendedor, quer na venda de coisa específica, quer na venda de coisa genérica,

obrigado a entregar ao consumidor um bem conforme com o contrato, poderá afirmar-se

que a conformidade com o contrato faz parte do conteúdo do dever de prestação a que o

devedor se encontra adstrito e que, por conseguinte, a tutela do comprador encontra o seu

fundamento no incumprimento daquele dever de prestação.

Nesta parte da nossa dissertação vamos pois analisar a noção de conformidade com o

contrato, e, em particular, as “presunções” ou critérios elencados no art. 2.º, n.º 2, da

Diretiva 1999/44/CE e no art. 2.º, n.º 2, do DL n.º 67/2003, de 8 de abril.

A análise da noção de conformidade, consagrada na Diretiva 1999/44/CE, implica

também uma abordagem do problema da transferência do risco, já que, apesar de o

Considerando 14 dispor que “as referências à data da entrega não implicam que os

Estados-Membros devam alterar as suas normas sobre transferência do risco”, esta

alteração impõe-se, segundo julgamos, como implicação dogmática da adoção de um

regime de incumprimento (cumprimento defeituoso) assente na noção de conformidade

com o contrato, nos termos consagrados na Diretiva 1999/44/CE, na esteira da Convenção

de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias e dos vários

textos de harmonização do Direito Europeu do Contratos.

Vamos, pois, dedicar o último capítulo desta Parte à análise dessa problemática.

2. A obrigação de conformidade nas convenções sobre compra e venda

internacional, em particular, na Convenção de Viena sobre a Venda

Internacional de Mercadorias

A noção de conformidade com o contrato teve a sua origem no direito do comércio

internacional. Embora a primeira referência a esta noção se encontre na versão original do

511 Neste sentido, v. ANTONIO MANUEL MORALES MORENO, “Tres modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”,

cit., pp. 5 a 28, p. 6.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

185

“Uniform Commercial Code”, publicada em 1952, a sua consagração no civil law só veio a

ocorrer posteriormente, tendo ficado a dever-se a Rabel, jurista alemão imigrado nos

Estados Unidos, que a introduziu no estudo editado em 1958 com base no qual se preparou

a Convenção da Haia, de 1964, sobre a venda internacional de objetos móveis

corpóreos512. Esta Convenção dispunha no art. 19.º, n.º 1, que “a entrega consiste no envio

de uma coisa conforme com o contrato” e, sob a epígrafe “Obrigação do vendedor quanto à

conformidade da coisa”, formulava, nos arts. 33.º e segs., os efeitos da “falta de

conformidade”. Esta Convenção teve porém uma aceitação muito limitada, só tendo

entrado em vigor em sete Estados europeus e em dois extraeuropeus)513. Apesar do pouco

êxito, no essencial, o regime consagrado na Convenção da Haia de 1964 passou para a

Convenção de Viena de 1980, a qual encontrou vasto acolhimento na comunidade

internacional514, tendo sido ratificada por um número elevadíssimo de Estados europeus e

por um número muito significativo de Estados extraeuropeus515. Portugal, sem razão

aparente, não é parte na Convenção, mas espera-se que ainda possa vir a ratificá-la.

A Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra e Venda Internacional de

Mercadorias regula (apenas) a formação do contrato de compra e venda de mercadorias,

bem como os direitos e obrigações que dele decorrem para o vendedor e para o comprador

(art. 4.º). Perante esta Convenção, constitui uma das obrigações principais do vendedor

entregar a mercadoria conforme ao contrato (arts. 30.º, 35.º a 40.º) e livre de direitos ou

pretensões de terceiros (arts. 41.º e 42.º) no lugar e data convencionados (arts. 31.º a

33.º)516. Esta obrigação inclui ainda a obrigação de entregar os documentos relativos à

mercadoria (art. 30.º). Quanto à conformidade da mercadoria com o contrato, o art. 35.º, n.º

1, determina que “[o] vendedor deve entregar mercadorias que, pela quantidade, qualidade

512 A ideia é, todavia, anterior, uma vez que já na versão original do Uniform Commercial Code, publicada em 1952, se estabelece, no §

2-106 (2) que: “Goods or conduct including any parto f a performance are conforming or conform to the contract when they are in

accordance with obligations under the contract”. Posteriormente, a ideia de conformidade passou para o civil law, tendo sido introduzida

por Rabel, jurista alemão imigrado nos Estados Unidos, no estudo editado em 1958 com base no qual se preparou a Convenção da Haia,

de 1964, sobre a venda internacional de objectos móveis corpóreos. Esta Convenção, dispunha no art. 19.º, n.º 1, que “a entrega consiste

no envio de uma coisa conforme com o contrato” e, sob a epígrafe “obrigação do vendedor quanto à conformidade da coisa”, formulava,

nos arts. 33.º e segs., os efeitos da “falta de conformidade”. A Convenção da Haia teve pouco êxito na sua vigência, mas, no essencial o

seu regime passou para a Convenção de Viena de 1980. 513 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 259. Portugal não é parte desta Convenção. 514 LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 259 515 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 281. 516 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 281.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

e tipo, correspondam às previstas no contrato e que tenham sido embaladas ou

acondicionadas de acordo com a forma prevista no contrato”.

Para além disso, o n.º 2 do mesmo preceito exige, na falta de convenção em

contrário, que a mercadoria:

– seja adequada às finalidades para as quais seria usada habitualmente mercadoria do

mesmo tipo [alínea a)];

– seja adequada a qualquer finalidade especial expressa ou tacitamente levada ao

conhecimento do vendedor no momento da celebração do contrato, a não ser que resulte

das circunstâncias que o comprador não confiou na competência ou na capacidade de

avaliação do vendedor, ou que não era razoável da sua parte fazê-lo [alínea b)];

– possua as qualidades da mercadoria que o vendedor apresentou ao comprador

como amostra ou modelo [alínea c)];

– seja embalada ou acondicionada na forma habitual para as mercadorias do mesmo

tipo ou, na falta desta, de um modo adequado a conservá-la e a protegê-la [alínea d)].

Isto significa que segundo a Convenção a falta de conformidade deve ser aferida de

acordo com as regras contratuais e, na falta destas, com as regras supletivas consagradas

no n.º 2 do art. 35.º. No entanto, o vendedor fica exonerado se o comprador conhecia ou

não podia ignorar, no momento da conclusão do contrato, a falta dos requisitos das

mercadorias referidos nas quatro alíneas do n.º 2 do art. 35.º da Convenção.

3. Da progressiva afirmação da noção de conformidade à sua adoção pelo legislador

comunitário

A ideia de conformidade – consubstanciada na indicação de padrões de

conformidade, na exigência de entrega conforme com o contrato e na equiparação da falta

de conformidade ao incumprimento – nunca foi, porém, exclusiva das convenções sobre

compra e venda internacional. Com esta nomenclatura, ou com outras substancialmente

equivalentes, a noção de conformidade foi sendo consagrada em diversas ordens jurídicas

nacionais, como é o caso do Reino Unido517, dos países escandinavos518 e da Holanda519.

517 A ideia de “fornecer bens com a qualidade adequada” foi introduzida no direito inglês através da técnica dos implied terms, cujo

elenco constitui um primeiro passo para a evolução de caveat emptor para caveat venditor e influenciou os padrões de qualidade

estabelecidos pelas convenções sobre compra e venda internacional. Cfr. ATIYAH , The Sale of Goods, 9.ª ed., London, 1995, pp. 111

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

187

Para a progressiva afirmação da noção de conformidade contribuiu também a

doutrina, seja pela demonstração da diferença, verificável também na venda de coisa

específica, entre a qualidade da coisa como é (Istbeschaffenheit) e a qualidade da coisa

como deve-ser segundo o contrato (Sollbeschaffenheit)520, seja pelo emprego do conceito

de conformidade ainda antes da sua consagração legal expressa, o qual, aliás, seria uma

decorrência lógica do princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações521.

No âmbito do direito do consumo, o conceito de conformidade apareceu apenas no

final do decénio passado: primeiro, no Code de la Consummation francês, de 1993, depois,

no projeto belga de código de consumo de 1995, ambos com um título sobre conformidade

e segurança dos bens e serviços522. Assim, quando em 1993 começou a ser preparada a

diretiva comunitária sobre (garantias na) compra e venda para consumo, as coisas estavam

maduras para adotar o conceito unitário de conformidade523, o qual, aliás, como resulta do

Considerando 7, foi considerado pelo legislador comunitário como “uma base comum às

diferentes tradições jurídicas nacionais”524.

segs. Os implied terms constam das secções 13 a 15 do Sale of Goods Act 1979, revisto em 1994 (tendo a referência a merchantable

quality sido substituída pela referência a satisfactory quality) e em 2002 (com a menção das declarações públicas como suporte de

implied terms adicionais dos contratos de consumo, satisfazendo assim as exigências da Diretiva 1999/44/CE). Sobre este ponto, v.

WATTERSON, Consumer Sales Directive 1999/44/EC – The impacto on English law, ERPL, 2001, n.os 2 e 3, pp. 197 segs.; PAULO MOTA

PINTO, “Sobre o equivalente metodológico dos implied terms”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães

Collaço, Coimbra, 2002, vol. II, pp. 241 e segs. 518 Na perspetiva da comparação dos respetivos direitos nacionais com a Diretiva 1999/44/CE, v. NIELSEN, “Directive 1999/44/EC of the

Parliament and the Council on certain aspects of the sale of consumer goods and associated guarantees and its influence on Danish law”,

in European Review of Private Law, 2001, n.º 2, pp. 189 e segs., e HANNA SIVESAND, “Sweden-Delayed Reforms Due to the Consumer

Sales Directive?”, in European Review of Private Law, 2001, 9, 2/3, pp. 359-367. 519 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., pp. 156 e 157. 520 A este propósito, v. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 5 a 95. 521 No direito francês: LE TOURNEAU, “Conformité et garanties dans la vente d’objets mobiliers corporels”, RTDC, 1980, pp. 230 e

segs. ; e GHESTIN, Conformité et garanties dans la vente (produits mobiliers), Paris, 1983. No direito português, v. FERREIRA DE

ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, cit., pp. 635 e segs. 522 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 158. 523 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 158. 524 No considerando da Diretiva pode ler-se que “o princípio da conformidade com o contrato pode considerar-se uma base comum às

diferentes tradições jurídicas nacionais”. Tal afirmação merece alguma observação. Se olharmos para a generalidade dos Códigos

europeus continentais não podemos afirmar, rigorosamente, que o princípio da conformidade esteja plasmado neles nos mesmos termos

em que ele está consagrado na Diretiva. Não obstante, o facto de a Convenção de Viena já ter sido ratificada pela esmagadora maioria

dos Estados europeus permite afirmar que o princípio da conformidade já estava presente, por esta via, na generalidade dos

ordenamentos. Isto porque a exigência de conformidade é uma importação da Convenção de Viena.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

Num primeiro momento, seguiu-se na linha da conformidade com as expectativas

legítimas do consumidor525, que era a sugestão apresentada no Livro Verde sobre as

garantias dos bens de consumo e os serviços pós-venda526. De acordo com esta sugestão, a

noção de “conformidade com a as expectativas legítimas do consumidor”, constituindo

uma boa síntese da evolução mais recente de alguns Estados-Membros, deveria ser

concretizada tomando em conta todas as circunstâncias e, particularmente, as disposições

do contrato. O contrato, de acordo com o Livro Verde, era pois, apenas, elemento relevante

para a determinação da existência de conformidade com as expectativas dos consumidores.

Esta sugestão não passou, porém, para a versão final da Diretiva 1999/44/CE, tendo o

legislador enveredado por uma via diversa: a da conformidade com o contrato (art. 2.º, n.º

1), assumidamente inspirada na Convenção de Viena de 1980527 e que o próprio legislador

comunitário dizia ser “a base comum às várias tradições jurídicas nacionais”528. O contrato

passou pois a ser a “referência” para a determinação da conformidade529.

Apesar disso, como veremos, o legislador comunitário não afastou totalmente a

relevância das expectativas razoáveis do consumidor, na medida em que um dos

parâmetros da falta de conformidade é justamente a não correspondência da qualidade e

desempenho dos bens a que o consumidor pode legitimamente esperar [alínea d), do n.º 2

do art. 2.º].

525 Comissão das Comunidades Europeias, Livro Verde sobre as garantias dos bens de consumo e os serviços pós-venda, COM (93) 509

final, de 15 de novembro de 1993, pp. 109 e segs. 526 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 223. 527 No entanto, foi a Convenção de Viena de 1980 que inspirou de forma decisiva o legislador comunitário aquando da elaboração da

Diretiva. Neste sentido, CHRISTIAN TWIGG-FLESNER/ROBERT BRADGATE, “The E.C. Directive On Certain Aspects os the Sale of

Consumer Goods and Associated Guarantees – All Talk and No Do?”, in Web Journal of Current Issues, 2 (2000), disponível em

http://webjcli.ncl.ac.uk/2000/issue2/flesner2.html, p. 7. Os Autores manifestam-se, contudo, contra a tentativa de interpretar a Diretiva a

partir da Convenção de Viena, tendo em conta que há numerosas diferenças entre os dois textos, que nem todos os Estados-Membros

ratificaram, ainda, a Convenção de Viena, mas sobretudo porque o objetivo destes dois textos é diferente. Note-se que a Convenção de

Viena, no art. 2.º, alínea a), expressamente exclui do seu âmbito de aplicação as vendas de mercadorias compradas para uso pessoal,

familiar ou doméstico, a menos que o vendedor, em qualquer momento anterior à conclusão do contrato ou na altura da conclusão deste,

não soubesse, nem devesse saber que as mercadorias eram compradas para tal uso. 528 Cfr. Considerando 7. 529 Na sua versão final, a Diretiva 1999/44/CE sobre a venda de bens de consumo dispõe no n.º 1 do art. 2.º (cuja epígrafe é

“Conformidade com o contrato”) que “o vendedor deve entregar ao comprador bens que sejam conformes com o contrato de compra e

venda”. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece uma série de parâmetros pelos quais se avalia uma tal conformidade.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

189

4. A consagração expressa da noção de conformidade com o contrato no

ordenamento jurídico português

Na esteira da Diretiva 1999/44/CE, e à semelhança do que sucedeu em outros

ordenamentos jurídicos comunitários, o n.º 1 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 veio consagrar

expressamente no direito português o princípio da conformidade dos bens com o

contrato530. O n.º 1 do art. 2.º estabelece que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao

consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda” e o n.º 2

estabelece uma série de critérios pelos quais se avalia a (falta de) conformidade.

Alguns Autores entendem que a consagração expressa da noção de conformidade

com o contrato não é inovadora na nossa ordem jurídica tendo em conta o disposto no n.º 1

do art. 406.º do Código Civil, que consagra o princípio da pontualidade (“o contrato deve

ser pontualmente cumprido”, i. e., deve ser cumprido ponto por ponto) e o n.º 1 do art.

762.º do Código Civil, que determina que “[o] devedor cumpre a obrigação quando realiza

a prestação a que está vinculado”531. Efetivamente, a consagração expressa de uma

obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato revelou-se particularmente

inovadora em ordenamentos jurídicos como o italiano e o francês, em que a obrigação de

entrega estava separada da observância da (eventual) garantia de qualidade532.

Entre nós, apesar de o Código Civil não estabelecer um regime jurídico geral

aplicável ao cumprimento defeituoso, a doutrina reconhece esta modalidade, entendendo-

se que ela resulta da violação dos três princípios fundamentais que regem o cumprimento,

ou seja, a boa-fé, a pontualidade e a integralidade, traduzindo-se na execução de prestações

qualitativas e quantitativas diversas das acordadas ou na inobservância de deveres

laterais533. Como refere Baptista Machado, “por cumprimento inexacto deve entender-se

530 Cfr. LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, “Caveat venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu

sobre a venda de bens de consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda”, cit., pp. 263 a 303,

p. 275. 531 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina,

Coimbra, 2012, p. 427. Neste sentido, v., ainda, JOÃO CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 81. 532 Neste sentido, v. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 160. Em Itália, o art. 1476 do CCit distingue, entre as

obrigações principais do vendedor, a obrigação de entregar a coisa ao comprador e a obrigação de garantir o comprador da evicção e dos

vícios da coisa. O mesmo sucede em França, em face do disposto no art. 1603 do CCfr, que determina que sobre o vendedor recai não

apenas a obrigação de entrega, mas também a obrigação de garantir a coisa vendida. 533 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento, cit., pp. 354 e 355.

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todo aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir

com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio

geral da correcção e da boa-fé”534. Note-se, porém, que, na economia do Código Civil, o

cumprimento defeituoso é ainda cumprimento, porque satisfaz (parcialmente) o

comportamento devido, o que justifica a sua designação de “cumprimento defeituoso,

imperfeito ou inexacto”535.

Apesar disso, o nosso legislador civil, por razões históricas, separou os institutos da

“garantia” e do “não cumprimento”, consagrando, em sede de contrato de compra e venda,

um regime específico aplicável à compra e venda de coisa (específica) defeituosa (arts.

913.º e segs.), e remetendo o regime da compra e venda de coisa (genérica) defeituosa para

as regras gerais relativas ao não cumprimento das obrigações. Apesar de alguma doutrina e

jurisprudência propugnarem a existência de um regime unitário de cumprimento

defeituoso, aplicável à compra e venda de coisa específica e genérica, a verdade é que o

nosso Código Civil consagra uma diferenciação fundamental entre a venda de coisa

específica e a venda de coisa genérica536.

O princípio da conformidade dos bens com o contrato, consagrado na Diretiva

1999/44/CE, não comporta semelhante diferenciação, porque a ele subjaz um modo

distinto de entender o objeto da venda específica: o nosso legislador civil tomou como

paradigma da venda específica a venda de bens que o comprador individualiza pelas suas

características únicas ou singulares, sendo as características próprias do género a que

pertence o bem individualizado apenas pressupostas; o legislador comunitário tomou como

paradigma a venda (específica ou genérica) em que o comprador/consumidor caracteriza o

bem por referência às características próprias do género a que pertence e não pelas suas

características únicas ou singulares.

Não podemos olvidar que o modelo de venda que a Diretiva regula – “a venda de

bens de consumo” – é um modelo de venda bem distante do modelo de venda que subjaz

ao nosso Código Civil. A venda regulada pela Diretiva 1999/44/CE é a venda de bens de

534 V. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 168. 535 V. FERREIRA DE ALMEIDA , Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I., cit., p. 643. 536 No entanto, como salienta Jorge Morais Carvalho, “a prática demonstra que a falta de conformidade não é equiparada ao

incumprimento da obrigação, não sendo aplicado o princípio da pontualidade na sua plenitude em muitas situações”. O melhor exemplo,

segundo o Autor, é o regime da compra e venda de coisas defeituosas, plasmado nos arts. 913.º a 922.º do Código Civil, que é um

regime que claramente protege o vendedor, permitindo que um grande número de casos de desconformidade não seja protegido pela lei.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

191

consumo, tendencialmente produzidos em série e fungíveis, celebrada entre um

consumidor e um vendedor profissional, inserida numa cadeia de distribuição organizada e

frequentemente assistida de um serviço pós-venda537. A questão que se pode colocar é se o

modo como o legislador comunitário concebe o objeto da venda (específica) é uma

decorrência da qualidade dos sujeitos intervenientes e da necessidade de proteção do

consumidor enquanto “parte mais fraca” ou se, diversamente, resulta do tipo de bens –

tendencialmente produzidos em série e fungíveis – e se traduz, portanto, numa exigência

de um adequado tratamento da matéria sempre que, independentemente da qualidade dos

sujeitos intervenientes, a venda tenha por objeto bens fungíveis, que o consumidor

caracteriza por referência às características próprias do género a que pertence e não pelas

suas características únicas ou singulares.

O legislador alemão, através da solução alargada no que toca à transposição da

Diretiva 1999/44/CE, estendeu o regime previsto na Diretiva para a venda de bens de

consumo a toda a compra e venda, independentemente da qualidade dos sujeitos

intervenientes: o § 433 do BGB dispõe agora que sobre o vendedor (de coisa específica ou

genérica) recai uma obrigação de entregar uma coisa livre de defeitos materiais ou

jurídicos.

Se, no âmbito da compra e venda civil, a existência de um princípio de

conformidade, com a extensão que lhe é dada pela Diretiva 1999/44/CE e, sobretudo, com

a extensão que assume agora no Código Civil alemão, sempre foi objeto de intenso debate

doutrinal e querelas jurisprudenciais, já no âmbito das relações de consumo, a exigência de

qualidade dos bens e serviços prestados ao consumidor encontra-se expressamente

consagrada no art. 60.º da CRP, nos termos do qual “os consumidores têm direito à

qualidade dos bens e serviços consumidos [...]”. Esta norma deve ser interpretada no

sentido de se exigir a boa qualidade (ou qualidade superior) dos bens e serviços de

consumo538. Também o art. 4.º, n.º 1, da LDC, parcialmente revogado pelo DL n.º 67/2003,

537 V. GIUSEPPE AMADIO , “Conformità al contrato e tutelle satisfattorie”, cit., pp. 151 a 160, p. 158. 538 Esta norma deve ser interpretada no sentido de se exigir a boa qualidade (ou qualidade superior) dos bens e serviços de consumo. Esta

norma, para além do seu sentido programático, impondo ao legislador ações com vista a garantir a boa qualidade dos bens ou serviços de

consumo, serve como elemento relevante na interpretação do conteúdo de um contrato de consumo, que será tanto mais relevante quanto

menos forem os elementos concretos definidos contratualmente pelas partes. Também o art. 4.º da LDC, cuja epígrafe remete para a

ideia de direito à qualidade dos bens e serviços, contribui no sentido da conclusão de uma especial exigência de qualidade da prestação,

imposta ao profissional nos contratos de consumo. Esta norma, parcialmente revogada pelo DL n.º 67/2003, determina agora que “os

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acolhia já uma ideia de conformidade concretizada na adequação dos bens às expectativas

legítimas do consumidor. Nos termos do referido preceito, “[o]s bens e serviços destinados

ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que

se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo

adequado às legítimas expectativas do consumidor”. A articulação desta norma com o

disposto no art. 12.º, n.º 1, do mesmo diploma, é, porém, duvidosa, podendo, pois,

questionar-se se a noção de “defeito”, constante da hipótese do art. 12.º, n.º 1, poderá ser

determinada de acordo com o disposto no art. 4.º, n.º 1, ou seja, de acordo com o critério

da falta de conformidade às expectativas legítimas do consumidor539.

Para além disso, a Lei de Defesa do Consumidor previa uma figura mais favorável

para o consumidor – a garantia de bom estado e de bom funcionamento540. No âmbito do

direito do consumo, a aprovação da Lei de Defesa do Consumidor em 1996 veio introduzir

uma profunda alteração de paradigma relativamente ao regime estabelecido no Código

Civil ao consagrar no n.º 2 do art. 4.º que “o fornecedor de bens móveis não consumíveis

está obrigado a garantir o seu bom estado e o seu bom funcionamento por período nunca

inferior a um ano” e no n.º 3 do mesmo artigo que “[o] consumidor tem direito a uma

garantia mínima de cinco anos para os imóveis”. Nestes termos, o consumidor passou a

beneficiar, por força da lei, de uma dupla garantia: a garantia de bom estado do bem e a

garantia do seu bom funcionamento541.

bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem,

segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”. Trata-se

de uma norma mais precisa que o art. 60.º da CRP, estabelecendo critérios concretos para a determinação do bem ou serviço objeto do

contrato e da sua qualidade. Como refere Jorge Morais Carvalho, “[a] lei vai aqui um pouco além da exigência de qualidade da prestação

(claramente objectiva), impondo que, numa relação de consumo, a definição do conteúdo do contrato tenha em conta o ambiente

concreto que esteve na origem da sua celebração, integrando-se não só os elementos objectivamente relevantes mas também os

elementos que, tendo em conta o consumidor e as circunstâncias, seja expectável inserir no contrato”. 539 O art. 4.º da LDC aplica-se a todos os contratos de consumo, sendo especialmente relevante em relação àqueles a que não se aplica o

regime do DL n.º 67/2003, o qual é ainda mais claro na definição dos critérios conformadores do conteúdo do contrato. 540 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , “Orientações de Política Legislativa Adoptadas pela Directiva 1999/44/CE sobre Venda de

Bens de Consumo. Comparação com o Direito Português Vigente”, in Themis, ano II, n.º 4, 2001, p. 117, defende que “o regime

material subjacente ao conceito já estava, no essencial, consagrado nos arts. 4.º e 12.º da Lei de Defesa do Consumidor”. 541 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

505. A garantia de bom funcionamento já se encontrava consagrada no art. 921.º do Código Civil: “Se o vendedor estiver obrigado, por

convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando

a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”. Esta garantia

implica o assegurar pelo vendedor de determinados requisitos que a coisa deve possuir em ordem a garantir o seu adequado

funcionamento. A garantia de bom funcionamento apenas pode ser afastada no caso de a deterioração do bem resultar de facto imputável

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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CAPÍTULO II – A noção de conformidade e de falta de conformidade com o contrato

1. Noção de conformidade com o contrato

Não encontramos na Diretiva 1999/44/CE uma noção de conformidade com o

contrato; sabemos, porém, que esta noção foi importada da Convenção de Viena de 1980

cujo n.º 1 do art. 35.º determina que “[o] vendedor deve entregar mercadorias que pela

quantidade, qualidade e tipo correspondam às previstas no contrato e que tenham sido

embaladas e acondicionadas de acordo com a forma prevista no contrato”, estabelecendo o

n.º 2 critérios para determinar, na falta de convenção das partes, a conformidade das

mercadorias com o contrato. Como ensina Ferreira de Almeida, a conformidade “é uma

relação deôntica entre duas entidades”: a relação que se estabelece entre a coisa como é

(referente) e a coisa como deve ser (referência)542.

Assim, a conformidade a que refere o n.º 1 do art. 2.º da Diretiva e do DL n.º

67/2003 é a relação entre a coisa concreta – a coisa entregue ao consumidor em execução

do contrato – e a coisa ideal, como deve ser – o contrato por si e incluindo em si várias

remissões. Assim, por exemplo, se o vendedor entregou ao consumidor um frigorífico da

marca acordada que se verifica não ter a capacidade de congelação que fora assegurada, o

referente é aquele frigorífico entregue ao consumidor em execução do contrato; a

referência é um frigorífico daquela marca e com a capacidade de congelação que fora

ao consumidor. Neste sentido, trata-se de um regime mais favorável para o consumidor, uma vez que tem a garantia de que o bem

estará em bom estado e em bom funcionamento durante o prazo legalmente previsto... A garantia vigora pelo prazo estipulado no

contrato ou imposto pelos usos, sendo que na ausência de estipulação ou de uso, aplica-se o prazo de seis meses, contados da entrega da

coisa (art. 921.º, n.º 2, do Código Civil) ou da sua efetiva receção pelo comprador, quando se trate de coisas objeto de transporte (art.

922.º do Código Civil). Nesses casos, o defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor, dentro do prazo de garantia e, salvo

estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido (art. 921.º, n.º 3, do Código Civil), caducando a ação logo que finde o

tempo para a denúncia sem que o comprador a tenha efetuado, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada (art.

921.º, n.º 4, do Código Civil). Uma vez que apenas se refere ao vendedor, o art. 921.º não abrange os casos em que a garantia é prestada

pelo fabricante. 542 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 159. Nas palavras de JORGE MORAIS CARVALHO , “[a] conformidade é

sempre avaliada pela operação que consiste em comparar a prestação estipulada no contrato e a prestação efectuada” – cfr. Os Contratos

de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 424.

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assegurada. A conformidade da prestação com o contrato equivale a cumprimento da

obrigação contratual, isto é, cumprimento da obrigação de entrega do vendedor543.

O reverso da conformidade é a desconformidade ou falta de conformidade, isto é, a

divergência entre a qualidade que tem e a qualidade que devia ter a coisa prestada: “se o

objecto na execução não for como deve ser, há falta de conformidade ou

desconformidade”. A desconformidade da coisa (ou da prestação) com o contrato implica

incumprimento da obrigação de entrega pelo vendedor. E isto, sem que para o efeito

interesse saber se se trata de venda de coisa genérica ou de venda de coisa específica544.

O juízo de conformidade, ou seja, a determinação da conformidade ou falta de

conformidade dos bens com o contrato consiste, pois, na relação que se estabelece entre a

coisa concreta (como é) e a coisa ideal (como deve ser). A coisa ideal constrói-se a partir

de critérios de determinação da prestação que foi acordada pelas partes, o que pressupõe a

interpretação do contrato e a sua eventual integração. É precisamente neste ponto que

assume especial relevância o significado a atribuir às “presunções” de não conformidade

consagradas no n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003.

O juízo de conformidade deve fazer-se no momento da entrega e não no momento da

conclusão do contrato, embora este último também seja importante, já que é ele o

momento que releva para avaliar se o consumidor conhecia ou podia razoavelmente

conhecer a “falta de conformidade”.

1.1. As facti-species compreendidas na noção de falta de conformidade

A doutrina tem entendido que a noção de falta de conformidade, por ser mais ampla

que a noção de defeito, consagrada no art. 913.º do Código Civil, abrange não apenas a

entrega de coisa defeituosa (peius), mas também a entrega de uma quantidade inferior à

acordada (minus) e a entrega de um quid que diverge na sua identidade daquele que foi

543 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, p. 160: “Só há cumprimento do contrato pelo vendedor, se a coisa, além de ter sido

entregue nas circunstância devidas de tempo e lugar, for, em tudo o resto, conforme ao contrato e aos restantes factores convocadados

pelo contrato”. A teoria do cumprimento substituiu as teorias da garantia e do erro. No direito alemão, os novos §§ 433 (1), 2 e 434 do

BGB, embora literalmente não usem a palavra “conformidade”, são tributários da ideia subjacente. 544 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., pp. 159 e 160. O Autor explica que, na Diretiva, os padrões de conformidade

da coisa com o contrato estão concentrados na qualidade, embora o princípio seja mais amplo. “Abrange naturalmente também a

quantidade e não se vê razão para não o abrir a toda a prestação.”

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objeto do contrato (aliud pro alio) 545 . Em qualquer um destes casos, existe uma

desconformidade da coisa (ou da prestação) com o contrato, o que implica um

incumprimento da obrigação de entrega e confere ao consumidor a possibilidade de fazer

valer os direitos previstos no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003546, que são os remédios

previstos para o não cumprimento, adaptados ao contrato de compra e venda, a saber: o

direito ao exato cumprimento, através da reparação e da substituição da coisa, o direito à

redução do preço e o direito à resolução do contrato547.

De acordo com o regime da venda de coisas defeituosas, consagrado nos arts. 913.º e

segs. do Código Civil, a entrega de uma quantidade inferior à acordada não implica a

existência de um defeito uma vez que corresponde a um mero incumprimento parcial548.

Assim sucede, por exemplo, se em vez das 1000 garrafas alienadas o vendedor entrega

apenas 900 – não se aplica o regime consagrado nos arts. 913.º e segs. mas as regras gerais

do não cumprimento parcial, com as especificidades dos arts. 887.º e segs.549. Há, no

entanto, situações em que estando a falta de quantidade intimamente ligada com a

qualidade do bem, ela é, em si, um defeito, estando, consequentemente, sujeita ao regime

da venda de coisas defeituosas. Assim, por exemplo, o vidro de uma determinada

dimensão ou com uma determinada espessura, vendido para certa janela e que se prova ser

pequeno, ou a viga é de espessura inferior à acordada, pelo que não tem capacidade para

suportar o peso da estrutura que pretende sustentar550.

Do mesmo modo, as situações em que o vendedor entrega uma coisa diversa da que

era devida (aliud) são tratadas, por alguns Autores, segundo o regime geral do

545 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 161. 546 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 161. Refira-se, a este propósito, que o novo § 434/3 do BGB equipara

expressamente a um vício da coisa (Sachmangel) as situações em que o vendedor fornece uma outra coisa (aliud) ou uma quantidade

inferior pondo assim termo à referida distinção. Cfr. HAAS/MEDICUS/ROLLAND /SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, cit., p.

195. Como observam os Autores, a jurisprudência alemã distinguia as situações de entrega de aliud das situações de vício. Nas

primeiras, o comprador apenas podia recorrer à resolução (Wandelung) e à redução do preço (Minderung), não podendo, no entanto,

exigir a substituição, ou seja, o cumprimento posterior ainda possível. Após a reforma do Direito das Obrigações alemão, o comprador já

pode exigir, nos termos do § 439/1 do BGB a substituição da coisa. 547 A estes direitos acresce, ainda, a indemnização, nos termos estabelecidos pelo art. 12.º, n.º 1, da LDC, na redação que lhe foi dada

pelo DL n.º 67/2003. 548 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 215. 549 V. CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 44. 550 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 216.

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incumprimento negocial551, na medida em que não se subsumem à noção de defeito,

consagrada no art. 913.º, n.º 1, do Código Civil. É frequente distinguir-se o peius do aliud.

No primeiro, o devedor realiza a prestação a que estava adstrito mas esta é defeituosa. No

segundo, o devedor faz uma prestação diversa da que era devida. Na prática, porém, existe

alguma dificuldade em delimitar as situações em que a coisa entregue é um peius das

situações em que o vendedor entrega um aliud552. As razões que levam a doutrina a

distinguir os casos de simples inexatidão da prestação dos casos de diversidade prendem-se

com a necessidade de proteger o comprador, afastando, nos casos em que a prestação é

outra e diversa, a aplicação das regras previstas nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, em

particular as que se referem ao prazos breves, por se entender que estas regras representam

um favor venditoris, que não se justifica nos casos em que o vendedor entrega uma coisa

diversa da que era devida553.

O novo § 434/3 do BGB equipara expressamente à entrega de uma coisa que

apresenta um vício material a entrega, por parte do vendedor, de uma coisa diversa daquela

que era devida ou de uma quantidade inferior àquela que era devida. Através da expressa

equiparação entre aliud e peius, o comprador a quem foi entregue um bem diverso daquele

que era devido pode exercer os direitos previstos para o caso de vícios materiais.

Na hipótese do § 434/3 do BGB cabem inequivocamente as situações em que é

entregue um bem de um género diverso do convencionado (Qualifikations-Aliud), como,

por exemplo, a hipótese de se vender X quilogramas de uva “lambrusco” e de se entregar a

mesma quantidade, mas de uva “berzimino”. Mesmo antes da Reforma do Código Civil

alemão, introduzida pela “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”, a doutrina

551 Neste sentido, v. CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”, cit.,

pp. 461 a 484, p. 469; CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 43; ARMANDO BRAGA, A venda de coisas

defeituosas no Código Civil, A venda de bens de consumo, Vida Económica, Porto, 2005, p. 12. 552 Isto significa que, se o credor aceita a prestação diversa (aliud), haverá dação em cumprimento, se a recusa, o devedor terá de prestar

novamente. V. MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, “Perturbações típicas do contrato de compra e venda”, in Direito das

Obrigações/Contratos em especial (coordenação de Menezes Cordeiro), vol. III, Lisboa, 1991, p. 81. 553 No que toca a este ponto, pensamos, na esteira da posição defendida por Romano Martinez, que as razões que levaram o legislador a

impor ao comprador o ónus de denúncia nos casos de simples inexatidão da prestação colhem, também, nos casos em que a coisa

entregue é outra e diversa, justificando-se, por isso, uma aplicação analógica daquele ónus de denúncia a estas situações. Entendendo

que não se justifica um tratamento mais severo para as situações de aliud e que “[n]ada legitima que, na hipótese de ter sido entregue um

automóvel com um número de matrícula diferente, o credor possa, ao cabo de vinte anos, invocar a falta de cumprimento”, v. ROMANO

MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 225. O A. acaba por concluir que

“[d]epois do credor ter aceitado a prestação, é indiferente que se trate de um peius ou de um aliud. Interessa só verificar o desvio à

qualidade contratual. Tal desvio, em ambas as situações, representa uma desconformidade, sujeita ao mesmo regime”.

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maioritária defendia que a entrega de uma coisa pertencente a um género diverso daquele

que era devido deveria ser equiparada, do ponto de vista jurídico, à entrega de coisa

viciada, legitimando, assim, o comprador a exercer os remédios previstos no § 480 do

BGB (versão anterior). Esta equiparação resulta agora explicitamente do disposto no § 434

do BGB554. Assim, em caso de Qualifikations-Aliud, o comprador pode valer-se dos

remédios contra vícios materiais ou jurídicos, e exigir do vendedor a entrega da coisa

devida, neste caso, a entrega dos X quilogramas de uva “lambrusco”, em substituição dos

X quilogramas de uva “berzimino”, inicialmente entregues.

A questão que se tem suscitado na doutrina alemã, no que diz respeito à

interpretação do § 434/3 do BGB, prende-se com a questão de saber se o referido preceito

também abrange os casos de Identiäts-Aliud, hipótese peculiar da venda de coisa específica

que surge sempre que é entregue um bem com uma entidade física diversa daquela que as

partes individualizaram no momento da celebração do contrato. A jurisprudência e a

doutrina maioritárias, antes da entrada em vigor da Schuldrechtsreform, negavam a

assimilação das hipóteses de Identiäts-Aliud às hipóteses de vícios, pretendendo assim

evitar que o comprador ficasse confinado ao exercício das duas ações edílicas – a

Wandelung e a Minderung, perdendo o direito de exigir a entrega da coisa adquirida, já que

o § 480 do BGB apenas reconhecia o direito à substituição ao comprador de coisa

genérica. Assim, segundo a orientação dominante, nas hipóteses de Identiäts-Aliud, o

comprador poderia valer-se dos remédios gerais contra o inadimplemento nos contratos

sinalagmáticos (§§ 320 segs. do BGB, versão anterior) 555.

Depois da Schuldrechtsreform, a doutrina está dividida no que toca a estas hipóteses

de Identiäts-Aliud. Embora parte da doutrina entenda que estas hipóteses devem subsumir-

se ao § 434 do BGB, por a razão que fundamentava a não equiparação se ter vindo a perder

com a Modernização, podendo o comprador de coisa específica, tal como o comprador de

coisa genérica, exigir do vendedor a substituição da coisa (§§ 434 e 439 do BGB)556. A

conclusão é, pois, a inclusão das hipóteses de Identiäts-Aliud no âmbito de aplicação do §

554 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., pp. 638 a 666, p. 656. 555 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., pp. 638 a 666, p. 656. 556 V. HAAS/MEDICUS/ROLLAND /SCHÄFFER/WENDTLAND, Das Neue Schuldrecht, cit., p. 195.

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434 do BGB557. A doutrina dominante, contudo, entende que nos casos de Identiäts-Aliud

o vendedor não realizou a prestação a que estava adstrito, pelo que é a própria pretensão

originária (Erfüllungsanspruch) e não a Nacherfüllungsanspruch que o comprador poderá

exercer.

Assim, entende-se, relativamente ao novo § 434 do BGB, que a equiparação entre

aliud e peius pressupõe que o vendedor tenha realizado a prestação a que estava adstrito

em cumprimento da sua obrigação e que para o comprador seja clara a relação que subsiste

entre a prestação realizada e a obrigação cumprida558. Em caso de Identiäts-Aliud esta

relação falha, pois a entrega de uma coisa diversa da convencionada não pode ser

considerada cumprimento da obrigação nascida do contrato. Isto leva a excluir as hipóteses

de Identiäts-Aliud do âmbito de aplicação do § 434 do BGB559.

Entende-se ainda que no caso de Identiäts-Aliud falta a ratio da própria equiparação

operada pelo § 434 do BGB, já que não haveria aqui dificuldade de distinção entre esta

hipótese patológica e a categoria dos vícios materiais – o armário não é uma cómoda com

vícios. Assim, o comprador poderá exercer o direito originário à prestensão devida, direito

sujeito a prescrição ordinária (§§ 195 e 199/1) e não ao prazo curto previsto no § 438560.

Em nossa opinião, a noção de falta de conformidade, a que se refere o art. 2.º, n.º 1,

do DL n.º 67/2003, é uma noção mais ampla do que a noção de defeito, já que abrange não

apenas os casos em que a coisa entregue é defeituosa, mas também aqueles em que a coisa

entregue é um aliud e, ainda, os casos em que é entregue uma quantidade inferior à

devida561.

Em todos estes casos existe uma desconformidade da coisa com o contrato, que

permite ao consumidor fazer valer os direitos previstos no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003,

estando, porém, sujeito ao prazo de garantia, previsto no art. 5.º, n.º 1, do mesmo

diploma562.

557 CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e

nel pensiero giuridico italiano”, cit., pp. 638 a 666, p. 656. 558 V. C.-W. CANARIS, La riforma del diritto tedesco dele obbligazioni (trad. it. a cura de G. de Cristofaro), Padova, 2003, p. 34. 559 Neste caso, o vendedor poderia recuperar o bem através da conditio indebiti (§§ 133, 157 do BGB). 560 V. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco

e nel pensiero giuridico italiano”, cit., p. 657. 561 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 97. 562 O prazo de garantia é o lapso de tempo durante o qual, manifestando-se alguma falta de conformidade, poderá o consumidor exercer

os direitos que lhe são reconhecidos –, que é de dois e cinco anos a contar da receção da coisa pelo consumidor, consoante a coisa

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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2. Os critérios ou parâmetros que integram a presunção de não conformidade:

critérios objetivos e critérios subjetivos

A fim de facilitar a concretização do princípio da conformidade dos bens com o

contrato563, o legislador comunitário consagrou no n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE

uma presunção (ilidível) de conformidade, que – não restringindo o princípio da liberdade

contratual das partes – integra critérios ou parâmetros para determinar a não conformidade

dos bens com o contrato564 . Estes critérios constituem padrões relevantes para a

determinação da qualidade da coisa vendida, desempenhando assim um papel importante

na composição positiva do conteúdo contratual.

Assim, nos termos do n.º 2 do art. 2.º da Diretiva, “[p]resume-se que os bens de

consumo são conformes com o contrato, se:

a) Forem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor e possuírem as

qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou

modelo;

b) Forem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual

tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceite;

c) Forem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

vendida seja móvel ou imóvel, e ao ónus de denúncia tempestiva da falta de conformidade, previsto no novo art. 5.º-A, n.º 2, do DL n.º

67/2003, no qual se estabelece que, para fazer valer os direitos previstos no art. 4.º do DL n.º 67/2003, o consumidor deve denunciar ao

vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de um bem imóvel, a

contar da data em que a tenha detetado. 563 A Diretiva 1999/44/CE não refere, porém, o que deve entender-se por “contrato” para este efeito, nem como se determinam os efeitos

do contrato para tal relevantes, deixando o assunto aos critérios fixados nos direitos nacionais (assim, entre nós, os arts. 217.º e segs. –

especialmente os arts. 236.º a 239.º e 405.º e segs. do Código Civil). Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de

bens de consumo”, cit., p. 225. 564 Como se pode ler no Considerando 8: “é útil introduzir uma presunção ilidível de conformidade com este, que abranja as situações

mais correntes”. É, porém, discutível, como observa Paulo Mota Pinto, que tenha sido esta a solução mais feliz do ponto de vista

técnico-jurídico, designadamente em comparação com as soluções previstas no art. 35.º da Conveção de Viena e no anteprojeto e

proposta de diretiva, segundo as quais os “elementos elencados constituíam condições para a conformidade ao contrato” – cfr.

“Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 225. No sentido de que não está aqui em causa uma presunção em

sentido técnico, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, in Rivista di Diritto Civile, Ano LII – 2006, Parte I, Padova, Cedam, pp. 227 e 281, p.

231. A Autora defende que estes critérios não constituem presunções no sentido técnico do termo. No entanto, salienta que, no âmbito da

venda de bens de consumo, caracterizado pela existência de contratos concluídos oralmente e que normalmente têm por objeto bens de

produção industrial, pode representar uma ajuda, no plano probatório, no caso de se verificarem contestações sobre a correspondência do

bem às expectativas do consumidor: em tais casos, seria manifestamente difícil, em caso de litígio, alcançar uma reconstrução segura do

conteúdo do acordo. Os critérios legais representam um potencial auxílio para o juíz que tenha de decidir o litígio.

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d) Apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e

que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e,

eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo

vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na

rotulagem”.

O n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 consagrou os mesmos critérios, embora com

uma diferença: enquanto a Diretiva presume a conformidade se coexistirem todas as

circunstâncias elencadas; o diploma nacional de transposição presume a não conformidade,

se se verificar alguma dessas circunstâncias565.

Como defende Calvão da Silva, os critérios presuntivos de conformidade ou de

determinação da não conformidade são de duplo sentido: “se por um lado facilitam a

prova da conformidade ao vendedor que mostre a sua (co)existência no caso concreto, por

outro podem servir para provar a falta de conformidade se demonstrada pelo consumidor a

não verificação de qualquer deles in casu”. O problema consiste em determinar em que

termos a presunção pode ser ilidida e, assim, se a possibilidade de ilidir a presunção de

conformidade “visa [apenas], em consonância com a ratio da diretiva, o estabelecimento

de uma situação de falta de conformidade no caso concreto, apesar de se verificarem os

elementos fundantes da presunção”566, ou se permite também o estabelecimento de uma

situação de conformidade apesar de não se verificar um dos critérios que integram a

presunção.

A presunção consagrada no n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE é uma presunção

ilidível. A possibilidade de ilidir a presunção de conformidade significa que, apesar de se

verificarem no caso concreto os parâmetros de conformidade previstos naquela norma,

ainda assim, os bens podem não ser de considerar conformes com o contrato567. Assim

acontece, por exemplo, se existirem cláusulas contratuais específicas mais exigentes do

que os critérios fixados no art. 2.º, n.º 2. Nestes casos, caberá ao consumidor ilidir a

presunção e provar a falta de conformidade do bem.

De modo diverso, para efeitos do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, não se

verificando, no caso concreto, nenhum dos parâmetros ou critérios de não conformidade,

565 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 84. 566 É esta a posição defendida por PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 225. 567 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 226 e 227.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

201

os bens serão em princípio conformes com o contrato, o que não significa que o

consumidor não possa provar em concreto a falta de conformidade dos bens com o

contrato, invocando a existência de cláusulas contratuais específicas mais exigentes,

designadamente, por estabelecerem um padrão de qualidade e/ou de funcionalidade mais

elevado do que aquele que decorre dos referidos parâmetros normativos.

Os critérios consagrados no art. 2.º, n.º 2, da Diretiva 1999/44/CE e do diploma

nacional de transposição podem ser agrupados em duas categorias568. A uma das categorias

podemos reconduzir os critérios que podemos qualificar como subjetivos por fazerem

referência a qualidades especialmente acordadas no contrato, incluindo aquelas que, por

referência, resultem de descrição (feita pelo vendedor), amostra ou modelo (apresentadas

pelo vendedor) e/ou indicação de uso específico pelo comprador que o vendedor tenha

aceitado. A outra categoria seriam reconduzíveis os critérios objetivos569, que dizem

respeito a qualidades que, não sendo especialmente referidas no contrato, sejam adequadas

às utilizações habituais de bens do mesmo tipo e/ou sejam esperadas pelo consumidor

atendendo à “natureza do bem” 570.

Defende Ferreira de Almeida que o modo dualista de apresentação não contende com

a aplicação imperativa e cumulativa dos critérios “no sentido de que são conjuntamente

568 Neste sentido, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 231. Propondo uma apresentação dualista dos critérios, pode ver-se, entre nós,

FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 135. Embora este Autor considere que esta apresentação dualista, próxima do

conceito subjetivo-objetivo de defeito acolhido no direito alemão, não contende com a aplicação imperativa e cumulativa dos critérios. 569 Defende Calvão da Silva que as presunções contidas nas alíneas c) e d) do n.º 2 do art. 2.º repousam na circunstância de o objeto

adquirido pertencer a determinado tipo ou categoria de bens. Neste género de casos, referentes das obrigações do vendedor são “as

utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo” e “as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo a que o

consumidor pode razoavelmente esperar”. Trata-se, segundo o Autor, de «regras legais de integração do contrato de consumo, que têm

correspondência no n.º 2 do art. 913.º do Código Civil e no n.º 1 do art. 4.º da Lei n.º 24/96, numa concepção objectiva de conformidade

(à função normal das coisas da mesma categoria/qualidades e desempenho a possuir pelos bens do mesmo tipo para serem idóneos ao

seu “uso habitual”) integrativa da noção fundamentalmente subjectiva da conformidade do bem com o contrato». V. CALVÃO DA SILVA ,

Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 88 e 89. 570 A qualificação como critério objetivo ou subjetivo afigura-se, porém, bastante duvidosa relativamente ao disposto na parte final da

alínea d) do n.º 2 do art. 2.º, ou seja, relativamente às declarações públicas do vendedor, do produtor ou seu representante. No que toca a

declarações públicas de terceiros – produtor ou seu representante –, Matilde Girolami interroga-se sobre se estas integram a descrição

do vendedor, e, portanto, a sua declaração negocial, podendo assim considerar-se critérios subjetivos, ou se devem, tal como os outros

critérios objetivos, ser consideradas normas supletivas. A Autora pronuncia-se a favor desta última posição: as declarações públicas de

terceiros são um critério objetivo já que na ausência de uma remissão expressa não poderiam integrar o conteúdo da declaração negocial

do vendedor – cfr. “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art. 129 del

códice del consumo”, cit., p. 277. Diferente é a posição sustentada entre nós por Ferreira de Almeida, que qualifica estas declarações,

ainda que provenientes de terceiros, como cláusulas contratuais gerais – cfr. Direito do Consumo, cit., p. 143.

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atendíveis todos aqueles que, por remissão expressa ou implícita a partir do acordo

contratual ou da referência ao objeto transacionado, com este tenham o mínimo de

conexão”571 . Aquela remissão seria, segundo o Autor, o único limite à aplicação

cumulativa dos critérios, “não sendo portanto apropriada a sua desvalorização sub-reptícia

com a alegação de que o (novo) conceito de falta de conformidade (ou de defeito) continua

a ter por base o acordo contratual sobre as qualidades”572.

Na interpretação do art. 2.º, n.º 2, do DL n.º 67/2003, a questão fundamental consiste,

segundo pensamos, em definir como e até que ponto os critérios objetivos devem ou

podem interferir com aquilo que foi expressamente querido pelas partes ao abrigo da sua

liberdade contratual e, por outro lado, em determinar em que termos e com que limites se

pode atribuir relevância negocial às declarações públicas, emitidas em momento anterior à

celebração do contrato, pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante,

nomeadamente na publicidade e na rotulagem573.

571 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 135. 572 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 135. Equivalente é a consideração de que tanto a Diretiva como a lei alemã

tomaram como base um critério subjetivo e gradual. Idem, p. 135, nota 604. 573 Outro aspeto, que se poderia aqui questionar, prende-se com o próprio fundamento (contratual ou legal) da obrigação de entrega de

bens em conformidade com o contrato. O novo § 433 do BGB impõe ao vendedor a obrigação de entregar uma coisa livre de defeitos

materiais ou jurídicos, embora sem qualificar esta obrigação como contratual ou legal. V. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e

Responsabilidade Civil, cit., p. 695, nota 749. Seguidamente, no § 434/1, começa por estabelecer-se a ausência de vícios materiais se a

coisa apresenta as características convencionadas (die vereinbarte Beschaffenheit), mas admite-se, para além disso, sem tomar explícita

posição quanto ao respetivo enquadramento, que a coisa é também livre de vícios quando se apresenta idónea para o fim de utilização

pressuposto no contrato; ou quando é apta para a utilização comum, sendo constituída por aquelas características que são usuais nas

coisas da mesma categoria e que o comprador pode, em conformidade, legitimamente esperar; esclarecendo-se, na mesma disposição,

que dentro destas últimas características se contam também as que o comprador pode esperar da coisa segundo o teor das declarações

públicas do vendedor, do produtor, ou dos seus auxiliares, especialmente constantes da publicidade ou de afirmações concretas sobre a

coisa (a não ser que o vendedor não conhecesse ou não devesse conhecer essas afirmações, elas tenham sido corrigidas ou não tenham

podido influenciar a decisão de compra). Como observa Carneiro da Frada, esta regulamentação, “notoriamente influenciada pelo art. 2.º

da Diretiva, poupa-se, portanto à espinhosa questão de saber, quando não há (inequívoca) convenção sobre as qualidades, qual a fonte

dos deveres do vendedor: não exclui apertis verbis nem uma interpretação negocial, nem uma não negocial. Limita-se a subordinar

certas facti-species a um regime jurídico essencialmente homogéneo, assegurando para elas efeitos no plano das vinculações e da

responsabilidade do vendedor independentemente desse enquadramento” – v. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., p. 696,

nota 749.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

203

2.1. Os critérios subjetivos que integram a presunção de (não) conformidade

2.1.1. A não conformidade dos bens com a descrição feita pelo vendedor

Nos termos da primeira parte da alínea a) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003,

importa, para efeitos de determinação do objeto contratual, a descrição que dele é feita

pelo vendedor. A questão que se coloca nesta sede consiste em saber se a descrição do bem

pressupõe a existência de um acordo contratual quanto às qualidades e se tem, portanto

uma relevância contratual, ou se, ao invés, não é indispensável o acordo, como requisito de

relevância dessa descrição, podendo ela resultar de meras declarações de ciência,

declarações emitidas sem intenção de vinculação contratual, de comunicações sem valor

negocial.

A este propósito, defende Calvão da Silva que a alínea a) do n.º 2 do art. 2.º

prescinde da existência de qualquer declaração negocial por parte do vendedor, dando

relevo, para efeito de apuramento da existência de faltas de conformidade, a meras

declarações de ciência do vendedor, sem carácter negocial, efetuadas perante o

consumidor, eventualmente na fase que antecede a celebração do contrato, que se traduzam

na prestação de informações concretas e precisas sobre as qualidades e características do

bem vendido. Pense-se, a este propósito, nas descrições ou informações dadas pelo

fornecedor ao consumidor, antes da celebração do contrato, por exemplo, nas vendas por

correspondência e nas vendas telemáticas574.

574 Calvão da Silva considera que esta descrição do bem feita pelo vendedor será normalmente incluída “no regulamento negocial

complexivamente interpretado e integrado, de acordo com a doutrina da impressão do destinatário e o princípio da boa-fé, a dar

relevância contratual a descrições informativas pré-contratuais” – cfr. Venda de Bens de Consumo, cit., p. 86. Como observa o Autor,

essencial é que nas vendas por descrição as informações prestadas (descritas) pelo vendedor sejam precisas, pontualizadas ou

pormenorizadas, relativas a características ou qualidades concretas ainda que não essenciais da coisa oferecida, da coisa específica ou do

género a que pertence. Idem, p. 86. Entende o Autor que ainda que as «declarações públicas sobre características concretas do bem

sejam autonomizadas na alínea d) do n.º 2, não se vê razão válida para não aplicar o mesmo critério nas “declarações privadas do

vendedor directamente contempladas na alínea a) – descrições feitas aos consumidores, pessoas singulares com que aquele entre em

negociação, para os informar e lhes dar a conhecer as características e qualidades do bem oferecido”. Assim, “provado pelo consumidor

a descrição de uma qualidade precisa pelo vendedor na negociação do contrato firmado e a sua ausência no bem recebido, presume-se

que a mesma integra o regulamento contratual e é devida”. Na prova em contrário a apresentar para ilidir essa presunção (Considerando

n.º 8 da Diretiva, art. 350.º, n.º 2, do Código Civil), não adianta ao vendedor mostrar a falta de “descrição contratual”, a ausência de

cláusula contratual que expressamente reproduz e confirme a descrição unilateral por si feita no iter negotii.».

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No mesmo sentido, entende Paulo Mota Pinto que a Diretiva 1999/44/CE vai para

além do que atualmente resulta do direito nacional, que – excetuado o caso das

informações contidas em mensagens publicitárias (art. 7.º, n.º 5, da LDC) – parece basear-

se, para conceder relevância à descrição da coisa enquanto padrão para averiguação da

falta de conformidade ao contrato, nos quadros gerais do negócio jurídico, exigindo, pois,

que essa descrição tenha, segundo estes, passado a integrar o conteúdo contratual575. A

relevância da mera descrição do bem – sem a preocupação com a integração desta

descrição no conteúdo contratual segundo os critérios gerais – justificar-se-ia, no entender

do Autor, em atenção à finalidade de proteção do consumidor, contribuindo para eliminar

controvérsias em torno da existência de uma vontade de vinculação do vendedor576. Como

observa o Autor, perante o art. 913.º do Código Civil, «a mera descrição do bem pode não

constituir qualquer garantia de qualidades da coisa (e apesar da falta de correspondência a

ela pode não ser impedido o fim visado ou existir objetiva desvalorização da coisa). Muitas

vezes, é certo, da mera descrição da coisa objecto do contrato e suas características (por

exemplo, o consumo de gasolina de um automóvel ou a compatibilidade de um

575 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 237. Estaria aqui em causa o problema

da interpretação do art. 913.º, n.º 1, do Código Civil, e mais concretamente a questão de saber o que se deve entender por “qualidades

asseguradas pelo vendedor”. A este propósito, entendem Pires de Lima e Antunes Varela que para que se possa falar, com propriedade

correspondente ao pensamento da lei, em qualidades da coisa asseguradas pelo vendedor, “não basta que o vendedor tenha dado como

existentes na coisa, espontaneamente ou em resposta a pergunta do comprador, determinadas propriedades ou atributos do objecto do

contrato. Nem sequer bastará para o efeito que a declaração tenha sido séria, feita sem o ânimo próprio (dolus bonus) daquelas

declarações frequentes no comércio jurídico, a que se refere o n.º 2 do art. 253.º. Necessário é que o vendedor tenha garantido a

existência das qualidades por ele atribuídas à coisa, responsabilizando-se pela sua existência perante o comprador. Na falta desse

empenhamento especial, o vendedor responde apenas nos termos resultantes da parte restante da disposição legal” – cfr. Código Civil

Anotado, vol. II, cit., p. 209. Em sentido contrário, v. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e

na Empreitada, cit., p. 172. O A. entende que, para que haja violação do contrato, basta que a qualidade seja assegurada,

independentemente de se ter assumido, de modo expresso, uma responsabilidade pela sua falta. A qualidade assegurada corresponde,

assim, segundo o A., à chamada garantia imprópria, que não constitui um elemento acidental do negócio, pois que, se assim fosse, ela

corresponderia a uma cláusula acessória e não se distinguiria da garantia propriamente dita. Romano Martinez entende ainda que “[a]

garantia imprópria faz parte da obligatio e pode ser assumida mediante uma declaração explícita ou através de um comportamento

concludente. Além disso, a qualidade pode ser assegurada de forma positiva ou negativa. Todos estes aspectos encontram-se na

dependência da interpretação do contrato. A manifestação expressa de uma determinada qualidade distingue-se de declarações que

consubstanciam um mero dolus bonus. Assim, se se afirma que o bem é da melhor qualidade, ou que a obra foi construída de molde a

resistir cem anos, trata-se de sugestões, em princípio abrangidas pelo art. 253.º, n.º 2”. É preciso não esquecer, porém, que o alargamento

da defesa do consumidor tem como natural consequência uma restrição do dolus bonus. 576 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 237. Afirmando que a regra da alínea a),

como a da alínea d), eleva informação pré-contratual ao nível de fonte de determinação do conteúdo da obrigação do vendedor, v. G. DE

CRISTOFARO, Difetto di Conformità al Contratto e Diritti del Consumatore, cit., p. 91. Entre nós parece pronunciar-se em sentido

idêntico CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 86.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

205

determinado programa informático), num contexto de negociações contratuais ou, por

exemplo, na embalagem (...) poderá deduzir-se, do ponto de vista objetivo

interpretativamente relevante (art. 236.º do Código Civil), uma declaração tácita de

garantia das características em questão, integrando a descrição do objecto o conteúdo

contratual. Outras vezes, porém, poderá não ser assim, e à mera descrição faltará o sentido

“performativo” – ou de “declaração de validade” – exigido para se poder admitir uma

verdadeira declaração negocial.»577.

Em sentido contrário, defende Ferreira de Almeida que os padrões constantes do art.

2.º, n.º 2, da Diretiva 1999/44/CE não são exteriores ao acordo contratual em sentido

próprio578, mas integram-se no acordo contratual sobre as qualidades da coisa. Segundo o

Autor, o art. 2.º, n.º 2, da Diretiva assenta na ideia de que “as declarações (directas ou

indirectas) relativas às qualidades da coisa não representam meros enunciados descritivos”,

antes são “determinações preceptivas”. A coisa pode ser até “amostra de si mesma”. No

art. 2.º, n.º 2, estaria, pois, tudo quanto é indispensável para que a relevância dos referidos

fatores esteja apenas dependente da indicação, ainda que indireta, dada por uma das partes,

conhecida e aceite pela outra. Nada mais seria necessário para concluir pela existência de

acordo contratual sobre as qualidades da coisa579.

2.1.2. A não conformidade dos bens com a amostra ou modelo apresentados

durante as negociações

A segunda parte da alínea a) do n.º 2 do art. 2.º estabelece como parâmetro para

aferir a conformidade dos bens com o contrato a amostra ou o modelo apresentados

durante as negociações. Esta regra corresponde sensivelmente ao disposto no art. 919.º do

nosso Código Civil, muito embora o nível de tutela conferido ao consumidor pelo DL n.º

67/2003 seja mais amplo que a proteção conferida ao comprador pela referida norma580.

577 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 236, e Declaração Tácita e

Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 34 e segs. 578 O Autor defende que estes entendimentos têm a sua base numa conceção voluntarista e restritiva do valor contratual das declarações

que foi o principal sustentáculo do caveat emptor. 579 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 134. 580 Neste sentido, v. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 147. Defendendo que na Diretiva o critério é porém

imperativo, v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 235.

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Com efeito, o art. 919.º do Código Civil também considera asseguradas pelo vendedor, na

coisa vendida, qualidades iguais às da amostra, aplicando-se, em caso de desconformidade,

as disposições dos arts. 913.º e segs. do Código Civil 581. A referida norma admite, no

entanto, que, se da convenção das partes ou dos usos, resultar que a amostra serve apenas

para indicar de modo aproximado as qualidades do objeto, pode não dever ser atribuído à

amostra um efeito vinculativo582. Ora, idêntica ressalva não é feita pela alínea a) do n.º 2

do art. 2.º do DL n.º 67/2003583.

O consumidor que pretenda fazer valer a desconformidade do bem com a descrição

que dele é feita pelo vendedor ou com a amostra ou modelo apresentadas ou exibidas

durante a contratação terá apenas de provar, como fundamento da sua pretensão, a

descrição de uma qualidade precisa pelo vendedor em momento anterior à celebração do

contrato e a ausência dessa qualidade no bem recebido ou a apresentação da amostra ou

modelo. Uma vez feita esta prova presume-se que as qualidades e características constantes

da descrição, amostra ou modelo são queridas pelas partes, podendo, por isso, considerar-

se contratualmente devidas.

2.1.3. A não adequação dos bens de consumo ao uso específico para o qual o

consumidor os destine

Nos termos da alínea b) do n.º 2 do art. 2.º, presume-se que os bens de consumo não

são conformes com o contrato se não forem adequados “ao uso específico para o qual o

consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e

que o mesmo tenha aceite”. Isto significa que, para além das utilizações habituais, o bem

também tem de ser adequado aos usos específicos a que o consumidor os destine. Para tal é

necessário que o fim especial ou uso específico da coisa tenha sido levado ao

conhecimento do vendedor e por este aceite na negociação. Apesar de o preceito se referir

581 Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, cit., p. 215. 582 Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, cit., p. 215. A isto acresce que se nos termos do art. 919.º do

Código Civil as partes podem excluir certas qualidades ou características da amostra ficando a garantia do vendedor, nestes casos,

limitada às qualidades restantes, o mesmo não parece suceder no âmbito da venda de bens de consumo, por força do disposto na segunda

parte da alínea a) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003. 583 Note-se que a alínea c) do art. 21.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, determina a nulidade das cláusulas contratuais que

“[p]ermitam a não correspondência entre as prestações a efectuar e as indicações, especificações ou amostras feitas ou exibidas na

contratação”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

207

a uma informação da parte do consumidor, o que está em causa é a inclusão desse uso no

conteúdo do contrato584, ainda que não vertido expressamente em cláusula do contrato

celebrado585.

Ponto é que haja uma aceitação – ainda que tácita ou resultante de um

comportamento concludente – do vendedor relativamente a esse uso específico, prévia à

celebração do contrato, essencial para que se possa considerar que esse fim específico

integra o conteúdo do contrato. Assim, por exemplo, se aquando da negociação para a

compra de um telemóvel o consumidor diz que pretende a sua utilização em roaming nos

Estados Unidos da América e o vendedor entende a referência, esta cláusula integra o

contrato e o bem é desconforme por não corresponder ao uso específico no caso de o

aparelho não funcionar no referido país586.

2.2. Os parâmetros objetivos da falta de conformidade

Como já referimos, os critérios ou parâmetros objetivos dizem respeito às qualidades

que, embora não sendo especialmente referidas no contrato, sejam adequadas às utilizações

habituais de bens do mesmo tipo e/ou sejam esperadas pelo consumidor atendendo à

584 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

436. Eliminou-se, pois, na versão final da Diretiva 1999/44/CE, quer a referência a um uso especial apenas comunicado, expressa ou

tacitamente, pelo consumidor ao vendedor, relevante independentemente da aceitação deste, quer a exceção relativa à demonstração, a

partir das circunstâncias, de que o consumidor não teve em conta as explicações do vendedor quanto a esse uso específico. Cfr. PAULO

MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 237. 585 Esta norma não pressupõe uma aceitação em sentido técnico-jurídico, isto é, uma manifestação de vontade negocial por parte do

vendedor, pois, se assim fosse, essa aceitação teria como resultado a inserção no regulamento contratual de uma cláusula a contemplar a

adequação do bem ao uso especial para o qual o consumidor o destina, o que acabaria por retirar qualquer sentido útil ao critério

estabelecido no art. 2.º, n.º 2, alínea b). Cfr. G. DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore,

L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 102. Em sentido contrário, v.

CARLOTTA RINALDO , “La sostituibilità del bene nella vendita di species al consumatore, Italia e Germania: due ordinamenti a

confronto”, in Rivista di Diritto Civile, Padova, a.57, n.º 5 (Settembre-Ottobre 2011), Parte seconda, p. 552, nota 86. Defendendo que o

art. 2.º, n.º 2, alínea b), apenas exige que o uso específico que o consumidor pretende dar ao bem corresponda a uma informação

prestada pelo consumidor, que tenha sido recebida pelo vendedor e que este não tenha manifestado oposição a ela aquando da celebração

do contrato, v. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 148. 586 No mesmo sentido, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do

Consumo, cit., p. 437. Note-se que se entendermos que o art. 913.º do Código Civil é uma norma de interpretação e integração das

declarações de compra e venda, este critério da falta de conformidade poderia encontrar já hoje acolhimento na previsão do art. 913.º,

n.os 1 e 2, do Código Civil: “impeça a realização do fim a que é destinada”. Neste sentido, v. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de

Consumo, cit., p. 85; e PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 238: “Isto, pelo menos,

se se puder entender de forma ampla o requisito de que o fim a que se destina a coisa resulte do contrato”.

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natureza do bem e a declarações públicas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu

representante587, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Estes critérios de não conformidade, contidos nas alíneas c) e d) do n.º 2 do art. 2.º,

baseiam-se na circunstância de o bem adquirido pertencer a determinado tipo ou categoria

de bens. Neste género de casos, referentes das obrigações do vendedor são “as utilizações

habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo” e as “qualidades e o desempenho habituais

nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar”588.

2.2.1. A não adequação do bem às utilizações habituais dadas aos bens do

mesmo tipo

Nos termos da alínea c) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, constitui um

parâmetro relevante para a determinação da não conformidade dos bens com o contrato a

sua não adequação “às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo” .

O preceito refere-se não tanto ao uso a que é destinado aquele específico bem, mas

ao uso habitual do tipo ou categoria a que o mesmo pertence, desde que se trate de coisa

fungível.

Esta norma encontra paralelo na norma do art. 913.º, n.º 2, do Código Civil, muito

embora não exista inteira coincidência entre os critérios estabelecidos pelas duas normas.

Na verdade, enquanto nos termos do art. 913.º, n.º 2, do Código Civil à “função normal das

coisas da mesma categoria” apenas se atenderá supletivamente, isto é, quando o fim a que a

coisa se destina não resulta do contrato, os critérios previstos na Diretiva 1999/44/CE e no

587 No que toca a declarações públicas de terceiros – produtor ou seu representante – Matilde Girolami interroga-se sobre se estas

integram a descrição do vendedor, e, portanto, a sua declaração negocial, podendo assim considerar-se critérios subjetivos ou se, tal

como os outros critérios objetivos, devem ser consideradas normas supletivas. A Autora pronuncia-se a favor desta última posição: as

declarações públicas de terceiros são um critério objetivo já que na ausência de uma remissão expressa não poderiam integrar o conteúdo

da declaração negocial do vendedor – cfr. “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., pp. 274 e 275. Diferente é a posição sustentada entre nós por Ferreira de Almeida,

que qualifica estas declarações, ainda que provenientes de terceiros, como cláusulas contratuais gerais – cfr. Direito do Consumo, cit.,

pp. 143 e segs. 588 V. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 88. O Autor considera que estão aqui em causa regras legais de integração

do contrato de consumo, que têm correspondência no n.º 2 do art. 913.º do Código Civil e no n.º 1 do art. 4.º da Lei n.º 24/96, numa

conceção objetiva de conformidade (à função normal das coisas da mesma categoria/qualidades e desempenho a possuir pelos bens do

mesmo tipo para serem idóneos ao seu “uso habitual”) integrativa da noção fundamentalmente subjetiva da conformidade do bem com o

contrato.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

209

respetivo diploma nacional de transposição são cumulativos, exigindo-se, para além da

adequação do bem ao uso específico aceite pelo vendedor, a sua adequação às utilizações

habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo589.

