156
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DCH CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS PPGEL Rafaella Elisa da Silva Santos DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?: A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut Salvador 2011

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?:

A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Salvador

2011

Page 2: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL,

Linha Linguagens, Discurso e Sociedade, Área de

Concentração Análise do Discurso, vinculado ao

Departamento de Ciências Humanas – DCH,

Campus I, da Universidade do Estado da Bahia –

UNEB, como avaliação parcial para obtenção do

título de Mestre em Linguagens.

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles

Sobral

Salvador

2011

Page 3: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Santos, Rafaella Elisa da Silva

Direitos humanos para humanos? : a emergência de sentidos sobre direitos

humanos em uma comunidade do Orkut / Rafaella Elisa da Silva Santos . –

Salvador, 2011.

148f.

Orientador : Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de

Ciências Humanas. Campus I. 2011.

Contem referências.

1. Direitos humanos. 2. Redes sociais on-line. 3. Orkut(Rede social on-line.

4. Análise do discurso. 5. Grupos de discussão pela internet. I. Sobral, Gilberto

Nazareno Telles. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências

Humanas.

CDD : 341.274

Page 4: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL,

Linha Linguagens, Discurso e Sociedade, Área de

Concentração Análise do Discurso, vinculado ao

Departamento de Ciências Humanas – DCH,

Campus I, da Universidade do Estado da Bahia –

UNEB, como avaliação parcial para obtenção do

título de Mestre em Linguagens.

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles

Sobral

Aprovada em 28 de Setembro de 2011

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________

Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________________________

Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz

Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Page 5: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

À minha amada família: Auta, Rachel e

a inigualável e fofíssima Catharina. Às

também integrantes da minha família e

do meu coração Quezia dos Santos Lima

e Rosa Helena Blanco Machado

Page 6: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente minha mãe, Auta, pela paciência e palavras de conforto nos

momentos de desespero.

A Rosa Helena Blanco Machado, minha eterna gratidão pelo carinho, preocupação, por ter

transformado a área de Letras muito mais atrativa para mim, apresentando-me a Análise do

Discurso e a pesquisa. Por fazer de mim e de Quezia, as suas filhas.

A Quezia dos Santos Lima, minha eterna companheira, na pesquisa e na vida.

A George Macêdo Velame, pela amizade sincera e palavras de conforto.

Ao meu orientador Gilberto Sobral pela atenção, consideração e paciência e por compreender

o delicado momento de transição pelo qual passei, que dificultou o processo de elaboração da

dissertação.

Aos professores Rita de Cássia Queiroz e João Santana por terem aguardado a minha defesa e

pela leitura apurada no exame de qualificação, resultando em sugestões sem as quais a

dissertação apresentaria qualidade inferior.

A Verena e Camila, minhas amigas, pela amizade.

Page 7: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

E cada instante é diferente, e cada

Homem é diferente, e somos todos iguais

Carlos Drummond de Andrade

Page 8: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

RESUMO

Vemos, na contemporaneidade, a emergência constante, no meio acadêmico e na mídia, de

discursos sobre direitos humanos (DH), em uma tentativa de entender quais são as

necessidades fundamentais do homem e, com isso, estabelecer uma definição objetiva para

esses direitos, almejando a sua universalização, através de documentos internacionais, apesar

das diferenças culturais entre os povos, o que influi nas significações sobre as necessidades do

ser humano no atual contexto histórico. Todavia, essas discussões, bem como os 62 anos de

existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não foram ainda capazes de

desenvolver, nos sujeitos e nos Estados, o desejo real de efetivar os DH, muitas vezes porque

não são de pleno conhecimento, por parte dos teóricos do Direito e dos políticos, os sentidos

sobre direitos humanos que circulam na sociedade e, portanto, os reais interesses dos

indivíduos no que diz respeito à temática. A partir da análise de discursos de cidadãos comuns

em uma comunidade do site de relacionamentos Orkut, e pautando-se na historiografia dos

direitos humanos, e entendendo que compreender a relação entre os sujeitos e os DH e suas

discursividades é compreender o funcionamento não apenas significante, mas também

referente ao modus vivendi, à sociedade e à constituição básica de seus integrantes, enquanto

seres humanos, norteando as primeiras, as mais elementares de suas práticas, bem como na

crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no

entendimento de direitos humanos como orientadores da práxis social, temos por finalidade

nesta dissertação entender quais são as significações dos sujeitos do sítio “Direitos Humanos

para humanos direitos” da internet sobre direitos humanos e a partir de quais bases esses

sentidos são possíveis de emergir, ou seja, que formações discursivas permitem e organizam os

discursos sobre direitos humanos e seus efeitos, a partir do escopo teórico-metodológico da

Análise do Discurso.

Palavras-chave: Direitos humanos. Orkut. Análise do discurso. Sentido.

Page 9: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

RÉSUMÉ

Nous voyons à l'époque contemporaine la constante émergence, au milieu académique et

médiatique, de discours sur les droits humains (DH), dans une démarche de comprendre quels

sont les besoins fondamentaux de l'homme et, par conséquent, établir une définition objective

de ces droits, en visant son universalisation, à travers les documents internationaux, malgré

les différences culturelles entre les peuples, ce qui influe sur le sens des besoins des êtres

humains dans le contexte historique actuel. Cependant, ces discussions, ainsi que 62 ans de la

Déclaration Universelle des Droits de l'Homme, n'ont pas été en mesure de développer chez

les individus et les États, le désir réel de pratiquer les DH, souvent parce qu'ils ne sont pas

entièrement connus, pour une partie des théoriciens du Droit et des politiques, les sens sur les

droits humains qui circulent dans la société et donc les intérêts réels des personnes à l'égard

de la question. D‟après l'analyse des discours des citoyens ordinaires dans une communauté

du site de relations Orkut, et en s'appuyant sur l'histoire des droits humains, et en réalisant que

comprendre la relation entre les sujets et les DH et sa fonction discursive est comprendre le

fonctionnement pas seulement importante mais aussi referent au modus vivendi, à la société et

à la constitution de base de ses membres en tant qu'êtres humains, en guidant les premières, le

plus élémentaires de leurs pratiques et la croyance en l'importance d‟Orkut dans la société

brésilienne comme un espace de symbolisation et dans la compréhension des droits de

l'homme comme directeurs de la praxis sociale, c'est notre objectif dans cet travail

comprendre les significations qui sont l'objet du site Web sur les droits humains et d‟après

quelles bases ces significations sont susceptibles d'émerger, en d‟autres termes, que les

formations discursives permettent et organisent les discours sur les droits humains et ses

effets, à partir de la portée théorique et méthodologique de l'Analyse du Discours. Mots-clés: Droits de l'homme. L'analyse du discours. Sens.

Page 10: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

LISTA DE ABREVIATURAS

AD Análise do Discurso

AIE Aparelhos Ideológicos do Estado

ARE Aparelho Repressivo do Estado

CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CPF Cadastro Pessoa Física

DDHC Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

DH Direitos Humanos

DHH Formação Discursiva Direitos humanos-historicidade

DHI Formação Discursiva Direitos humanos-inerência

DID Declaração Inglesa de Direitos

DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

FD Formação Discursiva

IP Internet Protocol

IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

LHC Lei de Habeas Corpus

OEA Organização dos Estados Americanos

RG Registro Geral

Page 11: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10

2 NESSE INFOMAR... 17

2.1 ORKUT, UMA “CIDADE AZUL”. 19

3 DIREITOS HUMANOS: UM SINTAGMA, DOIS

CONCEITOS, UMA HISTÓRIA

39

3.1 UM SINTAGMA... 39

3.2 DOIS CONCEITOS... 43

3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do

que eu?

43

3.2.2 O homem, quem é ele? 58

3.3 UMA HISTÓRIA 73

4 E NO PRINCÍPIO ERA O VERBO? 85

4.1 “PALAVRA ACEITA TUDO”

85

4.2 SUJEITO DO DISCURSO E SUJEITO DO DIREITO:

DISCUTINDO RESPONSABILIDADES

118

4.3 DIREITOS HUMANOS: UM FENÔMENO IDEOLÓGICO 131

4.3.1 “Mas eu preciso ser Outros” 136

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 145

REFERÊNCIAS 148

Page 12: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

10

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As sociedades contemporâneas funcionam com base na legislação específica de cada

nação, configurando os indivíduos dessas sociedades em cidadãos, quando plenos de seus

direitos e deveres, e a partir do entendimento que se tem de ser humano e de sua dignidade,

também gerando direitos, cristalizados em documentos internacionais como a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena, de 1993, dentre

outros. Assim, afirma-se que as sociedades são construídas, em suas bases, a partir das

significações sobre cidadania e direitos humanos (DH), orientando a práxis social.

Os direitos humanos são compreendidos pelos teóricos como universais, apresentando

como pressuposto a vida e devem ser atribuídos a todos os seres humanos porque a natureza

humana é uma só; diferem-se dos direitos inerentes à condição de cidadão, oriundos apenas de

um ordenamento jurídico nacional. Assim, DH diz respeito à raça humana, enquanto que a

cidadania está limitada à ideia de nação.

Além da origem e abrangência, não existem limites claros que diferenciem os direitos

humanos daqueles denominados de cidadania, sobretudo porque os primeiros, através dos

princípios estabelecidos na DUDH, foram incorporados às constituições nacionais. Entretanto,

os direitos humanos, por vezes, são pensados como direitos privativos a determinados grupos

sociais, não para todos os seres humanos, como apregoado nos documentos internacionais

referentes à temática, ou seja, direitos humanos deveriam ser aplicados somente a alguns, a

partir de algum critério estabelecido pelos agrupamentos sociais de prestígio, normalmente

aqueles que gozam (ou crêem que devam gozar) plenamente de seus direitos. Isso nos leva a

entender que os sentidos sobre direitos humanos não são estáveis e homogêneos no seio da

sociedade, como poderíamos esperar ao ler/ouvir o sintagma que nomeia o campo: Direitos

Humanos – direitos destinados aos homens.

Essa ambiguidade é muito intrigante, pois os direitos humanos têm por finalidade

tornar as relações entre indivíduos e povos e as suas vidas mais justas e igualitárias. Mas,

como alcançar tal igualdade se o instrumento utilizado não é visto de maneira igual? Assim,

os sentidos sobre direitos humanos ganham uma importância muito grande por nortear as

práticas dos indivíduos da sociedade – mundial – na construção de um mundo melhor, mas,

nesse caso, não se sabe se para todos. Dessa forma, em um mundo onde o discurso que mais

circula em propagandas, mídias impressas, novelas e telejornais é “vivam as diferenças”, os

direitos humanos parecem ser interpretados sob o véu da desigualdade.

Page 13: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

11

A desigualdade, na contemporaneidade, no tocante aos discursos sobre direitos

humanos, ganha novos contornos, pois, pelo menos em alguns agrupamentos sociais, não é

concebida a partir dos mesmos elementos que teciam esse véu no passado. Não são a raça,

religião, ideologia política ou classe social que irão estabelecer as diferenças entre um ser

humano e outro no tear que costura o direito. O tecido a dar vida ao véu da desigualdade é o

comportamento. Dessa maneira, direitos humanos passam a ser para humanos direitos.

Esse critério na atribuição de direitos humanos aos indivíduos, ou seja, o

comportamento, confere maior subjetividade a essa categoria jurídica, pois ela passa a ter

sentido a partir das significações do sujeito acerca de modalidades variadas, construindo a

ideia do comportar-se. Assim, o pensamento sobre comportamento e, por conseguinte,

direitos humanos, variam conforme as regras morais vigentes em uma determinada sociedade

e que, mesmo em um mundo globalizado, nem sempre uma sociedade é igual a outras. Com

isso, a característica mais importante que parece definir os direitos humanos no plano teórico,

ou seja, a universalidade, deixa de ter relevância, afinal eles passam a ser compreendidos a

partir do indivíduo em um único local específico. Reitera-se, todavia, que essa compreensão

ratifica os DH como orientadores da práxis social, pois o comportamento pré-estabelecido

passa a ser condição para uma vida jurídica.

São exatamente os sentidos vinculados ao comportamento do indivíduo em sociedade

que norteiam as significações de algumas comunidades sobre Direitos Humanos do site de

relacionamentos Orkut, uma rede social que funciona por meio da interação entre os usuários,

com o objetivo de conectar as pessoas e “[...] tornar a [...] vida social (dos usuários) e a de

seus amigos mais ativa e estimulante” 1. O Orkut é, então, uma continuidade da vida urbana

do indivíduo, espaço público em que ele exerce plenamente a sua cidadania, configurando,

portanto, a rede social, em uma cidade virtual, com suas regras, exigências de documentos de

identificação para circulação, como perfil com foto, nome, endereço eletrônico, senha de

acesso, tal como o Registro Geral – RG e o Cadastro de Pessoa Física – CPF em qualquer

cidade.

Ademais, outro aspecto do Orkut que chama a atenção é que o usuário constrói uma

narrativa de si, a partir de textos multimodais, como a sua descrição nos perfis, fotos e vídeos

selecionados para postar, recados e depoimentos que seleciona para permanecerem ativos e as

comunidades a que se associa, como se fossem os antigos clubes que os cidadãos

frequentavam para estabelecer suas relações sociais, divertir-se e até mesmo

1 Extraído do tópico Sobre o Orkut, no referido site de relacionamentos. Disponível em:

<http://www.orkut.com/Aout.aspx> Acesso em: 14 jul 2008.

Page 14: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

12

intelectualizarem-se, através dos fóruns, o que confere à rede social a complexidade de um

sistema urbano. O Orkut é, dessa forma, a exposição virtual da identidade do indivíduo. Nele,

o sujeito é um cidadão de uma “cidade azul”, pois

[...] a virtualização do real é um processo social ligado às especificidades culturais

de seus usuários. O Orkut comporta membros de diferentes credos e condutas

morais, orientados por regras de convivência que visam à construção de uma

civilidade entre eles. Uma vez que esses padrões de civilidade obedecem (ou não) à

diversidade cultural do grupo, o Orkut acaba por se tornar uma cidade virtual

moldada à imagem do espaço urbano de seus usuários. (EISENBERG; LYRA, 2006,

p. 33)

Esse “[...] espaço simbólico de comunicação, interação e sociabilidade” (SILVA,

2008, p.2), devido à sua estruturação, sobretudo no que tange à existência das comunidades

(verdadeiros fóruns em que os membros do Orkut, a partir da associação, grande passo na

configuração/exposição de sua identidade, debate temas de seus interesses, buscando soluções

para os problemas do dia-a-dia ou ainda convencer os outros de que a sua verdade é a única

plausível, refutando a ideia que criou e norteia a comunidade ou, o mais comum,

demonstrando identificação com tal sentido), mostra-se bastante relevante na compreensão

dos sentidos que circulam na sociedade, pois, como indicam acima Eisenberg e Lyra, o Orkut

é moldado “à imagem do espaço urbano dos usuários”.

Dessa maneira, entender o Orkut é compreender alguns elementos do espaço urbano

brasileiro, levando-se em consideração que o Brasil é o nono país do mundo em número de

endereços IP (Internet Protocol), conforme relatório The State of the Internet Report2,

referente ao terceiro trimestre de 2009, que o tempo dispensado pelos brasileiros à navegação

é grande, e que, embora o sítio oficial do Orkut não divulgue o quantitativo exato de usuários

da rede social, a estimativa é que a “cidade azul” possua mais de 69 milhões de perfis, sendo

o Brasil o maior possuidor de usuários, ficando com a parcela de 50,60%, enquanto que os

Estados Unidos, país onde foi criado o sistema, possui apenas 17,78% do total, conforme

dados do próprio site3. As comunidades, bem como a possibilidade de mostrar-se, fator que

não iremos discutir profundamente nessa dissertação, talvez sejam os elementos que

convertam o Orkut nesse fenômeno brasileiro, pois apesar do sucesso de outros sites, como o

Twitter, ele é ainda um dos únicos que possibilitam a interação efetiva entre os usuários, de

maneira multimodal, a partir de temas escolhidos por eles.

2 Relatório trimestral elaborado pela empresa AKAMAI, sobre o uso da internet, a adoção de banda larga,

tendências ao redor do mundo. Informações sobre o relatório em:

<http://www.akamai.com/stateoftheinternet/#nui>. 3 Disponível em:<http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011

Page 15: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

13

Percebemos, com isso, que o brasileiro tem necessidade de significar acerca dos

assuntos que os aflige e, por faltar espaço na sua vida cotidiana, recorrem ao espaço virtual

como possibilidade de existirem semanticamente, para além das obrigações do dia-a-dia. O

Orkut, dessa forma, passa a ser, para os usuários, a possibilidade de moldar o mundo,

conforme seu entendimento e solucionar os problemas que dificultam o caminhar do homem

sobre a Terra. A rede social é, então, a possibilidade de o sujeito se posicionar como se

compusesse o tripé da administração pública, sobretudo no tocante aos direitos humanos, ou

seja, os internautas atuam simbolicamente exercendo ao mesmo tempo, no plano discursivo,

os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o que, na vida prática, lhes é cerceado.

Reiteramos que os membros pretendem que as soluções discutidas nas comunidades sejam

transplantadas para o espaço urbano real.

Indicamos, dessa maneira, que compreender a relação entre os sujeitos e os direitos

humanos e suas discursividades é compreender o funcionamento não apenas significante, mas

também referente ao modus vivendi, à sociedade e à constituição básica de seus integrantes,

enquanto seres humanos, norteando as primeiras, as mais elementares de suas práticas.

Assim, tendo em vista a relevância do Orkut na sociedade brasileira e o entendimento

de direitos humanos como orientadores da práxis social, com vistas a compreender como o

sujeito do século XXI os significa, quais são as suas práticas discursivas, temos por finalidade

nessa dissertação entender quais são as significações e as formações discursivas que as permitem

e organizam os discursos de uma comunidade da “cidade azul” na emergência de sentidos

sobre direitos humanos e seus efeitos, a partir do escopo teórico-metodológico da Análise do

Discurso (AD) e de seus conceitos como memória discursiva, efeitos de sentidos e formação

discursiva.

Muitas são as comunidades no Orkut que discutem a temática escolhida para essa

dissertação. Todavia, das 311 comunidades localizadas em levantamento realizado em 1 de

junho de 2009, apenas uma foi selecionada para objeto de estudo: “Direitos Humanos para

humanos direitos”. Dois motivos podem ser elencados para justificar tal escolha: primeiro

porque o sentido emergido de seu nome é o que mais aparece entre as comunidades; segundo

porque aquelas que não coadunam com tal sentido, existem justamente para confrontá-lo,

como é o caso da comunidade “Direitos humanos para humanos”. Não existe apenas uma

comunidade com esse nome. Entretanto, essa comunidade foi selecionada por ser uma das

mais antigas, criada em 9 de abril de 2005 (o Orkut foi criado em 2004, nos Estados Unidos!)

e por ser a que apresenta maior número de membros, com 6.640 integrantes, até o dia 18 de

dezembro de 2010. Esse quantitativo é importante, pois possibilita acesso a um maior número

Page 16: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

14

de discursos, por meio dos diversos fóruns de discussão e, portanto, maior variedade de

posicionamentos.

Embora vários sejam os fóruns de discussão, sendo muitos deles por nós analisados,

salientamos cinco como alvos principais de análise nessa dissertação. Mais uma vez

reiteramos que outros foram rapidamente mencionados por trazer informações relevantes, mas

não se constituem no núcleo de análise. Esses cinco tópicos, a saber, “Seletividade do sistema

penal”, “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, “Morte estupenda de um

estuprador”, “Cuidado” e “Aborto” foram escolhidos por apresentarem ampla discussão por

parte dos membros, profundidade nas discussões, argumentos heterogêneos, quantidade de

postagens e sentidos que remetem à história dos direitos humanos, a direitos tacitamente

explícitos em documentos como a DUDH, como o direito à vida, independente da

circunstância, ou ainda elementos jurídicos que incomodam os integrantes da comunidade,

apresentando o objetivo de modificar a realidade, por exemplo, o código de execuções penais.

Apesar de nem sempre esses tópicos serem muito recentes, eles representam os sentidos e

discussões que mais aparecem na comunidade.

Baseado na Análise do Discurso, como dito acima, o tratamento dos dados coletados

no Orkut foi feito a partir de uma abordagem qualitativa, pois, nas ciências humanas, o que

existe, conforme Freitas (2002), é uma interação entre-sujeitos, ou seja, a pesquisa deve ter

orientação dialógica, embora também fosse possível a utilização da abordagem quantitativa,

haja vista que “[...] todo fenômeno qualitativo, pelo fato de ser histórico, existe em contexto

também material, temporal e espacial e todo fenômeno quantitativo, se envolver o ser

humano, também contém a dimensão qualitativa [...]” (DEMO, 1998, p. 92). Assim, optamos

pela pesquisa qualitativa por ser uma perspectiva a abarcar uma dinâmica flexível, portanto,

criativa, subjetiva, intensa, ideológica, profunda e provisória, consoante Demo (2000), e por

buscar a qualidade da realidade, caracterizada por ser um fenômeno histórico-dialético.

A dissertação está estruturada em quatro seções, além dessa e das considerações finais.

Na primeira seção, objetivamos discutir o Orkut enquanto espaço simbólico, sua

representatividade e impacto na sociedade brasileira. Nela, discutimos a história desse site de

relacionamentos, sua estruturação, qual a sua relevância para a temática discutida na

dissertação. Além disso, discutimos o Orkut, bem como os fóruns de suas comunidades, como

hipergêneros multimodais, o que impacta significativamente nas discursividades dos sujeitos.

Assim, temos, ainda, nessa seção, a discussão sobre os silenciamentos dos sujeitos

possibilitados pela estrutura do hipergênero, bem como o Orkut como espaço da construção

da identidade.

Page 17: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

15

A seção subsequente, cujo nome é “Direitos Humanos: um sintagma, dois conceitos,

uma história” é dividida em três subseções, conforme indicado no subtítulo. A primeira

subseção demonstra a dificuldade em se empreender sentidos estáveis para o sintagma

Direitos Humanos, indicando a necessidade de se compreender os elementos que o compõem.

Dessa maneira, prepara o leitor para a segunda e terceira subseções, nas quais são discutidas

as noções de direito e humano.

Assim, a segunda subseção, nomeada “Direito, direito meu: existe alguém que tenha

mais direito do que eu?” faz um percurso sobre os sentidos construídos em torno da noção de

direito, não apenas no seio da ciência jurídica, desde a Antiguidade Clássica até a

contemporaneidade, demonstrando qual a relação entre esses sentidos e aqueles presentes na

comunidade em análise, por compreendermos que o sentido sobre a noção de direito impacta

substancialmente o entendimento sobre direitos humanos. Pelo mesmo motivo, na terceira

subseção buscamos responder à pergunta “Quem é o homem?”, com base na Antropologia

Filosófica. Essa discussão é deveras importante, principalmente se pensarmos na dicotomia

refletida na seção três. Se os direitos humanos são pensados como direitos naturais, a

concepção de homem é fundamental para entendermos não somente quais são as suas

necessidades, mas para corrigir aquelas que ainda não são contempladas. Ao pensarmos os

direitos humanos como positivos, e, portanto, como históricos, entenderemos que a

construção desses direitos estará baseada no contexto histórico que forjou a concepção de

humano. Assim, surgem DH de variadas gerações, que tentam atender às demandas históricas

do homem. Atualmente, por exemplo, o homem é concebido a partir das gerações futuras; a

partir disso, serão construídos os novos direitos humanos.

Finalizamos a segunda seção trazendo a história dos direitos humanos. Contrariando o

pensamento de que eles surgem em 1948, com a assinatura da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, a história desses direitos nos mostra que seu nascimento tem data

longínqua e sua existência perpassa toda a trajetória do homem na Terra, pelo menos desde a

invenção da escrita, ainda que em questões documentais oficiais, sua emergência seja, de fato,

mais recente. Não apenas nos compêndios de Direito, essa história se mostra presente, mas

também nos discursos dos sujeitos da comunidade, quando invocam, por exemplo, os dez

mandamentos como componentes dos direitos humanos.

Posteriormente, na terceira seção, discutimos uma dicotomia que, para alguns teóricos

do Direito, como Ferraz Jr. (2003), já é superada. Intitulada “E no princípio era o verbo?”, e

contrariando o cientista jurídico, essa seção nasce a partir da nominação da comunidade, por

indicar que, na comunidade do Orkut analisada, os direitos humanos são inerentes à qualidade

Page 18: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

16

de ser humano, mesmo sendo pensados com destinação somente aos indivíduos bem

comportados. Seguindo essa linha de pensamento, os DH deveriam ser pensados como

direitos naturais e não como direitos positivos, aqueles frutos de um processo histórico.

Compreendendo que todos os sentidos são históricos e apoiando-se na Análise do Discurso,

visamos discutir os direitos humanos a partir da dicotomia direitos naturais x direitos

positivos, por entendermos que as significações que perpassam a comunidade trazem

entranhadas em si os sentidos oriundos desse par. Assim, nessa seção, buscamos responder ao

questionamento que lhe dá nome: afinal, relativo aos direitos humanos, no princípio era o

verbo? Assim, como os sujeitos compreendem os direitos humanos e a partir de quais bases

esses sentidos são possíveis de emergir é o que se visa compreender nessa seção, a partir da

discussão sobre o que é linguagem, sujeito, sentidos e sua emergência no interior das

formações discursivas.

Dessa maneira, buscamos responder à pergunta “Direitos humanos para humanos

direitos?”, não de modo perpétuo, ou seja, sem a pretensão de esgotamento das possibilidades

e elaboração de uma resposta definitiva, mas como analistas do discurso, mapeando sentidos,

entendendo seu processo de construção, rastreando o que, para os cidadãos da “cidade azul”,

vêm a ser direitos humanos.

Page 19: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

17

2 NESSE INFOMAR...

Parece-nos estranho pensar que, conforme dissemos nas considerações iniciais, o

Brasil, país de mais de 190 milhões de habitantes, figure como o maior possuidor de usuários

do site de relacionamentos Orkut no mundo, se, conforme pesquisa Datafolha (2007) 4, apenas

49 milhões de brasileiros, ou seja, aproximadamente 26% da população, têm acesso à internet,

sendo que somente 19% desse total conectam-se à rede a partir de suas residências, apesar de

ser um dos países que mais acessam a rede mundial de computadores. Esses dados fazem com

que nos intriguemos quanto à relevância do Orkut na sociedade brasileira e o que faz desse

sítio um espaço privilegiado da internet para os internautas do Brasil.

Muitas são as hipóteses levantadas para explicar esse fenômeno. A invasão brasileira

do Orkut, como é chamada por Eisenberg e Lyra (2006), é, por vezes, compreendida como

resultado do somatório entre uma plataforma atraente e um povo muito comunicativo.

Cruvinel (2008), por seu turno, crê que o fato de a maioria dos brasileiros acessar a internet

em locais públicos, explica a preferência pelo Orkut por ele reunir muitas ferramentas para

seus usuários em um único espaço.

Cremos que as duas hipóteses são plausíveis, se pensadas conjuntamente e feitas

algumas observações. Identificar o povo brasileiro como comunicativo é um reducionismo. A

identidade não mais pode ser pensada a partir de um sujeito centrado, unificado e

exclusivamente racional. A identidade nacional, um dos aspectos da identidade cultural, é

concebida atualmente, conforme o pensamento de Hall (2005), através de um sujeito

fragmentado, composto por várias identidades que, por vezes, são contraditórias no seio da

sociedade ou no interior do próprio indivíduo. Assim, por ser um sujeito instável,

descentrado, porque “[...] assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades

que não são unificadas ao redor de um „eu‟ coerente” (HALL, 2005, p. 13), podemos afirmar

a impossibilidade de existir uma identidade mestra, ou seja, a identidade de brasileiro

enquanto povo comunicativo. Ademais, tal afirmação seria a homogeneização do povo

brasileiro e sua consequente unificação, remetendo-nos à necessidade de conceber a nação

enquanto comunidade simbólica. Ressaltamos, todavia, não existir uma única forma de

simbolizar.

Hall (2005) chama-nos atenção ainda para o fato de que as nações são imaginadas,

cada uma à sua forma, indicando-nos, portanto, que o caráter amigável do brasileiro nada

mais é do que uma „tradição‟ ou „prática comportamental‟ inculcada na mente do povo

4 In: CRUVINEL, Mônica Vasconcellos.

Page 20: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

18

brasileiro e também do restante do mundo. Não nascemos com essa identidade, recebemos

essa forma de representação em nosso processo educativo desde o nascimento. É pulverizada

no ar a ideia de que todos os brasileiros apresentam as mesmas memórias do passado, o

mesmo desejo de viver em conjunto e perpetuam a mesma herança, o que é uma inverdade. A

afirmação de que o povo brasileiro é comunicativo é fruto de uma “supressão forçada da

diferença cultural” (HALL, 2005, p. 59) que, no caso do Brasil, remonta, principalmente, ao

Romantismo, que se forçou por construir um herói nacional comedido, fiel, pacífico e que,

com o tempo, passou a ser visto como comunicativo e festeiro. Mas o Brasil, assim como

todas as outras nações, é composto de diferentes classes sociais, etnias, gêneros, ideologias, o

que faz dele um conjunto de culturas híbridas: existe o comunicativo e o reservado; o festeiro

e o caseiro; o conservador e o liberal. Existem culturas brasileiras e “[...] deveríamos pensá-

las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou

identidade [...]” (HALL, 2005, p. 62).

Por outro lado, embora o site de relacionamentos atraia os internautas pela diversidade

de ferramentas, não acreditamos ser o local de acesso o fator que confere ao Orkut a grande

popularidade que apresenta no território do Brasil. Entendemos que a relação entre a pós-

modernidade e o Brasil também seja o elemento que faça do Orkut a plataforma de

preferência. Embora a pós-modernidade tenha seu início historicamente datado na década de

1950, com apogeu nos anos 1970, os brasileiros efetivamente tiveram contato com a

atmosfera pós-moderna somente a partir dos anos 1990, com o governo Fernando Collor de

Mello e a abertura política e comercial ao mundo pós-redemocratização. Existe, desta forma,

uma necessidade por parte dos brasileiros em constituírem-se como sujeitos pós-modernos e,

devido a isso, assumem todas (ou quase todas) as características, identidades e ideologias

“esperadas” para esse lócus social, sendo uma delas a intensa interatividade e

interconectividade proporcionada pelo Orkut e sua plataforma plural. Assim, a efemeridade, a

fragmentação, a descontinuidade e o caos, típicos da pós-modernidade, aliados às ideias de

dinamismo e participação no mundo parecem “obrigar” os sujeitos pós-modernos a

apropriarem-se dos meios de produção e, principalmente, dos meios de comunicação. A pós-

modernidade é marcada, sobretudo, pela necessidade de interação, em suas múltiplas formas.

O sujeito é, em sua máxima potência, um ser comunicativo, e deve exercer suas

potencialidades interativas em todos os espaços, independente de sua nacionalidade.

Conforme Xavier (2002, p. 33-34),

Page 21: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

19

[...] a tecnociência alavancou, definitivamente, o modus operandi pós-moderno nas

sociedades avançadas. Essa nova perspectiva filosófico-econômico-cultural

imprimiu um ritmo totalmente diferente de ser, de viver e de lidar com os signos,

linguagens e informações em todos os ambientes de convivência dos indivíduos

envolvidos na atmosfera da Pós-modernidade.

Dessa maneira, o Orkut pode ser visto como uma das possibilidades de o brasileiro ser

pós-moderno, apropriando-se não apenas do meio de comunicação, mas da ferramenta criada

pelo opressor econômico. No Orkut, o brasileiro é ideologicamente, porque numericamente,

superior aos americanos, conforme indicado na seção anterior.

2.1 ORKUT, UMA “CIDADE AZUL”

Criado em 19 de janeiro de 2004, pelo turco Orkut Buyukkokten, do grupo

estadunidense Google, o site de relacionamentos que recebe o nome de seu fundador é um

fenômeno brasileiro e para acessá-lo é necessário somente ter uma conta de e-mail e criar uma

senha. Afirmamos ser o Orkut uma plataforma multimodal não apenas por combinar vários

modos de se comunicar, a exemplo de imagem, texto e, por vezes, som, mas por abarcar uma

diversidade de gêneros textuais. Chama-nos atenção o perfil preenchido pelo usuário que,

constantemente por ele atualizado, configura-se como uma narrativa viva de si, dividida em

algumas etapas ou ainda gêneros textuais.

O primeiro módulo pode ser compreendido como uma ficha cadastral, semelhante

àquelas preenchidas em hotéis. Nele, deve-se indicar dados como nome, sexo, estado civil,

data de nascimento, cidade e estado, idioma, escolaridade, situação profissional e interesse no

Orkut. Conforme a própria plataforma, 53,48% dos usuários têm entre 18 e 25 anos e 44,04%

acessam o Orkut por apresentar interesse em amigos5. O segundo módulo do perfil é social e é

destinado a estabelecer um filtro para relacionamentos futuros. Indicamos que o Orkut não

estabelece explicitamente esse objetivo para o perfil, mas nos parece claro o interesse em

categorizar os usuários quanto a seus comportamentos, a fim de facilitar encontros (ou

orkontros) entre pessoas compatíveis. Basta notar a indicação do Orkut ao usuário quanto ao

número de pessoas a que ele está conectado através da sua rede direta de amigos. Assim, a

semelhança com uma ficha cadastral de hotel na primeira etapa, deixa espaço, nesse segundo

módulo, para a semelhança com um exemplar de ficha cadastral de agências de

relacionamentos, conhecida como questionário de compatibilidade, a exemplo da disponível

5 Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011

Page 22: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

20

no site do E-harmony6. Dessa forma, dados como etnia, religião, visão política, orientação

sexual, estilo, se bebe ou fuma são solicitados nessa etapa, visando localizar perfis

compatíveis com a personalidade dos usuários, maximizando a possibilidade de sucesso dos

relacionamentos. O módulo cinco também se encaixa nessa categoria, por solicitar dados que

dizem respeito a aspectos físicos, como cor dos olhos e dos cabelos e altura, e

comportamentais, sobretudo relativos a relacionamentos. A terceira etapa solicita dados para

contato, como e-mail, reaproximando-se esse lócus do Orkut de uma ficha cadastral

tradicional, e a quarta etapa encaixa-se no que conhecemos como mini-currículo.

Além do perfil, a narrativa de si é desenvolvida no espaço intitulado “Quem sou eu”,

no qual o usuário escreve um texto demonstrando aos seus visitantes um perfil de si mais

pessoal e menos direcionado pelo site, com mais liberdade de escrita; em outro espaço, o

usuário indica o seu status no dia, através de textos e de elementos iconográficos, os emotions

icons, conhecidos como emoticons, típicos da linguagem da internet. Esse último espaço é

relevante na constituição da imagem de si, pois está localizado no topo da página, como um

lembrete ao internauta que ele deve dar atenção ao que ele sente, indicando que seus

sentimentos devem ser publicitados, como uma forma de lembrá-lo que essa é a primeira

coisa a ser vista pelos visitantes em seu perfil, ou seja, uma estratégia para angariar

popularidade, em uma tentativa do site em incitar uma atualização constante, diária, o que

configura esse espaço em um mini-blog, ou seja, um pequeno diário virtual, mas que não

deixa marcas, rastros do usuário, por não gravar as mensagens anteriores. Existem ainda, na

plataforma, as pílulas de pensamento que, apesar de terem surgido há muitos anos, ganharam

força nos anos 1990, como o livro Minutos de Sabedoria, de Carlos Torres Pastorino, que

apresenta um pensamento diferente para ser lido a cada dia como forma de estimular a

positividade dos seres humanos e, no caso do Orkut, estimular a alegria do internauta com a

vida, ampliando a vontade de manter-se conectado.

Podemos também dizer que o status do Orkut é uma tentativa recente do Google em

suprir uma necessidade do usuário em mostrar seu dia-a-dia, seus sentimentos mais

cotidianos, atendendo a uma demanda do mercado, já que os internautas ultimamente têm

feito isso em outra plataforma: o Twitter. Nesse novo fenômeno mundial, o usuário pode

escrever mensagens curtas, com até 140 caracteres, indicando a seus seguidores o que tem

feito e sentido. O Orkut, então, criou o espaço status que comporta até 100 caracteres, tendo

logo abaixo um demonstrativo de seguidores no dia, na semana e/ou no mês, recebendo no

6 Disponível em: <http://www.eharmony.com.br/singles/servlet/questionnaire/relationship/3>.

Page 23: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

21

site do Google a designação de „visitantes‟, demonstrando a importância dada pelos

internautas à sua popularidade virtual. Os internautas buscam o Twitter por ele ser uma

ferramenta do mostrar-se. Todavia, parece-nos que o Orkut permite um mostrar mais intenso

por, tecnicamente, permitir pensamentos longos, ininterruptos, sendo essa, talvez, uma das

explicações para tamanha adesão. No Orkut, o sujeito mostra a si mesmo enquanto um ser

pensante e politicamente participativo. Nele, o sujeito não apenas indica quem é ele, mas ele é

ele mesmo, configurando/exercendo, a cada momento, uma de suas identidades. No Twitter, o

sujeito grita “eu existo, eu faço e/ou estou fazendo isto”, assumindo, para nós, o caráter

emergencial do mostrar-se, através da configuração de um recado; no Orkut, ele simplesmente

existe em várias de suas facetas, identidades, mas não todas, em um ritmo aproximado ao do

cotidiano. O Twitter visa, prioritariamente, à informação pronta; o Orkut, além disso, e dentre

outras coisas, a discussão, o debate.

As narrativas de si presentes no perfil do Orkut e no espaço “Quem sou eu” são

ratificadas por outro gênero textual nele presente – o depoimento. Em um contexto

extravirtual, o depoimento é um gênero oral, no qual, normalmente, há o enunciador, seu

interlocutor – as pessoas subjetiva e não-subjetiva do discurso, respectivamente –, e aquele

de quem se fala, a não-pessoa do esquema da subjetividade de Benveniste, ausente na

enunciação. Devido a isto, o “ele” benvenistiano não interfere no discurso do depoente e, por

isso, podem aparecer relatos que não lhe são favoráveis, “manchando” a sua narrativa,

tornando-a inverossímil. No Orkut, os depoimentos são controlados, por depender, para

publicação e conhecimento público, da tácita aprovação e aceitação do dono do perfil e,

portanto, tem a função de ratificar a imagem construída pelo narrador-orkuteiro. Dessa

maneira, no depoimento do Orkut, podemos afirmar existirem três protagonistas da

enunciação: o “eu”, possuidor da marca de subjetividade, portanto, o sujeito do discurso; o

“tu” desprovido de subjetividade e o “ele”, que, no Orkut, confunde-se com o “tu”,

apresentando, assim, pessoalidade.