2.2.2. A não apresentação das qualidades e desempenho habituais nos bens do

mesmo tipo e as razoáveis expectativas do consumidor

Nos termos da alínea d) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, presume-se que os

bens de consumo não são conformes com o contrato se “[n]ão apresentarem as qualidades

e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode

razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações

públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo

seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem”590.

A letra do preceito parece sugerir que o mesmo encerra dois critérios distintos591. O

primeiro critério é seguramente objetivo e consubstancia-se na ausência (no bem vendido)

das qualidades e do desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor

pode razoavelmente esperar tendo em conta a “natureza do bem”. O segundo critério

verifica-se sempre que o bem não apresenta as qualidades e o desempenho que o

consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo, eventualmente, às declarações

públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo

seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. Este segundo critério

merece um tratamento autónomo, sobretudo no que diz respeito à eficácia contratual das

declarações públicas do vendedor e de terceiros (produtor ou representante deste),

nomeadamente na publicidade e na rotulagem. A questão que se coloca consiste

essencialmente em determinar em que termos é que estas declarações são contratualmente

eficazes e, em particular, em perceber se as mesmas valem enquanto critério subjetivo –

por integrarem a própria declaração negocial do vendedor – ou, ao invés, enquanto critério

objetivo.

589 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 238 e 239. A adequação do bem às

utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo está também prevista no art. 4.º, n.º 1, da LDC. 590 Esta norma não encontra correspondência no art. 35.º, n.º 2, da Convenção de Viena de 1980. 591 Designadamente é esta a conclusão que se poderá retirar da utilização da copulativa “e”. Defendendo que o preceito contém dois

critérios distintos, v. LUÍS MENEZES LEITÃO, O novo regime da venda de bens de consumo, cit., pp. 50 e 51.

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Embora distintos, estes critérios encontram-se em relação de alternatividade592, pelo

que não se verificando um deles, já se presumirá essa falta de conformidade. Isto significa

que, se o consumidor podia razoavelmente esperar, em face da natureza do bem e das

declarações públicas do vendedor, produtor ou seu representante sobre as características

concretas do bem, que este teria certas qualidades e seria capaz de um certo desempenho,

não parece que possa excluir-se a presunção de falta de conformidade apenas com base no

critério objetivo de que o bem apresenta as qualidades e o desempenho que são habituais

nos bens do mesmo tipo593. Por outro lado, também é certo que as expectativas do

consumidor, embora devendo ser “razoáveis”, não se limitam às qualidades e ao

desempenho habituais. Assim, por exemplo, se o produtor ou um seu representante anuncia

que um determinado modelo de veículo automóvel tem um consumo de X, não será

relevante se os bens do mesmo tipo consomem X, mas apenas que X seja um valor que o

consumidor pode razoavelmente esperar594.

No que respeita ao primeiro critério, consagrado na primeira parte da alínea d) do n.º

2 do art. 2.º, cumpre referir que, mesmo fora do âmbito das relações de consumo, a

apresentação das qualidades e do desempenho habituais nos bens do mesmo tipo devem

presumir-se sempre queridos pelas partes de acordo com o disposto no art. 400.º do Código

Civil, nos termos do qual a determinação da prestação deve ser feita segundo juízos de

equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados, embora idêntico resultado se

possa também obter através do princípio previsto no art. 762.º, n.º 2, do Código Civil,

segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito

correspondente, devem as partes proceder de boa-fé. Em matéria de obrigações genéricas,

o corolário deste princípio está em que o devedor não pode entregar coisas da pior

592 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, O novo regime da venda de bens de consumo, cit., pp. 50 e 51. 593 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, O novo regime da venda de bens de consumo, cit., pp. 50 e 51. 594 Neste sentido, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do

Consumo, cit., p. 438. O Autor entende que “[a] razoabilidade já constitui um critério limitativo suficientemente objectivo para que a

análise das qualidades e do desempenho tenha como referência a habitualidade, bastando-se a possibilidade lógica (e razoável). Se assim

não fosse, nenhuma declaração do produtor indicando uma característica distintiva de um bem em relação aos outros bens do mesmo

tipo relevaria. Neste sentido, tendo em conta a sua razão de ser, o preceito deve ser interpretado restritivamente, não se limitando as

expectativas razoáveis do consumidor à habitualidade das qualidades e do desempenho. Idem, p. 438. A nosso ver, não se afigura

necessário interpretar restritivamente o preceito. As qualidades e o desempenho habituais devem considerar-se contratualmente devidos,

não existindo acordo das partes em contrário, sem prejuízo de o consumidor poder razoavelmente esperar do bem determinadas

qualidades ou um nível de desempenho superior ao habitual. V. , ainda, CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 90.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

211

qualidade, nem o credor pode exigir coisas da melhor qualidade, devendo atender-se, na

falta de outros elementos, à qualidade média do produto595.

Estão aqui em causa as qualidades e o desempenho dos bens do mesmo tipo e que o

consumidor pode razoavelmente esperar tendo em conta a natureza do bem. A alusão à

natureza do bem torna este critério claramente distinto do critério da adequação do bem às

“utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo”, consagrado na alínea c) do n.º

2 do art. 2.º, já que nos remete para a presença de um determinado nível de qualidade

intrínseca e/ou de desempenho, específico daquele bem, e que o distingue de outros, dentro

do tipo ou categoria a que o mesmo pertence596. O bem pode não apresentar este nível de

qualidade intrínseca e/ou de desempenho, sem que, por essa razão, deixe de ser idóneo

para as “utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo”597.

No conceito de desempenho do bem também deve ser incluída uma referência

temporal598. Com efeito, o bem tem de ter o desempenho habitual durante um período de

tempo adaptado aos bens da mesma categoria. Assim, se o bem deixa de funcionar antes

daquilo que seria adaptado aos bens da mesma categoria, deverá entender-se que existe

desconformidade, uma vez que esse facto não corresponde ao seu desempenho habitual599.

595 Neste sentido, defendendo que no âmbito de uma relação de consumo os consumidores têm, assim, direito a que a determinação,

segundo juízos de equidade, seja mais exigente para o vendedor, devendo ser-lhes fornecidas coisas de qualidade superior à média, v. J.

MORAIS CARVALHO , “Transmissão da propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas genéricas”, cit., p. 28. Tendo em

vista a proteção do consumidor, a lei condiciona, por vezes, o padrão de normalidade ao fixar certos critérios de qualidade e segurança

mínimos dos produtos, designadamente para a marcação “CE”. Sobre este ponto, v. ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, cit., p.

131, nota 1, e diplomas aí citados. 596 Sempre que o consumidor possa razoavelmente esperar uma determinada qualidade e/ou desempenho, estes presumem-se

contratualmente devidos, ainda que só em casos excepcionais se possam encontrar em bens pertencentes a esse tipo. Cfr. GIOVANNI DE

CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e

le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 114. 597 Neste sentido, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 239, salientando que a presença deste nível de qualidade intrínseca e/ou

desempenho contribui para a determinação do nível de prestação referido àquela categoria de bens. Pense-se no exemplo do consumidor

que adquire um par de óculos solares. De acordo com a alínea a), o comprador podia apenas exigir a potencialidade dos mesmos para

serem utilizados para se proteger dos raios solares, mas só por força da alínea c) poderá esperar-se que os mesmos possuam uma

proteção de um certo nível ou que os materiais de que são feitos sejam idóneos a suportar determinados tipos de quedas sem se

quebrarem. Deve ter-se em conta as expectativas razoáveis do consumidor dentro de cada categoria de bens. 598 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

437. 599 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

437.

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A referência às razoáveis expectativas do consumidor revela que, muito embora o

texto final da Diretiva 1999/44/CE tenha, à semelhança da Convenção de Viena de 1980,

adotado o princípio da conformidade dos bens com o contrato, não afastou liminarmente a

noção da conformidade dos bens com as legítimas expectativas do consumidor600.

As expectativas do consumidor devem ser razoáveis. A razoabilidade deve ser

avaliada segundo um critério objetivo, tendo como referência um consumidor normal, e,

portanto, sem conhecimentos técnicos específicos relativos ao bem em causa. Não releva a

expectativa do consumidor em concreto, pois a norma remete para uma conceção objetiva

de desconformidade601; o bem tem de ser conforme com aquilo que qualquer pessoa –

destinatário médio e razoável desse tipo de produtos – possa razoavelmente esperar, tendo

em atenção a sua natureza (qualidade e performance próprias, específicas) e as declarações

públicas (dirigidas ao público potencial adquirente), em particular a publicidade, sobre as

suas características ou atributos concretos602.

Para a determinação das qualidades e do desempenho que o consumidor pode

razoavelmente esperar deve ter-se em conta, em primeiro lugar, a natureza do bem. A

expressão “natureza” do bem, como já referimos, diz respeito não tanto às características

tipológicas do bem, que permitem enquadrá-lo numa determinada categoria, mas,

sobretudo, aos aspetos específicos que caracterizam o bem dentro da categoria a que

pertence, diferenciando-o de outros bens pertencentes a essa mesma categoria603.

600 No Livro Verde da Comissão propunha-se a adoção de uma noção de conformidade às “legítimas expectativas do consumidor”,

próxima da noção de “produto defeituoso”, contida no art. 6.º da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, sobre a

responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, que se consubstanciava num critério fundamentalmente objetivo. O conceito de

“legítimas expectativas do consumidor” deveria ser entendido como um “conceito dinâmico, a valorar tendo em conta todas as

circunstâncias, em particular as cláusulas do contrato, o desempenho do produto, o preço, a marca, a publicidade ou quaisquer

informações fornecidas sobre o produto, a natureza do produto, a sua destinação, as leis e os regulamentos respeitantes ao produto, etc.”.

O critério da conformidade do bem com as legítimas expectativas do consumidor foi, no entanto, objeto de pesadas críticas (v. Parecer

do Comité Económico e Social sobre o Livro Verde publicado no JOCE, n.º C 295, de 22 de outubro de 1994, n.º 3.9). Assim, aquando

da redação da proposta de 1996, a Comissão resolveu pôr de lado o critério objetivo da conformidade com as legítimas expectativas do

consumidor e adotar o critério fundamentalmente subjetivo da conformidade do bem com o contrato já utilizado na Convenção de Viena

de 1980. Sobre as razões que levaram à adoção pela Diretiva da noção de conformidade com o contrato, v. NOVA, GIORGIO DE, La

recezione della Direttiva sulla garantzie nella vendita di beni di consumo: vincoli, âmbito di applicazione, difetto di conformità, in

L’attuazione della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La Tutela dell’Acquirente di Beni di Consumo, Cedam, Padova, 2001, pp.

33 a 43, pp. 39 e 40. 601 Em sentido diverso, v. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 90. 602 CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 92. 603 Cfr. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva

99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 118.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

213

Quanto à natureza do bem relevará o facto de a coisa ser nova ou usada604, pouco ou

muito usada, de uma ou de outra categoria (por exemplo, um ovo classe A não tem as

mesmas qualidades de um ovo classe B)605, de um ou de outro material (por exemplo, um

guardanapo de papel é menos resistente que um guardanapo de pano). Já poderá ser mais

controversa, nesta sede, a relevância a atribuir ao preço pelo qual o bem foi adquirido.

Num mercado de aquisição em massa de bens de consumo, bens do mesmo tipo, dotados

das características imprescindíveis à sua utilização habitual, podem ser oferecidos a preços

diferentes, presumindo-se, em princípio, contratualmente queridos só os bens que entrem

no mesmo escalão de preço da aquisição606. No entanto, a ideia de que, se o preço for

baixo, o consumidor deve ter menos expectativas no que respeita às qualidades do bem,

não pode ser acolhida sem mais, sob pena de, assim, se subverter a própria ratio da

Diretiva enquanto instrumento de proteção do consumidor607. Convém referir, a este

propósito, que a exigência constitucional de qualidade dos bens e serviços prestados ao

consumidor, prevista no art. 60.º da CRP, tem sido interpretada como exigindo a boa

qualidade (ou qualidade superior) dos bens ou serviços de consumo608.

604 Deve entender-se a que há uma expectativa do consumidor a que o bem seja novo, na ausência de um acordo explícito em sentido

diverso. Embora estas características objetivas se refiram antes do mais a bens fungíveis, e normalmente, ainda que não necessariamente,

negociados como específicos, deve poder consentir uma utilização conforme ao género a que pertencem e possuir as características que

podemos definir como médias: no entanto, o padrão de referência será diverso, e uma maior indulgência será consentida em sede de

juízo de conformidade. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 239 605 A este propósito, considera J. Morais Carvalho que embora não se aplique o DL n.º 67/2003, a hotelaria constitui um bom exemplo da

ideia que se pretende transmitir; “com efeito, de um hotel de 3 estrelas não se espera o mesmo que de um hotel de 5 estrelas” – cfr. Os

Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 439, nota 1048. 606 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 89. No mesmo sentido, defendendo que a fasquia de preço do bem

contribui para a determinação do nível de prestação referido aquela categoria de bens, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al

contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 239. Em sentido

oposto, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

440: “A ideia de que, se o preço for baixo, o consumidor deve ter menos expectativas no que respeita às qualidades do bem, não pode ser

acolhida, uma vez que este critério, para além de não ter base na letra da lei, contraria o espírito do diploma”. Como observa o Autor

(nota 1049), “[s]e, por exemplo, o vendedor anuncia a lagosta a 10 euros o quilograma, deve especificar quais são as características e a

origem do marisco e, se não o fizer, não pode vir depois argumentar que se deveria entender estar em causa o tipo de lagosta mais barato

do mercado. A concretização do objecto do contrato – caso faltem elementos nos enunciados relevantes – deve ser feita tendo em conta a

exigência constitucional (e legal, nos termos da Lei de Defesa do Consumidor) de qualidade dos bens de consumo, impondo-se,

portanto, nas relações de consumo a entrega de um bem com qualidade superior à média”. 607 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

440. 608 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , “Qualidade do objecto contratual”, in EDC, n.º 7, 2005, pp. 17-47, p. 27. O Autor defende que

o art. 60.º da CRP «só adquire sentido preceptivo útil se a palavra qualidade for interpretada no sentido de “boa qualidade”».

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3. Relevância contratual da publicidade e da rotulagem

Na determinação das qualidades e desempenho que o consumidor pode

razoavelmente esperar deve ainda atender-se, eventualmente, às declarações públicas,

emitidas em momento anterior à celebração do contrato, pelo vendedor, pelo produtor ou

pelo representante deste, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem, desde que

referidas a características concretas de bens do mesmo tipo daquele que é objeto do

contrato609.

Está aqui em causa, no essencial, a atribuição de relevância contratual ao conteúdo

de mensagens publicitárias e de indicações contidas nos rótulos, ainda que a sua diluição

no conceito mais amplo de “declarações públicas” permita evitar controvérsias sobre o

conceito de publicidade610 e torne indiferente o discurso – assertivo ou performativo,

descritivo ou persuasivo – em que se insere a referência às qualidades.

Numa economia de produção em série e distribuição em cadeia, a publicidade

funciona como um impulso para a aquisição de bens de consumo611. Frequentemente, os

consumidores tomam as suas decisões de compra mais em função das declarações públicas

do fabricante ou do vendedor do que em declarações privadas deste. Sendo difícil separar

nas mensagens publicitárias os elementos informativos dos persuasivos, “deve pressupor-

se que a publicidade respeita a verdade na exaltação da qualidade”612.

Afigura-se, pois, coerente com a preocupação de instituir um regime avançado na

proteção dos consumidores a necessidade de responsabilizar o vendedor também pelas

qualidades divulgadas nas mensagens publicitárias613. Sendo esta necessidade comum aos

609 Sublinhando o carácter inovador desta referência e defendendo que estas declarações devem eventualmente ser tidas em conta quando

se trata de averiguar se o bem apresenta as qualidades e é capaz do desempenho habituais nos bens do mesmo tipo, de tal modo que a

noção de conformidade fica assim dilatada de forma a compreender também elementos externos ao próprio contrato, v. PAOLA ROMANA

LODOLINI, “La Direttiva 1999/44/CE del Parlamento Europeo e del Consiglio su Taluni Aspetti della Vendita e delle Garanzie dei Beni

di Consumo: Prima Osservazioni”, in Europa e Diritto Privato, Milano, n.º 4, 1999, p. 1285. 610 Em especial, sobre o conceito de publicidade, v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , “Conceito de publicidade”, in BMJ, n.º 349, 1985,

pp. 115 a 134. Sobre o tema pode ver-se ainda RITA BARBOSA DA CRUZ, “A publicidade – em especial os contratos de publicidade”, in

Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2002, pp. 1299-1391. 611 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 141. 612 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p.141. 613 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 139. A instituição de um regime avançado na proteção dos consumidores

deve afastar a ideia de que o comprador se deve acautelar e impor ao vendedor o cumprimento das promessas feitas (o caveat emptor

deu lugar ao caveat venditor). Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no

Direito do Consumo, cit., p. 440. V., ainda, PAOLO GALLO , “Assimetrie informative e doveri di informazione”, in Rivista di Diritto

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

215

vários ordenamentos jurídicos, as divergências surgem, porém, no que diz respeito ao

enquadramento ou fundamento jurídico da eficácia destas mensagens.

A alínea d) do n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE, assim como o n.º 5 do art. 7.º

da LDC614, apontam claramente no sentido da inserção das mesmas no conteúdo do

contrato615. Em aberto fica, porém, a questão de saber a que título se dá essa inserção ou

incorporação, ou seja, a questão de saber se estas declarações se integram na descrição do

vendedor contida na promissio, sendo critérios de conformidade subjetivos, ou se são

apenas vinculantes como elementos de integração do conteúdo do debitum616.

É preciso traçar os limites dentro dos quais estas declarações podem ser consideradas

vinculantes. É preciso traçar uma linha a partir da qual as conclusões que o consumidor

possa extrair da realidade externa não possam ter relevância jurídica, sob pena de se dilatar

até ao infinito o conteúdo do contrato, acabando, assim, por prescindir em definitivo

daquilo que foi querido com base no princípio da autonomia privada.

Civile, Ano LIII, n.º 5, 2007, pp. 641-680, p. 676. O Autor associa o caveat emptor a sociedades mais individualistas e o caveat venditor

a sociedades mais sensíveis aos valores da boa-fé na contratação. 614 Para uma panorâmica geral da legislação portuguesa em matéria de publicidade, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de

Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., pp. 441 e segs. 615 Matilde Girolami entende que estas declarações constituem parâmetros objetivos que integram ex lege, em virtude da norma

supletiva, a determinação do debitum do vendedor. Embora entenda que não é difícil reconhecer a relevância negocial das declarações

do produtor ou do seu representante, considera que é difícil justificar que a declaração negocial do vendedor possa ser completada com

recurso a declarações de terceiros, sem que haja uma expressa remissão do vendedor para estas últimas. Para além disso, a Autora invoca

um argumento sistemático: o conteúdo das declarações públicas é equiparado aos outros critérios objetivos destinados a determinar quais

são, no caso concreto, as razoáveis expectativas do consumidor – cfr. “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e

determinazione legislativa nel sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 275. 616 Sobre a questão, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 240. O certo é que elas desempenham um papel fundamental na composição

positiva do contrato especialmente relevante quando estão em causa contratos celebrados com consumidores. “Na tarefa de definição do

conteúdo do contrato, é necessário ter em conta todos os elementos relevantes para a obtenção do acordo entre as partes, nomeadamente

a proposta contratual, dirigida a pessoa determinada ou ao público, conforme expressamente admite o art. 230.º, n.º 3, do Código Civil.

Igualmente relevantes poderão ser, consoante os casos, todas as declarações anteriores à proposta contratual, dirigida a pessoa

determinada ou ao público, conforme expressamente admite o art. 230.º, n.º 3, do Código Civil. Igualmente relevantes poderão ser,

consoante os casos, todas as declarações anteriores à proposta contratual, qualificáveis ou não como convites a contratar, que se refiram

a quaisquer aspectos relativos ao contrato a celebrar, como características do bem ou serviço, preço, condições de pagamento, serviços

de assistência pós-venda, entre outros”. Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia

Privada no Direito do Consumo, cit., p. 446.

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O elemento relevante é o da inserção ou conexão com o contrato. Para que a

mensagem publicitária integre o contrato, é necessário que se verifique uma inserção

expressa ou tácita, direta ou através de remissão, em algum momento do iter contratual617.

Uma mensagem publicitária (ou qualquer outra declaração pública) é atendível como

padrão de qualidade em relação a um determinado contrato, se tiver sido emitida pelo

vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante (requisito objetivo)618.

Nos casos em que a declaração pública é emitida pelo vendedor, ou seja, por aquele

que posteriormente celebra o contrato, a sua relevância contratual afigura-se inequívoca.

Poderemos considerar que a mensagem publicitária constitui uma oferta ao

público619 se ela for completa, diretamente ou por remissão expressa ou tácita para os

elementos integradores normais do conteúdo de um contrato, e formalmente adequada, de

tal modo que o contrato se possa celebrar com a simples aceitação do destinatário620.

Ainda que a mensagem publicitária não possa ser qualificada como proposta

contratual, por não preencher os requisitos desta, a vinculação do emitente aos elementos

nela indicados resultará, em geral, de uma remissão expressa ou tácita posterior, na

proposta contratual, para todas as declarações anteriores, nomeadamente aquelas que

constem da publicidade e da rotulagem621. Ponto é que a declaração pública em causa

617 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

446. 618 Ver PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 240 e segs. É discutível se, para além

disso, a Diretiva exige, como requisito autónomo, a criação no consumidor de uma expectativa razoável ou se, para o efeito, basta que,

no momento da celebração do contrato, o consumidor não conhecesse ou devesse conhecer a desconformidade. 619 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA , “Qualidade do objecto contratual”, cit., p. 34, defende que, “se uma mensagem publicitária contiver,

por si só ou em conjunto com outros textos para que remete, os elementos bastantes para que, com a aceitação, se celebre um contrato

que não exija forma especial, então essa mensagem vale, em princípio, como proposta ao público”. 620 Defendendo que “normalmente, a mensagem publicitária dirigida ao público não será uma proposta contratual”, v. JOÃO CALVÃO DA

SILVA , “A publicidade na formação do contrato”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977,

vol. II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 687 a 711, p. 669. Como

exemplo de uma mensagem publicitária que consubstancia uma proposta contratual, podemos dar o seguinte: um supermercado publicita

a venda de um bem num determinado dia a um preço promocional de X. Uma vez que a declaração contém todos os elementos

necessários para a aceitação do consumidor ser suficiente para a celebração do contrato, deve considerar-se uma proposta ao público.

Isto significa que o supermercado fica vinculado à celebração de contratos de compra e venda do bem pelo preço X a todos aqueles que

aceitem a proposta. Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do

Consumo, cit., p. 447. 621 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

448. Assim, por exemplo, no caso de uma instituição de crédito anunciar que garante a melhor taxa do mercado no que respeita ao

crédito para habitação, a declaração não é completa, no sentido de que o contrato de crédito não se pode celebrar com a simples

aceitação do destinatário, mas vincula posteriormente o emitente nos termos por si definidos.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

217

tenha um “sentido negocialmente útil”622. Assim, por exemplo, se uma determinada

instituição de crédito afirmar, através de uma mensagem publicitária, que oferece uma taxa

de juro X, no caso de Y, ficará vinculada perante o público a conceder a taxa de juro X,

sendo este o sentido contratualmente útil da mensagem623.

A relevância negocial destas declarações públicas resultava, mesmo antes da

transposição para o nosso direito interno da Diretiva 1999/44/CE, do disposto no n.º 5 do

art. 7.º da LDC. Este preceito determina que “[a]s informações concretas e objectivas

contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-

se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão,

tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário”. A alínea d) do n.º 2 do art.

2.º do DL n.º 67/2003 afigura-se, porém, menos exigente, na medida em que se refere

apenas a “características concretas”, omitindo qualquer referência a “informações” e ao

carácter “objectivo” das mesmas624.

No que respeita à alínea d) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, podemos

considerar que este prevê dois elementos que permitem determinar o conteúdo

contratualmente relevante da mensagem625. Alude-se, por um lado, a “qualidades e [...]

desempenho habituais nos bens do mesmo tipo” e, por outro lado, à expectativa razoável

do consumidor.

Em relação ao primeiro elemento, em linha com o que já referimos a este propósito,

deve entender-se que as expectativas razoáveis do consumidor “são as de receber

necessariamente (pelo menos) um produto com as qualidades e o desempenho habituais ou

622 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 448.

Não terá um “sentido juridicamente útil”, não vinculando, pois o emitente, a mensagem em que se afirme que um jogador de futebol

confia em determinada instituição de crédito. Mas se, por exemplo, essa instituição de crédito publicitar que oferece a taxa de juro X no

caso de Y, já se deverá considerar vinculada a tal, perante o público, sendo este o sentido contratualmente útil da mensagem. 623 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 448. 624 Neste sentido, considerando que a alínea d) do n.º 2 do art. 2.º permite, assim, atribuir relevância a mensagens publicitárias

imprecisas e difusas v. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 140. Note-se porém que, ainda que não fosse de atribuir

relevância negocial à publicidade, a tutela do consumidor sempre se poderia efetivar por outra via, nomeadamente, pelo recurso à teoria

da confiança. Sobre este assunto, v. MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., pp. 192 e

segs. A teoria da confiança só poderá, no entanto, servir como critério ou fundamento autónomo de responsabilidade quando o

ordenamento jurídico não forneça critério ou fundamento mais precisos. 625 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 449.

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normais nos bens do mesmo tipo”626. Assim, a referência às qualidades e desempenho

habituais deve ser lida no sentido de qualidades e desempenho possíveis627. O sentido útil

da atribuição de relevância negocial às declarações públicas emitidas através da

publicidade ou da rotulagem parece consistir em responsabilizar o vendedor por aquilo que

o consumidor pode esperar a mais em relação ao normal e não o de nivelar por baixo as

expectativas do consumidor628 . Diversamente, se a declaração pública exalta uma

qualidade e/ou desempenho que não é possível em bens daquele tipo – como, por exemplo,

se num anúncio a uma bebida se anuncia que ela dá asas a quem a consome – deverá

considerar-se que a mesma não integra o conteúdo do contrato por não conter elementos

contratualmente relevantes629.

No que respeita ao segundo elemento – as expectativas razoáveis do consumidor –

também já referimos que o critério aqui utilizado é o do consumidor médio, que confia na

publicidade e no cumprimento dos seus princípios, nomeadamente o da veracidade630.

Pensamos, pois, que, em regra, as declarações públicas emitidas pelo vendedor,

numa fase pré-contratual, através da publicidade ou da rotulagem, e que incidam sobre

“características concretas” do bem, são cláusulas contratuais gerais, sendo a este título que

se inserem no conteúdo de contratos singulares631. Na verdade, as mensagens publicitárias

reúnem, por natureza, as características de predisposição unilateral e de generalidade, que

626 Cfr. JOÃO CALVÃO DA SILVA , A Publicidade na Formação do Contrato, cit., p. 710. O Autor acaba mesmo por admitir que, “se a

declaração pública [...] foca e exalta uma característica concreta exclusiva de certo produto (qualidade não habitual, portanto, nos bens

do mesmo tipo ou categoria: por exemplo, carro gasta 5 litros aos 100 Km, quando o tipo de viatura a que pertence faz em média 10

litros) [...], o consumidor tem razões para justificadamente confiar nessa declaração-informação e por isso pode razoavelmente esperar

essa qualidade ou atributo no caso concreto apesar de não habitual nos automóveis do mesmo tipo”. 627 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

449. 628 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

450, nota (1072). 629 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 450. 630 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

450. 631 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., pp. 143 e 144. Quanto aos requisitos positivos para que mereçam a

qualificação de cláusulas contratuais gerais: as mensagens publicitárias reúnem, por natureza, as características de predisposição

unilateral e de generalidade, que são as necessárias e as suficientes para serem cláusulas contratuais gerais; e, como resulta da Diretiva, a

sua inserção, total ou parcial, em contratos singulares depende de remissão, expressa ou tácita, feita nalguma das declarações

contratuais, em condições adequadas que permitam o seu conhecimento efetivo ou cognoscibilidade tanto pelo comprador como pelo

vendedor. E, na nota 651, p. 144 refere que a alínea d) do n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE exige uma expectativa razoável, que

estará excluída sem conhecimento ou cognoscibilidade da mensagem pelo comprador e o n.º 4 do art. 2.º (conhecimento ou

cognoscibilidade da mensagem publicitária pelo vendedor).

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

219

são as necessárias e as suficientes para serem cláusulas contratuais gerais632. Para o efeito

da sua qualificação como cláusulas contratuais gerais não releva o facto de estas

declarações públicas serem frequentemente emitidas por terceiros, como é o caso do

produtor do bem ou do seu representante633.

Com efeito, o art. 2.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro (“Lei das Cláusulas

Contratuais Gerais”), aplicável a estas declarações públicas na medida em que estas

possam ser qualificadas como cláusulas contratuais gerais634, determina expressamente que

o regime abrange “todas as cláusulas contratuais gerais, independentemente da forma da

sua comunicação ao público, da extensão que assumam ou venham a apresentar nos

contratos a que se destinem, do conteúdo que as informe ou de terem sido elaboradas pelo

proponente, pelo destinatário ou por terceiros”.

Essencial, para efeitos de inserção do conteúdo destas declarações nos contratos

singulares, é que exista uma conexão entre a declaração pública em causa e o conteúdo do

contrato, podendo esta conexão resultar de uma remissão expressa ou tácita feita pelo

vendedor do bem para as referidas declarações635. A remissão é expressa se for referida

pelo vendedor, por exemplo, através de tabuletas, catálogos ou etiquetas do anunciante,

colocados junto ao bem ou no estabelecimento daquele.

A remissão é tácita quando se pode deduzir do comportamento do vendedor636.

Assim, por exemplo, deve entender-se que a referência a um sinal distintivo de terceiro

configura uma remissão tácita para as características associadas a esse sinal distintivo,

632 FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 144. 633 Neste sentido, v. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 144. Estas declarações podem ainda ter a sua origem num

terceiro sem qualquer ligação à cadeia de produção, como a entidade gestora de um espaço comercial. A publicidade feita por esta

entidade pode, eventualmente, repercutir-se na relação contratual entre lojistas e clientes. V. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos

de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 452. 634 Embora o regime das cláusulas não negociadas individualmente esteja essencialmente pensado para cláusulas desfavoráveis para o

destinatário, nada obsta à sua aplicação a cláusulas resultantes da publicidade apesar de estas serem em regra favoráveis ao consumidor. 635 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

453. Quer se trate ou não de uma relação de consumo, a integração destas mensagens no contrato depende da verificação de dois

requisitos – consenso e adequação formal – sem os quais não se pode concluir que exista uma vinculação. O consenso depende da

existência de conexão entre a mensagem (publicidade ou rotulagem) e o contrato celebrado, podendo esta conexão resultar de uma

remissão expressa para a mensagem ou de uma remissão tácita. V. FERREIRA DE ALMEIDA , “Relevância contratual das mensagens

publicitárias”, Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Coimbra, n.º 6 (junho de 1996), pp. 9 a 25. 636 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit.,

p.453.

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podendo essas características resultar da publicidade637. De entre os sinais distintivos,

cumpre salientar a relevância da marca (e, eventualmente, do modelo). No caso de o

contrato ter por objeto um bem de determinada marca, ao emitir a sua declaração, o

vendedor remete, ainda que tacitamente, para as características associadas à marca em

questão, incluindo as mensagens publicitárias a ela relativas638.

A circunstância de o outro contraente – comprador do bem ou credor da prestação

de serviço – conhecer ou desconhecer a mensagem emitida é irrelevante para a inclusão do

conteúdo desta no texto do acordo. Com efeito, estão aqui em causa declarações dirigidas

ao público, que produzem imediatamente efeitos em relação a todo o público destinatário

da mensagem, independentemente do conhecimento efetivo por parte de cada um dos

potenciais contraentes639. Assim, por exemplo, um comprador que adquire um bem no

supermercado não precisa de ler o rótulo para que a informação nele constante integre o

contrato celebrado. O conteúdo contratualmente útil da mensagem contida no rótulo

integra o contrato, nos termos da declaração pública emitida, garantindo a qualquer

adquirente – mesmo que não a conheça – a inclusão de elementos já controlados direta ou

indiretamente por vários agentes que atuam no mercado640.

Particularmente relevante afigura-se a aplicação dos arts. 10.º e 11.º da Lei das

Cláusulas Contratuais Gerais, no que respeita à interpretação destas cláusulas. Nos termos

do art. 10.º do referido diploma, estas cláusulas “são interpretadas e integradas de

harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas

sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”. As cláusulas que

forem ambíguas, “têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se

637 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit.,

p.454. 638 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

454. Nos casos em que a remissão é tácita, importa determinar em que medida é que o vendedor do bem ou prestador do serviço deve ter

a possibilidade de impedir a inclusão dos elementos contratualmente relevantes no conteúdo do contrato, provando que não conhece nem

teria possibilidade, utilizando uma diligência normal, de conhecer a mensagem. Segundo o Autor, esta análise deve ser feita

objetivamente, tendo nomeadamente em conta a conexão espacial e temporal entre a mensagem e o contrato. “Assim, se a mensagem foi

emitida depois da celebração do contrato, não pode integrar o seu conteúdo, o mesmo se podendo concluir, tendo em conta as

circunstâncias, no caso de a mensagem ter sido emitida num local e para um público diferente do da celebração do contrato.” 639 Em sentido contrário, v. JOÃO CALVÃO DA SILVA , A Publicidade na Formação do Contrato, cit., p. 707, defende que «o vendedor

pode provar que a decisão de comprar o bem de consumo não foi nem poderá ter sido influenciada ou causada pela

declaração/“descrição” publicitária em causa». 640 JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 455.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

221

limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” (art.

11.º, n.º 1), prevalecendo, na dúvida, “o sentido mais favorável ao aderente” (art. 11.º, n.º

2)641.

A eficácia contratual da publicidade e da rotulagem afigura-se mais complexa

quando a declaração pública é emitida não pelo vendedor, mas por um terceiro estranho ao

contrato celebrado entre o vendedor e o consumidor final. Este terceiro pode ser o produtor

ou outro elo da cadeia contratual como o importador ou o representante do produtor em

determinado local, o mesmo acontecendo no que respeita à inserção de conteúdos em

rótulos642.

A alínea d) do n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 faz uma referência expressa às

declarações públicas feitas pelo vendedor e pelo produtor ou seu representante, não as

distinguindo no que toca à atribuição de relevância contratual643. O mesmo sucede em face

do disposto no art. 7.º, n.º 5, da LDC, que não distingue entre mensagens emitidas pelo

contraente ou por um terceiro644.

Em relação a rótulos, os pressupostos positivos estão em princípio verificados e

dificilmente as causa de exclusão se aplicam. Mesmo que a lei não o diga, os rótulos são

641 NUNO TIAGO TRIGO DOS REIS, A eficácia negocial da mensagem publicitária, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

Lisboa, 2007 (policopiado), p. 48, entende que só se deve recorrer a esta norma “quando a dúvida interpretativa seja irresolúvel e [...]

sem prejuízo da imputabilidade do sentido globalmente mais favorável a ambas as partes, sob pena de grave inconsistência com o

fundamento voluntarístico da vinculação negocial”. Em sentido contrário, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo –

Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p. 451, nota 1072. O Autor considera (p. 450) que a própria

determinação do sentido contratualmente útil da mensagem, em especial quando se trate de características exageradas em relação a um

bem ou serviço, deve ter em conta a orientações definidas por estas normas, solução que permite atribuir maior eficácia, no plano

contratual, ao princípio da veracidade da publicidade (art. 10.º do Código da Publicidade). 642 Estas declarações podem ainda ter a sua origem num terceiro sem qualquer ligação à cadeia de produção, como a entidade gestora de

um espaço comercial. A publicidade feita por esta entidade pode, eventualmente, repercutir-se na relação contratual entre lojistas e

clientes. V. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit.,

p. 452. 643 O mesmo acontece nos termos do art. 7.º, n.º 5, da LDC que não distingue entre mensagens emitidas pelo contraente ou por um

terceiro, pelo que nada justifica a exclusão das últimas do âmbito de aplicação da norma. 644 Afigura-se-nos que, independentemente de estar ou não em causa uma relação de consumo e de, portanto, serem ou não aplicáveis as

referidas normas, a integração destas declarações públicas (contidas na publicidade ou na rotulagem) no conteúdo do contrato depende

da existência de uma conexão entre a declaração pública em causa e o contrato celebrado, podendo esta conexão resultar de uma

remissão expressa ou tácita feita pelo vendedor para as referidas declarações.

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enunciados negociais vocacionados para a inserção em todos os contratos que tenham por

objeto coisas neles descritas645.

A Diretiva 1999/44/CE, no n.º 4 do seu art. 2.º, exclui a relevância negocial destas

declarações públicas quando o vendedor demonstrar: que não tinha conhecimento, nem

podia ter razoavelmente conhecimento da declaração em causa; que a declaração em causa

foi corrigida antes da celebração do contrato; que a decisão de contratar tomada pelo

consumidor não poderia ter sido influenciada pela declaração em causa646.

No que diz respeito a esta última possibilidade – a de o vendedor provar, para se

considerar desvinculado da declaração em causa, que o consumidor não poderia ter sido

influenciado pela mesma – parece que bastará a prova de que o consumidor não poderia ter

tido conhecimento da declaração em causa647. Assim, por exemplo, o vendedor poderá

provar, para excluir a sua responsabilidade, que a declaração em causa circulou num país

estrangeiro e que o consumidor não poderia ter tido conhecimento dela por desconhecer a

respetiva língua ou que, por força do mesmo limite linguístico, não poderia ter sido por ela

influenciado648. O vendedor poderá provar que a publicidade difundida no país do

consumidor divulgou uma declaração correta. A publicidade divulgada no país do

consumidor pode ser qualificada como uma “correção” da publicidade divulgada num país

estrangeiro. Ao invés, será mais difícil pensar que uma declaração divulgada num país

estrangeiro possa ser invocada para corrigir uma “falsa” declaração que circulou no país de

residência do consumidor e que, deste modo, poderá ter influenciado a sua decisão de

contratar649.

645 Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., p. 140. Como observa o Autor, antes da Diretiva 1999/44/CE era rara a

ligação entre rotulagem, qualidade e conformação do conteúdo contratual, fosse para a afirmar ou para a negar. Excepcional era a

menção no art. 18.º do Código brasileiro de proteção do consumidor, que incluía a rotulagem, a par da publicidade, como critério para a

avaliação de “vícios de qualidade”. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 245,

interroga-se sobre se, no direito português anterior à Diretiva, os rótulos poderiam já considerar-se integrantes do conteúdo do contrato

por aplicação analógica do regime da publicidade constante do art. 7.º, n.º 5, da LDC. 646 Como observa Ferreira de Almeida, a relevância é excluída por razões que abalam a base de imputação ao vendedor

(desconhecimento justificável da existência da declaração) ou o nexo de causalidade (correção atempada da mensagem, falta de

influência desta na decisão do consumidor) – v. Direito do Consumo, cit., p. 139. 647 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 276. 648 MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art. 129

del códice del consumo”, cit., p. 276. 649 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 276.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

223

O legislador português, no uso da liberdade de que goza em face do carácter mínimo

da Diretiva 1999/44/CE, não transpôs para o nosso ordenamento jurídico a referida norma.

A nosso ver, a opção, que terá subjacente o intuito de atribuir ao consumidor um nível de

tutela mais elevado, afigura-se criticável e até injusta na perspetiva do vendedor650.

4. A função dos critérios objetivos e a sua relação com a liberdade das partes na

modulação do conteúdo do acordo

A Diretiva 1999/44/CE (como expressamente se refere no Considerando 8) deixa, em

princípio, intocada a liberdade contratual das partes, que podem, através de cláusulas

específicas, definir as características do bem cuja entrega é devida. Não existindo, porém,

cláusulas contratuais específicas a descrever o bem, os critérios que integram a referida

“presunção” de conformidade podem servir para determinar a não conformidade dos bens

com o contrato651.

Apesar da prevalência do acordo contratual sobre as qualidades, na ausência de uma

descrição alternativa e específica do objeto, estes critérios desempenham um importante

papel na composição positiva do conteúdo contratual, facilitando também a prova da não

conformidade dos bens com o contrato. Estando a sua funçãoo ligada a uma incompletude

do conteúdo do acordo negocial, estes critérios assumem a natureza de normas supletivas,

destinadas a integrar o acordo negocial sobre as qualidades652.

A maior dificuldade na compreensão da relevância do art. 2.º, n.º 2, do diploma

comunitário e do correspondente diploma nacional de transposição reside precisamente na

conciliação de dois extremos normativos – liberdade contratual, por um lado, e direito

650 Em sentido contrário, defendendo que o DL n.º 67/2003 deve ser interpretado tendo em conta o conteúdo da Diretiva 1999/44/CE e

que, portanto, as três situações previstas no art. 2.º, n.º 4, da Diretiva determinam a exclusão da integração das declarações no conteúdo

contratual, v. CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 3.ª edição revista e aumentada,

Almedina, Coimbra, 2008, p. 245. 651 Na Diretiva não se afirma que os elementos referidos nesta norma têm de (mas apenas que podem) ser utilizados no direito nacional

para se concluir pela existência de uma não conformidade. Neste sentido, v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda

de bens de consumo”, cit., p. 228. 652 Neste sentido, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 263, defendendo que a qualificação destes critérios como verdadeiras e próprias

normas supletivas permite justificar a sua operatividade prescindindo da intenção originária das partes.

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imperativo, por outro653. Importa, pois, determinar até que ponto os parâmetros de falta de

conformidade dos bens com o contrato devem ser valorados como parâmetros imperativos

– destinados a consagrar um nível de prestação mínimo – e, portanto, subtraídos à

liberdade contratual das partes, “em nome da chamada ordem pública de proteção ou

ordem pública social, para defesa da parte supostamente mais fraca”654.

No Código Civil alemão, depois de se consagrar no § 433 a obrigação do vendedor

de entregar uma coisa livre de vícios materiais ou jurídicos, estabelece-se, no § 434,

aplicável a qualquer tipo de compra e venda e, portanto, não apenas às vendas de bens de

consumo655, que a coisa é isenta de vícios materiais ou jurídicos se apresenta as

características convencionadas (die vereibarte Beschaffenheit). Mas admite-se igualmente

que a coisa é também livre de vícios quando se apresenta idónea para o fim de utilização

pressuposto no contrato; ou então quando é apta para a utilização comum, sendo

constituída por aquelas características que são usuais nas coisas da mesma categoria e que

o comprador pode, em conformidade, legitimamente esperar.

Perante o disposto no § 434 do BGB, parece, pois, que o acordo das partes assume

sempre uma relevância primordial, em relação aos restantes critérios e que a liberdade

negocial das partes não deve sofrer limitações, nem in melius, nem in peius, dado que a

aplicação dos outros critérios de conformidade desempenha um papel supletivo, e não

derrogatório, do arranjo negocial querido pelos contraentes656.

Pelo contrário, a consideração do sistema inglês poderia fazer propender, prima

facie, para uma solução diametralmente oposta, já que estes critérios são considerados

653 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 226. 654 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 155. Esta questão assume especial relevância nos casos em que não

existam cláusulas específicas a descrever o bem ou, ainda, em determinados termos, quando estas cláusulas específicas, embora

existindo, sejam menos exigentes que os mencionados parâmetros normativos. Não existindo cláusulas específicas a descrever o bem,

escreve Paulo Moto Pinto: “Não parece, porém, de admitir que, na falta de cláusulas contratuais específicas a descrever o bem

considerando o seu defeito, se possa, mesmo não se verificando um ou mais dos elementos elencados no art. 2.º, n.º 2, considerar que os

bens, ainda assim, são conformes ao contrato, em face das circunstâncias do caso, ou admitir o vendedor a provar tal conformidade. Não

verificado um dos elementos previstos no art. 2.º, n.º 2, e salvo se este for “manifestamente inapropriado” (v. a parte final do

Considerando 8), os bens deverão, pois, na falta de cláusulas contratuais específicas, ser considerados bens não conformes ao contrato” –

cfr. “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 228 e 229. 655 Contudo, o § 475 determina que o § 434 é uma das normas que não pode ser derrogada em sentido desfavorável ao consumidor. 656 De uma forma geral, a doutrina alemã considera que os direitos do consumidor se devem considerar salvaguardados com uma correta

informação sobre as características do bem, que o vendedor está adstrito a fornecer em sede de conclusão do contrato.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

225

implied terms nos contratos de compra e venda de bens de consumo, regulados pelo Sale of

Goods Act de 1979, alterado em 2002, em transposição da Diretiva 1999/44/CE.

Segundo julgamos, um primado ilimitado da liberdade contratual na descrição do

bem seria dificilmente harmonizável com a finalidade de proteção do consumidor e com a

imperatividade, consagrada no art. 10.º do DL n.º 67/2003657. De facto, esta norma, que

tem por epígrafe “Imperatividade”, determina que “[s]em prejuízo do regime das cláusulas

contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da

falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor

previstos no presente diploma.”. Este preceito corresponde ao art. 7.º, n.º 1, da Diretiva

1999/44/CE, que consagra a inderrogabilidade das normas e a irrenunciabilidade prévia

(antes da denúncia do defeito) do consumidor a qualquer dos direitos que as mesmas lhe

facultam658.

Pensamos que, em linha de princípio, a tutela do consumidor – enquanto “parte mais

fraca” – pode coexistir com a liberdade contratual das partes, na modulação dos

parâmetros qualitativo-funcionais do bem659. Só deixará de ser assim quando tais cláusulas

específicas correspondam a uma manobra dolosa do vendedor para privar o consumidor

dos direitos que a lei lhe confere em caso de falta de conformidade dos bens com o

contrato660.

Assim, em nome da liberdade contratual das partes, julgamos que serão admissíveis

as cláusulas contratuais (gerais ou negociadas) que determinem de forma diversa a

conformidade com o contrato pelo facto de descreverem o bem independentemente dos

elementos previstos no art. 2.º, n.º 2661. Assim, por exemplo, se as partes acordarem na

venda de um rádio que não funciona, mas que pelo seu design o comprador quis adquirir

como peça decorativa, ou nos casos de venda de bens declaradamente defeituosos – bens

657 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 229. 658 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 155. 659 Cfr. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 256 660 Cfr. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 256. 661 O problema colocar-se-á sobretudo quando estas cláusulas sejam cláusulas contratuais gerais. Note-se, porém, que o art. 10.º do DL

n.º 67/2003 ressalva expressamente a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais – o qual estabelece o controlo a que está

sujeita a inclusão destas cláusulas em contratos singulares. Não se suscitando dúvidas no que toca à inclusão destas cláusulas no contrato

singular poder-se-á considerar ter havido uma “contratualização” do defeito, não fazendo, pois, sentido considerar o vendedor adstrito a

prestar uma coisa conforme aos parâmetros objetivos de conformidade previstos no art. 2.º, n.º 2.

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de segunda escolha, vendidos a baixo preço662. Nestes casos, seria iníquo considerar o

vendedor vinculado a entregar um bem conforme aos parâmetros de conformidade

estabelecidos no art. 2.º, n.º 2, pois teria havido como que uma “contratualização do

defeito”, que foi tomado em consideração pelas partes ao descreverem o objeto do

contrato663.

Porém, devem considerar-se nulas, nos termos do art. 10.º do DL n.º 67/2003,

aquelas cláusulas (gerais ou negociadas) através das quais o vendedor descreve o bem de

uma forma diversa e inferior à que resultaria da aplicação dos critérios consagrados no art.

2.º, n.º 2, do mesmo diploma, com a intenção de restringir o conteúdo da sua própria

prestação, privando, assim, o consumidor dos direitos que a lei lhe confere em caso de falta

de conformidade dos bens com o contrato664. Paralelamente, serão também nulas, nos

termos do referido art. 10.º, as cláusulas a que alude o Considerando 22 da Diretiva

1999/44/CE, que são aquelas segundo as quais o consumidor teria conhecimento de

qualquer falta de conformidade dos bens de consumo existente no momento em que

celebrou o contrato – por exemplo, cláusulas em que se faz referência ao bem “no estado

em que se encontra” – ou, ainda, aquelas (na sua maioria cláusulas contratuais gerais) em

que se exclui a aplicação dos parâmetros de falta de conformidade, consagrados no art. 2.º,

n.º 2, do diploma de transposição, tornando-os inaplicáveis ao contrato em causa665.

662 Estas hipóteses são distintas daquelas em que o vendedor visa intencionalmente, através da cláusula específica, restringir o conteúdo

da sua própria prestação descrevendo o bem de uma forma diversa e inferior à que resultaria da aplicação dos parâmetros consagrados

no art. 2.º, n.º 2, ou apresentando ao consumidor uma amostra ou modelo de qualidade inferior à média. Neste caso, a cláusula

específica, que será, na maior parte dos casos, uma cláusula contratual geral, será nula, nos termos do art. 10.º do DL n.º 67/2003. 663 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 228. É precisamente neste sentido que se

afirma que a presunção não restringe a liberdade contratual das partes. Note-se que se assumíssemos uma posição no sentido de uma

absoluta imperatividade dos critérios objetivos isso significaria que não seria possível vender bens declaradamente defeituosos.

Devemos, pois, segundo julgamos, rejeitar uma posição no sentido de absoluta inderrogabilidade in pejus dos critérios legais objetivos.

É necessário, porém, estabelecer as condições em que é possível uma tal derrogação. 664 Note-se que o art. 10.º do DL n.º 67/2003, à semelhança do art. 7.º, n.º 1, da Diretiva 1999/44/CE, só estabelece a nulidade das

cláusulas contratuais e dos acordos celebrados antes da denúncia da falta de conformidade. Isto não significa que estas cláusulas e estes

acordos se devam considerar válidos só pelo facto de terem sido celebrados depois da denúncia da falta de conformidade. O art. 10.º é

uma norma especial e a Diretiva prevê expressamente a possibilidade de o consumidor poder ser tutelado por outras disposições do

ordenamento, que se revelem mais favoráveis. Assim, aplicar-se-á a estas cláusulas e a estes acordos, quando celebrados depois da

denúncia da falta de conformidade, o disposto da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais [arts. 21.º, n.º 1, alínea h), e 12.º]. 665 Cfr. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 227.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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5. A equiparação da falta de conformidade resultante da má instalação do bem de

consumo a uma falta de conformidade do bem

O n.º 4 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 equipara à falta de conformidade do bem, “a

falta de conformidade resultante da má instalação do bem de consumo”, em duas situações.

A primeira ocorre quando a instalação faz parte do contrato de compra e venda e foi

efetuada pelo vendedor, pessoalmente ou com o auxílio de terceiros que atuam sob a sua

responsabilidade666. A segunda tem lugar quando se prevê que o produto deva ser instalado

pelo consumidor, limitando-se o vendedor a fornecer as instruções de montagem, e a má

instalação do produto feita pelo consumidor se fique a dever a incorreções existentes

naquelas instruções. O preceito em análise vem, desta forma “instituir uma extensão da

garantia de conformidade” 667, estendendo a exigência de conformidade prevista no art. 2.º,

n.º 1, do DL n.º 67/2003 que passa assim a abranger, para além do próprio bem vendido, a

prestação do serviço de instalação acessória da compra e venda, bem como o fornecimento

de instruções corretas relativas à montagem do bem. Ao equiparar a falta de conformidade

da instalação à falta de conformidade do bem, o n.º 4 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 exige,

no fundo, que a instalação do bem seja conforme com o contrato.

Nos contratos em que se acorda o fornecimento de uma coisa e a sua instalação ou

adaptação, se os trabalhos de adaptação ou instalação tiverem uma relevância

insignificante, a obrigação de os realizar deve ser qualificada como um mero dever

acessório da prestação principal668, devendo qualificar-se o contrato como contrato de

compra e venda e aplicar-se o respetivo regime jurídico. Porém, se os referidos trabalhos

assumirem uma dimensão de algum relevo, o contrato deve ser qualificado como um

666 A Diretiva 1999/44/CE não contempla a hipótese de a instalação do bem de consumo ser confiada a terceiros estranhos à relação

contratual estabelecida entre consumidor e vendedor e que não atuam sob responsabilidade deste último. Esta questão deverá, portanto,

ser decidida de acordo com as normas vigentes nesta matéria em cada um dos Estados-Membros. Cfr. GIOVANNI DE CRISTOFARO,

Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie

dei beni di consumo, cit., p. 134, nota 11. Defendendo que o essencial é que a obrigação de instalação do bem tenha sido assumida pelo

vendedor, não relevando a questão de saber se este confiou a respetiva instalação a um seu colaborador ou a um terceiro autónomo, v.

HAAS/MEDICUS/ROLLAND / SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, cit., pp. 193 e segs. 667 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, O Novo Regime da Venda de Bens de Consumo, cit., p. 53. 668 A propósito da distinção entre deveres principais de prestação, deveres secundários, acessórios da prestação principal e deveres

laterais, todos eles fazendo parte do conteúdo da relação obrigacional complexa, v. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Cessão da

Posição Contratual, Coimbra, Atlântida Editora, 1970, pp. 323 e segs.; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, cit.,

pp. 586 e segs.; e CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pp. 37 e segs.

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contrato misto, na modalidade de contrato combinado, em que uma das partes se obriga a

duas prestações que integram dois tipos contratuais diferentes – o da compra e venda e o

da empreitada – contra uma prestação unitária da contraparte – o pagamento do preço669.

Já nos casos em que a má instalação do produto feita pelo vendedor se deve a

incorreções existentes nas instruções fornecidas pelo vendedor670, a falta de conformidade

do bem deve-se, em rigor, não à violação do dever principal de prestação, mas à violação

de um dever lateral de informação que recai sobre o vendedor e que se traduz na prestação

de instruções completas, precisas, claras e compreensíveis sobre a instalação do bem671.

Em qualquer um destes casos, porém, tudo se passa como se tivesse sido violado o próprio

dever principal de prestação, passando a falta de conformidade do bem com o contrato a

constituir o fundamento da responsabilidade do vendedor.

Parece-nos que a noção de conformidade com o contrato, consagrada no art. 2.º, n.º

1, da Diretiva e do diploma nacional de transposição, correspondendo a uma conceção

ampla e unitária de incumprimento da obrigação, tornaria desnecessário o recurso a esta

equiparação. A obrigação de fornecer instruções corretas, ainda que acessória

relativamente ao dever principal de prestação, faz parte do objeto do contrato672 e,

portanto, o seu incumprimento, tal como o incumprimento do dever principal de prestação,

669 Cfr. JOÃO CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual, cit., p. 50. 670 É o que sucede frequentemente na venda de móveis e outros bens de equipamento que por razões de facilidade de transporte e

redução do preço são fornecidos em peças. O novo § 434/2 do BGB prevê, também, que existe um vício material (Sachmangel) quando

a instalação acordada foi realizada incorretamente pelo vendedor ou por um seu auxiliar de execução e, ainda, nos casos em que, não

estando o vendedor obrigado a instalar a coisa, mas apenas a fornecer as respetivas instruções, estas sejam defeituosas, a não ser que,

neste último caso, a coisa tenha sido instalada sem defeito. Note-se que, ao disposto no § 434/2, 2.ª frase, do BGB já se deu o nome de

cláusula IKEA. Isto sucede também com eletrodomésticos que carecem de instalação. Neste caso, o fornecimento de instruções de

montagem faz parte do dever de prestação do vendedor. Se as instruções de montagem fornecidas pelo vendedor forem incorretas, não

existe violação de um dever acessório que podia conduzir diretamente à indemnização através do § 280/1 do BGB ou, nos termos do §

323 do BGB, à rescisão do contrato, mas trata-se antes, nos termos do § 434/2, 2.ª parte, do BGB, de um vício material na coisa

comprada que faculta ao comprador os direitos previstos no § 437 do BGB. As instruções de montagem são defeituosas quando são

erradas no seu conteúdo ou incompreensíveis porque, por exemplo, estão redigidas numa língua estrangeira, ou porque sofrem de graves

defeitos de tradução. O disposto no § 434/2, 2.ª frase, do BGB aplica-se a todos os contratos de compra e venda e não apenas à compra

de bens de consumo, apesar de ter sido motivado pelo disposto no art. 2.º, n.º 5, da Diretiva. Cfr.

HAAS/MEDICUS/ROLLAND /SCHÄFER/WENDTLAND, Das neue Schuldrecht, cit., pp. 193 e segs. 671 Neste sentido, v. CESARE MASSIMO BIANCA, “La vendita e la permuta”, in Trattato di Diritto Civile Italiano (Vassali), vol. II, T.I, 2.ª

ed., Turim, 1993, p. 248. 672 Neste sentido, JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do

Consumo, cit., p. 457.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

229

tem como consequência a responsabilidade contratual do vendedor por incumprimento da

obrigação de entrega de bens conformes com o contrato.

Nestes casos, o consumidor poderá exigir o exato cumprimento da obrigação

acessória que tem por objeto a instalação do bem ou o fornecimento de instruções corretas

sobre a instalação do mesmo673. No entanto, se, em virtude do cumprimento defeituoso das

obrigações acessórias previstas no art. 2.º, n.º 4, o bem ficar no todo ou em parte

danificado ou destruído, e, portanto, não conforme com o contrato, o consumidor poderá

exercer, ainda, os direitos previstos no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, nomeadamente,

poderá exigir do vendedor a reparação ou substituição do bem.

O critério para definir a conformidade das instruções deve ser o do consumidor

médio daqueles produtos, sem conhecimentos especiais no que respeita à instalação de

bens. Isto significa que se as instruções, ainda que tecnicamente corretas, forem de tal

forma complexas que não seja possível a sua compreensão por um consumidor normal, não

se poderão considerar conformes com um contrato em que se prevê que o bem seja

instalado pelo consumidor.

6. A inexistência de desconformidade

O n.º 3 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, fiel ao texto da Diretiva 1999/44/CE, determina

que “[n]ão se considera existir falta de conformidade, na aceção do presente artigo, se, no

momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de

conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais

fornecidos pelo consumidor”. Este preceito determina a inexistência de falta de

conformidade dos bens com o contrato em duas situações distintas: a primeira refere-se ao

conhecimento ou cognoscibilidade da falta de conformidade pelo consumidor no momento

da celebração do contrato; a segunda diz respeito aos casos em que a falta de conformidade

decorre dos materiais fornecidos pelo consumidor. Estas duas situações são distintas: a

primeira diz respeito à definição do conteúdo do contrato, relevante para saber que objeto

673 Cfr. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva

99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 136.

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deve ser prestado674 ; a segunda respeita à possibilidade da imputação da falta de

conformidade a um facto do consumidor675.

Assim sendo, justifica-se o seu tratamento autónomo.

6.1. A inexistência de falta de conformidade devida ao conhecimento ou

cognoscibilidade pelo consumidor da falta de conformidade, no momento da

conclusão do contrato

A primeira parte do n.º 3 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 considera inexistente a falta

de conformidade “se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver

conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la”. Assim,

se o consumidor aceitou concluir o contrato tendo conhecimento da existência de um

defeito no bem, não existe, na aceção do art. 2.º, uma falta de conformidade do bem com o

contrato676. O conhecimento do defeito pelo consumidor, no momento da conclusão do

contrato, interfere, pois, com a própria delimitação do objeto do contrato. O preceito não

exige o conhecimento efetivo do defeito por parte do consumidor, sendo suficiente que

674 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

457. 675 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

457. 676 Neste sentido, CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 153. Como salienta o Autor, “porque o consumidor

aceita o produto tal qual é, a sua entrega será conforme com o contrato (coincidência de Istbeschaffenheit e Sollbeschaffenheit), pelo que

o consumidor não poderá prevalecer-se dos direitos resultantes da falta de conformidade”. A razão que levou os órgãos comunitários a

determinar a não existência, nestas situações, de uma falta de conformidade dos bens com o contrato, terá sido a constatação de que,

sempre que o consumidor aceita concluir o contrato tendo conhecimento da existência de uma falta de conformidade no bem adquirido,

se deve considerar tacitamente inserida no contrato uma cláusula que contempla aquela falta de conformidade como uma característica

admissível do bem vendido. Isto mesmo resulta inequivocamente da Relação da Proposta de Diretiva de 1996 [COM(1995) 520, p. 11]:

“Nos casos em que o consumidor conhecia ou não podia ignorar […] a falta de conformidade no momento da celebração do contrato,

não existirá, em rigor, uma falta de conformidade com o contrato, pois o consumidor aceitou o bem como ele é, e o bem será assim

conforme com o contrato”. Cfr. G. DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano

e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 165, nota 67. Note-se, porém, que ainda que não se

pudesse considerar tacitamente incluída no contrato uma cláusula a contemplar a falta de conformidade conhecida do consumidor, como

uma característica admissível do bem vendido, por se entender que o consumidor não manifestou uma particular vontade negocial nesse

sentido, o certo é que sempre se poderia afirmar que aquele conhecimento releva como um mero ato de aquiescência ou concordância,

que afasta a possibilidade de reclamar ex post a existência de uma falta de conformidade que, sendo conhecida no momento da

celebração do contrato, podia e devia ter sido feita valer nesse momento.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

231

este não pudesse razoavelmente ignorar a sua existência677. Não existindo falta de

conformidade, não existirá, naturalmente, responsabilidade do vendedor678.

A exclusão da responsabilidade do vendedor nos casos em que o consumidor, não

tendo efetivo conhecimento da existência do defeito, não o podia, porém, razoavelmente

ignorar, reflete a equiparação, do ponto de vista dos efeitos, entre defeitos conhecidos e

defeitos aparentes, que entre nós já encontrava acolhimento expresso no art. 1219.º do

Código Civil, que exclui a responsabilidade do empreiteiro pelos defeitos aparentes ou

conhecidos pelo dono da obra679.

Apesar de não existir um preceito idêntico em matéria de compra e venda –

diversamente do que sucede em alguns ordenamentos jurídicos europeus680 – a doutrina

tem entendido que a responsabilidade resultante da venda de coisas defeituosas, tal como

regulada no nosso Código Civil, só existe em caso de defeitos ocultos681, isto é, de defeitos

677 Defendendo que quando isto suceda a falta de conformidade considera-se inexistente, na medida em que o consumidor violou um

dever de diligência que sobre ele impendia, v. MÁRIO TENREIRO/SOLEDAD GÓMEZ, “La directive 1999/44/CE sur certains aspects de la

vente et des garanties des biens de consommation”, in Revue européenne de droit de la consommation, Louvain-la Neuve, n. 1 (2000), p.

17. 678 O art. 3.º, n.º 1, da Proposta de Diretiva, ao invés de considerar inexistente a falta de conformidade, determinava a exclusão, nestes

casos, da responsabilidade do vendedor. O resultado é, no entanto, idêntico, já que o art. 2.º, n.º 3, da Diretiva acaba também por

conduzir a uma exclusão da responsabilidade do vendedor. 679 No que toca aos defeitos aparentes, o art. 1219.º, n.º 2, do Código Civil estabelece uma presunção iuris tantum quanto ao

conhecimento dos defeitos: considera-se que, sendo aparentes, são conhecidos do dono da obra. Como refere Romano Martinez, “[t]rata-

se de uma ficção legal que pretende traduzir o princípio da exclusão da responsabilidade por defeitos aparentes” – cfr. Cumprimento

Defeituoso, cit., p. 439. Porém, para se determinar se o defeito é ou não aparente há que ter em conta a capacidade de perceção do dono

da obra, desde que ele não tenha incumbido nenhum técnico de proceder à verificação, pois pode determinado defeito ser aparente para

um especialista e não para um leigo. Cfr. ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, cit., p. 441. Fica, em larga medida, ao arbítrio do

dono da obra, a opção entre aceitar com reserva ou sem reserva. Se o comitente detetar vícios aparentes ou desconformidades com o

convencionado, poderá aceitar a obra com reserva, indicando essas deficiências; trata-se de uma aceitação condicional, nos termos da

qual o dono da obra não prescinde dos direitos que lhe são conferidos pelos arts. 1221.º e segs. do Código Civil. A aceitação sem reserva

significa que o comitente considera que a obra foi realizada a seu contento, o que implica a liberação da responsabilidade do empreiteiro

com respeito aos vícios conhecidos (art. 1219.º, n.º 1, do Código Civil). Para este efeito consideram-se conhecidos os vícios de que o

dono da obra sabia, assim como os defeitos aparentes relativamente aos quais o comitente deveria ter tomado conhecimento, usando da

diligência normal (art. 1219.º, n.º 2, do Código Civil). A aceitação sem reserva não impede que o comitente demande o empreiteiro por

vícios ocultos, pois, de outra forma, violar-se-ia o disposto no art. 809.º do Código Civil. Pode considerar-se, assim, que há sempre uma

reserva implícita relativamente aos defeitos ocultos. Cfr. ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, cit., pp. 441 e 442. 680 O Código Civil francês responsabiliza o vendedor pelos défauts cachés (art. 1641.º), mas não pelos vícios aparentes (art. 1642.º). O

Código Civil italiano exclui expressamente a garantia por vícios facilmente reconhecíveis (art. 1491.º). 681 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 182. A este propósito,

defende Calvão da Silva que o facto de a nossa lei não exigir que os defeitos sejam ocultos, respondendo o garante ainda pelos vícios

aparentes, não significa que a distinção seja irrelevante, dada a recondução da matéria à doutrina geral do erro e do dolo (art. 905.º

aplicável ex vi art. 913.º). Assim, observa o Autor, “o vício (a priori oculto ou aparente) conhecido do comprador no momento da

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que, não sendo conhecidos pelo comprador, podem ser legitimamente ignorados, pois não

eram detetáveis através de um exame diligente. No caso de defeitos aparentes, que o

comprador conhecia, ou não podia legitimamente ignorar, por estes serem detetáveis

através de um exame diligente, a responsabilidade do vendedor ficaria excluída, seja por

aplicação analógica do art. 1219.º, n.º 2, do Código Civil, seja porque, nestes casos, “o

comprador não está em erro desculpável sobre a existência do defeito, não podendo,

consequentemente, invocar a garantia edílica”682, ou, simplesmente, porque a alegação, por

parte do comprador, de um vício que este conhecia ou não podia legitimamente ignorar,

consubstanciaria um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium683.

Suscita algumas dúvidas a questão de saber se da exclusão da responsabilidade do

vendedor, no caso de defeitos aparentes, resulta para o comprador um verdadeiro ónus de

examinar ou mandar examinar a coisa. Nos termos do art. 1218.º do Código Civil, o dono

da obra tem o “dever” de verificar, antes de aceitar a obra, se ela se encontra nas condições

convencionadas e sem vícios. Este “dever” não constitui um dever em sentido técnico, mas

antes um ónus, na medida em que se exerce no interesse próprio, para obter uma vantagem,

e não no interesse alheio684. Note-se que, nos termos do n.º 5 da referida norma, “[a] falta

da verificação ou da comunicação [do resultado da verificação] importa aceitação da obra”.

Em matéria de compra e venda, não se prevê expressamente um “dever” de o

comprador examinar a coisa no momento da celebração do contrato ou no momento da

conclusão do contrato exclui a garantia, em virtude de estar convenientemente elucidado e de ter aceitado a coisa defeituosa com

conhecimento de causa. Não se vê, de resto, como é que o adquirente poderia alegar um vício que conhecia na celebração do contrato,

sem violar o princípio da boa fé, tanto mais que a coisa entregue é conforme à determinação negocial” – cfr. A Responsabilidade Civil

do Produtor, cit., pp. 191 e 192. 682 Paulo Mota Pinto defende que ao conhecimento do vício ou da falta de qualidade é também hoje atribuída relevância no nosso direito

interno, “pois se o comprador tiver efectivo conhecimento da falta de conformidade não existirá erro, simples ou qualificado por dolo, e

o comprador não será titular dos direitos previstos nos arts. 913.º e segs. (designadamente, não poderá pedir a anulação do contrato ou

exigir uma redução do preço). Já, porém, se o comprador simplesmente não podia ignorar o vício ou a falta de qualidade, poderá existir

um erro culposo da sua parte, pelo que o regime do Código Civil seria ainda aplicável, não estando os direitos do comprador excluídos,

ao contrário do que acontece no regime da Directiva. Trata-se, todavia, de uma diferença do nosso Direito que, a existir (uma vez que é

discutido o regime jurídico do erro culposo), será também mais favorável ao consumidor do que a directiva comunitária, não carecendo

aqui de qualquer alteração” – cfr. “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 247. 683 Sobre as razões que, não obstante a omissão da lei, levam a aceitar que a responsabilidade do vendedor está excluída quando o

comprador sabia, de forma efetiva ou potencial, da existência do defeito na coisa adquirida, v. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento

Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 437 e 438. O Autor acaba por referir que “[n]o fundo, a exclusão

da responsabilidade em caso de conhecimento do defeito por parte do comprador ou do dono da obra corresponde a uma consagração

especial do princípio da conculpabilidade (art. 570.º)”. 684 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 183, nota 2.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

233

entrega da coisa685. Apesar disso, tem-se entendido que também sobre o comprador recai o

ónus de examinar a coisa a fim de averiguar a sua conformidade com o contrato de compra

e venda686. Como refere Romano Marinez, “[o] adquirente, tal como o dono da obra, não

tem de efetuar um exame complexo, nomeadamente recorrendo a peritos, mas impõe-se-

lhe uma apreciação diligente, de forma a determinar as desconformidades patentes”687.

No âmbito das relações de consumo, o art. 12.º, n.º 1, da LDC, antes das alterações

que lhe foram introduzidas pelo DL n.º 67/2003688, apenas excluía a responsabilidade do

vendedor quando o consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito tenha sido

previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, não consagrando,

pois, qualquer ónus de o comprador examinar a coisa comprada para se assegurar da

existência de defeitos689. Esta norma foi, porém, revogada pelo art. 13.º do DL n.º 67/2003,

talvez por se entender que seria desnecessária em face do disposto no art. 2.º, n.º 3, deste

diploma que, como já referimos, exclui a responsabilidade do vendedor nos casos em que o

consumidor, no momento da celebração do contrato, tinha conhecimento da falta de

conformidade ou não a podia razoavelmente ignorar.

Note-se, porém, que a norma constante do diploma de transposição não é

inteiramente coincidente com o revogado art. 12.º, n.º 1, da LDC e impõe ao consumidor,

pelo menos, um dever de diligência quanto à perceção de eventuais faltas de

conformidade, no momento da celebração do contrato. Assim, sob pena de se diminuir o

nível de proteção já reconhecido ao consumidor pelo art. 12.º, n.º 1, da LDC690, pensamos

que o n.º 3 do art. 2.º do DL n.º 67/2003 deve ser interpretado restritivamente, exigindo-se,

685 Note-se que o Código Comercial estabelece no art. 471.º a obrigação de exame das mercadorias. 686 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 185. 687 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 185. 688 Era a seguinte a redação do art. 12.º, n.º 1, da nossa Lei de Defesa do Consumidor: “O consumidor a quem seja fornecida a coisa com

defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente

de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço, ou a resolução do contrato”. 689 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, cit., p. 168. 690 Note-se que no preâmbulo do DL n.º 67/2003 se refere expressamente que a “[p]reocupação central que se procurou ter sempre em

vista foi a de evitar que a transposição da directiva pudesse ter como consequência a diminuição do nível de protecção já hoje

reconhecido entre nós ao consumidor” e que, assim sendo, “as soluções actualmente previstas na Lei n.º 24/96, de 31 de julho, mantêm-

se, designadamente o conjunto de direitos reconhecidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa”. Assim, afigura-se até

surpreendente a revogação do art. 12.º, n.º 1, da LDC, já que o art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 67/2003 não parece ter aumentado, mas sim

diminuído, o nível de proteção que aquela norma reconhecia ao consumidor.

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pelo menos, que estejam em causa “faltas de conformidade” ostensivas no momento da

celebração do contrato691.

Poderá questionar-se, ainda, no que toca a este ponto, qual o critério a utilizar para

apreciar a diligência exigível do consumidor na deteção da falta de conformidade e, em

particular, se esta deve ser apreciada em abstrato, de acordo com a regra do bom pai de

família, atentas as circunstâncias do caso concreto (art. 487.º, n.º 2, aplicável ex vi art.

799.º, n.º 2, do Código Civil)692, como acontece no âmbito dos contratos civis de compra e

venda e da empreitada693.

Julgamos que, embora a distinção entre culpa grave, culpa leve e culpa levíssima só

tenha relevância, entre nós, em casos verdadeiramente excepcionais694 , se deveria

considerar excluída a responsabilidade do vendedor apenas nos casos em que a ignorância

do defeito se deve a culpa grave do vendedor ou a negligência grosseira por parte do

consumidor.

Refira-se a este propósito que no novo § 442 do BGB se optou por consagrar apenas

a exclusão da responsabilidade do vendedor nos casos em que o comprador conhece o

defeito ou quando existe culpa grave do comprador no desconhecimento do defeito,

691 Neste sentido, v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 246. Defendendo que sobre

o consumidor recai o ónus de adquirir e recorrer a todas as informações facilmente acessíveis, mas não de controlar profundamente o

bem antes da celebração do contrato v. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore,

L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 167. 692 Neste sentido, v. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 186. Como

observa o Autor, está em causa um critério objetivo que deverá ser temperado por circunstâncias concretas, em particular a especial

aptidão de certas categorias de compradores e de donos de obra. Assim, sendo o comprador um profissional daquele ramo, a diligência

requerida é superior à que seria exigida a um leigo e apesar de o credor leigo não estar obrigado a contratar um perito para proceder ao

exame da prestação, sempre que, por força do contrato, dos usos, ou motu proprio, se tenha servido de um técnico para examinar a coisa

entregue, o padrão de diligência deverá ser o do especialista. Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na

Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 186 e 187. 693 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 440. 694 Neste sentido, v. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, cit., p. 577. Na verdade, o Código Civil raramente

utiliza estas fórmulas. Uma referência à culpa grave pode ver-se no art. 1323.º, n.º 4, que dispõe que “[o] achador goza do direito de

retenção e não responde, no caso de perda ou deterioração da coisa, senão havendo da sua parte dolo ou culpa grave”. De acordo com o

critério de apreciação da culpa em abstrato, a culpa grave corresponde a uma situação de negligência grosseira, em que a conduta do

agente só seria realizada por uma pessoa especialmente negligente, não observando os cuidados que todas as pessoas em princípio

adotam. A culpa leve corresponde à omissão da diligência do bonus pater familias, do homem médio. A culpa levíssima corresponde à

omissão de cuidados especiais, que só as pessoas excepcionalmente diligentes observam. Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das

Obrigações, vol. I, cit., p. 304.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

235

cessando ainda a exclusão, nesta última situação, caso tenha havido dolo do vendedor na

celebração do contrato695.

Tendo em conta a especial debilidade do credor, no âmbito da compra e venda de

bens de consumo, também em Itália se levantaram vozes no sentido de que a exclusão da

responsabilidade do vendedor deverá ter lugar apenas nos casos em que o

desconhecimento da falta de conformidade se ficou a dever a culpa grave do

consumidor696.

Refira-se, ainda, que, nos termos do art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 67/2003, o momento

relevante para aferir o conhecimento ou a cognoscibilidade da falta de conformidade, pelo

consumidor, é o momento da celebração do contrato e não o momento do cumprimento da

obrigação de entrega. Na medida em que a Diretiva 1999/44/CE não regula a formação do

contrato, a questão de saber em que momento este se considera concluído deve ser

decidida de acordo com as regras gerais sobre a formação do contrato vigentes em cada um

dos Estados-Membros. Entre nós, deverá observar-se o disposto nos arts. 228.º a 235.º do

Código Civil.

Note-se, porém, que por força da referência feita pelo art. 2.º, n.º 3, ao momento da

celebração do contrato, a referida regra não poderá ser aplicada a todos os contratos

suscetíveis de serem abrangidos pela noção ampla de venda consagrada pela Diretiva, seja

porque, em alguns destes contratos, no momento da celebração do contrato, o bem de

consumo a que o negócio se refere ainda não existe (venda de coisa futura, contratos de

695 Note-se que o § 442 do BGB não está inserido na secção especificamente dedicada à compra e venda de bens de consumo (§§ 474 e

segs.), mas colocado entre as disposições relativas ao contrato de compra e venda. 696 G. DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla

vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 169. O Autor defende que a culpa grave deve ser apreciada não em abstrato mas em

concreto, através de um juízo de “razoabilidade” que atenda a todas as circunstâncias do caso concreto. Note-se, no entanto, que o

legislador italiano, no art. 1519 do CCit, optou por se afastar do art. 2.º, n.º 3, da Diretiva, determinando que “[n]on vi è difetto di

conformità se, al momento della conclusione del contratto, il consumatore era a conoscenza del difetto o non poteva ignorarlo con

l’ordinaria diligenza […]”. Criticando a escolha feita pelo legislador italiano na transposição da Diretiva, v. ALESSIO

ZACCARIA/GIOVANNI DE CRISTOFARO, La vendida dei beni di consumo: commento agli artt. 1519 bis – 1519 nonies del Codice Civile:

introdotti com il d.legisl. 2 febbraio 2002, n. 24 in attuazione della Directiva 1999/44/CE, Cedam, Padova, 2002, p. 55. Como defendem

os Autores, afigura-se preferível o critério de razoabilidade, consagrado no art. 2.º, n.º 3, da Diretiva, já que este permite ter em conta

todas as circunstâncias do caso concreto, objetivas e subjetivas, e remete para a discricionariedade do juiz a determinação de uma

possível relevância dos conhecimentos específicos e das qualidades pessoais do adquirente.

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fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir697) ou não está ainda

determinado (venda genérica)698.

Suscita ainda dúvidas a questão de saber se nos contratos concluídos à distância ou

fora do estabelecimento comercial a data relevante para averiguar o conhecimento ou a

cognoscibilidade da falta de conformidade deve ser ainda o momento da conclusão do

contrato ou se não deverá ser antes o termo do prazo de que dispõe o consumidor para

exercer o “direito de arrependimento”. Nos contratos celebrados à distância, o contrato é

celebrado sem que o consumidor tenha, em regra, a possibilidade de ver o bem comprado,

pelo que, se considerarmos que a data relevante para averiguar o conhecimento ou a

cognoscibilidade da falta de conformidade é o momento da celebração do contrato, a

exclusão da responsabilidade do vendedor prevista no art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 67/2003

ficaria, neste tipo de contratos, com um âmbito de aplicação extremamente reduzido699.

697 Defendendo que no que toca a este tipo de contratos deveria existir uma norma que excluísse a responsabilidade do vendedor nos

casos em que o consumidor recebeu o bem e o aceitou sem reserva, tendo conhecimento da falta de conformidade ou não podendo

razoavelmente ignorá-la, cfr. G. DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e

la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., pp. 175 e 176. 698 V. GIOVANNI DE CRISTOFARO, “L’esonero da responsabilità del venditore per i difetti di conformità che il consumatore conosceva o

non poteva ragionevolmente ignorare “al momento della conclusione del contrato”: Brevi note su taluni aspetti problematici

dell’attuazione dell’art. 2, par. 3, della Directiva 99/44/CE, in Italia e in Europa”, La tutela dell’acquirente di beni di consumo, CEDAM,

Padova, 2001, p. 194. 699 Note-se que a natureza jurídica deste direito de arrependimento é controversa discutindo-se, nomeadamente, se a existência deste

direito de resolução ad nutum (ou direito de livre resolução) obsta ao aperfeiçoamento do contrato, que não se poderá considerar

concluído antes do termo do prazo de que dispõe o comprador para exercer o seu direito de arrependimento, ou se, pelo contrário, incide

apenas sobre os efeitos de um contrato já concluído, podendo, assim, configurar-se como uma condição suspensiva ou resolutiva. Neste

último sentido, v. JORGE MORAIS CARVALHO , Manual de Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 102 e 103, que defende

que “o direito de arrependimento tem como característica principal a circunstância de o contrato em que é atríbuido ser celebrado sob

condição legal e potestativa”. Sobre o ponto, v., ainda, ELSA DIAS OLIVEIRA , A Protecção dos Consumidores nos Contratos Celebrados

Através da Internet, Almedina, Coimbra, 2002, p. 109. Independentemente da posição que se adote a propósito da natureza jurídica deste

direito de arrependimento, o certo é que não se pode negar que, neste tipo de contratos, a relação estabelecida entre vendedor

profissional e consumidor só se pode considerar definitivamente consolidada no momento em que termina o prazo de que dispõe o

consumidor para exercer o seu direito de arrependimento. Cfr. G. DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del

consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 174; e ALESSIO

ZACCARIA/GIOVANNI DE CRISTOFARO, La vendida dei beni di consumo, cit., p. 57. Sobre a natureza jurídica deste direito de

arrependimento, v., por todos, FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do Consumo, cit., pp. 100 e segs.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

237

6.1.1. Limites à exclusão da responsabilidade do vendedor em caso de defeitos

aparentes

A Diretiva 1999/44/CE não estabeleceu qualquer limite à exclusão da

responsabilidade do vendedor nos casos em que, embora o consumidor não pudesse

razoavelmente ignorar a existência de uma falta de conformidade, o vendedor garantiu a

sua inexistência (ou a presença de determinadas qualidades no bem vendido) e/ou naqueles

casos em que o vendedor ocultou dolosamente a existência de uma falta de conformidade.

Muito embora seja surpreendente a ausência na Diretiva 1999/44/CE, bem como no

diploma nacional de transposição, de um preceito com este teor, o certo é que estes limites

à exclusão da responsabilidade do vendedor em caso de defeitos aparentes já se

encontravam consagrados em vários ordenamentos jurídicos europeus e continuam a

aplicar-se, nos respetivos ordenamentos, na medida em que conferem ao consumidor um

nível de tutela mais elevado do que aquele que decorre do art. 2.º, n.º 3, da Diretiva700.

A questão que se coloca é a de saber em que termos é que o n.º 3 do art. 2.º interfere

com a determinação do conteúdo negocial e mais precisamente com o conteúdo da

obrigação do vendedor701 . Tendo o vendedor assegurado que o bem vendido tem

determinadas qualidades ou está isento de determinados defeitos, se no momento da

celebração do contrato o bem não tem essas qualidades ou não está isento desses defeitos e

o consumidor conhece ou pode razoavelmente conhecer essa falta de conformidade, deverá

esse conhecimento ou cognoscibilidade pôr em causa a vinculatividade da promessa? A

resposta a esta questão afigura-se central para compreender a relação entre a liberdade

contratual das partes na modulação do conteúdo do acordo e os critérios de não

conformidade consagrados no n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE.

O n.º 3 do art. 35.º da Convenção de Viena considera que o vendedor fica exonerado

da sua responsabilidade pela falta de conformidade das mercadorias, nos casos em que o

700Assim, por exemplo, nos termos do já referido § 442 do BGB, a exclusão da responsabilidade do vendedor, nos casos em que existe

culpa grave do comprador no desconhecimento do defeito cessa, caso tenha havido dolo do vendedor na celebração do contrato. O

mesmo sucede em Itália, por força do disposto no art. 1491 do CCit, no qual se determina que “[n]on è dovuta la garanzia [1490] se

[…] i vizi erano facilmente riconoscibili, salvo, in questo caso, che il venditore abbia dichiarato che la cosa era esente da vizi”. 701 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 270.

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comprador conhece (ou não podia ignorar), no momento da conclusão do contrato, a falta

dos requisitos das mercadorias previstos nas quatro alíneas do n.º 2 do art. 35.º.

No entanto, e segundo a doutrina dominante, este preceito deve interpretar-se

restritivamente, valendo apenas no que respeita à não conformidade do bem aos critérios

objetivos previstos no n.º 2 do art. 35.º, mas já não em relação às qualidades expressamente

prometidas pelo vendedor702 . Assim, aquele conhecimento ou cognoscibilidade

determinaria a não operatividade dos critérios objetivos de conformidade como normas

supletivas mas deixaria imodificada a consistência e a vinculatividade da declaração do

vendedor703. Isto significa que um eventual inadimplemento daquilo que foi enunciado

explicitamente na promessa do vendedor não se torna irrelevante em virtude do

conhecimento ou cognoscibilidade que o comprador tivesse da falta daquelas qualidades,

no momento da conclusão do contrato. Se o vendedor promete uma dada qualidade esta

deve, em regra, considerar-se devida independentemente da valoração do conhecimento

(ou cognoscibilidade) da sua presença ou não no bem vendido, por parte do comprador, no

momento da conclusão do contrato704 . A ratio desta restrição reside em que o

conhecimento, por parte do adquirente, da presença de uma falta de conformidade no

momento da conclusão do contrato bem pode acompanhar-se da sua convicção de que

antes da entrega o vendedor poderá corrigir a falta de conformidade entregando, assim, um

bem perfeitamente conforme à sua promessa, sobretudo quando se trate de venda de coisa

genérica705.

Apenas se deveria admitir a solução oposta – no sentido de excluir o carácter

vinculativo da promessa – quando estivermos perante uma “nicht nachbesserungfähiger

Mangel bereits bei Vertragsschulß”, isto é, um defeito não suscetível de correção antes da

entrega, ou porque se trate de venda de coisa específica que não poderá mais assumir

702 V., neste sentido, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel

sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p. 270. Sobre a interpretação do art. 35.º, n.º 3, da Convenção de Viena, v. BIANCA,

“Commento all’art. 35 della Convenzione di Vienna”, in Nuove l. Civ. Comm., 1989, p. 150; SCHLECHTRIEM, Internationales UN-

Kaufrecht, 3.ª ed., Tübingen, 2005, p. 106; e Kommentar zum Einheitlichen UN-Kaufrecht, München, 2000, at. 35, pp. 384 e segs. 703 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 272. 704 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 272. 705 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 272.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

239

aquelas características, ou porque se trate de venda de coisa genérica, mas a cujo género

não pertença nenhum outro bem que possa apresentar a qualidade daquele706.

O Código Civil português não introduz, como já vimos, uma distinção entre defeitos

aparentes e defeitos ocultos, no entanto, tendo em conta a recondução da matéria ao regime

do erro ou dolo, poderá afirmar-se que se o comprador tiver efetivo conhecimento do

defeito não existirá erro, simples ou qualificado por dolo, e o comprador não será titular

dos direitos previstos nos arts. 913.º e segs., designadamente, não poderá intentar uma ação

de anulação do contrato nem poderá exigir uma redução do preço707.

Note-se, porém, que a questão que se coloca em face da Diretiva 1999/44/CE é

diferente. Aqui do que se trata é da própria determinação do conteúdo da declaração do

vendedor. Perante a Diretiva, tendo o vendedor prometido que o bem tem determinadas

qualidades ou é isento de certos defeitos, não se vê por que razão se deveria considerar o

vendedor exonerado de entregar um bem com aquelas qualidades ou isento daqueles

defeitos, apenas porque, no momento da conclusão do contrato, o consumidor sabia, ou

não podia razoavelmente ignorar, que o bem não tinha essas qualidades ou não estava

isento desses defeitos. É que, apesar disso, o consumidor poderá confiar que o vendedor,

tal como prometeu, entregará um bem que terá essas qualidades ou será isento desses

defeitos. Assim, no conhecimento ou cognoscibilidade do defeito no momento da

conclusão do contrato deve ver-se um limite imposto pelo legislador comunitário à

operatividade dos critérios objetivos consagrados no art. 2.º, n.º 2708, mas não um limite à

706 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., pp. 272 e 273. 707 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 247. 708 V. GIOVANNI DE CRISTOFARO, «L’esonero da responsabilità del venditore per i difetti di conformità che il consumatore conosceva o

non poteva ragionevolmente ignorare “al momento della conclusione del contrato”: Brevi note su taluni aspetti problematici

dell’attuazione dell’art. 2, par. 3, della Directiva 99/44/CE», in Italia e in Europa, La tutela dell’acquirente di beni di consumo,

CEDAM, Padova, 2001, pp. 191 a 203, p. 193. Assim, para efeitos do art. 2.º, n.º 3, da Diretiva e do correspondente diploma nacional de

transposição, afigura-se necessário entre a falta de qualidades ou características que sejam devidas por aplicação dos critérios objetivos

consagrados no art. 2.º, n.º 2, daquelas que derivam da correspondência do bem de consumo à promessa feita pelo vendedor ou a

específicas cláusulas contratuais inseridas no regulamento negocial das partes. No mesmo sentido, v. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di

conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art. 129 del códice del consumo”, cit., p.

273. Esta razão de ser parece adaptar-se também à disciplina da venda de bens de consumo e, portanto, permite identificar uma outra

diferença entre a operatividade dos critérios subjetivos e objetivos de conformidade com o contrato. Nestes termos, deverá proceder-se a

uma redução teleológica do art. 2.º, n.º 2, do DL n.º 67/2003: poderá afirmar-se que só em relação aos critérios objetivos fará sentido

considerar como causa da exclusão da responsabilidade do vendedor a eventual consciência (efetiva ou apenas potencial) do consumidor

acerca da falta de determinadas características da coisa que a tornam, por exemplo, inidónea ao uso habitual, ou a diferenciam in pejus

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vinculatividade da promessa do vendedor. Cumpre, todavia, ressalvar os casos em que o

consumidor conhece o defeito da coisa no momento da conclusão do contrato e está

também consciente da insuscetibilidade de o defeito ser corrigido até ao momento da

entrega. Neste caso, manter a vinculatividade da promessa e da correspondente

responsabilidade do vendedor não parece corresponder a uma equitativa ponderação dos

interesses das partes709.

Quid iuris se o vendedor dolosamente assegurou a presença de determinadas

qualidades ou ocultou a existência de uma falta de conformidade no bem vendido? Poderá

o conhecimento ou a cognoscibilidade da falta de conformidade pelo consumidor no

momento da celebração do contrato excluir a responsabilidade do vendedor?

Nos termos do § 442 do BGB, a exclusão da responsabilidade do vendedor nos casos

em que existe culpa grave do comprador no desconhecimento do defeito cessa caso tenha

havido dolo do vendedor na celebração do contrato.

A resposta a esta questão remete-nos para uma outra mais geral que consiste em

saber se o regime (especial) da venda de bens de consumo consagrado na Diretiva

1999/44/CE afasta, por se tratar de um regime especial, a possibilidade de recurso ao

regime geral do erro ou dolo710.

Sendo os critérios consagrados no n.º 2 do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE normas

supletivas que contribuem para a composição positiva do conteúdo contratual, tal significa

relativamente às outras coisas do mesmo tipo; enquanto que não se poderá considerar a vinculatividade da promissio do vendedor

limitada pelo conhecimento ou cognoscibilidade por parte do consumidor da falta no bem daquilo que foi expressamente declarado pelo

vendedor como estando presente. Em conclusão, o conhecimento ou a cognoscibilidade do comprador determina a não operatividade dos

parâmetros objetivos de conformidade como normas supletivas, mas deixará em regra imodificada a consistência e a vinculatividade da

promissio do vendedor. 709 V. MATILDE GIROLAMI , “I criteri di conformità al contrato fra promissio negociale e determinazione legislativa nel sistema dell’art.

129 del códice del consumo”, cit., p. 273. Por outro lado, admitir que em tal particular hipótese o acordo se aperfeiçoou com um

conteúdo reduzido equivaleria a afirmar que a declaração negocial do vendedor viria a sofrer uma natural diminutio em relação a

circunstâncias externas respeitantes à contraparte. Poder-se-ia relativamente a estes casos seguir uma linha interpretativa da norma que,

excluindo em tal caso uma limitação formal da eficácia vinculante da promissio do vendedor, considera que o consumidor não tem

legitimidade para pretender in toto o cumprimento, visto que uma tal iniciativa constituiria, nesta ótica específica, um ato

substancialmente correspondente a um abuso do direito que faz surgir do lado do vendedor o poder de paralisar uma tal pretensão –

exceptio doli. 710 Embora na perspetiva do nosso legislador histórico pareça existir uma identidade de pressupostos de facto entre erro sobre as

qualidades e vícios ou defeitos da coisa vendida, se, de acordo com a doutrina maioritária, entendermos que os vícios ou defeitos,

previstos no art. 913.º do Código Civil, consubstanciam situações de incumprimento, por estar em causa a falta de qualidades próprias

das coisas do mesmo tipo que se consideram contratualmente devidas, diremos que a questão se coloca nos mesmos termos, perante o

nosso Código Civil.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

241

que o acordo sobre as qualidades se estende também a qualidades que se consideram

devidas ex lege. Assim, por exemplo, na ausência de uma cláusula específica a descrever o

bem de um modo diverso, o bem deverá ter as qualidades que o tornam “adequado às

utilizações habituais dadas aos bens do mesmo tipo” ou apresentar “as qualidades e o

desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente

esperar”, estando, por isso, o vendedor obrigado a entregar um bem com essas qualidades,

que se inserem no conteúdo do acordo e são, por isso, contratualmente devidas. O

problema da aparente sobreposição entre error in qualitate (previsto no art. 251.º do

Código Civil) e falta de conformidade, prevista no art. 2.º do DL n.º 67/2003, deve

resolver-se conferindo prevalência a esta última, não por se tratar de um regime especial

que afasta o regime geral, mas porque a interpretação e integração do conteúdo do acordo é

um prius relativamente ao problema do erro.

Assim, estando as qualidades a que se refere o art. 2.º abrangidas pelo conteúdo do

acordo, ainda que exista erro do comprador relativamente a essas qualidades, esse erro não

consubstancia uma hipótese de erro em sentido técnico, mas sim uma hipótese de não

cumprimento da “obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato”711.

Nos casos, porém, em que o erro do consumidor não é espontâneo mas provocado,

induzido pelo vendedor, que dolosamente assegurou que a coisa tinha determinadas

qualidades que na realidade não tem, aquela sobreposição já não é tão nítida e não parece

de afastar a possibilidade de uma impugnação fundada em dolo, que se pode revelar

vantajosa para o consumidor em termos de prazos. Assim, estando preenchidos os

pressupostos da anulação do contrato por dolo, não há prazo de garantia ou de denúncia,

contrariamente ao que se prevê no DL n.º 67/2008, podendo o consumidor intentar a ação

de anulação no prazo de um ano a contar do conhecimento do defeito.

6.2. A falta de conformidade decorrente dos materiais fornecidos pelo consumidor

Nos termos do n.º 3 do art. 2.º do DL n.º 67/2003, também não se considera existir

falta de conformidade, estando, por isso, excluída a responsabilidade do vendedor, nos

casos em que a falta de conformidade decorra dos materiais fornecidos pelo consumidor.

711 São duas formas diferentes de resolver o mesmo problema. É neste sentido, mas só neste, que se considera que a Diretiva afasta o

regime do erro.

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Esta exclusão só terá lugar no âmbito de contratos de fornecimento de bens de consumo a

fabricar ou a produzir com materiais a fornecer no todo ou em parte pelo consumidor. A

Diretiva não estabelece qualquer limite a esta causa de exoneração da responsabilidade do

vendedor, semelhante ao que já existia no direito interno italiano, por força do art. 1663 do

CCit712, que faz recair sobre o empreiteiro o ónus de comunicar ao dono da obra a

existência de defeitos, nos materiais por este fornecidos, que possam comprometer a

execução da obra. Esta norma, na medida em que confere ao consumidor um nível de

tutela mais elevado do que aquele que resulta do art. 2.º, n.º 3, da Diretiva, continua a

aplicar-se, no ordenamento jurídico italiano, aos contratos de empreitada de bens de

consumo713. Em Portugal não existe um preceito semelhante714. Não obstante, pensamos

que nem sempre o facto de a falta de conformidade do bem de consumo decorrer dos

materiais fornecidos pelo consumidor justificará uma total exoneração da responsabilidade

do vendedor, que não hesitou em utilizá-los715. Na verdade, não podemos ignorar que, na

venda de bens de consumo, o vendedor age no quadro de uma atividade profissional,

devendo atuar com uma diligência compatível com a natureza da atividade profissional

exercida716.

Assim sendo, parece que se deve considerar que, quando os materiais fornecidos pelo

consumidor apresentem defeitos dos quais o vendedor se poderia ter apercebido no

momento em que os recebeu (ou mesmo posteriormente, quando os utiliza para executar o

contrato), deverá recair sobre ele o ónus de comunicar a existência dos defeitos ao

712 Este preceito determina que “[l’]appaltatore è tenuto a dare pronto avviso al committente dei difetti della matéria da questo fornita, se

si scropono nel corso dell’ opera e possono comprometterne la regolare esecuzione”. 713 Cfr. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva

99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., p. 179. 714 Não obstante, Romano Martinez observa que, quando, por força de estipulação das partes, os materiais devam ser fornecidos pelo

dono da obra, o empreiteiro terá de usá-los com cuidado e de devolver os que restarem depois da execução da obra; além disso, caso os

materiais fornecidos não correspondam às características da obra, sejam de qualidade inferior à média ou simplesmente de qualidade que

prejudique o resultado a obter, o empreiteiro deve informar oportunamente o dono da obra de tais factos e, mesmo que este insista no

emprego desses materiais, ele não deve utilizá-los se daí puder resultar a lesão de direitos de terceiro ou a violação de disposições de

ordem pública – cfr. Direito das Obrigações, cit., p. 383. 715 Cfr. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva

99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit., pp. 178 e 179. 716 Defendendo que, no exame dos materiais fornecidos pelo consumidor, o vendedor deve usar de uma diligência de grau superior

àquela que se pode esperar de um homem médio, do bonus pater familias, e correlativa à natureza da atividade profissional no quadro da

qual ele se comprometeu a fornecer o bem de consumo a fabricar ou a produzir, v. GIOVANNI DE CRISTOFARO, Difetto di conformità al

contratto e diritti del consumatore, L’ordinamento italiano e la Direttiva 99/44/CE sulla vendita e le Garanzie dei beni di consumo, cit.,

p. 179, nota 86.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

243

consumidor. A inobservância deste ónus afasta a possibilidade de o vendedor invocar a

causa de exclusão da responsabilidade prevista no art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 67/2003.

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PARTE V

A REFERÊNCIA À ENTREGA COMO DATA RELEVANTE PARA AFE RIR A

CONFORMIDADE DOS BENS COM O CONTRATO E O PROBLEMA D A

TRANSFERÊNCIA DO RISCO NA VENDA DE BENS DE CONSUMO

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247

CAPÍTULO I – A desconexão entre a transferência do risco e a transmissão da

propriedade na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias

1. A regulação autónoma do problema do risco da contraprestação

A Convenção de Viena regula o problema da transferência do risco da

contraprestação ou do pagamento do preço de uma forma autónoma relativamente à

transmissão da propriedade717, ou seja, ao efeito real do contrato de compra e venda. Aliás,

a Convenção de Viena não regula a transmissão da propriedade das mercadorias vendidas,

o que significa que a questão de saber quando e como se transfere a propriedade deve ser

decidida de acordo com o direito interno aplicável segundo o Direito Internacional

Privado718. Pode ler-se, nos vários Comentários à Convenção, que foi impossível para os

seus Autores redigir uma norma uniforme sobre a transmissão da propriedade devido às

diferenças existentes entre os vários sistemas normativos719.

O problema da transferência do risco da contraprestação consiste em saber a partir de

que momento é que o comprador suporta o risco da perda ou deterioração da mercadoria,

por forma que esta perda ou deterioração não o exonera da obrigação de pagar o preço720.

Frequentemente, as partes estabelecem no próprio contrato qual o momento em que

ocorre a transferência do risco, seja através de uma disposição expressa a esse respeito –

fazendo, assim, uso da liberdade contratual que lhes é reconhecida pela própria Convenção –,

717 V. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 317. 718 A transferência da propriedade, assim, fica submetida à lei competente segundo o Direito de Conflitos. Sobre o Direito aplicável à

transferência da propriedade, v. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., pp. 203 e segs. 719 A ausência na Convenção de Viena de uma norma que regule a transmissão da propriedade é frequentemente criticada, considerando-

se que em sistemas jurídicos como é o caso do francês e do italiano, em que a propriedade se transfere solo consensu, se afigura

problemático aceitar que quem já é proprietário segundo o direito nacional aplicável não suporte o risco de perda ou deterioração de

bens que já são seus. 720 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 317. No mesmo sentido, defendendo que de acordo com a

orientação dominante inferida do art. 66.º da Convenção de Viena, as suas normas visam solucionar apenas o problema do risco da

contraprestação ou do pagamento do preço, v. KARL H. NEUMAYER e CATHERINE MING – Convention de Vienne sur les contrats de

vente internationale de merchandises – Commentaire, Lausanne, CEDIDAC, 1993, p. 471, em especial nota 1; ANGELICI – Passagio del

rischio, in BIANCA, Convenzione di Viena sui contratti di vendita Internazionale di beni mobili, Padova, Cedam, 1992, pp. 274- 286, p.

275.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

seja através da utilização de um Incoterm721, muito frequente sobretudo nos casos em que o

contrato de compra e venda implica o transporte por mar722.

Na ausência de estipulação contratual, as partes podem fazer uso das disposições

consagradas na Convenção de Viena. Nos termos do art. 66.º da Convenção de Viena, “[a]

perda ou deterioração das mercadorias ocorrida após a transferência do risco para o

comprador não libera este da obrigação de pagar o preço, salvo se a perda ou deterioração

se ficarem a dever a acto ou omissão do vendedor”. Resulta do disposto na última parte

deste preceito que o comprador fica exonerado da obrigação de pagar o preço nos casos em

que a perda ou deterioração da mercadoria seja imputável ao incumprimento pelo vendedor

de uma obrigação contratual ou extracontratual723.

As principais regras consagradas na Convenção de Viena sobre a transferência do

risco constam dos arts. 67.º e 68.º que regulam os casos, mais frequentes no âmbito do

comércio internacional, em que o contrato de compra e venda implica o transporte de bens

e nos quais, por definição, há um período de tempo em que nenhuma das partes tem a

posse física do bem724. A Convenção de Viena segue, pois, uma abordagem tópica, não

consagrando um critério único de referência em matéria de transferência do risco.

721 Cfr. MARIANNA CHAVES, “Contratos Internacionais de Compra e Venda de Mercadorias: Efeitos do Incumprimento à luz dos

Ordenamentos Brasileiro e Português, e da Convenção das Nações Unidas sobre a Venda Internacional de Mercadorias”, in Estudos

sobre Incumprimento do Contrato, coordenação de Maria Olinda Garcia, Coimbra Editora, 2011, pp. 157 a 194, p. 167. 722 Cfr. GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva

desconexión conceptual y temporal en sede de armonización europea”, in ADC, tomo LXVII, 2014, fasc. I, pp. 113 a 168, p. 139. Como

refere a Autora, também é frequente que as partes introduzam no contrato uma regulação específica do risco recorrendo a usos

comerciais ou locais próprios de um determinado setor ou associando o risco às condições gerais da empresa vendedora ou ao

pagamento do preço. 723 Cfr. BIANCA e BONELL, Commentary on the International Sales Law, The 1980 Vienna Sales Convention, Milão, 1987, Art. 66

anotação 2.2.; PETER SCHLECHTRIEM e INGEBORG SCHWENZER, Kommentar zum Einheitlichen UN-Kaufrecht, 4.ª ed., Munique, 2004,

art. 66, n.º 7. 724 Cfr. GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva

desconexión conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., pp. 113 a 168, p. 135.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

249

2. A transferência do risco nas vendas que implicam o transporte de bens

2.1. Venda com expedição simples

A venda com expedição simples é regulada pelo art. 67.º da Convenção de Viena. O

n.º 1 deste artigo determina que nos casos em que o vendedor não está obrigado a entregar

as mercadorias num lugar determinado a regra é a transferência do risco para o comprador

a partir do momento em que as mercadorias são colocadas em poder do primeiro

transportador, que as fará chegar ao comprador de acordo com o contrato de compra e

venda725. Nos casos em que o vendedor se obrigou a colocar as mercadorias à disposição

do transportador num local determinado, o risco não se transfere para o comprador

enquanto a mercadoria não for remetida ao transportador nesse lugar. Determina-se, ainda,

que o facto de o vendedor estar autorizado a conservar os documentos representativos da

mercadoria não afeta a transferência do risco.

O n.º 2 do art. 67.º (em articulação com o n.º 1 do art. 32.º) estabelece, porém, uma

ressalva: o risco não se transfere para o comprador enquanto a mercadoria não for

claramente identificada para efeitos do contrato, pela aposição de um sinal distintivo na

mercadoria, pelos documentos de transporte, por um aviso dado ao comprador ou por

qualquer outro meio726.

2.2. Venda de mercadoria em trânsito

No que respeita à venda de mercadoria em curso de transporte (venda de mercadoria

em trânsito), a regra geral, consagrada no art. 68.º da Convenção de Viena, é a da

725 No sentido de que, para efeitos da primeira parte do art. 67.º, n.º 1, se deve entender que o risco só se transfere quando a mercadoria é

entregue a um transportador independente do vendedor, v. HONNOLD (1991, art. 67, n.º 369.1) e PETER SCHLECHTRIEM e INGEBORG

SCHWENZER, Kommentar zum Einheitlichen UN-Kaufrecht, cit., art. 66, n.º 5. 726 Se o vendedor não cumprir esta obrigação acessória que sobre ele impende de efetuar uma identificação unívoca das mercadorias o

risco mantém-se na sua esfera jurídica, ultrapassando o fundamento desta regra o simples respeito do brocado genus nunquam perit. A

norma articula-se com o transporte de mercadorias adquiridas por distintos compradores a granel ou dentro do mesmo contentor.

Ocorrendo uma perda parcial de mercadorias, a transmissão do risco para o comprador colocá-lo-ia à mercê de um vendedor sem

escrúpulos que, em conluio com outro ou outros compradores, lhe imputasse toda a perda patrimonial ocorrida. A solução não afasta,

contudo, a possibilidade de uma societas periculi entre os compradores, através da qual o risco de perecimento ou deterioração das

mercadorias seja suportado proporcionalmente por todos.

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transferência do risco no momento da celebração do contrato727: se “a mercadoria for

vendida em trânsito, o risco transfere-se para o comprador no momento da conclusão do

contrato”.

Contudo, as partes podem, através de convenção expressa ou tácita, estabelecer que o

risco fica a cargo do comprador a partir do momento em que a mercadoria for colocada em

poder do transportador que emitiu os documentos que constam do contrato de transporte.

Uma convenção neste sentido pode, em especial, ser inferida de ter sido celebrado pelo

vendedor um seguro da mercadoria e de a respetiva apólice ter sido transferida para o

comprador, como sucede na venda CIF728. Neste caso, porém, se, no momento da

conclusão do contrato de venda, o vendedor sabia ou deveria saber que a mercadoria tinha

perecido ou se tinha deteriorado e disso não informou o comprador, a perda ou

deterioração fica a cargo do vendedor. Isto significa que o efeito retroativo da passagem do

risco no momento da entrega ao transportador só opera a favor do vendedor que estava de

boa-fé, isto é, que não sabia nem deveria saber que a mercadoria tinha perecido ou se tinha

deteriorado antes da celebração do contrato729.

No nosso direito interno não encontramos nenhuma disposição que regule a venda de

mercadoria em trânsito, com o alcance geral do art. 68.º da Convenção de Viena730.

No entanto, o art. 938.º do Código Civil, que tem como epígrafe “Venda de coisa em

viagem”, e que está inserido na Secção respeitante à “Venda sobre Documentos”, prevê

uma das situações expressamente reguladas pelo art. 68.º da Convenção de Viena. Trata-se

do caso em que, tendo sido celebrado um contrato de seguro, a respetiva apólice figura

entre os documentos entregues ao comprador. Para esta situação, o art. 68.º da Convenção

de Viena, como já tivemos oportunidade de referir, estabelecendo um desvio à regra geral

prevista para a venda de mercadoria em trânsito, determina que o risco se transfere para o

727 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 320. 728 Cfr. BIANCA e BONELL, Commentary on the International Sales Law, cit.; PETER SCHLECHTRIEM e INGEBORG SCHWENZER,

Kommentar zum Einheitlichen UN-Kaufrecht, cit., art. 66, n.º 4. A venda que utiliza o termo comercial internacional (“Incoterm”) CIF é

uma venda com expedição simples em que a entrega da mercadoria deve ser cumprida num local diferente do lugar de destino e em que

o vendedor não assume o risco do preço depois do embarque ou da expedição. O lugar até onde o vendedor terá de pagar os custos do

transporte deve ser indicado no contrato, indicação que normalmente é feita após a referência ao respetivo termo C (por exemplo, CIF

Lisboa). O termo CIF significa (cost, insurance and freight) [custo, seguro e frete]. V. LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional,

cit., p. 333. 729 Cfr. LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 320. 730 O art. 68.º aplica-se apenas aos casos em que o vendedor não tem a obrigação de entregar a mercadoria no lugar de destino, mas

apenas de a colocar à disposição do transportador que a fará chegar a esse local.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

251

comprador a partir do momento em que as mercadorias foram entregues ao

transportador731. O art. 938.º do Código Civil consagra, relativamente à situação nele

prevista, uma disciplina, pelo menos aparentemente, contraditória732. Com efeito, enquanto

as alíneas a) e b) do referido preceito – que determinam respetivamente que o preço deve

ser pago ainda que a coisa se tivesse perdido causalmente durante o transporte, antes da

celebração do contrato, e que o contrato não é anulável com fundamento em defeitos da

coisa produzidos causalmente após a entrega ao transportador – parecem consagrar a regra

de que o risco se transfere com a entrega ao transportador, a alínea c) consagra

explicitamente a regra oposta: “[o] risco fica a cargo do comprador desde a data da

compra”. Segundo Lima Pinheiro, “[e]ste preceito só parece ter sentido útil nos casos em

que o vendedor já sabia, ao tempo do contrato, que a coisa estava perdida ou deteriorada

(art. 938.º/2 CC)”733.

3. A regra residual de transferência do risco

O art. 69.º é um preceito residual relativamente às duas normas anteriores734 e refere-

se aos casos em que o comprador deve receber a mercadoria no estabelecimento do

vendedor ou noutro lugar (designadamente no lugar do destino). Nos termos do referido

preceito, quando, segundo o princípio geral consagrado na Convenção a este respeito735, o

comprador deva retirar as mercadorias do estabelecimento do vendedor, o risco transfere-

se quando ele as retira. Se o comprador não o fizer na altura devida, e assim incorrer em

violação do contrato, o momento da transferência do risco será aquele em que as

mercadorias ficarem à sua disposição, colocando-se ele, pois, na situação de mora

credendi. Note-se que, neste caso, a transferência do risco surge associada à negligência do

adquirente, equiparando-se à “entrega”, à situação em que esta só não correu por facto

imputável ao comprador, que assim violou o contrato, incorrendo em mora. No entanto,

731 Esta é também a regra que se encontra consagrada no art. 1529 do CCit, que serviu de fonte de inspiração ao art. 938.º do nosso

Código Civil. 732 V. LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 320; MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos

Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 179. 733 V. LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 321. 734 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 317. 735 Cfr. art. 31.º, alínea e).

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mesmo neste caso, o que está em causa é, em última análise, a associação do risco a uma

ideia de poder de controlo sobre a coisa vendida, uma vez que se exige, como pressuposto

para que ocorra a transferência do risco, que as mercadorias tenham sido postas à

disposição do comprador736.

Se, porém, nos termos do n.º 2 do art. 69.º da Convenção de Viena, o comprador

estiver obrigado a receber a mercadoria noutro lugar, o risco transfere-se no momento em

que a entrega deva ser feita e o comprador saiba que a mercadoria é posta à sua disposição

nesse lugar. Este preceito aplica-se, designadamente, à venda com expedição qualificada,

em que a coisa deve ser entregue no lugar do destino737. Trata-se aqui de situações em que

presumivelmente as mercadorias se encontram na posse de terceiro, e, portanto, fora do

poder de controlo do vendedor. Não obstante, o risco, dentro do espírito da Convenção, só

deixará de correr por conta do vendedor quando seja o comprador quem está em melhor

posição de exercer o poder de controlo sobre as mercadorias738.

O n.º 3 do preceito em análise acrescenta que se o contrato recair sobre mercadoria

ainda não individualizada, considera-se que a mercadoria não está colocada à disposição

do comprador até que seja claramente identificada para efeitos do contrato.

4. O enfoque contratual e a desconexão com o efeito jurídico-real

A Convenção de Viena segue, no que diz respeito à transferência do risco, uma

abordagem antidogmática, uma vez que autonomiza a transferência do risco relativamente

aos três pontos clássicos de conexão presentes nas legislações civis europeias: a perfeição

do contrato, a transferência da propriedade e a entrega da coisa ao comprador, embora a

regra residual consagrada no art. 69.º se aproxime deste último739.

736 A noção de mercadorias postas à disposição do comprador carece de ser adaptada à particular hipótese em que o objeto da obrigação

recaia sobre coisas indeterminadas, já que aqui há a necessidade de saber quais as mercadorias que efetivamente se encontram em tal

situação. É neste sentido que o art. 69.º, n.º 3, exige a identificação clara das mercadorias para os fins do contrato. Cfr. MARIA ÂNGELA

BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 183. 737 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 321. 738 Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., pp. 182 e 183. 739 GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva desconexión

conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., p. 137.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

253

Particularmente relevante é o facto de na Convenção de Viena a transferência do

risco ser autónoma relativamente à transmissão da propriedade, não só como critério

temporal de transferência do risco mas também pelo facto de a Convenção não fazer

referência ao termo “entrega”, associando a transferência do risco a atos físicos de

transmissão da posse740.

A análise das regras de distribuição do risco consagradas na Convenção de Viena

permite concluir que as referidas regras associam a transferência do risco à ideia de poder

de controlo sobre a coisa vendida: o risco correrá por conta do contraente que estiver em

melhor posição de exercer o poder de controlo sobre as mercadorias vendidas741. Esta ideia

de que o risco se transfere quando se perde o controlo fáctico das mercadorias é aquela que

melhor permite assegurar que as mercadorias cheguem ao seu destino em perfeito

estado742. Trata-se de uma regra pragmática, baseada na complexidade própria da venda

internacional e nas necessidades da prática, permitindo ultrapassar a questão probatória

relativa à negligência do vendedor na conservação das mercadorias vendidas, bem como as

740 GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva desconexión

conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., p. 137. A UNCITRAL decidiu conscientemente evitar o termo “entrega”

(“délivrance” na versão original) por entender que isso provocava confusão. A Convenção de Viena seguiu pois em matéria de

transferência do risco uma abordagem original que se caracteriza pelo modo tópico de apresentação, com várias opções, pelo facto de

não existir um ponto de conexão único, e, ainda, por se colocar em primeiro lugar o caso mais típico no âmbito do comércio

internacional que é a venda com transporte. 741 Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 182. Como refere NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito

Privado Português, cit., p. 251: “deve afastar-se a pré-compreensão dominante de que a disciplina do risco na CVVIM se encontra

moldada no paradigma da entrega da coisa”, e, ainda: “os diversos critérios de distribuição do risco presentes na CVVIM muito

dificilmente se reconduzem à unidade, antes postulando uma consideração analítica”. E na p. 252: “Assim, a divisarem-se algum ou

alguns vectores chaves na CVVIM, estes tendem a coincidir, por um lado, com a consideração pragmática de imputação das

consequências danosas ao contraente que se encontra melhor posicionado para a prevenção ou minoração das mesmas (critério do

controlo), e, por outro lado, com a pontual aproximação a um vector de interesse contratual prevalente ou dominante.”. Acrescenta ainda

o A. que “[n]a aplicação das normas de risco a doutrina individualiza, ainda, com base no disposto no n.º 2 do art. 67.º e no n.º 3 do art.

69.º da CVVIM, um pressuposto de especificação das mercadorias. Deste modo, apesar da omissão do art. 68.º da CVVIM, as suas

normas não serão aplicáveis a hipóteses em que o vínculo do vendedor se corporize, nomeadamente, numa obrigação genérica ou

alternativa. Este elemento assume particular relevância dado o seu afastamento do anterior normativo internacional”. Em termos

distintos, v. LURDES PEREIRA, A obrigação de receção das mercadorias na Convenção de Viena sobre a compra e venda internacional de

mercadorias, p. 370, nota 77, refere como ideia base o impender do risco sobre a parte que economicamente seja ou possa ser menos

prejudicada com o eventual dano. 742 GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva desconexión

conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., p. 136.

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dificuldades que o comprador teria de enfrentar na contratação de seguros de mercadorias

de que desconhece, em regra, os riscos específicos743.

Constata-se, pois, que, ao contrário da nossa lei – que, como vimos, adota como

ponto de partida a associação da transferência do risco à transmissão do direito real (art.

796.º, n.º 1, in fine) –, a Convenção de Viena de 1980 não associa a transferência do risco à

titularidade do direito, o que se compreende dado que o mencionado instrumento

convencional, por ter de tomar igualmente em consideração os sistemas jurídicos em que

do contrato de compra e venda não resulta a transferência da propriedade (v. g., sistemas

que adotam a venda obrigatória, como é o caso da lei alemã), expressamente exclui do seu

campo de aplicação os problemas relativos a esta.

Apesar desta diferença, os dois sistemas não deixam de convergir em alguns pontos.

Assim, nas obrigações cujo objeto recai sobre coisas indeterminadas, ambos os

comandos normativos fazem depender a transferência do risco da verificação de uma

mesma condição fundamental – ter-se especificado o objeto da obrigação. Na Convenção

de Viena, esta condição encontra-se expressamente prevista no art. 69.º, n.º 3, que

determina que as mercadorias só se consideram colocadas à disposição do comprador

quando estejam claramente identificadas para efeitos do contrato. Na nossa lei civil, a

referida condição resulta da conjugação dos arts. 1317.º, alínea a), e 408.º, n.º 2, do Código

Civil com o princípio geral consagrado no art. 796.º, n.º 1, do mesmo diploma744.

Por outro lado, a ideia de poder de controlo sobre a coisa releva também, no âmbito

da nossa lei – em termos por nós já referidos –, nas situações previstas nos n.os 2 e 3 do art.

796.º do Código Civil745.

CAPÍTULO II – A abordagem contratual da transferência do risco no DCFR

O DCFR, ao contrário da Convenção de Viena, consagra no seu Livro VIII, que tem

por epígrafe “Aquisição e perda da propriedade dos bens”, um conjunto de regras sobre a

propriedade dos bens móveis corpóreos. O DCFR aborda a transmissão do risco de um

743 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 259. 744 Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 184. 745 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem,

cit., p. 184.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

255

ponto de vista puramente contratual, em sede de regulação do contrato de compra e venda,

como um aspeto que só afeta as partes contratantes do ponto de vista obrigacional. Isto

mesmo é confirmado no Livro VIII onde podemos encontrar uma referência explícita à

transferência do risco, o art. 2: 201.2 (a), que precisa de modo claro que a transmissão da

propriedade não afeta os direitos e as obrigações das partes baseadas no contrato, tal como

os que resultam de transmissão do risco746.

Este preceito desvincula de modo explícito o risco da transferência da propriedade747.

A transferência do risco pertence aos efeitos puramente obrigacionais derivados da

dinâmica própria do contrato. A transferência da propriedade não é um facto determinante

para saber quem deve suportar o risco de deterioração fortuita dos bens.

A transferência do risco está prevista no Livro IV (Specific contracts and the rights

and obligatios arising from them), na Parte A, dedicada ao contrato de compra e venda, no

Capítulo 5, com a epígrafe “Transferência do risco”. O Capítulo 5 regula a transmissão do

risco em duas Secções. A primeira Secção contém regras gerais (5:101,102 e103) que

tratam o efeito da transferência do risco (5:101) e o momento temporal em que ocorre

(5:102), que é a norma mais importante, contendo ainda uma previsão específica para os

contratos de compra e venda de bens de consumo (5:103). A segunda Secção contém

regras especiais (5:201, 202 e 203) que regulam respetivamente: bens à disposição do

comprador, transporte de bens e bens vendidos em trânsito.

A posição do DCFR quanto ao regime da transferência do risco de perda ou

deterioração insere-se numa conceção do cumprimento do contrato bilateral baseada no

princípio da conformidade com o contrato, que também se encontra consagrado na

Convenção de Viena. O momento relevante para determinar a conformidade é o momento

da transferência do risco, de modo que o vendedor é responsável por qualquer falta de

746 Art. 2:201: Effects of the transfer of ownership:

(2) The transfer of ownership does not affect rights and obligations between the parties based on the terms of a contract or other judicial

act, court order or rule of law, such as: (a) a right resulting from the passing of risk. 747 Esta desconexão explícita num texto académico com a envergadura do DCFR é muito relevante. O DCFR abordou a possível

harmonização dos sistemas europeus de transmissão da propriedade mobiliária, questão que por ser muito complicada tinha sido afastada

durante o século XX do contexto de unificação das normas de compra e venda internacional. No caso do DCFR foi necessário enfrentar

as conhecidas divergências dos sistemas europeus (sistema consensual/sistema baseado em tradição; causal/abstrato) para alcançar um

regime comunitário ao serviço do mercado único europeu. E na hora de levar a cabo esta uniformização, o DCFR optou por um critério

unitário de transmissão de propriedade, generalizados nos sistemas continentais e de common law. Cfr. GEMA TOMÀS MARTÍNEZ, “La

transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva desconexión conceptual y temporal en sede de

armonización europea”, cit., p. 143.

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conformidade que exista no momento em que o risco se transfere para o comprador,

mesmo que a falta de conformidade apareça depois desse momento (IV. A.- 2:308). Trata-

se de uma norma idêntica ao art. 36.º, n.º 1, da Convenção de Viena. A transferência do

risco para o comprador constitui o momento a quo da responsabilidade do vendedor pela

conformidade do objeto vendido. Os comentários ao DCFR justificam esta regra por dois

motivos: primeiro, porque a transmissão do risco significa que os bens abandonaram a

esfera de influência do vendedor (de acordo com o IV.A.- 5:102) e este não tem mais o

controlo sobre eles, e seria injusto que sobre ele recaísse a responsabilidade pela falta de

conformidade de bens que já não estão sob o seu controle; e, em segundo lugar, esta regra

assegura que o comprador assuma o risco do pagamento do preço, no momento em que

assume o risco da falta de conformidade. Por isso, o risco transmite-se quando o

comprador receba os bens, quando os devesse ter recebido ou quando os bens forem

entregues ao primeiro transportador, conforme o caso. Para além disso, a transmissão do

risco não exonera o vendedor da obrigação de enviar o objeto nem tão-pouco da

responsabilidade pela falta de conformidade do bem vendido. Neste sentido, as regras de

remédios pela não conformidade absorvem as previsões sobre o risco (IVA.- 2:308), sob a

influência do art. 70.º da Convenção de Viena, que compatibiliza as normas de

transferência do risco com os direitos do comprador perante um incumprimento do

vendedor.

CAPÍTULO III – A transferência do risco da contrapr estação nas diretivas

comunitárias de proteção do consumidor

1. Responsabilidade do vendedor por não conformidade existente no momento da

entrega da coisa

O n.º 1 do art. 3.º do DL n.º 67/2003, que corresponde fielmente ao n.º 1 do art. 3.º

da Diretiva 1999/44/CE, consagra explicitamente a responsabilidade do vendedor por

“qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”.

Esta responsabilidade é uma consequência natural da obrigação que impende sobre o

vendedor de entregar ao consumidor uma coisa conforme com o contrato de compra e

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

257

venda748. A prova da falta de conformidade, ou seja, a não correspondência do bem

recebido ao bem convencionado, incumbe ao comprador, podendo este valer-se, na falta de

cláusulas específicas, das “presunções” consagradas no art. 2.º, n.º 2, do DL n.º 67/2003749.

Ao responsabilizar o vendedor por falta de conformidade existente no momento da

entrega do bem ao consumidor, a Diretiva 1999/44/CE e o DL n.º 67/2003 afastam-se do

regime consagrado no nosso Código Civil, em particular, do disposto no art. 882.º, n.º 1,

que determina que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da

venda, e no art. 918.º, que determina que se a coisa depois de vendida e antes de entregue

se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, são aplicáveis as regras relativas

ao não cumprimento das obrigações. Por esta razão, o regime especial da venda de coisas

defeituosas só se aplica aos defeitos originários da venda de coisa específica, ou seja, aos

defeitos que já existiam no momento da venda.

Diferentemente, perante a Diretiva 1999/44/CE e o disposto no DL n.º 67/2003, o

vendedor responde por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega

da coisa – independentemente de essa falta de conformidade ser anterior, concomitante ou

posterior à celebração da compra e venda – e que se manifeste dentro de dois ou cinco anos

a contar dessa data, se a coisa for móvel (art. 5.º, n.º 1, da Diretiva e art. 3.º, n.º 2, do

Decreto-Lei) ou imóvel (art. 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei), respetivamente750.

2. A referência à data da entrega e a derrogação implícita da regra res perit domino

na Diretiva 1999/44/CE

A Diretiva 1999/44/CE, sobre a venda de bens de consumo e garantias a ela relativas,

foi o primeiro diploma comunitário a regular, ainda que de uma forma implícita, o

problema da transferência do risco da contraprestação. Tal como a Convenção de Viena de

1980 sobre a Venda Internacional de Mercadorias, também a Diretiva 1999/44/CE não

748 V. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 98. 749 V. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 98. 750 V. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 98. Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de abril

de 2011 (Pedro Brighton), disponível em www.dgsi.pt, “[p]ara o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá

de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do

mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que

a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro, ou devida a caso fortuito”.

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regula a transferência da propriedade, o que se compreende tendo em conta a

incompetência comunitária na determinação do regime de propriedade dos Estados-

Membros, prevista no art. 295.º do Tratado da União Europeia.

Não obstante, enquanto a Convenção de Viena de 1980 disciplina de uma forma

autónoma, como já tivemos oportunidade de analisar, o problema da transferência do risco

da contraprestação, a Diretiva 1999/44/CE regula o problema transferência do risco de uma

forma assumidamente implícita. Como resulta do seu Considerando 14, “as referências à

data da entrega não implicam que os Estados-Membros devam alterar as suas normas sobre

transferência do risco”. Assim sendo, pareceria que a questão da transferência do risco

ficaria submetida às regras vigentes no direito interno de cada um dos Estados-Membros.

Não obstante, da análise da Diretiva parece poder retirar-se a conclusão de que esta adota o

critério da entrega ao consumidor como referência temporal para a transmissão do risco e

que este critério é imposto, desde logo, pelo princípio da conformidade com o contrato,

consagrado no n.º 1 do art. 2.º, já que, nos termos da Diretiva, a data relevante para aferir a

conformidade ou a falta de conformidade dos bens com o contrato é a data da entrega.

Como estabelece o n.º 1 do art. 3.º, “[o] vendedor responde perante o consumidor por

qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”.

A este propósito, cumpre referir que, na sequência da transposição da Diretiva

1999/44/CE, se verificou em alguns ordenamentos jurídicos uma alteração expressa das

regras de risco vigentes.

Assim sucedeu, por exemplo, no Reino Unido, em que o legislador reformou em

2002 o Sale of Goods Act de 1979, que estabelecia como regra geral, no seu art. 20.º, que o

risco se transmite com a propriedade. Depois da reforma do Sale of Goods Act de 1979,

que está em vigor desde 2003, o risco nas vendas de bens de consumo transfere-se com a

entrega do bem ao consumidor751. Para além disso, em caso de vendas que impliquem o

transporte de bens, não se aplica a regra geral segundo a qual o risco se transfere com a

entrega ao transportador. Isto é, entrega ao transportador não significa entrega ao

comprador.

751 No art. 20.º (“Passing of Risk”) do Sale of Goods Act 1979 introduziu-se um parágrafo quarto relativo a “The Sale and Supply of

Goods to Consumers”, no qual se estabelece: “In a case where the buyer delas as consume ror, in Scotland, where there is a consumer

contract in which the buyer is a consumer, subsections (1) to (3) above must be ignored and the goods remain at the seller’s risk until

they are delivered to the consumer”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

259

No ordenamento jurídico alemão a regra em vigor em matéria de transferência do

risco era já a da transferência do risco com a entrega da coisa ao comprador, muito embora

a entrega seja também, neste ordenamento jurídico, o momento em que, em regra, se

transfere a propriedade752. Apesar disso, verificaram-se alterações legislativas em matéria

de transferência do risco, que, nas vendas a consumidores, passou a transferir-se sempre

com a entrega efetiva ao consumidor e não com a remessa ao transportador ou expedidor

da coisa, como estabelece o § 447 do BGB, aplicável às dívidas de envio753.

Em Portugal, o legislador não alterou as regras vigentes, nem consagrou qualquer

disposição que expressamente se refira à transferência do risco na venda de bens de

consumo. No entanto, reproduziu textualmente, no DL n.º 67/2003, os arts. 2.º, n.º 1, e 3.º,

n.º 1, da Diretiva. O n.º 1 do art. 3.º do diploma nacional de transposição, ao eleger – à

semelhança do diploma comunitário – o momento da entrega como o momento relevante

para averiguar a existência de eventuais faltas de conformidade, parece associar a

transferência do risco à entrega da coisa, ainda que o cumprimento desta obrigação ocorra

em momento posterior à celebração do contrato e, portanto, à transmissão do direito real.

Isto significa que, tal como o diploma comunitário, o diploma nacional de transposição terá

consagrado implicitamente o critério da entrega como referência temporal em matéria de

transferência do risco da contraprestação. E, apesar do disposto no Considerando 14 da

Diretiva, pensamos que a consagração implícita do critério da entrega implica uma

derrogação igualmente implícita da regra res suo domino perit consagrada no art. 796.º, n.º

1, do Código Civil754.

752 Sobre a transmissão da propriedade no direito alemão, v. EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA , “O regime da transmissão da propriedade

no direito alemão e a proteção de terceiros subadquirentes – Brevíssimo confronto com o regime português”, in AA.VV., Estudos em

Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 515 a 528. 753 O § 474/II do BGB, que é das poucas disposições aplicáveis apenas às vendas a consumidores, determina a inaplicabilidade a estas

vendas do disposto no § 447 do BGB. Isto significa que na venda a consumidores o risco se transfere sempre com a entrega efetiva do

bem ao consumidor. Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado

Português, cit., p. 376. Em Espanha, depois da transposição da Diretiva pela Lei n.º 23/2003, de 10 de julho (atualmente RDL 1/2007, de

16 de novembro), a doutrina considerou também que no que respeita às vendas de bens de consumo o risco corre por conta do vendedor

até ao momento da entrega e considera derrogado para este tipo de contratos o art. 1452 do Código Civil espanhol. V. MORALES

MORENO, “Adaptación del Código Civil europeo: la compraventa”, cit., pp. 1609-1651, p. 1628. 754 É esta a posição defendida pela nossa doutrina maioritária. Pode ver-se, entre outros, PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e

garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 252, defendendo que “o regime previsto nos referidos arts. 918.º e 796.º do Código

Civil [...] não está de acordo com as exigências da directiva”; MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol III, cit., p. 141, referindo

que “entre o considerando (14) e a imposição do art. 3.º, n.º 1, haverá que dar prevalência a esta última”. Note-se, porém, que esta regra

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

Procurando conciliar o art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003 com o teor do Considerando

14 da Diretiva 1999/44/CE, Calvão da Silva defende que os referidos textos se referem a

problemas distintos. Assim, enquanto o art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003 se refere ao

problema da responsabilidade do vendedor por vícios ou defeitos da coisa existentes no

momento da sua entrega ao consumidor, ou seja, ao “cumprimento imperfeito da

obrigação de entrega por falta de conformidade jurídica ou material”, o Considerando 14

da Diretiva 1999/44/CE referir-se-ia ao problema da “impossibilidade do cumprimento da

obrigação de entrega conforme, pontual, em todos os termos devidos, em virtude do

perecimento ou deterioração da coisa por caso fortuito ou de força maior”755. Esta hipótese

não estaria abrangida pelo art. 3.º, n.º 1, do diploma comunitário, pelo que o perecimento

ou deterioração da coisa ocorrido após o momento da transferência do risco para o

comprador não libera este da obrigação de pagar o preço756. Ao invés, no caso de

cumprimento imperfeito da obrigação de entrega, o vendedor responderia,

independentemente de culpa, pelo vício ou defeito de conformidade do objeto entregue,

podendo o consumidor, neste caso, exercer os direitos à reposição da conformidade devida,

por meio de reparação ou de substituição, à redução do preço ou à resolução do contrato

(art. 4.º do DL n.º 67/2003).

Salvo o devido respeito, não é esta a posição que sufragamos.

de transferência do risco, que podemos retirar dos arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, da Diretiva, seria sempre circunscrita à venda de bens de

consumo, uma vez que o legislador português não optou pela solução ampla. 755 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Compra e Venda de Coisas Defeituosas, cit., p. 164. A nosso ver, esta posição apresenta uma inegável

vantagem que consiste em compatibilizar o teor do Considerando 14 com o disposto no art. 3.º, n.º 1, da DVBC e da LVBC. O

cumprimento imperfeito da obrigação de entrega por falta de conformidade jurídica ou material e a impossibilidade do cumprimento da

obrigação de entrega conforme, pontual, em todos os termos devidos, em virtude do perecimento ou deterioração da coisa por caso

fortuito ou de força maior, constituem inegavelmente dois problemas distintos, não sendo o primeiro um problema de risco mas de

responsabilidade do vendedor. Neste sentido, v. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos

Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 169. 756 É esta também a posição sufragada por GRAVATO MORAIS, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Almedina,

Coimbra, 2004, pp. 114 e 115, entendendo que “[m]antendo imodificadas as regras de repartição do risco de deterioração ou de perda da

coisa, constantes dos arts. 408.º, n.º 1, e 796.º do CC (que determinam a transferência do risco no momento da celebração do contrato), o

art. 3.º do DL 67/2003 consagra, o que representa uma inovação em relação ao regime vigente, que cabe ao vendedor suportar o risco de

desconformidade até à data da entrega da coisa. Assim, se após a conclusão do contrato de compra e venda, mas antes da traditio, se

verifica um defeito na coisa, o risco do seu perecimento ou da sua deterioração, nomeadamente durante o transporte, corre por conta do

vendedor”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

261

Embora a responsabilidade e o risco sejam tradicionalmente dois problemas

distintos757, não nos parece que o princípio da conformidade, agora transposto para o nosso

direito interno, possa coexistir com uma regra de repartição do risco diferente daquela que

implicitamente resulta da Diretiva, que associa a transferência do risco à entrega da coisa.

Com efeito, estando o vendedor obrigado a entregar bens que sejam conformes com o

contrato (art. 2.º, n.º 1) e sendo contratualmente responsável perante o consumidor por

qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega (art. 3.º, n.º 1), a perda

ou deterioração da coisa, por caso fortuito ou de força maior, no período compreendido

entre a celebração do contrato e a entrega da coisa, consubstanciam sempre um

incumprimento do contrato por parte do vendedor. A primeira, a perda da coisa, implica

um incumprimento da obrigação de entrega; a segunda, a deterioração, implica um

incumprimento da obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato. Em

qualquer um dos casos, existirá no momento da entrega uma falta de conformidade com o

contrato, podendo o consumidor exercer os direitos previstos no art. 3.º, n.º 1, da

Diretiva758.

Ao prescrever a responsabilidade do vendedor por qualquer falta de conformidade

que exista no momento da entrega a Diretiva consagra um conceito alargado de prestação –

prestação enquanto resultado –, logo, se, por caso fortuito ou de força maior, aquele objeto

perecer ou se deteriorar, o vendedor não fica exonerado – o risco do perecimento ou

deterioração é absorvido pelo risco da prestação (entendida esta em sentido amplo) e só se

autonomiza dela a partir do momento em que o vendedor realiza a prestação como

resultado, isto é, quando cumpre entregando bens conformes com o contrato. Assim se

explica que nos termos do art. 4.º o consumidor possa resolver o contrato ainda que a coisa

tenha perecido ou se tenha deteriorado por caso fortuito ou de força maior em momento

posterior à entrega. Os casos aqui abrangidos são os casos em que o vendedor não entregou

757 Na alienação de coisa específica, por força da conjugação entre o disposto no art. 796.º, n.º 1, e no art. 408.º, n.º 1, do Código Civil,

os dois problemas articulam-se da seguinte forma: estando o vendedor, nos termos do art. 882.º, obrigado a entregar a coisa no estado

em que esta se encontrava ao tempo da venda e, portanto, obrigado a guardar e a conservar a coisa até à entrega, no caso de a coisa

vendida se perder ou deteriorar antes da entrega, o vendedor só responde pela perda ou deterioração que lhe seja imputável. Caberá,

pois, ao vendedor provar – dada a presunção de culpa que sobre ele recai (art. 799.º, n.º 1) –, para afastar a sua responsabilidade, que

aquele perecimento não lhe é imputável, desde logo, porque é devido a caso fortuito ou de força maior, consubstanciando, assim, uma

situação de risco, a cargo do adquirente, nos termos do art. 796.º, n.º 1, do Código Civil. 758 Art. 4.º, n.º 1, do diploma nacional de transposição.

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bens conformes com o contrato, tendo estes vindo a perecer não em virtude da falta de

conformidade de que padeciam, mas por caso fortuito ou de força maior.

O princípio da conformidade dos bens com o contrato, nos moldes em que este é

regulado pela Diretiva, esbate a diferença concetual entre incumprimento e risco, já que a

imputação ao vendedor de qualquer falta de conformidade – e, portanto, de qualquer perda

ou deterioração – é objetiva759 . Nesta conceção objetiva de incumprimento,

consubstanciada na noção de falta de conformidade adotada pela Diretiva, não há

fundamento para distinguir os casos em que tal perda ou deterioração – que ocorra em

momento anterior à entrega – se deva a um facto culposo do vendedor (verificando-se, por

exemplo, em consequência da falta de conformidade do bem), daqueles em que estes

fenómenos sejam ocasionados por um qualquer outro evento ainda que fortuito ou de força

maior760.

A falta de conformidade corresponde, pois, a um conceito objetivo de

incumprimento de tal forma amplo que absorve o problema do risco, neutraliza-o, torna-o

irrelevante.

Nesta perspetiva, estando em causa uma compra e venda específica, o momento

relevante para efeitos de transferência do risco será o da entrega, como resulta

implicitamente da conjugação do disposto no n.º 1 do art. 2.º e do n.º 1 do art. 3.º do DL n.º

67/2003, não relevando, para este efeito, o momento da transmissão ou constituição do

direito real, como resultaria da regra consagrada no art. 796.º, n.º 1, do Código Civil.

O problema do risco da contraprestação, na Diretiva e no regime nacional da venda

de bens de consumo, é um problema de incumprimento e deve ser compreendido à luz do

princípio regulador dos contratos bilaterais em geral: o momento da transferência do risco

para o comprador é o momento em que o vendedor cumpre a sua obrigação de entrega dos

bens, que devem estar em conformidade com o contrato nesse momento. Só esta perspetiva

759 GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una definitiva desconexión

conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., p. 152. 760 Como observa Morales Moreno, referindo-se à falta de conformidade como conceção unitária o objetiva de incumprimento: “esta

construção unitária e objectiva de incumprimento não deixa espaço para separar os incumprimentos imputáveis, aos quais se aplicaria a

doutrina do incumprimento, e incumprimentos não imputáveis, aos quais se aplicaria a doutrina do risco. O problema do risco está

envolto hoje no problema do incumprimento” – “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La compraventa”, cit., pp. 1628 e

1629. A este propósito, afirma Nuno Aureliano que está aqui em causa uma manifestação setorial no domínio da compra e venda de bens

de consumo, de que o interesse contratual prevalente se encontra ainda na esfera jurídica do alienante, v. NUNO AURELIANO, O Risco

nos Contratos de Alienação, cit., p. 384.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

263

permite explicar que a perda ou deterioração dos bens depois da celebração do contrato e

antes da entrega não exonere o vendedor, mesmo que essa perda ou deterioração se deva a

caso fortuito ou de força maior761.