Além disso, outros gêneros coexistem no Orkut para corroborar a imagem construída

pelo internauta e construir a sua narrativa: o álbum de fotos, que inicialmente era totalmente

aberto, mas atualmente já é possível controlar quem tem acesso a ele, facilitando a moldagem

das personagens, a imagem que se quer transmitir, haja vista a possibilidade de restringir

quem pode ter acesso às fotos; a postagem de vídeos favoritos (ratificando o estilo e

preferências relatados nos módulos do perfil); a foto inicial do perfil, em tamanho que

Page 24: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

22

remonta à foto 3x4 das carteiras de identidade7 e a seleção de comunidades virtuais, um dos

elementos mais eficazes no delineamento das identidades assumidas pelo usuário. Uma delas

é objeto de análise nessa dissertação.

A comunidade selecionada para análise, como salientamos nas considerações iniciais,

é a intitulada “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Ao associar-se a ela, o sujeito do

Orkut indica em sua biografia uma das suas filiações ideológicas, demonstrando ao seu

visitante, a partir da interação com pessoas do país inteiro, qual o seu modo de pensar e como

conduz a sua vida, referente aos assuntos ligados a direitos humanos, indicando ser este um

tema importante para ele, por estruturar as suas relações e não estar, atualmente, sendo

conduzido do jeito que ele deseja, que acha correto. A comunidade virtual, portanto, é uma

tentativa de o usuário convencer os seus amigos de que sua forma de existência é a melhor, se

não a única aceitável. Importante salientarmos que, embora a comunidade seja virtual, a

internet deve ser compreendida como uma representação ou espelho da sociedade, o que nos

leva a duas considerações: a concepção do Orkut enquanto uma cidade virtual; a necessidade

de discutir o que é o virtual e ciberespaço, pois “[...] a comunidade virtual somente adquire

forma e se realiza mediante a interconexão dos membros em um território simbólico [...]”

(CORRÊA, 2008, p 70).

Muitas são as teorias que têm se debruçado nas questões que envolvem a internet,

como a Antropologia ou a Etnografia da Internet (Netnografia). Para compreendê-la, todavia,

utilizamos as noções de ciberespaço e de virtual concebidas por Pierre Levy, pelo fato de o

filósofo francês compreender que “[...] a emergência do ciberespaço acompanha, traduz e

favorece uma evolução geral da sociedade [...]” (LEVY, 1999, p.25). A internet, assim, é

concebida não apenas como um meio de comunicação, mas como um espaço de interação, de

trocas simbólicas, de emergência de significações, um fenômeno social. A sociedade, bem

como o ciberespaço, que dela faz parte, são construídos a partir das relações entre os

indivíduos, em várias modalidades, sendo organizados a partir da imagem que cada sujeito faz

do seu interlocutor, uma tentativa de antecipar suas representações, seu imaginário, ou seja, a

partir de formações imaginárias, construindo estratégias discursivas objetivando,

inconscientemente, a homogeneidade cultural e comportamental aventada por Hall (2005) ao

discutir identidade nacional. A partir da interação intersubjetiva e dessas formações

7 Interessante observar como, na comunidade analisada, a foto do perfil é significativa para aceitação do discurso

do outro, para ratificação de sua narrativa: “julguem pela foto do infeliz, se dá pra levar a sério um sujeito

desses” – extraído do tópico “quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”. A foto é, em uma comparação

com o mundo fora do ciberespaço, a roupa do sujeito, que deve estar adequada à situação comunicativa,

conforme a etiqueta.

Page 25: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

23

imaginárias, que geram discursos, a sociedade é constantemente construída, estando sempre

em mutação, afinal “[...] toda a organização interna da interação urbana se funda em uma

hierarquia bem complexa que envolve simpatias, indiferenças e aversões, do encontro mais

efêmero ao mais demorado [...]” (CORRÊA, 2008, p. 54), sendo tais formações fluidas e

instáveis. Assim também funciona o Orkut: o internauta antevendo o imaginário de seus

visitantes (interlocutores), estabelecendo formações imaginárias e construindo sua narrativa

da melhor maneira a convencê-los de suas filiações ideológicas.

O ciberespaço, dessa maneira, confere à sociedade uma nova forma de se comunicar,

estruturando-a em rede, ou seja, a partir de nós e conexões, interferindo, assim, a internet, nas

formas de o sujeito simbolizar, por estar, a sociedade, delimitada por suas técnicas,

significando que as possibilidades semântico-discursivas da atual sociedade dependem

também da sua estrutura técnica, pois as atividades humanas são, além da interação entre

pessoas, aquela entre entidades materiais, sendo elas naturais ou artificiais, e entre ideias e

representações que circulam na sociedade, conforme Corrêa (2008). O ciberespaço, então, é

um fenômeno de sociabilidade, ou seja, um grupamento intersubjetivo de trocas simbólicas,

que agrega diversas mídias anteriores a ele, sendo o Orkut, no entendimento de Dornelles

(2005), a terceira forma de sociabilidade desenvolvida pelo homem. A primeira é o

antiquíssimo contato face a face e a segunda, “[...] aquela que começa a ser praticada via

artefactos tecnológicos, principalmente mediante os inventos comunicacionais do século XX,

com o ápice acontecendo na internet [...]” (DORNELLES, 2005, p. 164), a exemplo do

telefone e do chat. A diferença entre a segunda e a terceira formas de sociabilidade é o par

tempo-espaço. No chat, assim como no Orkut, o encontro é virtual, mas o tempo, no primeiro,

é o mesmo para todos os sujeitos envolvidos; no Orkut, não há a relação tempo-espaço.

Vemos, então, na comunidade virtual analisada, no mesmo tópico, a interação entre discursos

proferidos nos dias 10 e 16 de maio de 2009, como é perceptível nos excertos a seguir.

Page 26: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

24

É necessário entendermos o que é ciberespaço, no qual está inserida a fragmentação

tempo-espaço ocorrida no Orkut. Na visão de Levy (1999, p. 15), “[...] o termo especifica não

apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de

informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse

universo [...]”. Assim, é possível compreendermos o ciberespaço como um fenômeno

dialético, no qual o contato intersubjetivo se dá pelas afinidades que os sujeitos apresentam

entre si, possibilitando trocas interculturais, sendo que “[...] a rede social Orkut poderia ser

compreendida como uma rede intercultural globalizada cujos participantes seriam vistos como

os responsáveis pela organização e divulgação das interculturalidades e das diversidades

culturais [...]” (CORRÊA, 2008, p.40). Essa simbiose cultural ressaltada pelos pensadores

citados nesse parágrafo demonstra que o ciberespaço não pode ser concebido apenas como um

espaço técnico, pensado somente a partir de gygabytes e velocidade de conexão, apenas como

plataforma sistêmica. Ele deve ser compreendido como espaço privilegiado de significações e

manifestações dos anseios individuais e coletivos.

Entretanto, ao contrário do que muitos pensam a respeito da internet, o ciberespaço

não é homogeneizante, ou seja, não produz e nem estimula uma cultura única e global.

Podemos observar esse fato na comunidade analisada nessa dissertação. Observando os

discursos nela presentes, percebemos que os integrantes pertencem, em sua maioria, à classe

média brasileira8, apresentam escolaridade superior à média nacional, sendo perceptível, em

seus discursos, a faixa escolar pelo vocabulário utilizado e, principalmente, por indicação de

conclusão de cursos de graduação e/ou pós-graduações, trabalham e são jovens/adultos. Isso

8 Entendemos que essa classificação não é a mais adequada, pois tende a homogeneizar grupos. Todavia,

referimo-nos aos grupos de brasileiros que apresentam renda média familiar mensal oscilando entre R$ 1mil e

R$4 mil, conforme perfil divulgado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, através de dados da Pesquisa de

Amostra Familiar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (COSTA, 2011).

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 27: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

25

indica que o binômio „interesse por temas de cunho político‟, como é o de direitos humanos, e

„acesso às tecnologias‟ permanece nas mesmas mãos que sempre detiveram esse

poder/interesse, em uns períodos mais que em outros, sinalizando que ainda há um

desequilíbrio de contato com o Outro global, o que contribui para dificultar a massificação de

ideias e representações de um grupo cibernético ao restante da sociedade. Ademais, a

possibilidade de contato com o outro acende o interesse pelo diferente e/ou exótico e, com

isso, discursos como “vivam as diferenças!” são cada vez mais valorizados na sociedade. Na

comunidade virtual, o direito à opinião é um dos mais destacados, sobretudo quando há

discordância9, evidenciando necessidade, ainda que por instinto de sobrevivência discursiva,

ou seja, como estratégia, de coexistirem as diferenças, inviabilizando, portanto, a

homogeneidade.

Outro elemento importante que contribui para que o ciberespaço não possa ser

considerado homogeneizador cultural é a valorização do que é local, não apenas do que diz

respeito ao seu entendimento tradicional, ou seja, geográfico, mas referente às idiossincrasias

dos indivíduos e/ou a culturas de grupos minoritários, a aspectos culturais que tornam o

sujeito único, por ocupar diferentemente posições sociais no seio da comunidade, por ser

participante de grupos sociais diferentes, consequentemente assumindo ideologias e

comportamentos próximos, porém não-idênticos em relação a seu interlocutor virtual, ou seja,

ele é diferente do outro, ainda que singelamente; há, atualmente, a valorização da

subjetividade cultural. Nas trocas interculturais ocorridas no ciberespaço, então, há perdas,

mas também há ganhos, ressignificando as culturas envolvidas.

Podemos, então, destacar como características do ciberespaço “[...] a ubiquidade da

informação, documentos interativos interconectados, telecomunicação recíproca e assíncronas

em grupo e entre grupos [...]” (LEVY, 1999, p. 49). O Orkut, enquanto espaço de

comunicação e sociabilidade no ciberespaço, em sua terceira forma, como indicamos em

parágrafo anterior, apresenta como dispositivo comunicacional, ou seja, como tipologia de

relações intersubjetivas, a modalidade todos-todos, em que não há restrições de produção e

recepção de mensagens, configurando a importância do ciberespaço10

, segundo Levy (1999),

devido a essa mutação cultural promovida por ele. Existem ainda dois outros dispositivos

9 Podemos citar como exemplo scrap extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para

humanos direitos”: “respeito a sua opinião, como a do André e de todos os outros, nunca entrei em atrito com

ninguém por opiniões contrárias às minhas, mas por favor, quando tiver tempo, leia meus posts neste tópico e

verá outro ponto de vista”. 10

Atualmente, essa configuração, em relação ao Orkut, pode ser relativizada, já que existem comunidades

virtuais em que os sujeitos dependem da aprovação do moderador para dela fazer parte e, portanto, para produzir

e receber mensagens.

Page 28: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

26

comunicacionais, a saber: um-um, que apresenta o telefone como referência e o um-todos, que

tem na televisão um representante. Indicamos que o ciberespaço também possibilita a relação

entre os sujeitos nessas duas modalidades, a exemplo do e-mail e do MSN, que podem

funcionar das duas formas. Salientamos ainda que, no MSN, pode haver produção

compartilhada, haja vista que o programa permite conversas simultâneas entre vários usuários,

fato conhecido como conferência. Com isso, o centro da estruturação cibernética desloca-se

da relação lugar-lugar para pessoa-pessoa.

As comunidades são o espaço do Orkut em que ocorrem as trocas simbólicas, em que

funciona efetivamente o dispositivo comunicacional todos-todos, fundada a partir da união de

interesses comuns entre os integrantes, originada com base no sentimento fundamental de

pertencimento ao grupo, semelhante ao experimentado pelo indivíduo na configuração do

sentimento nacional, gerando coesão em torno de uma consciência coletiva, ou seja, crenças,

sentimentos, ideologias partilhadas pelos membros, no caso dessa dissertação, referente aos

direitos humanos, constituindo uma sociedade. É necessário, então, para participar de uma

comunidade, não apenas reconhecê-la enquanto sociedade, mas também, e principalmente, ser

reconhecido como um membro pelos demais integrantes.

A interessante diferença entre uma sociedade cibernética e as demais existentes fora

do ciberespaço é o modo de desenvolvimento do sentimento de pertencimento: na nação, os

sujeitos são „compelidos‟ a assumir posições referentes à ideia de nacionalidade e de

pertencimento devido a discursos que circulam na sociedade, à memória discursiva, que põe

os já-ditos na superfície dos discursos e seus sentidos são tomados como verdade, devido à

sensação de um já-lá eterno, um mar de informações dificilmente transponível pelo sujeito.

No ciberespaço, pertencer a uma comunidade indica explicitamente uma escolha, uma opção

consciente feita pelos integrantes.

Não queremos com isso afirmar que o fato de os usuários optarem pela adesão à

comunidade virtual, que os isenta/torna invulneráveis dos/aos discursos circulantes, da

memória discursiva do grupo nacional, até porque seus sentidos sobre direitos humanos são

dependentes, entre outras coisas, de outros discursos. Devemos entender que, segundo a

Análise do Discurso, todos os sujeitos são frutos da interpelação das ideologias, porque, além

de assujeitados à língua, são por elas são constituídos, e, portanto, assumem como seus “[...] o

sistema ordenado de ideias ou representações e das normas e regras [...]” (CHAUÍ, 2006, p.

62). Cabe ressaltar que a ideologia funciona, atua sem se pôr à mostra, ou seja, que os

sujeitos, apesar de existirem a partir da ideologia, não apresentam, em suas consciências, esse

Page 29: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

27

conhecimento. A respeito da subjetividade e da constituição do sujeito e do sentido,

remetemos à seção três.

A observação feita no parágrafo anterior nos direciona à necessidade de compreender

a comunidade virtual nessa dissertação não como um lócus do ciberespaço apenas, mas como

discurso, que é compreendido como efeito de sentido entre sujeitos, portanto, como processo.

Dessa maneira, vemos a comunidade “Direitos humanos para humanos direitos” como um

espaço simbólico, ideologicamente marcado, constituído por indivíduos que, interpelados,

configuram-se como sujeitos cujos sentidos emergem a partir da assunção, inconsciente, de

posicionamentos, pelos sujeitos, frutos das relações interdiscursivas, das condições de

produção desses discursos, que são materializados no texto.

Como efeito de sentido, a adesão do sujeito a diversas comunidades indica que ele

exercita a possibilidade de ser diversos “eu”, sendo o ciberespaço um exercício efetivo e

inconsciente de construção e reforço de identidade(s), espaço no qual o sujeito assume papéis

e identidades diversas. Dissemos anteriormente que, segundo Hall (2005), o sujeito pós-

moderno é fragmentado. No Orkut, essa fragmentação é posta em evidência, pois, ao aderir à

comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”, é a identidade de ser humano que

está em relevo, enquanto que o mesmo sujeito aderindo à comunidade “Direito Penal” assume

também a identidade de jurista/estudante de Direito. Além disso, nas comunidades virtuais, o

sujeito pode plenamente exercer as diversas facetas do seu eu, pois inexistem os

constrangimentos sociais presentes nas relações intersubjetivas, como preconceitos raciais,

linguísticos, etários e sociais. No Orkut, o sujeito pode expressar os seus sentidos,

principalmente porque, apesar de existir a construção do perfil que, nessa dissertação estamos

nomeando de narrativa, o sujeito pode construir uma personagem fictícia, atribuindo nomes

inventados por ele ou nicknames (apelidos), a foto de seu perfil pode ser a imagem de um

quadro, de um artista de Hollywood ou de um personagem de desenho animado11

, permitindo

ao sujeito significar em uma espécie de anonimato, já que emergem significações através do

“eu” que não se põem à mostra na sociedade do ciberespaço. Então,

[...] o anonimato contribui para garantir a livre discussão on-line, quando barreiras e

constrangimentos do contato off-line, que vão desde uma escala de hierarquia

quando se está em um ambiente profissional quanto a fatores de ordem emotivo e

pessoal, como a timidez. Por este viés, o anonimato torna-se muito significativo na

relação estabelecida via ciberespaço, à medida que facilita a exposição de idéias,

sejam lá quais forem, já que se pode esconder e escamotear a identidade. (CORRÊA,

2008, p. 168)

11

Isso não quer dizer que a identidade é falsa. A escolha da imagem para compor o perfil, a criação do nickname

são também rastros que indicam a(s) identidade(s) do sujeito do Orkut.

Page 30: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

28

É importante salientarmos que a interação entre os sujeitos não se dá somente no

interior da comunidade, mas também com os grupos pertencentes a outras identidades sociais

no ciberespaço, ou seja, com outras comunidades. Isso implica dizer que, também no Orkut,

há relações interdiscursivas, por ser a interdiscursividade uma propriedade dos discursos, pois

todo discurso é fundado sobre outros discursos. A comunidade-objeto de análise nessa

dissertação é construída pautada em um pré-construído que determina os direitos humanos

para todos os indivíduos, por serem todos iguais. Assim, a afirmação de que os direitos

humanos devem ser direcionados somente para humanos direitos é construída no espaço de

trocas com os discursos que „defendem‟ a igualdade jurídica entre os indivíduos. Surge, então,

outra característica das comunidades virtuais: além de serem fundadas por interesses comuns,

elas são construídas a partir do conflito. É ele que permite a união dos membros. A existência

da comunidade é justificada pela defesa do modo de vida e dos sentidos assumidos pelos

membros, que só ocorre devido à tensão presente no processo de interação social. Sem o

conflito, não haveria razão para criação e manutenção da comunidade.

Quanto ao aspecto físico, as comunidades estão estruturadas de modo semelhante ao

perfil dos usuários. No centro, há uma espécie de mini-narrativa da comunidade, feita pelo

dono/criador, figura semelhante ao presidente de uma nação (Poder Executivo). Nesse espaço,

intitulado “descrição”, é possível fazer um relato dos interesses da comunidade, indicar suas

filiações ideológicas, dentre outras possibilidades. Na comunidade em análise, a descrição é

um trecho do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que indica

aceitação do documento pelos membros, sinalizando que as críticas tecidas na comunidade

não são direcionadas à entidade „direitos humanos‟.

Logo abaixo, há a identificação do idioma oficial utilizado, a categoria a qual pertence

a comunidade, dentre as vinte e oito possíveis no Orkut12

, (no caso dessa dissertação, a

categoria é pessoas), o nome do dono, com um link para seu perfil, a relação dos moderadores

da comunidade virtual, espécie de Aparelho Repressor do Estado, como a polícia e o Poder

Judiciário, sendo que, para Althusser (1998, p. 67-68), “[...] repressivo indica que o aparelho

de Estado em questão „funciona através da violência‟ – ao menos em situações limites (pois a

repressão administrativa, por exemplo, pode reverter-se de formas não físicas)”, como as

12

O Orkut permite classificar as comunidades em uma das 28 categorias elencadas pela plataforma, facilitando a

procura dos usuários por temas de seu interesse. As categorias são: Alunos e Escolas; Animais: de estimação ou

não; Artes e entretenimento; Atividades; Automotivo; Cidades e Bairros; Computadores e Internet; Culinária,

bebidas e vinhos; Culturas e comunidade; Empresa; Escolas e cursos; Esportes e lazer; Família e lar; Gays,

lésbicas e bi; Governo e política; História e ciências; Hobbies e trabalhos manuais; Jogos; Moda e beleza;

Música; Negócios; Países e regiões; Pessoas; Religiões e crenças; Romances e relacionamentos; Saúde, bem-

estar e fitness; Viagens; Outros.

Page 31: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

29

expulsões, no caso da comunidade do Orkut. Há também link para os perfis dos moderadores,

o tipo de comunidade, ou seja, se é pública ou não, a identificação do nível de privacidade do

conteúdo, a sua localidade, que normalmente coincide com a do criador, data de criação e

número de membros.

A comunidade virtual “Direitos humanos para humanos direitos” é pública, seu

conteúdo é aberto para não-membros, está geograficamente relacionada à cidade de São Paulo

e foi criada em 9 de abril de 2005. Além disso, na lateral direita, há imagens dos membros que

recentemente visitaram a comunidade13

, bem como a lista das outras comunidades com as

quais mantém relação. Na comunidade, pode-se ainda participar de enquetes, divulgar

eventos, denunciar abusos (o “Ministério Público” do Orkut) e participar de fóruns, principal

atividade de uma comunidade virtual.

A existência de links na comunidade e a ideia de que o Orkut, enquanto discurso,

materializa seu sentido no texto, faz com que seja relevante entendermos a noção de

hipertexto, termo criado por Theodore Nelson, em 1993, categoria na qual se encaixam as

materialidades do site de relacionamentos do Google. A priori, devemos ter em mente a

noção de hipertexto enquanto texto estruturado em rede, o que nos leva a ponderar que essa

categoria não foi inaugurada com o ciberespaço, já que textos tradicionais também podem

apresentar conexões/nós como as notas de rodapé, por exemplo, mas que o Orkut é um

hipertexto digital, ou seja, “[...] informação multimodal disposta em uma rede de navegação

rápida e intuitiva” (LEVY, 1999, p. 56), construído para uma leitura coletiva, uma “[...] rede

de hiperlinks entre palavras, ideias e fontes, sem centro ou fim [...]” (XAVIER, 2002, p. 26).

Dessa forma, o hipertexto digital só se realiza, com todas as suas qualidades, no ciberespaço.

O hipertexto é concebido a partir da ideia de potencialidade, pois os links, ou melhor,

os textos em rede, são apenas textos em potencial, pois a sua realização somente se dará a

partir da interação com o usuário, sendo que não há a obrigatoriedade de fazê-lo e, portanto,

não há garantia de isso ocorrer. Nas comunidades do Orkut, por exemplo, não parece ser

comum o acesso, através dos links situados na página de abertura da comunidade aos perfis do

dono e dos moderadores. Não há nela pistas sobre tal prática. Entretanto, percebemos que

essas conexões textuais ocorrem nos fóruns, quando há necessidade, por parte de um dos

interlocutores, de comprovar a autenticidade de algum orkuteiro, se não se trata de um fake,

como são chamados os perfis falsos, como evidencia Carolina em fragmento a seguir. Mas

13

As comunidades do Orkut apresentam três locais diferentes para indicar o quantitativo de membros. Isso

demonstra a importância dada à popularidade no Orkut, o que ratifica a sua categorização como uma rede social.

Page 32: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

30

reiteramos, não é uma prática tão comum na comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Uma das características do hipertexto elencadas por Xavier (2002) é a imaterialidade.

O hipertexto digital é marcado pelo não-contato com as mãos do leitor que, para isso,

precisaria imprimi-lo rompendo com alguns dos contratos de leitura estabelecidos pelo gênero

textual, alterando o seu suporte14

. Os fóruns da comunidade analisada nessa dissertação nos

indicam que as comunidades virtuais apresentam gêneros que derivam de gêneros orais. É

necessário entendermos que gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, conforme

a perspectiva bakhtiniana (2003). Eles são concebidos como práticas sociais e, portanto, são

historicamente situados, gerados no interior de um campo da atividade humana e a partir das

necessidades especiais desse campo, o que leva a compreender porque a estabilidade dos

gêneros não é total, ou seja, eles são intercambiáveis, o que significa inter-influência e

reacentuação dos gêneros, e variam conforme a mudança da sociedade, adaptando-se às

necessidades comunicacionais dos seres humanos que, na internet, são ainda mais dinâmicas.

Fora do ciberespaço, os hipertextos digitais perdem a sua configuração, deslocando-se do

campo de atividade que os forjaram.

Os fóruns das comunidades, lócus de análise dessa dissertação, podem ser

compreendidos como derivações do gênero oral „debate‟ (que, a nosso ver, deriva do gênero

diálogo) em que diversas pessoas discutem um mesmo tema, mediados por um moderador. É

necessário, então, evocar uma importante característica do enunciado, no entendimento de

Bakhtin (2003, p. 272), que é a de ser “[...] um elo na corrente complexamente organizada de

outros enunciados”, ou seja, os enunciados nascem assentados em enunciados anteriores,

sobretudo porque, para Bakhtin (2003), é a partir dos gêneros que o indivíduo aprende as

unidades linguísticas e a maneira de pô-las em prática, organizar o seu discurso,

configurando-se também uma crítica a um dos elementos da dicotomia que fundou o corte

14

“locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero

materializado como texto” (MARCUSCHI, s/d, p. 10). Importante observar esse conceito, pois conforme o autor

o gênero é sempre identificado a partir de sua relação com o suporte, ou seja, a relação do sujeito com o texto

muda, se muda o suporte no qual a mensagem é veiculada. Isso quer dizer que só é possível compreender o

funcionamento das comunidades virtuais, a partir da compreensão de ciberespaço, o seu suporte.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 33: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

31

saussuriano, a fala, por não levar em consideração que os elementos do sistema linguístico

estão submetidos a certas regras sociais de utilização, impostas pelos gêneros discursivos.

Fundado que é pelo gênero debate, o Orkut não parece se adequar bem às divisões

elaboradas por Bakhtin (2003) para os gêneros quanto à sua origem, ou seja, gêneros

primários e secundários, estes últimos oriundos de uma estrutura complexa e organizada,

incorporando os primários. Os fóruns do Orkut parecem ser um gênero diferenciado, por já

ser, em nosso olhar, uma terceira geração de tipos relativamente estáveis de enunciado,

abrindo possibilidade para os gêneros textuais terciários15

, que seriam uma mescla de um

gênero primário e um secundário, assumindo características de ambos e desenvolvendo

outras. Embora seja um gênero derivado de dois gêneros orais, o fórum do Orkut é escrito,

apesar de manter algumas das especificidades da oralidade. Conforme Grigoletto (2009), a

escrita na internet é um meio-termo. Ainda segundo a autora,

[...] afirmar que a escrita virtual situa-se no entremeio do discurso da oralidade e do

discurso da escrita significa contemplar nesse processo as contradições inerentes

tanto a um quanto a outro discurso, significa trabalhar no intervalo entre esses dois

discursos, não valorizando um em detrimento do outro, mas dando legitimidade aos

dois. Significa, ainda, considerar os lapsos, as falhas, ou chamados “erros” da escrita

virtual, os silenciamentos, os sinais gráficos, as imagens como elementos que

constituem a materialidade da escrita virtual. (GRIGOLETTO, 2009, p.3)

A oralidade está representada na escrita cibernética, reconfigurando a escrita

tradicional, a partir da incorporação de imagens, emoticons, erros de digitação, inadequações

gramaticais, abreviações ou neologismos ao texto, sendo estes entendidos como “[...]

resultados de cruzamentos entre um conjunto de matrizes: linguísticas (capacidades

cognitivas), tecnológicas (condições mecânicas) e históricas (contexto sócio-político)”

(XAVIER, 2002, p. 21), configurando, assim, nos discursos dos fóruns, marcas identitárias

dos sujeitos.

Entretanto, um fato interessante ocorre nos fóruns da comunidade “Direitos humanos

para humanos direitos”: a escrita cibernética e os traços que reproduzem a oralidade

praticamente não são utilizados nos tópicos selecionados. Analisando proporcionalmente os

15

Indicamos não ser originalmente nossa a idéia dos gêneros terciários. Xavier e Santos (s.d) apontam para sua

existência, ao refletir sobre o fórum eletrônico, gênero analisado nesta dissertação. Eles afirmam que o fórum

eletrônico “é um gênero terciário que guarda mais semelhanças com os gêneros primários por serem constituídos

basicamente por marcas da oralidade tanto na forma composicional como no tempo de execução, embora a sua

concretização se dê pela escrita. Períodos simples e curtos, frases truncadas, preferência por construções verbais

na voz ativa, menos densidade informacional, marcas de envolvimento, presença de marcadores conversacionais,

entre outras características da oralidade, costumam aparecer muito nos fóruns virtuais”. Todavia, não pudemos

perceber todas as características identificadas para esse gênero pelos autores, principalmente no que diz respeito

à estrutura composicional e marcas da oralidade. No corpo da dissertação, trazemos brevíssimos comentários

sobre as particularidades do gênero terciário „debate‟ na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 34: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

32

tópicos, podemos afirmar que o „internetês‟ não é língua valorizada na comunidade,

aparecendo em poucas situações: abreviações ou reconfiguração de palavras/expressões de

baixo calão, como FDP16

, demonstração de risos (rsrs). É possível que a seriedade da

temática, a configuração do gênero „debate‟, que originalmente exige formalidade para

melhores chances de persuasão e a importância dada pelos internautas à comunidade os

impeçam de utilizar o „internetês‟, por vezes sendo os discursos, nos tópicos, bastante

formais, uma tentativa de imprimir credibilidade.

Outra situação também pode ser apontada como justificativa para a utilização do

„internetês‟ na comunidade – as emoções. Quando os sujeitos envolvem-se emocionalmente

com a temática debatida, irrompe o equívoco, a falha possível devido ao furo da linguagem,

possibilitando a emergência do „internetês‟. „Gordo, Fabiano‟, por exemplo, do tópico “Quem

é a igreja para falar de direitos humanos”, ao discutir a temática, utiliza letras em caixa alta

para exprimir tom de voz alto/gritos e, quando bastante emocionado, ignora as regras sociais

formais para a comunicação, e exprime um palavrão – “porra” – bem como utiliza uma

abreviação – “vcs” –, como podemos visualizar no fragmento a seguir.

Outra característica do hipertexto digital é a não linearidade da leitura, ou seja, não

mais há a necessidade de ler o texto em uma única direção, sequência, contribuindo para

aumentar ainda mais a pluralidade semântica característica dos discursos, ficando os sentidos

dependentes das conexões estabelecidas pelo leitor, tornando cada leitura um ato singular.

Mas tal singularidade caracteriza o hipertexto devido a outro traço que lhe é fundamental: a

intertextualidade. É consenso entre os teóricos que a linguagem humana é, por natureza,

intertextual, pois “todo dizer é um já-dito” (ARAÚJO; LOBO-SOUSA, 2009, p. 566). Desse

modo, afirmar que a intertextualidade é característica do hipertexto é indicar que ele põe em

evidência, através dos hiperlinks, a justaposição de textos.

16

Abreviação para a expressão “filho da puta”

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 35: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

33

Nos fóruns da comunidade do Orkut em análise, contrariando o que se espera de um

hipertexto, é pouco frequente a recorrência ao uso de hiperlinks. Até a data da última coleta

de dados no Orkut, dezembro/2009, somando os cinco tópicos centrais analisados nessa

dissertação, contabilizamos 365 postagens. Destas, somente três apresentam hiperlinks, ou

seja, aproximadamente 0,8% do total, na maioria das vezes, funcionando como mote para

deflagração do tópico. Além destes, exibidos a seguir, existem os hiperlinks-estruturas dos

fóruns, quer dizer, já compõe a sua natureza estrutural. Ao clicar na imagem de qualquer

integrante, o cibernauta é remetido ao perfil do membro da comunidade no qual clicou. Mas,

como já mencionamos, não se configura prática comum, nos fóruns da comunidade analisada,

esse movimento (pelo menos, não é mencionado nos tópicos, o que também demonstra quebra

de regra de etiqueta da internet).

Os hiperlinks que ligam o fórum aos perfis dos debatedores funcionam como mini-

currículos, no qual o membro da comunidade pode conhecer o seu interlocutor e, com essas

informações, elaborar estratégias argumentativas, ou simplesmente verificar a procedência,

sobretudo relativa às filiações ideológicas dos membros visitados. Dessa maneira, seguindo a

classificação da Linguística Textual adotada por Araújo e Lobo-Sousa (2009), essa

intertextualidade é do tipo „temática‟, pelo fato de o sujeito partilhar temas, conceitos e

terminologias. A intertextualidade presente nas postagens da comunidade é qualificada

também como sendo do tipo „explícita‟ e “se dá quando, no próprio texto, é feita menção à

fonte do intertexto” (ARAÚJO; LOBO-SOUSA, 2009, p. 571), sendo que no Orkut, quando

isso ocorre, essas postagens praticamente só contem esses hiperlinks, como pudemos observar

nos scraps de „João Lima‟, „Luiz Felipe‟ e „inconstitucional‟ anteriormente postos.

Ressaltamos que outras relações intertextuais podem ser levantadas no corpo das mensagens

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de DH?”, da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 36: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

34

postadas nos fóruns. Focamo-nos, entretanto, naquelas que dizem respeito exclusivamente às

especificidades do hipertexto.

Feitas as considerações sobre ciberespaço, gênero e hipertexto, podemos retomar a

ideia de que o Orkut apresenta como dispositivo comunicacional o formato todos-todos,

alçando-o à categoria de terceira forma de sociabilidade. O mecanismo de funcionamento do

Orkut, nos fóruns de suas comunidades virtuais, é a interação através do debate, como já

evidenciamos. O gênero secundário „debate‟ exige a presença no mesmo espaço e ao mesmo

tempo de interlocutores, limitando a interação. O máximo que podemos conseguir, nesse

sentido, com o gênero „debate‟, é a quebra da rigidez do espaço, com a utilização de

tecnologia, realizando teleconferências, configurando-se como um fenômeno de sociabilidade

de segunda ordem. Todavia, o fórum do site de relacionamentos do Google, como gênero

terciário, desobriga os interlocutores a partilharem o mesmo espaço-tempo, fragmentando

esse binômio. Dessa maneira, os orkuteiros não precisam conectar-se no mesmo instante para

que o debate se processe, o que faz com que se ampliem as possibilidades de participação de

pessoas com estilos e rotinas de vida diferentes e aumente o tempo de duração do debate,

podendo atingir a eternidade, se for constantemente alimentado17

. Apesar disso, há por parte

dos interlocutores a sensação de tempo real, imediato, apesar de sua fragmentação.

Parece uma contradição afirmar que no Orkut há a fragmentação do espaço, se

anteriormente informamos existir no perfil das comunidades um espaço destinado à indicação

do lugar a que pertence a comunidade virtual, sendo a “Direitos humanos para humanos

direitos” localizada em São Paulo. Entretanto, essa indicação faz referência apenas à

concepção de lugar físico-geográfico, porque é com ele, porque palpável e historicamente

situado, que os internautas apresentam uma relação de identificação. O lugar, portanto, é

espaço formador de identidade, ou melhor, ele põe em evidência para o sujeito aquilo que ele

é (ou deveria ser). O ciberespaço, suporte do gênero terciário „debate‟, não apresenta essas

fronteiras e, por isso, é compreendido por Corrêa (2008, p. 23) como um não-lugar, ou seja,

“[...] espaços simbólicos, reterritorializantes, de passagem, que são navegados por internautas

que se encontram e se desencontram no fluxo comunicacional”. Dessa maneira, não-lugar é

um conceito que amplia a noção antropológica de lugar, que é fixo, indicando o ciberespaço

17

Dentre os cinco tópicos centrais de análise, até a data da última coleta, o de maior duração foi o tópico

“Aborto”, com início em 30/05/2006 e última postagem coletada em 03/12/2006, ou seja, 188 dias de atividade.

Dentre os tópicos secundários utilizados na dissertação, o de maior duração é o intitulado “Clichês pseudo-

humanistas, com debate ativo no período de 21/04/2008 a 13/03/2009, contabilizando 327 dias. Ressaltamos que

os tópicos permanecem on-line e, por isso, ainda não podem ser considerados finalizados. O Orkut disponibiliza

a relação dos tópicos de uma comunidade por data de postagem. Assim, se alguém postar algo nos referidos

tópicos, certamente o debate será retomado de onde parou.

Page 37: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

35

como territorialidade simbólica, como espaço em movimento. Necessário, então, entendermos

que o território, na visão de Corrêa (2008), é a mescla de uma cultura com um território

geográfico e social, quer dizer, o espaço converte-se em território, a partir da cultura.

A cultura do ciberespaço, denominada cibercultura, destrói as fronteiras e hierarquias

postas tradicionalmente na sociedade, como a ideia de cultura nacional, construindo e sendo

construída pela noção de global. Hall (2005) identifica três consequências da globalização

sobre as identidades culturais, como a desintegração das identidades nacionais, reforço das

identidades locais e surgimento de novas identidades – híbridas. Como a compressão espaço-

tempo que caracteriza o ciberespaço impacta as identidades culturais, podemos afirmar que a

cibercultura, um dos frutos da globalização, institui outras fronteiras e hierarquias, pois “[...]

criar um território significa manter o controle sobre todas as ações que se manifestam no

interior dessas fronteiras [...]” (CORRÊA, 2008, p. 46), mostrando-nos que o Orkut não é

terra sem lei.

Entretanto, não concordamos plenamente com a primeira consequência arrolada por

Hall (2005) porque no Orkut, sobretudo na comunidade analisada nessa dissertação, a noção

de global ainda está restrita à ideia de nação. É difícil para o brasileiro, no site de

relacionamentos do Google, fugir da brasilidade, devido ao percentual de brasileiros na

plataforma e ao fato de que o português é língua oficial, tendo sido o primeiro idioma para o

qual o Orkut foi traduzido, em 2005. A cibercultura, desse modo, na visão de Levy (1999, p.

15), é “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de

pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”,

fazendo com que as mensagens dos fóruns sejam sempre retomadas em seu contexto de

enunciação. A cibercultura, então, pode ser entendida como uma prática sócio-discursiva e

que interfere na construção da(s) identidade(s) do sujeito, a partir de suas relações com o

ciberespaço.

Devido ao dinamismo da cibercultura, o ciberespaço é visto por Corrêa (2008, p. 16)

como “um não-lugar reterritorializante”. A movimentação da cultura faz com que os

territórios sejam fluidos, instáveis e, com isso, ocorre o movimento da desterritorialização, ou

seja, a perda da relação entre cultura e território geográfico-social. Ao ligar o computador e

acessar a internet, o sujeito inicia um movimento de abolição do território geográfico,

reconstrução de identidades e desmaterialização do lugar, adentrando uma posição não

definida no espaço físico e do tempo do relógio. Desta maneira, apesar de se definir como

pertencente ao território geográfico de São Paulo, a comunidade virtual “Direitos humanos

para humanos direitos” não faz parte desse lócus, pois, no ciberespaço, São Paulo não existe e

Page 38: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

36

inexistem também as fronteiras que definem tradicionalmente o lugar, misturando as unidades

de tempo, identidade e localização. Surge, então, o Orkut enquanto não-lugar. Assim,

evidencia que no ciberespaço “[...] a sincronização substitui a unidade de lugar, e a conexão, a

unidade de tempo [...]” (LEVY, 1996, p. 21), constituindo o que podemos chamar de

território-rede, um espaço simbólico.