2.1. O significado a atribuir ao termo “entrega” e a inaplicabilidade do disposto no

art. 797.º do Código Civil à venda de bens de consumo

A falta de conformidade corresponde a uma noção unitária e objetiva de

incumprimento que absorve o problema do risco, diluindo-o no quadro geral do

incumprimento. Esta conceção é incompatível com a vinculação do risco da

contraprestação à produção do efeito jurídico-real – expressa entre nós no n.º 1 do art.

796.º do Código Civil –, visto que esta bloqueia o funcionamento do sinalagma contratual,

deslocando assim o problema do risco da contraprestação do quadro geral do

incumprimento.

No âmbito da venda de bens de consumo, o momento temporal em que se dá a

transferência do risco é, pois, segundo a Diretiva 1999/44/CE, o momento do cumprimento

da obrigação de entrega de “bens que sejam conformes com o contrato de compra e

venda”.

Partindo desta permissa, cumpre agora averiguar o significado a atribuir ao termo

“entrega”. Na ausência de uma definição comunitária de entrega, importa averiguar se o

legislador pretendeu referir-se a uma entrega efetiva, com receção material da coisa pelo

comprador ou se, ao invés, se pode admitir que, tendo as partes convencionado uma dívida

de envio, o risco se possa transferir, nos termos do art. 797.º do Código Civil, com a

simples colocação dos bens à disposição do comprador através da entrega ao transportador,

ao expedidor da coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio.

761 A Diretiva elegeu o momento da entrega como o momento relevante para determinar a conformidade dos bens com o contrato. Talvez

não tenha sido a solução mais feliz. V. ANTONIO MANUEL MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La

compraventa”, cit., p. 1635. A entrega é um processo em que intervém tanto o vendedor como o comprador e, no caso de venda com

transporte, também terceiros (transportadores); é um processo que gera riscos particulares de falta de conformidade. Talvez tivesse sido

melhor determinar que os bens devem ser conformes no momento em que se dá a transferência do risco para o comprador. E que este,

por sua vez, se transfere no momento em que o vendedor tenha feito, adequadamente, tudo o que lhe incumbe para cumprir a sua

obrigação de entrega. Por exemplo, se nos termos do contrato o vendedor se obrigou a enviar a coisa ao comprador, por meio de um

transportador, o vendedor fez tudo o que lhe incumbe quando colocou a coisa em poder do transportador, tendo escolhido

adequadamente o transportador se lhe incumbia fazê-lo.

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Já salientámos que o art. 797.º do Código Civil, por redução ou restrição teleológica,

se aplica apenas quando esteja em causa uma venda de coisa indeterminada de certo

género e as partes tenham convencionado uma dívida de envio. Só nestes casos é que

podemos afirmar que o referido preceito desempenha uma função semelhante àquela que o

§ 447/1 do BGB desempenha na ordem jurídica alemã e que é a de antecipar a

transferência do risco para um momento anterior ao da entrega (Übergabe), que seria o

momento relevante de acordo com a regra geral consagrada no § 446 do BGB.

Particularmente relevante é o facto de o novo § 474/II do BGB determinar a não

aplicação do regime da transferência do risco na promessa de envio, prevista no § 447 do

BGB, à venda de bens de consumo. Isto significa que, após a Reforma do Direito das

Obrigações alemão, estando em causa uma venda de bens de consumo, o momento da

transferência do risco não será o da remessa (Lieferung) da coisa ao transportador, ao

expedidor ou à pessoa encarregada da execução do envio, como dispõe o § 447 do BGB,

mas o da entrega efetiva (Übergabe), nos termos do § 446 do BGB762, por se entender que

até este momento é o vendedor que está em melhores condições de afastar ou diminuir o

risco do perecimento ou deterioração fortuitos da mercadoria, já que é ele que decide sobre

a forma do transporte e que escolhe o transportador763.

Nos termos do art. 797.º do Código Civil, podemos afirmar que a obrigação se

concentra antes da entrega efetiva ou da receção material da coisa pelo comprador, embora

762 Neste sentido, BROX/WALKER, Besonderes Schuldrecht, 30, Auflage, Verlag C. H. Beck, Munique, 2005, p. 19. Como salientam os

Autores, na venda de bens de consumo o risco transfere-se para o comprador quando este entra na posse da coisa, nos termos do § 446

do BGB. Note-se, contudo, que na versão alemã da Diretiva se utilizou, no art. 3.º, n.º 1, o termo Lieferung (remessa), utilizado no § 447

do BGB, e não a expressão tradicional Übergabe (entrega), utilizada no § 446 do BGB. 763 Cfr. J. VON STAUDINGERS, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, cit., p. 391. A razão

de ser da não aplicação do § 447 do BGB no âmbito da compra de bens de consumo reside no facto de o risco do perecimento fortuito ou

deterioração fortuita da mercadoria dever ser suportado pela parte contratual que está em melhores condições de afastar ou diminuir este

risco. Em regra, é o vendedor que está em melhores condições de afastar ou diminuir o risco do transporte porque é ele que decide sobre

a forma do transporte e que escolhe o transportador. Note-se, de resto, que esta foi também a solução adotada em alguns países, como é

o caso da Dinamarca, da Suécia e da Holanda, que apesar de estabelecerem como regra a transferência do risco com a entrega da coisa,

considerando-se esta efetuada, quando se trate de coisa que deva ser transportada de um lugar para outro, com a remessa ao

transportador, determinam que, quando o contrato de compra e venda seja celebrado entre um consumidor e um profissional, o bem

apenas se pode considerar entregue no momento em que o consumidor o tenha efetivamente recebido. Neste sentido, v. NUNO

AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 383.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

265

se possa discutir se, nestes casos, a obrigação se concentra efetivamente antes do

cumprimento, como resulta do art. 541.º do Código Civil 764.

Como observa Vaz Serra, “nas obrigações com dever de enviar, separam-se o lugar

de execução ou domicílio do devedor, que faz pela sua parte o indispensável com o envio,

e o lugar do resultado (domicílio do credor ou lugar de destino)”765. O primeiro, também

designado “lugar da prestação”, interessa ao cumprimento, apesar de a obrigação se não

extinguir desde logo, mas só quando ao credor se entregar a coisa enviada. Na verdade,

“[e]nquanto se não realiza a entrega do objecto ao credor, o remetente continua a ser

devedor, embora, ao realizar o envio, tenha cumprido já o acto constitutivo da sua

prestação. E compreende-se que seja assim, pois a obrigação não pode dar-se por liquidada

enquanto o credor não receber o objecto devido. Mas uma vez realizado o envio, a

obrigação do devedor reduz-se substancialmente, a não impedir que o direito do credor se

satisfaça, intrometendo-se na marcha normal do transporte”766. É, portanto, no lugar do

resultado (domicílio do credor ou lugar de destino) que a coisa deve ser entregue e que o

credor a deve receber para não se constituir em mora accipiendi. Nas dívidas de envio ou

de remessa são, assim, dois os momentos a que devemos atender. A este propósito, Vaz

Serra, no anteprojeto, propôs uma disposição que expressamente regulava este ponto e na

qual se estabelecia que, “[s]e a convenção ou a lei dispuserem que o devedor cumpre no

seu domicílio ou no lugar onde a coisa se encontra, mediante envio dela, por algum dos

764 Cfr. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, cit., p. 52. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro defende que,

apesar de o art. 540.º do Código Civil tornar claro que apenas o cumprimento exonera o devedor de prestação genérica, tendo o nosso

Código Civil consagrado, assim, a teoria da entrega, o art. 797.º consubstancia uma cedência à teoria do envio – que propugna a

concentração através da remessa ao credor da coisa escolhida pelo devedor –, operando a concentração, neste caso, com o simples envio

e, portanto, antes da entrega, nos termos do art. 541.º do Código Civil. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 1.º vol.,

AAFDL, Lisboa 1980, pp. 343 e 344. Posição diferente é sustentada, entre nós, por Menezes Leitão que entende que a promessa de

envio, consagrada no art. 797.º do Código Civil, não consiste sequer numa hipótese de concentração da obrigação genérica antes do

cumprimento pois nas dívidas de envio ou de remessa a obrigação cumpre-se no próprio local do envio ou da remessa, ficando a

obrigação extinta nesse momento em virtude do cumprimento. Segundo o Autor, “[o] facto de o credor ainda não ter recebido a

prestação é irrelevante, uma vez que o cumprimento pode ser realizado a terceiro se assim tiver sido estipulado ou consentido pelo

credor (cfr. art. 770.º a))” – cfr. Direito das Obrigações, vol. I, cit., pp. 149 e 150. Temos algumas dúvidas acerca da posição defendida

por este Autor. Com efeito, tendo o vendedor assumido contratualmente a obrigação de enviar o bem para um lugar diferente do lugar do

cumprimento e sendo esta obrigação uma obrigação fungível, nos termos do art. 767.º do Código Civil, o que há é um cumprimento da

obrigação por terceiro. Como observa Massimo Bianca, com aquela remessa o vendedor não entrega o bem ao comprador, mas apenas

se faz substituir com efeito liberatório pelo transportador ou expedidor naquilo que respeita à prestação de transporte do bem – cfr. La

vendita e la permuta, cit., pp. 432 e segs. 765 Cfr. ADRIANO PAES DA SILVA VAZ SERRA, “Lugar da Prestação”, BMJ, n.º 50 (1955), pp. 5 a 48, p. 38. 766 Cfr. VON TUHR apud VAZ SERRA, “Lugar da Prestação”, cit., p. 35.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

meios de transporte, ao domicílio do credor ou a outro lugar, o devedor cumpre com o acto

de entrega da coisa devida ao primeiro transportador ou comissário encarregado do

transporte ou, se o transporte começa por mar, com a colocação da coisa a bordo, embora a

obrigação se não extinga desde logo, mas só quando ao credor se entregar a coisa

enviada”767.

Neste contexto, pensamos que a referência feita pelo art. 797.º do Código Civil ao

lugar do cumprimento deve ser entendida como uma referência feita ao “lugar da

prestação”768, isto é, ao lugar onde o devedor cumpre o acto constitutivo da sua prestação,

embora o resultado desta só se verifique, nestes casos, no lugar para o qual se expede o

objecto devido e em que o organismo de transportes o porá em poder do credor769.

Em todo o caso, nos termos do art. 797.º, estando em causa uma “dívida de envio” –

e diferentemente do que sucederia se estivesse em causa uma “dívida de entrega” –, o risco

da contraprestação transfere-se para o comprador no momento da “entrega ao transportador

ou expedidor da coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio” e, portanto, antes da

efetiva entrada do bem na disponibilidade material do consumidor.

A ratio da Diretiva 1999/44/CE não permite, segundo pensamos, que o momento da

transferência do risco possa ser diferente consoante as partes tenham convencionado uma

“dívida de entrega” ou uma “dívida de envio”. Em ambas as hipóteses, que, aliás, a

Diretiva não distingue, a situação do consumidor pode ser caracterizada pela ausência,

antes da entrega do bem, de possibilidade de controlar a verificação do risco do

perecimento ou deterioração da coisa, pelo que seria injusto que, estando em causa uma

“dívida de envio”, fosse o consumidor a suportar o risco do (e durante o) transporte.

A tese segundo a qual o risco se transfere apenas com a receção efetiva dos bens por

parte do consumidor parece corresponder, aliás, à intenção originária da Comissão

767 Maria Ângela Bento Soares e Rui Moura Ramos defendem que o legislador de 1966, não tendo, ao contrário de Vaz Serra,

contemplado esta hipótese, quis fazê-la abranger pela regra geral: o lugar do cumprimento deve ser o do domicílio do devedor (art. 772.º,

n.º 1, do Código Civil), “pretendendo a lei, ao que tudo indica, fixar assim o lugar onde, colocada aí a coisa objecto do contrato à

disposição do credor, o devedor vê extinta a sua obrigação principal. Ora, por força do próprio circunstancialismo das dívidas de

remessa, tal local, nestas, não pode deixar de ser o do envio. Só assim se justificará o silêncio da nossa lei no que toca à consagração

expressa desta solução” – cfr. Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., pp. 82 e 83. 768 Neste sentido, DIETER MEDICUS, Schuldrecht II, cit., p. 14. 769 Só assim se compreende o disposto no art. 541.º do Código Civil, na parte em que estabelece que, nos casos previstos no art. 797.º, a

obrigação genérica se concentra antes do cumprimento.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

267

manifestada aquando da elaboração do Livro Verde e da redação da Proposta de 1996770.

Note-se, porém, que a própria Comissão rejeitou uma proposta feita pelo Parlamento

Europeu, no parecer formulado sobre a Proposta de Diretiva de 1996, que consistia em

inserir no referido art. 3.º, n.º 1, o adjetivo “efectiva”771. Assim, a interpretação da Diretiva

1999/44/CE no sentido de que esta associa a transferência do risco à entrega (entendida

esta no sentido de entrega material, com receção efetiva dos bens por parte do consumidor)

não é uma interpretação uniforme.

3. A receção material do bem como critério comunitário explícito na Proposta de

Diretiva sobre direitos dos consumidores

O facto de o legislador comunitário não ter adotado na Diretiva 1999/44/CE a

entrega dos bens ao consumidor como critério explícito de transferência do risco da

contraprestação, aliado ao facto de este diploma ser um instrumento de “harmonização

mínima”, conduziu a que esta Diretiva não tivesse alcançado neste ponto a harmonização

que seria desejável. Sendo o problema da transferência do risco (da contraprestação) um

dos elementos chave do regime da venda de bens de consumo, as disparidades entre as

várias legislações nacionais no que toca à interpretação da Diretiva, acabaram por abalar a

confiança do consumidor com reflexos nefastos na construção do mercado interno.

A Diretiva 1999/44/CE não alcançou a uniformização que seria desejável e a sua

transposição foi levada a cabo de maneira muito diferente nos diferentes Estados-

Membros, produzindo-se uma ampla dispersão normativa por uma irregular interpretação

da Diretiva, neste e noutros aspetos, resultante do seu carácter de uniformização mínima,

de modo que alguns países adotaram normas de maior proteção do que outros.

770 Com efeito, afirma-se no citado Livro Verde que “[o] vendedor só é responsável por defeitos existentes no momento da entrega. A

data deverá ser a da entrega e não a da venda. O consumidor deve receber um bem em bom estado e não é justo que quando a data da

venda seja anterior à data da entrega, o risco do transporte recaia sobre o consumidor”. Neste mesmo sentido, o art. 3.º, n.º 1, da Proposta

de Diretiva de 1996 estabelece que “[o] vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no

momento da entrega do bem ao consumidor e que se manifeste no prazo de dois anos a contar de tal momento […]”. Cfr. COM(1995)

520, p. 11. 771 Por considerar que “só o termo entrega já deixa aos Estados-membros uma margem suficiente de transposição, sem interferir com o

problema mais geral da transferência do risco, que está regulado de modo muito diverso e detalhado nas várias legislações nacionais”.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

O eco desta preocupação levou à apresentação em 8 de outubro de 2008 de uma

Proposta de Diretiva sobre direitos dos consumidores772, na qual se considera necessário

“harmonizar as normas nacionais sobre entrega e transmissão do risco”, dentro do objetivo

de uma harmonização máxima. Esta proposta incendiou o debate doutrinal e político

porque muitos países consideraram que ela vinha pôr em causa o alto nível de proteção dos

seus consumidores alcançado até à data773. Finalmente aprovou-se a Diretiva 2011/83/UE

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2011, sobre direitos dos

consumidores, substancialmente mais reduzida no seu âmbito de regulamentação e mais

comedida na sua pretensão harmonizadora774. Como se pode ler no Considerando 51 desta

Diretiva: “As principais dificuldades sentidas pelos consumidores e uma das principais

fontes de litígios com os profissionais dizem respeito à entrega dos bens, nomeadamente

quando estes são perdidos ou danificados durante o transporte ou quando as entregas são

tardias ou parciais. Por conseguinte, é conveniente clarificar e harmonizar as normas

nacionais que dizem respeito ao momento em que a entrega deverá ocorrer”.

Esta Diretiva consagra no art. 20.º uma regra expressa sobre transmissão do risco por

perda ou deterioração, que não existia na Diretiva 1999/44/CE, e cuja ausência tinha dado

lugar aos problemas de heterogeneidade na transposição da mesma:

772 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre direitos dos consumidores, Bruxelas, 8 de outubro de 2008,

COM(2008) 614 final. Esta proposta propõe-se rever, entre outras, a Diretiva 1999/44/CE, sobre a venda e as garantias dos bens de

consumo. 773 Para uma perspetiva crítica desta proposta, v. NORBERT REICH e HANS-WOLFGANG MICKLITZ , “Crónica de una muerte anunciada:

The Commission Proposal for a Directive on Consumer Rights”, Common Market Law Review, 2009-46, pp. 471 a 519; V. MAK ,

“Review of the Consumer Acquis: Towards maximum harmonisation?”, European Review of Private Law, 2009 – 1, pp. 55 a 73. Sobre

o medo de uma doutrina de harmonização máxima, v. C. U. SCHMID, “The instrumentalist conception of the Acquis Communutaire in

Consumer Law and its implications on a European Contract Law Code”, European Review of Contract Law, 2005, vol. 1 (2), 2005, pp.

255 a 269. 774 O futuro da Proposta de Diretiva sobre direitos dos consumidores foi questionado desde a data da sua publicação. Surpreendeu, desde

o primeiro momento, a falta absoluta de conexão entre a proposta de Diretiva e o texto do DCFR, que era já conhecido da Comissão

Europeia à data da publicação daquela proposta. Esta falta de conexão chamou a atenção porque a Comissão Europeia havia já

expressado o propósito de que o DCFR serviria como “toolbox” em ordem à revisão do acquis communautaire em matéria de consumo

[Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu: European Contract Law and the revision of the acquis: the way

forward, COM(2004) 651 final]. Mas o verdadeiro objetivo da proposta era o de levar a cabo um Código europeu de direitos dos

consumidores. V. HESSELINK, “The Consumer Rights Directive and the CFR: two worlds apart?”, European Review of Private Law,

2009-3, pp. 290 a 303.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

269

“Art. 20.º

Transferência do risco

Nos contratos em que o profissional expede os bens ao consumidor, o risco de perda

ou dano dos bens é transferido para o consumidor sempre que este ou um terceiro por ele

indicado, que não seja o transportador, tenha adquirido a posse física dos bens. Todavia,

após a entrega ao transportador, o risco é transferido para o consumidor, se o transportador

tiver sido encarregado pelo consumidor de transportar os bens e se essa opção não tiver

sido proposta pelo profissional, sem prejuízo dos direitos do consumidor em relação ao

transportador.”

O preceito aplica-se apenas aos contratos de compra e venda em que os bens são

expedidos pelo profissional ao consumidor775, por se ter entendido que nestes contratos “o

momento da transferência do risco pode ser, em caso de perda ou dano, uma fonte de

litígio”. Relativamente a contratos de compra e venda que não implicam transporte talvez

se tenha entendido que já seria suficiente a referência ao momento da entrega prevista no

n.º 1 do art. 2.º e no n.º 1 do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE. O art. 20.º da Diretiva

2011/83/UE veio pois estabelecer que mesmo nos casos em que o contrato implique o

transporte de bens – relativamente aos quais a simples referência ao momento da entrega

poderia suscitar algumas dúvidas – a transferência do risco para o comprador só ocorre no

momento em que este (ou um terceiro por ele indicado) adquira a posse física dos bens.

Sendo que “o consumidor deverá ser considerado como tendo adquirido a posse física dos

bens quando os recebe”776.

Pelo exposto, podemos considerar que o regime comunitário da transferência do

risco da contraprestação, nas vendas de bens de consumo, se pode inferir da articulação

entre dois textos normativos diferentes: a) Não havendo transporte, o risco transfere-se

com a entrega dos bens ao consumidor (regra que podemos considerar implícita no n.º 1 do

art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE, em conjugação com o n.º 1 do art. 3.º desse diploma); b)

775 O art. 18.º (“Entrega”) e o art. 20.º (“Transmissão do risco”) aplicam-se, nos termos do art. 17.º, n.º 1, “aos contratos de compra e

venda”. 776 Cfr. o Considerando 55 da Diretiva 2011/83/UE. Note-se, porém, que, como resulta do art. 20.º, e se reitera neste considerando, “essa

disposição não deverá aplicar-se aos contratos em que cabe ao consumidor proceder ele próprio à entrega dos bens ou pedir ao

transportador para proceder à entrega”.

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Havendo transporte, aplicar-se-á o disposto no art. 20.º da Diretiva 2011/83/UE, sendo

para este efeito necessário distinguir-se duas situações:

1) Sendo o transporte organizado ou realizado pelo vendedor/profissional, o risco

transfere-se quando o consumidor (ou um terceiro por ele indicado, diferente do

transportador) adquira a posse física dos bens, sendo que “o consumidor deverá ser

considerado como tendo adquirido a posse física dos bens quando os recebe”

(Considerando 55, in fine). O art. 20.º não contempla a hipótese de o consumidor não

tomar as medidas necessárias para adquirir a posse física dos bens (situações de mora)777.

Entende-se que neste caso o risco se transfere na data acordada para a entrega, desde que o

organismo de transportes tenha feito tudo o que era necessário para que o consumidor

adquirisse a posse física dos bens, colocando-os à disposição deste, não tendo o

consumidor tomado as medidas necessárias da sua parte para receber os bens, porque, por

exemplo, não os foi levantar778. Daí a importância de estabelecer uma data de entrega. Nos

termos do n.º 1 do art. 18.º da Diretiva 2011/83/UE, “[s]alvo acordo em contrário das

partes sobre o momento da entrega, o profissional deve entregar os bens mediante

transferência da sua posse física ou controlo ao consumidor, sem demora injustificada, e no

prazo máximo de 30 dias a contar da celebração do contrato”.

2) Se o transporte é organizado ou realizado pelo próprio comprador, o risco

transfere-se para o consumidor no momento da entrega ao transportador (art. 20.º da

Diretiva 2011/83/UE, in fine).

Em face do disposto no art. 20.º da Diretiva 2011/83/UE podemos, pois, concluir que

o momento relevante para a transferência do risco é o momento em que o consumidor

adquire a posse física ou o controlo dos bens779. Sendo que “o consumidor dispõe do

controlo dos bens sempre que ele ou um terceiro por ele indicado a eles tiver acesso para

777 Esta situação estava expressamente prevista no art. 23.º da Proposta: “O risco contemplado no parágrafo 1 transmite-se para o

consumidor no momento da entrega conforme ao acordado pelas partes se o consumidor ou um terceiro por ele indicado distinto do

transportador não tiver tomado manifestamente as medidas razoáveis para adquirir a posse física dos bens”. Esta situação estava

expressamente prevista no art. 23.º da Proposta, esclarecendo-se no Considerando 38 da mesma que seria o caso de o consumidor que se

atrasa indevidamente a tomar posse dos bens porque, por exemplo, não os vai levantar à estação de correios dentro do prazo fixado por

esta. 778 Neste sentido, v. GEMA TOMÁS MARTÍNEZ, “La transferência del riesgo del precio y la transmisión de propriedade: hacia una

definitiva desconexión conceptual y temporal en sede de armonización europea”, cit., p. 157. 779 Prevê-se no Considerando 51 da Diretiva que “[a]s normas relativas à entrega previstas na presente directiva deverão incluir a

possibilidade de o consumidor autorizar terceiros a adquirirem, por sua conta, a posse física ou o controlo dos bens”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

271

os usar enquanto proprietário, ou quando tiver a possibilidade de os revender (por

exemplo, quando recebe as chaves ou adquire a posse dos títulos de propriedade)”780.

Afigura-se, pois, relevante, nos termos do art. 20.º da Diretiva 2011/83/UE, saber quem

organiza ou realiza o transporte. Sendo o vendedor, o comprador deverá estar protegido

contra qualquer risco de perda ou dano dos bens que ocorra até ao momento em que

adquira a posse física dos mesmos. Ao invés, sendo o consumidor quem organiza ou

realiza o transporte, já não se justifica protegê-lo contra qualquer risco de perda ou dano

dos bens, que ocorra antes de ter adquirido a posse física dos mesmos, pois, nestes casos,

ele terá o controlo sobre os bens, podendo celebrar, por exemplo, um contrato de seguro

relativamente aos bens781.

Note-se que o legislador comunitário, ao regular a transferência do risco, no art. 20.º

da Diretiva 2011/83/UE, não utilizou qualquer referência ao termo “entrega”, empregue no

art. 18.º, que, salvo acordo das partes, permite que a entrega se efetue “mediante

transferência da sua posse física ou controlo ao consumidor”. A referência temporal em

matéria de transferência do risco é a receção física do bem por parte do comprador e isto

sublinha a importância do controlo sobre o bem, que está presente quer na Convenção de

Viena, quer no DCFR. Quem tem o controlo sobre o bem assume o risco.

Este critério de transferência do risco – associado a uma ideia de controlo sobre o

bem – evidencia a desconexão deste problema relativamente à aquisição da propriedade, a

qual, por sua vez, se encontra fora do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83/UE. Como

se afirma no Considerando 51: “O local e as modalidades de entrega e as normas

respeitantes à determinação das condições e do momento da transferência de propriedade

dos bens deverão continuar sujeitos à legislação nacional e, por conseguinte, não deverão

ser afectados pela presente directiva”. Já no que respeita ao problema do risco da

contraprestação este transmite-se mediante a entrega real e efetiva, a aquisição da posse

física dos bens, nos termos do art. 20.º da Diretiva 2011/83/UE.

Estamos perante um instrumento legal europeu que inclui uma norma de

transferência do risco baseada num critério fáctico de receção física da coisa, na linha da

Convenção de Viena. Evita-se aqui também uma vinculação explícita à entrega, que,

780 Considerando 51 da Diretiva 2011/83/UE. 781 Poderá assim controlar também o risco da contraprestação. Esta ideia de controlo está também subjacente ao regime da transferência

do risco consagrado na Convenção de Viena.

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enquanto conceito jurídico de transmissão da posse, admite várias modalidades, que não

são as mesmas em cada país e nem todas têm a mesma finalidade, estando algumas delas

ligadas à aquisição da propriedade, aspeto que por enquanto está fora do âmbito de

harmonização.

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PARTE VI

OS DIREITOS QUE O CONSUMIDOR PODE EXERCER EM CASO DE FALTA

DE CONFORMIDADE DOS BENS COM O CONTRATO

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275

1. Introdução

O Código Civil português regula a matéria do não cumprimento, na sede mais vasta

do incumprimento das obrigações, dentro do capítulo designado “Cumprimento e não

cumprimento das obrigações”, num enquadramento dogmático que tem como pólos de

referência a impossibilidade (total ou parcial) e a mora. Os arts. 790.º e segs. dedicam-se

sucessivamente a tratar a impossibilidade de cumprimento e a mora não imputáveis ao

devedor e a falta de cumprimento e a mora imputáveis ao devedor. Isto significa que,

perante o Código Civil português, os direitos que o credor pode exercer em caso de não

cumprimento dependem da qualificação substancial do tipo de incumprimento782. Desta

qualificação, feita com base numa pluralidade de categorias, muitas vezes não excludentes

(por exemplo, mora/incumprimento definitivo; incumprimento total/parcial/defeituoso),

decorre a aplicação de um certo regime jurídico783.

A esta caracterização concetual do não cumprimento, adotada pelo Código Civil

português, opõe-se, numa abordagem mais pragmática, o modelo adotado pelo DL n.º

67/2003, que transpôs a Diretiva 1999/44/CE. Esta abordagem mais pragmática, que

também está presente na Convenção de Viena, nos Princípios UNIDROIT, nos PECL e no

DCFR, prescinde da qualificação substancial do tipo de não cumprimento784. Segundo a

Diretiva 1999/44/CE, qualquer falta de conformidade dos bens com o contrato

consubstancia um não cumprimento da obrigação de entrega de bens em conformidade

com o contrato e permite ao consumidor exercer os remédios previstos para o

incumprimento. À pluralidade de conceitos, que caracteriza o regime do não cumprimento

consagrado no nosso Código Civil, contrapõe-se, pois, a unidade concetual do regime

consagrado na Diretiva 1999/44/CE e, entre nós, no DL n.º 67/2003. Esta unidade

concetual consubstancia-se na noção de “falta de conformidade”, pelo que qualquer

desconformidade é considerada não cumprimento. O centro da análise está, pois, em saber

782 Neste sentido, v. ASSUNÇÃO CRISTAS, “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit.,

pp. 239 a 265, p. 247 783 ASSUNÇÃO CRISTAS, “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit., p. 248. 784 A Convenção de Viena de 1980, os Princípios UNIDROIT e os PECL são de facto instrumentos com raízes e influências comuns.

Sobre estes instrumentos v. O. LANDO, “The European Principles in an Integrated World”, in ERCL, vol. 1, 2005, p. 3.

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qual dos direitos pode o credor exercer para pôr fim a essa situação de desconformidade785.

Está aqui presente uma objetivação do quadro do incumprimento: buscam-se as diferentes

formas de remediar um problema, procurando a melhor forma de composição dos

diferentes interesses em presença, atendendo às diferentes soluções possíveis786.

Apesar de estes dois diplomas terem um âmbito de aplicação material distinto787,

ambos individualizam e disciplinam os quatro direitos que o comprador pode exercer em

caso de falta de conformidade dos bens com o contrato: o direito à reparação e à

substituição da coisa, o direito à redução do preço e o direito de resolução do contrato.

Diferentemente, porém, da Convenção de Viena, a Diretiva 1999/44/CE não regula o

direito à indemnização, que será, pois, regulado, pelo direito interno de cada um dos

Estados-Membros.

Subjacente a qualquer conjunto de normas destinadas a regular o não cumprimento

está a opção por uma de duas abordagens: uma primeira, que tende a proteger o

cumprimento e, consequentemente, a evitar a resolução do contrato, que surge, assim,

como um remédio de última ratio, e uma segunda, que tende a facilitar a resolução do

785 De acordo com esta abordagem pragmática, presente também, como já referimos, em vários instrumentos internacionais, é frequente

a utilização da expressão remedies para designar os vários meios de reação ao não cumprimento. A expressão remédios é uma tradução

literal da expressão remedies, usada, por exemplo, no DCFR, que coloca a tónica na situação de desconformidade e nos vários meios que

o ordenamento jurídico encontra para pôr fim a essa desconformidade. Como salienta Assunção Cristas, “[n]ão se atende à óptica do

credor, mas sobretudo à melhor forma de composição dos diferentes interesses em presença, atendendo a que o contrato deve ser visto

como um instrumento de cooperação e não propriamente como um confronto de adversários em que cada um procura retirar vantagens à

custa do outro” – v. “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit., p. 250. Como refere

Morales Moreno, “[r]emédio é toda a medida de proteção que oferece o ordenamento jurídico a um sujeito, numa determinada situação,

perante a lesão de um interesse. Tais medidas podem consistir em pretensões (que atribuem ao legitimado a faculdade de exigir de outro

sujeito um dar, fazer ou não fazer algo, podendo utilizar inclusive, uma ação para tornar efetivo o seu conteúdo; por exemplo, a

pretensão indemnizatória), ou em direitos potestativos (que atribuem ao legitimado a faculdade de modificar, por meio da sua vontade,

uma situação jurídica, por exemplo, a anulação e a resolução)”. V. A. M. MORALES MORENO, “Es posible construir un sistema

precontratual de remédios? Reflexiones sobre la Propuesta de Modernización del Derecho de obligaciones y contratos em el marco del

Derecho europeo”, in Derecho privado europeo y modernización del Derecho contratual en Espanã (direção de K. J. Albiez

Dohrmann), Atelier, Barcelona, 2011, pp. 400 e segs., p. 402. 786 Esta possibilidade tem a ver com a própria possibilidade material da solução (v. g., da prestação em causa), mas também com a

suscetibilidade de essa solução satisfazer cabalmente o interesse do credor. 787 A Diretiva 1999/44/CE aplica-se a relações b2c (business to consumers), enquanto a Convenção de Viena se aplica a relações b2b

(business to business), nas quais não se faz sentir em primeira linha a necessidade de proteger a parte mais fraca e em que entram em

jogo interesses específicos do comércio internacional. Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., 267. A exclusão

das vendas a consumidores do âmbito de aplicação material da Convenção de Viena resulta explicitamente da alínea a) do art. 2.º, no

qual se determina que a Convenção não regula as vendas de mercadorias compradas para uso pessoal, familiar ou doméstico, a menos

que o vendedor, o mais tardar no momento da celebração do contrato, não soubesse nem devesse saber que as mercadorias eram

compradas para tal uso.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

277

contrato e a permitir que a parte adimplente se desvincule “pagando” uma

indemnização788.

A Diretiva 1999/44/CE e a Convenção de Viena inserem-se naquela primeira

tendência, privilegiando os remédios orientados para o cumprimento e favorecendo assim a

conservação do contrato. Esta tendência, que Huber designa como “the modern trend to

restrain the scope of termination”789 , tem sido apontada como uma das principais

características da Convenção de Viena, embora também se encontre presente em outros

instrumentos internacionais, como os Princípios UNIDROIT e de Direito Europeu, como é

o caso do DCFR e dos PECL790 .

Entre o sistema de remédios consagrado na Diretiva 1999/44/CE e o sistema de

remédios consagrado na Convenção de Viena, há, porém, diferentes nuances que importa

agora analisar.

788 É importante compreender aqui as diferenças que se verificam entre os sistemas da família romano-germânica e os do Common Law

quanto à questão de saber se, em caso de incumprimento, o credor pode atuar uma pretensão de cumprimento ou tem de limitar-se a uma

pretensão indemnizatória. Os sistemas da família romano-germânica partem do princípio de que o credor pode accionar uma pretensão

de cumprimento ao passo que o Direito inglês, bem como, mais acentuadamente, o Direito dos EUA apenas concedem na maior parte

dos casos uma pretensão indemnizatória, só em hipóteses especiais admitindo a specific performance. Cfr. LUIS LIMA PINHEIRO, Direito

Comercial Internacional, cit., p. 280. Ver a este propósito FLORENCE BELLIVIER /RUTH SEFTON-GREEN, “Force obligatoire et exécution

en nature du contrate en droits français et anglais: bonnes et mauvaises surprises du comparatisme”, in Études Offertes à Jacques

Ghestin, Le contrat au début du XXI siècle, L.G.D.G., pp. 90 a 112. 789 PETER HUBER, CISG – The Structure of Remedies, disponível em http://cisgw3.law.pace.edu/cisg/biblio/huber1.html [apresentação

em “The Convention on the International Sale of Goods, The 25th Anniversary: Its Impact in the Past; Its Role in The Future”, German

Society of Comparative Law, Private Law Division, Conference 2005 (22-24 September 2005) Wurzburg]. 790 Os defensores da proteção do cumprimento não se limitam a defender a execução específica, mas defendem o “performance interest”

em geral, com toda a panóplia de remédios que visam a sua proteção. VANESSA MAK , por exemplo, no seu recente livro Performance-

Oriented Remedies in European Sale of Goods Law, Bloomsbury Publishing, 2009, que agrupou os remédios contratuais numa categoria

que classificou como “performance-oriented remedies”, na qual se inclui a execução específica, reparação, entrega de bens de

substituição e redução do preço, e também, por razões práticas, serve como “denominador comum” para incluir o direito do vendedor a

corrigir a prestação não conforme, já que este também visa a preservação do cumprimento contratual. Como explica V. Mak, o

argumento para agrupar estes remédios nesta categoria é que todos eles partilham um objetivo comum – eles visam promover o

cumprimento pelo vendedor da sua obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato. Neste sentido, os “performance-

oriented remedies” opor-se-iam aos “termination-remedies”, que têm por objetivo pôr fim ao contrato. V. Mak, defensora da proteção do

cumprimento, aplaude a inclusão destes remédios na Convenção de Viena e reclama a sua inclusão em futuros esforços de

uniformização, já que, como ela explica, “the best way to protect this performance interest is through a remedy that takes form of

performance by the seller, rather than through an award of damages”. A A. vê a fortificação do “performance interest” como o ponto-

chave de todos os sistemas de remédios e defende a sua necessária inclusão nos futuros instrumentos de Direito Europeu da Compra e

Venda.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

CAPÍTULO I – Os remédios pela falta de conformidade dos bens com o contrato na

Convenção de Viena de 1980 sobre a Venda Internacional de Mercadorias

1. A primazia dos direitos orientados para o cumprimento

A Secção III do Capítulo II da Convenção de Viena de 1980 regula os remédios de

que o comprador dispõe no caso de inexecução pelo vendedor de alguma das obrigações

que para ele decorrem do contrato ou da Convenção, entre elas, a obrigação de “entregar

mercadorias, que, pela quantidade, qualidade e tipo correspondam às previstas no contrato

e que tenham sido embaladas ou acondicionadas de acordo com a forma prevista no

contrato”791.

O art. 45.º, n.º 1, elenca os direitos que assistem ao comprador: “[s]e o vendedor não

executar qualquer das obrigações que para ele resultam do contrato de compra e venda ou

da presente Convenção, o comprador está autorizado a: (a) exercer os direitos previstos

nos arts. 46.º a 52.º; (b) pedir uma indemnização por perdas e danos prevista nos arts. 74.º

a 77.º”. Assim, segundo a Convenção, os direitos que assistem ao comprador, no caso de as

mercadorias entregues não serem conformes com o contrato de compra e venda, são: o

direito a exigir do vendedor o cumprimento, incluindo o direito à reparação e à substituição

da coisa, o direito à resolução do contrato, o direito à redução do preço e, ainda, o direito a

uma indemnização por perdas e danos, que a própria Convenção regula792.

791 Esta obrigação, consagrada no art. 35.º, n.º 1, da Convenção de Viena é semelhante àquela que se encontra consagrada no art. 2.º, n.º

1, da Diretiva, no qual se determina que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato

de compra e venda”. 792 Segundo Maria Ângela Bento Soares e Rui Manuel Moura Ramos, o uso destes direitos surge em termos cumulativos e não

alternativos, isto é, o comprador, em caso de incumprimento do vendedor, pode lançar mão de um dos meios previstos nos artigos

seguintes e, ainda, pedir uma indemnização por perdas e danos (regulada nos arts. 74.º a 77.º da Convenção). Segundo os AA., tal

conclusão é ainda reforçada pela norma do n.º 2 do art. 45.º, de acordo com a qual o comprador não perde o direito de pedir

indemnização por perdas e danos pelo facto de recorrer a outro meio que igualmente lhe assista – cfr. Contratos Internacionais –

Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, Almedina, Coimbra, p. 111. Dos termos amplos em que se encontram redigidas estas

disposições resulta, ainda, segundo os AA., “que se não pretendeu fazer depender o pedido de indemnização de perdas e danos, em

geral, da prova da existência de qualquer culpa por parte do vendedor”; esta conclusão resultaria de uma integração desta norma com o

disposto no art. 79.º donde decorre a exclusão do direito à indemnização no caso de se verificarem os pressupostos configuradores da

exoneração do vendedor. Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e

Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 111, nota 171.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

279

1.1. O direito a exigir do vendedor o cumprimento e a sua concretização nos direitos

à reparação e à substituição das mercadorias não conformes ao contrato de

compra e venda

Nos termos do art. 46.º, n.º 1, o comprador tem o direito de exigir que o vendedor

cumpra as suas obrigações e, consequentemente, o direito de obter, por via judicial, a

execução específica. Este direito do comprador está, porém, sujeito a dois limites.

O primeiro limite é postulado pelo princípio da harmonia processual interna e

decorre da articulação do art. 46.º, n.º 1, com o disposto no art. 28.º da Convenção, o qual

determina que um tribunal apenas pode ordenar a execução específica quando o fizesse,

face ao seu próprio ordenamento jurídico, relativamente aos contratos de compra e venda

internos. O segundo limite é de ordem lógica: o comprador não está autorizado a recorrer à

execução específica quando tenha lançado mão de um meio com ela incompatível (art.

46.º, n.º 1, in fine) – maxime, a resolução do contrato793.

O mecanismo da execução específica apresenta-se conformado de maneira especial

nos §§ 2 e 3 do art. 46.º, que consagram os direitos à reparação e à substituição da coisa.

1.1.1. O direito à substituição das mercadorias não conformes

Particularmente interessante, na perspetiva de um confronto entre o sistema de

direitos consagrado na Convenção de Viena de 1980 e o sistema de direitos consagrado na

Diretiva 1999/44/CE, é o n.º 2 do art. 46.º que determina o direito à substituição das

mercadorias que não sejam conformes ao contrato de compra e venda. Neste caso, nos

termos da Convenção de Viena de 1980, o comprador apenas pode exigir a entrega de

novas mercadorias se a falta de conformidade constituir uma violação fundamental do

contrato794 e se tal exigência tiver sido formulada em conjunto com a denúncia da falta de

conformidade, ou num prazo razoável a partir desta denúncia795.

793 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 114. 794 O art. 25.º da Convenção procura definir, o mais concreta e claramente possível, o que se deve entender por violação fundamental do

contrato: “Uma violação do contrato cometida por uma das partes é fundamental quando causa à outra parte um prejuízo tal que a prive

substancialmente daquilo que lhe era legítimo esperar do contrato, salvo se a parte faltosa não previu esse resultado e se uma pessoa

razoável, com idêntica qualificação e colocada na mesma situação, não o tivesse igualmente previsto”. Pretende-se, assim, obter uma

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

As restrições feitas ao direito do comprador a requerer a substituição das mercadorias

fundamentam-se, por um lado, na necessidade de salvaguardar a celeridade no

desenvolvimento das transações internacionais, o que se consegue com a estipulação de um

prazo796, e, por outro lado, num argumento de ordem económica, que influenciou de forma

decisiva o regime consagrado na Convenção de Viena de 1980 e que se prende com os

custos que a entrega de uma segunda remessa e consequente restituição dos bens

originariamente entregues acarreta para o vendedor. Esta última razão explica que o

legislador da Convenção de Viena de 1980 não tenha tratado da mesma forma os dois

direitos orientados para o cumprimento (a reparação e a substituição), submetendo o seu

exercício à verificação dos mesmos pressupostos, mas tenha querido antes restringir a

possibilidade de o comprador exigir mercadorias de substituição aos casos em que exista

uma violação fundamental do contrato797. Isto significa que na Convenção de Viena de

1980 o direito à substituição está submetido ao requisito previsto para a resolução do

contrato, que, sendo embora a sanção mais grave, acarreta, deste ponto de vista, o mesmo

custo económico798.

interpretação tanto quanto possível unívoca de um “termo de importância nuclear” em muitos aspetos do regime estabelecido pela

Convenção e que, se fosse deixada totalmente à livre apreciação dos intérpretes, poderia, não obstante o disposto no art. 7.º, frustrar o

escopo uniformizador da Convenção. Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais –

Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 68. Note-se, contudo, que a opção do legislador por uma cláusula geral, de

preferência a fórmulas mais rígidas, “teve precisamente em vista a sua aplicação a casos que não podia prever mas onde se faria sentir a

necessidade de idêntico tratamento”. Em todo o caso, o art. 25.º da Convenção é uma tentativa feliz de concretização da noção de

violação fundamental do contrato, materializando o conceito de prejuízo importante com que se bastava a expressão correspondente do

Projeto. Como observam Maria Ângela Bento Soares e Rui Manuel Moura Ramos, a solução adotada na Convenção baseia-se num

“critério muito próximo daquele que ilumina a nossa lei quando equipara ao incumprimento as situações de mora do devedor – critério

esse que é o da perda de interesse da contraparte (o credor) na prestação” – cfr. Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas

Penais, Arbitragem, cit., p. 69. Os AA. aplaudem ainda a definição das condições em que se verifica a exoneração da responsabilidade

da parte faltosa, “ao utilizar-se o critério de previsibilidade, por parte de um sujeito onde tem de concorrer uma tríplice qualificação: a da

razoabilidade, a da pertinência a um status idêntico ao da parte faltosa e a da sua colocação numa situação de facto semelhante” – idem,

p. 69. 795 Art. 46.º, n.º 2, da Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias. 796 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 115. 797 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 115. Como observam os AA., pode acontecer que uma violação não fundamental acarrete menos prejuízos ao

comprador do que aqueles que o envio de novas mercadorias causaria ao vendedor. 798 Cfr. PETER HUBER, CISG – The Structure of Remedies, cit., p. 9. A exigência de uma violação fundamental do contrato, que está em

linha com um dos princípios básicos da CVVIM, funciona, assim, como uma importante restrição ao exercício do direito à substituição

dos bens entregues, que, como veremos, não encontra paralelo na Diretiva 1999/44/CE. Cfr. PETER HUBER, CISG – The Structure of

Remedies, p. 2.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

281

A pretensão de substituição depende ainda de outro pressuposto, enunciado no art.

82.º, n.º 1, da Convenção de Viena de 1980 e comum à faculdade de resolução: que o

comprador possa restituir a mercadoria num estado substancialmente idêntico àquele em

que a recebeu799.

1.1.2. O direito do comprador à reparação das mercadorias não conformes ao

contrato

O n.º 3 do art. 46.º da Convenção de Viena consagra o direito do comprador à

reparação das mercadorias não conformes com o contrato, desde que esta não seja

“irrazoável, tendo em conta todas as circunstâncias”. Nos termos desta disposição, a

reparação deve ser exigida em conjunto com a denúncia da falta de conformidade, ou num

prazo razoável a contar desta denúncia. Note-se a acentuada divergência no que toca aos

pressupostos estabelecidos no n.º 2 do art. 46.º para o exercício do direito à substituição:

enquanto neste último caso se torna necessária a existência de uma violação fundamental,

o exercício do direito à reparação basta-se com a razoabilidade do recurso a este meio no

caso concreto800. A pretensão de reparação não será razoável, designadamente, quando for

desproporcionadamente onerosa para o vendedor. Por exemplo, quando se trate de

pequenas reparações que o comprador pode conseguir com facilidade no país de utilização,

quando o vendedor só dispõe dos meios para proceder à reparação num país distante801.

Apesar da diferença, no que diz respeito aos pressupostos, a admissibilidade da

reparação e da substituição das mercadorias não conformes surge como uma concretização

799 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, p. 292. Note-se, porém, que nos termos do n.º 2 do art. 82.º da

Convenção de Viena, este pressuposto é dispensado nas seguintes hipóteses: (1) se a impossibilidade de restituir a mercadoria, ou de a

restituir num estado sensivelmente idêntico àquele em que o comprador a recebeu, não for devida a um ato ou omissão seus; (2) se a

mercadoria perecer ou se deteriorar, no todo ou em parte, em consequência do exame da mercadoria pelo comprador; ou (3) se o

comprador, antes do momento em que descobriu ou deveria ter descoberto a falta de conformidade, vendeu toda ou parte da mercadoria

no curso normal dos seus negócios, ou consumiu ou transformou todas ou parte delas em conformidade com o uso normal. Como

observa Lima Pinheiro, esta norma é mais favorável ao comprador do que o art. 432.º, n.º 2, do Código Civil: se a mercadoria se perdeu

ou deteriorou por caso fortuito ou de força maior o comprador pode resolver o contrato à face da Convenção mas não do Direito

português. O A. considera preferível a solução consagrada na Convenção, uma vez que põe a cargo da parte faltosa as consequências da

impossibilidade de restituição não imputável à parte lesada. Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., pp. 292 e

293. Pode, no entanto, duvidar-se que o art. 432.º, n.º 2, seja aplicável à venda de coisas defeituosas determinadas. 800 Na mesma linha se inscreve, como veremos, o direito à reparação, previsto no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE, estando neste caso

limitado pela impossibilidade e pela desproporcionalidade. 801 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 293.

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natural do direito à execução específica e filia-se na abordagem que tem como finalidade

última salvaguardar a manutenção do contrato e evitar a sua resolução.

2. O direito de o comprador declarar a resolução do contrato

O art. 49.º, n.º 1, da Convenção de Viena de 1980 concede ao comprador o direito de

declarar a resolução do contrato802 em duas hipóteses que a norma prevê: quando a falta de

cumprimento de qualquer obrigação pelo vendedor constituir uma violação fundamental

do contrato, ou quando o vendedor não faça a entrega das mercadorias findo o prazo

suplementar que foi fixado pelo comprador nos termos do art. 47.º (ou ainda no decurso

deste, se o vendedor declara que não fará a entrega dentro de tal prazo)803.

802 O art. 49.º da Convenção estatui que “o comprador pode declarar o contrato resolvido [...]”, o que significa que não se admite a

resolução automática ou ipso facto, pois a adoção desta forma de resolução traria consigo grandes incertezas (saber se o contrato ainda

estava em vigor ou se tinha sido resolvido ipso facto). Com a solução adotada, o contrato permanecerá em vigor enquanto o comprador

não declarar expressamente a sua resolução. O mesmo acontece entre nós (v. o art. 436.º, n.º 1, do Código Civil). Cfr. MARIA ÂNGELA

BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 122,

nota 195. 803 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 123, observam que a nossa lei concede ao comprador o direito de resolver o contrato em hipóteses paralelas às

previstas no art. 49.º da Convenção. Com efeito, o art. 801.º, n.º 2, do Código Civil dá ao credor o direito de resolver o contrato se a

prestação se tornar impossível por culpa do devedor; por seu turno, o art. 808.º, n.º 1, considera não cumprida a obrigação para todos os

efeitos (e, portanto, também para o efeito de o comprador poder resolver o contrato) “se o credor, em consequência da mora, perder o

interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor”. No que toca ao

regime da venda de coisas defeituosas (arts. 913.º e segs. do Código Civil) e da venda de bens onerados (arts. 905.º e segs.), os AA.

corroboram a posição sustentada por Baptista Machado, o qual sustenta com boas razões que o problema da garantia pelos defeitos da

coisa vendida não cabe no âmbito da teoria do erro, já que o direito conferido ao comprador por aquela garantia é um direito fundado

diretamente no contrato, podendo ver-se aqui um regime especial de cumprimento defeituoso do contrato. Cfr. BAPTISTA MACHADO,

“Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, cit., pp. 75 e segs. Partindo do exposto, os AA. concordam em “poder assim

enquadrar a faculdade de o comprador fazer cessar o vínculo contratual, verificada a inexecução das obrigações do vendedor, em

esquemas semelhantes, tanto na Convenção como no nosso direito”. Ao direito de resolver o contrato, reconhecido pela Convenção ao

comprador, no art. 49.º, afigura-se corresponder na nossa lei, a hipótese de o comprador ver extinta a relação contratual nas hipóteses de

incumprimento definitivo (arts. 795.º e 801.º, respetivamente, para a hipótese de o incumprimento não ser ou ser imputável ao devedor),

mora (art. 808.º, n.º 1) e cumprimento defeituoso (arts. 905.º e 913.º) – categorias estas a que a nossa lei reconduz o tratamento legal da

matéria do incumprimento das obrigações. Existe ainda analogia, por outro lado, no que respeita aos requisitos de que depende o

exercício do direito de resolução. No que respeita ao incumprimento definitivo, o art. 49.º da Convenção faz depender o exercício do

direito de resolução da ocorrência de uma violação fundamental do contrato. Ora, o sentido deste conceito aproxima-se daquele que se

retira da fórmula “perda do interesse do credor na prestação”, que é utilizada no art. 808.º, n.º 1, do Código Civil. De violação

fundamental são também as situações de impossibilidade da prestação (imputável ou não ao devedor) contempladas nos arts. 801.º, n.º 1,

e 795.º. Com efeito, como observam os AA., ainda se tratará normalmente aqui de uma hipótese mais grave (portanto, havendo

igualmente violação fundamental), na medida em que não está em causa já uma prestação que poderá não interessar ao credor, mas,

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

283

Os efeitos da resolução são regulados pelos arts. 81.º a 84.º da Convenção.

2.1. A noção de violação fundamental do contrato

No sistema de remédios consagrado pela Convenção de Viena de 1980, a resolução

pressupõe em princípio a existência de uma violação fundamental do contrato804.

A definição de violação fundamental do contrato (fundamental breach) consta do art.

25.º, que estabelece que uma violação do contrato cometida por uma das partes é

fundamental quando causa à outra parte um prejuízo tal que a prive substancialmente

daquilo que lhe era legítimo esperar do contrato, salvo se a parte faltosa não previu esse

resultado e se uma pessoa razoável, com idêntica qualificação e colocada na mesma

situação, não o tivesse igualmente previsto.

São, portanto, dois os pressupostos de uma violação fundamental.

O primeiro pressuposto é que a violação cause à outra parte um prejuízo que a prive

substancialmente daquilo que lhe era legítimo esperar do contrato. “Prejuízo” é aqui

entendido como desvantagem resultante do incumprimento à luz do interesse do credor805.

Assim, já se entendeu que não constitui uma violação fundamental a existência de

defeitos de conformidade numa pequena parte da mercadoria ou que não excluam uma

utilização alternativa sem fazer incorrer o comprador em despesas elevadas806. Em

contrapartida, não só o incumprimento da obrigação principal, mas também o

incumprimento de obrigações acessórias podem ser considerados uma violação

antes, uma prestação que, por definição, não poderá ter lugar. Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS,

Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 125 e nota 205. 804 Esta noção serve para traçar a fronteira entre formas de incumprimento menos graves, que não põem em causa a subsistência do

contrato, e situações mais graves, que permitem à parte lesada a rescisão do contrato. Isto pode ser visto como uma aproximação aos

sistemas do Common Law em que a faculdade de resolução é limitada aos casos em que há uma violação grave do contrato. Já segundo o

Direito português (art. 802.º, n.º 2, do Código Civil) e o italiano (art. 1455.º do CCit), só não há lugar à resolução se o incumprimento

parcial tiver escassa importância, atendendo ao interesse da outra parte. Nestes sistemas, a resolução é, por assim dizer, o modo de

reação “normal” em caso de incumprimento definitivo. O legislador internacional entendeu que a solução do Common Law representa

um melhor equilíbrio entre o interesse da parte faltosa em não sofrer as consequências da rescisão em caso de uma violação de gravidade

menor e o interesse da parte lesada em não se ver obrigada a aceitar uma prestação em que não tem (ou já não tem) interesse. Cfr. LUÍS

LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 278. 805 Cfr. BIANCA/BONELL/WILL , 1987, art. 25 an. 2.1.1; e SCHLECHTRIEM/SCHWENZER/SCHLECHTIEM, 2004, art. 25, n.º 9. 806 LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 278.

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fundamental se tiverem suficiente importância para a outra parte807. Por exemplo, depende

do conteúdo do contrato e das circunstâncias do caso se o desrespeito pelo vendedor de um

direito de exclusividade reconhecido ao comprador ou o incumprimento, pelo comprador,

da obrigação de revender as mercadorias em determinado país constitui uma violação

fundamental808.

O segundo pressuposto para que se possa considerar existir uma violação

fundamental do contrato é que a parte faltosa tenha previsto a produção de um prejuízo

substancial ou que ele fosse previsível por uma pessoa razoável, com idêntica qualificação

e colocada na mesma situação809. Incumbe à parte faltosa provar que o prejuízo substancial

causado à outra parte não foi previsto nem seria previsível. Assim, por exemplo, o

retardamento da entrega da mercadoria só constituirá uma violação fundamental se causar

um prejuízo substancial ao comprador e se o vendedor puder aperceber-se da sua

gravidade810.

As partes podem evitar as incertezas inerentes à noção de violação fundamental

mediante a indicação no contrato dos direitos ou obrigações que são considerados

fundamentais811.

3. O mecanismo Nachfrist na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de

Mercadorias

807 O relevante para determinar o carácter substancial do prejuízo não é tanto a natureza da obrigação incumprida (principal ou acessória)

mas as consequências deste incumprimento para o credor. Cfr. LIS PAULA SAN MIGUEL PRADERA, La Resóluciòn Extrajudicial:

Modelos de Derecho Comparado y Evolución del Derecho Espanõl, Madrid, 2003, inédito, p. 546. 808 LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 279. 809 Ao discutir a redação deste preceito não se chegou a acordo quanto ao momento no qual a parte incumpridora teria de prever um tal

resultado, pelo que este momento não consta da redação final do artigo. São dois os momentos temporais que poderiam ser tidos em

conta: o momento da conclusão do contrato e o momento em que tem lugar o incumprimento. Atendendo aos interesses de ambas as

partes e à distribuição dos riscos do incumprimento que se realiza no momento de celebrar o contrato, este deve ser o momento relevante

para determinar a previsibilidade do prejuízo (a favor da eleição deste momento, v. P. SCHLECHTRIEM, Uniform Sales Law, The United

Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods, Viena, 1986, p. 60; a favor de outro momento, HONNOLD,

Uniform Law for International Sales, Under the 1980 United Nations Convention, 3.ª ed., 1999, § 183). 810 No entanto, na hipótese de retardamento da entrega, resulta do art. 49.º, n.º 1, alínea b), que o comprador pode fixar um prazo

suplementar ao vendedor e resolver o contrato se a entrega não tiver lugar dentro deste prazo, sem ter de demonstrar que o retardamento

da prestação constitui uma violação fundamental. 811 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 279.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

285

A resolução do contrato, na Convenção de Viena, pressupõe a existência de uma

violação fundamental, nos termos que acabámos de analisar. A única exceção a esta regra

está prevista no art. 49.º, n.º 1, alínea b), e resulta da utilização de um importante

instrumento – apelidado como mecanismo “Nachfrist”, já que foi importado do Código

Civil alemão812 – previsto no art. 47.º, n.º 1, da Convenção, o qual se traduz na fixação ao

vendedor de um prazo suplementar, de duração razoável, para a execução das suas

obrigações.

Este mecanismo tem sido apontado como um importante instrumento para restringir

o exercício do direito à resolução do contrato, sendo mesmo uma peça central, quer da

Diretiva 1999/44/CE, quer do novo regime da compra e venda consagrado no Código Civil

alemão.

Na Convenção de Viena de 1980 o seu regime apresenta, porém, algumas

especificidades.

O art. 47.º, n.º 1, autoriza o comprador a “conceder ao vendedor um prazo

suplementar, de duração razoável, para a execução das suas obrigações” – o chamado

“Nachfrist”. Isto significa que em caso de inexecução pelo vendedor de qualquer uma das

suas obrigações, aqui se incluindo a obrigação de entregar bens conformes com o contrato,

o comprador está autorizado a fixar um prazo suplementar, de duração razoável, para que o

vendedor execute as suas obrigações, maxime para que o vendedor repare ou substitua os

bens não conformes com o contrato.

Nos termos do art. 49, n.º 1, alínea a), “[o] comprador pode declarar o contrato

resolvido: a) se a inexecução pelo vendedor de qualquer uma das obrigações que resultam

para ele do contrato ou da presente Convenção constituir uma violação fundamental do

contrato; ou b) em caso de falta de entrega, se o vendedor não entregar as mercadorias no

prazo suplementar concedido pelo comprador, de acordo com o parágrafo 1 do art. 47.º, ou

se declarar que não as entregará no prazo assim concedido.”.

Através de uma interpretação literal do art. 49.º, n.º 1, alíneas a) e b), podemos, pois,

concluir que o mecanismo “Nachfrist” só se aplica aos casos previstos na alínea b), ou seja,

aos casos em que o não cumprimento pelo vendedor da sua obrigação de entrega das

812 Embora, como veremos mais tarde, em termos não inteiramente coincidentes. Cfr. PETER HUBER, CISG – The Structure of Remedies,

cit., p. 2. Sobre a comparação entre este procedimento e o previsto no art. 808.º, n.º 1, do Código Civil, v. MARIA ÂNGELA BENTO

SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 128.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

mercadorias não constitua uma violação fundamental do contrato. Nestes casos, “se o

vendedor não entregar as mercadorias no prazo suplementar concedido pelo comprador,

[...] ou declarar que não as entregará no prazo assim concedido” o comprador poderá,

decorrido o referido prazo suplementar, declarar o contrato resolvido813.

Diversamente do que sucede nos casos em que não tenha havido entrega, nos casos

de falta de conformidade dos bens com o contrato, o comprador só poderá declarar a

resolução do contrato, quando a falta de conformidade constitua uma violação fundamental

do mesmo814. Já nos casos em que a falta de conformidade não possa ser considerada uma

violação fundamental do contrato, embora o art. 47.º, n.º 1, autorize o comprador a fixar

um prazo suplementar para o devedor cumprir, o simples decurso deste prazo sem que o

vendedor tenha executado a obrigação em falta não autoriza o comprador a resolver o

contrato.

A ratio da restrição da aplicação do mecanismo “Nachfrist” às situações em que

tenha havido falta de entrega prende-se com o argumento económico já referido: a remessa

dos bens não conformes ao contrato já teve custos, os quais representam muitas vezes uma

parte significativa do preço. Esta preocupação do legislador da Convenção com os custos

resultantes da remessa dos bens prende-se com o facto de a Convenção se aplicar a vendas

transnacionais e de o custo dos transportes, neste tipo de vendas, ser potencialmente mais

elevado. Não obstante, como observa Grundmann, esta preocupação, que esteve bem

presente na elaboração da Convenção, não se faz sentir hoje com a mesma intensidade815.

Atualmente, o custo de transporte das mercadorias é mais reduzido e não envolve os

mesmos riscos, pelo que talvez se pudesse limitar a exceção da Convenção aos casos em

que o custo do transporte é elevado e representa uma percentagem significativa do preço

das mercadorias. Desta forma, poder-se-ia admitir, pelo menos nos casos em que o

813 Ou exercer qualquer um dos outros remédios incluindo a pretensão de cumprimento. Cfr. LIS PAULA SAN MIGUEL PRADERA, La

Resóluciòn Extrajudicial: Modelos de Derecho Comparado y Evolución del Derecho Espanõl, cit., p. 548. Nos trabalhos preparatórios

da Convenção contempla-se a possibilidade de estender a aplicação do mecanismo Nachfrist também aos casos de entrega de

mercadorias não conformes, mas esta proposta acabou por ser abandonada perante o medo do abuso desta possibilidade por parte do

comprador. Cfr. HONNOLD, Uniform Law for International Sales. Under the 1980 United Nations Convention, cit., § 288. A ratio desta

restrição baseia-se na circunstância de que a entrega de um bem não conforme ao contrato já produziu custos de entrega que podem ser

consideráveis. Importa, no entanto, referir que atualmente, o transporte de mercadorias é menos dispendioso e arriscado. 814 Não sendo neste caso necessário para o efeito dar ao vendedor um prazo suplementar para cumprir (“Nachfrist”). 815 STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, in ERCL 2/2007,

pp. 121 a 149.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

287

transporte é pouco dispendioso, que o consumidor pudesse beneficiar do mecanismo

“Nachfrist”, ou seja, que pudesse fixar um prazo para o devedor cumprir, sob pena de, não

cumprindo, a violação passar a ser considerada fundamental, dando assim ao comprador a

possibilidade de resolver o contrato. Se assim não fosse, nos casos de meras não

conformidades do bem com o contrato, que não sejam consideradas violação fundamental

do contrato, os incentivos para o devedor cumprir seriam muito reduzidos. O devedor

nunca estaria sujeito à sanção mais grave, isto é, ao exercício do direito de resolução por

parte do comprador816.

A resolução após a concessão de um prazo de cumprimento ao vendedor apresenta

vantagens para ambas as partes. Para o comprador, porque lhe permite resolver o contrato

independentemente de o incumprimento ser ou não essencial (pode ser muito útil naqueles

casos em que o comprador dúvida se a falta de entrega das mercadorias tem ou não

carácter essencial). Para o devedor, porque a concessão do prazo adicional lhe dá a

segurança de poder contar com este prazo para cumprir e a garantia de que enquanto não

tiver decorrido este prazo, o comprador não poderá valer-se de nenhum outro remédio e

por isso não pode declarar a resolução (a não ser que durante a vigência do prazo receba

uma comunicação do vendedor declarando que não cumprirá a obrigação)817.

4. Redução do preço da compra

O art. 50.º da Convenção de Viena de 1980 faculta ao comprador, em caso de falta de

conformidade das mercadorias, a possibilidade de reduzir o preço (quer este já tenha ou

não sido pago) proporcionalmente à diferença entre o valor que as mercadorias entregues

816 Cfr. LIS PAULA SAN MIGUEL PRADERA, La Resóluciòn Extrajudicial: Modelos de Derecho Comparado y Evolución del Derecho

Espanõl, cit., p. 548. A resolução após a concessão de um prazo de cumprimento ao vendedor apresenta vantagens para ambas as partes.

Para o comprador porque lhe permite resolver o contrato independentemente de o incumprimento ser ou não essencial (pode ser muito

útil naqueles casos em que o comprador duvida se a falta de entrega das mercadorias tem ou não carácter essencial). Para o devedor

porque com a concessão do prazo adicional tem a vantagem de contar com este prazo para cumprir, sabe que enquanto não tiver

decorrido este prazo, o comprador não poderá valer-se de nenhum outro remédio e por isso não pode declarar a resolução (a não ser que

durante a vigência do prazo receba uma comunicação do vendedor declarando que não cumprirá a obrigação). 817 Cfr. LIS PAULA SAN MIGUEL PRADERA, La Resóluciòn Extrajudicial: Modelos de Derecho Comparado y Evolución del Derecho

Espanõl, cit., p. 548.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

tinham no momento da entrega e o valor que mercadorias conformes818 às referidas no

contrato teriam tido naquele momento819 (1.ª parte do artigo). No entanto, o comprador não

pode reduzir o preço se o vendedor reparar a falta de conformidade das mercadorias

(sanado assim o incumprimento das suas obrigações), nos termos dos arts. 37.º ou 48.º ou

se o comprador se recusar a aceitar o cumprimento nos termos destes preceitos (art. 50.º,

2.ª parte, in fine). O remédio da redução do preço tem as suas origens no Direito Romano e

é ainda muito conhecido nos países da Civil Law820.

5. Indemnização

Em cumulação com os meios anteriormente referidos, a Convenção de Viena de

1980 permite que o comprador peça uma indemnização pelo prejuízo sofrido com o

incumprimento [art. 45.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2]821. No sistema de remédios consagrado na

Convenção, a obrigação de indemnizar não tem como pressuposto a culpa. Trata-se, pois,

de uma responsabilidade objetiva, embora os arts. 79.º e 80.º consagrem certas causas de

exoneração da responsabilidade do vendedor (i. e., impedimentos que estão fora da esfera

de controlo do vendedor – art. 79.º; situações em que o não cumprimento se ficou a dever a

um ato do próprio comprador – art. 80.º).

A Convenção segue, assim, o exemplo inglês, que configura o contrato como uma

garantia do resultado prometido de tal modo que qualquer não cumprimento conduz, em

princípio, a uma obrigação de indemnizar822. Nos termos do art. 74.º da Convenção, e

como regra geral que deverá presidir ao cálculo da indemnização, determina-se que ela

deverá abranger quer os prejuízos causados à contraparte (dano emergente), quer os

818 Tal conformidade aprecia-se de acordo com os parâmetros fixados no art. 35.º. Não abrange, portanto, a existência de direitos ou

pretensões de terceiros sobre as mercadorias, nos termos dos arts. 41.º e segs. 819 Note-se que no Projeto o momento fixado para aferir a diferença de valor entre as mercadorias entregues e hipotéticas mercadorias

conformes ao contrato era o momento da conclusão do contrato e não o da entrega. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL

MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, cit., p. 130 e nota 218. Como referem os

AA., “ [a] alteração justificou-se fundamentalmente, porque, por um lado, era mais fácil conhecer o valor destas últimas no momento da

entrega do que aquele que elas teriam ao tempo da conclusão do contrato; e, por outro lado, assim se alinha num único momento o

exame das mercadorias entregues e não conformes ao contrato com a avaliação do preço daqueloutras que, se hipoteticamente entregues,

estariam conformes com ele”. 820 Cfr. PETER HUBER, CISG – The Structure of Remedies, cit., p. 3. 821 Esta indemnização por perdas e danos encontra-se regulada nos arts. 74.º a 77.º da Convenção de Viena. 822 PETER HUBER, CISG – The Structure of Remedies, cit., p. 3.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

289

benefícios que esta deixou de obter (lucro cessante), em virtude da violação do contrato

cometida por uma das partes823. Trata-se de uma indemnização dos danos positivos

(indemnização pelo interesse contratual positivo) que visa colocar o lesado na situação

patrimonial que teria se o contrato tivesse sido cumprido.

Isto pode incluir os chamados danos indiretos [consequential damages] – danos que

não são consequência direta do incumprimento, o que inclui não só os lucros cessantes,

mas também, por exemplo, a interrupção da produção, os custos envolvidos na remoção

dos produtos defeituosos e a responsabilidade incorrida pelo incumprimento de obrigações

contraídas com terceiros824. Todavia, a Convenção de Viena de 1980 não obsta a que as

partes estipulem uma limitação de responsabilidade, uma vez que o art. 74.º é supletivo825.

A 2.ª parte do n.º 2 do art. 74.º consagra, ainda, a regra da previsibilidade: os danos

não podem ser superiores àqueles (dano emergente e lucro cessante) que o lesante previu

ou deveria ter previsto no momento da conclusão do contrato, tendo em conta os factos que

ele conhecia ou deveria ter conhecido como sendo consequências possíveis da violação do

contrato. A Convenção de Viena de 1980 não obsta, porém, a que as partes estabeleçam

um regime diferente, por exemplo, estipulando uma cláusula penal ou uma “indemnização

punitiva” [punitive damages]826.

823 Deve entender-se que há uma violação do contrato, necessária para desencadear a aplicação do mecanismo convencional da

indemnização, sempre que tenha havido por parte de qualquer dos contraentes uma infração às respetivas obrigações, tal como nos

aparecem delineadas ao longo da Convenção. É evidente, uma vez que nos achamos no domínio da responsabilidade civil, que uma tal

infração só será tomada em conta para efeitos de indemnização se dela resulta um prejuízo para a parte que sofreu os efeitos da violação

contratual. Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas

Penais, Arbitragem, cit., p. 200. 824 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 297. 825 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 297. Como refere o A., a validade das cláusulas sobre a

responsabilidade depende do Direito estadual aplicável ao contrato. O Direito português, à semelhança das principais legislações

estrangeiras, admite a cláusula de limitação de responsabilidade que exclua a responsabilidade por danos deste tipo. Estas cláusulas são

usuais na venda de certo tipo de bens. Por exemplo, na venda de máquinas e instalações industriais é usual excluir-se a ressarcibilidade

de danos por perda de produção, lucros cessantes e danos similares. 826 Cfr. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional, cit., p. 298. Na lei portuguesa, o art. 563.º determina que a “obrigação de

indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, é tradicionalmente

entendido de acordo com a chamada teoria da causalidade adequada. Todavia, além desta teoria não ser pacífica na doutrina mais

recente, não é entendida no sentido de exigir a previsibilidade do dano pelo agente, mas antes no de excluir a relevância da causa que

não aumente o risco da verificação do dano, segundo as regras da experiência ou que só produziu o dano em virtude de circunstâncias

extraordinárias, fortuitas ou excepcionais, razão por que o dano, à luz das regras da experiência comum e das particularidades do caso,

não constitui o resultado normal do facto que o originou. Assim, embora estes critérios, na maioria dos casos, levem aos mesmos

resultados que a fórmula convencional, não são de excluir hipóteses em que um dano imprevisível para o agente seja indemnizável

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

CAPÍTULO II – Os direitos consagrados na Diretiva 1999/44/CE

1. Introdução

A Diretiva 1999/44/CE veio consagrar expressamente, como já tivemos oportunidade

de analisar, uma obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato, que

impende sobre o vendedor, e à qual corresponde, do lado ativo, o direito primário do

consumidor a que lhe sejam entregues bens conformes com o contrato827.

Esta obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato corresponde a

uma conceção unitária e objetiva de incumprimento, de acordo com a qual o

devedor/vendedor responde perante o credor/consumidor por qualquer desvio àquele que

era o programa negocial originário, independentemente de culpa da sua parte828.

Está aqui em causa uma objetivação do quadro geral do incumprimento: em caso de

falta de conformidade – entendida esta como qualquer desvio ao programa negocial que

afete o interesse do credor/consumidor – o consumidor pode exercer, independentemente

de culpa do vendedor829, os remédios previstos no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE.

Estes remédios visam tutelar o credor/consumidor, pelo que é a este que cabe

escolher o remédio mais adequado à satisfação do seu interesse. A Diretiva 1999/44/CE

perante a lei portuguesa mas não segundo o regime convencional. Sobre o critério da previsibilidade do dano ou prejuízo, v. NUNO

PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., pp. 660 segs. 827 Defendendo que, do ponto de vista dogmático, não é concebível uma “obrigação de conformidade dos bens com o contrato”,

enquanto obrigação distinta e diversa da obrigação de entrega, e precisamente como obrigação que tem por objeto a conformidade do

bem com o contrato, obrigação que seria inexatamente incumprida em caso de mera desconformidade do bem, v. ANGELO LUMINOSO,

“Il sistema dei rimedi: la riparazione e la sostituzione del bene difettoso e il diritto di regresso del venditore”, in L’Atuazione della

Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa (la tutela dell?acquirente di neni di consumo), Padova, Cedam, 2002, p. 54. O Autor entende

que sendo a obrigação, pela sua estrutura, um dever de conduta, não pode ter por objeto um modo de ser da coisa mas apenas uma

prestação do devedor destinada a proporcionar ao credor o resultado devido. Assim, o Autor entende que, mesmo perante a solução

unificadora que emerge do disposto no n.º 1 do art. 2.º e do n.º 1 do art. 3.º da Diretiva, continua a ser necessário distinguir entre vícios e

defeitos dos bens preexistentes à venda (ou melhor, ao momento da transferência da propriedade) e vícios e defeitos surgidos

posteriormente a este momento. Em relação aos primeiros o Autor entende que lhe parece difícil que qualquer coisa tenha mudado

relativamente ao fundamento da responsabilidade do vendedor. 828 Ao contrário da responsabilidade contratual consagrada no Código Civil português, que assenta na culpa presumida do devedor (art.

799.º, n.º 1), a responsabilidade contratual prevista na Diretiva 1999/44/CE e no diploma nacional de transposição é uma

responsabilidade objetiva: o vendedor é responsável, independentemente de culpa, por qualquer falta de conformidade que exista no

momento da entrega, podendo o consumidor exercer os direitos previstos no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003. A culpa, não constituindo

um pressuposto para o exercício destes direitos, poderá no entanto relevar ao nível da pretensão indemnizatória. 829 Essencial é que haja um ato ou omissão do vendedor, sendo imputados ao devedor os atos de auxiliares/terceiros. Ver art. 8:107

PECL; art. 79.º, n.º 2, da Convenção de Viena.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

291

não consagra, porém, um sistema de livre opção do consumidor, entre os vários remédios

que lhe assistem, mas estrutura os referidos remédios de acordo com uma hierarquia

através da qual se procura uma justa composição dos interesses em presença. Isto significa

que a escolha do consumidor entre os vários remédios não é livre mas terá de respeitar, por

um lado, a ordem hierárquica consagrada na Diretiva e, por outro, os pressupostos

objetivos de que depende o exercício de cada um dos direitos.

O n.º 1 do art. 3.º determina que “[o] vendedor responde perante o consumidor por

qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega do bem”, e o n.º 2 elenca

os quatro direitos que o consumidor pode exercer em caso de falta de conformidade dos

bens com o contrato: o direito à reparação da coisa, o direito à sua substituição, o direito à

redução do preço e o direito à rescisão do contrato830. O direito à reparação e o direito à

substituição da coisa constituem manifestações da ação de cumprimento; o direito à

redução do preço e o direito à rescisão do contrato são remédios sinalagmáticos.

Poderíamos ainda acrescentar a estes remédios a exceção de não cumprimento do

contrato, que permite ao consumidor suspender o próprio cumprimento, e a possibilidade

de exigir uma indemnização, que, embora não se encontre regulada na Diretiva, estando

por isso submetida às normas de direito interno, se afigura cumulável com qualquer um

dos remédios previstos no art. 3.º do diploma comunitário831.

830 São também estes os direitos que o Código Civil alemão confere ao comprador de coisas defeituosas. O § 437/1, prevê o direito a

repetir o cumprimento, noção que inclui substituição e reparação, enquanto o § 437/2, menciona os direitos à rescisão do contrato e à

redução do preço. Para além destes direitos, o comprador pode exigir uma indemnização, nos termos do § 437/3,. Pelo contrário, o

comprador não tem o direito de reparar ele próprio o defeito e, depois, procurar uma compensação pelas despesas em que incorreu.

Embora não seja imediatamente óbvio, o legislador alemão manteve a hierarquia dos direitos consagrada na Diretiva 1999/44/CE. O

sistema de remédios é agora o mesmo para os defeitos de direito (v. § 435 do BGB). Cfr. PETER ROTT, German Sales Law Two Years,

cit., p. 248. 831 Tal como a Diretiva 1999/44/CE e a Convenção de Viena de 1980, o DCFR parte também de um conceito unitário de incumprimento.

Nos termos do art. III.-I:102 (3), incumprimento (non-performance de uma obrigação é qualquer falha (failure) no cumprimento da

obrigação, seja ou não justificada (excused), e inclui o cumprimento tardio e qualquer outro cumprimento que não seja conforme com os

termos que regulam a obrigação. A questão consiste depois em saber qual ou quais remédios pode o credor exercer, sendo que se o

cumprimento for justificado (excused), então o credor poderá escolher qualquer remédio exceto exigir o cumprimento (specific

performance) ou uma indemnização. [art. III.-301:101 (2)]. O DCFR parte ainda do princípio de que os remédios não são incompatíveis

entre si, pelo que podem ser cumulados, sendo que o credor não vê precludido o seu direito a indemnização por recorrer a qualquer outro

remédio (art. III.-301:102). Os remédios que o comprador pode exercer são elencados nos artigos seguintes: cumprimento conforme pelo

devedor (aplicável apenas aos casos de cumprimento desconforme), exigência de cumprimento (right to enforce performance ou specific

performance), exceção de não cumprimento, resolução da relação contratual, redução do preço e indemnização. Os remédios são, no

fundo, as consequências do não cumprimento, são meios gerais de reação ao não cumprimento. Procuram-se as diferentes formas de

remediar um problema, atendendo às diferentes soluções possíveis. A possibilidade tem a ver com a própria possibilidade material da

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

Particularmente inovadora afigurou-se a consagração expressa do direito à reparação

e do direito à substituição da coisa, nos ordenamentos jurídicos que apenas conheciam os

direitos à redução do preço e à resolução do contrato, correspondentes à garantia edílica

que no Direito Romano protegia o comprador contra os vícios redibitórios832.

Não é certamente este o caso do ordenamento jurídico português. Na verdade, antes

da entrada em vigor do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, estes direitos já se encontravam

consagrados entre nós, quer no art. 12.º, n.º 1, da LDC, que determina que “[o] consumidor

a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente

informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente

de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do

preço ou a resolução do contrato”, quer no Código Civil, que no art. 914.º consagra

expressamente o direito do comprador à reparação ou substituição da coisa defeituosa,

muito embora este direito possa ser afastado, nos termos da segunda parte da norma, “se o

vendedor [provar que] desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa

padece”833.

O art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, transpondo a Diretiva 1999/44/CE para o direito

português, estabelece que o consumidor tem direito a que a coisa, desconforme ao

contrato, seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução

adequada do preço, ou à resolução do contrato. Para além destes direitos, que o próprio

diploma comunitário minuciosamente regula, o consumidor tem ainda o direito a exigir

uma indemnização, de acordo com as regras consagradas no nosso Código Civil834.

solução (v. g., prestação em causa), mas também com a possibilidade de essa solução satisfazer cabalmente o interesse (objetivo) do

credor. 832 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 104 e 105. 833 Propondo a revogação da segunda parte da norma v. CALVÃO DA SILVA , Responsabilidade Civil do Produtor, cit., n.º 43. 834 A Diretiva não regula o direito a indemnização porque para os consumidores este direito tem pouca importância quando comparado

com os outros quatro direitos. A indemnização só parece ser importante nos casos em que há uma ofensa à integridade física do

consumidor, mas esses casos são regulados por outra Diretiva de responsabilidade por produtos defeituosos; para todos os outros

interesses do consumidor os outros quatro remédios serão tipicamente suficientes. Cfr. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of

Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., pp. 121 a 149, p. 128.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

293

2. A ordem hierárquica consagrada no art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE

O ponto de partida da ordem hierárquica consagrada no art. 3.º da Diretiva

1999/44/CE é a faculdade de escolha do consumidor835. Os remédios consagrados no art.

3.º, n.º 1, da Diretiva destinam-se a tutelar o credor/consumidor perante o incumprimento

do devedor/vendedor. Assim, é ao credor/consumidor que cabe escolher o remédio que

melhor se adequa à satisfação do seu interesse836. No entanto, esta faculdade de escolha

não é livre já que os vários remédios estão estruturados de acordo com uma ordem

hierárquica. No art. 3.º podemos distinguir dois níveis de reação do consumidor, com dois

direitos cada. No primeiro nível são colocados os direitos orientados para o cumprimento:

o direito à reparação e o direito à substituição da coisa; e, no segundo nível, o direito à

redução do preço e o direito à rescisão do contrato837.

Isto significa que a reparação e a substituição surgem como direitos primários, que o

consumidor pode e deve exercer preferencialmente, enquanto a redução do preço e a

rescisão do contrato se configuram como direitos secundários ou subsidiários, dos quais o

consumidor só poderá lançar mão no caso de os direitos primários não poderem ser

exercidos ou de terem sido exercidos sem sucesso. O carácter secundário ou subsidiário

dos direitos situados no segundo nível da hierarquia – direitos orientados para uma

835 Também no Direito alemão a faculdade de escolher entre a reparação da coisa viciada e a sua substituição por uma coisa nova é

atribuída ao comprador (§ 439, par. 1.º, do BGB-E) esta disposição corresponde ao art. 3.º, § 3.º, da Diretiva, mas é particularmente

digna de nota visto que, encontrando-se entre as disposições gerais da disciplina da compra e venda, aplica-se a todos os contratos de

venda: isto significa que para o “Projeto, não apenas nas vendas de bens de consumo, mas também nos contratos de compra e venda

concluídos entre profissionais, a faculdade de escolha deve assistir não ao vendedor – como normalmente acontecia na praxe económica

– mas sim ao comprador. Esta solução parece estranha sobretudo se confrontada com a solução oposta adotada em sede de

regulamentação do contrato de empreitada, onde, na falta de uma indicação vinculante da Diretiva, a faculdade de escolha é concedida

ao empreiteiro (§ 635, par. 1.º, do BGB-E). Isto demonstra, todavia, com grande clareza como o Projeto visou conformar o mais possível

ao modelo da Diretiva comunitária a disciplina geral da compra e venda, mesmo fora do setor da venda de bens de consumo. CLAUS-

WILHELM CANARIS, “L’Attuazione in Germania Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução de Giovanni

Cristofaro”, cit., p. 242. 836 Para um estudo dos sistemas de remédios de que dispõe o comprador em caso de falta de conformidade em Direito europeu e

internacional dos contratos, abordando precisamente a questão de saber se a escolha deve ser livre ou restringida, v. HANNA SIVESAND,

“The buyer’s remedies for non-conforming goods. Should there free choice or are restrictions necessary?”, Sellier European Law

Publishers, 2005. 837 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 874. O Autor defende que entre os quatro direitos que o art.

3.º da Diretiva 1999/44/CE confere ao consumidor há uma relação de subsidiariedade, tendo os direitos orientados para o cumprimento –

direito à reparação e direito à substituição da coisa – prioridade sobre o direito à redução da contraprestação e sobre o direito de

resolução. V. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 9.ª ed., p. 143.

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“liquidação” total ou parcial do contrato – resulta explicitamente do art. 3.º, n.º 5, do

diploma comunitário, que estabelece que “[o] consumidor [só] pode exigir uma redução

adequada do preço, ou a rescisão do contrato: – se o consumidor não tiver direito a

reparação nem a substituição, ou – se o vendedor não tiver encontrado uma solução num

prazo razoável, ou – se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave

inconveniente para o consumidor”. No mesmo sentido, o Considerando 10 da Diretiva

sublinha que “em caso de não conformidade dos bens com o contrato, os consumidores

devem ter o direito de obter que os bens sejam tornados conformes com ele sem encargos,

podendo escolher entre a reparação ou a substituição, ou, se isso não for possível, a

redução do preço ou a rescisão do contrato” 838.

A escolha do consumidor, dentro de cada um dos níveis, também não é inteiramente

livre. No primeiro nível da hierarquia, os direitos à reparação e à substituição só podem ser

exercidos se forem “possíveis” e “proporcionados”, o que significa que o vendedor terá a

última palavra podendo opor-se ao remédio escolhido pelo consumidor e impor-lhe o

remédio alternativo. No segundo nível da hierarquia existe apenas um limite à liberdade de

escolha: o direito à rescisão do contrato só poderá ser exercido nos casos em que a falta de

conformidade não seja “insignificante”.

3. Fundamento da ordem hieráquica consagrada no art. 3.º, n.º 1, da Diretiva

1999/44/CE

Subjacente ao n.º 1 do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE está uma opção de política

legislativa: consagrar uma ordem hierárquica entre os vários remédios839, e não um sistema

838 O n.º 4 do art. 26.º da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre direitos dos consumidores de 2008 estabelece

claramente que o consumidor continua a ter a possibilidade de exigir o cumprimento, ainda que já o tenha exigido antes e não tenha tido

êxito. Há uma exceção lógica indicada no n.º 3 do art. 26.º que é a de o cumprimento não poder ter lugar por ser ilegal ou impossível, ou

imponha ao vendedor um esforço desproporcionado. Nestes casos o consumidor pode optar entre a redução do preço ou a resolução do

contrato. 839 A nível de Direito Europeu, podemos também encontrar uma ordem hierárquica entre os remédios do comprador nos PESL

(Principles of European Sales Law) Study Group on a European Civil Code, Sales (PELS), prepared by Hondus, Ewoud, Heutger, Viola,

Jeloscheck, Christoph, Sivesand, Hanna, Wiewiorowska, Aneta, Principles of European Law on Sales, Munich, European Law

Publishers, 2008. Não é possível examinar os PESL sem uma referencia aos PECL; estes constituem a parte geral dos primeiros (arts.

1:201 e 4:101 dos PELS), não obstante estes modificarem expressamente algumas regras daqueles. Assim, em matéria de remédios por

incumprimento, os arts. 4:201 (Overview of remedies) e 4:205 dos PELS (Resort to other remedies) preveem os remédios que o

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

295

de livre escolha por parte do consumidor. Esta opção de política legislativa assenta numa

ponderação dos interesses de ambas as partes: consumidor e vendedor. Aquilo que o

legislador comunitário procurou foi encontrar um justo equilíbrio entre os interesses do

consumidor – ao qual é dada a faculdade de escolha – e os interesses do vendedor840.

O estabelecimento de uma ordem hierárquica na qual se concede primazia aos

direitos orientados para o cumprimento – reparação e substituição – encontra o seu

fundamento no velho princípio pacta sunt servanda, princípio-chave do direito

contratual841.

Na força obrigatória do contrato e no respeito pela palavra dada assentam as

necessidades do tráfico jurídico de promover e garantir em segurança a circulação de bens

e serviços, bem como a utilidade económico-social que as convenções em geral

desempenham842.

Por outro lado, a primazia da ação de cumprimento – reparação e substituição –

relativamente aos restantes remédios protege o interesse primário do credor (o seu direito

ao “exato” cumprimento da prestação) e a precisa necessidade que originou a relação

obrigacional e o programa prestacional que nela vai contido. É este interesse e não outro, é

esta necessidade e não outra, que o credor deseja satisfazer especificamente843.

O vendedor, por sua vez, também poderá ter interesse em satisfazer o interesse

primário do credor reparando ou substituindo o bem entregue e evitando assim remédios

mais drásticos e que naturalmente implicam maiores custos, como é o caso da redução do

preço e da resolução do contrato844. Pelo contrário, dos remédios integrados na ação de

comprador pode exercer em caso de entrega não conforme ao contrato, estabelecendo uma ordem hierárquica que privilegia a ação de

cumprimento em relação aos restantes remédios: resolução do contrato e redução do preço. 840 Como refere Assunção Cristas, não se atende à ótica do credor mas à melhor forma de composição dos diferentes interesses em

presença atendendo a que o contrato deve ser visto como um instrumento de cooperação e não propriamente como um confronto de

adversários em que cada um procura retirar vantagens à custa do outro – v. “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o

DCFR – Notas Comparadas”, cit., p. 250. 841 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, cit., p. 160. 842 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, cit., p. 160. 843 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, cit., p. 164. 844 Cfr. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., 127. O

Autor analisa estes direitos na perspetiva dos custos que os mesmos acarretam para o vendedor e aponta dois fatores-custo. O primeiro

prende-se com a perda do lucro do negócio (que, segundo o Autor, corresponde a cerca de um terço do preço); o segundo prende-se com

o facto de o bem, uma vez usado pelo consumidor, perder substancialmente o seu valor. Na perspetiva do consumidor, o exercício do

direito à reparação ou do direito à substituição permite-lhe a satisfação do seu interesse primário sem qualquer custo, desde que a

reparação ou substituição sejam efetuadas dentro de um prazo razoável. Já na perspetiva do vendedor o exercício destes direitos implica

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cumprimento, a reparação será em regra aquele que, satisfazendo o interesse primário do

credor, implica para o vendedor um menor custo, visto que, mesmo não sendo este o

produtor, disporá em regra do know-how e poderá de forma rápida e económica e com o

melhor resultado proceder à reposição da conformidade845. Refira-se, a este propósito, que,

na perspetiva de Grundmann, a razão que parece justificar a ordem entre os vários direitos

cuidadosamente estabelecida pelo art. 3.º da Diretiva é de índole essencialmente

pragmática e prende-se com os custos que o exercício de cada um dos direitos implica para

o vendedor: “different remedies do not cause de same costs for the debtor” 846. Os

interesses económicos do vendedor desempenham, segundo o Autor, um papel

preponderante na composição da ordem hierárquica consagrada no art. 3.º da Diretiva

1999/44/CE.

O princípio do favor contractus e a superioridade natural do cumprimento sobre os

direitos que visam destruir a relação contratual e repor o seu equilíbrio justificam a ordem

de precedência entre os dois grupos de direitos847. Isto explica que, nos termos do n.º 5 do

art. 3.º da Diretiva, os direitos situados no segundo nível da hierarquia só sejam

reconhecidos ao consumidor subsidiariamente se: o consumidor não tiver direito a

reparação nem a substituição; ou o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo

a perda do lucro do negócio e apenas no caso do direito à substituição também o segundo fator-custo: o vendedor ao substituir o bem não

conforme ao contrato acaba por ficar com um bem já usado pelo consumidor. O bem uma vez usado pelo consumidor perde

substancialmente o seu valor. Mesmo nos setores em que exista um mercado de bens usados desenvolvido (como é o caso do setor

automóvel), um simples registo pode reduzir o valor de mercado do bem em aproximadamente 8-10%. O custo de depreciação será

muito mais alto no caso de bens que não tenham um mercado de bens usados tão desenvolvido e a depreciação pode atingir 100% no

caso de serviços. Este tipo de depreciação pode ser evitada no caso de reparação, mas já não no caso de substituição. Assim, na dupla

reparação/substituição, a reparação seria, em princípio, preferível na perspetiva do vendedor. Quanto à dupla redução do preço/resolução

do contrato, a primeira seria preferível já que implicaria apenas o primeiro fator-custo (i. e., a perda de lucro) e, mesmo assim, só em

parte, enquanto a segunda, implicaria os dois fatores-custo, sendo, portanto, um remédio mais grave na perspetiva do vendedor. 845 Cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 338 e 339. 846 Cfr. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 129.

Do justo equilíbrio que a Diretiva procurou alcançar através do estabelecimento de uma ordem hierárquica, na qual os custos que cada

um dos direitos implica para o vendedor desempenha um importante papel, resulta uma importante consequência: a leis nacionais não

podem subverter esta ordem hierárquica. Referindo-se à lei alemã, que adotou esta hierarquia não apenas para os contratos de compra e

venda, mas para os contratos em geral (§ 437/1 e 2 em conjugação com os §§ 439 e 323 do BGB), Grundmann defende que a

interpretação que o ECJ faz da Diretiva deve prevalecer. Os termos utilizados pela lei alemã são suficientemente latos para permitir em

todos os casos uma interpretação em conformidade com a Diretiva (“efeito indireto”), independentemente deste instrumento poder ser

definido em termos mais estritos ou em termos mais latos. Isto vale para as vendas celebradas com consumidores, mas também em geral

– cfr. “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 129. 847 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., pp. 254 e 255.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

297

razoável; ou o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o

consumidor.

Aliás, segundo a Diretiva, o vendedor poderá sempre evitar a redução do preço ou a

resolução do contrato bastando para tal que se ofereça para reparar ou substituir o bem e

que efetivamente o faça dentro de um prazo razoável e sem grave inconveniente para o

consumidor848. A concessão de um prazo adicional e razoável para cumprir proporciona ao

devedor certeza e segurança: o devedor sabe que se não cumprir à primeira poderá, ainda,

cumprir à segunda e tem a garantia de que enquanto aquele prazo adicional não terminar o

credor não poderá exercer os direitos situados no segundo nível da hierarquia (a não ser

que no decurso desse prazo o devedor declare, de forma definitiva e categórica, que não

cumprirá). Na perspetiva do credor a certeza também está garantida: o credor sabe que

qualquer que seja a falta de conformidade poderá sempre exigir a redução do preço ou

resolver o contrato849, se, uma vez expirado aquele prazo razoável, o vendedor não tiver

reparado ou substituído o bem.

Os Autores que criticam o sistema de ordem hierárquica adotado pela Diretiva850

observam que esta é demasiado protetora para o vendedor e que se justificaria dar ao

consumidor um direito imediato de resolução, pelo menos nos casos em a gravidade da

falta de conformidade o tenha feito perder a confiança num cumprimento sucessivo por

parte do vendedor851.

848 PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 255. 849 No caso do direito à rescisão do contrato, este só não será possível quando a falta de conformidade seja insignificante. 850 Criticando a ordem hierárquica consagrada no art. 3.º, v. CHIARA ABATANGELO, “Sostituzione di bene viziato e contrattazione di cosa

specifica: i termini dela questione nel diritto tedesco e nel pensiero giuridico italiano”, cit., pp. 638 a 666, p. 649. Refere a Autora que,

tendo em conta o disposto no art. 8.º da Diretiva 1999/44/CE, que permite aos Estados-Membros adotar ou manter em vigor disposições

mais rigorosas destinadas a garantir um nível mais elevado de tutela do consumidor, o legislador nacional poderia não ter adotado

qualquer hierarquia. No sentido de que a hierarquia consagrada na Diretiva 1999/44/CE coloca o consumidor numa situação objetiva de

desvantagem, não lhe permitindo optar livremente pela resolução do contrato, mesmo nos casos em que a gravidade do defeito o tenha

feito perder definitivamente a confiança num cumprimento sucessivo por parte do vendedor, v. HAZAN , “Attuata la diretiva 99/44/CE: si

rafforza la tutela del consumatore”, in I contratti, n. 4, 2002, p. 403. BONFANTE-CAGNASSO, “Risoluzione del contrato ed “azione di

adempimento” quali strumenti di tutela del consumatore o dell’impresa?”, in Contr. e impr. Europa, 2001, p. 29, que consideravam que

o legislador italiano não deveria acolher de maneira acrítica a norma comunitária uma vez que esta prevê que os remédios da redução do

preço e da resolução do contrato só podem ser exercidos pelo consumidor quando não seja possível a reparação da conformidade por

meio de reparação ou de substituição. 851 Defendendo que, nestes casos, o credor poderá resolver imediatamente o contrato com fundamento em que os direitos integrados na

ação de cumprimento lhe causam grave inconveniente, V. HANNA SIVESAND, “The buyer’s remedies for non-conforming goods...”, cit.,

p.

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Esta possibilidade retiraria, em parte, a certeza e a segurança que o princípio das

duas oportunidades dá ao vendedor, mas poderia, por outro lado, ter um efeito

disciplinador útil e desejável852 – o vendedor que não cumpriu à primeira poderia não ter a

oportunidade de cumprir à segunda –, funcionando, deste modo, como um incentivo ao

cumprimento.

4. O sistema adotado pelo legislador português no art. 4.º do DL n.º 67/2003:

hierarquia ou alternatividade?

O art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003 consagra os direitos que o consumidor pode

exercer em caso de falta de conformidade dos bens com o contrato, determinando que

“[e]m caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a

que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução

adequada do preço ou à resolução do contrato”. No entanto, pelo menos aparentemente, a

norma não estabelece a ordem hierárquica consagrada no art. 3.º do diploma comunitário,

limitando-se a estabelecer, no n.º 5 do art. 4.º, que “[o] consumidor pode exercer qualquer

dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou

constituir abuso de direito, nos termos gerais”853.

Mesmo antes da transposição da Diretiva 1999/44/CE estes direitos já eram

reconhecidos ao consumidor pelo art. 12.º da LDC, que prevê, como já se referiu, os

direitos do comprador/consumidor a exigir “a reparação da coisa, a sua substituição, a

redução do preço ou a resolução do contrato”. No entanto, pelo menos formalmente, esta

norma colocava os referidos direitos em perfeita alternatividade, permitindo ao consumidor

a livre escolha entre qualquer deles854.

852 Cfr. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 136. 853 Defendendo que o n.º 1 do art. 4.º do DL n.º 67/2003 não estabelece uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao

consumidor, v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de março de 2012 (Tomé Ramião), disponível em www.dgsi.pt: “O n.º

1 do art. 4.º do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, não estabelece uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor, cujo

exercício fica apenas limitado à sua impossibilidade ou que traduza abuso de direito, nos termos gerais – n.º 5”. 854 Neste sentido, MENEZES LEITÃO, “Caveat venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a venda de

bens de consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda”, cit., p. 288. PAULO MOTA PINTO,

“Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 256 (muito embora o Autor manifeste dúvidas quanto ao “sentido

desta norma relativamente aos requisitos gerais destes direitos, quando não se encontrem expressamente regulados – como serão os

casos da falta do esclarecimento ou da informação devidos e da desnecessidade de culpa do “fornecedor do bem”).

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

299

A questão que se coloca consiste, pois, em saber se o art. 4.º do DL n.º 67/2003

consagra, ainda que implicitamente, a ordem hierárquica consagrada no art. 3.º da Diretiva

ou se, ao invés, deve ser interpretado no sentido de conceder ao consumidor um direito de

livre opção, ainda que dentro dos limites impostos pela “boa-fé” e pelo “abuso do direito”.

Esta última interpretação poderia encontrar o seu fundamento no n.º 2 do art. 8.º da

Diretiva que permite que os Estados-Membros possam “adoptar ou manter, no domínio

regido pela presente Directiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com

o objectivo de garantir um nível mais elevado de protecção do consumidor”855.

A estrutura hierarquizada dos direitos consagrada na Diretiva traduz uma solução de

bom senso, de senso comum, que, aliás, corresponde àquela que se encontra consagrada no

nosso Código Civil em sede de empreitada856. Por outro lado, a superioridade natural do

cumprimento, relativamente aos direitos orientados para a destruição da vinculação

contratual e reposição do equilíbrio sinalagmático, pode bem resultar, na ausência de uma

ordem de precedência expressa, dos princípios da boa-fé e do abuso de direito.

Note-se, ainda, que precedência do cumprimento relativamente aos direitos

orientados para a destruição da vinculação contratual e reposição do equilíbrio

sinalagmático pode resultar, na ausência de uma hierarquia explícita, da atribuição ao

devedor de um direito ao cumprimento conforme. Assim, nos casos em que houve

cumprimento, mas o cumprimento não é totalmente conforme com a obrigação em causa, o

DCFR prevê o direito ao cumprimento conforme pelo devedor (cure by the debtor),

previsto no art. III.-3:202857. Nos termos deste preceito, o devedor pode cumprir se o fizer

855 No ordenamento jurídico espanhol, na Proposta de Modernização do Direito das Obrigações, os remédios que o comprador pode

exercer em caso de falta de conformidade dos bens com o contrato são os remédios próprios do incumprimento, nas obrigações

sinalagmáticas: 1. Exigir do vendedor o cumprimento do contrato; 2. Resolver o contrato ou reduzir o preço mediante declaração

dirigida ao vendedor; 3. Exigir a indemnização pelos danos sofridos. Quanto à questão de saber se relativamente a estes remédios vigora

um sistema de livre escolha por parte do comprador ou se, ao invés, existe uma hierarquia, considera Morales Moreno que se se

pretender generalizar o critério da Diretiva, como fez o legislador alemão, é necessário estabelecer uma hierarquia entre os remédios

enumerados. “O direito de exigir o cumprimento, deve ter prevalência, normalmente, sobre o direito de pedir a resolução do contrato ou

a redução do preço.” A ratio desta prevalência, segundo o Autor, reside na necessidade de conservar o contrato e de dar ao vendedor a

oportunidade para corrigir o incumprimento inicial. V. MORALES MORENO, “Adaptación del Código civil al Derecho Europeo: La

compraventa”, cit., p. 1638. 856 CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 110. 857 O art. 7.1.4 dos Princípios UNIDROIT determina que a parte incumpridora pode corrigir a seu cargo qualquer incumprimento,

sempre que se verifiquem as condições que o preceito fixa, entre as quais se conta que o credor careça de interesse legítimo em recusar a

oferta de correção da prestação inicial. O efeito da correção da prestação é o de suspender o exercício de qualquer direito do credor que

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dentro do prazo para o cumprimento; se não o conseguir fazer, então o credor só está

obrigado a esperar pelo novo cumprimento se imediatamente após o devedor notificar o

credor da falta de conformidade este se oferecer para efetuar de novo a prestação devida a

expensas suas. Nesse caso, o credor apenas poderá reter a sua contraprestação e tem de

conferir um prazo razoável para o cumprimento, a menos que ocorra alguma das

circunstâncias previstas no art. III.- 203: a falta de cumprimento da obrigação contratual

correspondente a um incumprimento fundamental (fundamental non-performance); o

credor tem razão para acreditar que o cumprimento do devedor foi feito com conhecimento

da desconformidade e não observou as regras da boa-fé e da negociação justa (fair

dealing); o credor tem razão para acreditar que o devedor não será capaz de efetuar de

novo a prestação em tempo razoável sem inconveniente significativo para o credor ou

outro prejuízo dos interesses legítimos do credor; uma nova prestação seria inapropriada

naquelas circunstâncias.

Também a Convenção de Viena prevê que o comprador tem o direito de eliminar à

sua custa os defeitos da prestação, tanto no caso de ter cumprido antecipadamente e

pretender proceder à reparação antes da data estabelecida para a entrega (art. 37.º), como

nos casos em que cumpriu no prazo acordado e se propõe eliminar os defeitos em

momento posterior (art. 48.º), só que, neste caso, de forma mais restrita, ou seja, desde que

isso não implique um atraso irrazoável e não cause ao comprador nem inconvenientes

irrazoáveis nem incertezas quanto ao reembolso pelo vendedor das despesas feitas pelo

comprador.

A possibilidade dada ao vendedor de se oferecer para eliminar os defeitos é, pois,

uma forma lícita de obstar ao exercício de outros meios jurídicos entre os quais a resolução

do contrato858.

seja incompatível com ela, sem o privar, em todo o caso, da indemnização pelos danos sofridos com o incumprimento. Neste sentido,

este direito favorece a conservação do contrato e é uma manifestação do princípio da minimização do dano e da boa-fé negocial. 858 Há, no fundo, duas formas de dar ao vendedor uma segunda oportunidade para cumprir. Uma delas consiste na concessão de um

prazo adicional para o devedor cumprir, prazo este que na Diretiva começa a correr automaticamente e que na lei alemã tem de ser

fixado pelo credor; a outra consiste em dar ao devedor o direito ao cumprimento conforme (é o que faz quer a Convenção de Viena, quer

o DCFR). Por qualquer uma das formas concede-se ao devedor uma segunda oportunidade para realizar uma prestação conforme ao

contrato e evitar assim remédios mais drásticos, como é o caso da resolução do contrato. Sobre o ponto, v. ÁLVARO VIDAL OLIVARES,

“El incumprimento y los remédios del acreedor en la propuesta de modernización del derecho de las obligaziones y contratos Espanõl”,

in Rivista Chilena de Derecho Privado, n.º 16, pp. 243-302 [julho 2011].

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

301

Entre nós, a hierarquia consagrada na Diretiva 1999/44/CE encontra paralelismo no

regime geral da mora e no facto de o direito de resolução ser sempre uma medida de ultima

ratio, que pressupõe a existência de um inadimplemento com certa gravidade.

Para além de o princípio das duas oportunidades se encontrar expressamente

consagrado no art. 808.º do Código Civil português, defende ainda Romano Martinez que a

eliminação dos defeitos e a substituição da prestação podem ser oferecidas pelo vendedor

já que este teria, dentro de certos limites, o direito a cumprir a prestação, podendo, nesta

medida, impor estas soluções, sob pena de se extinguir a sua responsabilidade em caso de

recusa injustificada859. Sendo a eliminação dos defeitos ou a substituição possíveis,

adequadas à satisfação do interesse do credor, não lhe acarretando prejuízos desmesurados,

e mantendo este interesse (objetivo) na prestação, a recusa da oferta do vendedor

consubstancia uma violação do princípio da boa-fé860.

A nossa jurisprudência tem admitido a existência de uma hierarquia mesmo na

ausência de transposição dos conceitos indeterminados da Diretiva 1999/44/CE861. Assim,

por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de janeiro de 2011 o

Tribunal decidiu que “[a] resolução do contrato de venda para consumo está dependente

apenas da desconformidade da coisa e da limitação decorrente do abuso do direito, não de

qualquer sequência lógica ou de hierarquização dos direitos (de reparação, substituição,

redução do preço ou resolução do contrato, por esta ordem), mas uma das razões para

afastar a possibilidade de escolha por abuso do direito pode ser o facto de se pedir a

859 Como explica o Autor, a extinção não será, contudo, automática; primeiramente o credor entra em mora (arts. 813.º e segs.) e depois

de decorrido o prazo estabelecido para aceitar a eliminação dos defeitos, as obrigações do devedor extinguem-se, por aplicação

analógica do disposto no art. 808.º do Código Civil. V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e

Venda e na Empreitada, cit., p. 341. 860 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 341 e 351. O Autor

esclarece, porém, que sendo ineficaz a primeira eliminação do defeito, ou se a prestação substitutiva for ela própria defeituosa, com

defeitos idênticos ou diversos dos da inicial, ao credor são conferidos os meios jurídicos próprios do cumprimento imperfeito,

admitindo-se que este não esteja disposto a aceitar outra tentativa, não obstante manter interesse na prestação. No sentido de que “[s]e o

comprador optar pela reparação da coisa, essa opção só o vincula até à primeira tentativa de reparação, não sendo obrigado a aceitar

outra tentativa, pelo que volta a poder optar pelo direito à resolução, sem necessidade de transformar a mora em incumprimento

definitivo da reparação”, v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de janeiro de 2011 (Pedro Martins), in www.dgsi.pt. 861 Também Calvão da Silva considera que a não transposição destes critérios não viola o princípio da transposição conforme, “[n]ão só

pela elasticidade desses critérios, como sobretudo porque o aparente afastamento desses padrões, a traduzir-se em resultado diferente, sê-

lo-á em benefício do consumidor: a “hierarquização” a dar lugar a mais liberdade de escolha do consumidor no exercício dos seus

direitos” – cfr. Venda de Bens de Consumo, cit., p. 112.

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resolução por um defeito cuja reparação fosse razoável exigir ou por um defeito sem

qualquer gravidade”862.

Os princípios da boa-fé e do abuso do direito parecem-nos suficientemente amplos

para proporcionar uma interpretação do art. 4.º do DL n.º 67/2003 em conformidade com a

Diretiva 1999/44/CE863. A escolha do consumidor, entre os vários direitos que a lei lhe

concede, não deve ser arbitrária mas deve respeitar o princípio da boa-fé864.

5. Os direitos orientados para o cumprimento: o direito à reparação e o direito à

substituição

No primeiro nível da hierarquia estão os direitos orientados para o cumprimento865.

Quando o vendedor não cumpre a sua obrigação de entregar ao consumidor um bem

conforme com contrato (com as qualidades que deve ter para se considerar conforme com

o contrato), o consumidor pode exigir do devedor o cumprimento conforme, mediante a

862 V. o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de janeiro de 2011 (Pedro Martins). 863 Em face do regime da venda de coisas defeituosas consagrado nos arts. 913.º a 922.º do Código Civil poderia suscitar-se a questão de

saber, nos casos em que se verifique um erro do comprador e os respetivos pressupostos de relevância (isto é, designadamente, além da

essencialidade do erro, que o vendedor conheça ou não deva ignorar a essencialidade para o comprador, do ónus ou defeito sobre que

recaiu o erro, nos termos dos arts. 905.º e 911.º, aplicáveis por remissão dos arts. 913.º e 905.º), se o comprador é sempre titular dos

direitos de anulação do contrato e de redução do preço mesmo que o comprador se prontifique para a reparação ou substituição. Se se

entender que este direito de anulação do contrato não é um verdadeiro “direito de arrependimento”, ou seja, não tem a natureza de uma

exceptio, talvez se pudesse considerar sanada a anulabilidade se o vendedor, antes de invocado o erro em juízo, proceder efetivamente à

reparação ou substituição da coisa. Com efeito, o direito à reparação ou substituição da coisa, previsto no art. 914.º do Código Civil,

parece encontrar um paralelismo com a obrigação de fazer convelescer o contrato, prevista para a venda de bens onerados, no art. 906.º

do Código Civil. De qualquer modo, mesmo no caso de se considerar sanada a anulabilidade, por o vendedor proceder efetivamente à

reparação ou substituição do bem antes de invocado em juízo o erro, parece-nos que o facto de o comprador dispor logo num primeiro

momento também dos direitos de anulação e de redução do preço corresponde, em comparação com a Diretiva 1999/44/CE, a um nível

mais elevado de proteção do comprador. Neste sentido, v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de

consumo”, cit., pp. 257 e 258. 864 Como observa Calvão da Silva, “[s]e a escolha entre as pretensões cabe ao comprador, essa deve obedecer ao princípio da boa fé e

não cair no puro arbítrio. Pelo que, se num caso concreto a opção exercida exceder indubitavelmente os limites impostos pela boa fé (...),

poderão intervir as regras do abuso do direito (art. 334.º)” – cfr. Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 230, nota 2. 865 Os direitos à reparação e à substituição encontram-se, também, previstos na Convenção de Viena (art. 46.º) e nos Princípios de

UNIDROIT (art. 7.2.3). Os PECL, pelo contrário, limitam-se a conferir ao credor, genericamente, o direito a corrigir ou a sanar o

cumprimento defeituoso (art. 9: 102). A Convenção de Viena reconhece ao comprador, em geral, o direito ao cumprimento da obrigação

de entrega conforme ao contrato [arts. 45.º, alínea a), e 46.º, n.º 1], prevendo limitações só para os casos de falta de conformidade. A

reparação deve ser razoável, conforme as circunstâncias (art. 46.º, n.º 3), e a substituição pressupõe que o incumprimento seja essencial,

estando submetida, tal como a resolução, ao requisito da existência de uma violação fundamental do contrato (art. 46.º, n.º 2). Em ambos

os casos, o comprador deve exigir o cumprimento ao vendedor dentro de um prazo razoável.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

303

reparação da coisa ou através da sua substituição por outra conforme com o contrato866.

Estando o vendedor obrigado a entregar ao consumidor um bem conforme com o contrato

de compra e venda, a conformidade do bem com o contrato faz inequivocamente parte do

conteúdo da prestação a que o devedor se encontra adstrito, pelo que, em caso de

desconformidade dos bens com o contrato, o consumidor pode exigir que a conformidade

seja reposta por meio de reparação ou de substituição.

Trata-se aqui ainda da obrigação primária do devedor, do seu dever de prestar e não

do dever de indemnizar, embora a distinção entre um e outro seja objeto de controvérsias,

havendo mesmo Autores que propugnam uma identidade dogmática entre ambos867, e de,

por vezes, não ser nítida a fronteira entre o cumprimento in natura do dever de prestar e a

reparação em espécie, consequente a um dever de indemnizar.

A consagração explícita pelo legislador comunitário de uma obrigação de entrega de

bens em conformidade com o contrato representa, como já referimos, uma adesão explícita

por parte do legislador comunitário às teorias do cumprimento, que reconduzem a

responsabilidade do vendedor pela falta de qualidades do bem entregue a um

incumprimento de uma obrigação em sentido técnico868.

Ainda que a reparação e a substituição imponham ao vendedor um facere ou um dare

que parece ultrapassar o conteúdo do crédito originário, o princípio da conformidade é

866 Assim também nos termos do art. 46.º da Convenção de Viena. Sobre o alcance dos direitos à reparação e à substituição da coisa, v.

FREDERICA GIARDINI , “La Conservazione del Contratto e L’Impostazione Essenzialmente Civilistica del Legislatore Comunitario Nella

Direttiva 99/44/CE. Profili di Comparazione Giuridica”, L’attuazione della Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, La Tutela

dell’Acquirente di Beni di Consumo, Cedam, Padova, 2001, pp. 205 a 211. 867 Sobre as várias teses que defendem uma identidade entre o dever de prestar e o dever de indemnizar, desde as mais radicais que

defendem a “identidade” como questão dogmática, às menos radicais que defendem a “identidade” como expediente expositivo, v.

MARIA DE LURDES PEREIRA/PEDRO MÚRIAS, “Obrigação Primária e Obrigação de Indemnizar”, in Estudos em Homenagem ao

Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 605 a 636. A questão da identidade ou autonomia

do dever de prestar e do dever de indemnizar coloca-se na responsabilidade contratual, já que aqui, ao contrário do que sucede na

responsabilidade extracontratual, o dever de indemnizar, que é em rigor uma obrigação, nasce da violação do dever de prestar. Os

Autores que defendem a identidade entre o dever de prestar e o dever de indemnizar, entendem que a obrigação de indemnizar não é

mais do que a própria obrigação inicial modificada no objeto, que já não consiste na prestação mas sim na indemnização. Neste sentido,

v. GUILHERME MOREIRA, Instituições de Direito Civil, 1.ª ed., Coimbra, vol. I, p. 590. Para uma crítica à identidade entre o dever de

prestar e o dever de indemnizar, v. GOMES DA SILVA , O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, cit., pp. 213 a 232, defendendo que

os dois deveres são completa e radicalmente distintos, não só na sua origem como no objeto e fim. Concordando com Gomes da Silva, v.

FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 44 a 47, afirmando

que “[p]arece-nos mais acertado afirmar a autonomia do dever de prestar e do dever de indemnizar, embora entre ambos não possa

estabelecer-se uma distinção radical e completa” (ob. cit., p. 45), e referindo, designadamente que “a indemnização não corresponde ao

valor da prestação, pois mede-se pelos prejuízos efectivos, que podem ser muito inferiores ou muito superiores aquela” (ob. cit., p. 45). 868 V. GIUSEPPE AMADIO , “Conformità al contrato e tutelle satisfattorie”, cit., pp. 151 a 160, (p. 152).

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

suficientemente amplo para impor ao vendedor tudo o que seja necessário para colocar o

consumidor na disponibilidade material de um bem conforme com o contrato e, portanto,

capaz de satisfazer o interesse primário do consumidor869.

Sublinhe-se, porém, que o modelo de venda pressuposto pela Diretiva 1999/44/CE

está bem distante do modelo de venda pressuposto pelo nosso legislador civil como

paradigma do regime da venda de coisas defeituosas870. A venda de bens de consumo,

disciplinada pela Diretiva 1999/44/CE, é uma venda de bens de bens produzidos em série e

fungíveis, inserida num modelo de distribuição organizado e assistida de um serviço pós-

venda871.

Perante este tipo de venda em que os sujeitos intervenientes são um

vendedor/profissional e um comprador/consumidor, parece possível configurar de uma

forma mais ampla o conteúdo da prestação a que o vendedor se encontra adstrito.

Configurada nestes termos a prestação, torna-se de facto irrelevante a distinção entre a

compra e venda de coisa específica e a compra e venda de coisa genérica. Em ambos os

casos o vendedor está obrigado a entregar uma coisa com qualidades, que, na falta de

acordo expresso, serão as qualidades habituais ou normais do género. Assim, por

exemplo, se o consumidor adquire na loja de eletrodomésticos um frigorífico ou uma

máquina de lavar de uma determinada marca e modelo, deve entender-se que, ainda que se

encontre em exposição na loja um exemplar com as características pretendidas, a vontade

869 A este propósito, Giuseppe Amadio, depois de aludir à impossibilidade de conciliar o dogma do consenso translativo e a vinculação

do vendedor em relação a vícios e falta de qualidades da coisa como uma conduta obrigatória (tendo em conta o argumento de que a

falta de qualidades, consistindo num modo de ser da coisa, não pode ser objeto de uma obrigação em sentido técnico, que, em sim

mesma, é um dever de conduta), observa que este dilema foi superado através de uma reconfiguração ou transformação do conteúdo da

prestação translativa: a falta de conformidade constitui o inadimplemento da obrigação primária imposta ao vendedor ex contractu se e

enquanto o objeto desta compreenda também (superando a incompatibilidade lógica tradicionalmente afirmada) um “modo de ser” da

coisa – cfr. “Conformità al contrato e tutelle satisfattorie”, cit., p. 157. Defende Morales Moreno que a reparação e a substituição são um

remédio que se situa na órbita da pretensão de cumprimento e não na órbita da indemnização por danos, pelo que ultrapassa o conteúdo

incial do direito de crédito (entregar a coisa em estado de conformidade) e impõe um facere complementar destinado a corrigir o

defeituoso cumprimento inicial – v. “Tres modelos de vinculación del vendedor en las cualidades de la cosa”, cit., p. 20. 870 Se pensarmos no modelo de venda que serviu de paradigma ao nosso legislador histórico e que fundamenta a remissão feita dos arts.

905.º e 913.º do Código Civil para os regimes do erro e do dolo, que é, como já vimos, a venda de coisa específica normalmente

infungível, parece de facto estranho que desse contrato possa surgir (sem acordo expresso das partes nesse sentido) um remédio como a

reparação ou substituição da coisa. Incidindo a vontade das partes na venda específica sobre um bem concreto, perfeitamente

individualizado e determinado no momento da conclusão do contrato, o dever de prestação abrange apenas a entrega desse bem

determinado (com ou sem defeitos, com ou sem vícios). O dogma da eficácia translativa imediata opor-se-ia a que a isenção de vícios ou

defeitos pudesse ser objeto de uma obrigação em sentido técnico. 871 GIUSEPPE AMADIO , “Conformità al contrato e tutelle satisfattorie”, cit., p. 158.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

305

do consumidor não foi a de adquirir aquele específico exemplar, mas um qualquer igual a

ele.

Estamos pois perante um tipo de venda que repousa em interesses típicos da venda

genérica872 . Esta venda, característica da aquisição de produtos de massa em

estabelecimentos self-service873, ainda que possa ser dotada da estrutura formal da venda

específica, repousa em interesses típicos da venda genérica, pelo que, sendo, do ponto de

vista dos interesses das partes, funcionalmente equivalente a uma venda genérica, a

obrigação do vendedor deverá configurar-se em termos semelhantes àqueles em que se

configura a obrigação do vendedor de coisa genérica. Em ambos os casos o vendedor está

obrigado a entregar ao comprador uma coisa com as qualidades habituais ou normais do

género874.

Também no DCFR um dos remédios ao alcance do credor é a exigência do

cumprimento conforme (specific performance). O art. III.-3:302 estabelece este regime no

que toca a obrigações não pecuniárias: por regra, o credor tem o direito a exigir o

cumprimento conforme, o que inclui a correção da prestação já realizada sem qualquer

custo para o credor; não é possível exigir o cumprimento conforme se tal for ilícito ou

impossível, desrazoavelmente oneroso ou dispendioso ou se a prestação revestir natureza

intuito personae de molde que seria desrazoável exigir o seu cumprimento; o credor perde

o direito a exigir o cumprimento conforme se não o fizer num prazo razoável a contar do

momento em que o credor tem conhecimento ou é expectável que tivesse conhecimento do

incumprimento. O direito ao cumprimento é cumulável com o pedido de indemnização, no

entanto, o DCFR contém uma limitação importante em ordem a proteger o devedor: o

872 Para ilustrar esta característica Schürholz fala de konkretisierte Gattungskäufe: falta às partes contratuais um

Individualisierungsinteresse e não há motivo para excluir a substituição, vantajosa para todos os contraentes. Neste caso, a substituição

resulta não só correta, mas também conforme ao contrato. O sentido da nova disciplina é fornecer uma tutela que se adapte o mais

possível aos interesses das partes, agora que se chega, através de uma interpretação teleológica a concluir pela admissibilidade da

substituição neste peculiar caso de venda específica. M. SCHÜRHOLZ, Die Nacherfullung im neuen kaufrecht. Zugleich ein Beitrag zum

Schicksal von Stuckkauf und Gattungskauf, cit., p. 159. 873 Sobre a formação de contratos em estabelecimentos de auto-serviço, designadamente sobre a qualificação jurídica da iniciativa

contratual formulada pelo fornecedor como proposta ao público ou como convite a contratar, v. FERREIRA DE ALMEIDA , Direito do

Consumo, cit., pp. 93 e segs. 874 Também no direito português, o art. 914.º do Código Civil confere ao comprador o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa

ou a substituição dela. No entanto, a referida norma, ao contrário do diploma comunitário, estabelece como pressuposto, quer para o

direito de exigir a reparação, quer para o direito de exigir a substituição da coisa, que o vendedor conhecesse ou devesse conhecer “o

vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece” (art. 914.º, in fine). Exclusivamente no que toca à substituição da coisa, exige ainda

a nossa lei que ela seja necessária e a coisa tenha natureza fungível.

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credor não pode exigir a indemnização ou o montante previsto numa cláusula de fixação

antecipada do dano se o credor, ao insistir desrazoavelmente no cumprimento conforme

quando poderia ter feito uma transação substitutiva sem esforço ou custo significativo,

tiver aumentado as perdas ou o montante acordado para o pagamento [art. III.-302 (5)]. Ou

seja, se o credor puder facilmente obter a prestação em falta por outra via e não o fizer e

com isso aumentar o seu prejuízo, não poderá obrigar depois o devedor a arcar com esse

prejuízo. Esta regra é uma concretização do princípio geral segundo o qual a atuação das

partes, mesmo no incumprimento, deve ser pautada pelo princípio da boa-fé e da

negociação justa875. Este ponto não tem paralelo do direito português e reveste grande

interesse prático.

O art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE determina que o consumidor tem direito a que a

conformidade do bem seja reposta “sem encargos”, “dentro de um prazo razoável” e “sem

grave inconveniente para o consumidor”.

A jurisprudência do TJUE tem interpretado esta tríplice exigência como a

necessidade de assegurar ao consumidor uma proteção efetiva.

Segundo o art. 3.º, n.º 1, a reparação e a substituição devem ser efetuadas “sem

encargos”, esclarecendo o n.º 4 da mesma disposição que a expressão “sem encargos” se

reporta às “despesas necessárias incorridas para repor o bem em conformidade,

designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material”. O Tribunal de

Justiça tem reiterado que este elenco é meramente exemplificativo, salientado que esta

“gratuitidade” constitui um elemento essencial da proteção assegurada ao comprador pela

Diretiva876.

Nos termos do n.º 3 do art. 3.º da Diretiva, “[a] reparação ou substituição deve ser

realizada dentro de um prazo razoável, e sem grave inconveniente para o consumidor,

tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina”. A relevância do

fim a que o consumidor destina o bem torna claro que, por exemplo, um tempo de

875 ASSUNÇÃO CRISTAS, “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit., pp. 255 e 256. A

disposição mais próxima no direito português é o art. 570.º do Código Civil que determina a redução ou mesmo a exclusão da

indemnização devida no caso de um facto culposo do lesado ter concorrido para a produção ou o agravamento do dano. Será que a

omissão de tal diligência configura uma atuação ilícita? É duvidoso que o credor possa procurar a satisfação do seu interesse por outra

via e que, não o fazendo, esteja a atuar ilicitamente. O nosso regime é particularmente marcado pela mora e pela concessão ao devedor

de uma segunda oportunidade para cumprir. 876 V. Acórdão do TJUE de 16 de janeiro de 2011, ponto [32], disponível em http://eur-lex.europa.eu.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

307

reparação de um eletrodoméstico de uso diário, superior a três ou quatro semanas deva ser

considerado excessivo e que, neste caso, a privação do bem constituirá um inconveniente

grave877.

Na nova redação do n.º 2 do art. 4.º do DL n.º 67/2003, introduzida pelo DL n.º

84/2008, densifica-se a razoabilidade do prazo de reparação ou substituição do bem móvel

no máximo de trinta dias e no caso de bem imóvel tem-se em conta a natureza do defeito.

Embora a lei não refira qual o momento a partir do qual começa a correr o referido prazo,

entende-se que este será o momento da denúncia do defeito878.

A reparação ou substituição podem ser exigidas aquando da denúncia do defeito, sem

prejuízo de o vendedor poder, independentemente de interpelação, oferecer-se para reparar

ou substituir o bem e fazê-lo, efetivamente, “dentro de um prazo razoável e sem grave

inconveniente para o consumidor”.

Desta forma, o vendedor pode obstar ao exercício, por parte do consumidor, de

meios de tutela mais radicais como é o caso da redução do preço e da resolução do

contrato.

5.1. O direito à reparação

Em caso de falta de conformidade dos bens com o contrato o consumidor poderá

exigir que a mesma seja reposta através da reparação ou da substituição do bem não

conforme.

A Diretiva 1999/44/CE define “reparação” como a “reposição do bem de consumo

em conformidade com o contrato de compra e venda”879. Sendo esta a via escolhida pelo

consumidor para a reposição da conformidade do bem com o contrato, sobre o vendedor

recairá uma obrigação de facere que tem como objeto a prática dos atos necessários para

877 V. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 263. Calvão da Silva refere a este

propósito o exemplo de um “aparelho de ar condicionado comprado em Verão anormalmente muito quente” – v. Venda de bens de

consumo, cit., p. 108. 878 O DL n.º 67/2003 consagra, no n.º 2 do art. 5.º-A, um ónus de denúncia dos defeitos, que deve ser feita no prazo de dois meses, caso

se trate de bem móvel, ou de um ano se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que o consumidor tenha detetado a falta de

conformidade. 879 Cfr. art. 1.º, n.º 2, alínea f), da Diretiva 1999/44/CE.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

repor a falta de conformidade do bem com o contrato880. Esta obrigação apenas se poderá

considerar cumprida se, depois da intervenção “de reposição” efetuada pelo vendedor, o

bem entregue ao consumidor puder ser considerado plenamente conforme com o contrato,

nos termos do art. 2.º da Diretiva 1999/44/CE881.

Através da reparação visa-se colocar o comprador, mediante uma prestação de facto,

na situação em que estaria se o bem entregue fosse conforme ao contrato de compra e

venda. É preferível que a reparação seja feita pelo vendedor, pois, mesmo não sendo ele o

produtor, em princípio tem o know-how, e pode de forma mais rápida, económica e com

melhor resultado proceder à eliminação do defeito882. Acresce que a eliminação do defeito

não tem de ser feita pelo próprio vendedor; basta que o seja à sua custa, por pessoal técnico

por ele encarregue; e o vendedor até terá mais facilidade em contactar os técnicos

adequados883. A possibilidade de ser exigida a reparação traz vantagens para ambas as

partes. Frequentemente os interesses do consumidor, que recebeu um bem não conforme

com o contrato, ficam melhor salvaguardados, pois pode auferir as vantagens esperadas da

coisa entregue, na medida em que fica satisfeito o seu interesse primário884. Além disso,

evita-se o recurso a outros meios mais drásticos, como sejam a nova realização da

prestação ou a resolução do contrato. A eliminação dos defeitos pode ser exigida

relativamente à prestação principal ou a deveres acessórios (por exemplo, a deficiente

montagem da máquina na oficina do comprador), mesmo que as imperfeições não sejam

fundamentais885.

880 Cfr. GIOVANNI CRISTOFARO, in L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, cit., pp. 193 segs. 881 Cfr. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais – Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 117. 882 V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 338 e 339. 883 Cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 339. À

obrigação de eliminar os defeitos são aplicáveis as regras gerais do cumprimento (arts. 762.º e segs.), designadamente quanto ao lugar e

ao prazo de execução. Quanto ao lugar do cumprimento, nos termos do art. 772.º, n.º 1, a eliminação do defeito, sendo a coisa móvel,

deverá ser efetuada no domicílio do devedor; todavia, as eventuais despesas de transporte integram a obrigação de indemnizar pelo

interesse negativo. 884 V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 339. 885 V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 339.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

309

5.2. O direito à substituição

A outra modalidade de reposição da conformidade do bem com o contrato, que

podemos encontrar no primeiro nível da hierarquia, é a substituição ou nova realização da

prestação.

A noção de substituição não consta do art. 1.º da Diretiva 1999/44/CE. No entanto,

podemos afirmar que ao exigir a substituição o comprador pretende que o vendedor realize

de novo a sua prestação, mediante a entrega de um bem conforme com o contrato, devendo

o comprador, por sua vez, restituir ao vendedor o bem não conforme inicialmente entregue,

logo que o vendedor realize de novo a sua prestação886. Nos casos em que o comprador

exige a substituição, o vendedor fica adstrito a uma obrigação de dare, que tem por objeto

a transferência da propriedade e a entrega de um bem de consumo que apresente todas as

características que o bem originariamente entregue ao consumidor deveria ter para poder

ser considerado conforme com o contrato887.

No direito civil alemão, a reparação e a substituição estão previstas no § 439 do BGB

que tem por epígrafe “Nacherfüllung”, que significa que o devedor cumpre à segunda. O

Código Civil alemão dá a possibilidade ao vendedor, obrigado à Nacherfüllung, de exigir a

devolução do bem defeituoso, nos mesmos termos que a lei prevê para a resolução do

contrato (§§ 439, n.º 4, e 346 e segs.). Não existe no ordenamento jurídico português uma

norma semelhante. No entanto, a essa solução se poderá chegar através de uma analogia

com o disposto em matéria de resolução, designadamente através de uma aplicação

analógica do art. 432.º, n.º 2, do Código Civil888. Note-se, aliás, que o vendedor pode ter

886 Cfr. GIOVANNI CRISTOFARO, in L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, cit., p. 193. 887 Cfr. GIOVANNI CRISTOFARO, in L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, cit., p. 193. O pedido de substituição

obriga o vendedor a entregar bens com as qualidades asseguradas ou exigíveis. 888 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 352. O Autor, a

propósito do direito à substituição na compra e venda civil, justifica a devolução do bem defeituoso inicialmente entregue com

fundamento na aplicação analógica do art. 432.º, n.º 2, do Código Civil. Esta norma, que analisaremos ao tratar o direito de resolução,

exclui o direito potestativo de resolução quando o respetivo titular, “por circunstâncias não imputáveis ao outro contraente, não estiver

em condições de restituir o que houver recebido”. Como refere Brandão Proença, esta norma visa “tutelar uma certa igualdade jurídico-

económica no seio da relação de liquidação”, impedindo que o titular do direito de resolução possa exercer este direito e

consequentemente exigir a restituição daquilo que prestou, quando, por circunstâncias não imputáveis à contraparte, não está em

condições de restituir aquilo que ele próprio recebeu. V. BRANDÃO PROENÇA, A resolução do contrato no Direito Civil, Do

enquadramento e do regime, reimpressão, Coimbra Editora, 2006, p. 197. A ratio do preceito parece pois residir no princípio da

proibição do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Neste sentido, v. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

todo o interesse em recuperar os bens defeituosos para os revender com outro fim ou por

um preço inferior. Por outro lado, o comprador que, apercebendo-se que o bem

inicialmente entregue não é conforme com o contrato, escolhe a substituição como forma

de reposição da conformidade, não terá qualquer interesse em reter o bem não conforme. A

não devolução deste, representaria em última análise um enriquecimento injustificado por

parte de comprador889.

Relativamente ao direito à substituição coloca-se ainda a questão de saber se o

consumidor tem de pagar pelo uso que fez do bem não conforme com o contrato,

originariamente entregue, nos casos em que lhe é entregue um novo bem conforme ao

contrato890.

Reportando-se à compra e venda civil, Romano Martinez responde afirmativamente

a esta questão, referindo que nos casos em que o comprador retirou benefícios da prestação

defeituosa a solução poderá consistir em o beneficiado compensar a contraparte nos termos

do enriquecimento sem causa891. A questão assume, porém, contornos diferentes no âmbito

da venda de bens de consumo, tendo em conta que aqui, nos termos do art. 3.º, n.º 2, da

Diretiva 1999/44/CE, a reposição da conformidade dos bens com o contrato, por meio de

reparação ou de substituição, deve fazer-se “sem encargos” para o consumidor. O n.º 4 do

referido preceito determina que a expressão “sem encargos” se reporta às despesas

Direito dos Contratos, cit., p. 892, nota 1221. Assim, afigura-se-nos possível a aplicação analógica da norma ao direito à substituição.

Note-se, porém, que, ainda segundo uma aplicação analógica do art. 432.º, n.º 2, não estando o comprador em condições de restituir o

bem não conforme originariamente entregue, por circunstâncias imputáveis ao vendedor, como acontecerá nos casos em que o bem

pereceu em virtude do vício de que padecia, já nos parece possível que o comprador possa exigir a substituição do bem, mesmo não

estando em condições de devolver o bem defeituoso originariamente entregue. 889 Cfr. DANIEL VARÃO PINTO, A obrigação de conservação dos bens pelo comprador relacionada com o pedido de substituição na

compra e venda de coisa defeituosa, Verbo Jurídico, 2012, p. 12. Como refere o Autor, a devolução do bem defeituoso representa um

pressuposto lógico para o pedido de substituição. 890 No âmbito da venda de bens de consumo, o Acórdão do TJUE Quelle AG (de 17 de abril de 2008, proc. C-404/06), in http://eur-

lex.europa.eu, entendeu que a solução do Código Civil alemão de reenviar em bloco o regime da restituição para as normas relativas à

resolução do contrato não era conforme à Diretiva 1999/44/CE, uma vez que tal solução implica que o comprador indemnize o vendedor

das utilidades que usufruiu do bem inicialmente recebido (§ 346, n.os 1 e 2). No entender do Tribunal, a obrigação de o vendedor repor a

conformidade do bem defeituoso não pode implicar despesas de tal ordem para o consumidor que este seja desencorajado a recorrer a

essa mesma substituição (ponto 34 do acórdão). Deste modo, a lei alemã foi alterada, de modo a que, no caso de venda feita ao

consumidor, não fosse exigível aquela indemnização pelos proveitos da coisa – § 474/2. Para maiores desenvolvimentos, v. ALBERTO DE

FRANCESCHI, “La sostituzione del bene “non conforme” al contrato di vendita”, RDC, L, 2, 2009, pp. 559 e segs. No nosso direito, o art.

193.º, n.º 2, do Anteprojeto do Código do Consumidor (apesar de não ter sido aprovado) propunha uma solução tendente a afastar

qualquer pretensão do vendedor a uma indemnização pelo uso da coisa. 891 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 352.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

311

necessárias incorridas para repor o bem em conformidade, designadamente as despesas de

transporte, de mão de obra e material. O elenco é, porém, meramente exemplificativo. A

possibilidade de o vendedor exigir do consumidor uma compensação pelo uso do bem

defeituoso, antes de este poder exigir a substituição, representaria certamente um

“encargo” para o consumidor, que poderia dissuadi-lo de exercer o direito à substituição.

Ora, parece ter sido justamente isto que o legislador comunitário pretendeu evitar.

5.2.1. O Acórdão do TJUE de 17 de abril de 2008 (Quelle AG)

O Tribunal de Justiça, no Acórdão de 17 de abril de 2008 (caso Quelle AG), foi

chamado pelos Tribunais alemães a pronunciar-se sobre a questão de saber se o

consumidor que exige a substituição do bem tem de pagar ao vendedor pelo uso que tenha

feito do bem não conforme. Se, por um lado, o Código Civil alemão reconhece o direito do

vendedor a esta compensação (por força da remissão do § 439/4 do BGB para os §§ 326 e

segs.), por outro lado, a questão que se colocava era a de saber se a necessidade – imposta

pelo princípio da efetividade – de interpretar o direito interno em conformidade com a

Diretiva 1999/44/CE não deveria conduzir a afastar a possibilidade de uma tal

compensação, no caso de ser esta a solução consagrada no referido diploma

comunitário892.

Os factos, previamente apreciados pelos tribunais alemães, eram os seguintes: uma

senhora idosa comprou um forno num grande retalhista alemão “Quelle AG”, pelo preço de

500 euros. Cerca de um ano e meio depois, o forno teve um defeito irreparável. A senhora

exigiu imediatamente a entrega de um novo forno, nos termos dos §§ 437/3 e 439/1 do

892 No que toca a esta questão merece particular referência o caso Quelle (ECJ, Quelle AG v. Bundesverband der Verbraucherzentralen

und Verbraucherverbände, 17 de abril de 2008, proc. C-404/06). Esta decisão é considerada uma referência em matéria de proteção dos

consumidores pela jurisprudência do Tribunal de Justiça ao proibir os vendedores de impor qualquer custo aos consumidores no

contexto da substituição de bens defeituosos. Esta decisão é considerada também um marco na medida em que confrontou os tribunais

alemães com a possibilidade de interpretação do Código Civil alemão à luz da decisão do Tribunal de Justiça numa situação em que

claramente, tendo em conta os trabalhos preparatórios, o legislador alemão entendeu atribuir ao vendedor uma compensação pelo uso,

inconsistente com a decisão proferida no caso Quelle. Peter Rott pronunciou-se a favor da interpretação do Código Civil alemão à luz da

Diretiva 1999/44/CE, com base em que a redação do § 439 do BGB é suficientemente aberta para permitir uma interpretação conforme à

Diretiva. Cfr. PETER ROTT, “The Quelle Case and the Potencial of and Limitations to Interpretation in the Light of the Relevant

Directive”, in European Review of Private Law, 6-2008, pp. 1119-1130, p. 1119. Como explica o A., este caso foi particularmente

interessante na perspetiva da interpretação dos direitos nacionais à luz das diretivas comunitárias, uma vez que a solução dada pelo

Tribunal de Justiça foi exatamente a oposta à solução que o legislador alemão pretendeu implementar.

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BGB, o que não foi contestado pela Quelle AG. Contudo, com fundamento no § 439/4 do

BGB, a Quelle exigiu uma compensação, no montante inicial de 119,97 euros, pelo uso do

forno defeituoso durante um ano e meio, antes de ela poder obter o novo forno.