O hipertexto, por sua natureza diluidora das noções de dentro e fora, conforme Xavier

(2002), aumentando a circulação do leitor no ciberespaço, por não apresentar fronteiras

nítidas, pode também ser definido a partir do movimento de desterritorialização por não

apresentar suporte físico, possibilitar, como dissemos, uma leitura não-linear e estar em

constante mutação, pois os hiperlinks podem ser alterados sem conhecimento do autor do

texto base, estando os leitores e os sentidos em todos os lugares. Fato semelhante ocorre na

comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”, em um dos três hiperlinks inseridos

em seus fóruns. Constituído basicamente pela ligação com o texto situado fora do tópico, a

postagem de Luiz Felipe na comunidade, posta a seguir, perdeu seu sentido porque a

comunidade à qual o hiperlink direciona não mais existe, foi retirada do ciberespaço e, por

isso, o hipertexto perde uma das suas características constitutivas – a intertextualidade,

impossibilitando, nesse caso, a leitura.

Todavia só é possível admitirmos a existência de uma cibercultura se entendermos a

necessidade de recompor esse território no ciberespaço, reelaborando a ordem simbólica. Esse

processo, simultâneo ao da desterritorialização, é chamado por Levy (1996) de virtualização,

e por Corrêa (2008), de reterritorialização. Adotamos as duas terminologias, mas optamos por

utilizá-las em contextos diferentes, fazendo uso inicialmente do termo do filósofo francês

porque a noção de virtual consegue abarcar o modus operandi do ciberespaço, que se dá a

partir da realidade virtual, “[...] um tipo particular de simulação interativa, na qual o

explorador tem a sensação física de estar imerso na situação definida por um banco de dados

[...]” (LEVY, 1999, p. 70), o que explica a sensação do sujeito, anteriormente mencionada, de

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 39: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

37

que as fronteiras tempo-espaço não foram fragmentadas e, além disso, contempla melhor, para

nós, o conceito de hipertexto.

A noção de virtualização carece, inicialmente, da compreensão do que vem a ser o

virtual, concebido por Pierre Levy (1999) a partir de três vertentes: a técnica, que diz respeito

à digitalização, a corrente, que vincula a noção de virtual à ideia de irrealidade e a vertente

filosófica, que é a adotada nesta dissertação. Desta maneira, o virtual é “[...] aquilo que existe

apenas em potência e não em ato [...] antes da concretização efetiva [...]” (LEVY, 1999, p.47).

O ciberespaço, então, é terreno das possibilidades, como a metáfora da árvore presente na

semente, trazida por Levy (1996). Isso significa que o virtual não se opõe ao real, por ser um

conjunto de potencialidades a serem efetivadas pelo usuário. A diferença entre o real e o

virtual, dessa forma, reside na existência concreta do primeiro. Nos hiperlinks da comunidade

do Orkut anteriormente postos, por exemplo, os textos presentes nos nós das conexões por

eles estabelecidos são possibilidades a serem efetivadas no ciberespaço. Se o membro da

comunidade clicar no link, o texto passa a ganhar concretude. Como podemos perceber, não é

adequado afirmar que os textos dos hiperlinks não são reais por não terem sido clicados, pois

eles encontram-se disponíveis, prontos para brotar da semente, sendo com isso, atualizados.

Levy (1996), então, concebe a virtualização como o movimento inverso ao da atualização, ou

seja, como desenvolvimento de um espaço simbólico de possibilidades. A atualização, por seu

turno, é entendida como a atribuição de sentidos ao texto, quer dizer, a assunção de uma

dentre as múltiplas possibilidades semânticas.

A noção de virtual define ciberespaço porque abarca a fragmentação de tempo-espaço,

ou seja, por ser compreendido como possibilidade, o virtual é uma “[...] entidade

„desterritorializada‟, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos

e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em

particular [...]” (LEVY, 1999, p. 47). Essa concretização, que Levy (1999) nomeia de

atualização e da qual falamos no parágrafo anterior, constitui o lado oposto do virtual, ou seja,

ao entrar em contato com o hipertexto, o leitor atualiza o texto ao atribuir-lhe sentido „aqui e

agora‟.

É, então, nesse momento que a noção de reterritorialização irrompe como a mais

adequada. Reterritorializar é constituir relocalizações territoriais, reconfigurando o contexto

enunciativo, redefinindo as fronteiras. É a partir da reconstrução do espaço simbólico que é

possível qualificar o Orkut como “cidade azul”, pois, ao ressignificar o ciberespaço, os

sujeitos constituem uma estrutura semelhante a uma cidade antropológica, geográfica: com

cidadania, necessidade de registros e documentação, como o perfil, funcionamento de uma

Page 40: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

38

estrutura da tripartição dos poderes, como já mencionamos18

, dentre outros elementos de uma

cidade tradicional. O Orkut é, retomando a frase de Eisenberg e Lyra (2006, p. 33) presente

nas considerações iniciais, “[...] uma cidade virtual moldada à imagem do espaço urbano dos

usuários [...]”. O Orkut é uma “cidade azul”19

.

18

Dos três poderes da estrutura governamental vigente na sociedade contemporânea – Executivo, Judiciário e

Legislativo – o último é o único que não se desenvolve bem no Orkut. Percebemos traços do Poder Legislativo

apenas no espaço enquete, isso se a pergunta servir para alguma tomada de decisão na comunidade, o que não é

tão frequente. Nesse sentido, a gestão do Orkut, ou melhor, das comunidades, não é tão democrática. 19

O adjetivo „azul‟ no sintagma diz respeito à cor de fundo da plataforma.

Page 41: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

39

3 DIREITOS HUMANOS: UM SINTAGMA, DOIS CONCEITOS, UMA HISTÓRIA

3.1 UM SINTAGMA...

Um dos principais elementos que polemizam a discussão e a análise de discursos sobre

direitos humanos e que perpassa essa dissertação, constituindo a sua questão basilar, é a sua

conceituação. Bobbio (2004) sinaliza não haver resposta concludente, definições nítidas para

este questionamento, havendo apenas considerações tautológicas, ou seja, aquelas que

indicam serem os direitos humanos aqueles destinados para os homens, o que, em verdade,

não define nada, afinal toda a jurisprudência é construída pelo e para o homem em sociedade.

As definições podem ainda, consoante o teórico italiano, apenas expressar a vontade do

proponente, como “direitos humanos são aqueles direitos necessários que devem ser gozados

por todo ser humano” (grifos nossos), introduzindo expressões avaliativas, o que amplia as

possibilidades interpretativas de quem discute a temática, já que implica considerar, de

imediato, ainda que se deseje a imparcialidade, como pretende a ciência jurídica, um juízo de

valor do emissor.

A falta de definição clara e consistente sobre direitos humanos, inclusive no seio da

Filosofia do Direito, e que possibilita, como dito no parágrafo anterior, essa pluralidade

semântica, leva os cidadãos e os sujeitos da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos” a construírem o conceito a partir de fontes diversas, seja os qualificando como

instrumento de proteção contra as arbitrariedades do Estado, como evidencia o discurso de

Calinka posto a seguir, não levando em consideração o próprio aparelho estatal fiscalizador,

como o Tribunal de Contas, que teria por definição a função de observar e, quando necessário,

autuar o Estado por infringir regras; ou ainda qualificando-os como elementos defendidos por

organizações e entidades não-governamentais (ONGs) ligadas à sociedade civil, como ressalta

Andrea no tópico “Quanta hipocrisia”. Este ponto merece destaque, pois, embora este pareça

estar inserido no primeiro modo de ver os direitos humanos aqui posto, eles, na prática, se

distanciam por dois aspectos: primeiro porque as ONGs não têm necessariamente, por

finalidade, o objetivo de cuidar de questões sociais focando o aparelho estatal. Podemos

exemplificar essa postura através de entidades como Greenpeace, que funciona independente

da atuação do Estado como agente “agressor”. Além disso, o segundo entendimento de

direitos humanos possibilita compreender o sujeito como um agente transformador,

disseminador e responsável pelos direitos humanos, o que faz dele um sujeito constituído por

ideologias, mas não completamente assujeitado a apenas uma formação ideológica, a uma

Page 42: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

40

única formação discursiva, possibilitando, dessa maneira, a assunção, pelo mesmo sujeito, de

sentidos aparentemente contraditórios, ou seja, DH são, ao mesmo tempo, de cunho natural e

político.

Na contramão, o sentido mais disseminado na comunidade do Orkut está relacionado

ao discurso midiático. Assim, direitos humanos seriam somente o que é transmitido pela

mídia sobre a temática, os protestos em favor dos „bandidos‟ realizados pelos grupos de

defesa dos DH, conforme entendimento de Mr. Bigode, do tópico “Quanta hipocrisia”, em

exemplo posto a seguir, que ilustra a significação-base da comunidade virtual. Duas questões

interessantes devem ser consideradas, mas que, na maioria das vezes, não se constituem como

entraves pelos internautas: o entendimento que se tem de mídia – instituição soberana,

objetiva, não-ideológica e retransmissora de uma verdade única e absoluta; e a discussão

sobre a natureza do que é transmitido pela mídia acerca da temática, ou seja, o que, para os

veículos de comunicação, em relação aos direitos humanos, é considerado notícia.

Tal diversidade semântica se dá, sobretudo, por conta dos elementos que compõem o

sintagma que nomeia esse campo. Tanto a palavra “direito” quanto “humano” apresentam

variadas acepções, o que compromete o estabelecimento de um sentido único e estável para o

sintagma, se é que isso é possível, mas sabe-se ser desejado tanto pelos juristas quanto pelos

internautas que defendem, com afinco, o sentido por eles adotado, pois, como observa

Stevenson (1958, p. 9 apud FERRAZ JR, 2003, p. 38), “[...] qualquer definição que se dê de

direito, sempre estaremos diante de uma definição persuasiva”. A interpretação dada pelos

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Page 43: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

41

sujeitos da comunidade do Orkut à noção de direito está afinada a duas correntes, a saber:

aquela que entende o direito de forma genérica e abstrata, apresentando como função básica a

busca do sujeito enquanto indivíduo, pela justiça, ainda que “com as próprias mãos”, afinal

para os orkuteiros “temos sim o direito de nos defender e protegermos nós mesmos os nossos

direitos e os das pessoas queridas” 20

; ou ainda àquela que concebe o direito, primeiramente, a

partir dos postulados constituídos pela ciência jurídica, pois ela deve ser a base das discussões

sobre direitos humanos, sobretudo porque “antes de tudo, devemos conceituar a liberdade

individual”21

.

O adjetivo “humano”, que compõe o sintagma em estudo, também abarca sentidos

variados, filiados a famílias discursivas diversas. Assim, os sentidos sobre direitos humanos

são constituídos a partir da relação entre formação físico-somática do indivíduo e atos de

caridade, incluindo aí a legitimação por uma instância superior e divina, ou seja, direitos

humanos devem ser pensados para uma vida plena e harmônica, direito a uma vida sadia que,

caso não ocorra, pode (e deseja-se) ser retirada por Deus (e somente por ele). Há nos

discursos da comunidade do Orkut, então, a relativização do direito à vida, pilar dos direitos

humanos, devido ao entendimento de ser humano enquanto ser que “deve ser perfeito” 22

.

Tal relativização dos direitos humanos encontra eco na comunidade do Orkut em

análise, principalmente porque o ser humano vai ser também compreendido a partir de sua

história, com os sujeitos cibernéticos retomando, no fio de seus discursos, fatos que marcaram

a humanidade, como o massacre de seres humanos ocorrido no período de 1939-1945, quando

determinados grupos sociais eram considerados reles animais e, portanto, cobaias, (“„Direitos

humanos para humanos direitos‟ não seria recriar a ideia de „Ratos Humanos‟ e assistir a um

holocausto contra pecadores?”23

), o que possibilita sentidos como os que nomeiam a

comunidade, ou ainda, a partir de seus princípios últimos, ou seja, o ser humano, tal qual uma

propriedade, conforme inciso XXIII, artigo V, da Constituição Federal do Brasil, deve atender

à sua função social, ser útil à coletividade, afinal “o que, por exemplo, esperar de um garoto

de 12 anos preso 11 vezes?”24

. Salienta-se, entretanto, que as três filiações aqui apresentadas

estão conectadas e interagem para produzir sentidos sobre Direitos Humanos. Assim, afirmar

20

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”. 21

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”. 22

Esse posicionamento emerge no Orkut em discursos como o extraído do tópico “Aborto!”: “a pobrezinha é

completamente mal-formada [...] eu a assisto usufruir de seu direito à vida de maneira penosa [...] peço todo dia

que Deus tenha piedade e leve”. 23

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”. 24

Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 44: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

42

que „direitos humanos devem ser atribuídos a humanos direitos‟ implica entender que os

indivíduos devem ser fisicamente perfeitos, apresentar boa índole e “boa família”, já que

precisam, desde o nascimento, viver sob a conduta esperada pela sociedade, “que vem de

berço” e que a sua vida deve ser traçada para atingir fins socialmente aceitos pela

comunidade25

.

A pergunta “Quem é o homem?” é de suma importância para essa dissertação, pois,

embora não definidora da questão dos direitos, a ideia de que os direitos humanos são os

destinados aos homens não é falaciosa. É essa pergunta que nos encaminha a outras três

salientadas por Wolff (2009, p. 37), pautadas no pensamento de Kant, e que norteiam a

construção dos direitos, já que indica a quais são as necessidades do homem: “O que devo

fazer?”; “O que posso saber?”; “O que posso esperar?”; perguntas que só têm fundamento se

associadas à pergunta mestra aqui colocada, afinal, como salienta Mondin (1980, p. 5)

responder tal pergunta significa que “[...] não podemos adotar uma atitude de indiferença ou

superficialidade, posto que o encaminhamento de nossa vida depende dessa solução, seja

individual seja social, bem como nossa conduta, nossas relações com outrem e com o

mundo.”

Ante o exposto, além de considerar, nesta seção, o percurso histórico de

desenvolvimento dos direitos humanos, faz-se necessária a discussão, ainda que breve, sobre

as noções de direito e homem. Com relação à primeira noção, salientamos que não abarcamos,

por não apresentar relação com a proposta dessa dissertação, sentidos que levem à ideia de

jurisprudência, isto é, ciência jurídica enquanto um método. Ater-nos-emos ao direito somente

como objeto dessa ciência. Ressaltamos ainda a não pretensão de esgotamento do conceito,

devido à sua complexidade e por não se configurar como objetivo nessa dissertação a

apresentação de um conceito bem definido e refinado, mas um brevíssimo mapeamento dos

sentidos que emergem sobre a temática na comunidade estudada, alinhando-os ao que é

discutido pelos cientistas do direito.

Quanto à noção de humano, embora existam diferentes caminhos para se

compreender o homem, quer seja nas ciências naturais, sociais ou históricas, será aqui

25

É interessante que, na comunidade, por vezes, aquilo que é considerado desvio de conduta e seria condenado

em situações diversas, é relativizado quando se trata da Igreja Católica, evocando, inclusive fatos da história

bíblica para justificar seu posicionamento. Todavia, tal tolerância não é facilmente vista na comunidade, haja

vista a defesa da pena de morte, devido à impossibilidade de ressocialização do infrator: “quem nunca errou que

atire a primeira pedra... todos dessa comunidade um dia já erraram e se pudessem voltar atrás em algo voltariam

em alguma ocasião na vida pois somos humanos e NÃO SOMOS PERFEITOS!!!! TODOS ERRAM!!!! Tenho

certeza q se a Igreja pudesse voltar atrás nas suas atitudes lá no passado voltaria e faria diferente” – Peterson,

discutindo o apoio da Igreja aos nazistas, no tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da

comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 45: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

43

utilizada a abordagem da Antropologia Filosófica que, embora reconheça não ser possível

conhecer o ser humano em sua totalidade, busca conhecê-lo sem compartimentá-lo, para além

dos fatores físico-biológicos, socioeconômicos, políticos e linguísticos, articulando-os.

3.2 DOIS CONCEITOS...

3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do que eu?

Observamos ser o objeto da ciência jurídica o que nos interessa para compreender um

dos elementos que compõe o sintagma Direitos Humanos. Todavia, como em qualquer área

do conhecimento, não há consenso sobre o que vem a ser direito. A palavra, portanto, pode

assumir sentidos variados, ora constituindo-se apenas como um conjunto de normas (o

ordenamento jurídico), ora como um ramo científico ou ainda como uma faculdade do

indivíduo, ou seja, o sujeito com direito a.

Na comunidade do Orkut, nota-se a coexistência de significações sobre a noção de

direito que correspondem a fases da história do conceito na ciência jurídica, havendo,

entretanto, na “cidade azul”, apesar da evolução histórica da noção, certa estabilidade

semântica. Desta forma, os sentidos transitam basicamente entre dois momentos históricos, a

saber: a Antiguidade Clássica e a Idade Média. Ratificamos que, com isso, não queremos

dizer que dos sujeitos do Orkut não emerjam sentidos filiados a outros processos históricos e

sim que os períodos citados são o núcleo semântico mais relevante na constituição de seus

sentidos. Assim, o direito é compreendido como sendo da ordem do sagrado, ora como

direcionador da ação do indivíduo, tal qual em Roma, onde era concebido como exercício de

atividade pautada na ética, ação com prudência (daí a palavra jurisprudência), com equilíbrio

nos atos de julgar; ora com base no Cristianismo e suas crenças no livre-arbítrio do homem,

na configuração e execução de seus direitos, sempre pautados na vontade de Deus e no divino

enquanto salvação, como Rafael argumenta no tópico “Aborto”, cujo fragmento está posto a

seguir. Desta forma, há união entre verdade jurídica e verdade bíblica, sendo os textos

sagrados uma das fontes de consulta do campo. Os dez mandamentos, por exemplo, até hoje

são considerados como código de conduta a ser seguido e, no processo histórico dos direitos

humanos, influenciou, ainda que indiretamente, documentos importantes como a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Page 46: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

44

Chama-nos atenção, no tocante ao sentido proveniente da Antiguidade Clássica, a

influência de documentos ainda mais remotos. O Código de Hamurabi, datado do século 18

a.C. e que abarca diversas áreas do viver em sociedade, como o comércio, o trabalho, a

propriedade e, principalmente, o que ainda permeia o imaginário dos sujeitos dos séculos XX-

XXI – a Lex Talionis, na qual o delito era penalizado conforme a sua natureza como deixa

evidente „Ralph‟, em scrap posto a seguir, através da máxima adotada pelo Código (“Olho

por olho, dente por dente”) e que o deu popularidade – parece ser o elemento que norteia com

mais frequência o entendimento sobre direitos humanos, sobretudo porque grande parte das

discussões na comunidade virtual circundam o direito à vida, o que leva os sujeitos do Orkut a

adotarem como meta a penalidade por morte como solução para o problema da criminalidade

no mundo. Relembramos que o código babilônico ficou conhecido principalmente pela

imputação dessa modalidade penal para quase todos os delitos, desde simples casos de

sortilégio sem provas aos de roubo e assassinato.

Outro aspecto de destaque na configuração da noção de direito é a constante

recorrência ao argumento de civilização. Assim, o Brasil, país ainda pouco civilizado, na

visão de alguns dos internautas, como o já referido Rafael, não teria condições de adotar os

direitos humanos. Nesse aspecto, dois elementos têm relevância: a emergência de sentidos

oriundos do discurso do Brasil enquanto colônia, terra inferior e selvagem, povoada por

bárbaros, materializado no citado falar de Ralph, abaixo, e o intercruzamento com a história

bíblica, afinal há uma gradação no aparecimento dos diversos profetas, até a chegada do rei

dos reis, Jesus Cristo, profeta maior, cada um adequado para cada estágio da evolução da

humanidade. Entretanto, configurar direitos humanos a partir do grau de civilização de uma

nação fere um de seus princípios fundamentais – a igualdade entre indivíduos e povos – por

acreditarem, os orkuteiros, em diferentes qualidades de ser humano, aproximando-se da ideia

aristotélica de homem, a ser discutida, a posteriori, ainda nessa seção, portanto ratificando a

ideia de que direitos humanos não devem ser direcionados para todos. Civilizado parece,

então, ter conexão maior com o conceito de cidadania, ou seja, é aquela nação que respeita os

direitos e deveres de seus habitantes.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Page 47: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

45

Assim, a pluralidade semântica do vocábulo “direito”, conforme Ferraz Junior (2003),

advém da Antiguidade Clássica e pode ser também percebida através de sua simbologia. A

estátua localizada na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com os olhos vendados, simboliza a

deusa Iustitia e a concepção romana para a temática. Além disso, chama-nos a atenção a

postura reta da estátua; os olhos fechados indicam que os romanos entendiam o direito não a

partir da visão, símbolo da busca pelo saber puro, mas por meio da audição, símbolo da

prudência, pois sua concepção refere-se a um saber agir, um equilíbrio entre o abstrato e o

concreto e, com isso, valoriza-se o discurso. A ideia de que a “justiça é cega” é uma

contribuição grega que, com sua deusa Diké, sem vendas nos olhos, entende “o justo (o

direito) [...] visto como igual” (FERRAZ JR, 2003, p. 32). Assim, o entendimento da cegueira

da justiça é resultado da união entre os dois modos de se entender o direito. Além da vedação

ou não dos olhos, os pontos de vista romano e grego divergiam porque o último concebia o

direito como abstracionismo e especulação. Por conta disso, a imagem da deusa da terra de

Homero apresenta uma espada, evidenciando necessidade do uso da força para obtenção do

direito e não do discurso, pensamento também presente na comunidade do Orkut,

principalmente quando há a defesa da possibilidade de o indivíduo lesado aplicar a pena que

melhor lhe convier ao seu infrator.

A partir dessas contribuições, temos dois importantes modos de percepção do direito

pelos internautas: em termos de virtude moral ou do aparelho judicial, emergindo, tais visões,

algumas vezes isoladamente, outras em comunhão. André26

, por exemplo, ao debater a

relação direitos X ser humano, em excerto a seguir, faz um cotejo entre moralidade e

penalidade, estabelecendo que o sujeito infrator seja um ser amoral, sendo que, ao infringir a

lei, exerce o seu livre-arbítrio, característica nata do ser humano, descartando qualquer

possibilidade de intervenção social na configuração das ações dos indivíduos. Para o referido

internauta, no tópico “Cuidado”, esse é um ponto inquestionável nas discussões sobre DH,

pois “não tem como negar o livre-arbítrio. Ou ele existe ou não existe. Não há meio-termo.

Negá-lo é enveredar na contramão dos textos clássicos e modernos sobre direitos

26

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para

humanos direitos”.

Page 48: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

46

fundamentais do homem”27

e, devido a isso, a penalidade deve ser pensada na sociedade sem

referência aos direitos humanos, ou seja, sem restrição de ordem humanitária, apesar de, em

alguns momentos, emergirem enunciados que não estabelecem a pena de morte como

necessária28

.

Dessa maneira, é relevante observar que, para a maioria dos membros da comunidade,

a moralidade não se caracteriza por ser um elemento social e sim da natureza do indivíduo,

inerente a ele ao nascer. Dessa forma, a maioria dos sujeitos do Orkut rechaça teorias que

apontam que as condições sociais e psicológicas do sujeito na infância, por exemplo, possam

contribuir para a prática de delitos e, por isso, torna impossível a correção do sujeito infrator

no sistema prisional, por ser o seu desvio de cunho bio-ético-moral, como podemos

depreender do mesmo discurso de André, acima colocado, datado de 07.05.2006. Como

consequência desse posicionamento, a humanização da pena é tomada como elemento

incentivador da criminalidade, evidenciado nas falas dos orkuteiros Pluto, de 12.09.2009 e

André, de 22.05.2006, a seguir, trazendo novamente ao seio da discussão sobre direitos

humanos a influência do Código de Hamurabi, demonstrando também como a ideia de ser

humano impacta a conceituação de direito. Assim, o livre-arbítrio, como característica própria

do ser humano, implicaria a configuração do sujeito criminoso como consciente de suas

atitudes, sendo, portanto, o único responsável por elas, e, por isso, o código penal encontraria

legitimidade para isentar-se de responsabilidade com os direitos humanos.

27

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”. 28

O mesmo sujeito, na comunidade virtual, oscila entre a defesa e a omissão quanto à temática da pena de morte,

por, cremos, configurar-se em tema que pode, a depender do seu interlocutor, gerar prestígio ou constrangimento

social. Assim, palavras de André, no tópico “Cuidado”, no dia 14.05.2006, relevam que a pena de morte é tema

de baixo prestígio, naquelas condições de produção de seu discurso: “Victor, em nenhum momento eu disse que

quero um castigo cruel para o criminoso. Por favor, não coloque “palavras em minha boca”. Não há nada de

cruel em defender a pena de prisão para facínoras”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para

humanos direitos”.

Page 49: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

47

Ressalta-se, todavia, que a humanização da pena, sentido não assumido pelos

orkuteiros, é uma tentativa dos magistrados em encontrar novas soluções penais, objetivando

limitar as privações de liberdade para crimes classificados como máximos, tendo em vista que

o sistema prisional não tem se mostrado eficaz na ressocialização do indivíduo infrator. A

possibilidade de penas alternativas é bastante criticada na comunidade virtual, conforme

discurso de André, de 22.05.2006, principalmente porque há a defesa das penas de privação

perpétua de liberdade e de morte.

Tal entendimento de direito como elemento moral, baseado, por vezes, na tradição,

influência do posicionamento romano sobre a temática, filia o membro da comunidade à ideia

de que o direito é indicação de como se deve atuar em sociedade, resultando no conceito mais

aceito atualmente pelos juristas, ou seja, como uma norma, uma regra de conduta. Daí a

afirmação de que a experiência jurídica é normativa.

Todavia, outro problema surge ao se conceber o direito dessa maneira: a pluralidade

do mundo normativo. A moral também apresenta regras de conduta, a exemplo de “os filhos

não devem falar mal de suas mães”29

que, como o direito, “[...] tem a finalidade de influenciar

o comportamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir as ações dos indivíduos e dos grupos

rumo a certos objetivos ao invés de rumo a outros [...]” (BOBBIO, 2001, p. 26); dessa

maneira, o direito enquanto instrumento comportamental é o sentido basilar que constrói a

comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”, mesmo quando os sentidos

expressos na comunidade virtual tendem a filiar-se à ideia de inerência dos direitos humanos,

como explicitado no discurso: “se os direitos são para os humanos, todo ser humano merece

ter direitos. Vocês querem tirar os direitos de quem não se comportou como deveria”30

.

Assim, na contramão do sentido-base que constitui a comunidade do Orkut analisada, os

teóricos afirmam que os direitos humanos nada têm a ver com aspectos naturais do homem e

da sua compreensão enquanto indivíduo da natureza. Para construir esse sentido, o homem é

pensado a partir de sua inserção em uma coletividade social, sendo, portanto, o direito,

entendido enquanto fenômeno social. Dessa forma, em palavras de Reale (2002, p. 59), o

direito “[...] é a ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem

comum”, ou seja, uma “composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos”.

Portanto, também para os cientistas jurídicos, o direito tem como objetivo precípuo tutelar

29

Lembremo-nos que a moral ocidental é basicamente construída a partir do pensamento judaico-cristão. A

norma acima posta, por exemplo, é um pensamento popular resultante do mandamento católico “Honrai vosso

pai e vossa mãe.”. 30

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 50: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

48

comportamentos, estando pressuposto em cada um deles, modificando, assim, a sociedade que

os adota.

Em relação à finalidade do direito, Bobbio (2004) também observa que ele deve

impedir os malefícios (para os cidadãos comuns) bem como os benefícios (para exclusivo

usufruto) dos poderes, pois os direitos, sobretudo aqueles denominados como humanos, visam

alterar estados de transgressão na sociedade, ou melhor, estimular comportamentos,

estabelecendo liberdades e atendendo às demandas sociais dos indivíduos. Referente a essa

função, apresenta-se outra problemática na concepção de direitos humanos por parte dos

sujeitos da comunidade. Essas demandas sociais são compreendidas de maneira diferenciada a

depender de como o indivíduo concebe o ser humano, ou seja, a partir de suas filiações

ideológicas. Podemos afirmar que a correção desses comportamentos é, por vezes, pensada a

partir da eliminação dos indivíduos que praticam esses atos condenados pela sociedade,

afinal, segundo recomendação dos internautas, “quando um membro gangrena, ele é

amputado... Então se um membro da sociedade não se reabilita, acabem com ele, pois assim

como um membro gangrenado, se ele não for cortado, posteriormente o corpo (Brazil) poderá

morrer de infecção” 31

, evidenciando inclusive o entendimento de sociedade enquanto um

corpo biológico. Caso o sujeito seja pensado como um ente social, suas atitudes, boas ou más,

são entendidas como consequências da sociedade que o forjou, passando a ser, a sociedade, a

grande culpada por esses delitos e, por isso, ela deve ser o maior alvo de transformação. Desta

forma, “a solução para a criminalidade são políticas sociais e não o endurecimento da pena”32

.

Essa diversidade no modo de conceber o direito dificulta o estabelecimento, na

comunidade do Orkut, de um limite claro entre essa noção e a de moral, pois segundo Bobbio

(2004), a segunda, ainda influenciada pelo Cristianismo, no Ocidente, tem como alvo as

hostilidades naturais e oriundas da relação inter-humana, além de ter, na maioria dos casos,

como figura deôntica, o dever; o direito, por sua vez, tem a função de “[...] comprimir, não a

de liberar, a de restringir, não a de ampliar, os espaços de liberdade [...]” (BOBBIO, 2004, p.

51), isso devido ao princípio de igualdade que estabelece que os direitos sociais e de liberdade

devem ser atribuídos a todos e na mesma medida, além de que, para alguns teóricos, este tem

relação com o Estado. Como os dois sentidos concorrem igualmente, na comunidade, para

compor a noção de direito, podemos afirmar que entre eles estabelece-se uma relação

sinonímica.

31

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”. 32

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 51: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

49

Um aspecto que ratifica a natureza sinonímica da relação entre moral e direito na

comunidade é o fato de ela não atender à distinção estabelecida, sobretudo por jusnaturalistas,

conforme Bobbio (2001), a partir do binômio bem/mal, no qual a moral é concebida como

obrigatoriedade positiva (fazer o bem a outrem) e o direito enquanto obrigatoriedade negativa

(não fazer o mal a outrem). Com isso, a ação relativa à moral passa a ser o comando e ao

direito, a proibição. Na comunidade do Orkut ocorre a utilização desse binômio apenas para

caracterizar as pessoas, como podemos observar na autorreflexão de „Victor-San‟, no tópico

“Seletividade do sistema penal”, cujo fragmento está abaixo posto, definindo-as como

merecedoras ou não dos direitos humanos, conforme sua conduta, embora nem sempre tal

atitude seja legitimada no seio do tópico. A tipificação das obrigatoriedades normativas,

portanto a sua classificação somente nas modalidades normativas comando ou proibição,

também não aparece na “cidade azul”, pois o direito não é visto como obrigatoriedade e sim

apenas como benefício, uma faculdade concernente a humanos direitos, ou seja, os humanos

propriamente ditos. Há, todavia, menções, nas discussões, sobre fazer o bem ao próximo, uma

influência do discurso cristão.

Essa dicotomia comando X proibição no estabelecimento das especificidades da moral

e do direito nos parece falaciosa, mesmo fora do Orkut, uma vez que o direito à associação

sindical, por exemplo, não está presente na Constituição Federal, no caput do Artigo 8° (“É

livre a associação profissional ou sindical”) e incisos, na forma de proibição33

, existindo essa

modalidade apenas no inciso II que limita o número de organizações sindicais para defesa dos

trabalhadores, e no inciso VIII, que impede a demissão de trabalhador em candidatura ou em

exercício de cargo sindical. No mesmo artigo, há também normas de comando (“É obrigatória

a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho” – inciso V), levando-nos

a crer que o direito apresenta modalidades normativas diversas, como a obrigação e a

permissão, negativa ou positiva, além da proibição.

Outrossim, o direito é categorizado não apenas como norma de conduta, o que gera

essa confusão com a moral, mas também normas de estrutura ou de competências que

33

Lembramos que o direito trazido aqui está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo

23, inciso IV: “Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus

interesses”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos

direitos”.

Page 52: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

50

estabelecem “[...] as condições e os procedimentos através dos quais emanam normas de

conduta válidas [...]” (BOBBIO, 1995, p. 33), a exemplo de quem tem competência para

legislar ou aplicar punições. Os direitos humanos, na comunidade do ciberespaço, podem,

então, ser caracterizados também como normas de competência, sentido perceptível em

discussões, no Orkut, a respeito da “justiça feita com as próprias mãos”, atitude defendida em

discursos como o de „Vi‟, a seguir, do tópico “Morte estupenda de um estuprador”. Nesse

caso, compreende-se a legitimidade de aplicação penal como atribuída a qualquer indivíduo

lesado por outrem, haja vista que aquele que é legitimado, no ordenamento oficial, para fazer

justiça, ou seja, o Estado, não consegue atender às expectativas dos membros da sociedade,

por causa da impunidade, compreendida por eles não apenas como a não aplicação de pena

prevista em lei, mas também como ineficácia da legislação penal em vigor.

O entendimento dos jusnaturalistas acima posto, ou seja, o direito enquanto norma de

proibição, a nosso ver, só é possível se o pensarmos enquanto norma com origem única: o

Estado, teoria conhecida como estatalista do direito. Nela, o Estado moderno, formado pós-

Renascimento, é a fonte da norma jurídica. Embora na comunidade do Orkut, como dissemos,

não haja a categorização do direito somente nessa modalidade normativa, é possível destacar

o Estado como um dos atores sociais mais criticados pelos membros, o que indica que os

Direitos Humanos são entendidos principalmente a partir desse prisma. Mas para afirmamos

que, no Orkut, o Estado, por vezes, é considerado fonte única do direito, é necessário

concebê-lo como totalitarista, pois nesses regimes o Estado emana, com mais regularidade,

normas de proibição e, os cidadãos que a ele defendem, acreditam em sua superioridade,

posicionamento assumido por Eder, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, ao

interpretar os magistrados como seres experientes e dotados de exclusiva competência para

decidir quanto à vida do ser humano, quanto à pena de morte, como podemos observar no

fragmento destacado a seguir.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para

humanos direitos”.

Page 53: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

51

O sentido materializado por Eder no fragmento anterior apresenta uma problemática,

que tenta ser solucionada pelos internautas a partir da elaboração da norma da pena de morte e

da defesa da aplicação da “justiça com as próprias mãos”: retira do direito a característica de

ser um fenômeno social e, com isso, atender demandas da sociedade, posto que estas devam

ser solucionadas também no seio do grupo social, independente do aparelho estatal. Podemos

ilustrar a atuação do grupo na solução de seus problemas com uma discussão também

presente no interior da ciência jurídica: o direito consuetudinário34

, compreendido como

costumes jurídicos não legitimados oficialmente35

por organismos especializados, mas que,

surgidos da consciência popular, têm o status de obrigatoriedade. Não existe nenhuma

legislação que estabeleça a necessidade de ordenar-se em fila nos bancos ou supermercados,

por exemplo, mas o costume social lê essa ação como lei.

Uma norma não escrita é tão importante do ponto de vista da organização social que o

Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), dentre outros órgãos, pesquisam o que é

chamado Direito Internacional Humanitário Consuetudinário, que nada mais é do que uma

prática costumeira não-legal36

de um Estado nacional reconhecida, em âmbito internacional,

como obrigação jurídica. O trabalho de Jean-Marie Henckaerts, também da CICV, intitulado

Estudo sobre o direito internacional humanitário consuetudinário: uma contribuição para a

compreensão e respeito do direito dos conflitos armados, após densa pesquisa, listou 161

normas humanitárias consuetudinárias no direito internacional, dentre as quais citamos, a

título de exemplo, as normas 137

e 638

, referentes à distinção entre civis e combatentes, que

interessa bastante aos direitos humanos.

34

Indicamos não haver na comunidade analisada tópicos que discutam o direito consuetudinário; todavia há

tópicos que veem no sujeito comum uma possibilidade de intervenção jurídica na sociedade, ainda que

indiretamente, por meio de ações sociais. 35

O que queremos afirmar é que essas normas não estão escritas. 36

No sentido de não-institucionalizado, porém não é ilegal. 37

“As partes num conflito deverão distinguir a todo o tempo as pessoas civis e os combatentes. Os ataques só

poderão ser dirigidos contra os combatentes. Os civis não devem ser atacados.”

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para

humanos direitos” – grifo nosso.

Page 54: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

52

Embora reconheçamos a presença (e no caso dos direitos humanos, a necessidade para

efetivação, como enunciado no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos39

)

do Estado como instância de legitimação, com a assinatura de tratados, como a Declaração de

Viena, de 1993, por exemplo, a existência do direito consuetudinário reitera a ideia de

pluralismo jurídico, por demonstrar que outros ordenamentos, como o internacional e o da

Igreja Católica, por exemplo, também apresentam valor de norma jurídica, bem como os que

surgem da população comum, como as normas de condomínio que, naquela instância, tem

força de lei: nada há na legislação nacional para a proibição de bichos de estimação em

apartamentos, mas o bem comum pode ser invocado e gerar uma norma proibitiva. Além

disso, nos remete a outra questão: o direito enquanto instituição, reiterando a impossibilidade

de aceitação do Estado como fonte única do direito, embora seja uma das principais fontes

jurídicas de uma sociedade, como discutido anteriormente. No que diz respeito aos direitos

humanos, essa institucionalização torna-se ainda mais relevante, pois a proposta vigente

persegue o ideal da universalização, afinal tais direitos nasceram com o objetivo de serem

dirigidos aos homens, independente da sua nacionalidade, havendo, inclusive, a tentativa de

organização de um sistema jurisdicional internacional para julgar questões pertinentes aos

Direitos Humanos, construindo a ideia de que tais direitos devem estar acima dos interesses

exclusivos dos Estados.

Quanto à universalização, cabe ressaltar que, na comunidade analisada nessa

dissertação, as barreiras nacionais não são avaliadas positiva nem negativamente quando, ao

mostrarem-se contrários aos direitos humanos, pelo menos na maneira como a temática é

aplicada no Brasil, os membros não utilizem, na maioria das vezes, a nação como o problema,

mas os comportamentos, como „Victor-San‟ chama a atenção no tópico “Cuidado”, no dia

14.05.2006, posto a seguir. Apesar de os usuários citarem a legislação, sobretudo ao

discutirem a penalidade de morte, o argumento principal é a natureza do indivíduo envolvido

e não o Estado. Parece-nos, então, que a problemática gira em torno do sujeito receptor do

direito e não do direito em si, afinal o nome da comunidade é Direitos Humanos para

Humanos Direitos, não ocorrendo alusão contrária aos direitos e, sim, a um tipo particular de

ser humano, ou seja, à universalização desses direitos, apesar de a comunidade descrever-se

utilizando o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e de alguns de seus

38

“Os civis gozam de proteção contra ataques, salvo se participam diretamente nas hostilidades e enquanto durar

essa participação.” 39 “Considerando ser essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pelo Estado de direito...”.

Page 55: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

53

membros (a minoria) não compartilharem integralmente desse posicionamento demonstrando

a aceitação da universalidade, ainda que parcial.

Frente a tal aceitação e, observando a necessidade do Estado para efetivar os direitos

humanos, ainda que percebamos, no Orkut, a importância da sociedade civil na promoção e

efetivação dos Direitos Humanos, sentido materializado em discurso de Andrea, à folha 40 e

também por meio de significações que legitimam a independência do sujeito em relação ao

Estado na resolução de suas inquietações jurídicas, como “fazer justiça com as próprias

mãos”, ainda que, para isso, sofra sanções/coações do aparelho estatal, notamos que os

orkuteiros reconhecem que o Estado deve defender e/ou aperfeiçoar a tutela dos DH, como

explica „Victor-San‟ em seu discurso do dia 08.08.2006, abaixo, tanto em número de direitos

quanto em qualidade, no interior do território nacional, como na educação, saúde, moradia e

lazer, direitos presentes nos artigos 24 e 25 da Declaração Universal, e elencados por

Anjinho, em fragmento a seguir.

Tal reconhecimento é importante, pois a história dos direitos humanos, que é discutida

a posteriori, está tão atrelada ao Estado que, segundo Bobbio (2004), suas três fases40

estão a

ele intimamente ligadas, como se os Direitos Humanos objetivassem esse elemento e não ao

ser humano, o que também contribui para invalidar a tese desse componente da jurisprudência

enquanto direito natural. As suas fases estão assim divididas: direito à liberdade (limitação do

poder DO Estado); direitos políticos (liberdade NO Estado); direitos sociais (liberdade

ATRAVÉS do Estado). Dentre esses, os direitos sociais são os mais lembrados na

comunidade, indicando que os membros acreditam no Estado como conferidor de bem-estar

40

A história dos direitos humanos está dividida em gerações, como veremos. Essa subdivisão em fases tem como

função analisar a relação entre direitos humanos, sociedade e o Estado.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 56: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

54

social. Reitera-se que, quanto aos direitos em si, os assuntos preferenciais são aqueles

relativos ao cerceamento da vida, como pena de morte e aborto.

Com vistas ao pluralismo jurídico, não se pode pensar em direito fora da ordem social,

da coletividade e da sociedade organizada enquanto unidade. Temos, então, os princípios que

norteiam a concepção de direito como instituição, ou seja, oriundo de uma sociedade

ordenada e organizada nem sempre pelo Estado. Todavia, tal ideia pode levar à supressão da

figura do indivíduo devido ao entendimento de que o direito não existe para atender suas

vontades particulares, e sim para ordenar a sociedade, a instituição. A esse respeito cabe uma

observação: uma das temáticas mais discutidas na comunidade, como já salientamos, é a

penalidade por morte. Segundo Lafer (2004), ela é resultante da concepção orgânica da

sociedade, quer dizer, pensada somente a partir da coletividade hierarquicamente superior ao

indivíduo, tal qual no Orkut, no tópico “Seletividade do Sistema Penal”. Neste, é debatida a

origem da população prisional e a desigualdade nas cadeias, tendo como ponto de partida o

levantamento realizado por García-Pablos no livro Sistemas penais na América Latina 41

.

A discussão ocorre, basicamente, entre três integrantes da comunidade do Orkut que,

dedicados a analisar se o crime no Brasil tem fundamento sistêmico, social ou se é mera

escolha do indivíduo, reiteram, ainda que indiretamente e com algumas ressalvas, como a

defesa de oferta de segunda chance ao infrator e trabalho para autossustento em regime

prisional pode ser benéfica (ou não) à sociedade, bem como a necessidade (ou não) da pena de

morte no país, pois o sujeito delinquente é uma doença da sociedade e, como tal, deve ser

banido. Comparado a um câncer, no discurso de „Victor-San‟, a seguir, na afirmação de que o

próprio organismo gera a doença, em uma tentativa de metaforizar a culpa da sociedade na

formação de um bandido, o crime e, por conseguinte, o criminoso, embora nesse tópico sejam

salientadas questões sociais e a prisão como modalidade punitiva possível, se reformulada,

deve ser retirado do corpo social, ou seja, mutilada a parte necrosada, como o seio de uma

mulher acometida por câncer de mama. Assim, a coletividade e seus interesses são concebidos

(e reiterados) como ente superior ao indivíduo que a compõe.

41

Informamos que, na comunidade do Orkut, não foram mencionadas a referência e a edição utilizadas pelos

membros para abrir as discussões sobre o sistema prisional.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 57: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

55

Em contrapartida, há também na ciência jurídica a concepção de que o indivíduo tem

papel de destaque, como na teoria da relação intersubjetiva, pois a prioridade do sujeito são os

seus direitos, enquanto que, para o Estado, a prioridade são os deveres em relação a esses

indivíduos, devendo buscar o progresso destes acima de qualquer coisa, configurando a

justiça como espaço de satisfação das necessidades pessoais dos mesmos. Assim, o Estado

não pode desistir de nenhum de seus membros e, por conta disso, ao contrário do desejo de

boa parte dos integrantes da comunidade da “cidade azul”, invalida a pena de morte.

Afirmamos, portanto, que a concepção de sociedade a partir do indivíduo é a adotada pelos

teóricos e defensores dos direitos humanos, sendo observada tanto no corpo da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (“com o objetivo de que cada indivíduo [...] se esforce,

através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades”), tanto

no modo de se entender a relação entre o indivíduo e os DH, devendo o primeiro ser, além de

receptor, um dos responsáveis pela promoção, a todos os seres humanos, desses direitos

fundamentais, inalienáveis e invioláveis, pois o homem é concebido como sendo autônomo

em relação aos outros, porém responsável por eles, já que deve tratar os demais com

fraternidade, com o mesmo grau de dignidade e são igualmente morais, já que essas são

capacidades do ser humano. O direito, então, nessa perspectiva, se constitui

[...] somente em relação a outros sujeitos, isto é, aos seus comportamentos, positivos

ou negativos, complementares ao comportamento do sujeito de quem se trata, na

medida em que eles tenham o direito de exigir-lhe um determinado comportamento

ou, ao contrário, um dever complementar a um direito seu, ou pelo menos a

obrigação de abster-se de impedir esse comportamento (LEVI, 1953, p. 27 apud

BOBBIO, 2001, p. 41 – grifos nossos)

Na comunidade do Orkut, embora haja defensores dos direitos humanos e, com isso,

valorizem mais o indivíduo frente à sociedade, sua visão ainda está atrelada ao sentido de

coletividade como um ser superior e não como um somatório de individualidades. O

indivíduo ainda não é visto como parte de uma sociedade que, para funcionar bem, precisa

que todos os seus membros sejam tratados como iguais, independente do seu comportamento,

principalmente porque valoração comportamental é cultural e, portanto, histórica, varia

conforme o tempo. O sujeito, então, ainda é visto, no Orkut, sob o véu de sua atuação na

sociedade e, por isso, o direito passa a ser mérito.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 58: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

56

Contrário ao direito como mérito, o ponto de vista da instituição possibilita entender as

regras supraestatais enquanto norma jurídica, haja vista que elas ordenam o grupo social que

as origina. Além disso, permite compreender que toda sociedade é jurídica, e não apenas o

Estado, embora os teóricos aceitem que existem agrupamentos humanos que não se

configuram como instituições, ou seja, não têm ordenamento próprio. Ao analisar a

comunidade do Orkut, vemos que, em alguns aspectos, ela se configura enquanto instituição,

pois apresenta regras próprias, com poder de sanção (as expulsões, por exemplo) e, embora

discursivamente legitimem determinadas práticas e no seio da comunidade as reconheçam

enquanto norma, os integrantes não podem convertê-las em ordenamento fora daquele espaço,

tal como a pena de morte ou a justiça com as próprias mãos. Com isso, podemos afirmar que a

norma jurídica gera instituições, a partir do estabelecimento de suas finalidades, dos meios

apropriados para atingir esses fins e das funções específicas de cada membro do grupo para

que se constitua uma regulamentação estável42

. No Orkut, nas normas que acabamos de fazer

menção, inexistem os meios para validá-las na sociedade.

Chega-se à conclusão de que o direito é uma norma jurídica institucionalizada que tem

o poder de obrigar os membros do grupo que o gerou a seguir determinados comportamentos.

Isso implica que, no caso do Orkut, as regras tacitamente expressas pelo moderador devem ser

cumpridas por terem força de lei. Esse conjunto de leis e regulamentos a que comumente

chamamos direito recebe, no interior da jurisprudência, a designação de proposições

prescritivas e o direito, portanto, concebido como imperativos que atribuem obrigações e

direitos subjetivos (obriga/permite o sujeito a FAZER ou NÃO FAZER algo), além de ser

coercitivo.

Essa visão do direito nos é sobremaneira importante por nos conduzir a uma relevante

condição: a ideia de conjunto, mas não a partir da concepção orgânica de sociedade. Assim, o

direito não deve ser pensado como uma norma simplesmente, mas um conjunto sistêmico de

normas jurídicas, um ordenamento. Mas sobre isso só nos interessa um aspecto: os direitos

humanos são uma categoria sistêmica? É, portanto, uma disciplina jurídica? A resposta a essas

perguntas é necessária para percebermos se, na comunidade do Orkut, os direitos humanos

são tratados como elemento jurídico ou moral.

Ao iniciarmos essa seção, colocamos a importância de se discutir o conceito de direito.

Ao obtermos resposta, ficamos tentados a encaixar tal discussão na categoria dos direitos

42

Bobbio (2001) retifica essa informação, pois ao contrário de institucionalistas como Santi Romano, pensa que

a norma é anterior à instituição, organizando, assim, a sociedade. Na teoria da instituição, é a sociedade

organizada que precede a norma.

Page 59: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

57

humanos. Vimos que, para caracterizar uma norma como jurídica, deve-se aplicar o princípio

da coercibilidade, ou seja, possibilidade de coagir os indivíduos, haja vista que, segundo

Bobbio (1995, p. 26), “[...] jurídica é a norma seguida da convicção ou crença na sua

obrigatoriedade”. A partir desse entendimento e pensando na comunidade virtual analisada

nessa dissertação, é possível afirmar que os direitos humanos não são qualificados enquanto

norma jurídica, sendo, então, entendidos enquanto normas morais.

Para inserir os direitos humanos enquanto categoria de modalidade jurídica seria

necessário entendê-lo, conforme dissemos, como ordenamento. Para isso, deve ser visto como

um sistema complexo e organizado de normas e como unidade, ou melhor, a partir da relação

entre as normas componentes e que não podem ser incompatíveis. Entretanto, para Bobbio

(2005), os direitos humanos contêm direitos antinômicos, ou seja, que apresentam relações de

incompatibilidade (uma norma ordena algo ao mesmo tempo em que outra norma proíbe a

mesma coisa). Em relação aos direitos humanos, podemos citar o Artigo 19 da Declaração

Universal dos Direitos Humanos43

, expresso na constituição brasileira no artigo 5º, inciso

IV44

: o fato de condicionar a expressão do pensamento à proibição de omissão de autoria pode

tornar esse direito não tão livre assim, pois o sujeito pode se sentir acuado e, com isso, não

exercer livremente o seu direito 45

.

Ademais, cremos que os direitos humanos não se constituem enquanto categoria

unitária. Se tomarmos a DUDH, que influenciou diversas Cartas Magnas, inclusive a

brasileira, perceberemos que seus artigos encontram-se diluídos em várias disciplinas

jurídicas, embora muitos dos seus direitos estejam refletidos em quatro capítulos da

constituição, do título Direitos e garantias fundamentais: dos direitos e deveres individuais e

coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos. Essa concentração (os

quatro capítulos abarcam os artigos 5 a 16) não atribui unidade à temática. Até porque, no

Orkut, eles não são vistos interligados: ou se discute o direito à vida ou se debate a pena de

morte, mas sem relação entre eles. Reiteramos que os temas preferenciais na comunidade

analisada estão voltados ao Direito Penal (por causa da discussão sobre pena de morte), já

constituído enquanto sistema, disciplina. Desta forma, questiona-se se poderia ser também

qualificado enquanto sistema de direitos humanos.

43

“Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão...”. 44

“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. 45

Na comunidade do Orkut, acontece o mesmo fato: apesar da possibilidade de livre expressão do pensamento,

percebemos que alguns membros são suspensos ou expulsos se postarem algo que não apresente relação de

simetria com os sentidos do moderador, representante dos “cidadãos” da cidade azul, como demonstramos na

seção anterior.

Page 60: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

58

Além disso, se mais uma vez tomarmos os documentos internacionais relativos aos

direitos humanos, perceberemos que uma parte considerável não tem força para obrigar os

países assinantes a segui-los. Para Bobbio (2005), eles são postos de modo programático, ou

seja, sem garantia real de efetivação, dependentes da vontade do Estado de convertê-los. Os

direitos humanos, na verdade, são intenções de como agir com o outro e, por isso, Bobbio

(2004) acredita ser mais adequado o uso do termo exigências. Entendemos ser essa a melhor

palavra para definir a expressão na comunidade do Orkut analisada nessa dissertação: Direitos

Humanos entendidos enquanto exigências morais para intervenção jurídica e estatal a fim de

resguardar o indivíduo que segue as regras jurídicas e morais pré-estabelecidas na sociedade.

3.2.2 O homem, quem é ele?

Indicamos anteriormente a necessidade de se pensar o homem como parte do processo

de compreensão dos direitos humanos. Para isso, seguiremos o pensamento de Francis Wolff

(2009) que, apesar de salientar a existência de inúmeras concepções do homem, como

também destaca Battista Mondin (1980), seleciona apenas quatro com base na importância

destas para a história das ciências e pelas suas dimensões prática, moral e política. Esses

critérios nos parecem relevantes para a reflexão sobre a temática dos direitos humanos, pois

estes se desenvolvem conforme as necessidades dos homens, que são históricas, e caminham

lado a lado com a ciência, forjando-a e/ou sendo por ela forjadas. Este pensamento permite

ratificar a ideia de que os direitos humanos não são apenas aqueles presentes nos trinta artigos

da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas são históricos, “nascidos de

modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO, 2004, p. 5).

As concepções analisadas por Wolff (2009) influenciaram bastante os estudos

filosóficos e permitiram o surgimento de um grupo de ciências: em Aristóteles, tem-se a

influência para o nascimento da lógica e da cosmologia, além de ser, segundo Abbagnano

(2007, p. 597), “[...] a única definição que penetrou na cultura comum”; em Descartes, as

ciências físico-matemáticas; o ponto de vista do século XIX, devido à influência das “feridas

narcísicas”, permite a emergência das ciências humanas e, no século XX, tem-se o

aparecimento das ciências cognitivistas. Veremos, à luz do pensamento de Wolff (2009),

como cada uma trabalha a ideia de homem, qual a sua contribuição para os direitos humanos e

qual a relação com os sentidos emergidos na comunidade do Orkut aqui analisada.

Um elemento que confere destaque ao pensamento aristotélico e que influenciou o

pensamento científico por um longo período e que perpassa as significações sobre direitos

Page 61: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

59

humanos é a ideia da existência de uma essência para cada coisa. A partir disso, Aristóteles

concebe o homem como um ser vivo que apresenta uma diferença específica em relação aos

demais seres vivos. Assim, a essência completa de um ser é o somatório de seu gênero, neste

caso, ser vivo animal, com a sua diferença específica, ou seja, “[...] não apenas uma

característica própria do homem, mas também esse núcleo universal e necessário que permita

explicar as outras propriedades do homem [...]” (WOLFF, 2009, p. 39). De uma maneira ou

de outra, filiados a sentidos diferentes, os integrantes da comunidade virtual advogam em

favor de alguma característica que seja inerente à condição de ser humano. Desse modo,

buscam um núcleo único que constitua o homem e que justifique os seus posicionamentos

sobre direitos humanos, caminhando todos para a universalidade, não dos direitos,

dependentes, em geral, do comportamento, mas do homem.

Assim, tanto o livre-arbítrio, influência religiosa, quanto o fato de o homem ser um

ente social e, por isso, sofrer influência do meio, são características que constroem o núcleo

universal que explica, para os orkuteiros, o que é o ser humano. Indicamos apenas que esses

sentidos nem sempre emergem isoladamente, principalmente porque ambos estão

relacionados ao aspecto comportamental do homem. Com isso, os direitos humanos são

relativizados com mais facilidade em discursos de sujeitos que veem o homem sob o prisma

do livre-arbítrio, o que não significa que todos eles preguem penas perpétuas e de morte, haja

vista que o livre-arbítrio não será concebido da mesma maneira pelos membros da

comunidade, ora visto como algo determinado pela natureza do indivíduo, ora como

consequência de aspectos sociais como pode ser verificado a seguir.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 62: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

60

O entendimento de homem como um ser social influencia, por exemplo, na

comunidade em estudo, a discussão sobre o aborto, na qual aspectos históricos e políticos são

tomados como argumentos por um dos sujeitos para desacreditá-lo, da mesma forma que

outros sujeitos os utilizam para defendê-lo, sendo que o aborto está relacionado ao mais

elementar direito humano: a vida. Isso mostra que, para alguns membros da comunidade, o ser

humano é construído a partir da tríade razão-linguagem-política, afinal o homem é visto como

um ser diferenciado, dotado de história, ética e moral. A pergunta posta, com ironia, por um

dos sujeitos no fórum “Aborto”, a saber: “o ser humano é algo especial ou apenas um animal,

carne e osso?”, demonstra a separação estabelecida entre o homem e os demais seres. Seu

direito à vida não diz respeito simplesmente à alimentação, como os animais, mas refere-se,

principalmente, à sua concepção, participação e influência políticas, como „André‟ no referido

fórum expõe em seu discurso, posto a seguir, à maneira como concebe politicamente alguns

elementos-chave (“o direito à vida. Sem qualitativos, bem digamos „digna‟, porque aí parte-se

para as rais (sic) do subjetivismo. O que é digno para um não é para outro”) e como se

relaciona ideologicamente com os outros integrantes da sociedade, como se constroem os

embates de poder, a exemplo do sentido materializado em discurso de „André‟ no referido

scrap, que conecta o tema „aborto‟ à ideologia de esquerda.

O que diferenciaria o homem dos demais seres vivos, então, na comunidade e também

na visão de Aristóteles, segundo Wolff (2009), seria a sua capacidade de linguagem e de

razão, bem como o seu caráter político. Tais características são também enunciadas no Artigo

1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no qual os homens são definidos como

“dotados de razão e consciência”, explicitando uma influência.

Embora a concepção aristotélica de homem, de início, não nos pareça problemática e

tenha relação com a temática nessa dissertação desenvolvida e com os sentidos presentes na

comunidade do Orkut, alguns pontos que a edificam conflitam com a proposta atual de

direitos humanos. Para Aristóteles, como supracitado, o homem é um ser vivo animal dotado

de razão e consciência, apresentando, portanto, uma essência. Entretanto, esse elemento é

concebido como sendo fixo e o homem como ocupante de um lugar e uma função em um

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 63: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

61

universo hierarquizado. Isso implicaria o homem não ser um ente histórico, sendo

compreendido apenas a partir do tempo presente, já que o passado e o futuro não

apresentariam, para ele, relevância. Em relação aos direitos humanos, as possibilidades de o

homem ter uma essência imutável levariam à estabilidade desses direitos, bem como por não

promover diferenças entre um ser humano e outro (já que as diferenças são resultantes do

percurso histórico, exceto aquelas estritamente de cunho natural, a exemplo das biológicas

entre um homem e uma mulher) admitiria a afirmação de que os direitos humanos têm um

fundamento absoluto, ou melhor, um motivo único e incontestável que justifique sua

existência, o que é sumariamente contestado por Bobbio (2004).

Apesar de em alguns momentos aparecerem divergências de gênero na comunidade,

por exemplo, na afirmação de que as mulheres teriam mais legitimidade para discutir o tema

aborto que os homens, não podemos afirmar que os sujeitos em questão vêem o ser humano

de maneira diferente por conta dessa característica, sobretudo porque, como já afirmamos, o

argumento mais utilizado para discutir direitos humanos e o homem na comunidade é o

comportamento. Para os orkuteiros, assim como para Aristóteles, o ser humano apresenta um

núcleo essencial fixo, embora reconheçam diferenças culturais, religiosas entre os seres.

Todavia, os membros acreditam no transcorrer e evolução da história. Apesar disso, sua

essência – o livre-arbítrio/sociabilidade – existe da mesma forma, em todo ser humano,

independente do período histórico, possibilitando, dessa forma, a emergência de sentidos

como “direitos humanos para humanos direitos”. Reiteramos apenas que nem todos os

integrantes da comunidade do Orkut coadunam com esse sentido, embora sejam minoria. E

mesmo aqueles que estão a ele filiados, não estão no mesmo grau.

Se levarmos em consideração que o ser humano é um ser social, o que não é negado

por Aristóteles, por considerá-lo ser político46

, é possível aceitarmos a ideia de sua

pluralidade, haja vista que as comunidades sociais não são iguais e o homem participa de

diversas ao mesmo tempo na sociedade em que está inserido. Ora, se os direitos humanos

surgem das necessidades humanas, há de se considerar que, por serem as sociedades e os

homens plurais, há necessidades diferentes, para além daquelas de origem orgânica, como

beber água. Esta afirmação, de imediato, já nos dirige à pluralidade dos direitos e ao

surgimento, na contemporaneidade, de uma nova demanda de direitos humanos, mais

46

Aristóteles concebe o homem como um “animal cívico”, parte da natureza de um conjunto maior, a Cidade.

Dessa forma, a concepção aristotélica de homem enquanto um ser político diz respeito ao ser humano apresentar

poderes e funções específicas na Cidade, de modo a buscar o bem-estar da comunidade, sua perfeição, por meio

do seu dom inato do discurso e das noções de útil/nocivo, justo/injusto, dentre outras, diferenciando-o dos

demais animais. Para Aristóteles (2006, p.4), “o homem é naturalmente feito para a sociedade política”.

Page 64: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

62

especificados, como os destinados aos idosos, por exemplo, que têm necessidades diferentes

das crianças. Ademais, os direitos apresentam estatutos diferentes: os direitos de liberdade

imporão obrigações negativas, a exemplo do artigo IV47

da DUDH; já os sociais, por seu

turno, obrigações positivas, como o artigo X48

do referido documento. Desta forma, não é

possível aceitar que haja uma razão única, uma essência fixa do ser humano que motive os

direitos humanos fora das fronteiras do ciberespaço, pois o homem é heterogêneo, justamente

por caracterizar-se, como dito, um ser social.

Falar de essência, do ponto de vista aristotélico, e relacioná-la aos direitos humanos é

mais uma vez incorrer na categoria dos direitos naturais, o que demonstra não ser, como

salientamos na seção posterior, em relação a essa temática, uma classificação superada,

embora tal superação seja desejada pelos teóricos da ciência jurídica e da Filosofia do Direito.

Bobbio (2004, p. 8) salienta, nesse sentido, que “[...] não existem direitos fundamentais por

natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não

é fundamental em outras épocas e em outras culturas.”.

Para os sujeitos da comunidade, eles vivem em uma sociedade em constante mudança,

como sinaliza „Percival Forever‟ no tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”,

mas compreendem que o estágio histórico em que vivem é estável, seja pela deficiência do

homem no exercício de suas obrigações morais ou porque em um dado momento histórico

determinadas condutas não ofendem a natureza humana, como se a história do homem fosse

a união de inúmeros blocos estáticos, principalmente por filiar o sentido da essência à ideia de

constância. Isso não significa que os sujeitos pensem o direito, sobretudo os direitos humanos,

como algo mutável conforme as necessidades humanas, mas a história como um elemento

cíclico, como adverte „André‟, em scrap a seguir, em que o homem possa sempre evocar

direitos que, no período histórico anterior ele não tinha, mas que já era previsto em algum

discurso, em algum momento.

47

“Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em

todas as suas formas”. 48

“Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e púbica por parte de um tribunal

independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação

criminal contra ele.

Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da comunidade do Orkut “Direitos

humanos para humanos direitos” – grifo nosso.

Page 65: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

63

Significar o homem como ser dotado de uma única essência fixa dificulta, na

comunidade virtual, a emergência de sentidos de homem como uma categoria formada por

seres bastante heterogêneos. Estabelecer o livre-arbítrio ou a sociabilidade como

características exclusivas do ser humano, do modo como são concebidas na “cidade azul”, não

confere diversidade a eles, mas leva a uma postura maniqueísta, o homem construído a partir

do binômio bem x mal, e os direitos humanos como prêmio ao bom comportamento. Assim,

para os internautas, existe apenas uma única possibilidade plausível de existência humana,

conforme os moldes costurados pela ética e a moral. As demais possibilidades, em verdade,

seriam anomalias, afastamentos desse núcleo fixo, a ponto de desqualificar determinados

sujeitos como seres humanos. As diferenças aceitáveis, tais como crença religiosa e outras

manifestações culturais não são discutidas, na comunidade, com profundidade, e parece não

afetar a constituição do indivíduo enquanto homem, por não alterar a essência fixa, nem

permitir que os indivíduos afastem-se dela. Reiteramos, portanto, que direcionar os direitos

humanos para os humanos direitos é simplesmente direcioná-los para os humanos, haja vista

os outros seres serem desqualificados como tal, afinal nem nascidos são, gerando

hierarquização entre os homens, como pode ser verificado a seguir.

A ânsia pelo estabelecimento de uma essência fixa para o ser humano também é

criticada por Descartes, segundo Wolff (2009), por considerá-la infinita, ou melhor, gerando

infinitas perguntas em efeito cascata. Definir o homem como um ser vivo animal com uma

diferença específica em relação aos demais seres, encaixando-os em classes, implica definir

cada componente dessa definição e, assim, sucessivamente, em um movimento infinito.

Descartes valoriza a metafísica e, por isso, entende que a compreensão das especificidades do

homem deve estar alicerçada na razão pura. A partir da análise metafísica, o ser humano é,

por ele concebido, a partir da expressão “Penso, logo existo!” e, portanto, é compreendido

como um ser pensante, dotado de consciência. O homem, então, não pode pertencer à mesma

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos” – grifo nosso.

Page 66: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

64

categoria dos animais, tal qual em Aristóteles, sendo principalmente formado pela substância

pensante e pelo corpo, este último compondo também os demais seres, compreendidos apenas

como matéria homogênea, um corpo mecânico; o homem, por sua vez, é a união de

consciência, sentimento (percepção) e paixão (emoção); é sujeito cognoscente somente da

natureza, e não de si mesmo, por não estar submetido às leis universais naturais (somente o

seu corpo). Aí reside a diferença entre o homem dotado de razão de Aristóteles e o cartesiano:

no primeiro, a racionalidade é uma especificidade animal; no segundo, animal e homem têm

naturezas diversas, sendo que o ser humano é o único dotado de consciência de si.

O pensamento cartesiano influenciou a história dos direitos humanos, como podemos

observar no artigo 1º, da DUDH, ao definir o homem como dotado de consciência. Na

comunidade do Orkut, embora a concepção aristotélica seja a que mais encontre eco, a visão

de Descartes também exerce influência. Em verdade, a concepção de homem dotado de

consciência não está explicitamente posta na comunidade. Esse sentido emerge quando os

sujeitos envolvidos cobram de seus interlocutores uma postura mais consciente, ou seja, o uso

da consciência e de argumentos, frutos da razão, na discussão sobre direitos humanos. Por

estabelecer o binômio homem humano x homem animal, a partir do critério “bom

comportamento”, o conceito de consciência já não é mais o mesmo; foi ressignificado. Para

Descartes, a consciência, razão dotada de clareza, é uma propriedade exclusiva do homem,

enquanto que os animais apresentam apenas racionalidade, sem consciência. Devido à

constante emergência do sentido de que os bandidos são animais, ou piores que eles,

esperava-se que suas ações fossem baseadas no instinto. Mas, embora o sujeito infrator seja

ressignificado como animal e, por isso, aja como tal, ele ainda é um indivíduo dotado de livre-

arbítrio (núcleo fixo, conforme influência da concepção aristotélica), conhece a si mesmo e

suas ações, embora a sua consciência não esteja plenamente “desenvolvida”, o tocante à

maneira como o homem deve viver em sociedade, por isso a expressão “homem animal”.

Tal posicionamento é intrigante não apenas por estabelecer níveis de consciência, mas,

sobretudo, por sua relação com o pensamento de direitos humanos como algo natural. Ora, se

o homem é um ser dotado de consciência, independeria de suas filiações a atribuição de

direitos humanos a ele, afinal é um direito inato à sua condição. Mas não é o que ocorre no

Orkut. Apresenta-se aqui, então, mais uma forma de hierarquização do homem na

comunidade virtual. Não é apenas o bom comportamento que o define, como pode ser

verificado a seguir, mas o seu grau de proximidade com os sentidos desejados/assumidos

pelos grupos hegemônicos da comunidade cibernética. Isso implica dizer que o sentido de

natural não é somente “aquilo proveniente da natureza”, mas um “mix” entre esse sentido e o

Page 67: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

65

que é socialmente aceito. Direitos humanos, então, são um direito natural, mas que exige o

crivo, inconsciente e ideológico, dos grupos sociais para ser efetivado como tal, caso contrário

não será caracterizado como humano.

Essa observação leva a outro ponto que merece destaque quando se pensa a relação

entre a concepção cartesiana de homem e os direitos humanos. Descartes concebe o ser

humano como um sujeito cognoscente da natureza, elevado por constituir-se a partir da

consciência de si e do mundo. Entretanto, o homem, por não ser composto integralmente de

matéria física, não pode conhecer-se completamente, somente aos corpos mecânicos e isso o

dá liberdade para manipulá-los da maneira que lhe convier. Com isso, mesmo que seja

concebido por alguns como ser natural, o homem estaria hierarquicamente situado em uma

posição superior em relação aos outros seres, podendo, por conta disso, usá-los

indiscriminadamente para o seu bem estar e progresso.

É esse direcionamento que os sentidos sobre humanos não-direitos percorrem: por

serem seres inferiores, não dotados de consciência plena, como dissemos, ou seja, sem

consciência do viver em sociedade, mas, reiteramos, possuidores de livre-arbítrio, e, portanto,

apresentam domínio de seus atos, pertenceriam apenas ao domínio do mundo físico e, por

isso, suas vidas seriam manipuláveis, reduzidos à comida de animal, dada a sua inferioridade,

como evidencia „Carolina‟, em postagem a seguir. Filiados a esse sentido, os sujeitos da

comunidade do Orkut podem defender a penalidade de morte.

Entendemos, frente ao que foi dito, que não apenas a igualdade entre os homens, pilar

dos direitos humanos, é maculada com tais sentidos, mas as novas diretrizes dos direitos

humanos que pensam o homem a partir do tempo futuro. Dessa maneira, as gerações

vindouras tornam-se ponto de partida para a construção de novos direitos. As ações do

homem, sobretudo no tocante à construção da dignidade humana, devem ser pautadas no bem

estar de todos os indivíduos, inclusive aqueles que ainda não nasceram. Os homens devem

agir, no saciar de suas necessidades, de maneira equilibrada, intervindo na natureza, mas

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 68: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

66

cônscios de que os bens naturais não são eternos e de que a fauna e a flora não são mera

corporeidade. Com isso, os direitos humanos são pensados atualmente na tentativa de

construir um mundo habitável também para as gerações futuras, sobretudo porque deve-se

assegurar-lhes o seu direito básico: a vida. Dessa forma, direitos ligados à exploração

ambiental49

são a temática mais discutida hoje em dia pelos simpatizantes e defensores dos

direitos humanos. Apesar disso, não encontramos na comunidade do Orkut analisada nessa

dissertação tais sentidos, levando a crer que, para alguns desses sujeitos, o homem teria direito

(natural, inclusive) de explorar a natureza sem limites. Conforme Wolff (2009, p. 63), isso é

concebível porque a visão cartesiana

[...] é a combinação de um dualismo que opõe o homem à natureza com um

reducionismo que coloca todos os seres naturais num mesmo plano, enquanto os

considera como sendo de uma essência completamente diferente da nossa. [...]

Qualquer corpo, seja ele orgânico ou não, é apenas uma coisa. Tudo o que não é a

gente se torna consumível, explorável e destrutível ao nosso bel-prazer.

Como vimos, o homem era concebido como um sujeito capaz de conhecer apenas o

mundo ao seu redor. Isso possibilitou o desenvolvimento das ciências naturais e a exploração

dos bens da natureza para ampliar a qualidade de vida do ser humano. Todavia, como

conceber o homem sem a capacidade de autoconhecimento? As definições aristotélica e

cartesiana, conforme Abbagnano (2007), encaixam-se em um grupo de tentativas filosóficas

de explicar o homem a partir de uma característica ou capacidade suas. Divergindo desse

posicionamento, nas ciências humanas, o homem deixa de ser concebido a partir de Deus ou

de algum elemento isolado, mas exclusivamente a partir dele, de seu conhecimento sobre si

mesmo e de suas relações com o mundo e com os outros. Assim, têm-se as importantes

contribuições de Copérnico, ao demonstrar que a Terra gira ao redor do Sol, com a publicação

de De revolutionibus orbitum caelestium, em 1543; de Charles Darwin e sua obra A origem

49

São constantes na contemporaneidade discursos que associam a construção e defesa da dignidade humana ao

zelo à natureza, à preservação ambiental. Esse pensamento está presente tanto em comunidades do Orkut (“Está

na hora de haver um consenso global em relação aos impactos ambientais, não há tempo para discussões, os

impactos já estão presentes no nosso dia-a-dia, são as temperaturas mais elevadas ou mais baixas, enchentes,

aumento do nível do mar, o mundo é um só e todos seres humanos devem ser responsáveis e cuidar direito do

planeta e nada seria mais justo do que punir igualmente a todos, independentemente do lugar, inclusive como

forma de incentivar os países a mudarem seus hábitos, tanto os desenvolvidos quantos os subdesenvolvidos.

Quando se trata do bem estar global devemos colocar o bem estar da TERRA em primeiro lugar, até porque em

um mundo sujo, poluído estaremos destinados ao nosso fim.” – Comunidade Direito Ambiental) quanto em

trabalhos acadêmicos da área jurídica, como o livro de Tiago Fensterseifer (Direitos fundamentais e proteção

do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado

socioambiental de direito. Livraria do Advogado, 2008), e o trabalho de Patrícia Noll (Direito, tributo e meio

ambiente: a autopoiese da sociedade diante do risco ecológico. Dissertação. (Mestrado em Direito). UCS,

Caxias do Sul, 2008, p. 43): “a tutela normativa ambiental deve operar de modo progressivo no âmbito das

relações jurídicas, a fim de ampliar a qualidade de vida existente hoje e atender a padrões cada vez mais

rigorosos de tutela da dignidade humana, não retrocedendo jamais a um nível de proteção inferior àquele

verificado hoje”.

Page 69: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

67

das espécies, de 1859; e de Freud, ao conceber o homem a partir da teoria do recalque, do

inconsciente e, portanto, sem pleno domínio de si. Esses pensamentos têm em comum o fato

de ir de encontro à teoria cartesiana: o homem não é mais o centro do universo50

e pode

conhecer-se por meio da ciência.

Falar de DH é pôr o homem no centro das discussões, suas necessidades, seus anseios.

Por conta disso, não é possível encontrar no Orkut sentidos sobre o ser humano perfeitamente

afinados com os presentes na tese de Copérnico. A comunidade virtual, por discutir assuntos

relativos aos DH, traz sempre o homem como protagonista do universo. Entretanto, podemos

perceber o entrelaçamento dos posicionamentos dos sujeitos com a teoria copernicana, sua

contribuição para a antropologia, ou seja, a existência do homem não é isolada e pode

apresentar o mesmo valor que outras vidas, desde que o ser humano conviva conforme as

normas estabelecidas pela sociedade, abrindo, assim, em si, uma “ferida narcísica”.

Não afirmamos, entretanto, que, para os orkuteiros, a vida humana seja equivalente a

dos animais, mas que há o reconhecimento da necessidade dos outros seres para a existência

do homem, sendo ele, então, dependente da natureza. Podemos afirmar, então, que, na

comunidade, a vida humana, sobretudo a do humano direito, não é mais concebida

exclusivamente em uma relação de hierarquia com os demais seres, sendo que os internautas,

salientamos, não abolem a ideia de hierarquia do ser humano frente a outras formas de vida.

Outros sentidos, assim, perpassam os discursos desses sujeitos, indicando integração do

homem com a natureza, como salienta Amanda, em discurso a seguir. Entretanto, é

importante reiterar que, na comunidade, nem todo ser humano é qualificado como tal.

50

Esses pensadores são muito importantes para a história da construção do conceito de homem, impactando

bastante o modo como o homem se via e concebia o mundo. A teoria copernicana, por exemplo, representa um

divisor de águas na história da humanidade, pois o homem deixa de ser um ser supremo, sendo apenas mais um

dentre tantos no universo, ou seja, o mundo existe sem o homem, sua existência perde peso: “Estamos ou não

estamos num invisível piãozinho chicoteado por um raio de sol, num grãozinho de areia ensandecido, que gira e

gira, sem saber por que, sem jamais chegar a destino algum, como se gostasse de girar assim, para nos fazer

sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e para nos fazer morrer – muitas vezes com a

consciência de ter cometido uma série de pequenas bobagens –, após cinqüenta ou sessenta voltas? Copérnico,

Copérnico, meu caro dom Elígio, arruinou irremediavelmente a humanidade. Agora, aos poucos, já estamos

adaptados à nova concepção de nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada no Universo,

com todas as nossas belas descobertas e invenções.” (PIRANDELLO, 2007. p. 11)

Extraído do tópico “Ódio contra o ser humano”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 70: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

68

A evolução discutida por Charles Darwin, por seu turno, é da ordem da materialidade.

Sem dúvida, no Orkut, não é esse o teor evolutivo que é discutido. Como dissemos, o sentido

de direito, na comunidade, apresenta relações parafrásticas com a moral. Dessa forma, a única

discussão possível é sobre esse tipo de evolução e ela perpassa todos os discursos presentes

no fórum. Reiteramos, todavia, que o debate sobre a “evolução moral” só é possível devido à

emergência dos discursos sobre a evolução das espécies, iniciados por Charles Darwin. Ao

debater se os direitos humanos são universais ou reservados apenas àqueles que apresentam

determinadas características comportamentais, os sujeitos em questão estão, em verdade,

analisando se o ser humano é capaz de evoluir moralmente.