Nos termos do § 439/4 do BGB, o vendedor, obrigado à substituição (Nacherfüllung,

que se traduz por “cumprimento sucessivo”), pode exigir do comprador a restituição do

bem desconforme originariamente entregue, nos mesmos termos que a lei prevê para a

resolução do contrato (§§ 346 e segs. do BGB). Ora, o § 346 do BGB – aplicável à

substituição (Nacherfüllung) por força da remissão feita pelo § 439/4 do BGB – prevê que,

em caso de resolução, as partes têm não apenas de restituir aquilo que receberam, como

também de pagar pelo uso que tenham feito daquilo que receberam. A ratio da remissão

feita pelo § 439/4 do BGB para os §§ 346 e segs. prende-se com o facto de o legislador

alemão ter considerado injusto ou, pelo menos, demasiado generoso, permitir que o

comprador de um bem defeituoso pudesse obter um novo bem, sem quaisquer encargos,

depois de o ter usado durante um determinado período de tempo. No caso concreto, isso

significaria aceitar que aquela senhora idosa pudesse ter usado o forno defeituoso

originariamente entregue, gratuitamente, durante cerca de um ano e meio.

Foi muito debatida, na doutrina alemã, a questão de saber se a obrigação de pagar

uma compensação pelo uso dos bens defeituosos nos casos em que o comprador exige a

substituição (Nacherfüllung) estava de acordo com a Diretiva 1999/44/CE. Nos termos do

art. 3.º, n.º 2, da Diretiva, em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a

que a conformidade seja reposta “sem encargos”, por meio de reparação ou de substituição.

O n.º 4 do artigo determina que a expressão “sem encargos” reporta-se às despesas

necessárias para repor o bem em conformidade, designadamente as despesas de transporte,

de mão de obra e de material. O legislador alemão entendeu, com base no Considerando 15

da Diretiva893, que esta compensação não se encontra regulada pela Diretiva, sendo da

competência do legislador nacional. Embora esta posição fosse partilhada por alguma

doutrina, havia também quem entendesse que em caso de não conformidade dos bens com

o contrato, o consumidor não deveria suportar qualquer custo, e que o consumidor não

893 É o seguinte o teor do Considerando 15: “Considerando que os Estados-Membros podem dispor no sentido de que qualquer

reembolso ao consumidor possa ser reduzido, de modo a ter em conta a utilização que o consumidor fez dos produtos a partir do

momento em que lhe foram entregues; que as disposições de pormenor mediante as quais a rescisão do contrato ganha efeito podem ser

fixadas na legislação nacional”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

313

deveria, assim, ser obrigado a pagar qualquer montante adicional a fim de obter aquilo que

ele sempre teve direito a obter: um bem em conformidade com o contrato de compra e

venda.

Esta última posição foi confirmada pelo Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça

reiterou que o elenco das despesas constante do art. 3.º, n.º 4, da Diretiva 1999/44/CE é

meramente exemplificativo, não exaustivo. O Tribunal de Justiça foi particularmente

sensível às implicações práticas de uma regra como o § 439/4 do BGB, que, ao impor uma

obrigação de compensação pelo uso do bem defeituoso, poderia dissuadir o consumidor do

exercício do seu direito à substituição. Os contra-argumentos invocados pelo governo

alemão eram facilmente rebatíveis, nomeadamente a referência ao Considerando 15 já que

explicitamente este se refere apenas à rescisão do contrato e, por isso, não poderá ser

aplicado ao direito à substituição894.

Na sequência do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no caso Quelle, a lei

alemã foi alterada, de modo a que, no caso de venda feita a consumidor, deixasse de ser

exigível ao consumidor a referida compensação pelo uso do bem defeituoso (§ 474/2 do

BGB).

5.3. Os limites à faculdade de escolha do consumidor dentro do primeiro nível da

hierarquia

O direito de escolha do consumidor entre os direitos consagrados no art. 3.º da

Diretiva está subordinado, em cada um dos níveis da hierarquia, à verificação in casu de

determinados pressupostos objetivos que, deste modo, funcionam como limites àquele

direito de escolha. Estes limites refletem a necessidade de uma ponderação criteriosa entre

o direito de escolha do consumidor, por um lado, e os interesses económicos do vendedor,

894 O fundamento da decisão do Tribunal de Justiça no caso Quelle chama à colação uma outra questão de Direito Europeu do Consumo,

que foi debatida durante anos e que se prende com a interpretação do art. 6.º, n.º 2, da Diretiva 97/7/CE, sobre as vendas à distância.

Segundo esta norma, a única despesa em que pode incorrer o consumidor em virtude do exercício do seu direito de arrependimento é o

custo direto da devolução dos bens. O propósito desta norma é não dissuadir o consumidor do exercício do seu direito de

arrependimento, que é também o principal objetivo que o Tribunal de Justiça refere a respeito do art. 3.º, n.º 3, da Diretiva 1999/44/CE.

A posição maioritária a respeito da interpretação do art. 6.º, n.º 2, da Diretiva 97/7/CE é a de que esta não autoriza os Estados-Membros

a impor qualquer custo ao consumidor, para além do custo de transporte, em particular não autoriza os Estados-Membros a impor ao

consumidor a obrigação de pagar uma compensação pelo uso dos bens, pela sua perda ou deterioração. Cfr. PETER ROTT, “The Quelle

Case and the Potencial of and Limitations to Interpretation in the Light of the Relevant Directive”, cit., p. 1122.

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por outro, sendo certo que, como já referimos, para este último, “different remedies do not

cause de same costs” 895. A isto acresce que a referida ponderação assume contornos

diferentes em cada um dos níveis da hierarquia896.

No primeiro nível, os direitos orientados para o cumprimento – a reparação e a

substituição – satisfazem de forma específica e in natura o interesse primário do

consumidor, proporcionando-lhe não uma qualquer vantagem mas a vantagem bem

determinada e por si esperada, finalidade e razão de ser da própria obrigação897. Na medida

em que quer a reparação quer a substituição se destinam à satisfação do interesse primário

do credor, compreende-se a preocupação do legislador comunitário em não agravar

desmesurada e desnecessariamente a posição do vendedor, permitindo-lhe opor-se a uma

delas por comparação com a outra, sempre que isso se mostre “impossível” ou

“desproporcionado”898.

A Diretiva 1999/44/CE não estabelece qualquer ordem de precedência entre estes

direitos, que se situam no primeiro nível da hierarquia, cabendo ao consumidor a escolha

daquele que considere mais adequado à satisfação do seu interesse, apenas limitada pela

possibilidade e não desproporção. Isto significa que, segundo a Diretiva, os referidos

direitos subjetivos se encontram numa relação de perfeita alternatividade, cabendo a

escolha ao consumidor, mas dando-se ao vendedor a posteriori a possibilidade de impor ao

consumidor a solução alternativa com fundamento em impossibilidade ou

desproporcionalidade da solução escolhida pelo consumidor.

895 Cfr. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 127. 896 Apesar de o Código Civil impor o dever de eliminar os defeitos, tanto na compra e venda como na empreitada, a objeção de excessiva

onerosidade só vem prevista em relação a este último contrato (art. 1221.º, n.º 2). Deste facto não se pode concluir que o vendedor esteja

adstrito a proceder à reparação em quaisquer circunstâncias. O princípio da boa-fé (art. 762.º, n.º 2) aponta no sentido oposto e não há

razão para que o empreiteiro tenha um tratamento preferencial em relação ao vendedor Assim sendo, o art. 1221.º, n.º 2, terá uma

aplicação analógica em matéria de compra e venda. Trata-se da consagração de uma regra de justiça comutativa: se as despesas do

devedor, seja ele empreiteiro ou vendedor, forem desproporcionadas em relação ao proveito do credor, não é justo que sobre aquele

impenda a obrigação de eliminar os defeitos. O devedor pode assim obstar à exigência de eliminação dos defeitos se demonstrar que essa

prestação lhe acarreta um sacrifício económico excessivo, ou seja, que é desproporcionada em relação ao proveito da contraparte. Para

determinar essa onerosidade, a relação que se estabelece não é entre o valor da reparação e o preço acordado, mas sim entre aquele e a

vantagem que o credor obtém (art. 1221.º, n.º 2). Não obstam ao pedido de reparação as dificuldades em eliminar o defeito, tais como a

impossibilidade subjetiva, exceto se a prestação for infungível. V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na

Compra e Venda e na Empreitada, cit., pp. 342 e 343. 897 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsiva, cit., p. 141. 898 Diferente será a questão de saber se neste nível da hierarquia o vendedor se poderá opor a ambas as soluções (reparação e

substituição) com fundamento na sua desproporcionalidade.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

315

Neste sentido, o diploma comunitário afigura-se aparentemente mais protetor do que

o regime consagrado no nosso Código Civil, tendo em conta que o art. 914.º condiciona o

direito à substituição da coisa à sua necessidade e ao facto de a coisa ter natureza fungível,

conferindo, deste modo, precedência ao direito à reparação. No mesmo sentido, o art.

1221.º do Código Civil só confere ao dono da obra a faculdade de exigir do empreiteiro

uma nova construção quando a reparação da construção antiga seja impossível ou

inexigível. Assim, estando em causa contratos civis de compra e venda e de empreitada, o

princípio da prioridade da reparação sobre a substituição significaria que a relação entre os

dois direitos subjetivos é uma relação de subsidiariedade899.

Note-se, porém, que embora a precedência da reparação não resulte explicitamente

da Diretiva 1999/44/CE, a ela se chegará na prática, frequentemente, por aplicação do

critério da proporcionalidade – que se prende com os custos que a solução acarreta para o

vendedor – e, designadamente, pelo facto de na dupla reparação/substituição, ser a

substituição o remédio que, normalmente, maiores custos implica para o vendedor900, e

que, por isso, o vendedor poderá rejeitar com fundamento em desproporcionalidade.

5.3.1. A concretização da noção de impossibilidade

O art. 3.º, n.º 3, da Diretiva estabelece como primeiro limite à escolha do consumidor

entre um dos direitos compreendidos no primeiro nível da hierarquia (v. g., a reparação ou

substituição) o facto de a solução escolhida pelo consumidor se revelar “impossível” 901.

899 V. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 500. Refira-se a este propósito a posição de Pedro Romano

Martinez, que, perante o disposto nos arts. 914.º e 1221.º, defende uma interpretação corretiva, entendendo que entre os dois direitos

existe um concurso alternativo. Assim, quando a reparação e a substituição fossem adequadas à satisfação do interesse do credor, o

devedor (v. g., o vendedor ou o empreiteiro) teria a faculdade de decidir se a prestação imperfeita ou inexata deveria ser retificada ou

substituída. Os interesses do credor (v. g., comprador, dono da obra) ficariam adequadamente protegidos quer o devedor escolhesse a

reparação, quer escolhesse a substituição da prestação defeituosa – v. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na

Empreitada, cit., p. 390. Nuno Oliveira discorda desta posição, considerando que a mesma, ao atribuir ao devedor a faculdade de

escolha, partindo do princípio de que para o credor é indiferente a reparação ou a substituição, conduz a um real desequilíbrio, já que, ao

contrário do devedor, o credor não teria a possibilidade de comparar as vantagens e desvantagens dos dois direitos subjetivos e considera

que o problema se resolve “atribuindo a faculdade de escolha ao credor” – v. Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 501. 900 V. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 259. 901 Cfr. CHRISTIAN TWIGG-FLESNER/ROBERT BRADGATE, “The E.C. Directive On Certain Aspects os the Sale of Consumer Goods and

Associated Guarantees – All Talk and No Do?”, cit., p. 14. Se tivermos em conta as restrições quanto à viabilidade destes dois direitos,

parece que a reparação deverá ser geralmente o primeiro remédio.

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No que toca à reparação, embora em regra ela seja possível nos casos em que os bens

entregues não são conformes com contrato, haverá casos em que não o é. Assim sucede,

por exemplo, nos casos em que o bem se tenha tornado inaproveitável para o consumidor,

mesmo após qualquer intervenção do vendedor902, ou, ainda, sempre que se verifique não

existirem condições técnicas para colocar o bem em conformidade com o contrato. Isto

pode suceder não apenas nos casos em que o vendedor entrega um bem diferente do

acordado (aliud pro alio)903 – assim, por exemplo, se havendo acordo quanto a um contrato

de compra e venda de um livro, for entregue um filme – mas também naqueles em o bem

não corresponde à descrição do vendedor ou à amostra. Assim, se o consumidor compra

uma cadeira numa loja self-service, e se na embalagem se diz que a cadeira é vermelha,

vindo o consumidor a constatar, ao abrir a embalagem, que a cadeira é verde, a reparação

será normalmente uma solução impossível904 . No entanto, estando aqui em causa

prestações de coisa fungível, a sua substituição encontra-se facilitada.

Noutros casos, é a própria natureza do bem que impede a eliminação dos defeitos905.

É o que se passa frequentemente com matérias-primas, alimentos, bebidas, etc., as quais,

como também constituem, em regra, prestações de coisa fungível, a sua substituição

encontra-se facilitada906. A impossibilidade de reparação também se pode verificar no

domínio de obrigações específicas, como, por exemplo, no caso de ter sido vendido um

automóvel com mais quilómetros do que os indicados907. O facto de o vendedor não dispor

de meios técnicos ou de conhecimentos para reparar ele próprio o bem, não torna de per se

impossível a reparação, já que ele poderá encarregar outrem de proceder a essa

reparação908.

No que diz respeito à possibilidade da substituição, segundo a Diretiva 1999/44/CE,

ela parece de aceitar independentemente de estar em causa uma venda de coisa específica

902 Cfr. LUIS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 9.ª ed., cit., p. 143. 903 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO , Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, cit., p.

520. 904 Cfr. CHRISTIAN TWIGG-FLESNER/ROBERT BRADGATE, “The E.C. Directive On Certain Aspects os the Sale of Consumer Goods and

Associated Guarantees – All Talk and No Do?”, cit. 905 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 340. 906 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 340. 907 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 340. 908 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 340. A impossibilidade

de reparação deve ser apreciada tendo em conta o interesse do credor,

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

317

ou genérica, visto que o diploma comunitário não faz qualquer distinção entre as duas

categorias de venda. Em qualquer um dos casos o consumidor pode exigir a reposição da

conformidade seja através da reparação, seja através da substituição.

Apesar disso, como já referimos, nos ordenamentos jurídicos alemão e italiano

subsiste um intenso debate, mesmo depois da transposição da Diretiva 1999/44/CE, em

torno da admissibilidade do direito à substituição na venda específica. A questão prende-se

com o objeto do contrato na venda específica, ou seja, com o facto de na venda específica a

vontade das partes incidir, no momento da conclusão do contrato, sobre a coisa concreta,

perfeitamente determinada, que entra a fazer parte do contrato como algo que é e não como

algo que deve-ser. Assim, estando o vendedor obrigado a entregar a coisa concreta, não se

afigura admissível que o comprador pudesse exigir através do direito à substituição uma

coisa diversa da única que é objeto do contrato e, por isso, devida.

Note-se, porém, que a venda regulada pela Diretiva 1999/44/CE é a venda que tem

por objeto bens de consumo – tendencialmente produzidos em série e fungíveis – inserida

num processo de distribuição organizado e frequentemente assistida de um serviço pós-

venda. Neste tipo de venda é legítimo que sobre o vendedor/profissional recaia a obrigação

de entregar ao consumidor um bem conforme ao contrato, devidamente interpretado e

integrado, de acordo com os parâmetros subjetivos e objetivos consagrados no n.º 2 do art.

2.º da Diretiva. O vendedor, pela sua qualidade de profissional, está efetivamente em

condições de garantir a entrega de um bem perfeitamente conforme com contrato,

afigurando-se, por isso, inequívoca a sua responsabilidade contratual, na eventualidade de

o bem entregue não ser conforme com o contrato.

Trata-se, sem dúvida, de um modelo de venda bem distante daquele que serviu de

paradigma à generalidade dos Códigos Civis continentais, que, arreigados à tradição

romanística, concebem a venda como um contrato de economia individual, através do qual

o vendedor transfere para o comprador a propriedade da coisa individualizada, assumida

pelas partes como objeto do contrato, sem que subsista, pois, qualquer espaço para a

admissibilidade de uma obrigação que tenha por objeto a isenção de vícios daquele bem

singular.

O facto de o diploma comunitário ter adotado um modelo de venda de acordo com o

qual a substituição é, em regra, possível, não impede que, em determinados casos de venda

específica, a substituição possa ser afastada. Na verdade, ao referir, no teor do

Considerando 16, que “a natureza específica dos produtos em segunda mão torna, de modo

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geral, impossível a sua reposição” e que, por isso, “o direito do consumidor à substituição

não é, em geral, aplicável a esses produtos”, o legislador comunitário parece assumir que,

pelo menos em alguns casos de venda específica, a substituição não será possível909.

A fim de selecionar os casos em que a substituição não é possível, poderíamos adotar

o critério da fungibilidade. Foi este o critério adotado pelo legislador português. O art.

914.º prevê o direito de o comprador de coisa específica exigir a sua substituição se tal for

necessário e a coisa tiver natureza fungível. O critério não é pois o carácter específico ou

genérico da venda mas sim o facto de a coisa, objeto do contrato, ser ou não fungível,

entendendo a doutrina que a fungibilidade é aqui aferida não de acordo com um critério

puramente objetivo, mas de acordo com um critério económico-social.

Este critério não tem, contudo, merecido a concordância da doutrina estrangeira pelo

facto de a fungibilidade ser uma característica da coisa em si e não atender aos interesses

das partes.

Nos casos em que, estando em causa uma venda de coisa específica, as partes não

tenham um interesse em que o bem objeto do contrato seja aquele preciso bem que foi

determinado no momento da celebração do contrato, mas um interesse em receber um bem

que tenha as características que aquele bem deveria ter para ser considerado conforme com

o contrato, então a substituição será admissível. Pelo contrário, nos casos em que exista um

interesse das partes em receber aquela coisa concreta, perfeitamente individualizada no

momento da celebração do contrato, a substituição seria afastada, podendo o consumidor,

nos casos em que a reparação é impossível, desvincular-se do contrato, resolvendo-o, ou

exigir a reposição do equilíbrio sinalagmático através da redução do preço. O facto de o

direito de escolha caber ao consumidor facilita este processo, já que ao exigir a

substituição o consumidor estaria com isso a dizer que um outro bem, diferente daquele

909 No entanto, mesmo no caso de bens em segunda mão, o Considerando 16 apenas considera que o direito à substituição não é em geral

aplicável, não o afasta a priori, não impedindo, por isso, que a substituição possa ser ponderada à luz das limitações impostas pelo art.

3.º, n.º 3, da Diretiva. Se, por exemplo, o bem em segunda mão for um automóvel usado, de uma determinada marca, modelo e

especificação, e se esse automóvel se revelar defeituoso, a substituição será possível, desde que o vendedor tenha um outro automóvel,

da mesma marca, modelo e especificação, ainda que com uma pequena diferença na quilometragem, que poderá ter pouco ou até

nenhum impacto no valor de mercado destes dois automóveis. Neste caso, poderá discutir-se se será razoável que o consumidor exija a

substituição, quando isso implique que o vendedor tenha de adquirir um outro automóvel para substituir aquele que se revelou

defeituoso, ou que o consumidor tenha direito a exigir a substituição quando exista uma diferença significativa na quilometragem que se

repercuta no valor de mercado desses dois automóveis.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

319

que era originariamente devido, pode constituir ex post objeto do contrato, na medida em

que satisfaz plenamente o seu interesse.

5.3.2. A concretização da noção de proporcionalidade

O legislador comunitário, procurando não agravar desmesurada e

desnecessariamente a posição do vendedor, o qual está sujeito ao direito de livre escolha

por parte do consumidor, atribui-lhe, ainda, a faculdade de se opor a um dos direitos

consagrados no primeiro nível da hierarquia (à reparação ou à substituição) sempre que

“isso” [a solução escolhida pelo consumidor] seja “desproporcionado” (v. art. 3.º, n.º 3, in

fine, da Diretiva 1999/44/CE).

A noção de desproporcionalidade é concretizada pelo art. 3.º, n.º 3, 2.ª parte, nos

termos do qual se presume “que uma solução é desproporcionada se implicar para o

vendedor custos que, em comparação com a outra solução, não sejam razoáveis”910. Ao

fazer esta avaliação deve ter-se em conta, segundo o mesmo preceito legal, o valor que os

bens teriam se não existisse falta de conformidade; a importância da falta de conformidade

e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o

consumidor. Este preceito deve ser articulado com o teor do Considerando 11 da Diretiva

que determina que “a desproporção deve ser determinada objectivamente; que uma solução

é desproporcionada se impuser custos excessivos em relação à outra solução; que, para que

os custos sejam excessivos, devem ser significativamente mais elevados que os da outra

forma de reparação do prejuízo”.

Resulta do exposto que, segundo o legislador comunitário, o critério determinante da

desproporcionalidade da solução são os custos que ela acarreta para o vendedor, podendo

assim, este, caso haja uma grande desproporção de custos entre uma e outra solução, retirar

ao consumidor a faculdade de opção, impondo-lhe a solução menos dispendiosa.

910 Para a apreciação da desproporção não releva, deste modo, uma eventual falta de culpa do devedor. Aqui reside, como observa Paulo

Mota Pinto, uma diferença importante em relação ao regime consagrado no art. 914.º do Código Civil que exclui o direito de o

comprador exigir a reparação ou substituição se o vendedor desconhecia sem culpa o vício – v. “Conformidade e garantias na venda de

bens de consumo”, cit., p. 260. Note-se, porém, que o art. 12.º da LDC já reconhecia ao consumidor os direitos referidos

independentemente de culpa do fornecedor do bem.

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Assim, estando em causa bens de baixo valor, em que o custo da reparação pode ser

superior ao valor do próprio bem – pense-se, por exemplo, no caso em que o consumidor

adquire uma máquina fotográfica descartável e esta não funciona –, a substituição pode ser

a melhor solução, também na perspetiva do vendedor. Estes casos não são, porém, os mais

frequentes. Normalmente, a ideia de proporcionalidade favorece a reparação, que será a

solução que menos custos acarreta para o vendedor, o qual, em princípio, terá o know-how

e poderá de forma rápida e económica proceder à reparação do bem911.

Para que o vendedor se oponha à solução escolhida pelo consumidor e lhe imponha a

solução alternativa, parece-nos suficiente que o vendedor torne plausível ao consumidor

que a solução que ele não aceitou causaria mais custos que a solução alternativa912.

Nos termos do n.º 3 do art. 3.º da Diretiva, ao apreciar a desproporcionalidade da

solução há que ter ainda em conta “a possibilidade de a solução alternativa ser

concretizada sem grave inconveniente para o consumidor”913. Embora a Diretiva não

estabeleça o que deve entender-se por “inconveniente grave”, assume aqui relevância a

questão da desvalorização do bem que poderá resultar da sua reparação914 . Uma

desvalorização significativa do bem (que poderia não ser previsível quando o consumidor

exigiu a reparação) poderá, segundo pensamos, ser relevante por constituir um

“inconveniente grave” para o comprador, pelo que permitirá a este, seja exigir a

911 Note-se, para além disso, que a substituição implica a devolução pelo consumidor ao vendedor do bem já usado, que este só poderá

posteriormente revender como bem usado. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by

the Party in Breach”, cit., p. 132. Assim, sobretudo quando estão em causa bens de elevado valor, a substituição será, em regra, uma

solução desproporcionada. Supondo, por exemplo, que o consumidor compra uma sofisticada câmara de filmar e que esta se revela

defeituosa mas suscetível de reparação. A substituição, neste caso, deixaria o vendedor com o bem original defeituoso, que, embora seja

suscetível de reparação, nunca mais poderá ser vendido como novo. Não podemos esquecer, como observa Grundmann, que o facto de a

escolha caber ao comprador dá a este um meio para pressionar o vendedor para que repare o bem dentro de um prazo razoável e sem

grave inconveniente para o consumidor. Isto significa que o comprador pode ter o direito a escolher a solução, mas que o vendedor tem

uma segunda oportunidade de cumprir da forma que for menos dispendiosa para ele – cfr. “Regulating Breach of Contract – The Right

to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 133. 912 Neste sentido, v. STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”,

cit., p. 133 913 Como observa Grundmann, a vantagem do critério da desproporcionalidade é que permite à lei adaptar-se à estrutura de custos de

cada mercado individual – cfr. “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 133. 914 Como refere Paulo Mota Pinto, no art. 3.º, n.º 4 , da Proposta alterada podia ler-se que “o comprador não é obrigado a aceitar a

reparação se isso implicar a desvalorização do bem, podendo neste caso reclamar a sua substituição”. A referência à desvalorização foi,

porém, eliminada na posição comum. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 263.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

321

substituição da coisa, seja, nos termos do n.º 5 do art. 3.º, exercer os remédios situados no

segundo nível da hierarquia, ou seja, a redução do preço ou a “rescisão” do contrato915.

5.4. Poderá o vendedor recusar o único remédio possível, dentro do primeiro nível

da hierarquia com fundamento na falta de proporcionalidade?

Nos termos do n.º 3 do art. 3.º da Diretiva cabe ao consumidor optar entre a

reparação e a substituição, “a menos que isso seja impossível ou desproporcionado”. A

impossibilidade e a desproporcionalidade constituem, neste sentido, limites à faculdade de

escolha do consumidor. Poderá questionar-se se a relevância da desproporção deve cingir-

se à relação entre os direitos à reparação e à substituição ou se o critério da

desproporcionalidade pode ser invocado pelo vendedor para confinar o consumidor aos

direitos previstos no n.º 5 do art. 3.º, ou seja, à redução do preço ou à rescisão do

contrato916.

O TJUE, no Acórdão de 16 de junho de 2011, decidiu que, na eventualidade de

apenas ser possível um dos remédios consagrados no primeiro nível da hierarquia, no caso,

a substituição, o vendedor não pode recusar o único remédio possível com fundamento na

falta de proporcionalidade. Como se pode ler no acórdão: “O art. 3.º, n.º 3, da Diretiva

1999/44 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional

confira ao vendedor o direito de recusar a substituição de um bem não conforme, único

modo possível de ressarcimento, pelo facto de esta lhe impor, devido à obrigação de

proceder à remoção deste bem do local onde foi instalado e de aí instalar o bem de

substituição, custos desproporcionados em relação ao valor que o bem teria se fosse

conforme e à importância da falta de conformidade. Todavia, esta disposição não se opõe a

915 Neste sentido, v. P. MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 263. Note-se, contudo, que a

opção pela substituição da coisa está sempre condicionada à sua não desproporcionalidade e que esta se presume nos termos do n.º 3, 2.º

§, do art. 3.º, quando acarretar custos para o vendedor que não sejam razoáveis. 916 Defendendo que a relevância da desproporcionalidade se restringe apenas à relação entre os direitos de substituição e de reparação, v.

MÁRIO TENREIRO/SOLEDAD GÓMEZ, “La directive 1999/44/CE sur certains aspects de la vente et des garanties des biens de

consommation”, cit., pp. 5 a 39, p. 23. Os Autores invocam vários argumentos interpretativos: literal (o art. 3.º, n.º 3, 2.ª frase, refere

custos “em comparação com a outra solução”); sistemático (a proporcionalidade é tratada no n.º 3, e não no n.º 5) e teleológico (o

critério da desproporção é uma forma de evitar um abuso pelo consumidor na escolha entre dois meios que visam um mesmo objetivo,

enquanto os direitos previstos no n.º 5 conduzem a um resultado diverso). No mesmo sentido, v., entre nós, PAULO MOTA PINTO,

“Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 262, nota 147. Em sentido contrário, v. STEFAN GRUNDMANN,

“Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., p. 298; GIOVANNI CRISTOFARO, in

L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, cit., pp. 206 e segs.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

que o direito do consumidor ao reembolso das despesas de remoção do bem defeituoso e

de instalação do bem de substituição seja, em tal caso, limitado à tomada a cargo, pelo

vendedor, de um montante proporcionado.”.

Isto significa que o n.º 5 do art. 3.º da Diretiva, na parte em que prevê que o

consumidor pode exigir uma redução adequada do preço ou a rescisão do contrato se não

tiver direito à reparação ou à substituição (1.º travessão), apenas será aplicável se estas

duas soluções forem “impossíveis”, não se permitindo uma avaliação da desproporção

entre os dois direitos, por confronto com a redução do preço ou a rescisão do contrato917.

5.4.1. O Acórdão do TJUE de 16 de junho de 2011 (Weber e Putz)

No Acórdão de 16 de junho de 2011 o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a

questão de saber se em caso de exercício pelo consumidor do direito à substituição o

vendedor está obrigado a proceder à remoção do bem que o consumidor instalou de boa-fé,

para aí instalar o bem de substituição, ou a suportar as despesas atinentes a essa remoção,

mesmo não fazendo a referida instalação parte do contrato de compra e venda.

Os factos constantes dos dois processos sobre os quais o Tribunal de Justiça foi

chamado a pronunciar-se eram os seguintes:

Processo C-65/09 (Gebr. Weber Gmbh contra Jürgen Wittmer)

J. Wittmer e Gebr. Weber celebraram um contrato de compra e venda de mosaicos

polidos pelo preço de 1382, 27 euros. Após J. Wittmer ter aplicado cerca de dois terços dos

mosaicos na sua casa, constatou a presença nesses mosaicos de manchas escuras visíveis a

olho nu. Depois de ter apresentado uma reclamação que a Gebr. Weber rejeitou, J. Wittmer

iniciou um processo de produção de prova autónomo, tendo o perito designado concluído

917 Neste sentido, v. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 261. Note-se, porém, que a

Diretiva não define esta impossibilidade. Segundo Paulo Mota Pinto, há de tratar-se, sob pena de esvaziamento da precedência dos

direitos à substituição e à reparação, de uma impossibilidade objetiva e não apenas subjetiva. No mesmo sentido, v. GIOVANNI

CRISTOFARO, in L’attuazione dela Direttiva 99/44/CE in Italia e in Europa, cit., pp. 202 e segs. Assim sendo, se não for possível ao

vendedor reparar o bem por não ter os conhecimentos para tal, deverá mandá-lo fazer por outrem. E se não tiver outro bem para oferecer

em substituição, está obrigado a consegui-lo desde que exista no mercado. Já não será assim se a reparação não for de todo possível, ou

se se tratar de uma peça única que já não existe no mercado.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

323

que as referidas marcas escuras constituíam vestígios finos de micropolimento impossíveis

de remover, pelo que a substituição integral dos mosaicos constituía o único modo possível

de ressarcimento.

J. Wittmer intentou pois uma ação contra Gebr. Weber no Landgericht Kassel, a fim

de obter o fornecimento de mosaicos isentos de defeitos e o pagamento da quantia de

5830,57 euros. Esse órgão jurisdicional condenou a Gebr. Weber no pagamento da quantia

de 273,10 euros, a título de redução do preço de compra e julgou a ação improcedente

quanto ao mais. J. Wittmer interpôs recurso da decisão, tendo o Oberlandesgericht

Frankfurt condenado a Gebr. Weber no fornecimento de novos mosaicos, isentos de

defeitos, e no pagamento a J. Wittmer da quantia de 2122,37 euros para o levantamento e a

remoção dos mosaicos defeituosos. Desta decisão, Gebr. Weber interpôs recurso para o

Bundesgerichtshof, o qual indica que “a sua decisão depende da questão de saber se foi

corretamente que o órgão jurisdicional de recurso concluiu que J. Wittmer podia exigir o

reembolso dos custos da remoção dos mosaicos defeituosos”.

O Bundesgerichtshof entendeu que, uma vez que ao abrigo da lei alemã (§ 439/3 do

BGB) J. Wittmer não tem direito a este reembolso, a resposta a esta questão dependia da

interpretação do art. 3.º, n.os 2 e 3, § 3.º, da Diretiva, em conformidade com a qual haveria

de se interpretar o § 439 do BGB e considerou ainda que não seria necessário decidir esta

questão se a Gebr. Weber puder licitamente recusar o reembolso dos custos de remoção

dos mosaicos defeituosos devido ao facto de esses custos serem desproporcionados. O §

439/3 do BGB permite que o vendedor recuse a forma do cumprimento sucessivo

escolhida pelo comprador não apenas quando este modo de cumprimento lhe impuser

custos desproporcionados em comparação com o outro modo de cumprimento

(“desproporção relativa”) mas também quando o custo do modo escolhido pelo comprador,

mesmo quando constitua o único modo possível, for intrinsecamente desproporcionado

(“desproporção absoluta”). No caso concreto, o pedido de substituição dos mosaicos

constituiria um tal caso de “desproporção absoluta” pois implicaria que a G. Weber

suportasse para além do custo do fornecimento de novos mosaicos, estimado em 1200

euros, os custos relativos à remoção dos mosaicos defeituosos no valor de 2100 euros, ou

seja, um montante total de 3300 euros, que excede o limiar de 150% do valor do bem

isento de defeitos.

O Bundesgerichtshof, apesar de entender que o § 439/3 do BGB pode ser

incompatível com a Diretiva, já que o art. 3.º, n.º 3, parece referir-se apenas à desproporção

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relativa, considerou que não está excluído que uma recusa assente na desproporção

absoluta possa ser abrangida pelo âmbito do conceito de “impossibilidade”, utilizado no

mesmo preceito, desde que se entenda que neste conceito não cabem unicamente os casos

de impossibilidade física mas também aquele em que do ponto de vista económico é

absurdo impor ao vendedor o cumprimento ainda que retardado.

Processo C-87/09 (Ingrid Putz contra Medianess Electronics GmbH)

Neste segundo processo estava em causa um contrato de compra e venda, celebrado

entre I. Putz e Medianess Electronics, através de Internet, de uma máquina de lavar loiça

nova pelo preço de 367 euros, acrescido das despesas de entrega num montante de 9,52

euros. O bem foi entregue à porta do domicílio de I. Putz como tinha sido acordado, tendo

I. Putz instalado em sua casa a máquina de lavar loiça. Depois de instalada a máquina, I.

Putz verificou que a mesma tinha um defeito, não atribuível às operações de instalação do

aparelho e que a reparação era impossível. Tendo as partes acordado na substituição do

aparelho, I. Putz exigiu que a Medianess Electronics não só entregasse uma nova máquina

de lavar loiça mas que processe igualmente à remoção do aparelho defeituoso e instalasse

o aparelho de substituição ou suportasse os custos da remoção e da nova instalação, o que

esta sociedade recusou. Perante esta recusa, I. Putz exerceu o direito de rescisão do

contrato de compra e venda, tendo consequentemente demandado a Medianess Electronics

para obter o reembolso do preço de venda contra a restituição da máquina de lavar loiça

defeituosa.

O Tribunal considerou que, de acordo com o Direito alemão, I. Putz só poderia

resolver o contrato, depois de ter previamente fixado à Medianess Electronics um prazo

suplementar para cumprir (por via da Nacherfüllung) através da reparação ou da

substituição918. Por conseguinte, o Tribunal entendeu que era necessário para a solução do

litígio saber se I. Putz tinha o direito de exigir que a Medianess Electronics procedesse à

remoção do aparelho defeituoso e instalasse o novo aparelho ou tomasse a seu cargo as

918 O atual n.º 1 do § 323 do BGB determina que “[s]e o devedor de uma obrigação emergente de contrato sinalagmático não a cumprir,

ou não a cumprir em conformidade com o contrato, o credor pode resolver esse contrato, se fixou um prazo razoável para que o devedor

efetuasse a prestação em falta, sem que este o fizesse”. Estabelece-se, pois, a necessidade de conceder ao devedor um prazo adicional

para cumprir (“Nachfrist”), antes de o credor poder exercer o direito subjetivo propriamente dito a uma indemnização substitutiva da

prestação – § 282 – ou o direito potestativo de resolução do contrato bilateral.

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325

despesas correspondentes a estas operações. Nestes termos, o Amtsgericht Schorndorf

suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

“1) As disposições do art. 3.º, n.os 2 e 3, terceiro parágrafo, da diretiva [...] devem ser

interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que prevê que o

vendedor, em caso de reposição do bem de consumo em conformidade com o contrato, por

meio da sua substituição, não tem de suportar as despesas de instalação do bem de

substituição no local onde o consumidor instalou o bem de consumo não conforme ao

contrato em consonância com a sua natureza e o fim a que se destina, quando a instalação

não fosse originalmente devida nos termos do contrato?

2) As disposições do art. 3.º, n.os 2 e 3, terceiro parágrafo, da diretiva [...] devem ser

interpretadas no sentido de que o vendedor, em caso de reposição do bem de consumo em

conformidade com o contrato, por meio da sua substituição, deve suportar as despesas de

remoção do bem de consumo não conforme do local onde o consumidor instalou o bem de

consumo em consonância com a sua natureza e o fim a que se destina?”919

A decisão do Tribunal de Justiça

A primeira questão sobre a qual se pronunciou o TJUE prende-se com o alcance da

obrigação de substituição do bem não conforme que resulta do art. 3.º, n.º 3, da Diretiva

1999/44/CE e consistia em saber se o vendedor está obrigado a proceder ele próprio à

remoção deste bem do local em que foi instalado e a aí instalar o bem de substituição ou a

suportar as despesas referentes a esta remoção e à instalação do bem de substituição,

apesar de o contrato de compra e venda não prever a obrigação de o vendedor instalar o

bem de consumo comprado inicialmente920.

919 V. Acórdão do TJUE de 16 de janeiro de 2011, ponto [32], disponível in http://eur-lex.europa.eu. 920 Pode ler-se no ponto [41] do acórdão em análise que, no entender da G. Weber e dos Governos alemão, belga e austríaco, as questões

referidas deviam merecer uma resposta negativa, por, em seu entender, o termo “substituição” empregado no art. 3.º, n.º 2, 1.º §, da

Diretiva visar unicamente a entrega de um bem conforme com o contrato de compra e venda não podendo este artigo, por conseguinte,

impor ao vendedor obrigações não previstas nesse contrato. Argumentavam ainda que as obrigações de remoção do bem defeituoso e de

instalação de um bem de substituição também não decorrem do art. 3.º, n.os 3 e 4, nos termos dos quais a substituição deve ser feita

“sem encargos” e “sem grave inconveniente para o consumidor”. No seu entender, estas condições prendem-se unicamente com a

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O TJUE respondeu afirmativamente a esta questão.

Salientou o órgão jurisdicional que o fim prosseguido pelo art. 3.º, n.os 3 e 4, da

Diretiva 1999/44/CE é o de garantir que o consumidor não suporte nenhuma despesa com

a reparação ou a substituição do bem não conforme e que esta gratuitidade constitui um

elemento essencial da proteção assegurada ao consumidor pela Diretiva921.

O Tribunal entendeu, ainda, que a circunstância de o bem não conforme não ser

removido e de o bem de substituição não ser instalado pelo vendedor pode constituir um

“grave inconveniente para o consumidor”, designadamente em situações como as que estão

em causa nos processos principais, nas quais, a fim de poder ser utilizado em

conformidade com o seu destino habitual, o bem de substituição deve começar por ser

instalado, o que requer a prévia remoção do bem não conforme. De resto, o art. 3.º, n.º 3,

3.º §, dispõe explicitamente que se deve ter em conta “a natureza do bem e o fim a que o

consumidor o destina”.

O Acórdão do TJUE de 16 de junho de 2001, que já referimos, ilustra bem o alcance

da proteção que o direito à reposição da conformidade confere ao consumidor. Através da

consagração deste direito o legislador comunitário visa garantir ao consumidor uma

proteção efetiva.

Esta proteção efetiva traduzir-se-ia em considerar que o exercício do direito à

substituição impõe ao vendedor a obrigação de remover o bem do local onde foi instalado

e de aí instalar o bem de substituição ou, não sendo o vendedor a proceder à remoção do

bem e a instalar o bem de substituição, a obrigação do vendedor de suportar as despesas

inerentes a essa remoção e instalação. O Tribunal de Justiça entendeu que o direito à

reparação e à substituição visam “repor a situação que existiria se o vendedor tivesse

entregue inicialmente um bem conforme com o contrato”.

entrega do bem de substituição e não visam impor ao vendedor obrigações que excedem o previsto no contrato nem proteger o

consumidor contra as despesas e os inconvenientes que resultam da utilização que fez, sob a sua própria responsabilidade, do bem não

conforme. Por conseguinte, acrescentam, “os danos sofridos em razão da instalação do bem defeituoso pelo consumidor não entram no

âmbito de aplicação da diretiva, mas devem, eventualmente, ser reclamados com base no direito nacional aplicável em matéria de

responsabilidade contratual”. 921 O Tribunal de Justiça faz uma referência ao Acórdão de 17 de abril de 2008 (Quelle, proc. C-404/06), no qual se salienta que a

gratuitidade desta obrigação do vendedor visa proteger o consumidor contra o risco de encargos financeiros que o poderiam dissuadir de

exercer os seus direitos caso essa proteção não existisse (v. Acórdão Quelle, de 17 de abril de 2008, proc. C-404/06, Colect., p. I-2685,

n.os 33 e 34).

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

327

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça considerou que o art. 3.º, n.º 3, da Diretiva

deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o vendedor possa, ao abrigo do

direito nacional, recusar a substituição do bem não conforme, único modo possível de

ressarcimento, pelo motivo de esta substituição lhe impor, devido à obrigação de proceder

à remoção desse bem do local onde foi instalado e de aí instalar o bem de substituição,

despesas desproporcionadas em relação ao valor que o bem teria se fosse conforme e à

importância da falta de conformidade. Ou seja, considerou que o art. 3.º, n.º 3, 2.º §, da

Diretiva se refere unicamente à desproporção relativa. O objetivo da dita disposição

consiste em evitar que o consumidor possa abusar dos seus direitos, exigindo do vendedor

um modo de reposição da conformidade, quando o outro seria menos oneroso para o

vendedor e conduziria ao mesmo resultado. Ora, enquanto os dois modos de reposição da

conformidade visam garantir os mesmos interesses do consumidor, a saber, a execução das

obrigações contratuais e a possibilidade de dispor de um bem conforme, os meios

subsidiários, que consistem na redução do preço ou na rescisão do contrato, não permitem

preservar estes mesmos interesses.

Se o vendedor pudesse recusar o único modo de ressarcimento possível devido à sua

desproporção absoluta, o consumidor só disporia dos meios subsidiários, contrariamente à

economia do referido art. 3.º, que dá prioridade à manutenção da reciprocidade das

obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, e à finalidade da Diretiva, que

consiste em assegurar um elevado nível de proteção do consumidor922.

Perante esta decisão suscita dúvidas a questão de saber se o direito à reposição da

conformidade constitui uma forma de cumprimento in natura ou de reparação em espécie.

Se é verdade que, entre nós, a reparação em espécie é uma forma de ressarcimento

do dano, na sua forma primordial, e que, por isso, contrariamente ao cumprimento in

natura, está dependente dos pressupostos inerentes a um juízo de responsabilidade, não é

menos verdade que para o Tribunal de Justiça, a obrigação de o vendedor remover o bem

922 Esta escolha efetuada pelo legislador da União no art. 3.º, n.º 3, 2.º §, da Diretiva decorre do facto de a diretiva privilegiar, no

interesse das duas partes no contrato, a execução deste último, através dos dois modos de ressarcimento previstos em primeiro lugar,

relativamente à anulação do contrato ou à redução do preço de venda. Esta escolha explica-se ainda pela circunstância de, geralmente,

estes dois últimos meios subsidiários não permitirem assegurar o mesmo nível de proteção do consumidor que a reposição da

conformidade do bem. No entanto, não está excluído que certos casos extremos, nos quais o único modo possível implica um custo

largamente desproporcionado em relação ao interesse do consumidor em ser ressarcido, constituam casos de impossibilidade, na aceção

do art. 3.º, n.º 3, 1.º §, da Diretiva.

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não conforme do local onde foi instalado ou, em alternativa, suportar as despesas inerentes

a essa remoção não está dependente da existência de culpa por parte do vendedor. Como

refere o Tribunal, tendo o vendedor entregue ao consumidor um bem não conforme, este

não executou corretamente a obrigação a que se tinha comprometido através do contrato de

compra e venda e deve, assim, assumir as consequências da má execução do contrato. Não

tendo nenhuma das partes atuado de forma incorreta, o Tribunal de Justiça entendeu que se

justifica “pôr a cargo do vendedor as despesas de remoção do bem não conforme e de

instalação do bem de substituição, uma vez que estas despesas suplementares, por um lado,

teriam sido evitadas se o vendedor tivesse desde o início executado corretamente as suas

obrigações contratuais e, por outro, são agora necessárias para repor o bem em

conformidade”923.

Por outro lado, o Tribunal considerou que não sendo o vendedor a proceder à

remoção do bem, embora esteja obrigado a suportar as despesas inerentes a essa remoção e

à instalação do bem de substituição, o art. 3.º, n.º 3, da Diretiva não se opõe a que o direito

do consumidor ao reembolso dessas despesas seja, se necessário, limitado a um montante

proporcional ao valor que o bem teria se fosse conforme e à importância da falta de

conformidade924.

Neste caso, tendo o consumidor de suportar uma parte das despesas, entendeu o

Tribunal que deve ser dada ao consumidor a possibilidade de exigir, em vez da substituição

do bem não conforme, uma redução adequada do preço ou a rescisão do contrato, com

fundamento em que para o consumidor “o facto de só poder obter a conformidade do bem

suportando uma parte das despesas constitui um grave inconveniente”.

923 O Tribunal de Justiça entendeu que, apesar de o vendedor ter de proceder ele próprio a esta remoção ou arcar com os respetivos

custos, independentemente de culpa, não significa que os seus interesses financeiros não estejam protegidos. Estes interesses do

vendedor ficariam protegidos não apenas pelo prazo de prescrição de dois anos previsto no art. 5.º, n.º 1, da Diretiva, mas também pelo

seu direito de regresso, previsto no art. 4.º do diploma comunitário, contra a pessoa ou pessoas responsáveis da mesma cadeia contratual.

Este direito de regresso seria, assim, uma forma de compensar o vendedor pela sua responsabilidade objetiva. O art. 3.º visa estabelecer

um justo equilíbrio entre os interesses do consumidor e os do vendedor, garantindo ao primeiro, enquanto parte débil no contrato, uma

proteção completa e eficaz contra uma má execução pelo vendedor das suas obrigações contratuais, permitindo simultaneamente atender

a considerações de ordem económica invocadas por este último. 924 Ao examinar se o valor destas despesas deve ser limitado, o órgão jurisdicional nacional deve ter em conta, por um lado, o valor que

o bem teria se fosse conforme e a importância da falta de conformidade, bem como, por outro lado, a finalidade da Diretiva, que consiste

em garantir um elevado nível de proteção aos consumidores. Assim, a possibilidade de proceder a tal redução não pode ter como

consequência esvaziar, na prática, a substância do direito do consumidor ao reembolso destas despesas nos casos em que instalou, de

boa-fé, o bem defeituoso em conformidade com a sua natureza e o fim a que se destina antes do aparecimento do defeito.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

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6. Os direitos consagrados no segundo nível da hierarquia

Os direitos consagrados no segundo nível da hierarquia não visam a satisfação in

natura do interesse primário do credor, mas pressupõem antes que esta satisfação não seja

possível no caso concreto. Aquilo que o credor obtém, seja através da redução do preço,

seja através da resolução do contrato, não é a vantagem bem determinada e por si esperada,

finalidade e razão de ser da própria obrigação, mas algo que será sempre um sucedâneo

imperfeito do cumprimento. A isto acresce que, na perspetiva do consumidor a quem o

vendedor entregou bens não conformes com o contrato, não será indiferente ficar com os

bens defeituosos, ainda que por um preço inferior – o que resultaria do exercício do direito

à redução do preço –, ou desvincular-se do contrato, podendo consequentemente obter a

restituição do preço por si pago – o que resultaria do exercício do direito à resolução do

contrato925.

Isto significa que, neste nível da hierarquia, o peso a atribuir aos interesses

económicos do vendedor, na ponderação de um justo equilíbrio, não poderá seguramente

ser o mesmo, devendo, ao invés, considerar-se preponderantes os interesses do

consumidor926.

6.1. A transição do primeiro para o segundo degrau da hierarquia

Nos termos do art. 3.º, n.º 5, da Diretiva, o consumidor pode exigir uma redução

adequada do preço ou a rescisão do contrato:

– Se o consumidor não tiver direito a reparação nem a substituição, ou

– Se o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável, ou

– Se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o

consumidor.

925 Neste nível, o direito de escolha do consumidor não poderá ser virtualmente reduzido a zero em nome do interesse do vendedor em

minimizar os seus custos. Pelo contrário, aqui os interesses do credor são preponderantes e só devem ceder em nome do interesse do

vendedor em minimizar os seus custos, se claramente forem de menor importância. 926 STEFAN GRUNDMANN, “Regulating Breach of Contract – The Right to Reject Performance by the Party in Breach”, cit., 128

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6.1.1. O princípio das duas oportunidades

A transição do primeiro para o segundo degrau da hierarquia é regulada pelo art. 3.º,

n.os 5 e 6, da Diretiva927. Aquilo que resulta destas normas é que os direitos de segundo

grau só podem ser exercidos depois de ter expirado um adicional e razoável período de

tempo, destinado a dar ao vendedor inadimplente uma segunda oportunidade de cumprir,

antes de o consumidor poder exercer o direito à redução do preço e o direito à rescisão do

contrato.

A concessão ao devedor inadimplente de um adicional e razoável período de tempo,

consubstancia-se no chamado “princípio das duas oportunidades”, mecanismo do prazo

suplementar ou mecanismo “Nachfrist”, utilizando a terminologia da doutrina alemã. Este

princípio, que desempenha um papel fundamental na ordem hierárquica estabelecida pelo

legislador comunitário, é também a peça central do novo direito alemão da compra e

venda928, encontrando-se, ainda, consagrado em muitos ordenamentos jurídicos nacionais,

sistemas de direito uniforme – como é o caso da Convenção de Viena de 1980 –, e textos

de Direito Europeu, como é o caso dos PECL e dos Princípios UNIDROIT.

De uma forma geral, todos os sistemas que consagram o “princípio das duas

oportunidades” assentam numa diferenciação entre incumprimentos essenciais (em que a

prestação já não é possível ou é inútil, do ponto de vista da satisfação do interesse do

credor) em que o credor pode exercer imediatamente o direito potestativo de resolução do

contrato, e incumprimentos não essenciais (em que a prestação ainda é possível e útil) em

que se prevê a necessidade de dar ao devedor uma segunda oportunidade para cumprir,

como requisito para o credor poder exigir a indemnização ou exercer o direito potestativo

de resolução.

Neste último caso, em que a prestação ainda é possível e útil, o “princípio das duas

oportunidades permite alcançar um justo equilíbrio entre o interesse do devedor em

cumprir e o interesse do credor em desvincular-se do contrato, exercendo o direito

potestativo de resolução. Este princípio apresenta vantagens para ambas as partes: para o

credor, porque lhe permite exercer o direito potestativo de resolução do contrato, mesmo

927 Na lei alemã, a transição de um nível para outro é regulada pelos §§ 323 e 437/2, 440 do BGB, e no que respeita à indemnização

substitutiva da prestação pelo § 281 do BGB. 928 (§§ 437/2, 323 do BGB).

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

331

nos casos em que o cumprimento posterior ainda é possível, e porque lhe confere um

instrumento de pressão sobre o devedor; para o devedor, pela certeza e pela segurança que

lhe proporciona – o devedor sabe que se não cumprir à primeira poderá, ainda, cumprir à

segunda e tem a garantia de que enquanto aquele prazo adicional não terminar, o credor

não poderá exercer o direito de resolução do contrato (a não ser que no decurso desse

prazo o devedor declare, de forma definitiva e categórica, que não cumprirá).

Já nos casos em que a prestação já não é possível ou é inútil, o interesse do credor

em desvincular-se do contrato, exercendo o direito potestativo de resolução, é claramente

preponderante, razão pela qual faz sentido admitir que este possa resolver imediatamente o

contrato, sem ter de dar ao devedor uma segunda oportunidade para cumprir.

6.1.2. O “princípio das duas oportunidades” ou mecanismo “Nachfrist” no

Código Civil alemão

A Diretiva 1999/44/CE esteve, como já referimos, na génese da reforma do Código

Civil alemão de 2001/2002. O legislador alemão, aproveitou a necessidade de transposição

do diploma comunitário para reformar todo o direito da compra e venda e, em geral, todo o

regime das perturbações da prestação. O regime da compra e venda de bens de consumo,

consagrado na Diretiva 1999/44/CE, passou a ser o regime aplicável a toda a compra e

venda e, em geral, a todo o regime das perturbações da prestação.

A consagração, no Código Civil alemão Reformado, de uma conceção unitária de

incumprimento, nos termos da Diretiva 1999/44/CE, conduziu ao abandono da anterior

dicotomia impossibilidade/mora, na qual assentava o enquadramento sistemático do

regime das perturbações da prestação. Em conformidade, o regime da resolução do

contrato bilateral sinalagmático, também ele assente naquela dicotomia, sofreu profundas

alterações929.

O (atual) n.º 1 do § 323 do BGB passou a estabelecer como ponto de partida, em

caso de incumprimento, a necessidade de conceder ao devedor um prazo adicional para

cumprir, antes de o credor poder exercer o direito subjetivo propriamente dito a uma

929 Sobre o ponto, v., entre nós, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA , Estudos sobre o Não Cumprimento das Obrigações, 2.ª ed., Almedina,

Coimbra, 2009, pp. 51 e segs.

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indemnização substitutiva da prestação – § 282 do BGB – ou o direito potestativo de

resolução do contrato bilateral – § 324 do BGB930.

Assim, por exemplo, no caso de compra e venda de coisa defeituosa, o direito civil

alemão dá ao comprador o direito de resolução do contrato sempre que o vendedor não

repare ou substitua a coisa dentro do prazo suplementar por aquele definido (§ 323/1 do

BGB)931.

No entanto, enquanto na Diretiva este prazo começa a correr automaticamente, o

BGB exige que este prazo seja fixado pelo credor932, embora já não se exija, ao contrário

do que resultava do § 326 (versão anterior) que a fixação do referido prazo seja

acompanhada de uma advertência de que o credor não aceitará a prestação fora de prazo

(Ablehnungsandrohung) 933. Isto significa que, no BGB reformado, decorrido o prazo

930 O atual n.º 1 do § 323 do BGB determina que “[s]e o devedor de uma obrigação emergente de contrato sinalagmático não a cumprir,

ou não a cumprir em conformidade com o contrato, o credor pode resolver esse contrato, se fixou um prazo razoável para que o devedor

efetuasse a prestação em falta, sem que este o fizesse”. 931 NUNO OLIVEIRA , Estudos sobre o Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 74. PETER ROTT, “German Sales Law Two Years”, cit.,

p. 249: de acordo com a lei alemã, o comprador pode resolver o contrato depois de ter sem sucesso fixado um prazo razoável para

segundo cumprimento, § 440/1 do BGB. Esta regra contém implicitamente a hierarquia de remédios prevista no art. 3.º da Diretiva. O

comprador não terá, porém, de fixar um prazo se o vendedor se recusar a cumprir ou se o vendedor rejeitar a substituição e a reparação

de acordo com o § 439, par. 3, do BGB, ou se a substituição e a reparação tiverem falhado ou forem inaceitáveis para o comprador. A

falha da reparação está claramente definida no § 440/2 do BGB: a reparação falhou depois de duas tentativas falhadas a não ser que

natureza do defeito ou das circunstâncias indiquem outra coisa. Esta regra parece ser bastante generosa para o vendedor. Talvez até

demasiado generosa quando comparada com o art. 3.º, n.º 3, da Diretiva. De facto, a opinião doutrinária a respeito da falha da reparação

segundo a Convenção de Viena aceita apenas uma tentativa por parte do vendedor. Alguns Autores duvidam mesmo que o § 439/3 esteja

de acordo com a Diretiva 1999/44/CE, tendo em conta que o art. 48.º da Convenção de Viena é usualmente interpretado como

permitindo apenas uma tal tentativa. 932 A referida obrigação de fixar um prazo razoável poderá ser a segunda deficiência da implementação alemã da Diretiva a respeito dos

remédios, uma vez que a Diretiva 1999/44/CE estabelece que tal prazo existe mesmo sem notificação. Foi defendido que esta regra não

viola a Diretiva uma vez que a desvantagem de ter de fixar um prazo é compensada pela vantagem da certeza jurídica. Outros encontram

compensação numa interpretação do § 440 do BGB à luz do art. 3.º da Diretiva: a substituição ou a reparação que se prolonguem por

muito tempo podem ser consideradas como falhadas mesmo na ausência de fixação de um prazo. Esta solução, contudo, parece ser

muito incerta para o consumidor. Cfr. PETER ROTT, “German Sales Law Two Years”, cit., p. 249. Em sentido contrário, defende Canaris

que, nos casos em que o prazo não é fixado pelo comprador, haverá que distinguir consoante esteja ou não em causa uma compra e

venda de bens de consumo. No âmbito dos contratos de compra e venda de bens de consumo, a necessidade de interpretar as normas de

direito interno em conformidade com a Diretiva impõe que se exclua que o comprador está obrigado a fixar um prazo razoável e que se

considere, pelo contrário, que no preciso momento em que seja declarada a resolução do contrato, inicie em qualquer caso a correr ipso

iure um “prazo razoável”. Ao invés, quando o contrato em causa não seja uma venda de bens de consumo, a omissão de fixação de um

prazo pelo comprador conduz, em regra, à falta de um pressuposto legal imprescindível para o válido exercício do direito de resolução

do contrato e importa, por isso, a ineficácia da declaração de resolução. Cfr. CLAUS-WILHEM CANARIS, “L’Attuazione in Germania

Della Direttiva Concernente La Vendita Di Beni Di Consumo, tradução de Giovanni Cristofaro”, cit., p. 243. 933 Este requisito, que se encontrava expressamente previsto no § 326 do BGB, versão anterior, e apresentava na prática importantes

inconvenientes para os credores que ignoravam a sua existência, considerou-se desnecessário. O devedor, a quem foi concedido um

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

333

adicional sem que o devedor tenha realizado a prestação em falta, o credor mantém a

faculdade de optar pelo cumprimento, pela indemnização ou pela resolução do contrato.

O § 323 contempla, ainda, determinados casos em que o credor pode resolver

imediatamente o contrato. Estes casos, que constituem exceções ao “princípio das duas

oportunidades” são: a recusa definitiva e séria de cumprimento, feita pelo devedor ao

credor (§ 323, n.º 2, alínea 1); os casos em que a prestação se torna inútil por perda de

interesse do credor na prestação, o que acontece quando a prestação não seja realizada

dentro do prazo ou termo essencial; os casos em que, atendendo às circunstâncias

concretas e à ponderação dos interesses de ambas as partes, se justifique a resolução

imediata934.

Em todos estes casos, o requisito da concessão de um prazo adicional ao devedor é

substituído por um aviso prévio (Abmanung)935.

7. O direito à redução do preço

O n.º 5 do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE atribui ao comprador o poder de exigir

uma “redução adequada do preço”. Trata-se aqui de um direito dirigido à restauração do

equilíbrio contratual, perturbado pela falta de conformidade do bem com o contrato e cujo

exercício está dependente da observância dos pressupostos objetivos de que depende o

exercício do direito à resolução do contrato. Assim, estando o direito à redução do preço

situado no segundo nível da hierarquia, será necessário que a reparação e a substituição da

coisa sejam impossíveis ou que o vendedor não tenha encontrado uma solução num prazo

razoável e sem grave inconveniente para o consumidor.

Nos termos da nossa lei civil, o direito à redução do preço está previsto quer no art.

911.º, n.º 1, constituindo um dos direitos do comprador em caso de venda de coisas

defeituosas, quer no n.º 1 do art. 793.º e no n.º 1 do art. 802.º, ambos aplicáveis por

prazo adicional para o cumprimento, deve ter consciência de que o decurso infrutuoso do mesmo pode acarretar graves consequências

para os seus interesses. Além disso, uma importante consequência da supressão deste requisito é que, decorrido o prazo adicional, sem

que o devedor tenha realizado a prestação em falta, o credor mantém a faculdade de optar pela ação de cumprimento, pela indemnização

ou pela resolução do contrato. 934 Esta última hipótese, que abrange os casos que, entre nós, só poderiam caber numa cláusula geral de resolução do contrato por

inexigibilidade de subsistência da relação contratual, afigura-se especialmente importante, como veremos, no âmbito das relações

contratuais duradouras, mas também pelo seu efeito “disciplinador”. 935 Em caso de impossibilidade haverá também um direito de resolução imediata do contrato, nos termos do § 326 do BGB.

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analogia às situações de impossibilidade qualitativa da prestação, e, portanto, ao

cumprimento imperfeito da prestação por parte do devedor de um contrato bilateral

sinalagmático.

O art. 911.º, n.º 1, do Código Civil prevê o direito do comprador – correspondente à

antiga actio quanti minoris – à redução do preço, requerendo-se aparentemente tão-só que

“as circunstâncias mostr[em] que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente

adquirido os bens, mas por preço inferior” (vontade hipotética do comprador), mas

preceituando-se que nesse caso “apenas lhe caberá o direito à redução do preço”. Isto

significa que, perante o Código Civil, o direito à redução do preço apresenta-se, pelo

menos formalmente, preclusivo dos restantes direitos do comprador, estando desde logo

excluída a anulabilidade, pelo menos por não se verificar um dos requisitos legais de

anulabilidade (a essencialidade do erro ou do dolo)936.

Nos termos do n.º 1 do art. 793.º e do n.º 1 do art. 802.º, aplicáveis indiretamente

(por analogia) aos casos de inexatidão qualitativa da prestação, o direito à redução do

preço só afasta o exercício do direito à resolução do contrato nos casos em que, não

existindo culpa por parte do devedor, o credor mostre que não tem justificadamente (isto é,

com fundamentos capazes de uma transparência objetiva) interesse na prestação parcial.

Perante a Diretiva 1999/44/CE e o diploma nacional de transposição, o concurso

entre o direito à redução do preço e o direito à resolução do contrato será sempre um

concurso eletivo, na medida em que, estando preenchidos os pressupostos que permitem o

exercício dos direitos situados no segundo nível da hierarquia, é o consumidor que sabe se

tem ou não interesse em ficar com o bem, podendo o interesse em ficar com o bem ser

determinado por parâmetros puramente subjetivos. Assim, a opção do credor está apenas

936 Na doutrina portuguesa discute-se o enquadramento e os requisitos da redução do preço. Assim, discute-se se os casos previstos no

art. 911.º entram na esfera do não cumprimento do contrato ou se, pelo contrário, constituem afloramentos do instituto da redução do

negócio jurídico e do erro incidental. Neste último sentido, v. JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Civil. Teoria Geral, vol. II, edição

revista em 1985, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1987, pp. 87 e 88. E quanto aos requisitos põe-se o

problema de saber se são exigíveis os requisitos de relevância do erro incidental e se a redução do preço pode ser afastada pela prova da

falta da correspondente vontade hipotética do comprador. Criticando que a redução do preço, estabelecida no art. 911.º, corresponda a

um afloramento do regime da redução dos negócios jurídicos, v. BAPTISTA MACHADO, “Acordo negocial e erro na venda de coisas

defeituosas”, cit., p. 85; CARNEIRO DA FRADA, “Erro e incumprimento na não-conformidade da coisa com o interesse do comprador”,

cit., p. 484; ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 361, afirmando que

não se pode considerar que o art. 911.º tenha emergido do regime da redução dos negócios jurídicos, “[p]elo contrário, é mais natural

que tenha sido este último regime a receber a influência da acção estimatória”.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

335

limitada pelos pressupostos das figuras em causa e pelas regras gerais, nomeadamente do

abuso do direito937.

A redução do preço opera, por analogia com o que se verifica em matéria de

resolução, por mera declaração de vontade, que sendo receptícia produz os seus efeitos a

partir do momento em que o responsável for notificado, por qualquer meio, daquela

exigência, não sendo, pois, necessária uma intervenção do tribunal para se tornar efetiva938.

Contrariamente ao que se passa com a dupla reparação/substituição, a escolha entre a

redução do preço ou a resolução do contrato corresponde a uma opção livre do credor que

está apenas limitada pelos pressupostos das figuras em causa e pelas regras gerais,

nomeadamente do abuso do direito939. Assim, só poderá haver redução do preço na

eventualidade de o consumidor estar disposto a ficar com a coisa defeituosa tal como ela se

apresenta, não podendo o vendedor impor a redução do preço, já que o interesse do

vendedor em ficar com o bem se determina por parâmetros puramente subjetivos940.

Os arts. 911.º e 1222.º consagram um regime especial cuja regra geral se apresenta

aflorada no art. 802.º, n.º 1, 2.ª parte. A redução do preço a pagar pode obter-se pela

diminuição do quantum a pagar ou pela exigência de devolução do que foi pago a mais941.

937 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 390. 938 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 358. 939 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 390. O Autor defende

que ainda que a exigência de redução do preço dependa do critério do respetivo credor e possa ser requerida mesmo que o defeito, em

razão da sua gravidade permita a resolução do contrato, “se o bem não tiver qualquer valor, não parece aceitável a admissibilidade de

uma redução total do preço, porquanto isso iria criar uma situação idêntica à da resolução do contrato, mas mais onerosa para o vendedor

ou para o empreiteiro, pois estes não tinham direito a reaver a prestação efectuada. Assim sendo, a redução do preço só se justifica se o

credor puder retirar qualquer utilidade do bem”. 940 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 358. O Autor considera

que esta situação é diferente da que respeita às pretensões de eliminação dos defeitos e de substituição da coisa. Aqui, “na medida em

que ambas sejam possíveis e satisfaçam igualmente o interesse do credor, a escolha cabe ao vendedor ou ao empreiteiro”, que sendo

profissionais naquele ramo poderão mais facilmente determinar da inviabilidade de qualquer desses meios jurídicos e apreciar qual é o

menos oneroso. Idem, p. 390. 941 V. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit., p. 362. Considerando que a

redução da contraprestação prevista no n.º 1 do art. 802.º como o equivalente funcional de uma resolução parcial, v. ASSUNÇÃO

CRISTAS, “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit., p. 254. Segundo a Autora, o

sentido que se pode retirar do art. 802.º, n.º 1, é o seguinte: “se o incumprimento for parcial e revestir escassa importância para o

interesse do credor este não pode resolver totalmente o contrato, mas pode mantê-lo em parte, ajustando a contraprestação”. No entanto,

observa Romano Martinez que contrariamente ao que se passa em caso de resolução do contrato, a redução do preço é devida, mesmo

quando a coisa se tenha perdido por caso fortuito ou por culpa do credor, pois ela não tem de ser devolvida. Em tais hipóteses poderá,

porém, suscitar-se o problema da prova do defeito – cfr. Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, cit.,

p. 362.

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A Diretiva não determina os termos em que a redução do preço deve ser efetuada,

referindo apenas uma “redução adequada”. Romano Martinez considera que a redução do

preço deverá ser determinada pela diferença entre o preço acordado e o valor objetivo da

coisa com defeito942. Trata-se de um sistema objetivo mas que se atém ao valor atribuído

pelas partes; no entanto, admite que, excepcionalmente, se se provar que há uma diferença

entre o preço acordado e o valor de mercado de idêntica coisa sem defeito, parece mais

justo adotar-se o critério que atenda à diferença entre o valor que a coisa entregue tinha no

momento da entrega e o valor que a coisa sem defeito teria tido naquele momento. Este

último é o critério consagrado na Convenção de Viena: o comprador pode exigir a redução

do preço, nos termos do art. 50.º, quer este tenha sido ou não já desembolsado, devendo

esta redução ser proporcional à diferença entre o valor que as mercadorias entregues

tinham no momento da entrega e o valor que as mercadorias conformes às referidas no

contrato teriam tido naquele momento.

8. O direito de resolução do contrato

Nos termos do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE, o consumidor pode ainda exigir a

“rescisão do contrato”, direito que só pode ser exercido subsidiariamente, se a reparação e

a substituição não forem possíveis, ou se não for encontrada pelo vendedor uma solução

num prazo razoável e sem grave inconveniente para o consumidor. Trata-se aqui de um

direito do comprador dirigido à destruição do contrato, apesar de existir uma diferença

entre a terminologia usada pela Diretiva – “rescisão” – e a terminologia utilizada pelo

nosso Código Civil – “resolução”943, estabelecendo-se, no Considerando 15 do diploma

comunitário, que “as disposições de pormenor mediante as quais a rescisão do contrato

942 Perante o Código Civil alemão Reformado, de acordo com os mesmos pressupostos segundo os quais é possível a rescisão do

contrato, o comprador pode declarar a redução do preço, direito este que se encontra previsto no § 441/1 do BGB. O comprador poderá

exercer este direito através de uma declaração unilateral. Se o comprador já tiver pago o preço mais elevado acordado pelas partes ele

poderá exigir a restituição da diferença, § 441/4 do BGB. No § 441/3 do BGB, o legislador alemão especificou como se calcula a

redução do preço. O preço da compra é reduzido na medida da diferença entre o valor que o bem sem defeitos poderia ter tido à data da

conclusão do contrato, e o valor atual do bem. Quando necessário, a redução do preço poderá ser estimada. V. PETER ROTT, “German

Sales Law Two Years”, cit., p. 250. 943 V. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, Almedina, Coimbra, 2005, p. 268.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

337

ganha efeito podem ser fixadas na legislação nacional”944. Do mesmo modo, a Diretiva não

regula os efeitos da rescisão do contrato, limitando-se a referir, no mencionado

Considerando, que “os Estados-Membros podem dispor no sentido de que qualquer

reembolso ao consumidor possa ser reduzido, de modo a ter em conta a utilização que o

consumidor fez dos produtos a partir do momento em que lhe foram entregues”. Isto quer

dizer que os efeitos da rescisão do contrato deverão também ser regulados pela legislação

nacional.