No início desta seção, à folha 41, destacamos o discurso presente no tópico “A

realidade sobre a pena de morte”. Neste, é perceptível que das duas direções semânticas

plausíveis, ou seja, “o homem pode mudar” ou a sua negativa, no Orkut, o primeiro sentido é

o mais latente, como reiterado por Marcelo Garcia, a seguir, sobretudo ao observamos a

denominação da comunidade. Ainda assim, algumas discussões emergem com o intuito de

convencer os interlocutores da capacidade evolutiva moral do ser humano.

A maneira como Freud concebe o sujeito também representa uma grande ruptura no

modo como o ser humano vê a si mesmo. O homem passa a ser concebido como um ser

simbólico, atualmente um dos pontos de vista mais valorizados, discutidos, debatidos pela

filosofia contemporânea e por outros campos do saber. Um dos elementos principais da teoria

freudiana, no que diz respeito à discussão dessa seção, é o deslocamento do controle do

sujeito e de suas significações sobre si mesmo e o mundo, de suas mãos para o seu

inconsciente. O homem, então, deixa de dominar o conhecimento que tem de si e do outro e

passa a ser ignorante de si, vivendo na ilusão de que se conhece e domina os seus

pensamentos e ações. Nesse paradigma, há a “[...] onipotência do „simbólico‟, do inconsciente

Extraído do tópico “A realidade sobre a pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 71: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

69

representativo, da cultura em oposição à natureza ou do „social‟ em oposição ao biológico

[...]” (WOLFF, 2009, p. 51).

Na comunidade analisada, esse aspecto é fundamental devido aos fóruns que debatem

a pena de morte ou a motivação para a criminalidade, como se questiona „Victor-San‟, em

scrap a seguir: somos seres sociais, como entendia o pai da Psicanálise, constituídos através

do Outro, ou tudo em nós é inato? Essa relação entre os sentidos sobre direitos humanos e o

inconsciente, mediada pela ideologia, associação presente na Análise do Discurso

pecheuxtiana, base teórica dessa dissertação, é alvo de discussão na seção posterior, pois

embora não esteja explícita nos discursos do Orkut, principalmente por se tratar de aspectos

teóricos de um dispositivo de interpretação e não estar diretamente relacionada à temática que

motiva a existência da comunidade virtual, toca todas as significações nela emergidas,

sobretudo porque os sentidos para uma única palavra são o combustível que alimentará os

debates: responsabilidade.

A oposição entre natureza e cultura, social e biológico presente no paradigma

freudiano nos mostra que os direitos humanos podem ser pensados não apenas como aqueles

que visam a supressão/resolução das necessidades biológicas do homem, pois “[...] em

oposição à necessidade animal, biológica, como a fome, a sede ou o cio, que se esgotam na

possessão do seu objeto e na sua satisfação, há o desejo propriamente humano, indefinido,

insaciado, recalcado, sublimado, que volta sob formas deslocadas, condensadas, simbólicas

[...]” (WOLFF, 2009, p. 49), nem mesmo dizem respeito apenas a questões que permeiam o

Direito Penal, como salienta „Penélope Dovi‟, em fragmento do tópico “Clichês pseudo-

humanistas”, posto a seguir. Então, põem-se aqui duas diferenças entre o ponto de vista

cartesiano e o das ciências humanas, embora ambas acreditem que as necessidades dos

homens, portanto seus direitos, também estejam além das questões biológicas: se os humanos

são consciência/pensamento, tal como na visão de Descartes, suas necessidades estão a ela

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 72: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

70

relacionadas; se os homens não têm domínio de si, suas necessidades, ainda que

inconscientes, relacionam-se à saciedade dos desejos e conhecimento próprio.

O paradigma cognitivista encaixa-se bem nas discussões travadas na comunidade

sobre direitos humanos. A tentativa de compreensão das motivações para a criminalidade,

além da indicação de necessidade dos membros em atribuir responsabilidade aos sujeitos, nos

direciona à dicotomia inatismo/natureza x social. Algumas significações na comunidade estão

filiadas à criminalidade como desvio natural do indivíduo, como se fora uma má formação,

desqualificando-o como ser humano. Todavia, o entendimento de que o crime é também fruto

dos problemas sociais da sociedade contemporânea nos permite afirmar que o homem é

concebido não apenas como possuidor de características naturais, ou seja, ele não é somente

um dos integrantes da natureza, como queria Aristóteles, mas é também constituído pela

cultura, entendida como veículo de transmissão de conhecimentos e práticas sociais. Esse é o

modo de conceber o homem das ciências cognitivistas: ele é um ser natural, mas também

social, cultural, dotado de inteligência e com capacidade de evoluir, sobretudo os seus dotes

cognitivos; o pensamento e a linguagem são seus principais atributos.

A partir desse ponto de vista, os direitos humanos podem ser concebidos como aqueles

que atendem às necessidades tanto biológicas quanto sociais do homem. Por considerá-lo um

ser natural como qualquer outro, este paradigma, surgido em fins do século XX, é classificado

como naturalista. Diferencia-se do de Aristóteles por não aceitar o fixismo da essência e

adotar o evolucionismo como base teórica. Como dissemos anteriormente, na comunidade

virtual a evolução é discutida a partir da moral. Interessante observarmos, no discurso a

seguir, de „Karla Felix‟, a compreensão do que vem a ser evolução moral. Assim, a assunção

da ação de perdoar caracteriza um sujeito evoluído (embora não haja indícios, na comunidade

virtual, de que essa característica faça do sujeito um humano direito, digno dos direitos

humanos), o que indica a evolução como a assunção dos postulados da Igreja Católica pelos

sujeitos, pois aqueles representariam a essência do ser humano. Dessa forma, a evolução e o

consequente amadurecimento do homem são dependentes da instituição religiosa, na qual o

homem encontra-se diluído.

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos

direitos”.

Page 73: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

71

Apesar de o naturalismo evolucionista fixar-se no pensamento, não podemos afirmar

que o modo de conceber a evolução pelos sujeitos do Orkut e pela ciência seja a mesma,

principalmente porque, na “cidade azul”, esse amadurecimento encontra-se no nível dos

sentidos produzidos pelos sujeitos e, no cognitivismo, a preocupação está no processo de

produção dos sentidos, na estrutura material do pensamento. Com isso, afirmamos que o

cognitivismo estudará o homem a partir de sua capacidade mental, ou melhor, “[...] todo

sistema de aquisição, de conservação ou de uso dos conhecimentos [...]” (WOLFF, 2009, p.

52), sendo compreendido não como espécie e sim a partir da noção mendeliana de população,

ou seja, compatíveis, mas com diferenças individuais, ainda conforme Wolff.

Este ponto de vista opõe-se à concepção cartesiana de homem por não crer que ele seja

o único ser consciente. As pesquisas cognitivistas, que têm por modelo o cérebro humano e

entendem que a linguagem é a única propriedade realmente humana, por utilizar sinais

linguísticos limitados para uma infinita capacidade de engendramento de combinações, o que

nos lembra a teoria chomskyana de linguagem, demonstram que alguns animais também

apresentam racionalidade, como os chimpanzés. Desta maneira, os fenômenos mentais são

tratados enquanto fenômenos naturais. Ademais, contra o fixismo aristotélico, em termos de

essência, os cognitivistas trabalham com o método comparativo que, ao analisar

características socioculturais e naturais de diversas espécies, possibilitou a aproximação entre

seres aparentemente diferentes, a exemplo dos homens e os macacos ou os ratos. Com este

método, demonstram que não há separação rígida entre o físico e o mental, pois a evolução

genética do cérebro e a evolução cognitiva do ser humano são coetâneas.

Um dos mais relevantes pontos de intersecção entre a concepção cognitivista sobre o

homem e as significações presentes na comunidade do Orkut é a aproximação entre homens e

animais, o que pode contribuir, pelo menos nos discursos na “cidade azul”, para a reiteração

de direitos humanos enquanto direitos naturais, devido à atribuição de características comuns

entre esses seres. Além disso, no Orkut, há a reconfiguração do ser vivo animal, ou seja, os

Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de DH?”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 74: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

72

sentidos emergidos sobre os bichos não são apenas aqueles que os qualificam como inferiores

ou despossuídos de racionalidade ou sentimentos. Eles podem ser concebidos como objeto,

consequência do desenvolvimento econômico, ou vistos como ingênuo e harmonioso, frutos

da intensa urbanização ou a partir da sua proximidade genética com os homens embora nem

todos coadunem com tais sentidos. Wolff (2009, p.70) salienta que esses sentidos devem-se

ao fato de que

[...] a modernidade tecnicista „coisificou‟ e „mercantilizou‟ os seres naturais; por

outro, e em grande parte em reação contra essa „coisificação‟, a natureza é reificada,

sacralizada e até santificada, como fonte absoluta e intrínseca de valores: os seres

naturais seriam sempre bons, acredita-se, enquanto continuarem sendo naturais.

O discurso de „Victor-San‟, abaixo, é intrigante, quanto à supracitada reconfiguração

do ser vivo animal, pois suas inquietações apresentam proximidade com os questionamentos

sobre o homem. Assim, ao criticar a imagem, atribuída aos animais, de fraternidade e

igualdade – pilares dos direitos humanos –, o que os aproxima dos homens, o sujeito invoca a

dicotomia humanos direitos x bandidos, apresentando, a partir do mundo animal, as relações

estabelecidas entre os seres humanos na sociedade. Dessa maneira, estabelece um

aprofundamento da relação entre o homem e o animal, colocando o último na posição de

representante do desvio e do erro humanos. Entretanto, ao evocar o processo de extinção,

alerta aos seres humanos quanto à importância da observância do comportamento dos

indivíduos, pois, se não resolvidos os problemas da criminalidade, os seres humanos correm o

risco de desaparecer, tais como os tubarões, em fala de „Victor-San‟. Dessa forma, há uma

linha de contiguidade entre o homem e o animal, sendo que as relações entre os animais

constituem-se em espelho das relações entre os seres humanos.

Os paradigmas apresentados nessa seção nos mostram que o homem pode ser

compreendido de maneiras muito diferentes. Ele pode ser razão, um ente natural, social,

político, simbólico e cognitivo. Mas, na comunidade, os sentidos emergidos demonstram que,

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 75: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

73

além de tudo isso, o homem é o que ele faz na sociedade; ele é o espelho de suas ações e são

elas que vão determinar a sua cidadania, a sua humanidade.

3.3 UMA HISTÓRIA...

Hannah Arendt indica, conforme Piovesan (2004), que os direitos humanos são uma

invenção humana, por serem históricos e abarcarem uma pluralidade semântica. Não

pretendemos aqui re ou ratificar o pensamento da filósofa alemã, embora discutamos essa

questão na seção subsequente. Todavia, em seu dizer, cabe-nos uma observação: os discursos

sobre direitos humanos são históricos, mas não apresentam como data de nascimento o dia

10.12.1948, momento da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar

da afirmação de Fina Birules, comentada por Méndez (2004, p. 9-10), de que só o ato político

pode gerar igualdade” entre os homens, convertendo a DUDH em “[...] instrumento político

da igualdade”; sua história, portanto, remonta de tempos longínquos e, segundo Ishay (2006,

p. 16), sua “[...] base histórica repousa na tendência humanista que aparece em todas as

grandes religiões do mundo”. Dessa forma, podemos afirmar que a discussão sobre direitos

humanos, ainda que sem esse rótulo, data do período pós-mitológico greco-romano, ou

melhor, tem início com o monoteísmo religioso. É importante observar que ao nos referirmos

aos DH, prevalece, na historiografia sobre a temática, o pensamento cristão-ocidental.

Questionamo-nos ainda, baseados na ocidentalização desses direitos: por que a DUDH é

considerada o marco do surgimento desses direitos, inclusive na comunidade do Orkut51

, se

por séculos houve debates sobre os direitos humanos na sociedade?

Cremos poder encontrar a resposta a esse questionamento no processo iniciado por

esse documento, a saber, a internacionalização dos direitos humanos, que outrora estavam

restritos ao estado-nação, e a consequente característica atribuída a esses direitos: a

universalidade. Assinada por apenas 48 países em seu surgimento, podemos de pronto

questionar esse caráter dos DH, embora seja, segundo Albuquerque Melo, em texto de Leite

(2010, p. 337 – grifo nosso), “[...] o objetivo de uma declaração [...] criar princípios jurídicos

ou afirmar uma atitude política comum”, mas, já em sua constituição, a DUDH esbarra em

interesses e culturas incomuns entre os países membros. Conforme Leite (2010), o conteúdo

51

Dois são os tópicos na comunidade do Orkut que apresentam claramente essa orientação semântica. Intitulados

“Tá explicado o porque os DH são assim” e “60 anos de DUDH e nada”, e compostos somente dos scraps de

abertura, justificam a ineficiência dos direitos humanos em sua origem, ou melhor, na emergência da DUDH, no

contexto do pós 2ª guerra mundial e por negligenciar, a declaração, a natureza egoísta do ser humano,

respectivamente.

Page 76: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

74

da Declaração Universal dos Direitos Humanos é vago, pois houve a necessidade de adequar

o seu conteúdo para ampla aceitação52

, o que força uma universalidade não creditada, ao

menos em parte, pelos internautas, por exemplo. Embora o comportamento de um sujeito –

critério, como dissemos, na comunidade do Orkut, para atribuição de direitos humanos –

apresente um teor cultural, tal aspecto é silenciado pelos internautas.

O contexto de surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos é o período

pós-2ª Grande Guerra Mundial, o que fez com que as necessidades individuais humanas

fossem concebidas como direitos fundamentais, ou seja, enquanto entes inegociáveis,

independente da cultura, da sociedade e da estrutura política de cada nação, em uma tentativa

de repudiar genocídios. Assim, o ser humano passa a ser, pela primeira vez, visto

oficialmente como sujeito frágil em relação às determinações estatais, e que deve ser

igualmente tratado com dignidade. A DUDH passa, então, a ser o necessário reconhecimento

das autoridades da importância de se observar a natureza humana e a representação

documental de que a sociedade pode ser construída pautada em valores humanos, para além

dos interesses políticos e econômicos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dessa maneira, é o documento que

sinaliza a uniformização do homem, indicando que todos devem gozar direitos próprios à sua

condição. Atentando-nos, assim, à historicidade dos direitos humanos, são de fácil

compreensão os motivos que levam a DUDH a ser considerada tão importante para a

temática, sendo concebida como ponto de partida dos DH: ela é, conforme Bobbio (2004, p.

31), “[...] o momento inicial da fase final de um processo [...]”, ou seja, é a primeira vez que

as diferenças de ordens diversas entre povos e classes sociais são, pelo menos no plano

teórico, postas de lado em prol, sobretudo, dos menos favorecidos nos sistemas jurídicos e

52

De acordo com Leite (2010), na elaboração da DUDH, que apresentou as abstenções da União Soviética, dos

países do Leste europeu, da Arábia Saudita e da África do Sul,, tentou-se conciliar os opostos interesses do

Oriente e do Ocidente. O primeiro privilegiava os direitos econômicos e sociais, enquanto que o segundo

defendia com mais vigor a dignidade humana e o valor do indivíduo, gerando, no fim, os 30 artigos do referido

documento, que estão assim divididos, ainda conforme Leite: Normas Gerais (artigos 1-2; 28-30); direitos e

liberdades fundamentais (artigos 3-20); direitos políticos (artigo 21); direitos econômicos e sociais (artigos 22-

27). Essa divisão reitera o caráter ocidental da DUDH, uma vez que 60% (sessenta por cento) da declaração

apresentam relação com os ideais defendidos pelo Ocidente, baseados, principalmente pela Revolução Francesa

e pela independência dos Estados Unidos: “a Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi, portanto, ao

nascer, “universal sequer para os que participaram de sua gestação. Mais razão tinham, nessas condições, os que

dela não participaram – a grande maioria dos Estados hoje independentes – o rotularem o documento como

„produto do Ocidente‟.” (ALVES, 2005, p. 24) Essa observação permite compreender a existência de alguns

sentidos presentes na comunidade do Orkut, sobretudo quando há a defesa da pena capital. Indicamos que os DH

e o Estado, na visão dos internautas, devem priorizar o indivíduo e, em segundo plano, a coletividade (já que esta

é composta por individualidades). Assim, perpassados pelas significações dos países vencedores da 2ª grande

guerra, principalmente os EUA, os sujeitos do Orkut, em suas formulações discursivas no ciberespaço, reiteram

o valor do indivíduo, silenciando discussões referentes a questões econômicas e sociais, assumindo, assim, a

posição de vencedor.

Page 77: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

75

sociais nacionais, sendo acolhidas pela comunidade internacional, quer dizer, a declaração é o

pontapé inicial para a positivação dos direitos humanos, ou seja, a sua conversão em norma

jurídica, último estágio da sua efetivação53

: “[...] os direitos do homem nascem como direitos

naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente

encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais [...]” (BOBBIO, 2004, p.

30).

Assim, a universalidade dos direitos humanos e a consequente caracterização dos

homens como sendo iguais, abre possibilidade para a real igualdade dos indivíduos enquanto

cidadãos, primeira especificação do homem na sociedade, pois além de considerar os seres

humanos a partir da sua natureza moral, principalmente, silenciando as diferenças biológicas,

tais como cor da pele e gênero, amplia os „locais‟ de reivindicação de direitos, quer dizer, a

DUDH permitiu a busca pela tutela internacional dos direitos humanos, tentando neutralizar

reações ligadas à ideia de soberania das nações, por lidar, conforme Méndez (2004), com a

relação DH – natureza humana.

Referente ao sistema jurídico internacional com finalidade de tutelar direitos humanos,

indicamos serem três os seus objetivos: promover direitos humanos – criação de ações que

induzam os Estados nacionais a defender e aperfeiçoar, em seus territórios, tais direitos,

multiplicando-os; controlar direitos humanos – verificação de respeito aos acordos

internacionais em territórios nacionais, a exemplo de recente carta, datada de 01 de abril de

2011, do secretário executivo Santiago Canton, da Comissão Interamericana de Direitos

Humanos – CIDH, da Organização dos Estados Americanos – OEA ao governo brasileiro,

exigindo a suspensão do processo de licenciamento da construção da usina hidrelétrica de

Belo Monte, no Rio Xingu, a fim de resguardar DH; garantir direitos humanos – criação de

um efetivo tribunal internacional, a exemplo da Corte Interamericana de DH. Respaldado por

uma estrutura jurídica internacional, o ser humano não fica à mercê dos mandos e desmandos

de seus governantes, representando um grande progresso na cidadania, pois, segundo Pinheiro

53

Indicamos que por ser uma declaração, a DUDH não é considerada pelos teóricos uma norma jurídica, sendo

apenas um ideal a ser alcançado. Segundo Bobbio (2004), os direitos humanos são, por vezes, colocados de

modo programático, ou seja, sem garantia real de efetivação. Os documentos internacionais de direitos humanos,

como a DUDH são, em verdade, ainda conforme Bobbio, cartas de boas intenções, por dependerem da

constitucionalização por parte dos países assinantes, qualificando-se, então como EXIGÊNCIAS, como dissemos

na folha 58, e não como direitos, pois segundo o teórico italiano (2004, p. 74 – grifos nossos) “[...] a existência

de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por

„existência‟ deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o

reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato

a figura da obrigação”.

Page 78: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

76

(2008), o Estado é o maior violador dos direitos humanos. Converte-se, assim, o indivíduo,

em cidadão do mundo.

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu 2º artigo, preconize a

não-discriminação entre os indivíduos “[...] em função de raça, cor, sexo, língua, religião,

opinião política, ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza ou qualquer outra

condição [...]” (ALVES, 2005, p.23), os direitos por ela defendidos não levam em

consideração, com profundidade, as peculiaridades de cada nação/grupo, o que faz com que a

conferência da cidadania mundial aos indivíduos não se realize plenamente. Ser cidadão do

mundo, em 1948, período em que quase todos os países afro-asiáticos eram colônias

ocidentais, conforme Alves (2005), significa apagar as diferenças culturais em nome de uma

universalização que é construída a partir da ideia de inerência de tais direitos aos seres

humanos, em uma tentativa de frear a atuação dos países do Ocidente em suas colônias.

Lembramos que cultura não é um valor inato, mas social. As idiossincrasias de cada povo não

são tomadas como ponto de partida na elaboração da DUDH. Dessa maneira, não é possível

pensar a universalidade a partir do seu sentido cristalizado na sociedade, ou seja, “[...]

comum, relativo ou pertencente ao universo [...]”; “[...] que diz respeito ou é aplicável a todas

as coisas [...]” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2009). A noção de “universal” é

ressignificada.

A ressignificação da noção de “universal” na comunidade do Orkut não somente

retirou dela o caráter de aplicabilidade a todas as coisas, mas, e principalmente porque

reconfigurou as coisas às quais ela pode ser aplicada. No Orkut, como já dissemos, os direitos

humanos são aplicáveis apenas aos indivíduos que seguem as normas jurídicas estabelecidas

na sociedade. Mas essa reconfiguração encontra suporte em aspectos que ultrapassam o

comportamento jurídico. Vimos acima que a cultura, na elaboração da DUDH, não foi

considerada elemento basilar. Isso indica que os DH, principalmente na comunidade da

“cidade azul”, têm a pretensão de homogeneizar o ser humano, a partir de um ideal de vida,

ou seja, existe apenas um modo de existência. Recentemente, a França proibiu o uso de véus

por mulheres muçulmanas em seu território por acreditar que tal traço cultural fere a

igualdade entre homens e mulheres. Entendemos, então, que essa igualdade só pode haver se

um dos lados a ser igualado se anular, apagar aquilo que o construiu. Dessa forma, o modo de

ser um humano dos muçulmanos deve desaparecer, por não se encaixar no que o agrupamento

social francês, politicamente poderoso e culturalmente dominante em relação ao primeiro,

considera como correto e, mais importante, „natural‟. Universal, dessa maneira, é tudo aquilo

Page 79: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

77

que é considerado „natural‟ pelos grupos que apresentam não apenas o poder político, mas,

sobretudo, o poder simbólico, entendido por Bourdieu (2007, p. 14 – grifo do autor) como

[...] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de

confirmar ou transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter

o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito

específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado

como arbitrário.

Na “cidade azul”, percebemos essa movimentação dos sentidos da noção de

“universal” em relação aos DH, quando, ao discutirem o direito da mulher em realizar o

aborto, os sujeitos evocam as crenças dos intitulados „Testemunhas de Jeová‟ como

argumento, qualificando tais princípios como erros de interpretação e não como uma

possibilidade de existência, como pode ser verificado em discurso de „André‟, no tópico

„Aborto‟, cujo fragmento está posto a seguir.

A possibilidade de existência admitida pelos cidadãos da “cidade azul” está afinada

com os preceitos do Cristianismo que permitem interpretar os direitos humanos do ponto de

vista religioso e comportamental, sendo que os textos bíblicos apresentam os princípios

básicos para orientação da conduta humana, aplicando o ideal de amor fraternal. Lembramos

que as relações fraternais apenas existem entre humanos direitos, como é possível depreender

dos discursos da comunidade do Orkut. Assim, “[...] os Dez Mandamentos constituíam um

código de moral e respeito mútuo que exerceu importante influência no mundo ocidental. A

Bíblia contém diversas injunções (formuladas em termos de deveres) que correspondem às

concepções seculares dos direitos do outro [...]” (ISHAY, 2006, p. 18). Mas não somente a

Bíblia católica incorporou princípios morais universalizantes: o humanismo das outras duas

grandes religiões monoteístas, a saber, Islamismo e Budismo, e os textos produzidos por seus

principais representantes pregam a fraternidade universal, pois a raça humana foi criada por

um único Deus, um único pai.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 80: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

78

Podemos afirmar que, apesar de os direitos humanos variarem ao longo dos anos, já

que a sociedade e suas necessidades modificam-se constantemente, é possível indicar que os

valores que os fundam sejam os mesmos que promoveram o surgimento do monoteísmo ético

na sociedade hebraica, base das religiões ocidentais. Embora o monoteísmo não seja uma

criação dos hebreus, “[...] seu grande legado foi a concepção de um deus que não se satisfazia

em ajudar os exércitos, mas que exigia um comportamento ético por parte de seus seguidores

[...]” (PINSKY, 2005, p. 16). Assim, podemos dizer que a história dos direitos humanos

inicia-se com os valores culturais da comunidade hebraica que exigia o bom comportamento

por parte de seus membros, para evitar perseguições comumente sofridas por eles, o que

explica a constituição desse critério pelos internautas para atribuição de DH e configura o

direito como prêmio, mérito. A ética religiosa permite, então, a associação entre direitos

humanos e respeito ao próximo construindo o direito como recompensa pelo respeito aos

semelhantes e por viver, o indivíduo, sob o ideal da igualdade e da fraternidade: “[...] se teu

inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoas brasa sobre

sua cabeça, e Iahweh te recompensará [...]” (Provérbios, 25: 21-22 – grifo nosso).

Além da base religiosa, os direitos humanos foram também pensados, reiteramos, sem

esse rótulo, por filósofos e juristas que, até o término da Idade Média, construíram o valor

cultural que alicerçou a redação da DUDH e dos documentos a ela posteriores: o bem comum.

De Platão a São Tomás de Aquino, encontramos elementos que celebram o caráter universal

dos direitos destinados aos homens. É importante observarmos que isso não significa que do

século IV a.C. ao século XII tivemos manifestações genuínas de atribuição global de direitos

aos indivíduos, principalmente porque a qualificação de „humano‟ não era atribuída a

qualquer indivíduo. Mas já é possível perceber o embrião da universalidade em discursos

proferidos até o medievo.

Entretanto, a historiografia oficial dos direitos humanos inicia-se somente a partir do

Iluminismo e do deslocamento da autoridade “legislativa” da Igreja Católica para o Estado-

nação e, sobretudo, da alteração do centro regulador da sociedade da figura divina para o ser

humano. Esses deslocamentos demonstram a importância da existência de uma instância

legitimadora para os direitos humanos, o que confere a eles um caráter político, suplantando,

por vezes, o aspecto natural que lhe foi atribuído até a Idade Média. Os DH, portanto,

precisam do papel e da escrita. Tal aspecto é constantemente evocado pelos internautas

quando sinalizam a necessidade de o Estado legitimar determinadas modalidades punitivas,

como a pena de morte.

Page 81: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

79

A necessidade do Estado para assegurar direitos implica pensar os direitos humanos de

modo fragmentado, pois os direitos inerentes ao homem passam a ser aqueles que, em dado

momento histórico, são objeto de interesse político. Por conta disso, a universalidade dos DH

não deve ser pensada como um “já-lá”, mas como um processo, um caminho pelo qual

percorre tais direitos até os dias atuais. Segundo Vasak (1977), os direitos humanos, em sua

evolução histórica, estão divididos em três gerações: a primeira concentrada no período

iluminista, apresentou como interesse principal a defesa dos direitos civis e políticos, devido à

vigente “ideologia” liberal; a segunda geração corresponde às reivindicações da “ideologia”

socialista, o que nos remete à defesa dos direitos econômicos e sociais; a terceira fase diz

respeito aos interesses pós-coloniais e à autodeterminação dos povos. Vasak (1977)

caracteriza essa geração como sendo “direitos da solidariedade”, abarcando os direitos ao

desenvolvimento, a um meio ambiente equilibrado, à paz e à propriedade sobre o patrimônio

da humanidade, um avanço à ideia de universalidade, a partir da ampliação do direito à

propriedade, que compõe originalmente a primeira geração.

Há, ainda, teóricos que indicam a existência da quarta geração, fase atual, na qual os

grupos minoritários, como as mulheres, negros e homossexuais, são “convocados” a lutar e

tomar posse dos direitos humanos, anteriormente pensados de modo genérico, em uma

tentativa de fazer emergir as especificações de cada grupo nas legislações, como o Estatuto da

Criança e do Adolescente – ECA e o Estatuto do Idoso, no Brasil. Além disso, os direitos

culturais que, para Vasak (1977), transitam entre os direitos das primeira e segunda gerações,

passam a ter lugar de destaque no cenário mundial, permitindo o surgimento de documentos

como a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos54

, de 1996, bem como a defesa dos

direitos das tribos indígenas brasileiras.

A constante recorrência ao cenário mundial nos discursos sobre direitos humanos

demonstra a etapa atual de seu desenvolvimento, a internacionalização que, aliada à

especificação dos direitos, tenta construir um Estado de direito supranacional. Com isso,

segundo Piovesan (2004), os agentes conferidores e monitoradores dos DH devem ser, além

do Estado, o próprio indivíduo, as agências financeiras internacionais, os blocos regionais

54

É considerado um grande avanço a discussão desse documento para os direitos humanos por reconhecer os

direitos dos povos à sua própria cultura, sendo a língua um dos mais importantes elementos de identificação

cultural, inclusive no Brasil, um país considerado plurilíngüe. Conforme Oliveira (2003, p. 7), “[...] no Brasil de

hoje são falados por volta de 210 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 180 línguas, chamadas de

autóctones, como o guarani, o tikuna, o yanomami, o kaingáng; e as comunidades de descendentes de

imigrantes, cerca de outras 30 línguas, chamadas de alóctones, como o alemão, o italiano, o japonês, o árabe, o

polonês.”.

Page 82: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

80

econômicos e o setor privado. O direito internacional dos direitos humanos nasce oficialmente

com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.

Tal processo é importante não apenas para universalizar os DH, no sentido de atribuir

aos indivíduos os mesmos direitos, mas também para re-atribuir ao Estado a credibilidade que

não mais tem na sociedade, como evidencia o discurso de „Sérgio Rodrigo‟, no tópico “A

realidade sobre a pena de morte”, ou seja, como protetor do indivíduo, sancionando

juridicamente direitos, como os de propriedade, representação política, igualdade e liberdade,

mas principalmente no contexto atual, o direito à segurança e ao bem estar social. O Estado,

na comunidade do Orkut, encontra-se desacreditado por duas razões dicotômicas: por não

permitir a pena de morte como coerção ao crime ou ainda por não conseguir aplicar as leis

que garantem aos indivíduos os direitos sociais que impediriam, ou ao menos minimizariam, a

criminalidade, na visão dos internautas, ou seja, o Estado é também criticado por aplicar,

ilegalmente e sob formas diversas, a pena capital no país.

Mas, como já salientamos, o importante processo de internacionalização e

universalização dos direitos humanos, na prática, não se inicia com a DUDH. Muitas foram,

desde o Iluminismo, as reivindicações dos grupos sociais em relação a seus direitos.

Indicamos que, embora os grupos minoritários, como as mulheres, em todos os momentos

históricos, tenham lutado para defender e legitimar suas demandas, como podemos perceber,

por exemplo, com as Declaração dos Direitos da Mulher, de Olympe de Gouges, de 1790 e

Os Direitos da Mulher, de Mary Wollstonecraft, de 1792, a escritura de seus direitos é

recente, ratificando o caráter político dos direitos humanos. As reivindicações sobre DH, de

modo genérico, foram incorporadas a uma série de documentos, que influenciaram a

elaboração da DUDH, dos quais destacamos, para a primeira geração, a Lei de Habeas

Corpus, publicada na Inglaterra, em 1679, a também inglesa Declaração de Direitos, de 1689,

a Declaração de Independência Americana, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem

e do Cidadão, de 1789, fruto da Revolução Francesa.

O primeiro documento representa grande influência nas legislações sobre direitos

humanos e diz respeito a um dos mais elementares direitos de um indivíduo, conforme os

Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 83: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

81

teóricos: a liberdade pessoal. Assim, a Lei de Habeas Corpus – LHC constitui-se como um

dos primeiros instrumentos jurídicos da era moderna de controle do poder do Estado,

assegurando o exercício de direitos pelos indivíduos, inclusive o de defesa. Essa lei se propõe

a fazer cumprir a soltura de prisioneiros que estejam em posse do Estado sem comprovação

tácita de culpabilidade. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos não há explícita

menção à lei, nem mesmo aparece a expressão habeas corpus. Mas é possível destacar sua

“presença” ao analisarmos a DUDH, sobretudo os artigos 9 e 11, inciso 155

. O Brasil, em sua

Carta Magna que, como dissemos anteriormente, apresenta ampla relação com a DUDH,

perceptível desde o seu preâmbulo56

, também adotou o sistema de habeas corpus, explicitado

no inciso LXVIII do artigo 5º57

.

Fruto da Revolução Gloriosa, de 1688, a Declaração Inglesa de Direitos – DID teve

por objetivo ser um instrumento limitador das ações do Estado, impedindo o uso arbitrário do

poder. Devemos nos atentar à natureza do Estado a que se refere tal documento. Dirigido à

monarquia, como crítica às atitudes do Rei Jaime II, a DID almeja impedir a interferência real

nas determinações do Parlamento, resguardando a sua legitimidade e salvaguardando os seus

membros da acusação de subversão. Apesar de não fazer menção aos cidadãos comuns, a

liberdade do exercício político é um dos principais legados do documento inglês de 1689 e

nos remete, ainda que indiretamente, à divisão dos poderes: cada um com existência

independente e sem a interferência do outro.

Esses dois primeiros documentos tocam o direito à liberdade, fundamental e

inalienável no Estado de direito, seja ela individual ou de gestão política. Ambos tentam frear

a arbitrariedade do Estado em suas atuações, o que é um dos nós dos discursos sobre direitos

humanos, inclusive aqueles proferidos na comunidade do Orkut analisada nesta dissertação.

Se os sujeitos entendem que o Estado deveria aplicar a pena de morte, assunto principal da

comunidade, e não o faz, criticando-o por isso, como é o caso da maioria dos integrantes da

“cidade azul”, nos leva a crer que os internautas solicitam duas posturas do Estado,

incompatíveis entre si: aplicar a pena capital, configurando-se, no mais alto grau, em um

55

Artigo 9º: “Ninguém será preso, detido ou exilado arbitrariamente”.

Artigo 11, inciso 1: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que

sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido

asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. 56

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e

internacional...”. 57

“[...] conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou

coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Page 84: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

82

governo arbitrário, com o poder máximo de manipular o primeiro dos direitos humanos – a

vida; ou um afrouxamento total da arbitrariedade do governo, permitindo “a justiça com as

próprias mãos”.

Embora esses documentos ingleses não discutam essa problemática, eles representam

um grande passo na história dos direitos humanos, no equilíbrio da relação entre o sujeito e o

Estado. Discutir a pena de morte é, antes de qualquer coisa, retomar as ideias centrais que

fundaram a Lei de Habeas Corpus e Declaração Inglesa de Direitos: assegurar a liberdade

pessoal, impedindo a prisão ilegal, o que dificulta a prisão arbitrária por interesse pessoal e a

de inocentes, permitindo inclusive a revisão de injustiças no caso de novas descobertas em

processos judiciais, bem como garante que o Estado exercerá apenas a função que lhe

corresponde, dando espaço ao indivíduo para exercer livremente os seus direitos, estando

todos submetidos à lei – essa é a proposta básica dos direitos humanos.

Segundo Ishay (2006), devemos também ressaltar para essa discussão a importância de

Cesare Beccaria, também tomado como referência jurídica no Orkut, como por „Sérgio

Rodrigo‟ em discurso do tópico „A realidade da pena de morte‟, cujo fragmento encontra-se a

seguir, por ser o primeiro escritor moderno a condenar a pena de morte e a tortura, indicando

que a penalidade deve ser imposta na mesma medida do delito, desde que seus graus de

intensidade sejam suficientes apenas para fazer os homens recuarem diante dos delitos.

A Declaração Americana, elaborada após separação das treze colônias americanas da

Coroa Inglesa, estabelece a igualdade entre os homens, sendo estes dotados de direitos

naturais e inalienáveis. Nela, o governo é compreendido como uma instituição que tem por

função assegurar os direitos dos cidadãos e deve ser instituído pelo povo, um grande avanço

no desenvolvimento dos direitos políticos e no governo representativo. Em seu preâmbulo,

indica serem a vida, a liberdade e a busca da felicidade os principais direitos do homem.

Todavia, o documento que mais influenciou a elaboração da DUDH foi a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão – DDHC. Seus ideais de igualdade, liberdade e

fraternidade foram seguidos à risca em 1948, sendo a base de todos os seus artigos. A

Extraído do tópico “Realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 85: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

83

igualdade encontra-se expressa, na DUDH, nos artigos 2, 6 e 7; a fraternidade baeia os artigos

22 a 27 e a liberdade está presente nos artigos 7, 13 e 16 a 21. A DDHC apresenta, segundo

Ishay (2006), influência de muitos teóricos como John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Cesare

Beccaria e Voltaire. Elaborada após a Revolução Francesa, constitui um marco na história da

humanidade. No artigo 2º, indica serem os direitos à liberdade, à propriedade, à segurança e

resistência à opressão os principais direitos do homem. A liberdade é concebida como sendo

um direito natural e a igualdade entre os homens é constantemente reiterada em seus artigos, a

exemplo do 6º58

. Salienta ainda ser a lei a expressão da vontade de um povo, estabelecendo

assim conexão com a teoria da soberania popular, de Rousseau, e abrindo caminho para o

sufrágio universal, ou melhor, para a efetiva participação do cidadão na vida pública da nação.

A DDHC indica ainda, como direitos do homem, a liberdade de expressão e opinião, bem

como o de exigir dos governantes prestação de contas, um grande avanço para o real

estabelecimento da igualdade entre os indivíduos. Os direitos propostos pelo documento

francês foram quase todos incorporados à DUDH.

Apesar dos avanços dos direitos humanos prometidos pela Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, e também dos documentos iluministas anteriores, muitos dos direitos

não foram concretizados. Várias são as razões que explicam essas falhas, mas ressaltamos

duas: o público-alvo dos direitos, aliado aos grupos que elaboravam tais documentos, bem

como à natureza dos direitos que se tornaram referência do período iluminista. Embora a

camada popular tenha participado das lutas que culminaram nos documentos mencionados

nesta subseção, ela não foi convocada e, na prática, não tinha representação, para elaborar

esses documentos, o que faz com que os seus interesses não sejam, de fato, atendidos. A DID,

por exemplo, não ampliou a possibilidade para participação, no parlamento inglês, para

qualquer cidadão da Inglaterra, restringindo (ou mantendo restrita) a participação política dos

indivíduos. Os documentos americano e francês tentam livrar-se dessas amarras. Outra

problemática é que dois tipos de direitos são importantes no mundo liberal: a liberdade e a

propriedade, e este último configura-se como um grande problema, dificultando a efetiva

igualdade política entre os cidadãos, o que permitirá a emergência do Socialismo. Por conta

da intensa defesa do direito à propriedade, e também do Capitalismo, os indivíduos ficaram

sujeitos a condições subumanas de trabalho e vida, gerando a defesa dos direitos sociais que,

na DUDH estão reunidos nos artigos 22 a 27, conforme Leite (2010), e na constituição

brasileira estão alocados no capítulo 2, do Título II. Os principais representantes socialistas,

58

“[...] Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e

empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção senão a de suas virtudes e de seus talentos”.