O DL n.º 67/2003, corretamente, na sequência da terminologia utilizada pela lei e

pela doutrina civilística nacional, alude à resolução do contrato. Nos termos do n.º 1 do art.

4.º do mencionado diploma, “[e]m caso de falta de conformidade dos bens com o contrato,

o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou

de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. O primeiro

aspeto a salientar prende-se com o facto de o nosso legislador, no caso da venda de bens de

consumo, apenas admitir como forma de extinção do contrato de compra e venda

resultante da entrega de coisa defeituosa a resolução do vínculo, o que se afigura coerente

com o facto de estar aqui em causa um remédio contra o incumprimento de uma obrigação

contratual, ou seja, da obrigação de entrega de bens em conformidade com o contrato,

ficando pois definitivamente afastada, no âmbito da venda de bens de consumo, a anulação

do contrato por erro (simples ou qualificado), aplicável à venda de coisas defeituosas por

força da remissão dos arts. 905.º e 913.º do Código Civil945.

944 Defende Paulo Mota Pinto que a configuração dogmática deste direito é assim deixada pela Diretiva às legislações dos Estados-

Membros. Assim, segundo o Autor, a configuração deste direito como direito de anulação ou como direito de resolução (equiparada nos

seus efeitos, pelo art. 433.º do Código Civil, à anulação) não é prejudicada pela Diretiva. V. PAULO MOTA PINTO, “Conformidade e

garantias na venda de bens de consumo”, cit., p. 264. Embora a expressão “rescisão” não seja utilizada pelo Código Civil e não costume

ser destacada pela doutrina como correspondendo a uma modalidade autónoma de cessação dos efeitos negociais, pensamos que o

referido direito de rescisão só poderá ser configurado dogmaticamente como direito de resolução e não de anulação. Com efeito, perante

a Diretiva o vendedor está obrigado a entregar bens conformes com o contrato. A conformidade faz inequivocamente parte do dever de

prestação a que o vendedor se encontra adstrito e a desconformidade consubstancia inequivocamente uma situação de não cumprimento

pelo que não se justificaria conceder ao comprador um direito de anulação, que é por natureza um contra-direito, mas sim um direito de

resolução. 945 Como observa Brandão Proença, “[a] hipótese típica resolutiva é, assim, aquela que se prende com o incumprimento por um dos

contraentes de obrigações relevantes integradas num contrato bilateral” – cfr. Lições de cumprimento e não cumprimento das

obrigações, cit., p. 287. Note-se, porém, que, segundo ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e

na Empreitada, cit., p. 266, este direito de anulação é um direito de resolução. Como defende o Autor, sendo o fundamento deste direito

à “anulação” do contrato a violação do contrato, ou seja, o incumprimento, não faria sentido que o comprador tivesse de fazer a prova de

requisitos próprios de outros institutos. Assim, segundo o Autor, “[a] alusão, constante do art. 905.º, aos requisitos legais da

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De acordo com a estrutura hierarquizada, consagrada no art. 3.º da Diretiva

1999/44/CE, a rescisão do contrato surge como um remédio subsidiário, que o consumidor

apenas pode exercer, no caso de a reparação ou substituição não serem possíveis ou se o

vendedor não encontrar uma solução num prazo razoável e sem grave inconveniente para o

consumidor, prevendo, ainda, o n.º 6 do art. 3.º que “[o] consumidor não tem direito à

rescisão do contrato se a falta de conformidade for insignificante”. Neste caso, segundo o

diploma comunitário, o consumidor poderá exigir apenas a redução do preço.

O legislador português não transpôs os conceitos indeterminados da Diretiva,

limitando-se a prescrever, no n.º 5 do art. 4.º, que “[o] consumidor pode exercer qualquer

dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou

constituir abuso de direito, nos termos gerais”. Isto não significa, como já o referimos, que

o consumidor possa optar livremente pela resolução do contrato. Esta interpretação não

seria razoável porque a resolução será sempre a última solução e depende do

preenchimento de pressupostos idênticos àqueles que são exigidos pelo diploma

comunitário, desde logo, da existência de um não cumprimento definitivo e da gravidade

do defeito946.

Embora o Código Civil português não contemple explicitamente os casos de

cumprimento defeituoso, imperfeito ou inexato, a doutrina propõe-se integrar esta lacuna

mediante a aplicação dos arts. 802.º e 808.º do Código Civil947. O art. 802.º consagra o

regime da inexatidão quantitativa definitiva e determina que o credor tem a faculdade de

exigir a realização da prestação quantitativamente inexata, reduzindo proporcionalmente a

sua contraprestação ou de resolver o contrato. Esta norma aplica-se por analogia à

inexatidão qualitativa temporária ou transitória, devendo aqui conciliar-se com o disposto

no art. 808.º de forma a admitir-se a resolução do contrato, por aplicação do art. 802.º,

sempre que, mas só quando, haja um não cumprimento definitivo, ainda que parcial dos

anulabilidade, tem de ser interpretada no sentido de o comprador não poder invocar a anulação com base em defeito de que tenha, ou

pudesse ter tido, conhecimento, no momento da celebração do contrato”. Neste sentido, parece pronunciar-se o Acórdão da Relação de

Lisboa de 6 de dezembro de 1988 (in Colectânea de Jurisprudência, 1988, tomo V, p. 114). Com efeito, neste aresto – com base na ideia

de que enquanto o erro tem a sua origem no processo formativo da vontade, surgindo no momento da celebração do negócio, na venda

de coisas defeituosas o vício, em regra, verifica-se já na fase de execução do contrato – decidiu-se que a anulação por erro ou dolo,

referida nos arts. 905.º e 913.º do Código Civil, não se funda no erro, mas no contrato, pelo que o comprador não tem de provar os

requisitos gerais do erro, nem mesmo a existência deste vício da vontade, mas tão-só os defeitos da coisa comprada. 946 V. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 269. 947 BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 171.

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339

deveres de prestação: “o credor só pode recorrer [à resolução do contrato] depois de ter

operado a conversão da mora em incumprimento definitivo, nos termos e segundo o

processo indicados no art. 808.º”948.

Isto significa que, nos termos gerais, podendo os defeitos ser eliminados ou a

prestação substituída, o credor terá, nos termos do art. 808.º do Código Civil, de fixar ao

devedor um prazo adicional ou suplementar para este cumprir corretamente o seu dever,

eliminando os defeitos ou substituindo a prestação. Antes de este prazo adicional ou

suplementar terminar, o credor só poderá atuar o direito subjetivo propriamente dito ao

cumprimento949. Só depois de expirado este prazo infrutiferamente, ou seja, sem que o

devedor realize uma prestação qualitativamente exata, poderá o credor avançar para tutelas

mais radicais, como a redução do preço ou a resolução do contrato950.

8.1. O incumprimento como facto que fundamenta o direito de resolução – a

gravidade do incumprimento

Nas palavras de Brandão Proença, podemos definir a resolução “como o poder

unilateral de extinguir um contrato válido em virtude de circunstâncias (subjectivas e

948 Esta norma consagra o chamado princípio das duas oportunidades: o credor tem de fixar ao devedor (em mora) um prazo razoável

para que este cumpra. Só decorrido este prazo, sem que o devedor tenha cumprido, poderá o credor exercer o direito potestativo à

resolução do contrato. Nos casos em que o incumprimento não reveste a forma de impossibilidade (casos de mora, em que o

cumprimento posterior ainda é possível), o credor não goza de um direito de resolução imediata, mas terá de dar ao devedor em mora

uma segunda oportunidade para cumprir. O art. 808.º, n.º 1, 2.ª alternativa, consagra, porém, uma exceção ao princípio das duas

oportunidades. Trata-se do caso em que a prestação se torna inútil por perda (objetiva) do interesse do credor na prestação: “se o credor,

em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação”. Estão aqui em causa os casos em que a obrigação está sujeita a um

prazo ou termo essencial objetivo. Embora não se encontre expressamente prevista na lei, há uma outra exceção ao princípio das duas

oportunidades que consiste na recusa categórica, clara e definitiva de cumprimento. Neste caso seria inútil intimar para cumprir dentro

de um prazo adicional ou suplementar um devedor que já declarou definitivamente que não cumprirá. A alegação, por parte do devedor,

de que o credor não lhe concedeu uma segunda oportunidade, configuraria um abuso do direito. 949 V. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 813. 950 Decorrido o referido prazo fixado pelo credor, nos termos do art. 808.º, sem que o devedor tenha realizado uma prestação

qualitativamente exata, o credor poderá ainda exercer o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento, ou o direito subjetivo

propriamente dito à indemnização. V. NUNO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 813; CALVÃO DA SILVA ,

Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 247.

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objectivas) posteriores à sua conclusão e frustrantes do interesse de execução contratual ou

desequilibradoras da relação de equivalência económica entre as prestações”951.

Ao contrário dos restantes direitos previstos no art. 4.º do DL n.º 67/2003, que visam

a conservação do contrato, o direito de resolução é, entre nós, um direito potestativo que

permite uma desvinculação unilateral, dotada de uma eficácia, ora liberatória, ora

recuperatória952.

Embora o nosso legislador não tenha transposto o n.º 6 do art. 3.º da Diretiva, no qual

se afasta o direito à resolução do contrato se “a falta de conformidade for insignificante”,

isto não significa que, para efeitos do art. 4.º do diploma nacional, a resolução seja uma

medida tutelar completamente livre, já que o nosso legislador configurou o direito de

resolução como um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento, que se

traduz num incumprimento com certa gravidade.

Sendo o incumprimento contratual aferido pelo critério de conformidade ou

desconformidade entre a execução e o conteúdo do contrato, diremos, porém, que não

basta qualquer desvio ao programa negocial para fundar um direito de resolução. É, pois,

preciso que o incumprimento tenha suficiente gravidade (importância) para desencadear tal

efeito, devendo o interesse do credor servir como ponto de referência para apreciar a

gravidade ou importância do incumprimento capaz de fundar o direito de resolução, como

se pode inferir quer dos arts. 793.º, n.º 2, quer do art. 802.º, quer, ainda, do art. 808.º do

Código Civil953. A exigência de um incumprimento com determinada gravidade – que

esclarece a desnecessidade da transposição do n.º 6 do art. 3.º da Diretiva – está de acordo

com a finalidade do instituto da resolução (ultima ratio) e permite submeter a figura a um

controlo axiológico balizado pela boa-fé e, mais concretamente, “pelo abuso do seu

951 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 288, salientando que a resolução não se

destina a sancionar o contraente não fiel pelo fato de perder o direito ao cumprimento, mas surge “como efeito natural e típico da crise

do cumprimento das atribuições patrimoniais interdependentes”. 952 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 286. 953 Neste sentido, v. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 352, referindo que quanto ao modo

de graduar ou medir a gravidade da inexecução esta pode medir-se num primeiro momento pela extensão da inexecução: esta pode ser

total ou parcial, definitiva ou temporária, podendo ainda a inexecução parcial ser mais ou menos extensa quantitativa e qualitativamente,

e a inexecução temporária ser também maior ou menor, conforme for maior ou menor o atraso no cumprimento. Do mesmo modo, pode

a execução defeituosa ser mais ou menos defeituosa. Segundo Brandão Proença, a gravidade do incumprimento é apreciada, sobretudo,

em função da possível culpa, pela amplitude, pelas consequências ou reiteração da violação e, portanto, em função do todo da relação

contratual – cfr. Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 291.

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341

exercício perante um incumprimento insignificante, pouco prejudicial, ou alegando o

credor mera conveniência pessoal ou um aproveitamento das circunstâncias”954.

8.2. A exclusão da culpa enquanto pressuposto essencial da resolução

Os direitos conferidos ao consumidor pelo art. 3.º da Diretiva e pelo art. 4.º do DL

n.º 67/2003 não estão dependentes da existência de culpa por parte do vendedor. Assim, e

no que toca ao direito resolução, a culpa não constitui um pressuposto do referido direito,

bastando o facto objetivo da falta de conformidade do bem com o contrato, desde que esta

apresente certa gravidade ou, utilizando a terminologia da Diretiva, desde que esta não seja

insignificante. Perante o nosso Código Civil, a culpa, como resulta, desde logo, do art.

793.º, n.º 2, ou seja, o juízo de responsabilidade, também não constitui um pressuposto

essencial do direito de resolução955. Este basta-se com um juízo de incumprimento, ao

contrário do direito à indemnização, que, na responsabilidade contratual, repousa na

existência de culpa, ainda que presumida, do devedor (art. 799.º, n.º 1, do Código Civil).

Isto significa que a resolução, em si mesma, não tem, como a indemnização, o carácter de

uma sanção dirigida contra o inadimplente, mas, antes, o carácter de um remédio ou

expediente facultado ao credor que encontra a sua raíz no carácter sinalagmático da relação

contratual em causa956.

Isto não quer dizer que a culpa não possa ter, em concreto, de acordo com a nossa lei

civil, uma relevância decisiva neste domínio957. Isto mesmo resulta do confronto entre os

arts. 793.º, n.º 2, e 802.º, n.os 1 e 2. Nos termos do art. 793.º, n.º 2, sendo a impossibilidade

parcial não culposa, o credor apenas tem em princípio direito à redução da sua

contraprestação, só podendo recorrer ao remédio mais radical da resolução do contrato

mostrando que não tem, justificadamente (isto é, com fundamentos capazes de uma

transparência objetiva), interesse na prestação parcial958. Quer isto dizer que, no caso de

954 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 291. 955 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 347. A mesma conclusão pode ser confirmada

pela leitura dos arts. 1050.º, 1069.º, entre outros. 956 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 347. 957 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., pp. 347 e 348. 958 Cfr. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, cit., p. 348.

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impossibilidade parcial não culposa, a inexistência de interesse do credor no cumprimento

parcial é um pressuposto da faculdade resolutiva959.

Diversamente, se a impossibilidade parcial é culposa, o credor pode sempre, em

princípio, resolver o negócio; e só no caso de o incumprimento parcial, pelo facto de não

afetar ou afetar muito pouco o seu interesse, ter “escassa importância” é que terá de

contentar-se com o remédio da redução da sua contraprestação. Porque o devedor é, neste

caso, menos digno de tutela (dado que a ele é imputável a inexecução do contrato), o

direito de resolução tem apenas como limite a “escassa importância” do inadimplemento.

Podemos pois concluir que, de acordo com a nossa lei civil, no caso de

incumprimento não culposo, o credor só pode resolver o negócio se, não sendo os defeitos

da prestação eliminados ou a prestação substituída, a redução proporcional da sua

contraprestação também não for uma solução adequada por a prestação defeituosa não ser

adequada ao fim a que se destina, configurando-se, portanto, a existência de um concurso

consuntivo entre o direito à redução do preço e o direito à resolução do contrato.

Ao invés, sendo o incumprimento culposo, os referidos direitos encontram-se numa

relação de concurso eletivo, podendo o credor escolher entre a redução do preço ou a

resolução do contrato, tendo a resolução apenas como limite a “escassa importância” do

inadimplemento.

Nos termos do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE, a rescisão do contrato e a redução do

preço encontram-se numa relação de concorrência eletiva. Assim sucede também, nos

termos do art. 4.º do DL n.º 67/2003, pelo que, estando em causa uma venda de bens de

consumo, a culpa, ou seja, o juízo de responsabilidade, não é pressuposto do direito de

resolução, nem tem qualquer influência na configuração do concurso entre o direito à

redução do preço e o direito à resolução do contrato. Estes direitos, que podemos

considerar subsidiários por confronto com a dupla reparação/substituição, encontram-se

numa relação de concorrência eletiva, podendo o consumidor optar livremente por aquele

959 Isto mesmo resulta da necessidade de estabelecer um compromisso entre o interesse do credor na dissolução do vínculo contratual e o

interesse contraposto do devedor em cumprir o contrato e receber uma parte proporcional da remuneração acordada. Cfr. MARIA DE

LURDES PEREIRA, Conceito de Prestação e Destino da Contraprestação, cit., pp. 133 e 134, nota 344. A propósito do n.º 1 do art. 802.º,

considera Assunção Cristas que “nada obsta a considerar a redução da contraprestação prevista no n.º 1 [do art. 802.º] como o

equivalente funcional de uma resolução parcial. Assim, o sentido que se pode retirar do art. 802.º é o seguinte: se o incumprimento for

parcial e revestir escassa importância para o interesse do credor este não pode resolver totalmente o contrato, mas pode mantê-lo em

parte, ajustando a contraprestação” – v. “Incumprimento Contratual, O Código Civil Português e o DCFR – Notas Comparadas”, cit., p.

254.

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343

que considere mais adequado à satisfação do seu interesse, apenas com o limite, no que

toca ao direito de resolução, da “escassa importância” do inadimplemento.

8.3. Forma de exercício do direito de resolução

O nosso regime de resolução é essencialmente extrajudicial e declarativo, o que está

em sintonia com a necessidade da imediata tutela dos interesses do contraente que se

considera materialmente legitimado a resolver o contrato960. Para além disso, o exercício

do direito (legal ou convencional) por mera declaração voluntária unilateral e receptícia

corresponde às soluções adoptadas nos projetos europeus de harmonização do direito

contratual961. A manifestação unilateral de vontade deve ser inequívoca, irrevogável,

incondicionável, fundamentada e, em regra, manifesta-se sem particulares exigências

formais, podendo ser expressa ou não expressa962. Assim, poderá haver uma manifesta

vontade resolutiva na devolução de um bem que não possa ser reparado ou substituído.

8.4. Efeitos do exercício do direito de resolução

8.4.1. Efeito liberatório

A manifestação unilateral de vontade, através da qual se exerce o direito potestativo

de resolução do contrato, tem como efeito a imediata dissolução do vínculo contratual963.

960 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 293. A opção do legislador dá assim ao

tribunal um papel essencialmente certificativo, por controlo a posteriori, ao confirmar ou infirmar a legitimidade material da declarada

resolução. Sobre a resolução extrajudicial, v. LIS PAULA SAN MIGUEL PRADERA, La resolución extrajudicial: modelos de derecho

comparado y evolución del derecho espanõl, cit. 961 Veja-se os arts. 7.3.2 dos Princípios UNIDROIT, 9:303 dos PECL e III. – 3:507 do DCFR (“notice of termination”). 962 A propósito de uma declaração não expressa afirma Paulo Mota Pinto o exemplo de uma pretensão recuperatória – cfr. Interesse

Contratual Negativo, cit., p. 1531. Existirá, por exemplo, uma manifesta vontade resolutiva, ainda que sem declaração expressa, na

devolução de um bem que não possa ser reparado ou substituído. 963 A resolução determina a imediata cessação do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder

do destinatário ou é dele conhecida (art. 224.º, n.º 1, do Código Civil). Depois de eficaz, a declaração negocial de resolução não poderá

ser revogada, admitindo-se, porém, que aquele que resolveu o contrato proponha ao destinatário da declaração (contraparte) a

repristinação do negócio jurídico, sendo, então, necessário o consentimento deste. Cfr. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato,

p. 180.

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Os contraentes deixam de estar obrigados a cumprir as prestações a que se vincularam,

pelo que a cessação do contrato determina a extinção das respetivas prestações964.

O efeito extintivo da resolução não abrange apenas os deveres de prestação ainda não

cumpridos, mas estende-se também aos deveres de prestação já cumpridos. É o que resulta

do disposto no art. 433.º, que remete para o efeito retroativo da anulação do contrato (art.

289.º, n.º 1) e é confirmado pelo n.º 1 do art. 434.º, no qual se estabelece que “[a]

resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou

a finalidade da resolução”965. Isto significa que, no que toca aos seus efeitos, a resolução

tem uma eficácia retroativa (ex tunc) sendo equiparada por lei (art. 433.º) à invalidade

(nulidade ou anulabilidade) dos negócios jurídicos (art. 433.º do Código Civil)966.

As partes devem ficar na situação em que estariam se não tivessem celebrado o

contrato; pretende-se, pois, a reposição do status quo ante, válida para os efeitos reais

produzidos (por exemplo, se a propriedade foi transmitida, o vendedor readquire a sua

qualidade de proprietário, suportando, naturalmente, o risco de perda da coisa a restituir) e

gerando deveres de restituição das prestações já efetuadas (arts. 801, n.º 2, parte final, e

289.º, n.º 1)967.

964 Cfr. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 180. A resolução pode ser total ou parcial. Sendo total, a resolução

determina a extinção completa do vínculo. Sendo apenas parcial, o contrato subsiste, embora amputado de uma parte. Como refere o A.,

“[n]esta hipótese sempre se poderá entender que, em vez de resolvido – ainda que parcialmente –, o contrato foi modificado, ficando

reduzida a prestação e a contraprestação. 965 Relativamente às exceções ao princípio da retroatividade, pode dizer-se que, nos contratos de execução instantânea, a resolução tem

efeitos retroativos, salvo se contrariar a vontade das partes ou a finalidade da própria resolução (art. 434.º, n.º 1). Nos contratos de

execução continuada, a resolução não abrange, em princípio, as prestações já efetuadas, só produzindo efeitos para o futuro (art. 434.º,

n.º 2). No entanto, a parte final do n.º 2 do art. 432.º vem estabelecer uma “exceção à exceção”, dispondo, à semelhança da parte final do

n.º 1 da mesma norma, que a retroatividade será admitida em razão da finalidade da resolução. Assim, apesar de o contrato (por

exemplo, de fornecimento) ser de execução continuada, o motivo justificativo da resolução pode afetar todo o vínculo, inclusive as

prestações efetuadas, que deixam de satisfazer o interesse do credor, legitimando a resolução com efeitos ex tunc. Por último, a

resolução pode não ter eficácia retroativa no que diz respeito aos direitos de terceiros (art. 435.º, n.º 1). Cfr. ROMANO MARTINEZ, Da

Cessação do Contrato, p. 188. 966 Referindo que “o nosso sistema coloca a tónica numa típica destruição retroactiva (ex tunc) dos efeitos produzidos, recorrendo para

isso à técnica das invalidades, conquanto sem os resíduos do enriquecimento sem causa, tendo em conta o escasso papel que a figura

pode ter no quadrante restrito do n.º 1 do art. 795.º, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das

Obrigações, cit., p. 295. 967 O instituto da resolução apresenta semelhanças com a anulabilidade, em particular atendendo à vontade para a produção do efeito

extintivo. De modo diverso, a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º). Apesar de os fundamentos se

verificarem em momentos diferentes, a anulabilidade e a resolução prosseguem a mesma finalidade e têm idêntico regime,

designadamente quanto à eficácia ope voluntate e à eliminação retroativa dos efeitos do negócio. Mas divergem em quatro pontos: no

que respeita à legitimidade e aos limites para o exercício do direito, quanto aos efeitos em relação a terceiros e aos contratos de execução

continuada ou periódica. No que diz respeito à legitimidade, nos termos do art. 287.º, n.º 1, a anulabilidade só pode ser arguida pelas

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

345

Como refere Brandão Proença, «não é muito correcto falar-se de extinção retroactiva

do contrato e de “desaparecimento” da relação contratual, pois o sentido repositivo é

funcionalmente diferente do da invalidade, sendo a retroactividade tout court uma ficção

dogmática utilizada para reforçar o escopo extintivo pretendido com a resolução»968.

Apesar de a eficácia retroativa ser a regra em caso de resolução (art. 434.º, n.º 1),

pode discutir-se, de iure condendo, a sua justificação. De facto, apesar de a eficácia

retroativa ser comum, não é regra desde logo nos projetos europeus de harmonização do

direito contratual.

Assim, nos Princípios UNIDROIT prescreve-se que a resolução não tem eficácia

retroativa (art. 7.3.5.1) e nos PECL determina-se que a resolução não tem, em princípio,

eficácia retroativa (art. 9.305)969. Para além disso, os objetivos pretendidos com a

resolução não dependem da sua eficácia retroativa, desde que a extinção do contrato esteja

associada com o correspondente dever de indemnizar.

8.4.2. Efeito repositivo

Dissolvido o vínculo contratual, importa repor a situação que existiria se o contrato

nunca tivesse sido celebrado. Isto significa que cada uma das partes terá de restituir à

contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência da cessação. O efeito

repositivo é norteado por três princípios fundamentais: restituição integral (em espécie ou

“pessoas em cujo interesse a lei a estabelece”. Importa, pois, determinar quem é que a lei pretende proteger, ao conferir o direito de

anular o contrato. De modo diverso, o direito de resolver o contrato é atribuído a uma das partes, relativamente à qual se verificam os

respetivos pressupostos, podendo excepcionalmente ser exercido por terceiro em nome da parte titular do direito. Em relação aos limites,

a anulabilidade tem um prazo curto de exercício – “um ano subsequente à cessação do vício” –, enquanto a resolução pode ser exercida

no prazo de prescrição aplicável, que pode ascender a vinte anos. A resolução não pode ser invocada por quem não estiver em condições

de restituir o que houver recebido (art. 432.º, n.º 2), limitação que não é válida em sede de anulabilidade (art. 289.º, n.º 1, in fine). No

que diz respeito aos efeitos em relação a terceiros, estabelecem-se regimes de proteção diversos (arts. 289.º e 291.º do Código Civil, por

um lado, e 435.º, por outro). Por último, na resolução de contratos de execução continuada ou periódica, a eficácia é ex nunc (art. 434.º,

n.º 2, do Código Civil), e nos contratos anuláveis (ou nulos), ainda que de execução continuada ou periódica, por via de regra, a extinção

tem efeito retroativo. 968 BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 295. Deste modo, Brandão Proença

considera mais correto recorrer à germânica “relação de liquidação”, já que esta permite afastar uma “leitura” negativa, e “colada” à

invalidade, do instituto resolutivo. 969 Assim também, por exemplo, no Livro 6, art. 269, do CChol, dispõe-se que a resolução não tem efeito retroativo.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

em valor) e não nos termos do enriquecimento sem causa, restituição bilateral e paritária e

simultaneidade de cumprimento das obrigações restitutivas970.

A resolução com eficácia retroativa pressupõe a constituição de uma nova relação

jurídica, derivada da anterior, com obrigações de devolução recíprocas (uma obrigação ex

lege de reposição do status quo ante); as partes ficam mutuamente adstritas a devolver as

prestações que hajam recebido em cumprimento do contrato971. Depois de, na parte final

do art. 289.º, se estabelecer que deve “ser restituído tudo o que tiver sido prestado”,

acrescenta-se no art. 290.º do Código Civil que “[a]s obrigações recíprocas de restituição

(...) devem ser cumpridas simultaneamente”972.

A obrigação de restituir impende sobre as partes que tenham recebido prestações do

contrato resolvido; excepcionalmente, admite-se que se possa exigir de terceiro o

cumprimento desse dever: na eventualidade de uma das partes ter recebido uma prestação

emergente do contrato resolvido, que veio a alienar gratuitamente a terceiro, e não podendo

o contraente restituir o respetivo valor, cabe à contraparte exigir a restituição ao adquirente

na medida do seu enriquecimento (art. 289.º, n.º 2).

970 BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 297. Vendo as restituições na perspetiva

de uma “repetição do indevido”, ver MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, II, cit., p. 459. Em sentido diferente, Maria de

Lurdes Pereira afirma que “existem certos aspectos do regime da resolução fundada em incumprimento imputável ao devedor que só se

compreendem à luz de uma ideia sancionatória, mas que, ainda assim, não a transformam num instrumento em si mesmo sancionatório.

Tenha-se em mente a restituição integral da prestação ou prestações já efectuadas garantida pela resolução, por confronto com a

restituição limitada ao enriquecimento patrimonial subsistente proporcionada no seio da caducidade”. A Autora parece, no entanto,

propender para a limitação da restituição ao enriquecimento patrimonial subsistente nas hipóteses legais resolutivas que prescindem da

culpa do devedor, como é o caso do disposto no art. 793.º, n.º 2, do Código Civil – cfr. Conceito de Prestação e Destino da

Contraprestação, cit., pp. 133 e 134, nota 344. 971 O efeito restitutivo sofre alguma limitação e pode nem sequer existir. V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não

Cumprimento das Obrigações, cit., p. 297. A limitação pode resultar do desgaste ou deterioração consequentes à utilização normal da

coisa restituenda e das normas sobre frutos e benfeitorias (aplicáveis à resolução por força do n.º 3 do art. 289.º). Já a exclusão pode

resultar de normas que dão relevo à estipulação convencional da perda do prestado, à “finalidade da resolução”, à natureza dos contratos

duradouros propriamente ditos (v. art. 434.º). 972 As obrigações de restituição não são totalmente independentes entre si na medida em que advêm de uma fonte comum. Daí ser

possível opor a exceção de não cumprimento ao dever de restituir (art. 290.º, in fine, do Código Civil), que tem particular relevância, não

só no caso de insolvência de um dos contraentes, como em qualquer hipótese de risco de incumprimento da obrigação de restituir. Cfr.

ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 10.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

347

8.5. Restituição em espécie (in natura) e restituição em valor

A parte que recebeu uma prestação constitui-se no dever de a restituir, assim como

todos os direitos que dela tenha recebido. O princípio geral aponta para a obrigação de

restituir in natura (art. 563.º do Código Civil), mas não sendo possível restituir a prestação

auferida em espécie973, deve a parte entregar o “valor correspondente” (art. 289.º, n.º 1, in

fine)974. Neste último caso, coloca-se o problema de saber como se determina esse “valor

correspondente”, nomeadamente, se deve atender-se ao valor da contraprestação acordada,

como dispõe atuamente o Código Civil alemão (§ 346, n.º 2, 2.ª frase, do BGB), ou se a

restituição deve orientar-se fundamentalmente pelo valor objetivo. Abstraindo de pontos de

vista sancionatórios, em geral desajustados ao funcionamento da resolução, consideramos

que a restituição do “valor correspondente” deverá atender, em regra, ao valor da

contraprestação acordada, na medida em que o mesmo continue a refletir a equivalência

subjetiva entre prestações convencionada pelas partes975. Assim sendo, importará analisar

o concreto fundamento da resolução, a fim de se averiguar se este afeta ou não a avaliação

das prestações pelas partes976. Só nos casos em que a avaliação contratual das prestações

seja posta em causa pelos fundamentos da resolução (sejam eles contratuais ou legais)

deverá adotar-se o critério objetivo977.

É certo, como observa Paulo Mota Pinto, que uma restituição do “valor

correspondente” (art. 289.º, n.º 1) que atenda ao montante da contraprestação para avaliar a

prestação tornará em muitos casos inútil a resolução, ao permitir a manutenção da relação

de valor entre deslocações patrimoniais, o que pareceria contrariar a finalidade da

973 Esta impossibilidade de restituição em espécie pode resultar quer da natureza da prestação a restituir (quando estão em causa

prestações de facto), quer de uma intervenção em relação ao bem, quando estão em causa prestações de coisa. 974 Apesar de esta situação não corresponder a uma hipótese de responsabilidade civil, prescreve-se o mesmo princípio constante do art.

566.º, n.º 1, em que a indemnização só é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível. Cfr. ROMANO MARTINEZ,

Da Cessação do Contrato, cit., p. 191. 975 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p.

996. 976 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 997. 977 É esta a posição defendida no direito alemão, em face do § 346, n.º 2, 2.ª frase – v. C.-W. CANARIS, “Äquivalenzvermutung und

Äquivalenzwahrung im Leiststungsstörungsrecht des BGB”, in Festschrift für Herbert Wiedemann, Beck, München, 2002, pp. 1 a 15.

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resolução de retorno ao status quo ante, e a destruição do sinalagma contratual, que

tornaria obsoleta a relevância da relação de valor pactuada978.

Não obstante, não poderemos deixar de reconhecer que uma restituição que atenda

ao montante da contraprestação acordada está conforme com a necessidade de a

“liquidação” não abandonar um certo equilíbrio sinalagmático entre as prestações

restituídas e, ainda, com a ideia de que a resolução não deverá servir para que a parte que

fez um mau negócio possa corrigir supervenientemente tal decisão, apenas porque se

verificou um fundamento de resolução que não afeta a avaliação das prestações pelas

partes979.

8.6. Compensação pelo uso do bem

A “rescisão” resulta normalmente na devolução ao consumidor do preço pago980.

O Considerando 15 da Diretiva prevê que os Estados-Membros podem dispor no

sentido de que qualquer reembolso ao consumidor possa ser reduzido, de modo a ter em

conta a utilização que o consumidor fez dos produtos a partir do momento em que estes lhe

foram entregues.

Se entre a data da conclusão e a data da resolução do contrato – ou da restituição da

coisa alienada, em resultado da resolução do contrato – a coisa diminuir de valor, por ter

sido usada pelo adquirente (por exemplo, pelo comprador), o alienante terá direito a uma

compensação pela diminuição do valor da coisa981. O Código Civil alemão, no § 346, n.º 2,

contempla explicitamente esta hipótese, devendo este critério considerar-se como uma

978 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 997. 979 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 997. A propósito de que seria

injusto que a resolução pudesse servir para corrigir supervenientemente um mau negócio, v. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual

Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 997, nota 2788. 980 A resolução do contrato de alienação tem ainda como efeito a (constituição do dever de) restituição dos frutos percebidos pelo

possuidor da coisa alienada, aplicando-se os arts. 1270.º e 1271.º, sobre a posse, por remissão do art. 289.º, n.º 3 – e o art. 289.º, n.º 3,

por remissão do art. 433.º do Código Civil. O adquirente de coisa alienada através do contrato resolvido deverá ser considerado como

possuidor de boa-fé, sujeitando-se ao regime do art. 1270.º do Código Civil, até ao momento em que o titular do direito de resolução o

atue – e deverá ser considerado como possuidor de má-fé, sujeitando-se ao regime do art. 1271.º, desde o momento em que o titular do

direito de resolução o exerça. V. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 886. No mesmo sentido, v.

Brandão Proença, segundo o qual, «na resolução legal, o respectivo titular só deverá ser considerado possuidor de má fé a partir do

momento em que resolva o contrato (ou conheça a causa resolutiva), não sendo obrigado, antes disso, à “diligência” na frutificação da

coisa (que também tenha de restituir)» – cfr. A resolução do contrato no direito civil, cit., p. 173. 981 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 885.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

349

concretização do princípio do art. 289.º, n.º 1, do Código Civil português (restituição em

valor)982.

Com efeito, sem embargo de a depreciação poder ser valorada como dano, nada

impede que, no plano restitutivo, possa ser imposto o pagamento de uma soma atualizada

(pelo menos, com referência ao momento em que esse “devedor” sabia que o contrato foi

resolvido) para evitar uma reposição em desfavor ou com “empobrecimento” do credor da

restituição983.

8.7. A exclusão do direito de resolução à luz da interpretação do art. 432.º, n.º 2, do

Código Civil

Em face do regime consagrado no Código Civil português, a verificação dos

pressupostos legais ou convencionais do direito de resolução não assegura necessariamente

uma concreta legitimidade de exercício do direito potestativo de resolução984.

Nos termos do n.º 2 do art. 432.º do Código Civil, o direito de resolução é excluído

quando o respetivo titular, “por circunstâncias não imputáveis ao outro contraente, não

estiver em condições de restituir o que houver recebido” 985 . A existência de um

impedimento quanto à restituição em espécie pode resultar da natureza da contraprestação

982 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 885. No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de

março de 2012 (Caimoto Jácome), disponível em www.dgsi.pt, em que o consumidor pedia a resolução do contrato de compra e venda,

nos termos do art. 4.º do DL n.º 67/2003, com fundamento na manifesta “desconformidade face ao contrato de compra e venda”

celebrado pelas partes, resultante da discrepância entre a comprovada real quilometragem da viatura muito antes da data em que foi

vendida ao apelante”, o Tribunal considerou que a referida desconformidade confere ao autor (comprador consumidor) o direito de

resolução do contrato previsto no art. 4.º do DL n.º 67/2003 e que “[a] regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (n.º 1 do art.

434.º do CC), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (art. 433.º), tem de ser conjugada com diversos preceitos

que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; Assim resulta, por

exemplo, do disposto no n.º 2 do art. 432.º, do n.º 2 do art. 434.º [...] ou nos n.os 1 e 3 do art. 289.º e no art. 290.º”. Assim, considerou o

Tribunal da Relação do Porto que “[n]ão sendo, no caso, possível ao autor restituir ao demandado o automóvel ZN no estado em que lhe

foi entregue, deverá ser deduzido do preço a restituir a desvalorização da viatura decorrente da utilização desta durante cerca de um ano,

cuja determinação se remete para liquidação”. 983 Cfr. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 299. 984 Este preceito, que visa tutelar, nas palavras de Brandão Proença, “uma certa igualdade jurídico-económica no seio da relação de

liquidação”, estabelece, assim, um limite legal (de sentido preclusivo) ao exercício do direito de resolução. V. BRANDÃO PROENÇA, A

resolução do contrato no Direito Civil, Do enquadramento e do regime, cit., p. 197. 985 Criticando o art. 432.º, n.º 2, invocando, designadamente, que “[o] que parece errado é condicionar, nos termos do art. 432.º, n.º 2, o

exercício do direito à possibilidade da restituição em espécie, desvalorizando-se a possível restituição do seu equivalente e a causa (em

regra, imputável) que motivou a desvinculação”, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações,

cit., p. 298.

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– impossibilidade “natural” de restituição – em prestações de contratos de empreitada e de

prestação de serviços, ou, ainda, de determinada intervenção em relação ao bem, como é o

caso de consumo, oneração, transformação, perda ou deterioração do bem986. Estando em

causa uma condição de exercício do direito de resolução, a perturbação da restituição em

espécie deve ter ocorrido até ao momento da “declaração” resolutiva; a partir daí, qualquer

perturbação do cumprimento da prestação restitutória deverá ser aferida à luz do art. 289.º,

n.º 1, ou nos quadros do incumprimento do dever de restituir.

O art. 432.º, n.º 2, ao condicionar o exercício do direito de resolução à possibilidade

de restituição em espécie, contrasta com as recentes tendências do “Direito Europeu das

Obrigações”. Na verdade, quer o DCFR (art. III 3:510 e 3:512) quer os PECL (arts. 9:301 e

9:305 a 9:309) permitem a resolução do contrato independentemente da possibilidade de

restituição em espécie.

Refira-se ainda que a relação de dependência entre a impossibilidade de restituição

em espécie e o exercício do direito potestativo de resolução foi também afastada pelo

Direito alemão com a “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”.

No Direito alemão anterior, de acordo com o regime consagrado nos §§ 350 e segs.

do BGB (versão anterior), se a parte resolvente fosse responsável pela deterioração

significativa, destruição ou impossibilidade de entrega do objeto recebido, não podia

resolver o contrato (§ 351 do BGB)987. De igual modo, a transformação, remodelação ou

venda do bem a terceiro podiam impedir o exercício do direito de resolução (§§ 352 e 353

do BGB)988 . Apenas nos casos em que o objeto da prestação tivesse perecido

acidentalmente, por causa fortuita, aquele direito potestativo permaneceria intacto, apesar

da insuscetibilidade de restituição em espécie989.

986 A impossibilidade de restituição suscetível de impedir a resolução do contrato terá de ser definitiva, podendo estar aqui em causa a

irreversibilidade do impedimento ou a imprevisibilidade quanto ao momento da respetiva cessação.

Poderá questionar-se, ainda, se a impossibilidade suscetível de impedir a resolução do contrato terá de ser total ou poderá ser uma

impossibilidade parcial.

Mesmo aqui importa ter em conta o tipo de obrigação em causa. Nas obrigações genéricas puras, o disposto no art. 540.º afasta a

insuscetibilidade de restituição. 987 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, O Direito, 144.º

(2012), III, 653-672, p. 654. 988 Os §§ 350 e segs. do BGB regulavam os casos de destruição fortuita (§ 350), de destruição culposa (§ 351), de modificação ou

remodelação (§ 352) e de oneração do objeto da prestação (§ 353). 989 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 654.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

351

Diversamente, no atual BGB, a resolução do contrato não depende da conduta da

parte resolvente quanto ao objeto da prestação. É irrelevante que esta esteja ou não em

condições de restituir o que recebeu. A valoração da conduta deste contraente limita-se,

para efeitos de exclusão do direito resolutivo, à causação da circunstância que motiva a

própria resolução (§§ 323/6 e 326/5)990. O princípio geral do Código alemão é, assim, o da

restituição de equivalente, consagrando o § 346/2 um leque de casos de “indemnização

pelo valor”, entre os quais se compreendem as hipóteses de consumo, venda, oneração,

transformação, perda ou deterioração (anormal) da coisa991, resultando deste novo modelo

uma destrinça clara entre as perturbações do programa obrigacional que podem

fundamentar a resolução e as perturbações das prestações restitutórias (§§ 346/3 e 4).

O art. 432.º, n.º 2, levanta alguns problemas relacionados com a sua interpretação e

com a determinação do âmbito exato da sua aplicação992. Desde logo, poderá questionar-se

a aplicação deste preceito aos casos de resolução legal993, visto que, nestes casos, a causa

que fundamenta a resolução será tipicamente um incumprimento (em regra, imputável) de

obrigações relevantes integradas num contrato bilateral994. Neste caso, poderá perguntar-se

se faz sentido excluir o exercício do direito de resolução, privando assim o contraente

adimplente de um importante meio de tutela, se lhe for imputável a perda do bem a restituir

ou se o bem tiver perecido fortuitamente. Note-se, desde já, que, o facto de não ser

possível a restituição em espécie, não significa que não seja possível a restituição em valor.

A fim de esclarecer o âmbito de aplicação do preceito importa distinguir os casos em

que a impossibilidade de restituição é imputável à parte resolvente, e delinear os contornos

990 A conciliação dos §§ 323/6 e 326/5 com a regra do § 346 do BGB tem, porém, gerado alguma discussão no caso da venda de coisa

defeituosa, quando o bem recebido pelo comprador tiver sido destruído antes de o vendedor ter tido a possibilidade de remover o defeito.

Considerando que o direito de resolução do comprador não fica excluído pelo facto de este ter provocado a perda ou deterioração da

coisa, ainda que com culpa, 991 Com efeito, o § 346/2 do BGB consagra um leque importante de casos de “indemnização pelo valor”, entre os quais se compreendem

as hipóteses de consumo, venda, oneração, transformação, perda ou deterioração (anormal) da coisa. 992 BRANDÃO PROENÇA, A resolução do contrato no Direito Civil, Do enquadramento e do regime, cit., p. 198. Apesar de a própria

doutrina minimizar as dificuldades de aplicação do preceito. PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., entendem

que o art. 432.º, n.º 2, contém uma doutrina unitária para a resolução legal e convencional. 993 A este propósito defende Nuno Pinto Oliveira que para efeitos de aplicação do n.º 2 do art. 432.º se deve distinguir a resolução

convencional da resolução legal. O art. 432.º deverá aplicar-se sem mais à resolução convencional, quanto à resolução legal deverá

aplicar-se com restrições. 994 Cfr. BRANDÃO PROENÇA, A resolução do contrato no Direito Civil, Do enquadramento e do regime, cit., p. 197.

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desta imputabilidade, dos casos em que a mesma é imputável à contraparte e, ainda, os

casos em que a impossibilidade de restituição em espécie resulta de caso fortuito.

8.7.1. Impossibilidade de restituição imputável à parte resolvente

O art. 432.º, n.º 2, impede o exercício do direito potestativo de resolução do contrato,

se a impossibilidade de restituição for imputável à parte resolvente. Importa esclarecer o

que se deve entender, para este efeito, por impossibilidade imputável à parte resolvente.

Na opinião de Vaz Serra, a exclusão do direito de resolução aplicar-se-ia tanto nos

casos em que o titular do direito de resolução se tivesse colocado, por sua culpa, em

impossibilidade de restituir (sendo esta culpa aferida em função da falta de deveres de

cuidado)995, como naqueles em que a parte resolvente tivesse causado a impossibilidade

por ato livre, mas não culposo (v. g., ignorava sem culpa o direito de resolução e destruiu a

coisa). A justificação invocada pelo Autor, para estes casos, era a de que a parte resolvente

não deveria gozar do direito de resolução “porque se gozasse, teria o direito de exigir a

restituição da contraprestação e não seria obrigado a restituir aquela coisa (pois, sem culpa,

está impossibilitado de a restituir).”996.

Numa perspetiva algo diversa, Brandão Proença considerou que, na determinação da

impossibilidade imputável à parte resolvente, não está em causa uma culpa em sentido

próprio, mas antes um “comportamento potenciador do risco”.

Nuno Pinto Oliveira, por sua vez, considera que o conceito de imputabilidade

atribuído ao credor deve interpretar-se em termos mais restritivos (do que o conceito de

impossibilidade imputável ao devedor), estando dependente da verificação de três

requisitos: em primeiro lugar, que o credor da obrigação não cumprida cause a

impossibilidade da restituição; em segundo lugar, que a cause fazendo um uso anormal da

coisa (por exemplo, alienando-a); e, em terceiro lugar, que faça um uso anormal da coisa

depois de conhecer o seu direito potestativo de resolução997. A necessidade de interpretar

995 Cfr. VAZ SERRA, Resolução do Contrato, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 68, pp. 241 a 244. Como refere o Autor,

“[a] culpa consiste, naturalmente, em, apesar de conhecer o direito de resolução embora apenas eventual) ou desconhecendo-se com

culpa esse direito), se praticarem actos que não deveriam ser praticados em vista da eventual obrigação de restituição”. Idem, p. 242,

nota 157. 996 Cfr. VAZ SERRA, Resolução, cit., pp. 242 e 243. 997 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 891.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

353

em termos mais restritos o conceito de impossibilidade imputável ao credor compreende-se

à luz da ratio do n.º 2 do art. 432.º, cujo resultado da aplicação do preceito, a contrario

sensu, corresponde a uma aplicação do princípio do abuso do direito, como proibição do

venire contra factum proprium998.

Sendo esta a ratio do preceito, a densificação dos casos de impossibilidade imputável

à parte resolvente deverá necessariamente partir de uma distinção ética, afigurando-se

essencial determinar se a conduta da parte resolvente que se traduziu na perda ou

deterioração significativa do bem pode vir a ser valorada como contraditória em relação à

sua decisão de resolver o negócio, consubstanciando assim um abuso de direito na

modalidade de proibição do venire contra factum proprium.

Neste sentido, esclarece Catarina Monteiro Pires999 que a parte adimplente que

recebeu determinado bem na sua esfera jurídica ao abrigo do contrato e ignora a existência

de um fundamento de resolução por incumprimento (porque este não existe ou porque não

o conhece, sem culpa) não está obrigada a quaisquer deveres de restituição perante a

contraparte, podendo dispor do bem como qualquer outro que integra o seu património

(cfr. art. 1305.º). Pode, designadamente, criar perigos quanto à conservação desse objeto,

durante a sua utilização, tal como pode onerá-lo ou transmiti-lo a um terceiro. Nestes casos

é de facto difícil considerar que uma conduta do accipiens de boa-fé traduzida na perda ou

deterioração significativa do bem possa vir a ser valorada como contraditória em relação à

sua decisão de resolver o contrato, com base no incumprimento da contraparte1000. Do

mesmo modo, diga-se que, nestes casos, o princípio da retroatividade não ficará afetado, na

medida em que continua a ser possível a restituição em valor, ao abrigo do art. 289.º, n.º 1,

a qual é, também neste caso, independente do requisito no art. 479.º, n.º 2, e do destino que

a prestação teve depois de ingressar na esfera patrimonial do accipiens1001.

998 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 892, nota 1221. 999 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., pp. 662 e 663. 1000 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., pp. 662 e 663. A

Autora dá o seguinte exemplo: imagine-se que, num contrato de empreitada civil em que a obra seja construída com materiais do

empreiteiro, o dono da obra procede à incorporação do bem recebido na sua unidade industrial e, ao fazê-lo, se apercebe que o mesmo

padece de um defeito irreparável (art. 1222.º, n.º 1). Suponha-se ainda que o empreiteiro recusa substituir a obra e o dono da obra, por

seu turno, não está em condições de restituir o que recebeu, uma vez que o bem sofreu uma deterioração significativa, durante a

incorporação. No nosso entendimento, se o dono da obra não se encontrava de má-fé quando procedeu à incorporação do equipamento,

não vemos razão para o privar do direito de resolver o contrato, mesmo sabendo-se impossível a restituição em espécie da obra. 1001 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 663.

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Contrariamente, a parte resolvente de má-fé (que sabia ou devia saber que podia

pretender reaver a contraprestação) correrá o risco de ver impedido o recurso à resolução

do contrato se tiver causado, com dolo ou negligência, a perda ou destruição do objeto da

prestação ou se, de qualquer modo, tiver impossibilitado, com culpa, a restituição do bem.

Tendo (ou devendo ter) conhecimento da possibilidade de resolução, a parte a quem

assiste, em abstrato, este direito está obrigada a não inviabilizar a restituição do que

recebeu, devendo conformar a sua conduta em função disso1002.

8.7.2. Impossibilidade de restituição imputável à contraparte

Nos termos do disposto no art. 432.º, n.º 2, o adimplente pode resolver o contrato,

apesar de não poder “restituir o que houver recebido”, se a impossibilidade de restituição

em espécie for imputável à contraparte, credora da prestação restitutória. Quer isto dizer

que sendo a impossibilidade de restituição em espécie imputável à contraparte (titular da

sujeição), titular do direito de resolução, poderá exercer o direito potestativo de resolução

do contrato bilateral sinalagmático, devendo, neste caso, nos termos do art. 289.º, n.º 1, do

Código Civil, proceder à restituição em valor.

Refira-se a este propósito que o conceito de impossibilidade de restituição em

espécie imputável à contraparte deve ser, no entendimento de Nuno Pinto Oliveira,

interpretado em termos mais amplos: basta que o devedor da obrigação não cumprida

cause a impossibilidade de restituição. O facto de a ter causado com culpa ou sem culpa é

irrelevante1003.

Entre as hipóteses em que a impossibilidade de restituição em espécie é imputável ao

devedor incluem-se, desde logo, os casos em que esta impossibilidade é causada por uma

circunstância que constitui, também, o fundamento da resolução1004. Assim sucede, por

1002 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 663. Assim,

referindo um exemplo dado pela Autora, imagine-se que, num contrato de compra e venda civil de uma sofisticada máquina, o vendedor,

depois de interpelado pelo comprador, recusa disponibilizar o manual de instruções sobre o funcionamento do bem e fornecer quaisquer

informações sobre o mesmo, incorrendo em incumprimento contratual (arts. 798.º, n.º 1, 801.º, n.º 1, e 808.º). Se o comprador,

conhecendo estas circunstâncias, vender o bem a um terceiro, ficará privado do direito de resolução do contrato, à luz do disposto no art.

432.º, n.º 2. 1003 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 891. 1004 No Direito alemão, ainda que a propósito de um problema diferente – perante a disposição do § 346/3, n.º 2, do BGB, que determina

a exclusão do dever de restituir em valor se o credor for responsável pela perda ou deterioração do bem –, tem-se entendido que ao

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

355

exemplo, na resolução do contrato, com fundamento em defeito da coisa, perecendo esta

em virtude do mesmo vício em momento anterior ao do exercício do direito de resolução

por parte do comprador, como acontece, por exemplo, se o eletrodoméstico vendido se

incendeia devido a um curto-circuito causado por uma deficiência originária do seu

sistema elétrico, ou se o prato de barro estala em virtude da sua deficiente cozedura1005.

Nestes casos, o perecimento da coisa ocorre em virtude de circunstâncias ainda imputáveis

ao outro contraente (o vendedor), pelo que não fica, assim, precludido o direito de

resolução do contrato1006.

8.7.3. Impossibilidade fortuita de restituição do objeto da prestação

Mais complexas afiguram-se, sem dúvida, as hipóteses de impossibilidade fortuita de

restituição do objeto da prestação. Estão aqui em causa situações de perecimento da coisa

viciada em consequência de caso fortuito, como, por exemplo, a situação de o automóvel

com defeito de fabrico num dos seus componentes vir a ser consumido num incêndio no

domicílio do comprador1007, e, também, as hipóteses em que a resolução do contrato se

funda numa violação contratual da contraparte não relacionada com um vício da coisa,

como por exemplo, no caso de alienação de duas máquinas de funcionamento

complementar em que, não sendo a segunda máquina entregue pelo vendedor, a primeira

venha a perecer em virtude de um terramoto, ou na situação de não entrega dos

documentos do automóvel vendido (violação de obrigações secundárias ou acessórias por

parte do vendedor), que depois vem a ser furtado.

A solução adotada pelo Direito alemão anterior à “Lei para a Modernização do

Direito das Obrigações” era no sentido de não considerar a impossibilidade fortuita de

credor é imputável a violação de deveres de cuidado (por aplicação analógica dos §§ 276 e segs.), a perda ou deterioração do bem que

resulte de um defeito que legitima a resolução e, até, segundo alguns Autores, quaisquer vicissitudes provenientes da “esfera do credor

da prestação restitutória”. V. MEDICUS/LORENZ, Schuldrecht II, C.H. Beck, München, p. 274. 1005 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 480,

nota 1414. 1006 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 480.

O Autor esclarece, no entanto, que a possibilidade de resolução do contrato se encontra, porém, circunscrita, a exemplo do art. 1647.º do

CCfr, do art. 1487.º do CCesp, do § 364, III, 3, do BGB e do art. 1492.º, III, do CCit, ao perecimento da coisa por vícios anteriores à

transmissão do risco ou que se encontrassem em gérmen na mesma. De facto, no entender do Autor, apenas esta orientação permite uma

efetiva harmonização entre o n.º 2 do art. 432.º e o art. 918.º do Código Civil. 1007 Cfr. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 481.

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restituição em espécie como impedimento à resolução do contrato. O § 350 do BGB

(versão anterior) estabelecia explicitamente que a resolução não era excluída pela

circunstância de o objeto que o legitimado (titular do direito de resolução) recebeu ter sido

casualmente destruído. Ou seja, dizia que o risco da impossibilidade casual corria por

conta da contraparte (titular da sujeição), estabelecendo, assim, uma solução divergente

das regras gerais em matéria de repartição do risco1008.

No Direito alemão atual, depois da reforma operada pela “Lei para a Modernização

do Direito das Obrigações”, a resolução do contrato não depende da conduta da parte

resolvente quanto ao objeto da prestação (§ 346). A parte adimplente pode resolver o

contrato bilateral sinalagmático, ainda que não esteja em condições de restituir aquilo que

tiver recebido, seja qual for a causa dessa impossibilidade1009. Vigora, pois, no Código

Civil alemão o princípio da restituição em valor. Assim, a impossibilidade de restituição

em espécie por causa fortuita não exclui, à semelhança do que já resultava da versão

anterior, o exercício do direito de resolução do contrato pela parte adimplente1010.

Regressando ao n.º 2 do art. 432.º do Código Civil, o preceito é claro no sentido de

excluir o direito de resolução do contrato nos casos em que o titular do direito de

resolução, “por circunstâncias não imputáveis ao outro contraente não estiver em

condições de restituir o que houver recebido”. Resulta pois de uma interpretação literal do

preceito, a contrario sensu, que a impossibilidade fortuita de restituição em espécie

funciona como um impedimento ao exercício do direito de resolução.

A posição sustentada pela nossa doutrina maioritária concorda em excluir o direito

de resolução do contrato nos casos de impossibilidade fortuita de restituição em

espécie1011.

1008 V., a propósito das regras de repartição do risco, os §§ 323 e 446 do BGB (versão anterior). 1009 Os §§ 350 e 351 do BGB foram revogados. 1010 Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., pp. 667 e 668. A

solução germânica – no sentido de admitir a resolução, apesar da impossibilidade fortuita de restituição – contribui para a preservação de

um direito importante do credor perante o incumprimento e consegue, deste modo, garantir uma maior tutela da circulação dos bens no

comércio jurídico. 1011 Neste sentido, v. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., pp. 126 e 201; BRANDÃO PROENÇA, Lições de

Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 298; PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse

Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 993; NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito

Privado Português, cit., pp. 481 e 482.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

357

Em sentido diverso, Vaz Serra, inspirado no sistema alemão anterior, considerou,

sendo o direito de resolução reconhecido pela lei em virtude do não cumprimento

imputável à outra parte (resolução legal), não ser razoável a sua exclusão pelo facto de o

seu titular não poder, por caso fortuito, restituir o que recebeu1012.

Nuno Oliveira exprime a sua concordância com este ponto de vista, aceitando que,

quando a causa da resolução seja o não cumprimento do contrato, o risco da

impossibilidade de restituição deverá ser atribuído ao devedor – assim, por exemplo, “o

comprador de coisa que, casualmente, tenha sido destruída poderá atuar o direito de

resolução por causa de um não cumprimento imputável ao vendedor (por exemplo, por

causa do não cumprimento de um dever acessório de prestação ou de um dever acessório

de conduta)”1013 – mesmo que não seja possível a restituição em espécie da prestação

recebida.

Pela nossa parte, concordamos com este ponto de vista. Nos casos de resolução legal,

em que a causa da resolução é o não cumprimento do contrato, a impossibilidade fortuita

de restituição em espécie não deveria constituir um impedimento ao exercício do direito de

resolução do contrato, pois com isto estar-se-ia a diminuir consideravelmente a tutela da

parte adimplente, privando-a de um importante meio de tutela.

A norma do n.º 2 do art. 432.º traduz sem dúvida a importância dada pelo legislador

ao efeito retroativo da resolução do contrato. Esta, no entanto, já o referimos, não deve ser

vista como um mecanismo de exata reposição ex tunc de um status quo ante. Como refere

Brandão Proença, “o sentido repositivo é funcionalmente diferente do da invalidade, sendo

1012 Cfr. VAZ SERRA, Resolução, cit., p. 246. No entanto, como refere o Autor, “[s]e o titular do direito de resolução tiver, em virtude do

perecimento ou da deterioração da coisa, recebido uma indemnização ou adquirido um crédito de indemnização, é justo que, resolvendo

o contrato, deva, em lugar da coisa ou como compensação da deterioração, entregar aquela indemnização ou ceder aquele crédito ou

deva poder a outra parte tomar a posição dele na titularidade de tal crédito”. Idem, p. 247. Diferentemente, nos casos de resolução

convencional, o Autor defende que a solução será a da exclusão do direito de resolução, pois “[o]s princípios dos contratos bilaterais

conduzem a que, não podendo, por caso fortuito, uma das partes restituir o que recebeu, a outra parte se exonera igualmente.” – cfr. p.

246. 1013 Cfr. NUNO PINTO OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., pp. 892 e 893. Segundo o A., os resultados desta tese

interpretativa são confirmados por um argumento sistemático retirado do art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, sobre o contrato de compra e

venda de bens de consumo: “Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha

perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador”. O Autor menciona ainda que a sua argumentação é reforçada

pelo facto de os (antigos) §§ 350 e 351 do Código Civil alemão terem sido revogados pela Lei de Modernização do Direito das

Obrigações (Schuldrechtsmodernisierung), pelo que o credor pode atuar o direito potestativo de resolução do contrato bilateral

sinalagmático ainda que a restituição do objeto prestado seja impossível. O limite será tão-só a proibição do abuso do direito – assim,

por exemplo, não poderá atuá-lo quando a restituição do objeto prestado seja imputável a dolo.

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a retroactividade tout court uma ficção dogmática utilizada para reforçar o escopo

extintivo pretendido com a resolução”1014. E isto é assim, quer pelo teor da norma do art.

289.º, n.º 1, que não obriga a uma interpretação rígida do princípio da prioridade da

restituição em espécie, quer pelos desvios que a nossa lei reconhece à ideia de uma

retroatividade pura1015.

Por outro lado, também não nos parece que pela conexão existente entre esta norma e

o regime de repartição do risco de destruição ou perecimento do objeto da prestação,

consagrado no art. 796.º (e 797.º) do Código Civil, possa resultar um argumento decisivo

no sentido da exclusão do direito de resolução nos casos de impossibilidade fortuita de

restituição em espécie1016. Com efeito, não é exato que, nestes casos, a permissão de

resolução transfira o risco relativo à perda ou deterioração do objeto para o alienante e que

tal transferência determine uma inversão da regra res perit domino, consagrada no n.º 1 do

art. 796.º do Código Civil1017. Não nos parece que se possa falar de uma verdadeira

transferência do risco, tendo em conta que, nestes casos, nos termos do n.º 1 do art. 289.º,

não há uma verdadeira supressão da prestação restitutória, mas antes a sua substituição por

uma prestação em valor. A atribuição de uma prestação em valor, calculada nos termos já

referidos, que corresponderá, em regra, ao valor da contraprestação, contratualmente

fixada pelas partes, implicaria que, pelo menos do ponto de vista económico, não se

pudesse configurar uma verdadeira transferência do risco para o credor da prestação

restitutória, nos casos de impossibilidade fortuita de restituição em espécie1018.

1014 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 296. 1015 V. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 668. 1016 Poderia ainda equacionar-se se por força da conexão sistemática entre o art. 795.º, n.º 1, e o art. 432.º, n.º 2, se impõe uma atribuição

do risco de perda da contraprestação, concretizado na exclusão do direito potestativo de resolução, ao titular do direito de resolução que

é também o devedor da prestação restitutória em espécie. Não nos parece que aqui a permissão de exercício do direito de resolução

implicasse a transferência de risco para o credor da prestação restitutória já que o devedor da prestação restitutória continuaria adstrito,

por força do n.º 1 do art. 289.º a uma prestação restitutória em valor, continuando, por isso, pelo menos em termos económicos, a

suportar o risco. Para além disso, como observa Catarina Monteiro Pires, apenas poderia justificar-se uma restrição do art. 432.º, n.º 2,

em função do art. 795.º, n.º 1, “comprovando-se uma analogia entre os quadrantes normativos da impossibilidade de restituição e a

impossibilidade de cumprimento da prestação debitória”. V. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e

impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 671, através da conexão sistemática com a regra do art. 432.º, n.º 2, impõe uma

atribuição do risco da perda da contraprestação. 1017 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 994, nota 2778. Sobre a

coordenação entre o art. 796.º e o regime do risco nas restituições, v. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da cessação do contrato, cit., p. 203. 1018 V. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 669.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

359

Pensamos pois que de iure condendo se poderá questionar se a solução consagrada

no n.º 2 do art. 432.º, traduzindo o peso excessivo dado pelo legislador à retroatividade

resolutiva, se encontra ancorada numa interpretação rígida do princípio da restituição em

espécie, desvalorizando a possibilidade de restituição em valor, consentida pelo n.º 1 do

art. 289.º, que em nada afeta o propósito resolutivo 1019 e a causa (em regra, um

incumprimento imputável) do direito legal de resolução.

Por estas razões, afigura-se-nos preferível a solução germânica que admite a

resolução apesar da impossibilidade fortuita de restituição, contribuindo deste modo para a

preservação de um importante direito do credor em casos de incumprimento1020.

8.8. O art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, de 8 de abril

A Diretiva 1999/44/CE, ao prever, no art. 3.º, o direito do consumidor à resolução do

contrato, em caso de falta de conformidade dos bens com o contrato, não considerou a

eventualidade de o consumidor não estar em condições de restituir o bem.

Nos termos do art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, “[o]s direitos de resolução do

contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou

se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador”. Isto significa que o

comprador/consumidor deve poder exercer os direitos de resolução do contrato e de

redução do preço, mesmo não estando em condições de restituir a coisa por motivos que

lhe não são imputáveis, ainda que, nos termos gerais, fique obrigado à restituição de uma

prestação em valor e seja de descontar, nas prestações a restituir, o valor dos benefícios

recebidos com a disponibilidade da coisa (e, designadamente, o valor da utilização da coisa

que tivesse sido efetuada entretanto pelo comprador)1021.

1019 Como refere Catarina Monteiro Pires, a supressão do art. 432.º, n.º 2, não afeta o propósito resolutivo se forem corretamente

entendidas as regras de cálculo da prestação restitutória em valor e se for adequadamente aprofundada a relação entre a restituição

imposta pela liquidação resolutiva e as correções patrimoniais a realizar ao abrigo de outros institutos, nomeadamente do enriquecimento

sem causa, do commodum de representação ou da responsabilidade civil – v. “Resolução por incumprimento e impossibilidade de

restituição em espécie”, cit., p. 672. 1020 V. CATARINA MONTEIRO PIRES, “Resolução por incumprimento e impossibilidade de restituição em espécie”, cit., p. 668. A Autora

refere que as razões que motivaram a supressão dos §§ 350 e segs. do BGB são, numa perspetiva de política legislativa, invocáveis no

nosso direito em relação ao art. 432.º, n.º 2, do BGB. 1021 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 993, nota 2778.

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Para além das dúvidas que já expressámos no que toca a uma aplicação literal do art.

432.º, n.º 2, do Código Civil aos casos de resolução legal, a verdade é que a própria

existência desta norma, para além de contrastar com as recentes tendências do “Direito

Europeu das Obrigações”, parece encontrar-se, ainda, em antinomia com o disposto no art.

4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, de 8 de abril1022.

Calvão da Silva, interrogando-se sobre o sentido do referido art. 4.º, n.º 4, propõe

uma sua interpretação corretiva, devendo ler-se “por motivo não imputável ao vendedor”

em lugar de “por motivo não imputável ao comprador”. No entender do Autor, só assim se

compreende a possibilidade de resolução mesmo que a impossibilidade de restituição da

coisa resulte de “circunstâncias (defeitos) não imputáveis ao outro contraente” (art. 432.º,

n.º 2, do Código Civil). Caso contrário, a norma não respeitaria a transferência do risco do

perecimento ou deterioração (para o comprador) e limitar-se-ia a afastar (novamente) o

disposto no art. 432.º, n.º 2, do Código Civil, o que já resultaria dos pressupostos dos

direitos do consumidor (nos termos conjugados do n.º 1 do art. 2.º, do n.º 1 do art. 3.º e do

n.º 1 do art. 4.º do DL n.º 67/2003)1023.

Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a posição defendida pelo

Autor, que parece restringir o âmbito de aplicação do art. 4.º, n.º 4, aos casos em que

aquela perda ou deterioração decorrem da falta de conformidade dos bens com o contrato.

Este entendimento restritivo, preconizado por Calvão da Silva, das hipóteses de

perda ou deterioração cobertas pelo art. 4.º, n.º 4, torna-se bem patente no exemplo que dá,

do automóvel que estacionado na garagem do comprador fica destruído, poucas horas

depois da aquisição, em virtude de um curto-circuito, ocorrido em consequência de um

defeito grave no sistema elétrico. O Autor entende que, neste caso, sendo a reparação

impossível, e não podendo o consumidor exigir a substituição por se tratar de um carro em

segunda mão, o comprador poderá resolver o contrato, independentemente de culpa do

1022 Sobre o anteprojeto e as razões que estiveram na origem do art. 4.º, n.º 4, v. PAULO MOTA PINTO, Cumprimento defeituoso do

contrato de compra e venda – anteprojecto de diploma de transposição da Directiva 1999/44/CE para o direito português (exposição de

motivos e articulado), AAFDL, 2002, pp. 54 e segs. Defendendo que o art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 67/2003, derroga claramente o n.º 2 do

art. 432.º do Código Civil, v. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação, Contributo para o Estudo do Direito Privado

Português, cit., p. 484. Como observa o A.: “Incorporando uma sanção para o vendedor alheia, em boa verdade, ao domínio em análise,

a orientação adotada em sede de resolução do contrato pela LVBC derroga claramente o n.º 2 do art. 432.º do CCiv, não sendo ousado

afirmar que o alargamento da faculdade resolutória do comprador encontra paralelo na alteração do critério decisivo de transferência do

risco de perecimento ou deterioração da coisa alienada, formando, com esta solução, um todo coerente”. 1023 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., pp. 109 e 110.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

361

vendedor, ou seja, “independentemente de o defeito (a falta de conformidade) ser ou não

imputável ao alienante” 1024.

A disposição em apreço não parece, porém, visar estes casos em que a perda ou

deterioração resulta do defeito imputável à contraparte, para os quais já parece dever

afirmar-se a imputabilidade do perecimento ou deterioração ao vendedor, podendo o

accipiens resolver mesmo nos termos do art. 432.º, n.º 2, do Código Civil1025.

O art. 4.º, n.º 4, destina-se aos casos em que a coisa alienada com vícios pereça ou se

deteriore por causa não imputável ao comprador, maxime, quando a coisa pereça ou se

deteriore por caso fortuito1026. Com efeito, sendo a norma relativa à resolução do contrato

por “falta de conformidade” da coisa, a sua interpretação não pode ser outra que a de

proporcionar o alargamento do âmbito aplicativo do n.º 2 do art. 432.º do Código Civil.

A solução consagrada pelo art. 4.º, n.º 4, afigura-se perfeitamente em linha com a

solução consagrada na Convenção de Viena de 1980. Com efeito, embora o art. 82.º, n.º 1,

da Convenção de Viena prescreva que o exercício do direito de resolução se encontra

condicionado pela possibilidade de restituição, em estado idêntico, das mercadorias ao

vendedor1027, a alínea a) do n.º 2 do art. 82.º determina que o disposto no n.º 1 não se

aplica “se a impossibilidade de restituir as mercadorias, ou de as restituir num estado

sensivelmente idêntico àquele em que o comprador as recebeu, não se ficar a dever a um

acto ou omissão seus”. A alínea a) do n.º 2 do art. 82.º deve ser conjugada com o art. 70.º

da Convenção de Viena que determina que as regras de transferência do risco, previstas

nos seus arts. 67.º, 68.º e 69.º, não afetam o recurso pelo comprador aos meios de que

dispõe em caso de violação fundamental do contrato pelo vendedor.