Page 86: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

84

no que tange aos direitos humanos, são Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx e Friedrich

Engels.

Atualmente, a busca pelos direitos sociais ainda está no centro das discussões sobre

direitos humanos, sendo a pobreza considerada uma negação a esses direitos. Ampliou-se,

hoje, como já dissemos, as demandas dos homens, e seus direitos e reivindicações pautam-se

não apenas no seu bem-estar, mas também no das gerações futuras. Pensa-se no indivíduo

isoladamente, e também inserido em um agrupamento; suas demandas são pensadas quanto ao

aspecto natural e biológico, genérico, mas também social, especificado. Atualmente, os

direitos humanos pretendem pensar o homem em sua igualdade e pluralidade.

Page 87: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

85

4 E NO PRINCÍPIO ERA O VERBO?

4.1 “PALAVRA ACEITA TUDO” 59

As seções anteriores dessa dissertação nos permitem perceber que discutir direitos

humanos é pôr em voga as relações desiguais entre indivíduos na sociedade por serem, tais

direitos, uma das tentativas do homem, enquanto ser político e histórico, em minimizar,

através da interferência do Estado, sobretudo, as diferenças entre os seres humanos.

Salientamos que muitas das diferenças entre os homens não são de cunho natural, são

construções sociais, o que nos leva ao entendimento de que debater sobre direitos é trazer à

tona o elemento que norteia as relações inter-individuais: o poder. Dessa maneira, refletir

sobre direitos humanos significa imprimir uma tentativa de compreender como se dão as

tensões no seio da sociedade e, no caso dessa dissertação, como a linguagem se configura

como palco de disputas de poder: quem é o ser humano e quem, devido a essa condição, tem

direitos.

Conforme Lagazzi (1988, p. 39), “[...] atribuir direitos e deveres é atribuir símbolos de

poder, é legitimar o poder como coerção, trazendo a ordem simbólica para o cotidiano das

relações interpessoais [...]” e, portanto, discutir direitos humanos e seu processo de

significação implica uma concepção de linguagem que não a signifique como mero

instrumento de comunicação ou suporte para os pensamentos, mas como ação, instância de

constituição dos sujeitos e manifestação do poder, inclusive político, com a monopolização do

Estado60

na constituição e controle das regras de direito, sobretudo aquelas qualificadas como

sendo direitos humanos. A linguagem, então, deve ser pensada a partir da sua materialidade,

da relação entre língua e processo histórico-social, ou seja, ela é estrutura e acontecimento.

Tais caracterizações da linguagem dizem respeito ao seu duplo aspecto constitutivo, a

saber: a língua, enquanto sistema significante material, e a história, sua materialidade

simbólica, provendo-a de sentidos. Analisar direitos humanos pode gerar a falsa impressão de

estarmos observando um fenômeno meramente linguístico, nos moldes estruturalistas de

Ferdinand de Saussure, da relação entre significante e significado, além das relações

morfossintáticas que qualificariam o elemento “humano” do sintagma „direitos humanos‟

59

BARROS (2000). 60

Falamos na seção anterior que não apenas o Estado tem a possibilidade de legislar, citando, inclusive, o

Direito Consuetudinário como exemplo. Entretanto, referimo-nos aqui à instância jurídica com poder coercitivo

institucionalizado e socialmente reconhecido por todos os grupos sociais. O que não quer dizer que seja aceito

por todos.

Page 88: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

86

como pertencente à categoria dos adjetivos ou ainda como adjunto adnominal, sintagma

adjetival ou modificador/determinante. Trata-se, todavia, aqui de compreender a língua como

condição para a produção do discurso e um modo de coerção social.

Lembramos que, na seção anterior, indicamos ser o comportamento do indivíduo um

dos critérios mais importantes, para os sujeitos do Orkut, para a conferência de direitos aos

seres humanos. Constitui-se, então, a necessidade de o indivíduo ser possuidor de uma

competência comportamental, aos moldes da competência linguística pensada por Noam

Chomsky, capacidade inata de engendrar frases e, no caso da “cidade azul”, capacidade (por

vezes qualificada como inata – “uma pessoa já nasce com má índole”61

) de seguir

determinados comportamentos estabelecidos socialmente, como a não realização de abortos.

As competências linguística e comportamental estão relacionadas através da noção de erro,

que permite entender que os direitos humanos são construídos semanticamente, pelos

orkuteiros, para aqueles que dominam essas competências. A língua, assim, precisa ser

referida também à ideia de competência simbólica desenvolvida por Bourdieu (1983), pois a

gramática e os “[...] funcionamentos intrínsecos da língua e exigências manifestadas pelo

poder se articulam de forma complexa no projeto de determinação[...]” (HAROCHE, 1992, p.

22), ou seja, a língua, enquanto sistema significante material apresenta em suas formas a

manifestação do poder, sendo o sujeito, então, assujeitado à língua para constituir-se enquanto

tal e emergir, assim, sentidos.

No Orkut, não é possível localizar sentidos que confiram explicitamente os direitos

humanos somente àqueles que detêm a norma padrão culta. Entretanto, seu domínio é critério

para legitimação dos sentidos sobre a temática emergidos na “cidade azul”, o que implica

considerar que os sentidos legitimados são aqueles provenientes de um determinado grupo

social, que domina tal competência linguística. Assim, o erro normativo-gramatical deixa de

situar-se apenas na esfera linguística, enquanto estrutura, e não pode ser também considerado

mero esforço argumentativo dos detentores da língua padrão. Bourdieu (1983) ensina que a

língua deve ser referida à legitimidade de sua realização e à noção de aceitabilidade. Dessa

forma, embora o Orkut, como dissemos na segunda seção dessa dissertação, configure-se em

um espaço cibernético que, a priori, não destaque a necessidade de uso da norma padrão e,

portanto, priorize a flexibilidade gramatical, nos fóruns da comunidade "Direitos humanos

para humanos direitos”, a língua legítima faz-se presente e necessária, entendendo-se por

61

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 89: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

87

língua legítima aquela que é autorizada na/pela sociedade, a linguagem de autoridade, aquela

marcada pela aceitação social.

Há, então, um esvaziamento das possibilidades de realização da língua, tal como há a

da multiplicidade de comportamentos62

. Dessa forma, os usuários do Orkut, assujeitados que

são à língua, e que não apresentam a competência de saber quando é preciso falar, calar, ou

adaptar a forma da língua à situação de uso, no sistema de trocas simbólicas, que é a

linguagem, não são considerados locutores legítimos, na “cidade azul”, e seus discursos sobre

direitos humanos não são aceitos. Como legitimar os sentidos de quem não detém a língua

legítima? Acreditamos assim que o erro linguístico, tal como o comportamental, configura-se

como qualificador do direito a ter direitos e, dessa maneira, a língua deve ser vista como

materialidade coercitiva, manifestação do poder.

Na comunidade virtual analisada, a crítica aos equívocos linguísticos não é facilmente

localizável por duas razões. A primeira é que os criticados normalmente saem da comunidade

pelo constrangimento, ficando, algumas vezes, apenas os rastros de sua presença, como indica

a fala de Andy Priest, a seguir. A segunda razão pode ser subdividida em dois aspectos:

aquele que diz respeito aos usos linguísticos propriamente ditos e aquele que faz referência

aos interlocutores. Percebemos que, apesar de localizarmos vários desvios da norma padrão,

eles não são sinalizados pelos orkuteiros por serem erros de digitação, a exemplo de „direios‟,

no lugar de „direitos‟ e „creminosos‟, no lugar de „criminosos‟; erros linguísticos que são

normalmente relevados na sociedade, como os de pontuação e acentuação; os desvios

decorrentes do desconhecimento da forma padrão por parte dos orkuteiros, mas que também

são relevados no seio da sociedade, tais como algumas concordâncias verbo-nominais, como

o uso da forma plural do verbo „ter‟; descuido ou desatenção ao escrever, como o uso de

„descupe‟ no lugar de „desculpe‟. Além disso, há ainda os casos de hipercorreção.

Todavia, chama-nos mais atenção o segundo aspecto por nós mencionado e que diz

respeito aos usuários da língua no Orkut e a relação entre eles baseada nos usos linguísticos.

62

Não estamos fazendo aqui apologia à pluralidade comportamental, no sentido de que “tudo é possível”. Esse

julgamento não nos cabe aqui. Entretanto, consideramos importante salientar o caráter social da noção de

comportamento, o que faz dele um elemento heterogêneo, dependente da sociedade que o legitima.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 90: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

88

Nos cinco tópicos selecionados para constituir o corpus de análise da dissertação, basicamente

três sujeitos figuram como maiores debatedores – Anjinho, André e Victor-San.

Eventualmente

, conhecida pelos três anteriormente citados como Cissa,

também participa. Eles não são os únicos interlocutores: há aqueles de quem só é possível

localizar rastros por não mais participarem da comunidade ou terem seus scraps apagados,

voluntariamente ou não, e aqueles que, embora participem, não são tão atuantes e frequentes.

Entendemos, então, que os quatro sujeitos citados configuram-se como um grupo coeso que,

mesmo apresentando opiniões divergentes sobre a temática, respeitam-se e constituem-se (e

entendem-se) como sendo locutores legítimos por possuírem conhecimentos e interesses que

os demais interlocutores não têm.

Assim, percebemos, por vezes no Orkut, um embate de legitimidade, perceptível no

referido discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, bem como

na interlocução entre „Anjinho‟ e „Ivaldo‟, no tópico „Seletividade do sistema penal‟,

conforme scraps a seguir, em que o enunciador reveste-se da imagem de locutor legítimo e

desacredita os sentidos assumidos por seu interlocutor, sendo uma das razões o

desconhecimento do discurso jurídico, em sua forma e sentidos. Dessa forma, concebe-se

língua legítima na “cidade azul” como aquela dos sujeitos que dominam (ou pensam dominar)

os jargões jurídicos e que, portanto, detém o conhecimento pelos internautas interpretados

como necessários para a emergência de discursos sobre direitos humanos, sendo, então,

impressa uma formalidade à situação enunciativa, à linguagem, sufocando, ainda na

formulação, o erro, o desvio da norma culta. A linguagem, reitera-se, em palavras de Orlandi

(2009, p. 115), é “lugar de debate, de conflito”.

63

Escrita grega do nome da deusa Perséfone, filha de Zeus e Demeter, deusa da agricultura. Sequestrada por

Hades, deus do mundo dos mortos que, encantado por sua beleza, pediu-a em casamento, tendo seu pedido

negado por Zeus, recorrendo, então, ao sequestro da deusa, levando-a ao mundo subterrâneo. Através de uma

manobra ao estabelecer acordo com Demeter, Hades consegue fazer com que Perséfone passe uma parte do ano

com ele, sendo conhecida, assim, como a vigilante da alma dos falecidos. Quando a deusa desce ao inferno, faz-

se inverno na Terra. O período em que não está no submundo é marcado pela ocorrência da primavera na Terra

conforme a mitologia grega.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 91: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

89

Percebemos, então, que a linguagem não é meramente uma estrutura, devendo ser

relacionada à história para existir, fazendo dela um acontecimento. Dessa maneira, os sentidos

sobre direitos humanos na comunidade, ainda que aparentemente convirjam para a repetição,

não podem ser considerados o mesmo sentido, pois cada enunciação atualiza o dizer. Com

isso, podemos afirmar que a língua não é fechada e que, portanto, o dizer é aberto, estando

sempre em curso. Assim, André ao enunciar, no tópico “Cuidado”, no dia 06.05.2006, a frase

“a sociedade não é e nunca será culpada por crime algum” e, no dia 07.05.2006, no mesmo

tópico, repeti-la, conforme postagens a seguir, afirmando que “a sociedade não é culpada por

crime algum”, teremos dois sentidos diferentes. Na primeira enunciação, o seu dizer é

genérico, direcionado a qualquer indivíduo-leitor. Já na enunciação do dia seguinte, o

enunciado apresenta um destinatário específico, seu interlocutor direto na “cidade azul”,

conforme utilização do pronome pessoal „você‟, configurando-se, portanto, tal discurso como

uma resposta, em um tom diferente da enunciação do sexto dia de maio de 2006, produzindo,

reiteramos, outro efeito.

Ademais, entendemos que a presença do modificador temporal „nunca‟ na primeira

enunciação, diferente da segunda, em que não há utilização do referido advérbio, proporciona

um sentido diferenciado, eliminando não apenas a possibilidade de a sociedade apresentar

alguma culpabilidade na criminalização do indivíduo, conferindo maior veracidade à assertiva

analisada, bem como indica ao leitor, ainda que de forma indireta, a impossibilidade de o

locutor alterar o seu posicionamento sobre a temática. Poderíamos ter elencado outras

divergências semânticas entre os dois enunciados, bem como a relação intrínseca entre

estrutura linguística e histórica, porém julgamos por ora serem suficientes as diferenças

elencadas para demonstrarmos que a linguagem não deve ser pensada apenas como estrutura,

mas também como evento.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraídos do tópico “Cuidado”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 92: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

90

A nossa afirmativa, em parágrafo anterior, acerca da abertura constante do dizer é

possível devido à característica fundamental da linguagem: ela é marcada pela incompletude.

Isso justifica o fato de que o mesmo sintagma nominal – direitos humanos – apresente

sentidos tão divergentes. Dessa maneira, a incompletude da linguagem diz respeito à sua

necessidade de referir-se à língua e à história para significar, como já pontuamos, descartando

a possibilidade de sua autonomia absoluta, mas e, principalmente, diz respeito à

multiplicidade de sentidos. Dessa maneira, não podemos esperar que os direitos humanos

apresentem apenas um único sentido, ainda que aparentemente seja único o sentido presente

na comunidade virtual, ou seja, “direitos humanos para humanos direitos”, pois, como vimos

na seção anterior, os seus elementos constituintes têm uma história de mudança semântica e,

além disso, são interpretados pelos sujeitos de modo diferenciado.

Sabemos, todavia, que tal historicidade, fundamental para a emergência das

significações, é silenciada, esquecida. A linguagem, portanto, está ligada ao silêncio, ele é o

seu não-dito no momento da enunciação, pois “escolher” um sentido é silenciar as demais

possibilidades64

. O dito, então, é também ocorrência do não-dito, pois segundo Orlandi (2002,

p. 82-83), “[...] há sempre no dizer um não-dizer, necessário. [...] o que já foi dito, mas já foi

esquecido tem um efeito sobre o dizer que se atualiza em uma formulação [...]”, sustentando,

assim, o não-dito, o dizer, possibilitando que signifique. Com isso, nomear a comunidade do

Orkut com o título “Direitos humanos para humanos direitos” não significa apenas que os

integrantes assumem tal sentido. Mas, e talvez seja essa a importância maior dessa nomeação,

a indicação de que existe outra significação na sociedade que, embora componha o universo

discursivo, ou seja, o conjunto universal dos sentidos possíveis, não se qualifica como

possível e legítimo pelos orkuteiros, ou seja, a de que os direitos humanos devem ser

conferidos a todos, sem nenhuma distinção.

Dessa forma, o enunciado que dá nome e constitui o sentido central da comunidade

analisada nessa dissertação traz em si, ao mesmo tempo, a negação e a defesa dos direitos

humanos, deixando evidente o embate existente na linguagem. Assim, significar não é apenas

comunicar a opinião sobre uma temática, como a de DH, mas assumir um lado na luta social

64

Podemos fazer uma analogia com a noção de virtual de Pierre Levy (1996; 1999). Os sentidos são

virtualizações da linguagem; ao assumir um, o sujeito atualiza o texto, “selecionando” uma dentre várias

possibilidades semânticas. De maneira análoga ao que ocorre na leitura do hipertexto, o sujeito não tem

conhecimento dos sentidos que não estão explicitamente por ele assumidos, mas que o atravessam. É o dito e o

não-dito. Tomemos como nosso o exemplo de Orlandi (2007b, p. 41) ao referir-se ao discurso/artigo da

Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os homens são iguais perante a lei. A emergência de tal

significação silencia “as diferenças constitutivas dos lugares distintos” em nome da igualdade. Essas diferenças,

embora ausentes, perpassam o discurso.

Page 93: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

91

e, no caso da “cidade azul”, defender a classe dos sujeitos de direito, estabelecendo quem se

adéqua a essa categoria.

A incompletude da linguagem, desta maneira, nos indica que sempre falta o Outro da

linguagem. A linguagem, assim, é o movimento das palavras em direção ao silêncio e antes de

tudo, do silêncio em direção às palavras; “o sentido é múltiplo porque o silêncio é

constitutivo. A falha e o possível estão no mesmo lugar, e são função do silêncio. Presença

[...] e silêncio [...] se enrolam no mesmo acontecimento de linguagem: o significar”

(ORLANDI, 2007b, p. 71). O silêncio é, portanto, significante. A incompletude da linguagem,

então, diz respeito à sua multiplicidade, à ausência e presença simultânea do Outro no

discurso.

O tópico “Cuidado”, iniciado em 09.03.2006, com o objetivo de discutir a comparação

sujeito criminoso-animal, evoluindo para o debate acerca do fator determinante para a

criminalidade, com 141 scraps ativos, teve, em 17.05.2006, o enunciado proferido por André

Deeh, colocado a seguir. Entretanto, a sua postagem aparentemente não foi comentada por

ninguém, em nenhum momento no tópico. Sabendo-se que os fóruns do Orkut têm seu

funcionamento baseado no comentário que, para Gregolin (2003, p. 52), por seu

procedimento, “[...] há um retorno incessante a certos textos, que os presentifica e faz com

que eles se conservem na memória de uma cultura”, entendemos que o seu scrap foi, sim,

comentado, mas que a forma material dos comentários não se deu do modo esperado, ou seja,

verbal.

Não é possível identificar o destinatário de seu discurso, tampouco os objetivos e a

relação com a temática do tópico, mas o silêncio dos seus interlocutores não pode ser

considerado como um vazio, pois, no silêncio, o vazio é um horizonte de sentidos. Silenciar

diante do posicionamento de André Deeh significa retomar e repudiar o dito, colocando o

locutor “em seu lugar”, ou seja, fora daquela instância enunciativa; é configurá-lo como

locutor ilegítimo, possuidor de uma língua ilegítima. É possível dizer que o silêncio, enquanto

elemento simbólico, ecoa com mais força do que a materialidade verbal, pois não é possível

mensurar o seu alcance. Os seus efeitos podem reverberar por todo o tópico, até o último

scrap, pois não é estabelecida a ilusão do fim textual. O silêncio diante do enunciado de

Extraídos do tópico “Cuidado”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 94: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

92

André Deeh pode evidenciar que ele não é aceito naquele agrupamento social. Os comentários

silenciosos são entendidos por André Deeh, pois ele não voltou a postar no tópico65

.

Além disso, o próprio dizer de „André Deeh‟, no tópico “Cuidado”, configura-se como

um silêncio mediante os dizeres anteriores na comunidade virtual, já que, ao invés de tecer

comentários diretos a respeito das significações de seus interlocutores, opta pela utilização de

palavras de baixo calão e, assim, através desse silêncio, significa que determinado sentido

sobre direitos humanos não pode ser validado por não ser assumido pelo homem-padrão, ou

seja, viril, másculo e heterossexual. Orlandi (2007b), reiteramos, chama-nos atenção para que

compreendamos que o silêncio não tem relação com o vazio, ele não é ausência de palavras,

mas permite/evidencia a pluralidade de sentidos, o silêncio é a presença de outras

significações, apresentando materialidade simbólica, não sendo, portanto, classificado como

verbal ou não verbal.

Para a autora, o silêncio precede a linguagem, como acima mencionamos, sendo esta

uma de suas categorias. Ele não é a falta, é pleno de significação(ões), mediando a relação

linguagem-mundo-pensamento, apresentando aspectos culturais e político-históricos,

constituindo os sentidos. Por não se prender ao que já fora dito, o silêncio é um contínuo,

sempre havendo algo a dizer, um sentido a emergir, justificando a incompletude da

linguagem. O silêncio é virtualidade; ele é polissêmico. Esse é o caráter fundador do silêncio.

É a possibilidade de não dizer tudo que permite que continuemos falando. Para Orlandi

(2007b), se o silêncio fundador não existisse, se não houvesse a limitação imposta pelo

silêncio, todos os sentidos já teriam sido ditos e já não diríamos mais nada. Ele, então,

atravessa as palavras, apresentando-se sempre como o indício de uma instância significativa.

É o vir-a-ser simbólico.

É o silêncio fundador, sendo da ordem do possível e do impossível, que permite a

organização social. Os direitos humanos, enquanto materialidade simbólica e instrumento

organizador da sociedade (por ser essa uma das funções do direito, como vimos na seção

anterior), só são possíveis pelo estabelecimento de impossíveis, como a discriminação de

qualquer natureza, fazendo com que, ao mesmo tempo em que se abrem as instâncias

semânticas, feche-se o simbólico. Assim, os dizeres sobre direitos humanos atualizam o

silêncio e por isso, ratificamos, o silêncio fundador explica a incompletude da linguagem: ela

65

O silêncio pode ainda, nesse caso, significar que alguns sujeitos compartilham o posicionamento de André

Deeh e se sentem representados em sua fala, não havendo, portanto, necessidade de materializar isso. Outros

sentidos também são possíveis. Importa-nos que o silêncio possibilita dizermos que, acerca de André Deeh, os

sentidos podem ser este e aquele.

Page 95: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

93

não pode dizer tudo. Por ser a sua materialidade simbólica ele não deixa marcas no texto,

somente pistas e traços.

É importante retomarmos a ressalva feita por Orlandi (2007b) para evitarmos a

confusão entre duas noções: silêncio e implícito, esta última elaborada por Oswald Ducrot

(1987). Para a autora, eles divergem porque na concepção de Ducrot, para significar, o

implícito precisa remeter ao dito, o não-dito deve ser entendido e significado como parte do

sentido do texto. O mesmo não ocorre com o silêncio que, ainda segundo Orlandi (2007b, p.

66), “[...] não tem uma relação de dependência com o dizer para significar: o sentido do

silêncio não deriva do sentido das palavras [...]”, ou seja, o silêncio permanece silêncio e,

ainda sim, significa. Existe, portanto, no dizer, o implícito e o silêncio. Na formulação do

Orkut, a seguir, do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, algumas considerações

podem ser feitas a respeito das noções tratadas nesse parágrafo. Entretanto, antes disso,

comentemos o nome do tópico. Quanto à noção de implícito, podemos dizer que se trata de

entendermos que se encontra subentendido no enunciado que a morte do infrator é desejável.

Todavia, do ponto de vista do silêncio, podemos avançar a significação e entendermos que tal

morte não é desejada por todos, reiterada pela necessidade do uso do adjetivo „estupenda‟

como qualificador da morte, atribuindo e reafirmando o caráter especial do fato, uma tentativa

de convencimento dos internautas em assumir tal sentido e prática.

Dessa maneira, no referido enunciado, do ponto de vista da noção de Ducrot, inserida

no contexto da enunciação do tópico, encontra-se implícito que a família realizou justiça com

as próprias mãos e que, no Brasil, tal ato não é tolerado e, portanto, passível de punição

jurídica, sentido marcado pelo uso do conectivo aditivo „ainda‟. A análise do enunciado sob o

viés do silêncio é mais ampla, pois ele é “[...] um efeito de discurso que instala o anti-

implícito [...] é o não-dito necessariamente excluído [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 73) e as

possibilidades são, dessa forma, infinitas. Por exemplo, podemos dizer que foram silenciados,

no enunciado, sentidos que indicam ser mais justa, com a sociedade e com o criminoso, a

imputação da pena da castração química, em caso de estupro. Assim, afirmamos que “[...] ao

dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma

situação discursiva dada [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 73). Referimo-nos ao silêncio

constitutivo, uma determinação do silêncio fundante e uma dimensão do que Orlandi

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 96: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

94

caracterizou de “Política do Silêncio”. Conforme o silêncio constitutivo, a realização de uma

palavra, de um sentido, sempre apaga outros.

Outro aspecto interessante, por tratarmos de um objeto que, além de discursivo, é

jurídico, é a outra face da política do silêncio, classificada como silêncio local, ou

simplesmente censura, uma de suas manifestações. Interessa-nos essa perspectiva, pois ela

demonstra, com muita força, a atuação do poder na/da linguagem, sobretudo quando nos

detemos em textos não-institucionais como aqueles que analisamos nesse trabalho, mostrando

que o poder não deriva somente do Estado, mas que compõe qualquer relação discursiva. A

censura pode ser compreendida como “[...] qualquer processo de silenciamento que limite o

sujeito no percurso dos sentidos [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 13), ou seja, o sujeito é proibido

de dizer determinados sentidos (indesejáveis!) em determinadas conjunturas.

Falar de sentidos indesejáveis requer que retomemos a compreensão dada à noção de

sentido feita pela Análise do Discurso. Fizemos considerações pontuais sobre o sentido ao

longo da dissertação até então, embora não tenhamos nos aprofundado em sua

conceitualização. Entretanto, ao referirmo-nos à abertura do dizer e à historicidade da

linguagem, trazemos, indiretamente, uma importante característica que o define: só é possível

a emergência de sentidos porque eles são historicamente determinados, ou seja, não podem

ser qualquer um e não apresentam uma essência fixa, mudando constantemente ao passo que,

contraditoriamente, se mantém.

Os sentidos são também ideologicamente determinados. Todavia, essa determinação

será tratada na subseção sobre formação discursiva e formação ideológica. Adiantamos

apenas que a ideologia é constitutiva do processo discursivo, podendo ser brevemente

compreendida como “[...] processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma

interpretação particular que apareceria, no entanto, como a interpretação necessária, e que

atribui sentidos fixos às palavras em um contexto histórico dado [...]” (ORLANDI, 2007b, p.

96), apresentando como elemento constitutivo a formação discursiva, compreendida como o

possível que pode e deve ser dito em uma determinada conjuntura. É importante, então,

sobretudo porque há uma relação intrínseca entre linguagem e poder, novamente insistimos,

entendermos que o sentido deve ser encarado como uma posição assumida pelo sujeito a

partir de determinadas condições de produção de discurso.

Essa significação não é aleatória, mas fruto de um gesto interpretativo. O ser humano,

enquanto sujeito, está sempre imerso no campo do simbólico e, por isso, podemos afirmar que

os sentidos sobre direitos humanos na comunidade do Orkut analisada, como aqueles que

Page 97: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

95

questionam a legitimidade da Igreja Católica para se pronunciar acerca da temática66

só são

possíveis porque não há sentido sem interpretação, ato simbólico que se configura como “[...]

tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e

não negados [...]” (ORLANDI, 2007c, p. 87). Dessa forma, o sentido não é algo dado a priori,

mas uma construção discursiva.

Do mencionado em parágrafos anteriores, reconhecemos ser fundamental falarmos de

imediato de uma palavra associada à noção de interpretação: possíveis. Ao discutirmos acerca

do silêncio fundador, indicamos que, ao falarmos uma palavra, apagamos outras e que o

silêncio não é o vazio, mas a multiplicidade semântica. Fica-nos mais clara, nesse momento,

essa ideia, pois podemos dizer que a interpretação é o „vestígio do possível‟. Dessa forma, o

inatismo atribuído aos direitos humanos pelos integrantes do Orkut é fruto de uma

interpretação. Quer dizer que “[...] os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as

direções e se fazem por diferentes matérias, entre as quais se encontra o silêncio [...]”

(ORLANDI, 2007c, p. 46), ou seja, referente aos direitos humanos existem „à disposição do

sujeito‟ uma possibilidade infinita de significá-los, até mesmo aqueles sentidos que, para nós,

se constituem como uma impossibilidade, como aquele que nomeia outra comunidade da

“cidade azul”: “Direitos humanos dos animais”. Todavia, assumimos apenas uma dentre todas

as possibilidades, descartando as demais67

. Vejamos a postagem selecionada, a seguir.

O posicionamento de André, no tópico “Aborto”, está posto de modo bem claro em

seu enunciado. Ao assumir que a vida inicia-se com a fecundação, ele „apaga‟ outras

possibilidades de significar a ideia de início da vida, a exemplo do momento de nascimento

como ponto de partida da existência do ser humano. Entretanto, gostaríamos de chamar

atenção que no enunciado de André, para nós, o mais interessante não é o sentido em si, mas

66

Lembremos o conceito de locutor legítimo de Bourdieu (1983, p. 163), ou seja, “pessoa que convém”, locutor

dotado de autoridade, habilitada para produzir discursos sobre determinado assunto em determinadas condições

de produção. 67

Esse processo de „descarte‟ semântico não é realizado conscientemente. A Análise do Discurso trabalha essa

ideia associada à noção de ideologia e aos esquecimentos n.º 1 e n.º 2, ou seja, à ilusão de sermos origem de

nosso dizer, devido ao esquecimento da afetação do sujeito pela ideologia, e àquele da ordem da enunciação,

pois “[...] ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias

parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro [...]” (ORLANDI, 2002, p. 35), respectivamente,

sobretudo o primeiro. Na próxima subseção, trazemos mais considerações acerca desse processo.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 98: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

96

algumas relações que ele estabelece (inconscientemente) com outras significações para

assumir o referido sentido. Assim, observemos o argumento utilizado por ele: a ciência como

instância discursiva. O enunciador estabelece uma separação entre o discurso científico e

aqueles oriundos da lei e da religião. Ele cria, dessa forma, dois blocos semânticos, sendo que

um deles não detém prestígio, nesse discurso, enquanto legitimador de sentidos – a lei e a

religião –, e o bloco constituído pela ciência, entendida, assim, como espaço de enunciação de

verdades absolutas.

É relevante destacarmos a composição do primeiro bloco por nós mencionado, pois ele

ratifica o que já tínhamos dito na seção anterior: a lei e, portanto, as regras jurídicas, não são

concebidas pelos membros da “cidade azul” como ciência, mas como sinônimo de religião,

adquirindo um teor moral, ou seja, norma jurídica e norma religiosa apresentam entre si

relações de paráfrase e, então, podem ser contestadas, devido à impossibilidade de

apresentação de provas físicas. Em relação ao segundo bloco semântico, temos que o sentido

proveniente da ciência acerca do surgimento da vida é visto, por André, no referido tópico,

como sendo único e, portanto, incontestável. Algumas observações podem ser feitas: parece-

nos que o enunciador entende ciência somente como sendo aquelas que podem dar respostas

exatas, como a Matemática e a Biologia. Todavia, mesmo as ciências biológicas, sobretudo

em questões de ordem filosófica como a origem da vida, não detém respostas únicas, não

havendo consenso entre os pares, pois, conforme Szklarz (2007), “[...] chegar a um conceito

sobre vida parece impossível porque ele quase sempre vem influenciado por valores

religiosos, políticos e morais”. Dessa maneira, para significar a relação entre o principal

direito humano, ou seja, a vida, e o aborto, é necessário silenciar uma cadeia de significantes

que, neste caso, vão desde o direito discutido em si até as ciências.

Assim, entendemos o campo científico como aquele que possui a interpretação

legitimada na sociedade, não apenas pelo status de ciência, mas porque, ainda que não

assumido por André, no tocante à origem da vida, muitas de suas significações apresentam

relações com os sentidos provenientes do campo religioso sobre o aborto. Tais campos são,

em palavras de Gregolin (2003, p. 49), “[...] lugares sociais organizados e reconhecidos como

portadores de fala”. Dessa forma, são silenciadas outras significações possíveis sobre o direito

à vida/realização de aborto, bem como os sentidos que indicam o que é ciência e a pluralidade

de sentidos possíveis no interior de uma mesma ciência para um mesmo fenômeno, ou seja,

sentidos oriundos de lugares de fala não reconhecidos como tal. A interpretação, assim, não é

só decodificação nem mesmo desvendamento de um sentido que está além do texto. É

necessário compreender a rede discursiva que envolve todos os sentidos.

Page 99: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

97

A necessidade de consenso entre os teóricos de um grupo científico mostra-nos que os

sentidos são „negociados‟ no seio da sociedade e que, portanto, reiteramos, a linguagem é

polissêmica. Dessa forma, nem mesmo os locais sociais que „vendem‟ a ideia de verdade

absoluta, como a ciência, detém o poder do sentido único, pois a literalidade é uma ilusão

discursiva, que coloca em evidência o caráter material da língua, significando, com isso, a

não-transparência da linguagem e do sentido. Assim, além de se constituir através da

multiplicidade semântica, a linguagem é caracterizada pelas relações parafrásticas, quer dizer,

pelo “[...] retorno constante a um mesmo espaço do dizível [...]” (ORLANDI, 2009, p. 137),

sendo a paráfrase considerada “[...] a permanência do sentido único, ainda que nas diferentes

formas [...]” (ORLANDI, 2009, p. 155). A importância da paráfrase, enquanto funcionamento

discursivo, é destacável, pois, apesar de parecer uma contradição frente ao caráter polissêmico

da linguagem, ela é a representação de um discurso valorizado na sociedade em um dado

momento, por um determinado grupo e constrói o que chamamos de interpretação legitimada,

que assume a característica de sentido oficial, ou seja, aquele que apresenta maior capital

simbólico em uma dada condição de produção. Por funcionamento discursivo, entende-se ser

“[...] a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para

um interlocutor determinado, com finalidades específicas [...]” (ORLANDI, 2009, p. 125) e

tem na paráfrase um de seus processos. Considerada matriz do sentido, a paráfrase gera a

sensação de que existe uma verdade a ser seguida, tal qual uma cadeia de lanchonetes fast-

food que, a partir da original, abre filiações ao redor do mundo, que adota todos os

procedimentos, rituais e significações da matriz.

O mesmo ocorre com o discurso da ciência na fala dos sujeitos do Orkut, em que

temos diversas formas de apresentar o sentido da origem da vida como sendo a fecundação. O

sujeito oscila entre os sentidos permitidos pelos discursos religioso e científico, como pode

ser verificado nos discursos de Rafael e a seguir, utilizando elementos do

segundo campo para legitimar essa associação, como a titulação de doutor. Reiteramos ainda

o indicado à folha 89, a partir dos exemplos de André, dos dias 06 e 07.05.2006, no tópico

“Cuidado”, afinal, conforme Orlandi (2009, p. 119), “[...] a mera repetição já significa

diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo”. Assim, afirmamos

que a comunidade é construída como uma paráfrase de si mesma. Apesar da ilusão de existir

apenas um único sentido para a questão, o que há são sentidos dominantes, dentre outros nem

tão valorizados: “[...] não há um centro, que é o sentido literal, e suas margens, que são os

efeitos de sentido. Só há margens [...]. todos os sentidos são possíveis e, em certas condições

de produção, há a dominância de um deles. O sentido literal é um efeito discursivo [...]”

Page 100: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

98

(ORLANDI, 2009, p. 144 – grifo do autor). Indicamos então que o sentido literal é um efeito

utilizado para domínio social.

Reiteramos a inexistência de apenas um único sentido na comunidade, haja vista que

ela se configura, conforme já dissemos, em um espaço de embates, apresentando, portanto,

significações que, nem sempre, estabelecem relações de paráfrases como a que pudemos

observar nos exemplos de André, à folha 89, Rafael e na folha anterior.

Indicamos apenas que as significações dominantes na comunidade “Direitos humanos para

humanos direitos” são aquelas que apresentam o posicionamento que nomeia a comunidade.

Salientamos também que os sentidos, impessoais que são, constituem a identidade de um

grupo e, por isso, podemos dizer que a defesa das significações assumidas por ele faz da

linguagem palco de disputa de poder, pois constantemente deve reiterar e/para defender a sua

posição de grupo hegemônico.

Não é a primeira vez, nessa dissertação, que tocamos na questão identitária. Sobre ela,

falamos na seção 2, ancorados no pensamento de Stuart Hall (2005), e indicamos a assunção

de diferentes identidades em diferentes momentos. Dessa forma, podemos afirmar que a

formação social dominante, nesse lócus do Orkut, no período de recorte do corpus

discursivo68

, ou seja, aquela que se constitui como local de fala legitimado para construir a

sua identidade, apaga os contextos de aplicação da lei, bem como as singularidades do sujeito.

Não quer isso dizer que todos assumam igualmente o mesmo sentido, afinal existe, no interior

mesmo do grupo, pontos de discordância e contradição, entretanto, em uma tentativa de

tornarem-se „iguais‟, homogeneizando a formação social há, constantemente esforços de

persuasão/convencimento do outro, negociações de sentido, cessão de posicionamentos e

turnos de fala69

. O que os identifica é, além da significação assumida sobre DH, a remissão

68

Os tópicos centrais selecionados para serem analisados têm seus scraps datados no período de 09.03.2006 a

26.10.2009. 69

Interessantes as considerações de Courtine (2009) acerca da noção de individuação trabalhada por Gardin e

Marcellesi (1974 apud COURTINE, 2009). Os referidos autores entendem-na como sendo “[...] o conjunto dos

processos pelos quais um grupo adquire um certo número de particularidades de discurso, que permitem

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”. Relações parafrásticas.

Page 101: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

99

constante aos teóricos do direito, a Deus, aos textos religiosos e científicos que “[...]

possibilita os movimentos de retornos, as repetições, os deslocamentos [...]” (GREGOLIN,

2003, p. 53).

A constituição do sentido se dá no interior da formação discursiva que, como já

dissemos, determina o que pode e deve ser dito, e, por isso, “[...] o sentido não existe em si

mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-

histórico em que as palavras são produzidas [...]” (ORLANDI, 2008, p. 58), passando a ser

entendida, então, como a única coisa possível de ser dita. Pode parecer estranha essa assertiva

em relação à comunidade do Orkut analisada, pois os sujeitos envolvidos têm conhecimento

do outro polo semântico: a destinação dos DH a todos os seres humanos, sendo inclusive esse

posicionamento a razão de existência da comunidade. Entretanto, tal sentido é considerado

um desvio, falta de consciência social e política de quem o assume e, acima de tudo,

ignorância, por desconhecer a verdade posta diante de seus olhos, não apenas pela imanência,

mas pelos estudos e confirmações científicos. Essa negociação de sentidos se dá, dessa

maneira, a partir da ideia de um sentido literal, único, apesar de não haver uma relação

imanente entre as palavras e as coisas.

O processo de significar não é somente a atribuição de sentidos a uma palavra, mas a

assunção de um posicionamento político. Devemos, para refletirmos nessa direção,

encararmos o fato de que não estamos lidando, do ponto de vista analítico, com textos e sim

com discursos, ou melhor, com processos discursivos. Não queremos com isso dizer que a

noção de texto não é relevante para a AD, todavia, ela é marcada pela unidade, pela

organização do dizer em início, meio e fim e, o discurso, ao contrário, é compreendido como

o elo entre linguagem, pensamento e mundo, sendo marcado pela heterogeneidade e “[...]

dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir [...]” discurso “[...] como

um espaço de regularidades enunciativas [...]” (MAINGUENEAU, 2005, p. 15) e, portanto, a

dispersão constitui-se também como característica a ser observada em nossa análise.

Por ser o sentido uma posição assumida no interior de uma FD, como já brevemente

salientamos, e o dizer ser marcado pela heterogeneidade, não é possível dizermos que os

discursos da comunidade analisada nessa dissertação pertençam a apenas um campo

social/discursivo e, dessa forma, embora não sejam oriundos especificamente do campo

reconhecer, exceto por dissimulação ou simulação, um membro desse grupo [...]” (GARDIN; MARCELLESI,

1974, p. 231 apud COURTINE, 2009, p. 64). Courtine chama atenção para o fato de que a individuação, se

pensado como um processo discursivo, é marcado pela contradição, que tem primazia sobre a primeira. Com

isso, o grupo deve ser entendido não apenas como uma relação de similitudes, mas também, e principalmente, de

contradições.

Page 102: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

100

político, afirmamos que os sentidos sobre direitos humanos emergidos na “cidade azul” são

também seus frutos, ou seja, compõem o campo dos discursos políticos. Dessa maneira, ao

contrário da ideia que pode ser atrelada ao pensamento de Courtine (2009) por alguns de que

discursos políticos são apenas aqueles “[...] extraídos do campo discursivo singularmente

restrito dos discursos produzidos pelos órgãos de imprensa ou pelos porta-vozes dos partidos

políticos [...]” (COURTINE, 2009, p. 55), entendemos poder qualificar como político todo

discurso/posicionamento que toque/interfira, direta ou indiretamente, a vida política e pública

do indivíduo, ampliando, dessa forma, o campo nomeado como análise do discurso político70

,

considerado corpora de excelência.

Aparentemente, pode não ter relevância essa ampliação, mas a qualificação dos

discursos da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos” também como

políticos gera um novo efeito de sentido, dando-lhe maior representatividade e importância na

sociedade, pois sabemos que a fala produzida pela população em geral não é considerada, por

muitos, como corpus relevante, ou seja, capaz de, através de análise, „revelar‟ com

profundidade as contradições ideológicas presentes nos discursos que formam a sociedade;

além disso, tal caracterização confere maior grau de “institucionalidade” aos referidos

discursos.

A qualificação de instituição permite-nos enquadrar os discursos da comunidade do

Orkut como um dos Aparelhos do Estado elencados e discutidos por Althusser (1998), sendo

que eles apresentam uma especificidade: o fato de compor as duas formas de atuação do

Estado, ou seja, tais quais os discursos jurídicos, os discursos da “cidade azul” constituem o

Aparelho Repressivo (ARE) e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) ao mesmo tempo,

conforme conceituação trazida à folha 29. Há tópicos em que a figura do censor (moderador)

é evocada para resguardar a identidade do grupo. Assim, qualquer significação que ameace a

unidade do grupo é posta de escanteio.

Observemos que não é suficiente em uma comunidade virtual o cancelamento do

tópico ou a exclusão das postagens dos membros que não são bem-vindos, por apresentar

significações divergentes. O silêncio é imposto pela exclusão definitiva do sujeito da

comunidade, uma espécie de pena de morte virtual como pode ser verificado a seguir no

70

Poderíamos ter afirmado que os discursos do Orkut encaixam-se melhor no campo jurídico, mas não cremos

ser a melhor classificação, pois, como vimos na seção anterior, o direito para se constituir deve ser coercitivo, ter

o poder de compelir o outro a agir ou deixar de agir conforme determinação. O ser humano é, como também

vimos na seção anterior, entendido como um ser político e os direitos humanos, por serem definidos, em geral,

como sendo constituídos para defender os direitos decorrentes da condição de humanidade do indivíduo,

parecem enquadrar-se melhor na categoria do político, ou seja, os DH são formas políticas de atuação do ser

humano na sociedade.

Page 103: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

101

discurso do moderador da comunidade “Direitos humanos”. A expulsão, então, na “cidade

azul”, funciona como um dispositivo em que se colocam em prática as significações sobre

direitos humanos que não podem (são censuradas) existir no mundo extra-virtual, ou melhor,

que não apresentam legitimidade fora do ciberespaço. Apesar de a postagem de „Arthur

Dogbert‟ não compor o corpus selecionado para análise na dissertação, como indicamos, ela é

a comunidade que funciona como o não-dito da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos” e o silêncio, ou melhor, o dito e o não-dito atuam conjuntamente. É como se o

moderador, através da expulsão, mostrasse ao sujeito indesejado (e ao comportamento

intolerado) o funcionamento de suas significações. Ela é um dispositivo muito significativo

em uma comunidade virtual.

Os silenciamentos são formas de violência praticadas na “cidade azul”, sendo que,

ratificamos, nesse momento, o fato de que determinados sentidos, embora possíveis para

alguns sujeitos, não podem emergir no interior da comunidade, por não serem aqueles que

estão plenamente filiados aos sentidos defendidos pelo grupo social que define a identidade da

comunidade virtual. Assim, algumas considerações podem ser feitas acerca da postagem do

tópico “Morte estupenda de um estuprador”, abaixo colocada. Essas postagens aparecem

como a primeira e a segunda do mencionado tópico. Todavia, ao observarmos o segundo

discurso de “Vi”, percebemos que uma voz foi silenciada, já que não é possível encontrar a

pergunta a qual ela faz referência.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia!” da comunidade “Direitos Humanos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 104: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

102

No Orkut, se o usuário resolve deixar permanentemente a plataforma, os seus rastros

no site permanecem, ou seja, suas postagens permaneceriam na comunidade, mas sob o rótulo

de anônimo. Logo duas possibilidades podem ser aventadas: ou o moderador excluiu o sujeito

e apagou suas postagens ou o sujeito, sentindo-se acuado, resolve retirar-se, apagando, ele

mesmo, os seus scraps. Acreditamos ser a segunda possibilidade a de maior probabilidade,

nesse caso, uma vez que não há menção de expulsão de algum membro no tópico.

Observamos apenas que, para Orlandi (2007b), o ato de retirar-se não pode ser considerado

autocensura, pois “[...] a censura sempre coloca um „outro‟ no jogo. Ela sempre se dá na

relação do dizer e do não poder dizer, do dizer de „um‟ e do dizer do „outro‟. É sempre em

relação a um discurso outro – que, na censura, terá a função do limite – que um sujeito será ou

não autorizado a dizer [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 104-105). Não há indícios do retorno desse

sujeito ao tópico posteriormente, nem discussão, em longo prazo, acerca de seu

posicionamento (surgiram apenas três postagens comentando sua significação sobre o tema

tratado). Entendemos, dessa maneira, que ele foi “compelido” a retirar-se, devido à não-

identificação com os discursos do tópico, sobretudo aqueles que lhe fazem referência direta. A

comunidade constitui-se ainda como um AIE por determinar o comportamento do indivíduo

em sociedade, ainda que sua coercitividade seja apenas virtual.

Dito isso, podemos retomar a ideia de que toda assunção semântica constitui a defesa

de um lugar no campo político e, no caso da comunidade, podemos destacar como sendo

característica geral dos discursos o posicionamento político de direita e conservador, o que,

por vezes, é verbalmente explicitado pelos sujeitos e, em tantos outros, perceptível a partir das

filiações ideológicas assumidas. Indicamos que esquerda e direita representam o conflito entre

ideologias políticas71

. O fechamento dos sentidos do Orkut em apenas uma etiqueta – direita –

pode parecer ir de encontro à ideia defendida nessa dissertação, ou seja, heterogeneidade

discursiva e polissemia “inerente” à linguagem. Entretanto, ao qualificarmos os sentidos como

sendo de direita, referimo-nos a ações políticas, quer dizer, “[...] ação que objetiva formar

decisões coletivas que, uma vez tomadas, passam a vincular toda coletividade [...]”72

71

Entendendo-se a noção de política não apenas como partidária, mas também como comportamento. 72

Lembremos ser o objetivo da comunidade a ação política de um grupo em defesa própria, estimulando

comportamentos.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 105: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

103

(BOBBIO, 1995c, p. 40) e, por isso, não permite pensar os elementos da díade (direita-

esquerda) como sendo homogêneos, até porque a sociedade é complexa demais para ser

resumida a apenas uma dicotomia, apresentando diversos grupos de opinião e interesses

divergentes entre si. Desta forma, ainda conforme Bobbio (1995c, p. 46), “[...] não existe uma

única esquerda, mas muitas esquerdas, assim como, de resto, muitas direitas.”.

É complicado, todavia, estabelecer o que seriam sentidos de direita, pois o mundo

mudou muito desde o surgimento da díade, na Revolução Francesa. Alguns critérios podem

ser elencados para estabelecer a distinção entre esses elementos; tomamos aqui alguns. A

priori, desejamos utilizar o critério que, no imaginário social, acaba por constituir os sentidos

que definem a direita e a esquerda: o radicalismo das ideias defendidas por cada um desses

polos, a condução aos extremos dos traços ideológicos de cada „grupo‟. Constitui-se, então,

atrelada à díade principal outra dicotomia – moderantismo x extremismo, em que o primeiro é

evolucionista, concebe a história como um processo, e o segundo concebe a história como

ruptura.

Desta visão, interessa-nos o elemento que, conforme Bobbio (1995c), conecta esses

pontos – o caráter antidemocrático, isso porque ele é uma característica latente na “cidade

azul”, não apenas pelas expulsões, prática que estabelece apenas um sentido e um

comportamento possíveis na sociedade virtual, mas pelos métodos utilizados pelos orkuteiros

para não legitimar os sujeitos considerados por eles „inconscientes‟, tais como o descrédito de

suas falas, a tentativa de abandono da discussão através de contagens regressivas, como se o

sujeito estivesse falando sozinho ou fosse um artefato bélico com a finalidade apenas de

destruir o que é sólido, ou seja, uma tentativa de retirar-lhe a voz, comentários de receitas,

trechos de músicas consideradas politizadas e a postagem para conferir utilidade ao tópico,

indicando ser a fala do contestador algo infundado, como podemos observar nos fragmentos

do tópico “Quanta hipocrisia”, a seguir.

Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.

Page 106: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

104

A antidemocracia na “cidade azul” está mais voltada para a ideologia da direita, afinal

as temáticas e os argumentos preferenciais da comunidade estão relacionados à pauta dos

grupos de direita, como a condenação do aborto e a religião como base de sustentação dos

argumentos. Embora vivamos em um estado laico, a religião, principalmente na comunidade

do Orkut, é pautada como elemento basilar das significações, portanto, da constituição dos

direitos humanos. Classificamos, então, como extremistas de direita os sujeitos do Orkut,

destacando que eles não são a totalidade, mas uma parcela considerável dos orkuteiros, sendo

que indicamos existirem vários modos e níveis de se ser extremo-direita.

Destacamos duas das várias possibilidades: o extremismo de direita pode ser assumido

a partir de sua relação (ou não) com a instituição religiosa. Dessa maneira, o posicionamento

pode se constituir a partir dos sentidos referentes aos direitos humanos, enquanto instituição

jurídica, apresentando apenas alguns sujeitos como legitimados para discuti-los, às crenças

religiosas, como instâncias legitimadoras dos sujeitos e dos sentidos que, em conjunto,

estabelecem qual lócus do campo político deve ser considerado como legítimo. Com isso, a

extrema-direita é assumida por não comportar diferenças, mudanças e por contestar ideias

tidas como „revolucionárias‟, imprimindo-lhes um julgamento desabonador.

Outras nuances são assumidas quando a extrema-direita não apresenta relação com as

instâncias religiosas. Com isso, o critério cristão deixa de existir como instância legitimadora,

e o direitista não se configura como contrarrevolucionário em relação ao ateísmo, ou seja, não

assumir posicionamentos religiosos não é interpretado como um comportamento esquerdista.

Entretanto, não quer isso dizer que a instituição religiosa não é considerada, pois ela ainda

configura-se como instituição a ser salvaguardada. Temos, então, duas sutis diferentes formas

de assumir o extremismo de direita, materializadas nos discursos de NINROD e Márcio, a

seguir, sendo que as duas veem o marxismo como uma catástrofe social e política, uma

ruptura maléfica no curso da história.

Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.

Page 107: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

105

A díade principal (direita-esquerda) está localizada na dimensão horizontal da política

e, por isso, permite deslocamentos de sentidos e comporta o que é por Bobbio (1995c)

chamado de Terceiro Inclusivo, ou seja, o centro. Os sujeitos “caminham” nessa dimensão e

assumem posicionamentos diferentes a depender da proximidade ou não dos extremos. Não

queremos aqui pensar essa dimensão como uma série de posicionamentos homogêneos, mas

como uma série de diálogos travados entre os espaços dessa dimensão, fazendo com que cada

sujeito seja de direita à sua maneira, mesclando sentidos dos dois polos, constituindo o seu

próprio dizer. Entretanto, o que vemos na comunidade é a necessidade de assunção de um

desses polos com veemência, como evidenciado nos discursos de „André‟, a seguir, do tópico

“Aborto”, fazendo com que o centro não seja valorizado, mas concebido como neutralidade,

sinônimo de sujeito “em cima do muro”, o que não é tolerado73

.

Há sempre uma tentativa de convencer o outro do valor positivo e, acima de tudo,

verdadeiro, do posicionamento assumido pelo grupo dominante e, então, assumir o que o local

do campo político assumido determina que se signifique. Entendemos, então, conforme

Confrancesco (1975, p. 403 apud BOBBIO, 1995c, p. 81 – grifo do autor) que o homem de

direita “[...] é aquele que se preocupa, acima de tudo, em salvaguardar a tradição: o homem

73

Não consideramos os discursos da comunidade como centro-direita, apesar da tentativa de alteração de alguns

componentes da estrutura social, pois entendemos que a mudança proposta não está de acordo com o que, na

contemporaneidade, entende-se como revolução, ou seja, o total respeito às diferenças. O que querem, os

orkuteiros, a nosso ver, é a legalização do que já ocorre na sociedade, ou seja, a exclusão total dos sujeitos

infratores, a desconsideração das divergências opinativa e, de certo modo, sociais, bem como a imputação da

pena capital que, de uma certa maneira, já ocorre nos presídios super lotados do país. Lembrando que existem

posicionamentos contrários a esse na comunidade, como temos mostrado ao longo dessa dissertação.

Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos

humanos para humanos direitos”.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 108: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

106

de esquerda, ao contrário, é aquele que pretende, acima de qualquer outra coisa, libertar seus

semelhantes das cadeias a eles impostas pelos privilégios de raça, casta, classe, etc.” Na

comunidade virtual em questão, acresce-se aos privilégios elencados pelo teórico italiano o

comportamento do indivíduo em sociedade.

A importância do comportamento para a significação dos direitos humanos nos leva a

concordar com Bobbio (1995c) em sua afirmação de que o critério mais comum para

diferenciar a direita da esquerda seja a postura dos sujeitos na sociedade frente ao ideal da

igualdade. Com isso, aspectos como quem deve ter direito aos direitos humanos, quais

direitos são concebidos nessa categoria e com que critérios devem-se estabelecer o usufruto

de tais direitos é que acabam por definir a comunidade “Direitos humanos para humanos

direitos” como direitista e conservadora, como podemos perceber ao longo dessa dissertação.

Dessa forma, a igualdade é um conceito relativo que, no Orkut, não é concebida como

universal: a máxima de que todos os homens são iguais não é paráfrase dos sentidos

assumidos pelo grupo dominante na comunidade, pois os sujeitos desse grupo se configuram

como sendo mais iguais que os outros.

Para que compreendamos o motivo do não estabelecimento de uma relação

parafrástica entre o sentido dominante na comunidade do Orkut e a máxima da igualdade

supracitada, é preciso reiterar que o primeiro aspecto elencado por Bobbio (1995c) – os

destinatários dos bens a serem repartidos na sociedade – é o que apresenta maior relevância na

“cidade azul” e isso se deve ao trajeto de constituição dos sentidos na comunidade, ou seja, ao

processo de construção da identidade de seus discursos que, conforme Maingueneau (2005),

se dá a partir de sua relação com outros discursos. Dessa maneira, retomamos o pensamento

de que o sentido é duplamente determinado: pela língua, como já discutimos, e pela história,

considerada sua exterioridade constitutiva.

Salientamos, entretanto, que “[...] quando afirmamos que há determinação histórica

dos sentidos, não estamos pensando a história como evolução e cronologia: o que interessa

não são as datas, mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam [...]”

(ORLANDI, 2007c, p. 33), ou seja, os discursos surgem apoiados em dizeres predecessores,

retomando o já dito. Dessa forma, para significar direitos humanos, os sujeitos do Orkut

retomam as significações sobre o que são os humanos, direitos humanos e sociedade,

afirmando ou refutando-as para que, com isso, possam atribuir sentido às suas palavras.

Podemos, assim, afirmar que todo discurso movimenta, atualiza discursos anteriores e, então,

conforme Courtine (2009, p. 105-106 – grifos do autor), “[...] a noção de memória discursiva

diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas

Page 109: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

107

por aparelhos ideológicos.”74

Em virtude disso, muitas são as possibilidades de restabelecer o

percurso de constituição dos sentidos sobre DH na “cidade azul”. Todavia, para esse espaço,

escolhemos discutir dois discursos que acreditamos dar sustentação aos dizeres da

comunidade, a saber: os discursos provenientes da mídia, com destaque à mídia televisiva, e

os discursos iconográficos referentes à noção de direito.

É necessário explicarmos a razão que nos levou a selecionar apenas esses dois

discursos. Comecemos pelo discurso midiático. Os sujeitos do Orkut, apesar de utilizarem,

por vezes, jargões específicos da área jurídica, não são, em sua grande maioria, profissionais

e/ou estudiosos do Direito, o que faz com que suas significações acerca dos direitos humanos

sejam provenientes de outros campos do saber, mas, sobretudo, de instituições não-jurídicas,

como a televisão e a internet. Dessa forma, destacamos que a mídia é a mais importante fonte

de informação sobre direitos humanos dos usuários da comunidade da “cidade azul”.

Um dos elementos que nos indicam que a ciência jurídica não é, para a maioria, fonte

de conhecimento é a recorrência apenas a um documento oficial dos direitos humanos, a

Declaração de 1948. Ainda assim, entendemos que o referido documento não foi lido na

íntegra pelos orkuteiros, pois, algumas vezes, parecem demonstrar desconhecimento da pauta

dos DH75

, como perceptível na fala de „Rafael Off‟, no tópico “Tá explicado o porque os DH

são assim!”: “Já está na hora do pessoal dos direitos humanos repensarem quem tem mais

prioridade de proteção: são as vítimas ou os seus agressores?” Ademais, nenhum tópico foi

criado na comunidade virtual para discutir a DUDH. A mídia, dessa maneira, como conjunto

dos veículos de comunicação, configura-se como fonte de formulações discursivas a serem

repetidas, transformadas ou negadas. Não dizemos com isso que o aparelho midiático

inculque nos sujeitos suas significações, mas que elas se apresentam como uma das bases de

sustentação dos sentidos emergidos por esses sujeitos.

Mídia é um conjunto complexo e, por isso, gostaríamos de estabelecer um recorte para

trabalhá-la. O primeiro ponto a ser visto é a internet; o segundo, o telejornalismo. A internet,

74

Evoquemos, novamente, os direitos humanos consuetudinários, citado por nós na seção anterior, para

indicarmos brevemente a atuação da memória discursiva. Não é necessário dizer, por exemplo, em algum

manual de guerra, que são inaceitáveis ataques indiscriminados. Essa prática (na verdade, a não-prática), inscrita

na memória discursiva, assume um efeito de obrigatoriedade jurídica, embora não haja um respaldo legal. Com

isso, conduzir um ataque sem um objetivo militar concreto, por exemplo, é interpretado como um desvio dos

direitos humanos, apesar de inexistir, conforme Henckaerts (2005), nos documentos oficiais sobre DH, tal norma

jurídica. Essa significação, então, só pode ter ganho sustentação devido à memória discursiva. 75

Perguntamo-nos, repetidas vezes, qual é a resposta correta para a seguinte pergunta: os indivíduos

desconhecem a pauta dos direitos humanos ou os direitos humanos não estão acompanhando a pauta dos

indivíduos? Só podemos afirmar, nessa dissertação, que existe um descompasso entre o discurso oficial e

daqueles que atuam cotidianamente com a temática dos direitos humanos e aqueles para quem os direitos

humanos existem. Entendemos, então, que os direitos humanos configuram-se como a grande pauta das disputas

de poder, sobretudo na linguagem, na sociedade do século XXI.

Page 110: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

108

para nós, é pensada através de suas ferramentas de buscas, como a plataforma Google76

. Não

é possível estabelecer quais hipertextos são utilizados pelos orkuteiros para constituir sentidos

sobre DH, afinal de contas, ao digitarmos o sintagma „direitos humanos‟ no Google, somos

remetidos a 17 milhões de resultados77

. Entretanto, o site que inicia a lista de resultados,

portanto, o mais popular, pode nos dar uma pista: o Wikipédia, conhecido por ser o site mais

acessado para pesquisas escolares no Brasil78

. Alcunhado como enciclopédia livre, ele é

construído pelos internautas, que podem atualizar seu conteúdo. Por ser enciclopédica, a sua

discussão sobre a temática está dividida em introdução, história, evolução histórica,

classificação e referências79

, sendo que o texto é marcado por seu laconismo.

O site pode ser compreendido como um excelente exemplar de hipergênero, pois ele é

totalmente construído através de links que remetem a outros textos. O fato de ser considerado

uma enciclopédia faz do Wikipédia um fenômeno interpretado como conjugador de todos os

saberes produzidos pela humanidade, uma espécie de biblioteca mundial, que gera um efeito

de sentido de completude, de unicidade, de evidência de que tudo que fosse possível saber

sobre um determinado assunto estivesse ali. Isso faz com que os sentidos no Orkut transitem

em ciclo parafrástico, reiterando informações compartimentadas acerca do estado

contemporâneo dos direitos humanos. Remontemos o Wikipédia ao objeto mais desejado pela

classe média nos anos pré-internet: a Enciclopédia Barsa. Quem a tinha, não precisava ter

mais nenhum livro; ela era a fonte de toda pesquisa, a detentora de todo conhecimento.

Todavia, como bem lembra Orlandi (2007c), qualquer modificação na materialidade

(no nosso caso, para o meio digital) gera diferentes gestos de interpretação e, por isso, o efeito

imaginário de completude do sentido é mais marcado no Wikipédia. Por estarem os discursos

aportados no gênero enciclopédia/verbete, as significações presentes no site também são

frutos dos sentidos materializados referentes à internet, interpretada como possuidora de toda

informação possível e, mais importante, se comparada à enciclopédia tradicional, capaz de

atualização constante, coletivamente. A internet, então, é significada como sinônimo de

democratização do conhecimento, apesar de os links e a atualização indicarem, por si

mesmos, a incompletude do dizer. Gera-se, então, um efeito de sentido de ampliação da

responsabilidade do sujeito frente às significações sobre DH, devido ao acesso facilitado às

76

Conglomerado do qual o Orkut faz parte. 77

Conforme consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico [http://www.google.com.br]. 78

Conforme levantamento divulgado no site Doubleclick ad planner, referente ao mês de abril/2011, o

Wikipédia é o quinto site mais acessado do mundo, com 490 milhões de visitantes. O Orkut encontra-se no 41º

lugar, com 72 milhões de usuários. Em sua categoria – redes sociais –, só perde para o Facebook, que figura no

topo da lista. Disponível em: [http://www.google.com/adplanner/static/top1000/]. Acesso em 5 ago 2011. 79

Segundo consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico

[http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_humanos].

Page 111: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

109

informações, na contemporaneidade. Não queremos, dessa maneira, ao tratar do Wikipédia,

esmiuçar os textos na internet sobre direitos humanos. Mas é importante salientarmos a

superficialidade do conteúdo de alguns sites que, com isso, podem, já que contribuem para a

emergência de sentidos sobre DH na comunidade do Orkut, „sedimentar‟ significações

estereotipadas, como “bandido bom é bandido morto”.

Observemos os discursos de “Gordo, Fabiano” e “Ri”, a seguir, no tópico “Quem é a

igreja para falar de direitos humanos”. O primeiro indica que a história não deve ser tomada

como referência, ao afirmar a sua utilidade apenas para fins museológicos, instalando-se,

todavia, em seu discurso, a contradição, já que utiliza argumentos históricos para refutar o

sentido de ilegitimidade da Igreja como emissor de posicionamentos sobre direitos humanos.

Com isso, indicamos a assunção de duas posições-sujeito diferenciadas e contraditórias no

interior de uma mesma formação discursiva, a qual indica a igualdade de usufruto do direito

humano à liberdade de expressão. Ademais, o referido sujeito evidencia que o Google pode

ser utilizado como prova de que todos são passíveis de erro, ratificando o sentido de que todos

são emissores legítimos sobre DH bem como a discussão sobre a internet do parágrafo

anterior.

Contrariando “Gordo, Fabiano”, “Ri”, no citado tópico, entrecruzando o seu dizer com

os discursos religiosos – manifestação, na formulação, da memória discursiva – ironiza a

Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 112: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

110

defesa do primeiro. A ironia por ele construída não apenas evidencia o efeito de sentido de

condenação ao Google como fonte exclusiva de informação, mas constrói outros efeitos: o

fato de o texto parafraseado ser oriundo de um livro80

(Bíblia, Novo Testamento, Salmo 23,

versículo 1) e não do ambiente virtual, corrobora o sentido de que o Google não deve ser visto

como fonte exclusiva da verdade, já que existem discursos socialmente legitimados como

possuidores da verdade absoluta81

. Além disso, o entrecruzamento com os discursos religiosos

mobilizam significações que os apontam como sendo falaciosos, por não abarcarem toda a

verdade82

.

Detendo-nos no vocábulo „pastor‟, na citada formulação de „Ri‟, é possível

estabelecermos que o Google seja entendido, tal qual a Igreja cristã, como manipulador dos

seus seguidores, direcionador de seus ouvintes/usuários/ovelhas para as significações de

interesse do mundo corporativo. Indica, então, uma postura acrítica dos usuários da

plataforma de buscas, que se deixam utilizar pelas instituições, como um joguete, que não

percebem o jogo ideológico ao qual estão submetidos. É interessante, assim, a significação

atribuída pelo criticado à paráfrase de “Ri”, pois seu dizer somente apresenta sentido quando

remetido à memória discursiva, ou seja, à história do dizer, porque é nela que se encontra

sustentação para significar o Google como dominação, falta de discernimento, de coerência

intelectual e consciência ideológica. A postagem em caixa alta da frase “FOI COM MEUS

PAIS” ratifica a ideia posta na sociedade de que os genitores são os únicos que apresentam

preocupação desinteressada com o indivíduo (a despeito das relações de poder constituídas

nas relações familiares), únicos a deterem e transmitirem o conhecimento que mais importa na

sociedade – o conhecimento moral. É por estar na memória discursiva que o Google pode ser

assim interpretado.

Outro aspecto da mídia que desejamos pôr em relevo é o telejornalismo, mas

precisamente a sua linha editorial. Não analisaremos nenhum programa jornalístico

especificamente, por não se configurar em objeto de estudo nessa dissertação e, tampouco,

80

Retomamos a ideia disseminada na sociedade de que um livro é a fonte do conhecimento. Esse discurso é

plenamente assumido e divulgado pela escola, principal AIE, conforme Althusser (1998), nas aulas de Literatura,

principalmente, entendendo o ato de ler como âncora de salvação da ignorância e das dificuldades do mundo

contemporâneo. O livro é o local onde o ser humano pode encontrar todas as respostas para suas dúvidas. O livro

religioso tem esse efeito maximizado pelo sujeito-leitor. Os discursos da internet ainda não foram incorporados

plenamente aos estudos e leituras realizadas e propostas, incentivadas pela escola. 81

Qual verdade seria, dessa forma, mais verdadeira? A do livro cristão? A da internet? O sujeito em questão

entende que nenhuma das duas manifestações é, sozinha, possuidoras da verdade. 82

Vários aspectos podem ser levantados para desconstruir o sentido de Bíblia como livro da verdade.

Salientamos, apenas, a pluralidade de discursos sobre o mesmo acontecimento, o que faz desse texto religioso, a

nosso ver, manifestação de contradições ideológicas e posicionamentos diversos, portanto, interpretações

diversas.

Page 113: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

111

traremos o jornalismo impresso, pois, quantitativamente ele não é representativo para a

constituição dos sentidos sobre direitos humanos (no que diz respeito à nossa proposta).

Conforme o Ibope Mídia83

, em 2009, o tempo médio de leitura de jornais pelo grupo leitor no

país foi de 35 minutos, enquanto a TV soma 126 e a internet, 161 minutos diários, cada. Além

isso, a televisão e a rede mundial de computadores, apesar de todos os problemas a elas

relacionados, são muito mais democráticas em comparação ao jornal/revista impresso(a),

atingindo, portanto, grande parte da população. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto

FSB Pesquisa84

, 96,6% da população brasileira assiste televisão, sendo que 64,6% dos

telespectadores consideram o telejornal o programa de maior importância da programação

televisiva, sendo o Jornal Nacional, da Rede Globo, o preferido por 56,4% da audiência

brasileira. Desses, 27,4% escolhem o telejornal global devido à confiança por ele transmitida

quanto à veracidade das informações, apesar de que 72,1% dos entrevistados não atribuem

credibilidade à televisão.

Observemos a expressividade desses números. Eles ratificam a televisão como veículo

que, bem ou mal, instrui o cidadão brasileiro. Com isso, a televisão se constitui como o

aparelho ideológico responsável pela legitimação dos sentidos sobre direitos humanos na

sociedade, provendo os discursos do Orkut de “realidade significativa”, de espessura

histórica. Como a TV é a fonte de informação da maior parcela da população brasileira, há o

controle, na sociedade, da polissemia da linguagem, restabelecendo, assim, apenas os

implícitos e sentidos “possíveis” de emergir em determinadas condições de produção do

discurso, como as que determinam a emergência de sentidos na comunidade da “cidade azul”,

“Direitos humanos para humanos direitos”, ou seja, possibilitando apenas o “[...] retorno

constante a um mesmo espaço do dizível [...]” (ORLANDI, 2009, p. 137), dificultando os

deslocamentos de sentido, as rupturas, tanto quanto à natureza dos direitos humanos, quanto à

sua pluralidade e destinatários, fazendo permanecer o mesmo sentido sobre DH85

, em suas

diferentes manifestações, em suas diferentes materialidades.

Uma única sustentação histórica para configuração das significações aliada ao grau de

legitimidade do emissor (o Jornal Nacional, por exemplo) faz com que o que apareça na

televisão assuma, para os sujeitos do Orkut, um efeito de sentido de verdade e realidade,

como atestam as falas de „Anjinho‟ e „Andy Priest‟, a seguir. Aparecer na televisão, em

83

Informação da Associação Nacional de Jornais. Disponível em: <http://www.anj.org.br/a-industria-

jornalistica/jornais-no-brasil/tempo-de-leitura>. Acesso em 31 jul 2011. 84

Disponível em: <http://www.institutofsbpesquisa.com.br/blog/?p=88>. Acesso em: 31 jul 2011. 85

Salientamos que não estamos com nossa fala qualificando os discursos do telejornalismo brasileiro como

homogêneo. Referimo-nos apenas aos discursos e sentidos dominantes.

Page 114: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

112

telejornais, conduz a interpretação dos fatos noticiados (e, principalmente, das posições-

sujeito assumidas referentes a eles) como sendo crível, real, validado e atestado por uma

autoridade, já que o jornalista, conforme imagem construída na sociedade, tem como função

social a responsabilidade de prover os sujeitos de informações, “[...] de fornecer elementos

para a evolução da vida em sociedade [...]” 86

e, portanto, de consciência, efeito de sentido

similar àquele construído pelos discursos científicos já comentados nessa dissertação.

Todavia, ressaltamos que a mídia no Brasil não tem preocupação com a pauta dos

direitos humanos. Embora apresentem notícias que abarquem a pluralidade que constrói essa

temática, muitas vezes sob a forma de especiais, as iniciativas de direitos humanos de cunho

social, mais precisamente as que abarcam os direitos sociais e trabalhistas, dentre outros87

,

não são qualificadas e/ou nomeadas como sendo de DH, recebendo na maior parte dos

86

DHNET. Manual de mídia e direitos humanos. Disponível em:

<http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/dh/br/manual_midiadh/24_direitoshumanowjornalismo.htm>. Acesso

em: 29 jul. 2011. 87

Para efeito de ilustração do mecanismo de funcionamento da mídia, relembramos o recente caso de luta pelo

direito dos homoafetivos ao casamento civil. Embora as instituições midiáticas tenham feito ampla cobertura

desse processo, esse direito foi relacionado à condição de cidadania, mas não foi feita menção ampla à categoria

dos direitos humanos. Em levantamento realizado na plataforma Google, na seção Notícias

(<http://news.google.com.br/nwshp?hl=pt-BR&tab=nn> Acesso em 9 ago 2011), com a chamada “casamento

civil homoafetivo direitos humanos” apenas um link apareceu. Se mudarmos para “casamento homossexual

direitos humanos”, esse número amplia-se para nove. O baixo resultado quantitativo indica que, apesar de

constar da DUDH, artigo 16, o direito humano à constituição de uma família, a mídia não observa (ou não quer

observar) a contradição no documento, que entende família somente a partir da união de um homem e uma

mulher e não dedica-se a discutir a pauta dos direitos humanos atual, que inclui os homoafetivos como excluídos

e defende os seus direitos, haja vista que o ser humano é igual em deveres e direitos (artigo1º - DUDH), a

contrair matrimônio. Provavelmente, os discursos da mídia sobre a temática estejam filiados à formação

discursiva que não significa a união entre homoafetivos como possível e legítima e, dessa forma, impossível de

ser relacionada à categoria de direitos humanos, por ser, esta última, considerada como inerente e, portanto,

obrigatória e inquestionável. Não acreditamos que a mídia entenda os homoafetivos como destituídos da

condição de ser humano, tal qual ocorre com os infratores na comunidade da cidade azul. Com isso, a destinação

dos direitos humanos a eles não é questionável.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 115: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

113

noticiários a qualificação de solidariedade ou ainda de “Criança Esperança”88

. A mídia parece

entender direitos humanos, ou melhor, os discursos sobre essa temática como sendo apenas

aqueles oriundos de instituições que se definem como defensoras de tais direitos, como a

Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. Com isso, a pauta de

direitos humanos na mídia televisiva/cibernética resume-se a acontecimentos em que há a

necessidade efetiva de atuação dessas instituições para a salvaguarda dos direitos humanos,

tais como sua violação, pelo Estado, nas prisões e/ou guerras, silenciando as atuações desses

órgãos em outras situações.

Em pesquisa realizada no portal de buscas do Globo.com89

, que abarca as notícias dos

sites G1, Extra Online, O Globo, Telejornais e RJTV, o sintagma “Direitos humanos”

apresenta 54.470 entradas. Elencadas a partir do critério de relevância, é possível observar

que, analisadas as vinte primeiras notícias, suas temáticas giram em torno de violência/guerra,

condenação ao apoio ao Irã, protestos no Chile, o petismo no ministério brasileiro e uma

entrada sobre uma mulher que teve a barriga perfurada. Assim, podemos verificar que o

conceito de direitos humanos na/da mídia não é pleno e não abarca a pluralidade estabelecida,

por exemplo, pela DUDH e documentos posteriores, mas constrói um campo semântico para o

sintagma, que indica DH, violência e defesa de infratores como pertencentes a um mesmo

ciclo parafrástico. Explica-se, então, com a mídia, além das considerações que fizemos sobre

os locais sociais ocupados pelos sujeitos do Orkut, a motivação das temáticas preferenciais na

comunidade virtual, pois sentidos que determinam o lazer, o trabalho e a alimentação, por

exemplo, como DH, não encontram sustentação na memória discursiva, no que diz respeito

aos sujeitos e seus discursos nessa dissertação analisados.

A repetição desses sentidos e seu efeito, e a consequente estabilização parafrástica, um

dos jogos de força na memória, conforme Pêcheux (2007), ocorre também devido à

reconstrução desses implícitos fora do ambiente cibernético, ou seja, pelos programas

sensacionalistas, tais como os apresentados por Bocão (Rede Itapoan/Rede Record), Ratinho

(SBT) e Datena (Band), que são considerados programas que transmitem a realidade, sem

medo de afrontar o Estado e que têm na violência a sua principal temática90

. Observemos no

gráfico a seguir a construção da pauta desses programas. Com isso, gera-se o efeito de sentido

88

Embora a campanha “Criança Esperança” não mencione “direitos humanos”, ela está vinculada à UNESCO –

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific

and Cultural Organization), que tem como base de sustentação e razão de existência a defesa dos referidos

direitos. 89

Disponível em: <http://busca.globo.com/Busca/?query=direitos+humanos>. Acesso em 9 ago 2011. 90

Irrompe, na comunidade, a desregulação, ou seja, a perturbação da rede dos implícitos, a instauração do novo,

onde esses programas são qualificados não como detentores plenos da verdade, mas como sensacionalistas.

Page 116: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

114

de que os direitos humanos só podem ser considerados como aqueles que são

transmitidos/discutidos pela mídia, já que ela detém a legitimidade enunciativa, além de

apresentar relação interdiscursiva com a ciência, trazendo sempre elementos estatísticos como

referência argumentativa, agregando o valor de verdade a seus discursos, como é perceptível

na fala de „Anjinho‟, do dia 14.07.2006, no tópico “Seletividade do sistema penal”, destacado

na folha anterior.

Além disso, destacam-se as violações de direitos humanos e a exploração da pobreza

nesses programas, como podemos perceber no gráfico seguinte, reforçando a significação de

direitos humanos como aqueles relacionados a bandidos. Embora não sejam citados no Orkut,

com exceção de Datena, esses apresentadores lideram a audiência televisiva em seus horários.