Assim, perante a Convenção de Viena, apenas fica excluído o recurso ao direito de

resolução do contrato se a perda ou deterioração das mercadorias se ficou a dever a facto

imputável ao comprador. Em todos os demais casos, o direito de resolução, conferido ao

1024 Cfr. CALVÃO DA SILVA , Venda de Bens de Consumo, cit., p. 110. 1025 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 994, nota 2778. No mesmo

sentido, defendendo que o perecimento da coisa por vício anterior ao memento de transferência do risco, ou que se encontre latente ou

em gérmen naquele momento, se encontra já a coberto do n.º 2 do art. 432.º, v. NUNO AURELIANO, O Risco nos Contratos de Alienação,

Contributo para o Estudo do Direito Privado Português, cit., p. 483. 1026 Neste sentido, PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 994, nota 2778. 1027 Nos termos do art. 82.º, n.º 1, da Convenção de Viena, “[o] comprador perde o direito de declarar o contrato resolvido, ou de exigir

do devedor a entrega de mercadorias de substituição, se lhe é impossível restituir as mercadorias num estado sensivelmente idêntico

àquele em que as recebeu”.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

comprador em caso de violação fundamental do contrato, não é prejudicado, ainda que a

perda ou desaparecimento das mercadorias resulte de caso fortuito1028.

Esta solução contrasta com o disposto no n.º 2 do art. 432.º. Enquanto para efeitos

desta norma, como já vimos, o direito de resolução tem necessariamente por limite a

possibilidade de restituição em espécie, na Convenção de Viena parece ter-se sobreposto a

este condicionalismo a preocupação de tutelar a posição do comprador quando a este

assista uma razão forte – ter havido, designadamente, uma violação fundamental do

contrato por parte do vendedor – para pretender a destruição do contrato1029.

9. A indemnização cumulável com a resolução do contrato e a indemnização

substitutiva da prestação

9.1. A indenização cumulável com a resolução do contrato

A referência ao direito de resolução não poderia terminar sem uma breve menção ao

direito de indemnização. Porque a Diretiva deixou este direito às regras vigentes nas várias

legislações nacionais, abstendo-se, pois, de o regular, importa atender ao disposto no art.

801.º do Código Civil. Nos termos desta disposição, perante um incumprimento definitivo

imputável ao devedor, são duas as opções abertas ao credor. Nos termos do n.º 1, o credor

pode optar pela manutenção do contrato e exigir uma indemnização dos danos causados

em virtude do não cumprimento imputável à contraparte (arts. 798.º e segs.) e, em

alternativa, nos termos do n.º 2, o credor pode resolver o contrato, sem prejuízo, neste caso

“da indemnização que ao caso couber”. Qualquer que seja a opção do credor –

manutenção/resolução – este tem direito a uma indemnização1030. Esta indemnização

1028 Assim, perante um incumprimento grave por parte do vendedor, uma “violação essencial do contrato”, o adquirente pode subtrair-se

ao risco do perecimento fortuito já transferido para a sua esfera com a entrega do bem nos termos dos arts. 67.º, 68.º e 69.º da Convenção

de Viena. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais, Compra e Venda, Cláusulas

Penais, Arbitragem, cit., p. 185. Note-se, aliás, que a solução consagrada pela Diretiva 1999/44/CE em matéria de repartição do risco é

semelhante, como já vimos, à solução consagrada pela Convenção de Viena de 1980. V. RICCARDO OMODEI-SALÉ, Il rischio del

perimento fortuito nella vendita di cosa viziata, Risolubilità del contrato e obbligazioni restitutorie, Cedam, Padova, 2004, p. 152. 1029 MARIA ÂNGELA BENTO SOARES/RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais, Compra e Venda, Cláusulas Penais,

Arbitragem, cit., p. 186. É também esta a solução que resulta do § 364/3 do BGB. 1030 Em contraste com o art. 74.º da Convenção de Viena de 1980, o Código Civil alemão Reformado manteve um sistema de

responsabilidade subjetiva assente numa presunção de culpa (§ 280/1 e 2 do BGB). Deve, contudo, realçar-se que nas normais cadeias

de distribuição o vendedor não tem qualquer obrigação, perante o comprador, de examinar os bens, que muitas vezes circulam em

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

363

pressupõe, no entanto, a existência de culpa por parte do vendedor, culpa esta que, nos

termos do art. 799.º, n.º 1, do Código Civil se presume1031.

Optando o credor pela resolução do contrato, a possibilidade de exigir uma

indemnização resulta do n.º 2 do art. 801.º do Código Civil, que, em caso de falta culposa

do devedor ao cumprimento, autoriza o credor a optar pela sua resolução, sem prejuízo,

neste caso, do “direito à indemnização que ao caso couber”1032. A medida da indemnização

que o credor pode exigir em caso de resolução tem sido objeto de prolongada discussão

doutrinal1033.

Com efeito, como observa Paulo Mota Pinto1034, se é claro que, em caso de falta

culposa do devedor ao cumprimento, optando o credor pela manutenção do contrato, a

medida da indemnização que este pode exigir é a correspondente ao interesse contratual

positivo ou interesse no cumprimento, em caso de resolução discute-se se aquela medida

será a mesma ou se, ao invés, deverá ser a correspondente ao interesse contratual negativo

ou dano da confiança. Ou seja, discute-se se a indemnização visa colocar o credor na

situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido (“interesse contratual

positivo”) ou se, ao invés, se procura apenas compensar o credor das perdas ligadas à mera

celebração do contrato (“interesse contratual negativo”)1035.

embalagens fechadas e dos quais é simples intermediário. Assim, não haverá normalmente negligência da sua parte. V. PETER ROTT,

“German Sales Law Two Years”, cit., p. 250. 1031 Julgamos que, no âmbito da venda de bens de consumo, esta indemnização não deve estar dependente da existência de culpa por

parte do vendedor, baseando-se apenas na circunstância objetiva de incumprimento da obrigação de entrega de bens em conformidade

com o contrato. 1032 Como explica Paulo Mota Pinto, as divergências sobre a possibilidade de cumular uma indemnização por não cumprimento com a

resolução do contrato têm vindo a diminuir, no panorama comparatístico, registando-se um consenso cada vez maior no sentido de que

nada se deve opor a tal cumulação. 1033 Não obstante, note-se que a solução que permite a cumulação da indemnização com o direito à resolução do contrato é a que se

encontra hoje prevista na Convenção de Viena de 1980 sobre a Venda Internacional de Mercadorias, nos Princípios UNIDROIT sobre

Contratos Comerciais Internacionais e nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos. Num ponto todos estes articulados estão de

acordo: admitem a combinação entre diversos “remédios” para o não cumprimento que preveem, como a indemnização do interesse no

cumprimento e a resolução. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., pp. 1636 a

1638. Sobre o interesse no cumprimento, v. D. FRIEDMANN – “The Performance Interest in Contract Damages”, European Review of

Contract Law, October 1995, pp. 628 a 654. 1034 Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., p. 1604. 1035 Aquilo que o credor não poderá fazer é cumular danos “negativos” com danos “positivos”. Sobre esta incompatibilidade lógica, v.

PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, cit., pp. 1003 e segs.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

A nossa doutrina mais clássica, que defende a impossibilidade de cumular a

resolução com a indemnização do interesse contratual positivo1036, invoca argumentos de

tipo lógico e prende-se a uma interpretação rígida da retroatividade resolutiva1037: tendo o

vínculo sido destruído ab initio, não se justificaria uma indemnização pelo interesse

contratual positivo, seria uma contraditio in terminis1038. A indemnização funcionaria

então como um meio complementar dos deveres de restituição, por forma a obter-se o

efeito pretendido pela regra da eficácia retroativa da resolução dos contratos1039. Com a

indemnização pelo interesse contratual negativo visa-se, pois, reconstituir a situação que

existiria se a parte lesada não tivesse celebrado o contrato.

Em crítica a esta posição, pode observar-se que, para além de a resolução poder não

ter eficácia retroativa (v. g., art. 434.º, n.º 2, do Código Civil), o próprio sentido repositivo

da resolução é funcionalmente diferente do da invalidade1040.

A isto acresce que sendo a resolução um direito potestativo, cabe à parte lesada optar

por exercer o direito, desvinculando-se, ou manter o contrato, realizando a contraprestação.

Nesta última hipótese, a indemnização a que o credor tem direito é uma indemnização pelo

1036 Defendendo que a indemnização cumulável com a resolução do contrato é a indemnização do interesse contratual negativo, v.

MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, pp. 976 e segs.; ANTUNES VARELA, Das

Obrigações em Geral, vol. I, cit., pp. 106 e segs. É também esta a posição maioritariamente seguida pelos nossos Tribunais. 1037 O efeito desta argumentação lógica, fez-se sentir, de modo particular, no direito alemão, “onde a resolução (“Rücktritt”), como ato

que põe termo ao contrato sinalagmático e dá origem a obrigações recíprocas de restituição, foi posta numa relação de estrita

alternatividade com a indemnização por vontade do legislador do BGB, baseando-se no efeito ex tunc da resolução e receando um

excessivo favorecimento do credor. Assim, segundo o originário § 325, n.º 1 (1.ª frase), desse Código, tornando-se impossível a

prestação devida por uma das partes, por causa de uma circunstância pela qual ela responde, a “outra parte pode exigir indemnização por

não cumprimento ou resolver o contrato”. Como a idemnização era admitida em alternativa à resolução do contrato, entendia-se que a

Schadensersatz seria pelo interesse contratual positivo, sendo lícito ao credor resolver o contrato e pedir uma indemnização (menor) pelo

interesse contratual negativo. A remoção desse regime foi um dos objetivos menos polémicos da “modernização do direito das

obrigações”, assumido já desde os trabalhos preparatórios da reforma do direito das obrigações. O novo § 325 do Código alemão veio,

assim, dispor que o “direito de exigir indemnização num contrato bilateral não é afastado pela resolução”, numa solução sublinhada na

doutrina como alteração significativa, que eliminou uma “famosa insuficiência” do regime do não cumprimento. No direito alemão,

passou, portanto, desde a reforma de 2001, a permitir-se a cumulação da resolução com a indemnização, tendo a modificação da relação

contratual numa “relação de liquidação”, operada pela resolução, deixado de extinguir o interesse no cumprimento e os deveres

secundários de indemnização resultantes do não cumprimento. 1038 V. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 205. A nossa jurisprudência considera nula a cláusula contratual que

permite a resolução cumulada com uma indemnização pelo interesse contratual positivo. V. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

de 27 de fevereiro de 1992, Colectânea de Jurisprudência, XVII, T. I, p. 172. 1039 V. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 204. 1040 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p. 296.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

365

interesse contratual positivo, ou seja, uma indemnização que visa colocá-lo na situação em

que ele estaria se o contrato houvesse sido pontualmente cumprido.

Ora, não nos parece que a opção resolutiva possa ser sancionada, em desfavor do

lesado, com uma indemnização “menor” que não é suficientemente preventiva do

incumprimento e pode não cobrir os prejuízos que o incumprimento trouxe ao

legitimado1041. Esta indemnização poderia ser até um incentivo para o devedor não

cumprir.

Refira-se, ainda, que em caso de cumprimento defeituoso que viabilize a resolução

do contrato, tendo a parte lesada optado pelo exercício do direito potestativo de resolução

do contrato, poder-lhe-ia ser vedada a indemnização pelos designados danos subsequentes

(Mangelfolgeschäden) especialmente relacionados com os defeitos da prestação1042. Ora,

da resolução, ainda que com eficácia retroativa, não pode resultar a inviabilidade de

reparar os danos que advêm justamente da causa que fundamenta a resolução.

Pensamos, pois, que a indemnização cumulável com a resolução do contrato é uma

indemnização pelo interesse contratual positivo, calculada de acordo com a teoria da

diferença. Esta indemnização, que abrange quer o dano emergente, quer o lucro cessante,

visa colocar o lesado numa situação idêntica àquela em que ele estaria se o contrato tivesse

sido cumprido1043.

Refira-se, aliás, que o Acórdão do TJUE de 16 de junho de 2011, processos apensos

C‑65/09 e C-87/09 (Weber e Putz), já referido, interpretou o direito do consumidor à

reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição, como o direito a ficar

colocado na situação em que estaria se o vendedor tivesse ab initio entregue os bens em

conformidade com o contrato1044. Ora, a atribuição ao consumidor de uma indemnização

1041 V. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., 302. 1042 V. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, cit., p. 206 1043 Esta posição que encontra apoio em alguma doutrina v., nomeadamente, BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por

Incumprimento”, cit., pp. 175 e segs., e “A Resolução por Incumprimento e a Indemnização”, Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica,

Braga, 1991, pp. 195 a 213, pp. 195 e segs.; RIBEIRO DE FARIA, “A Natureza do Direito de Indemnização Cumulável com o Direito de

Resolução dos Arts. 801.º e 802.º do Código Civil”, Direito e Justiça, vol. VIII (1994), Tomo 1, pp. 57 a 89, pp. 82 e segs.; ANA PRATA,

Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, Coimbra, 1985, pp. 479 e segs.; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da

Cessação do Contrato, cit., pp. 205 e segs.; Esta posição está em linha com a Convenção de Viena sobre a Compra e Venda

Internacional de Mercadorias, que, nos arts. 74.º e segs., permite que, não obstante a resolução por incumprimento (arts. 49.º e 64.º), a

parte fiel reclame o pagamento dos prejuízos sofridos; dos Princípios UNIDROIT (art. 7.3.5.2); e dos PECL (arts. 9501 e segs.). 1044 V. O Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2011 (Weber e Putz), n.º [60]: “Os direitos assim conferidos aos

consumidores pelo art. 3.º da diretiva [...] visam [...] repor a situação que existiria se o vendedor tivesse entregue logo de início um bem

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pelo interesse contratual negativo por não colocar o consumidor na situação em que ele

estaria se o vendedor tivesse cumprido a sua obrigação de entrega de bens em

conformidade com o contrato, mas apenas na situação em que estaria se o contrato nunca

tivesse sido celebrado, não se afiguraria conforme à proteção completa e efetiva do

interesse do consumidor no cumprimento, que o art. 3.º da Diretiva visa conferir1045.

9.2. A indemnização substitutiva da prestação

Estando preenchidos os pressupostos de que depende o exercício do direito de

resolução do contrato, o consumidor pode, ainda, em alternativa à resolução do contrato

(cumulável com a indemnização pelo interesse contratual positivo calculada de acordo com

a teoria da diferença), atuar o direito subjetivo propriamente dito de indemnização1046.

Esta indemnização, que o art. 801.º, n.º 1, prevê expressamente, é uma indeminzação

pelo interesse contratual positivo, que visa colocar o credor na situação em que ele estaria

se o contrato tivesse sido cumprido e deve, segundo pensamos, ser calculada de acordo

com a teoria da sub-rogação ou da troca e não de acordo com a teoria da diferença1047. Na

conforme, têm, por força do art. 7.º da diretiva carácter vinculativo para o vendedor. Acresce que resulta do art. 8.º, n.º 2, da directiva

que a proteção prevista neste diploma é mínima e que, embora os Estados-Membros possam adotar disposições mais estritas, não podem

prejudicar as garantias previstas pelo legislador da União”. 1045 A este propósito, defende NUNO PINTO OLIVEIRA , “Contract Law, Liability Rules, and Property Rules”, ERCL 2013; 9 (4), pp. 1 a

18, p. 10, que, no caso de não ser possível nem a reparação nem a substituição, por serem ambas impossíveis, as lacunas na estrutura dos

remédios do consumidor por falta de conformidade dos bens com o contrato tem de ser preenchida por forma a criar a moldura para uma

apropriada e efetiva proteção do interesse do consumidor no cumprimento. O Direito Europeu deve conformar-se com o princípio da

igualdade: “situações semelhantes não podem ser tratadas de forma diferente”; “situações diferentes não podem ser tratadas da mesma

forma a não ser que esse tratamento seja objectivamente justificado”. O Direito Europeu impede os Estados-Membros de tornarem

impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico europeu. O Autor defende

que, de acordo com o princípio da igualdade de tratamento e da efetividade, as normas da legislação nacional relativas à

responsabilidade contratual devem autorizar o consumidor a escolher entre duas medidas de danos. Em primeiro lugar, o consumidor

deve ter a opção de exigir o ressarcimento dos danos que sofreu em virtude do não cumprimento “expectation damages” (interesse

contratual positivo); em segundo lugar, o consumidor deva ter a opção de exigir a restituição do lucro que o vendedor obteve em virtude

do não cumprimento “disgorgement damages”. A possibilidade de optar pela restituição do lucro obtido pelo vendedor em consequência

da violação da promessa seria essencial para uma efetiva proteção do interesse do consumidor no cumprimento, pois só assim se

conseguiria dissuadir o vendedor do incumprimento e compeli-lo a cumprir a sua promessa de entregar ao consumidor um bem

conforme com o contrato. Sobre a questão de saber em que termos é que através da responsabilidade contratual se pode exigir a

restituição do lucro obtido com o inadimplemento, v. M. CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil. Responsabilidade Civil. O Método do

Caso, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 68 e 69. 1046 O Código Civil alemão prevê expressamente, no § 437/3, a possibilidade de o comprador exercer este direito em caso de vícios da

coisa. 1047 Neste sentido, v. NUNO PINTO DE OLIVEIRA , Princípios de Direito dos Contratos, cit., p. 694.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

367

verdade, admitir que esta indemnização pudesse ser calculada segundo a teoria da

diferença significaria admitir que o efeito liberatório do credor pudesse ser alcançado

através do exercício do direito de resolução do contrato ou, alternativamente, através do

exercício do direito subjetivo propriamente dito de indemnização substitutiva da

prestação1048. Ora, de acordo com o nosso Código Civil, a única forma de o credor se

desvincular do contrato bilateral sinalagmático é através da sua resolução.

No que toca à possibilidade de o consumidor exercer o direito subjetivo

propriamente dito a uma indemnização substitutiva da prestação importa ainda sublinhar

que, sob pena de se pôr em causa a proteção efetiva do interesse do consumidor no

cumprimento, que o legislador comunitário visou assegurar concedendo primazia aos

direitos orientados para o cumprimento, esta indemnização deve estar sujeita aos mesmos

pressupostos que a lei exige para a resolução do contrato, não sendo admissível que o

vendedor se possa desvincular da sua obrigação de entrega de bens em conformidade com

o contrato, mediante o pagamento de uma indemnização substitutiva da prestação. Esta

indemnização, sendo uma alternativa ao exercício do direito potestativo de resolução do

contrato, deve estar submetida aos pressupostos que a lei exige para a resolução, que é

sempre uma medida de ultima ratio1049.

1048 Em sentido contrário, defendendo que o efeito liberatório pode ser alcançado através do exercício do direito potestativo de resolução

ou do direito subjetivo propriamente dito à indemnização (substitutiva da prestação), v. BAPTISTA MACHADO, “A Resolução por

Incumprimento e a Indemnização”, cit., p. 198. O argumento para demonstrar que o efeito liberatório pode não ser alcançado através da

resolução do contrato decorre do art. 795.º do Código Civil que estabelece, em caso de impossibilidade superveniente da prestação não

imputável ao devedor, a extinção automática da contraprestação. 1049 Nos termos do art. 3.º, n.º 5, da Diretiva 1999/44/CE este direito só poderá ser exercido se o consumidor não tiver direito a reparação

nem a substituição; se o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável; se o vendedor não tiver encontrado uma

solução sem grave inconveniente para o consumidor. Isto significa que apesar de a Diretiva não regular o direito à indemnização, a

indemnização funcionalmente equivalente à resolução do contrato e à redução do preço deve estar sujeita aos mesmos limites. No

Código Civil alemão Reformado, este objetivo foi alcançado através de uma redação paralela dos §§ 281 (que prevê a indemnização

substitutiva da prestação “Schadensersatz statt der Leistung”) e 323 do BGB (que consagra o princípio das duas oportunidades e,

portanto, a ordem hierárquica que resulta do art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE).

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10. Prazos

10.1. Prazo de garantia

O vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade

que exista no momento em que o bem lhe é entregue e se manifeste dentro de dois ou cinco

anos a contar da entrega, consoante se trate de coisa móvel ou imóvel, respetivamente1050.

Estes dois pressupostos implicam três ónus probatórios para o comprador: a prova da

falta de conformidade; a prova da existência do defeito já na data da entrega do bem,

existência que se presume se a falta de conformidade se revelar ou manifestar dentro de

dois ou cinco anos após a entrega da coisa móvel ou imóvel, respetivamente; a prova da

revelação ou manifestação do defeito de conformidade dentro de dois ou cinco anos após a

entrega da coisa móvel ou imóvel, respetivamente, prova consumida na demonstração da

falta de conformidade.

O prazo de garantia de dois anos pode ser reduzido, por acordo das partes, até um

ano, quando se trate de coisa móvel usada – norma resultante da faculdade reconhecida aos

Estados-Membros pelo art. 7.º, n.º 1, 2.ª parte, da Diretiva 1999/44/CE, em atenção à mais

baixa expectativa que o consumidor normalmente terá acerca da qualidade e performance

de um bem já usado e com mais ou menos idade.

Nos termos do n.º 6 do art. 5.º do DL n.º 67/2003, introduzido pelo DL n.º 84/2008,

“[h]avendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou

de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respectivamente, de bem

móvel ou imóvel”.

O novo n.º 7, introduzido pelo DL n.º 84/2008, corresponde substantivamente ao ora

revogado n.º 5 do mesmo art. 5.º: suspensão do prazo de garantia a partir da data da

denúncia, durante o período em que o consumidor estiver privado do uso do bem com o

objetivo da sua reparação ou de solução amigável do caso.

1050 Este prazo de garantia de dois anos é significativamente mais elevado que o prazo de seis meses previsto no art. 916.º, n.º 2, do

Código Civil.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

369

10.2. Denúncia do defeito e caducidade dos direitos

Nos termos do n.º 2 do art. 5.º-A impõe-se ao consumidor o ónus de denunciar ao

vendedor os defeitos de conformidade para fazer valer os seus direitos. A denúncia deve

ser feita no prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de

bem imóvel, a contar da data em que o consumidor tenha detetado a falta de

conformidade1051.

Nos termos do n.º 3 do art. 5.º- A, tendo o consumidor efetuado a denúncia, os

direitos atribuídos ao consumidor nos termos do art. 4.º caducam, tratando-se de bem

móvel, decorridos dois anos a contar da data da denúncia. Tratando-se de imóvel, no prazo

de três anos a contar dessa mesma data1052.

Nos termos do n.º 4, “o prazo [de caducidade] referido no número anterior

suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o

objectivo de realização das operações de reparação ou de substituição, bem como durante o

período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que

opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem”.

CONCLUSÕES

A análise que empreendemos permite-nos concluir que a venda regulada pelo DL n.º

67/2003, de 8 de abril, que transpôs para a nossa ordem jurídica interna a Diretiva

1999/44/CE, corresponde a um modelo de venda diferente daquele que o nosso legislador

histórico tomou como paradigma.

O confronto entre as disposições consagradas no DL n.º 67/2003 e as disposições

consagradas no nosso Código Civil é, pois, antes do mais, um confronto entre dois

1051 Este prazo de denúncia (de sessenta dias) é mais elevado que o prazo de denúncia de trinta dias, previsto nos arts. 916.º, n.os 1 e 2, do

Código Civil. 1052 Este prazo de caducidade é também mais elevado do que o prazo de seis meses previsto no art. 917.º do Código Civil. Note-se,

porém, que existindo erro provocado (dolo do vendedor) sobre as qualidades de uma coisa móvel, o regime especial da venda de bens de

consumo pode ser concretamente menos favorável ao consumidor que o regime geral: no regime geral não há prazo de garantia nem

prazo de denúncia, no regime especial da venda de bens de consumo há um prazo de garantia (de dois anos) e um prazo de denúncia (de

seis meses).

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

paradigmas: entre o paradigma da venda de bens de consumo, tendencialmente produzidos

em série e fungíveis, e o paradigma da venda de coisa específica de bens tendencialmente

infungíveis.

De acordo com o paradigma adotado pelo legislador comunitário, não faz sentido a

diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica; de

acordo com o paradigma de venda adotado pelo nosso legislador histórico, é sustentável a

diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica,

diferenciação que aliás encontra expresso acolhimento no Código Civil português. O

fundamento da diferenciação dogmática entre a venda de coisa específica e a venda de

coisa genérica reside na forma de conceber o objeto da venda específica: porque, de acordo

com o paradigma de venda adotado pelo legislador comunitário o objeto da venda é

sempre a coisa ideal (conforme ao contrato e às expectativas do consumidor), a

diferenciação dogmática não faz sentido; porque, de acordo com o paradigma de venda

adotado pelo nosso legislador histórico o objeto da venda específica é a coisa concreta,

perfeitamente determinada e individualizada no momento da celebração do contrato, a

diferenciação dogmática é sustentável.

Esta diferença de paradigma reflete-se profundamente na forma de conceber a

responsabilidade do vendedor pela entrega de uma coisa defeituosa e no nível de tutela

conferido ao comprador. Porque para o legislador comunitário o vendedor não está

obrigado a entregar a coisa concreta mas um bem que seja conforme com o contrato e com

as expectativas do consumidor e que, por conseguinte, satisfaça o seu interesse, se o bem

entregue não for conforme com o contrato, o vendedor incumpre a sua obrigação principal

de entrega de um bem que seja conforme com o contrato e responde contratualmente

perante o consumidor, que pode fazer valer os direitos previstos no art. 4.º do DL n.º

67/2003, exigindo a reposição da conformidade devida, por meio de reparação ou

substituição, a redução do preço e a resolução do contrato. Os direitos orientados para o

cumprimento assumem primazia relativamente aos direitos orientados para a reposição do

equilíbrio sinalagmático ou para a dissolução da relação contratual, primazia que resulta

explicitamente do art. 3.º do diploma comunitário e implicitamente do art. 4.º do diploma

de transposição, que estabelece como limites à livre opção do consumidor os princípios da

boa-fé e do abuso do direito.

A primazia dos direitos orientados para o cumprimento, visa colocar o consumidor

na situação em que estaria se o vendedor tivesse entregue ab initio um bem conforme com

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

371

o contrato e, por isso, garante uma proteção completa e efetiva do interesse do credor no

cumprimento.

Porque para o nosso legislador histórico, na venda de coisa específica, o vendedor

está obrigado a entregar a coisa concreta, com ou sem qualidades, com ou sem defeitos, da

qual, aliás, o comprador se tornou proprietário por mero efeito do contrato [arts. 408.º, n.º

1, 874.º e 879.º, alínea a)], o vendedor cumpre se entregar ao comprador a coisa concreta.

Esta conceção acerca do objeto da venda específica explica a decisão do nosso legislador

histórico de reconduzir o regime da venda específica de coisas defeituosas aos institutos do

erro e do dolo e explica a configuração do erro sobre as qualidades do objeto como erro-

vício.

A decisão legislativa de reconduzir o regime da venda de coisa específica defeituosa

aos institutos do erro e do dolo não se afigura sustentável, pelo menos de iure condendo,

relativamente a um sub-tipo de venda específica que é a venda específica de bens

fungíveis. Esta venda específica, em que o consumidor individualiza o bem antes da

celebração do contrato mas o caracteriza por referência às qualidades habituais ou normais

do género a que pertence, é uma venda que assenta em interesses típicos da venda genérica

– a vontade do comprador não é a de adquirir a coisa concreta mas uma coisa igual àquela.

Por conseguinte, neste tipo de venda, tal como na venda genérica, o conteúdo do dever de

prestação do vendedor deve estender-se às qualidades habituais ou normais do género. O

legislador histórico terá intuído o problema ao consagrar, no art. 914.º do Código Civil, o

direito do comprador à reparação ou substituição da coisa, que pode ser exercido mesmo

pelo comprador de coisa específica, desde que, no que toca ao direito à substituição, a

coisa tenha natureza fungível.

Não obstante, para além de este direito não se afigurar compatível com o direito à

anulação do contrato por erro ou dolo (art. 905.º aplicável ex vi art. 913.º), o mesmo pode

ser afastado se o vendedor provar que desconhecia sem culpa o vício ou defeito de que a

coisa padece. Esta possibilidade revela um favor venditoris que claramente coloca a

proteção do comprador aquém daquela que lhe é conferida pelo diploma comunitário.

Note-se, ainda, que na hipótese de o comprador anular o contrato, a lei civil apenas

assegura a proteção do seu interesse negativo, ou seja, a sua colocação numa situação

idêntica à que estaria se o contrato nunca tivesse sido celebrado.

Tomando como paradigma, não apenas no âmbito da venda de bens de consumo mas

também no âmbito da compra e venda civil, a venda específica de bens que o consumidor

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caracteriza por referência às características próprias do género a que pertencem, deixaria

de fazer sentido a diferenciação dogmática entre venda específica e venda genérica,

devendo pois adotar-se, à semelhança da Diretiva 1999/44/CE e dos vários textos de

harmonização do “Direito Europeu dos Contratos”, e do Código Civil alemão Reformado,

um regime unitário de não cumprimento, assente na exigência de conformidade dos bens

com o contrato, aplicável quer à venda de coisa específica quer à venda de coisa genérica.

Nos casos em que o comprador adquire um bem que é único (não fungível), ou ainda

naqueles em que o comprador adquire um bem fungível, mas em que as qualidades do

género em que ele se integra são apenas pressupostas, sendo diversa a razão determinante

da sua aquisição, a tutela do comprador poderia encontrar-se nas disposições relativas ao

erro, que, por terem relevância legal, se aplicariam diretamente, independentemente de

qualquer remissão para elas feita por outras disposições do Código.

O modelo de responsabilidade do vendedor assente no princípio da conformidade

dos bens com o contrato, consagrado na Diretiva e no diploma nacional de transposição,

absorve o problema do risco da contraprestação e não é compatível com a conexão da

transferência do risco à titularidade do direito real pressuposta pelo n.º 1 do artigo 796.º do

Código Civil. O momento da transferência do risco, de acordo com a Diretiva e com o

diploma nacional de transposição, é momento em que o vendedor cumpre a sua obrigação

de entrega de bens em conformidade com o contrato, sendo que o momento relevante para

averiguar o cumprimento desta obrigação é o momento da entrega efetiva dos bens ao

consumidor.

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ANEXOS

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393

DIRECTIVA 1999/44/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO

de 25 de Maio de 1999

relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas

O PARLAMENTO EUROPEU E O

CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA,

Tendo em conta o Tratado que institui a

Comunidade Europeia e, nomeadamente, o seu

artigo 195.º,

Tendo em conta a proposta da Comissão(1),

Tendo em conta o parecer do Comité Económico

e Social(2),

Deliberando nos termos do artigo 251.º do Tratado,

de acordo com o projecto comum aprovado pelo

Comité de Conciliação em 18 de Março de 1999(3),

(1) Considerando que o n.º 1 e 3 do artigo 153.º do

Tratado estabelece que a Comunidade deve

contribuir para a realização de um nível elevado

de defesa dos consumidores através de medidas

adoptadas nos termos do artigo 95.º;

(2) Considerando que o mercado interno comporta

um espaço sem fronteiras internas no qual é

assegurada a livre circulação de mercadorias, de

pessoas, de serviços e de capitais; que a livre

circulação de mercadorias não respeita apenas ao

comércio profissional, mas também às

transacções efectuadas pelos particulares; que

implica que os consumidores residentes num

Estado-Membro possam adquirir bens no

território de outro Estado-Membro com base

(1) JO C 307 de 16.10.1996, p. 8, e JO C 148 de 14.5.1998, p.

12.

(2) JO C 66 de 3.3.1997, p. 5.

(3) Parecer do Parlamento. Europeu de 10 de Março de 1998

(JO C 104 de 6.4.1998, p. 30), posição comum do Conselho de 24

de Setembro de 1998 (JO C 333 de 30.10.1998, p. 46) e decisão

do Parlamento Europeu de 17 de Dezembro de 1998 (JO C 98 de

9.4.1999, p. 226). Decisão do Parlamento Europeu de 7 de Maio

de 1999. Decisão do Conselho de 17 de Maio de 1999.

num conjunto mínimo de regras equitativas que

regulem a venda de bens de consumo;

(3) Considerando que as legislações dos Estados-

-Membros respeitantes às vendas de bens de

consumo apresentam muitas disparidades, daí

resultando que os mercados nacionais de venda

de bens de consumo difiram entre si e que se

possam verificar distorções na concorrência entre

os vendedores;

(4) Considerando que o consumidor que procura

beneficiar das vantagens do grande mercado,

comprando bens num Estado-Membro diverso do

da sua residência, desempenha um papel

fundamental na realização do mercado interno;

que a criação artificial de fronteiras e a compar-

timentação dos mercados deve ser impedida; que

as possibilidades de que dispõem os consu-

midores foram consideravelmente alargadas

pelas novas tecnologias da comunicação, que

permitem o acesso fácil a sistemas de distribui-

ção de outros Estados-Membros ou de países

terceiros; que, na ausência de harmonização

mínima das regras relativas à venda de bens de

consumo, o desenvolvimento da venda de bens

por via das novas tecnologias da comunicação à

distância corre o risco de ser entravado;

(5) Considerando que a criação de um corpo mínimo

comum de direito do consumo, válido

independentemente do local de aquisição dos

bens na Comunidade, reforçará a confiança dos

consumidores e permitir-lhes-á beneficiar mais

das vantagens do mercado interno;

(6) Considerando que as principais dificuldades

encontradas pelos consumidores, e a principal

fonte de conflitos com os vendedores, se referem

à não conformidade dos bens com o contrato;

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394

que convém, portanto, aproximar as legislações

nacionais relativas à venda de bens de consumo

sob este aspecto, sem todavia prejudicar as

disposições e os princípios das legislações

nacionais relativas aos regimes de responsabi-

lidade contratual e extra-contratual;

(7) Considerando que os bens devem, antes de mais,

ser conformes às cláusulas contratuais; que o

princípio de conformidade com o contrato pode

ser considerado como uma base comum às dife-

rentes tradições jurídicas nacionais; que em

determinadas tradições jurídicas nacionais nem

sempre é possível confiar unicamente neste prin-

cípio para garantir aos consumidores um nível

mínimo de protecção; que, especialmente nessas

tradições jurídicas, podem ser úteis disposições

nacionais suplementares destinadas a garantir a

protecção dos consumidores nos casos em que as

partes não acordaram em cláusulas contratuais

específicas ou em que as partes acordaram em

cláusulas ou firmaram acordos que directa ou

indirectamente anulam ou restringem os direitos

dos consumidores e que, na medida em que esses

direitos resultem da presente directiva, não são

vinculativos para os consumidores;

(8) Considerando que, para facilitar a aplicação do

princípio de conformidade com o contrato, é útil

introduzir uma presunção ilidível de conformida-

de com este, que abranja as situações mais

correntes; que essa presunção não restringe o

princípio da liberdade contratual das partes; que,

além disso, na inexistência de cláusulas contratu-

ais específicas, bem como no caso de aplicação da

cláusula da protecção mínima, os elementos que

constituem essa presunção podem servir para

determinar a não conformidade dos bens com o

contrato; que a qualidade e o comportamento que

os consumidores podem razoavelmente esperar

dependerá, nomeadamente, do facto de os bens

serem em primeira ou em segunda mão; que os

elementos que constituem a presunção são cumu-

lativos; que, se as circunstâncias do caso tornarem

qualquer elemento específico manifestamente

inapropriado, continuarão, não obstante, a ser

aplicáveis os restantes elementos da presunção;

(9) Considerando que o vendedor deve ser

directamente responsável perante o consumidor

pela conformidade dos bens com o contrato; que é

essa a solução tradicional consagrada na ordem

jurídica dos Estados-Membros; que, não obstante,

o vendedor, nos termos do direito nacional, deve

gozar de um direito de reparação perante o

produtor, um vendedor anterior da mesma cadeia

contratual, ou qualquer outro intermediário, salvo

se tiver renunciado a esse direito; que a presente

directiva não prejudica o princípio da liberdade

contratual entre o vendedor, o produtor, um

vendedor anterior ou qualquer outro interme-

diário; que as normas que regem o modo como o

vendedor pode exercer esse direito de reparação

são determinadas pela legislação nacional;

(10) Considerando que, em caso de não

conformidade do bem com o contrato, os

consumidores devem ter o direito de obter que os

bens sejam tornados conformes com ele sem

encargos, podendo escolher entre a reparação ou

a substituição, ou, se isso não for possível, a

redução do preço ou a rescisão do contrato;

(11) Considerando desde logo que os consumidores

podem exigir do vendedor a reparação ou a

substituição do bem, a menos que isso se revele

impossível ou desproporcionado; que, a despro-

porção deve ser determinada objectivamente; que

uma solução é desproporcionada se impuser

custos excessivos em relação à outra solução;

que, para que os custos sejam excessivos, devem

ser significativamente mais elevados que os da

outra forma de reparação do prejuízo;

(12) Considerando que, em caso de falta de

conformidade, o vendedor pode sempre oferecer ao

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

395

consumidor, como solução, qualquer outra forma

de reparação possível; que compete ao consumidor

decidir se aceita ou rejeita essa proposta;

(13) Considerando que, a fim de permitir que os

consumidores beneficiem do mercado interno e a

comprarem bens de consumo num outro Estado-

-Membro, dever-se-á recomendar que, no inte-

resse dos consumidores, os produtores de bens de

consumo comercializados em diversos Estados-

-Membros juntem ao produto uma lista indicando,

pelo menos, um endereço de contacto em cada

Estado-Membro em que o produto for comercializado;

(14) Considerando que as referências à data de entrega

não implicam que os Estados-Membros devam

alterar as suas normas sobre transferência do risco;

(15) Considerando que os Estados-Membros podem

dispor no sentido de que qualquer reembolso ao

consumidor possa ser reduzido, de modo a ter em

conta a utilização que o consumidor fez dos

produtos a partir do momento em que lhe foram

entregues; que as disposições de pormenor

mediante as quais a rescisão do contrato ganha

efeito podem ser fixadas na legislação nacional;

(16) Considerando que a natureza específica dos

produtos em segunda mão torna, de modo geral,

impossível a sua reposição; que, por isso, o

direito do consumidor à substituição não é, em

geral, aplicável a esses produtos; que, os

Estados-Membros, quanto a esses produtos,

podem permitir que as partes acordem num prazo

de responsabilidade mais curto;

(17) Considerando que se deve encurtar o prazo

durante o qual o vendedor é responsável por

qualquer falta de conformidade existente no

momento da entrega dos bens; que os Estados-

-Membros podem igualmente prever a limitação

do prazo durante o qual os consumidores podem

exercer os seus direitos, desde que não expire

nos dois anos seguintes ao momento da entrega;

que, quando, nos termos de uma legislação

nacional, a data em que o prazo se inicia não seja

a data de entrega dos bens, a duração total do

prazo previsto nessa legislação nacional não

pode ser inferior a dois anos a contar da data de

entrega;

(18) Considerando que os Estados-Membros podem

prever a suspensão ou o reinício do prazo durante

o qual a falta de conformidade se deverá

manifestar e do prazo de prescrição, quando

aplicáveis, nos termos das respectivas legislações

nacionais, em caso de reparação, de substituição

ou de negociações entre o vendedor e o

consumidor com vista a uma solução amigável;

(19) Considerando que os Estados-Membros devem

poder fixar um prazo durante o qual os

consumidores devem informar o vendedor de

qualquer falta de conformidade; que os Estados-

Membros podem assegurar aos consumidores um

nível de protecção mais elevado não introduzindo

uma obrigação desse tipo; que, de qualquer modo,

os consumidores comunitários devem dispor de,

pelo menos, dois meses para informar o vendedor

da existência da falta de conformidade;

(20) Considerando que os Estados-Membros devem

agir de modo a que esse prazo não coloque em

desvantagem os consumidores que adquiram bens

além-fronteiras; que todos os Estados-Membros

devem informar a Comissão sobre o modo como

aplicam esta disposição; que a Comissão deve con-

trolar o efeito das diferentes aplicações desta

disposição sobre os consumidores e no mercado

interno; que as informações sobre o modo como os

Estados-Membros as aplicam devem estar disponí-

veis para os restantes Estados-Membros, para os

consumidores e para as organizações de consumi-

dores em toda a Comunidade; que uma síntese da

situação em todos os Estados-Membros deve, pois,

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396

ser publicada no Jornal Oficial das Comunidades

Europeias;

(21) Considerando que, quanto a determinadas

categorias de bens, é prática corrente os

vendedores e os produtores oferecerem garantias

contra qualquer defeito que possa manifestar-se

durante determinado prazo; que esta prática pode

estimular a concorrência; que, constituindo

embora práticas comerciais legítimas, essas

garantias não devem induzir os consumidores em

erro; que, para assegurar este objectivo, as

garantias devem conter determinadas informações,

incluindo uma declaração de que a garantia não

afecta os direitos legais dos consumidores;

(22) Considerando que as partes não podem, por

acordo mútuo, restringir ou renunciar aos direitos

reconhecidos aos consumidores, uma vez que

dessa forma estariam a viciar a protecção jurídica

concedida; que este princípio deve aplicar-se

igualmente às cláusulas segundo as quais o

consumidor teria conhecimento de qualquer falta

de conformidade dos bens de consumo existente

no momento em que celebrou o contrato; que a

protecção reconhecida aos consumidores nos

termos da presente directiva não deve ser

reduzida com fundamento em que a lei de um

Estado não membro foi escolhida como lei

aplicável ao contrato;

(23) Considerando que a legislação e a

jurisprudência neste domínio revelam, nos

diferentes Estados-Membros, a existência de uma

preocupação crescente em garantir um elevado

nível de protecção dos consumidores; que,

atendendo a esta evolução e à experiência

adquirida com a aplicação da presente directiva,

poderá ser necessário considerar um grau mais

elevado de harmonização e prever, nomeada-

mente, a responsabilidade directa do produtor

pelos defeitos de que é responsável;

(24) Considerando que os Estados-Membros devem

dispor da faculdade de adoptar ou de manter, no

domínio regulado pela presente directiva, disposi-

ções mais estritas, com o objectivo de garantir um

nível mais elevado de protecção dos consumidores;

(25) Considerando que, segundo a recomendação da

Comissão, de 30 de Março de 1998, relativa aos

princípios aplicáveis aos organismos responsá-

veis pela resolução extrajudicial de litígios de

consumo(4), os Estados-Membros podem criar

organismos que garantam um tratamento

imparcial e eficaz das queixas num contexto

nacional e transfronteiras e a que os consumi-

dores possam recorrer como mediadores;

(26) Considerando que, para a defesa dos interesses

colectivos dos consumidores, é conveniente aditar

a presente directiva à lista de directivas enunciada

no anexo da Directiva 98/27/CE do Parlamento

Europeu e do Conselho, de 19 de Maio de 1988,

relativa às acções inibitórias em matéria de

protecção dos interesses dos consumidores(5),

ADOPTARAM A PRESENTE DIRECTIVA:

Artigo 1.º

Âmbito de aplicação e definições

1. A presente directiva tem por objectivo a

aproximação das disposições legislativas,

regulamentares e administrativas dos Estados-

-Membros relativas a certos aspectos da venda de

bens de consumo e das garantias a ela relativas, com

vista a assegurar um nível mínimo uniforme de defesa

dos consumidores no contexto do mercado interno.

2. Para efeitos da presente directiva, entende-se por:

(4) JO L 115 de 17.4.1998, p. 31

(5) JO L 166 de 11.6.1998, p. 51.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

397

a) Consumidor: qualquer pessoa singular que,

nos contratos abrangidos pela presente directiva,

actue com objectivos alheios à sua actividade

comercial ou profissional;

b) Bem de consumo: qualquer bem móvel

corpóreo, com excepção:

– dos bens vendidos por via de penhora, ou

qualquer outra forma de execução judicial,

– da água e do gás, quando não forem postos à

venda em volume delimitado, ou em quantidade

determinada,

– da electricidade;

c) Vendedor: qualquer pessoa singular ou

colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens

de consumo no âmbito da sua actividade profissional;

d) Produtor: o fabricante de um bem de consumo,

o importador do bem de consumo no território da

Comunidade ou qualquer outra pessoa que se

apresente como produtor através da indicação do seu

nome, marca ou outro sinal identificador no produto;

e) Garantia: qualquer compromisso assumido

por um vendedor ou um produtor perante o

consumidor, sem encargos adicionais para este, de

reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou

ocupar-se de qualquer modo de um bem de

consumo, no caso de este não corresponder às

condições enumeradas na declaração de garantia ou

na respectiva publicidade;

f) Reparação: em caso de falta de conformidade,

a reposição do bem de consumo em conformidade

com o contrato de compra e venda.

3. Os Estados-Membros podem prever que a

definição de “bem de consumo” não abranja os bens

em segunda mão adquiridos em leilão, quando os

consumidores tenham oportunidade de assistir

pessoalmente à venda.

4. Para efeitos da presente directiva, são

igualmente considerados contratos de compra e

venda os contratos de fornecimento de bens de

consumo a fabricar ou a produzir.

Artigo 2.º

Conformidade com o contrato

1. O vendedor tem o dever de entregar ao

consumidor bens que sejam conformes com o

contrato de compra e venda.

2. Presume-se que os bens de consumo são

conformes com o contrato, se:

a) Forem conformes com a descrição que deles é

feita pelo vendedor e possuírem as qualidades do

bem que o vendedor tenha apresentado ao

consumidor como amostra ou modelo;

b) Forem adequados ao uso específico para o

qual o consumidor os destine e do qual tenha

informado o vendedor quando celebrou o contrato e

que o mesmo tenha aceite;

c) Forem adequados às utilizações habitualmente

dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Apresentarem as qualidades e o desempenho

habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor

pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do

bem e, eventualmente às declarações públicas sobre

as suas características concretas feitas pelo vendedor,

pelo produtor ou pelo seu representante, nomeada-

mente na publicidade ou na rotulagem.

3. Não se considera existir falta de

conformidade, na acepção do presente artigo, se, no

momento em que for celebrado o contrato, o

consumidor tiver conhecimento dessa falta de

conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la

ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo

consumidor.

4. O vendedor não fica vinculado pelas

declarações públicas a que se refere a alínea d) do

n.º 2, se:

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

398

– demonstrar que não tinha conhecimento nem

podia razoavelmente ter conhecimento da declaração

em causa,

– demonstrar que, até ao momento da celebração

do contrato, a declaração em causa fora corrigida, ou

– demonstrar que a decisão de comprar o bem de

consumo não poderia ter sido influenciada pela

declaração em causa.

5. Presume-se que a falta de conformidade

resultante de má instalação do bem de consumo é

equiparada a uma falta de conformidade do bem

quando a instalação fizer parte do contrato de

compra e venda e tiver sido efectuada pelo

vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o

produto, que se prevê seja instalado pelo

consumidor, for instalado pelo consumidor e a má

instalação se dever a incorrecções existentes nas

instruções de montagem.

Artigo 3.º

Direitos do consumidor

1. O vendedor responde perante o consumidor

por qualquer falta de conformidade que exista no

momento em que o bem lhe é entregue.

2. Em caso de falta de conformidade, o

consumidor tem direito a que a conformidade do

bem seja reposta sem encargos, por meio de

reparação ou de substituição, nos termos do n.º 3, a

uma redução adequada do preço, ou à rescisão do

contrato no que respeita a esse bem, nos termos dos

n.os 5 e 6.

3. Em primeiro lugar, o consumidor pode exigir

do vendedor a reparação ou a substituição do bem,

em qualquer dos casos sem encargos, a menos que

isso seja impossível ou desproporcionado.

Presume-se que uma solução é desproporcionada

se implicar para o vendedor custos que, em

comparação com a outra solução, não sejam

razoáveis, tendo em conta:

– o valor que o bem teria se não existisse falta de

conformidade,

– a importância da falta de conformidade,

– a possibilidade de a solução alternativa ser

concretizada sem grave inconveniente para o

consumidor.

A reparação ou substituição deve ser realizada

dentro de um prazo razoável, e sem grave

inconveniente para o consumidor, tendo em conta a

natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

4. A expressão “sem encargos” constante dos n.os

2 e 3 reporta-se às despesas necessárias incorridas

para repor o bem em conformidade, designadamente

as despesas de transporte, de mão-de-obra e material.

5. O consumidor pode exigir uma redução

adequada do preço, ou a rescisão do contrato:

– se o consumidor não tiver direito a reparação

nem a substituição, ou

– se o vendedor não tiver encontrado uma

solução num prazo razoável, ou

– se o vendedor não tiver encontrado uma

solução sem grave inconveniente para o consumidor.

6. O consumidor não tem direito à rescisão do

contrato se a falta de conformidade for

insignificante.

Artigo 4.º

Direito de regresso

Quando o vendedor final for responsável perante

o consumidor pela falta de conformidade resultante

de um acto ou omissão do produtor, de um vendedor

anterior da mesma cadeia contratual, ou de qualquer

outro intermediário, o vendedor final tem direito de

regresso contra a pessoa ou pessoas responsáveis da

cadeia contratual. O responsável ou os responsáveis

contra quem o vendedor final tem direito de

regresso, bem como as correspondentes acções e

condições de exercício, são determinados pela

legislação nacional.

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

399

Artigo 5.º

Prazos

1. O vendedor é responsável, nos termos do

artigo 3.º, quando a falta de conformidade se

manifestar dentro de um prazo de dois anos a contar

da entrega do bem. Se, por força da legislação

nacional, os direitos previstos no n.º 2 do artigo 3.º

estiverem sujeitos a um prazo de caducidade, esse

prazo não poderá ser inferior a dois anos a contar da

data da entrega.

2. Os Estados-Membros podem determinar que,

para usufruir dos seus direitos, o consumidor deve

informar o vendedor da falta de conformidade num

prazo de dois meses a contar da data em que esta

tenha sido detectada.

Os Estados-Membros devem informar a

Comissão da aplicação que derem ao presente

número. A Comissão controlará as consequências,

para o consumidor e o mercado interno, da

possibilidade assim oferecida aos Estados-Membros.

O mais tardar até 7 de Janeiro de 2003, a

Comissão elaborará um relatório sobre a aplicação

que os Estados-Membros fazem do presente

parágrafo. Esse relatório será publicado no Jornal

Oficial das Comunidades Europeias.

3. Até prova em contrário, presume-se que as

faltas de conformidade que se manifestem num

prazo de seis meses a contar da data de entrega do

bem já existiam nessa data, salvo quando essa

presunção for incompatível com a natureza do bem,

ou com as características da falta de conformidade.

Artigo 6.º

Garantias

1. As garantias vinculam juridicamente as

pessoas que as oferecem, nas condições constantes

da declaração de garantia e da publicidade

correspondentes.

2. As garantias devem:

– declarar que o consumidor goza dos direitos

previstos na legislação nacional aplicável em matéria

de compra e venda de bens de consumo e especificar

que esses direitos não são afectados pela garantia,

– estabelecer, em linguagem clara e concisa, o

conteúdo da garantia e os elementos necessários à

sua aplicação, nomeadamente a duração e a extensão

territorial dela, bem como o nome e o endereço da

pessoa que oferece a garantia.

3. A pedido do consumidor, a garantia deverá

ser-lhe facultada numa versão escrita, ou sob

qualquer outra forma duradoura disponível e à qual

tenha acesso.

4. O Estado-Membro em que os bens de

consumo são comercializados pode, nos termos do

Tratado, impor no seu território que a garantia seja

redigida numa ou em várias línguas por ele

determinadas, entre as línguas oficiais da

Comunidade.

5. Se uma garantia não obedecer aos requisitos

dos n.os 2, 3 ou 4, a validade dessa garantia não será

afectada por esse facto, podendo o consumidor

continuar a invocá-la e a exigir a sua aplicação.

Artigo 7.º

Carácter vinculativo

1. As cláusulas contratuais e os acordos celebrados

com o vendedor antes da falta de conformidade lhe ser

comunicada que, directa ou indirectamente, excluam

ou limitem os direitos resultantes da presente directiva

não vinculam, nos termos previstos na legislação

nacional, o consumidor.

Os Estados-Membros podem determinar que, no

caso de bens em segunda mão, o vendedor e o

consumidor possam acordar em cláusulas contratuais

ou celebrar acordos que prevejam um prazo de

responsabilidade do vendedor mais curto que o

estabelecido no n.º 1 do artigo 5.º O prazo assim

previsto não pode ser inferior a um ano.

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

400

2. Os Estados-Membros adoptarão as medidas

necessárias para que o consumidor não seja privado

da protecção resultante da presente directiva pelo

facto de ter escolhido, como direito aplicável ao

contrato, a legislação de um Estado não membro,

quando o contrato apresente uma conexão estreita

com o território dos Estados-Membros.

Artigo 8.º

Direito nacional e protecção mínima

1. O exercício dos direitos resultantes da presente

directiva não prejudica o exercício de outros direitos

que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras

disposições nacionais relativas à responsabilidade

contratual ou extracontratual.

2. Os Estados-Membros podem adoptar ou

manter, no domínio regido pela presente directiva,

disposições mais estritas, compatíveis com o

Tratado, com o objectivo de garantir um nível mais

elevado de protecção do consumidor.

Artigo 9.º

Os Estados-Membros tomarão as medidas

necessárias para informar o consumidor sobre as

disposições nacionais de transposição da presente

directiva, e incentivarão, eventualmente, as

organizações profissionais a informarem os

consumidores dos seus direitos.

Artigo 10.º

O anexo da Directiva 98/27/CE será

complementado do modo seguinte: “10. Directiva

99/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de

25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da

venda de bens de consumo e das garantias a elas

relativas (JO L 171 de 7.7.1999, p. 12).”.

Artigo 11.º

Transposição

1. Os Estados-Membros adoptarão as disposições

legislativas, regulamentares e administrativas

necessárias para darem cumprimento à presente

directiva o mais tardar em 1 de Janeiro de 2002.

Desse facto informarão imediatamente a Comissão.

Quando os Estados-Membros adoptarem essas

disposições, estas deverão incluir uma referência à

presente directiva ou ser acompanhadas dessa

referência na publicação oficial. As modalidades dessa

referência serão estabelecidas pelos Estados-Membros.

2. Os Estados-Membros comunicarão à Comissão o

texto das disposições de direito interno que adoptarem

no domínio abrangido pela presente directiva.

Artigo 12.º

Revisão

O mais tardar até 7 de Julho de 2006, a Comissão

examinará a aplicação da presente directiva e

apresentará um relatório ao Parlamento Europeu e ao

Conselho. O relatório abordará, designadamente, a

questão da eventual introdução da responsabilidade

directa do produtor e, se necessário, será

acompanhado de propostas.

Artigo 13.º

Entrada em vigor

A presente directiva entra em vigor no dia da sua

publicação no Jornal Oficial das Comunidades

Europeias.

Artigo 14.º

Os Estados-Membros são destinatários da

presente directiva.

Feito em Bruxelas, em 25 de Maio de 1999.

Pelo Parlamento Europeu

O Presidente

J. M. GIL-ROBLES

Pelo Conselho

O Presidente

H. EICHEL

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401

Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril (*)

Artigo 1.º

Objecto

1 — O presente decreto-lei procede à transposição

para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE,

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de

Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de

consumo e das garantias a ela relativas, com vista a

assegurar a protecção dos interesses dos

consumidores.

2 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

Artigo 1.º-A

Âmbito de aplicação

1 — O presente decreto-lei é aplicável aos contratos

de compra e venda celebrados entre profissionais e

consumidores.

2 — O presente decreto-lei é, ainda, aplicável, com

as necessárias adaptações, aos bens de consumo

fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada

ou de outra prestação de serviços, bem como à

locação de bens de consumo.

Artigo 1.º-B

Definições

Para efeitos de aplicação do disposto no presente

decreto-lei, entende-se por:

a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos

bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer

direitos, destinados a uso não profissional, por

pessoa que exerça com carácter profissional uma

actividade económica que vise a obtenção de

(* ) Com as alterações do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de

Maio.

benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei

n.º 24/96, de 31 de Julho;

b) «Bem de consumo», qualquer bem imóvel ou

móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão;

c) «Vendedor», qualquer pessoa singular ou

colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens

de consumo no âmbito da sua actividade

profissional;

d) «Produtor», o fabricante de um bem de consumo,

o importador do bem de consumo no território da

Comunidade Europeia ou qualquer outra pessoa que

se apresente como produtor através da indicação do

seu nome, marca ou outro sinal identificador no

produto;

e) «Representante do produtor», qualquer pessoa

singular ou colectiva que actue na qualidade de

distribuidor comercial do produtor e ou centro

autorizado de serviço pós-venda, à excepção dos

vendedores independentes que actuem apenas na

qualidade de retalhistas;

f) «Garantia legal», qualquer compromisso ou

declaração assumido por um vendedor ou por um

produtor perante o consumidor, sem encargos

adicionais para este, de reembolsar o preço pago,

substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de

um bem de consumo, no caso de este não

corresponder às condições enumeradas na

declaração de garantia ou na respectiva publicidade;

g) «Garantia voluntária», qualquer compromisso ou

declaração, de carácter gratuito ou oneroso,

assumido por um vendedor, por um produtor ou por

qualquer intermediário perante o consumidor, de

reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou

ocupar-se de qualquer modo de um bem de

consumo, no caso de este não corresponder às

condições enumeradas na declaração de garantia ou

na respectiva publicidade;

h) «Reparação», em caso de falta de conformidade

do bem, a reposição do bem de consumo em

conformidade com o contrato.

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402

Artigo 2.º

Conformidade com o contrato

1 — O vendedor tem o dever de entregar ao

consumidor bens que sejam conformes com o

contrato de compra e venda.

2 — Presume-se que os bens de consumo não são

conformes com o contrato se se verificar algum dos

seguintes factos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é

feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades

do bem que o vendedor tenha apresentado ao

consumidor como amostra ou modelo;

b) Não serem adequados ao uso específico para o

qual o consumidor os destine e do qual tenha

informado o vendedor quando celebrou o contrato e

que o mesmo tenha aceitado;

c) Não serem adequados às utilizações

habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho

habituais nos bens do mesmo tipo e que o

consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo

à natureza do bem e, eventualmente, às declarações

públicas sobre as suas características concretas feitas

pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu

representante, nomeadamente na publicidade ou na

rotulagem.

3 — Não se considera existir falta de conformidade,

na acepção do presente artigo, se, no momento em

que for celebrado o contrato, o consumidor tiver

conhecimento dessa falta de conformidade ou não

puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer

dos materiais fornecidos pelo consumidor.

4 — A falta de conformidade resultante de má

instalação do bem de consumo é equiparada a uma

falta de conformidade do bem, quando a instalação

fizer parte do contrato de compra e venda e tiver

sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua

responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê

que seja instalado pelo consumidor, for instalado

pelo consumidor e a má instalação se dever a

incorrecções existentes nas instruções de montagem.

Artigo 3.º

Entrega do bem

1 — O vendedor responde perante o consumidor por

qualquer falta de conformidade que exista no

momento em que o bem lhe é entregue.

2 — As faltas de conformidade que se manifestem

num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data

de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa

imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já

nessa data, salvo quando tal for incompatível com a

natureza da coisa ou com as características da falta

de conformidade.

Artigo 4.º

Direitos do consumidor

1 — Em caso de falta de conformidade do bem com

o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja

reposta sem encargos, por meio de reparação ou de

substituição, à redução adequada do preço ou à

resolução do contrato.

2 — Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou

a substituição devem ser realizadas dentro de um

prazo razoável, tendo em conta a natureza do

defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo

máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave

inconveniente para o consumidor.

3 — A expressão «sem encargos», utilizada no n.º 1,

reporta-se às despesas necessárias para repor o bem

em conformidade com o contrato, incluindo,

designadamente, as despesas de transporte, de mão-

de-obra e material.

4 — Os direitos de resolução do contrato e de

redução do preço podem ser exercidos mesmo que a

coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por

motivo não imputável ao comprador.

5 — O consumidor pode exercer qualquer dos

direitos referidos nos números anteriores, salvo se

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

403

tal se manifestar impossível ou constituir abuso de

direito, nos termos gerais.

6 — Os direitos atribuídos pelo presente artigo

transmitem-se a terceiro adquirente do bem.

Artigo 5.º

Prazo da garantia

1 — O consumidor pode exercer os direitos

previstos no artigo anterior quando a falta de

conformidade se manifestar dentro de um prazo de

dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem,

consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel

ou imóvel.

2 — Tratando-se de coisa móvel usada, o prazo

previsto no número anterior pode ser reduzido a um

ano, por acordo das partes.

3 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

4 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

5 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

6 — Havendo substituição do bem, o bem sucedâneo

goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco

anos a contar da data da sua entrega, conforme se

trate, respectivamente, de bem móvel ou imóvel.

7 — O prazo referido no n.º 1 suspende-se, a partir

da data da denúncia, durante o período em que o

consumidor estiver privado do uso dos bens.

Artigo 5.º-A

Prazo para exercício de direitos

1 — Os direitos atribuídos ao consumidor nos

termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer

dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência

de denúncia da desconformidade pelo consumidor,

sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 — Para exercer os seus direitos, o consumidor

deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade

num prazo de dois meses, caso se trate de bem

móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a

contar da data em que a tenha detectado.

3 — Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia

da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os

direitos atribuídos ao consumidor nos termos do

artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da

data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no

prazo de três anos a contar desta mesma data.

4 — O prazo referido no número anterior suspende-

se durante o período em que o consumidor estiver

privado do uso dos bens com o objectivo de

realização das operações de reparação ou

substituição, bem como durante o período em que

durar a tentativa de resolução extrajudicial do

conflito de consumo que opõe o consumidor ao

vendedor ou ao produtor, com excepção da

arbitragem.

5 — A tentativa de resolução extrajudicial do litígio

inicia-se com a ocorrência de um dos seguintes

factos:

a) As partes acordem no sentido de submeter o

conflito a mediação ou conciliação;

b) A mediação ou a conciliação seja determinada no

âmbito de processo judicial;

c) Se constitua a obrigação de recorrer à mediação

ou conciliação.

Artigo 6.º

Responsabilidade directa do produtor

1 — Sem prejuízo dos direitos que lhe assistem

perante o vendedor, o consumidor que tenha

adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do

produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal

se manifestar impossível ou desproporcionado tendo

em conta o valor que o bem teria se não existisse

falta de conformidade, a importância desta e a

possibilidade de a solução alternativa ser

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Maria João Sarmento Pestana de Vasconcelos

404

concretizada sem grave inconveniente para o

consumidor.

2 — O produtor pode opor-se ao exercício dos

direitos pelo consumidor verificando-se qualquer

dos seguintes factos:

a) Resultar o defeito exclusivamente de declarações

do vendedor sobre a coisa e sua utilização, ou de má

utilização;

b) Não ter colocado a coisa em circulação;

c) Poder considerar-se, tendo em conta as

circunstâncias, que o defeito não existia no momento

em que colocou a coisa em circulação;

d) Não ter fabricado a coisa nem para venda nem

para qualquer outra forma de distribuição com fins

lucrativos, ou não a ter fabricado ou distribuído no

quadro da sua actividade profissional;

e) Terem decorrido mais de 10 anos sobre a

colocação da coisa em circulação.

3 — O representante do produtor na zona de

domicílio do consumidor é solidariamente

responsável com o produtor perante o consumidor,

sendo-lhe igualmente aplicável o n.º 2 do presente

artigo.

4 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

5 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

Artigo 7.º

Direito de regresso

1 — O vendedor que tenha satisfeito ao consumidor

um dos direitos previstos no artigo 4.º bem como a

pessoa contra quem foi exercido o direito de

regresso gozam de direito de regresso contra o

profissional a quem adquiriram a coisa, por todos os

prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos.

2 — O disposto no n.º 2 do artigo 3.º aproveita

também ao titular do direito de regresso, contando-

se o respectivo prazo a partir da entrega ao

consumidor.

3 — O demandado pode afastar o direito de regresso

provando que o defeito não existia quando entregou

a coisa ou, se o defeito for posterior à entrega, que

não foi causado por si.

4 — Sem prejuízo do regime das cláusulas

contratuais gerais, o acordo pelo qual se exclua ou

limite antecipadamente o exercício do direito de

regresso só produz efeitos se for atribuída ao seu

titular uma compensação adequada.

Artigo 8.º

Exercício do direito de regresso

1 — O profissional pode exercer o direito de

regresso na própria acção interposta pelo

consumidor, aplicando-se com as necessárias

adaptações o disposto no n.º 2 do artigo 329.º do

Código de Processo Civil.

2 — O profissional goza do direito previsto no artigo

anterior durante cinco anos a contar da entrega da

coisa pelo profissional demandado.

3 — O profissional deve exercer o seu direito no

prazo de dois meses a contar da data da satisfação do

direito ao consumidor.

4 — O prazo previsto no n.º 2 suspende-se durante o

processo em que o vendedor final seja parte.

Artigo 9.º

Garantias voluntárias

1 — (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21

de Maio.)

2 — A declaração de garantia deve ser entregue ao

consumidor por escrito ou em qualquer outro suporte

duradouro a que aquele tenha acesso.

3 — A garantia, que deve ser redigida de forma clara

e concisa na língua portuguesa, contém

obrigatoriamente as seguintes menções:

a) Declaração de que o consumidor goza dos direitos

previstos no presente decreto-lei, e na demais

legislação aplicável, e de que tais direitos não são

afectados pela garantia;

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Conformidade e risco na venda de bens de consumo

405

b) A informação sobre o carácter gratuito ou oneroso

da garantia e, neste último caso, a indicação dos

encargos a suportar pelo consumidor;

c) Os benefícios atribuídos ao consumidor por meio

do exercício da garantia, bem como as condições

para a atribuição destes benefícios, incluindo a

enumeração de todos os encargos, nomeadamente

aqueles relativos às despesas de transporte, de mão-

de-obra e de material, e ainda os prazos e a forma de

exercício da mesma;

d) Duração e âmbito espacial da garantia;

e) Firma ou nome e endereço postal, ou, se for o

caso, electrónico, do autor da garantia que pode ser

utilizado para o exercício desta.

4 — Salvo declaração em contrário, os direitos

resultantes da garantia transmitem-se para o

adquirente da coisa.

5 — A violação do disposto nos n.os 2 e 3 do

presente artigo não afecta a validade da garantia,

podendo o consumidor continuar a invocá-la e a

exigir a sua aplicação.

Artigo 10.º

Imperatividade

1 — Sem prejuízo do regime das cláusulas

contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula

contratual pelo qual antes da denúncia da falta de

conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os

direitos do consumidor previstos no presente

diploma.

2 — É aplicável à nulidade prevista no número

anterior o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 16.º da

Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.

Artigo 11.º

Limitação da escolha de lei

Se o contrato de compra e venda celebrado entre

profissional e consumidor apresentar ligação estreita

ao território dos Estados membros da União

Europeia, a escolha, para reger o contrato, de uma

lei de um Estado não membro que se revele menos

favorável ao consumidor não lhe retira os direitos

atribuídos pelo presente decreto-lei.

Artigo 12.º

Acções de informação

A Direcção-Geral do Consumidor deve promover

acções destinadas a informar e deve incentivar as

organizações profissionais a informarem os

consumidores dos direitos que para eles resultam do

presente decreto-lei.

Artigo 12.º-A

Contra-ordenações

1 — Constituem contra-ordenações puníveis com a

aplicação das seguintes coimas:

a) De € 250 a € 2500 e de € 500 a € 5000, consoante o

infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva, a

violação do disposto no n.º 2 do artigo 4.º;

b) De € 250 a € 3500 e de € 3500 a € 30 000, consoante

o infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva, a

violação do disposto no n.º 3 do artigo 9.º

2 — A negligência e a tentativa são puníveis sendo

os limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis

reduzidos a metade.

Artigo 12.º-B

Sanções acessórias

1 — Quando a gravidade da infracção o justifique,

podem ainda ser aplicadas, nos termos do regime

geral das contra-ordenações, as seguintes sanções

acessórias:

a) Encerramento temporário das instalações ou

estabelecimentos;

b) Interdição do exercício da actividade;

c) Privação do direito a subsídio ou benefício

outorgado por entidade ou serviço público.

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2 — As sanções referidas no número anterior têm

uma duração máxima de dois anos contados a partir

da data da decisão condenatória definitiva.

Artigo 12.º-C

Fiscalização e instrução dos processos de contra-

ordenação

1 — Compete à Autoridade de Segurança Alimentar

e Económica (ASAE) fiscalizar a aplicação do

disposto no presente decreto-lei, bem como instruir

os processos de contra-ordenação previstos no artigo

12.º-A.

2 — Compete à Comissão de Aplicação de Coimas

em Matéria Económica e de Publicidade (CACMEP)

a aplicação das respectivas coimas e sanções

acessórias.

3 — A receita das coimas reverte em:

a) 60 % para o Estado;

b) 30 % para a ASAE;

c) 10 % para a CACMEP.

4 — A CACMEP comunica ao Instituto da

Construção e do Imobiliário, I. P., as decisões

condenatórias, convertidas em definitivas ou

transitadas em julgado, que condenem a empresa de

construção pela prática da contra-ordenação prevista

na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A, bem como

aquelas que condenem a empresa de construção, ou

qualquer outra entidade que exerça a actividade cuja

regulação ou fiscalização incumba àquele Instituto,

nas sanções acessórias previstas no artigo anterior.

Artigo 13.º

Alterações à lei de defesa dos consumidores

Os artigos 4.º e 12.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho,

passam a ter a seguinte redacção:

«Artigo 4.º

Direito à qualidade dos bens e serviços

Os bens e serviços destinados ao consumo devem

ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a

produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as

normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas,

de modo adequado às legítimas expectativas do

consumidor.

Artigo 12.º

Direito à reparação de danos

1 — O consumidor tem direito à indemnização dos

danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do

fornecimento de bens ou prestações de serviços

defeituosos.

2 — O produtor é responsável, independentemente

de culpa, pelos danos causados por defeitos de

produtos que coloque no mercado, nos termos da

lei.»

Artigo 14.º

Entrada em vigor

1 — O presente diploma entra em vigor no dia

seguinte ao da sua publicação, sem prejuízo do

disposto no n.º 2.

2 — As normas previstas no artigo 9.º entram em

vigor 90 dias após a publicação deste diploma.