No cenário baiano, temos Bocão como líder, o que indica que uma parte da população da

Bahia assume o mesmo posicionamento da linha editorial do programa, e seus discursos,

então, sobre direitos humanos, podem inscrever-se materialmente em uma memória, podendo,

dessa forma, significar, estabelecendo-se como uma paráfrase dos sentidos emergidos pelos

citados programas televisivos.

Assassinato Propaganda Ação Policial Merchandising Assistencialista

Bocão 8% 44% 5% 12% 9%

Na Mira 14,80% 32% 6% 17% 6%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

Enfoque da cobertura

Imagens de cadáveres

Filmar em delegacias

Exploração/ex-posição das

famílias

Imagens de crianças e

adolescentes

Sentenciamen-to

ilegal/incitação

à violência

Bocão 15% 14% 4% 4% 4%

Na Mira 33,14% 26% 7% 1% 6%

0%5%

10%15%20%25%30%35%

Principais violações

Disponíveis em: <http://acertodecontas.blog.br/midia/violacao-dos-direitos-humanos-na-tv-baiana/> Acesso

em: 9 ago 2011

Page 117: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

115

Outros discursos que dão sustentação aos dizeres na comunidade “Direitos humanos

para humanos direitos” são as imagens. Não estamos nos referindo às formações imaginárias,

relacionadas às condições de produção do discurso e à ideia de antecipação, ou seja, à

antevisão, por parte do sujeito, dos sentidos assumidos por seu interlocutor, embora ela

também seja relevante e diga respeito ao nosso corpus, uma vez que atua na estratégia de

construção do discurso (importante porque estamos diante, na “cidade azul”, de discursos

polêmicos, conforme classificação de Orlandi (2009)91

), afetando o comportamento discursivo

do sujeito, determinando os seus usos argumentativos, a partir da maneira como o “[...]

locutor representa as representações do seu interlocutor e vice-versa [...]” (ORLANDI, 2009,

p. 126), estabelecendo, portanto, um lugar para o outro no discurso92

. Referimo-nos ao que

discutimos na folha 45 dessa dissertação, quando, brevemente, trouxemos o sentido histórico

da imagem da deusa Iustitia. Ela é bastante significativa, sobretudo para os dizeres do Orkut,

por representar a base de sustentação do sentido que nomeia a comunidade analisada,

restabelecendo os implícitos e pré-construídos necessários para emergência da referida

significação.

É importante destacarmos que a significação atribuída à imagem-símbolo da justiça na

contemporaneidade é um deslocamento nas redes de memória, que promove uma ruptura do

91

Orlandi (2009) indica que o funcionamento discursivo é tipificante, ou seja, estabelece uma configuração para

o discurso, quer dizer, tipos de discurso são “cristalizações de funcionamentos discursivos distintos”

(ORLANDI, 2009, p. 153), baseados na relação entre s interlocutores, em sua reversibilidade (troca de papéis

entre eles) e suas relações com o objeto do discurso, ou melhor, com o fundamento da linguagem (paráfrase e

polissemia). Com isso, discurso polêmico é aquele em que a reversibilidade se dá sob certas condições e a

polissemia é controlada, já que a verdade é claramente disputada pelos interlocutores. Acreditamos que os

discursos da comunidade do Orkut enquadrem-se, ao mesmo tempo, na tipologia “discurso autoritário”, não pela

reversibilidade, mas porque a polissemia apresenta um nível de controle mais profundo (haja vista os

silenciamentos) e praticamente a existência de uma única verdade legitimada, ou seja, direitos humanos para

humanos direitos. Assim, os discursos da comunidade do Orkut movem-se entre o polêmico e o autoritário.

Indicamos que Orlandi (2009) estabelece ainda um terceiro tipo de discurso, o lúdico. 92

Observemos, por exemplo, como alguns sujeitos são levados a „aceitar‟ o discurso de seu interlocutor a partir

da análise das condições de produção do discurso e da “leitura” do outro, estabelecendo o seu lugar (e valor

simbólico) no processo discursivo. Ao constituir esse lugar, Rafael Off, no tópico “Quanta hipocrisia”, da

comunidade “Direitos humanos”, no dia 05.03.2009, afirma que convenceu-se de que os ativistas dos direitos

humanos defendem também as vítimas dos bandidos (“a sua informação me fez ver que os direitos humanos das

vítimas também são defendidos. Eu realmente me limitava muito a um ponto de vista que não enxergava o outro

lado da moeda. Estou muito grato pela sua informação”). Entretanto, apenas dois dias antes, no tópico “Olhem

esse cara debatendo na comunidade DH!”, da comunidade analisada nessa dissertação, mostrou-se bastante

convencido de que os DH são utilizados apenas para defesa de bandidos (“você argumentou muito bem lá na

comunidade, mr. Bigode. Quando eles ficaram colocando numeroszinhos em vez de argumentar, percebi o

quanto eles são arrogantes e alienados mesmo. Gente desse tipo me irrita”). Ao mencionar, no dia 03.03.2009, o

debate do qual ele também participara, ele demonstra que o seu posicionamento está bem marcado e ele

encontra-se bem inserido na formação discursiva que permite essa assunção de sentido. Assim, o seu discurso no

dia 5 é fruto não da argumentação de sua interlocutora, mas da pergunta final de seu discurso, no mesmo dia, já

que o argumento não era novidade na comunidade, sentidos semelhantes emergiram em todo o processo

discursivo desse tópico. Sua interlocutora o questionou: “você quer debater ou permanecer na insistência sobre

as tuas próprias convicções?”.

Page 118: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

116

sentido e o irrompimento do novo. Desta forma, a máxima “a justiça é cega” deixa de

significar a postura imparcial da justiça, por não fazer distinção de cor, credo, classe social,

gênero, dentre outras diferenças atribuídas (e atribuíveis) ao ser humano, com o objetivo de

sempre buscar o equilíbrio social, sentido “original” da balança nas mãos da deusa, e

ressignifica-se, sendo atribuídos novos sentidos aos seus elementos. Com isso, a balança,

elemento fundamental na configuração do símbolo, deixa de ter relevância, como se lá nunca

estivera presente. A espada também é elemento que, na memória discursiva dos sujeitos, não

encontra materialidade e, com isso, inexiste no símbolo reconfigurado. O único elemento que

se mantém presente é a venda que fecha os olhos da deusa, mas são outros os implícitos e pré-

construídos retomados pelos sujeitos no processo de atribuição de sentidos. Dessa maneira, a

venda é significada como sendo um empecilho para a promoção da justiça, já que, ao

contrário da ideia “original”, representa a parcialidade da instituição jurídica, funcionando

apenas para servir àqueles que apresentam posicionamentos semelhantes às das instâncias do

poder dos tribunais, do jurídico e/ou àqueles que detêm maior capital simbólico na sociedade.

Portanto, a justiça, e as leis decorrentes do sistema judiciário, são compreendidas

como promotoras do desequilíbrio na sociedade. Perde-se, então, “o trajeto de leitura”

(PÊCHEUX, 2007, p. 55) da imagem, mas, devido à sua eficácia simbólica, como indica

Davallon (2007). Há a possibilidade de reconstrução, por parte dos sujeitos, de sua origem

mítica, por ela ser um operador de simbolização, um dispositivo que, mesmo deslocando-se

do processo histórico do acontecimento que lhe deu origem, possibilita a referida

reconstrução, devido à sua organização formal e à manutenção, ao longo dos anos, de sua

“potência perceptiva”, conforme palavras de Davallon (2007), ou seja, “[...] aquele que

observa uma imagem desenvolve uma atividade de produção de significação” (DAVALLON,

2007, p. 28), independente (e ao mesmo tempo dependente) dos sentidos “originais”. Dessa

maneira, concordando com Pêcheux (2007, p. 51), sinalizamos ser a imagem “[...] um

operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um

percurso escrito discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repetição e de

reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um mito”.

Concentremo-nos no tópico “Morte estupenda de um estuprador”. Sua existência está

pautada no (e só é possível devido ao) sentido de que, para os internautas, como indica

„Romir‟, no referido fórum, cujo fragmento encontra-se a seguir, não existe justiça no Brasil

para a população civil comum, ou seja, para aqueles que, como falamos anteriormente, não

detém capital simbólico. Dessa forma, o aparelho repressor jurídico e as significações a ele

associadas apontam para o sentido de parcialidade por parte de seus representantes,

Page 119: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

117

culminando no principal argumento defendido no referido tópico: a pena de morte. A defesa

da imputação da pena capital e a assunção de sentidos condizentes com esse posicionamento

são efeitos de sentidos possibilitados pelas significações assumidas sobre a imagem acima

citada.

O descrédito nas instituições policial e jurídica é outro efeito de sentido decorrente

dessas significações e que permite a emergência não apenas do tópico tratado nesse parágrafo,

mas de toda a comunidade. As instituições são tratadas de forma irônica no discurso de Andy

Priest, a seguir, que interpreta o trabalho da justiça como sendo somente em prol daqueles que

não mereceriam, na visão dos sujeitos do Orkut, consideração do Poder Judiciário, por não

ocupar, o infrator, o local social de vítima, formação social que deveria, por direito, ocupado

automaticamente como consequência da ação do agressor, não apenas deter o destino da vida

de seu algoz, bem como ampliar o capital simbólico da vítima, já que, paradoxalmente, a

nossa sociedade atribui ao sujeito vitimado uma posição de prestígio social, por ser um

sobrevivente e, com isso, constituir-se enquanto narrador-personagem da história

contemporânea da sociedade, sobretudo urbana, caracterizada pela violência, marcando sua

participação na história da humanidade como herói do mundo moderno, adornando-se e

usufruindo do glamour proporcionado pelo acontecimento, muitas vezes, respaldado pela

mídia.

Esses sentidos legitimam os sujeitos a assumirem a função social de executores da lei,

ou seja, a polícia, e permite a emergência da significação de se fazer “justiça com as próprias

mãos” como prática possível e legítima. Outra função social requerida pelos sujeitos do Orkut

é a de legislador, por acreditarem que a lei está atrasada e beneficia apenas os bandidos, como

o discurso de „Romir‟, no topo da folha destacada. Portanto, afirmamos, mais uma vez, que a

justiça é caracterizada como sendo cega e causa do desequilíbrio que marca a sociedade.

Entretanto, essa função não é assumida pelos sujeitos devido aos embates ideológicos

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 120: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

118

existentes sobre o Poder Judiciário/Poder Legislativo e as fortes relações de poder por eles

estabelecidas, inclusive a de coerção, elemento que caracteriza suas normas como sendo de

“direito” e faz com que o local social de legislador seja palco de disputas de poder, como

sinaliza „Ri‟, em scrap a seguir.

Os sentidos sobre justiça estão atrelados aos sentidos sobre direitos humanos, haja

vista que o gozo de tais direitos é uma questão de justiça, para os orkuteiros, afinal,

lembremos, DH apresentam relação com a postura comportamental dos indivíduos em

sociedade. Com isso, já que a justiça é cega, cabe aos sujeitos da “cidade azul” a missão de

esclarecer a população virtual quanto à natureza dos direitos humanos, os malefícios de seu

emprego na sociedade atual, estabelecendo, para correção dos problemas sociais, os seus

destinatários exclusivos como sendo os humanos direitos e conclamando os orkuteiros para a

luta em prol dos cidadãos de bem.

4.2 SUJEITO DO DISCURSO E SUJEITO DO DIREITO: DISCUTINDO

RESPONSABILIDADES

No percurso discursivo pela defesa dos humanos direitos no Orkut, vários tópicos

foram criados, como já mencionamos, para esclarecer os iludidos jurídicos. Ao nos

depararmos com o tópico “Morte estupenda de um estuprador”, esperávamos encontrar relatos

pessoais, entre os comentários dos sujeitos do Orkut, que remetessem a atos que objetivassem

a resolução de crimes através de aplicação da pena desejada pela vítima, independente do

estabelecido pelos ARE/AIE jurídicos. Entretanto, o que encontramos são sujeitos que,

embora enalteçam a atitude da justiça com as próprias mãos, sentem-se receosos, de uma

maneira ou de outra, com a prática, como deixam claro os discursos de „Eder‟ (“Não se

resolve uma cagada fazendo outra até pq a justiça pelas mãos de vingadores é sempre superior

à dimensão do ato primário”) e „Percival Forever‟ (“quem somos nós para fazermos o

julgamento e execução?”), no tópico “Morte estupenda de um estuprador”.

Questionamo-nos, então, as razões que fazem da justiça pessoal um fato pontual,

apesar de percebermos ser um sentido aceito e difundido na comunidade da “cidade azul”. E

essa resposta só pode ser obtida se, mais uma vez, retomarmos um elemento fundamental que

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Page 121: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

119

constitui a linguagem e o sujeito: o poder. Dessa maneira, podemos afirmar que os sujeitos do

Orkut são, assim como qualquer sujeito, controlados pelas instâncias do Estado que,

principalmente utilizando o Direito, “[...] coagem o sujeito, insinuam-se nele de forma

discreta [...]” (HAROCHE, 1992, p. 21), disciplinando e normalizando sua subjetividade, bem

como suas ações em sociedade. Com isso, o Estado “[...] mantém uma relação coercitiva com

seus cidadãos [...]”, conforme Lagazzi (1988, p. 17), estabelecendo suas formas de controle,

como as exigências de uma língua padrão nacional, de um linguajar jurídico específico, bem

como as exigências estabelecidas pela lei. Os sujeitos, dessa forma, entendem que não podem

exercer a função social de legislador nem de executor da lei penal, haja vista que o Estado

determina ao sujeito a ideia de que somente ele é legítimo para, através da sua capacidade

exclusiva de solucionar crimes e julgar, estabelecer o devido processo legal e instituir

punições, a exemplo da de homicídio qualificado, cujo infrator é punido com detenção

máxima de 30 anos, conforme artigo 121, do Código Penal93

, e não com a pena capital, como

defendem e acreditam os sujeitos do Orkut. Assim, o Estado, a quem o sujeito deve

obediência, sobretudo no tocante ao respeito à legislação, é compreendido como “[...]

conjunto de crenças que se apoderam, ou melhor, tomam o lugar de um desejo feito de um

„dito‟, de „explícito‟ e de „lei‟ [...]” (HAROCHE, 1992, p. 192) e, com isso, pelo poder e

controle que exerce através dos ARE e AIE, é também responsável pelo processo de

constituição dos sujeitos.

A natureza dos sentidos sobre direitos humanos na comunidade do Orkut, frutos de

uma interpretação e não da inexistente relação intrínseca, natural entre as palavras e as coisas,

reflete a natureza dos sujeitos que os assumem: não se trata de indivíduos empíricos, sujeitos

idealistas, mas de sujeitos discursivos, simbólicos, frutos de uma determinação inconsciente,

ideológica e enunciativa, conforme Gallo (2001), produzidos, por conseguinte, através da

interpelação ideológica dos indivíduos, necessária para a emergência de sentidos na “cidade

azul”. O sujeito do Orkut é, então, constituído pela “[...] identificação (do sujeito) com a

formação discursiva que o domina [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 150); dessa forma, a

emergência de sentidos como “direitos humanos para humanos direitos” derivam da filiação

do sujeito a uma FD, onde o sintagma „direitos humanos‟ apresenta possibilidades de receber

sentidos. Identificamos, na “cidade azul”, duas formações discursivas básicas às quais

nomeamos DH-historicidade e DH-inerência, que, devido à inscrição dos sujeitos-internautas,

determinam as significações sobre DH, constituindo os sentidos a partir de relações

93

BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>.

Acesso em: 19 ago. 2011.

Page 122: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

120

simbólicas com duas correntes jurídicas, a saber: juspositivismo e jusnaturalismo. Sobre essas

formações discursivas especificamente, discutimos na subseção posterior.

É importante ressaltar que a interpelação ideológica ocorre através do interdiscurso, ao

fornecer ao sujeito a sua realidade. Dessa maneira, retomando o tópico “Aborto” e entendendo

o interdiscurso como “uma região de encontros e confrontos de sentidos” e que “[...] a

interpretação se alimenta exatamente dessa contradição: ao mesmo tempo em que os discursos

se confraternizam, eles se digladiam no campo social [...]” (GREGOLIN, 2003, p. 50),

indicamos que os indivíduos no Orkut são afetados pela língua em sua relação com a história

e, por isso, constituem-se como sujeitos perpassados pelas instâncias discursivas religiosas,

que os levam a assumir sentidos como os que condenam o aborto devido ao caráter sacro da

vida e à relação interdiscursiva com os discursos dos dez mandamentos bíblicos, dentre

outros, por alguns discursos dos movimentos dos excluídos, como o movimento em defesa

dos direitos da mulher em gerir o próprio corpo, sentidos que perpassam os discursos do

tópico “Aborto”, como pode ser verificado a seguir, discurso que constitui a fase atual de

debates dos direitos humanos na esfera política, pelos discursos das ciências, especialmente as

ciências biogenéticas, que almejam estabelecer o momento efetivo de início da vida,

discussão fundamental que entrecruza a constituição de sentidos sobre DH, haja vista dizer

respeito ao direito94

que possibilita os demais direitos que compõem o rol dos direitos

humanos, mas, principalmente, os sujeitos do Orkut são constituídos pelos discursos das

instituições jurídicas/estatais, convertendo-os em sujeitos-de-direito que, portanto, devem ser

dotados de direitos e deveres e nos leva à compreensão de que a interpelação torna “[...]

tangível o vínculo superestrutural [...] entre o aparelho repressivo de Estado (o aparelho

jurídico-político que distribui-verifica-controla “as identidades”) e os aparelhos ideológicos

de Estado, portanto, o vínculo entre o “sujeito de direito” [...] e o sujeito ideológico [...]”

(PÊCHEUX, 2009, p. 140 – grifos do autor).

94

Direito à vida.

Page 123: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

121

Assim, o sujeito do Orkut, devido à contradição a que está submetido, pela sua

constituição interdiscursiva diversificada é „sujeito de‟ e „sujeito às‟ instâncias ideológicas, à

história, aos discursos; é assujeitado à religião e ao Estado. Este último ponto é bastante

intrigante, pois, de acordo com Haroche (1992, p. 217 – grifos nossos), “[...] o assujeitamento

à religião não pode se confundir nem coexistir com o assujeitamento ao Estado [...]”.

Entretanto, esse fenômeno é plenamente possível na “cidade azul”, pois a comunidade

configura-se como um manifesto contra o Estado, questionando as suas práticas e seus

sentidos; mas, por outro lado, constitui-se também como uma „declaração‟ de assujeitamento

dos sujeitos ao Estado, de subordinação, opressão e disciplinarização da subjetividade desses

sujeitos pelo Estado, já que os integrantes o seguem, respeitam e desejam, buscando a

aquiescência do mesmo em relação aos seus sentidos e atitudes referentes aos DH, muitas

vezes perpassados por significações oriundas da esfera discursiva religiosa-cristã que dão

sustentação aos seus dizeres.

Cremos poder afirmar que o acontecimento discursivo no Orkut está estruturado para

chamar a atenção da sociedade em relação à temática desenvolvida, mas, sobretudo,

conclamar a presença do Estado, intervindo nele, gerando o efeito-sensação de, efetivamente,

ocupar o Estado, fazendo parte dele, pertencendo a ele, constituindo os sujeitos do Orkut

enquanto seus representantes legítimos. O Estado, portanto, é a motivação da existência da

comunidade, seus discursos são negociações de poder entre os sujeitos e a esfera estatal e tal

embate configura a identidade do sujeito do Orkut, como sujeito legítimo dos direitos

humanos, decorrente de sua identificação-interpelação, e resultante da crença na lei e na letra

jurídica, uma das marcas dos efeitos de seu assujeitamento. Ademais, somente a configuração

desse sujeito enquanto ente simbólico, ao mesmo tempo laico e confessional e o fato de que

“[...] a materialização do sujeito do discurso não se dá através de uma marca enunciativa, mas

através de uma operação sintática que define as paráfrases possíveis na relação com o

enunciado [...]” (GALLO, 1990, p. 81), permitem o estabelecimento de relações parafrásticas

na emergência de sentidos para o termo „direito‟ que, como já vimos, apresenta, na

comunidade do Orkut, estatuto sinonímico com as normas morais, que apresentam

sustentação religiosa-cristã em nossa sociedade.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 124: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

122

As determinações do interdiscurso sob os sujeitos fazem com que estes sejam

entendidos como uma posição ocupada por eles quando “[...] inscritos na estrutura de uma

formação social [...]” (CAZARIN, 2007, p. 109) e, portanto, os sentidos são uma tomada de

posição desses indivíduos interpelados, no funcionamento da ideologia. Como destacamos

anteriormente, os sujeitos não apresentam apenas um determinante e, por isso, o

estabelecimento da posição-sujeito assumida pelos integrantes do sítio da internet não pode se

dar de forma homogênea. Assim, os sujeitos da “cidade azul”, na relação do simbólico com o

político, constituem-se como uma simbiose de duas posições-sujeito, que vai gerar uma

posição-sujeito híbrida. Não queremos com isso afirmar a junção de dois lugares discursivos

homogêneos, até porque o sujeito discursivo é marcado pela dispersão e heterogeneidade;

queremos salientar apenas o processo que culminou na constituição do sujeito analisado.

Dessa forma, destacamos dois lugares que atuam para que se dê a posição-sujeito assumida na

comunidade da “cidade azul”. Assim, para simbolizar, o indivíduo, ratificamos, é interpelado

e ocupa a posição de ser humano para enunciar. Seus sentidos, então, estão filiados a lugares

que indicam o caráter biológico do ser vivo. Nessa posição, no tocante aos direitos humanos,

emergem as necessidades do sujeito mais voltadas à saciedade de seus interesses referente à

sua estrutura corporal e, por isso, o direito à vida passa a ser o mais discutido e, portanto, o

mais relevante para os internautas.

Entretanto, podemos observar que essa posição-sujeito não se encaixa integralmente

na configuração dos sujeitos do Orkut, pois eles assumem também aquela que os definem

como cidadãos. Nela, os aspectos sociopolíticos apresentam um grau de relevância maior e,

portanto, os direitos humanos revestem-se da necessidade de observância do aspecto

comportamental do indivíduo em sociedade. Dessa maneira, o sujeito é aquele que, por ser um

ser político, precisa investir-se da lei e do Estado, possuí-los e, com isso, saciar suas

necessidades, que apresentam relação com aspectos políticos e, assim, discussões como o

estabelecimento dos destinatários legítimos dos direitos humanos e quanto à legitimidade da

pena de morte apresentam maior relevância na comunidade. Sabemos serem várias as

posições assumidas pelos sujeitos no decurso de suas práticas discursivas, bem como que

“[...] no interior de uma posição-sujeito, convivem microrregiões de saber que são marcadas

pela diferença na forma de se relacionar com o efeito de unidade discursiva da posição-sujeito

[...]” (CAZARIN, 2007, p. 115-116), o que gera diferentes formas de o sujeito se relacionar

com seu discurso.

Todavia, afirmamos que no Orkut há a hibridização dessas posições-sujeito, e não

apenas a sua coexistência, pois suas significações são assumidas igual e simultaneamente

Page 125: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

123

pelos sujeitos, apresentando a mesma força simbólica. A hibridização condiz com a

constituição do sintagma „direitos humanos‟ que, como já destacamos nessa dissertação, é

marcado pela contradição: como designar um direito como sendo humano se tal categoria

comporta direitos que fazem parte especificamente de outro campo jurídico, como o direito

trabalhista? Seriam, os direitos humanos, uma espécie de direito constitucional? Não nos cabe

responder a essas perguntas nessa dissertação, mas salientamos o caráter plural dos direitos

humanos que faz com que eles sejam um campo constituído por vários outros; ele é vários em

um só; ele é híbrido. Assim, quando o sujeito do Orkut é humano, ele também é cidadão e

esses lugares afetam-se reciprocamente. Desse modo, defendemos que a hibridização das

posições-sujeito corresponde melhor ao fenômeno discursivo ocorrido no Orkut. A posição,

então, ocupada pelos sujeitos é por nós nomeada de „cidadão-humano‟. A ordem dos

elementos, para nós, na “cidade azul”, não parece ter relevância, dado à simultaneidade dos

sentidos a eles relacionados. Entretanto, preferimos a realização estabelecida para enfatizar o

aspecto jurídico-estatal dos posicionamentos, já que a temática discutida na comunidade é de

cunho jurídico e pela importância atribuída ao Estado pelos orkuteiros, como já destacamos.

O „cidadão-humano‟, então, é uma combinação da determinação religiosa e do sistema

jurídico-político no sujeito, constituindo o que é denominado de forma-sujeito. Assim, o

sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o constitui e assume a

identidade, aparentemente contraditória, de ser submisso aos sentidos estabelecidos pelas

discursividades religiosa-cristãs, em que o sujeito é extremamente limitado no seu dizer, por

estar submetido a uma entidade que não apenas é detentora de todo conhecimento sobre o

universo, possuindo todas as respostas para as questões que angustiam a existência humana,

delimitando, dessa forma, as suas significações e práticas, como demonstra o discurso de

André a seguir, bem como é possuidora do título de criador, o que converte o ser humano em

credor da instância divina, por dever a Ele a vida e a sacralidade dessa existência.

Ao mesmo tempo, o sujeito na “cidade azul” constitui-se como livre por, através da

determinação jurídica, poder ir onde desejar e expressar o que tiver vontade, tendo, aliás, o

dever de fazê-lo, sendo possuidor de direitos na sociedade em que vive. É concebido como

um indivíduo autônomo, que não apresenta dependência existencial de nenhuma entidade, que

vê no Direito o espaço de concretização de seus direitos naturais, o que atribui à instância

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 126: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

124

jurídica prestígio semelhante ao da instância divina. Com isso, põe-se em relevo o efeito

ideológico de sua interpelação, com a ideologia estabelecendo o que o sujeito é e o que deve

ser, ou seja, a ideologia “[...] fornece „a cada sujeito‟ sua „realidade‟, enquanto sistema de

evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas [...]” (PÊCHEUX, 2009, p.

149).

Devido a isso, no Orkut há a crença de que o sujeito pode expressar qualquer

significação sobre direitos humanos, como os sentidos que, na sociedade real marcada pela

defesa da igualdade, são qualificados como ilegítimos e, por vezes, ilegais, como a pena de

morte precedida de tortura ao sujeito-criminoso, a depender de seu delito, resultando daí a

necessidade do Orkut para que o sujeito possa exercer plenamente o seu direito de expressão.

Há ainda, no Orkut, a evidência de que o sujeito é único e insubstituível, ao mesmo tempo em

que é legalmente igual aos demais indivíduos da sociedade. Ressaltamos, entretanto, que a

insubstituibilidade do „cidadão-humano‟ dá-se apenas no tocante aos humanos direitos, como

temos visto ao longo dessa dissertação, pois o mau comportamento descaracteriza o sujeito

enquanto entidade humana. Assim, o poder jurídico instala-se no sujeito e procura “[...] fazer

do homem uma entidade homogênea e transparente, faz do explícito, da exigência de dizer

tudo e da „completude‟ as regras que contribuem para uma forma de assujeitamento paradoxal

[...]” (HAROCHE, 1992, p. 23). Dessa maneira, o sujeito vive sob a ilusão de que é um ser

consciente, origem de suas significações, possuidor de direitos que, embora contraditórios e

nem tão explícitos95

, fazem do sujeito o comandante da sua vida. Constitui-se, então,

enquanto sujeito-de-direito.

O sujeito-de-direito é um efeito da estrutura social capitalista e, por isso, tem relação

com o desenvolvimento econômico, responsável não apenas pelo avanço de questões

financeiras, mas pelo desenvolvimento da instituição jurídica, que passa a englobar os sujeitos

95

O inciso VII, do artigo 5º, da Constituição Federal (disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 5 nov. 2010),

estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou

política”. Entretanto, é possível a um médico entrar na justiça para solicitar autorização judicial para realização

de procedimentos médicos que vão de encontro à crença religiosa do paciente e de sua família. Malgrado ser

uma violação dos direitos humanos, conforme interpretação de alguns juristas, não é incomum uma sentença

favorável aos médicos (vide TERRADAS, Ademir. Justiça autoriza transfusão em testemunha de Jeová. Assine

Bom Dia. Disponível em: <http://www.redebomdia.com.br/Noticias/Dia-a-

dia/47137/Justica+autoriza+transfusao+em+testemunha+de+Jeova>. Acesso em: 3 mar. 2011), sob a alegação de

que o direito à vida deve sobrepor-se aos demais. Parece-nos contraditório e uma demonstração do controle do

Estado sob a vida dos sujeitos, já que uma das instâncias da vida humana é o seu aspecto cultural, um dos

elementos que nos diferencia dos animais, que a religião apresente menor valor. Importa-nos, entretanto, a ideia

de que o sujeito vive sob a ilusão de que é livre para exercer plenamente todos os seus direitos, conduzir sua vida

conforme suas crenças, embora submetido ao poder do Estado. Eis uma demonstração da interpelação ideológica

do indivíduo.

Page 127: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

125

enquanto possuidores de direitos e deveres, para que possam sustentar a maquinaria que

possibilita o desenvolvimento. Dessa forma, para Legendre (apud HAROCHE, 1992, p. 158),

[...] ser sujeito-de-direito não é nada mais que „ser para a Lei‟ /.../. isto não se dá sem

consequências, se a própria idéia do sujeito-de-direito implica, sobretudo e

finalmente [...] que no universo das instituições centralistas não haja senão um só

discurso possível e que ninguém possa avançar de rosto descoberto como tendo de

fazer valer um desejo próprio

Devido a isso, embora os sentidos dos sujeitos do Orkut divirjam do discurso oficial

sobre direitos humanos, que os atribuem a todos os seres humanos, eles são compelidos a

adotar as práticas estabelecidas pela lei porque, somente assim, passam a existir socialmente

e, com isso, podem usufruir das benesses proporcionadas pela máquina capitalista, tornadas

objetos de desejo, sem as quais a vida moderna é interpretada como inviável. Apesar de a

categoria dos direitos humanos ser significada pelos integrantes da “cidade azul” como

direitos naturais à condição de humano (com restrições), o estabelecimento do

comportamento como critério para conferência desses direitos reflete o apagamento subjetivo

a que está submetido aquele que não se enquadra nas características estabelecidas para um

cidadão brasileiro, apesar de tal qualificação no Orkut centrar-se muito mais na esfera dos

deveres do que na dos direitos, haja vista que parece não existir na comunidade virtual

nenhum sujeito que exerça plenamente os seus direitos de cidadão96

.

Esse posicionamento reflete ainda o lugar ocupado pelo sujeito na sociedade, inclusive

a virtual, como operário do poder estatal, exercendo, portanto, como dissemos, muito mais os

deveres a ele impelidos do que os direitos, ratificando, dessa forma, o caráter coercitivo do

sujeito-de-direito, como pode ser verificado nos discursos do tópico “Seletividade do sistema

penal” postos a seguir. Tal fato também explica a razão que faz com que na comunidade

virtual os direitos humanos em si, com exceção do direito à vida, através dos debates sobre

pena de morte e aborto, não sejam debatidos. Direitos como lazer, família e participação na

vida cultural não são interpretados como direitos humanos, talvez sejam significados como

conquistas pessoais dos indivíduos, independente da participação do Estado e do jurídico;

ironicamente, são esses os direitos com mais chances de se constituírem como desejos

individuais do sujeito e, por isso, como categoria passível de reivindicação social que pode

separar a sociedade em grupos muito heterogêneos, o que não é muito interessante para as

relações de poder estabelecidas pelo Estado.

96

Em verdade, afirmamos não existir cidadão pleno na sociedade, pois sempre há um direito ou um dever sendo

negado a/por um cidadão.

Page 128: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

126

Sujeito-de-direito é uma categoria valorizada e almejada pelos integrantes do Orkut,

não bastando, portanto, ser humano para ter direito a direitos; é uma premiação para os

sujeitos que, interpelados e identificados pela ideologia jurídico-capitalista, assumem os

sentidos estabelecidos pela formação discursiva que os dominam, embora o façam sob o

manto da ilusão da consciência e autonomia, como se esse fosse o seu desejo.

O sujeito-de-direito é marcado pela passividade, devido ao seu caráter coercitivo e isso

faz com que, por exemplo, os sujeitos da “cidade azul” não pratiquem justiça com as próprias

mãos apesar de entenderem ser uma prática possível. Por isso, o sujeito que, por ventura, não

se identifique com as formações discursivas que apresentam relações de paráfrase com os

posicionamentos estabelecidos pelo Estado, encontram-se alijados do sistema capitalista e são

punidos por isso. Contudo, conforme Cazarin (2007, p. 111), “[...] a forma-sujeito regula, mas

não garante a identificação plena”. Isso quer dizer que também há luta contra a evidência

ideológica da forma-sujeito e a tomada de posição pode se dar através da contraidentificação

em relação à formação discursiva na qual o sujeito encontra-se inscrito, constituindo o mau

sujeito; há ainda a tentativa, por parte do sujeito, de modo inconsciente, de reversão da

determinação, simulando “[...] o interdiscurso no intradiscurso [...] como o puro „já-dito‟ do

intradiscurso [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 154), em um processo de incorporação-dissimulação

dos elementos do interdiscurso97

.

Dessa maneira, as posições-sujeito encontradas são também resultantes de

divergências que materializam a diferença e a desigualdade no interior da formação

97

Os elementos do interdiscurso são o pré-construído e a articulação. Conforme Pêcheux (2009, p. 151), “[...] o

„pré-construído‟ corresponde ao „sempre-já-aí‟ da interpelação ideológica que fornece-impõe a „realidade‟ e seu

„sentido‟ sob a forma da universalidade (o „mundo das coisas‟).” A articulação, por sua vez, “[...] provém da

linearização (ou sintagmatização) do discurso-transverso no eixo do que designaremos pela expressão

intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo [...]; portanto, o conjunto dos

fenômenos de „co-referência‟ que garantem aquilo que se pode chamar o „fio do discurso‟.” (PÊCHEUX, 2009,

p. 153).

Extraídos do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos

direitos”.

Page 129: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

127

discursiva, como evidenciamos à folha 109, com os discursos de “Gordo, Fabiano” e “Ri”.

Assim, o fato de o sujeito do Orkut estar submisso às instâncias jurídicas e, por isso, seu

modus vivendi não condizer com todas as suas significações sobre direitos humanos, é

também indicativo de que se instalou na FD a contraidentificação, haja vista que os sentidos

sobre DH não são integralmente os mesmos estabelecidos pela ideologia dominante que os

interpelou. Desse modo, irrompe a falha, o equívoco da interpelação ideológica. Afirmamos,

então, através das palavras de Pêcheux (2009, p. 165-166) que “[...] no espaço de

reformulação-paráfrase de uma formação discursiva – espaço no qual, como dissemos, se

constitui o sentido – efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina [...]”

e é esse acobertamento das outras possibilidades semânticas, do processo de interpelação e

dos elementos do interdiscurso que permite aos sujeitos da “cidade azul” constituírem-se

enquanto sujeitos-de-direito.

Esse mascaramento das determinações que constituem o sujeito, responsável pela

ilusão de ser livre e proprietário de direitos, gestor pleno da própria vida e das significações e,

portanto, responsável pelo apagamento de sua submissão frente ao poder e de sua limitação

simbólica é um efeito da interpelação ideológica, nomeada por Pêcheux (2009) como

esquecimento n.º 1, fundamental para o funcionamento da forma-sujeito. Desse modo, o

sujeito não tem acesso ao exterior da formação discursiva que o domina, nem mesmo tem

consciência de que é fruto de um processo de interpelação, acreditando preceder ao discurso

e, assim, acredita serem os seus sentidos os únicos possíveis na esfera semântica sendo,

portanto, a relação entre as palavras e as coisas de cunho natural e inerente. Entende-se, então,

as significações emergidas sobre direitos humanos na comunidade virtual, que concebem esse

constructo político-jurídico como direitos próprios á humanidade do homem, embora o direito

seja uma categoria política e os sujeitos tenham a necessidade de utilizar um critério social – o

comportamento – para sustentar a tese da inerência dos DH. Confere-se, dessa maneira, aos

direitos humanos, um estatuto de poder que é bastante desejado pelos internautas.

Ligado ao inconsciente, o esquecimento n.º 1 opera através do funcionamento do

esquecimento n.º 2 que, ligado ao pré-consciente, tem relação com o processo de elaboração

intradiscursiva, ou seja, com o processo de seleção de enunciados, formas linguísticas (e

também não-verbais, a depender do caso) no interior da FD que domina o sujeito. Assim,

pertence à zona dos processos enunciativos e gera, no sujeito, o efeito de domínio dos saberes

objetivos da realidade, pois é fruto da ilusão da possibilidade e capacidade do sujeito em

manipular o conhecimento, selecionando as formas linguísticas mais adequadas para

expressá-lo. É por essa razão que, embora sejam possíveis diversas maneiras de externar o

Page 130: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

128

sentido assumido de que os direitos humanos são uma categoria jurídico-natural que devem

ser usufruídos apenas por sujeitos que apresentam o comportamento determinado na

sociedade, a expressão “direitos humanos para humanos direitos” seja a eleita pelos sujeitos

como a formulação que melhor expressa o sentido assumido por eles, sendo, portanto,

bastante repetida na “cidade azul”. Todavia, é importante ressaltar que, apesar de o

esquecimento n.º 1 estar relacionado a um campo inacessível ao sujeito e o esquecimento n.º 2

apresentar, por parte do sujeito, certo grau de acessibilidade, eles estão conectados, pois,

conforme Teixeira (2005), o primeiro regula a relação entre as formulações ditas e as não-

ditas no fio do discurso, devido ao segundo esquecimento. Deve-se isso ao fato de que o pré-

consciente “[...] caracteriza a retomada de uma representação verbal (consciente) pelo

processo primário (inconsciente), chegando à formação de uma nova representação, que

aparece conscientemente ligada à primeira, embora sua articulação real com ela seja

inconsciente [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 163). Ratificamos, ainda, a possibilidade do furo, da

falha no processo de interpelação, e isso inclui, portanto, os esquecimentos elencados por

Pêcheux.

Os sentidos sobre direitos humanos no Orkut, ainda que apresentem determinações

variadas, são construídos sustentando-se nas significações referentes à responsabilidade.

Mesmo que o sujeito do Orkut compreenda o ser humano como um ser histórico ou como um

ente natural, ou seja, independente da formação discursiva a que esteja filiado, a sua postura

em sociedade é critério para atribuição de direitos humanos e, por isso, a conferência de tais

direitos está vinculada à ideia do livre-arbítrio e aos deveres condizentes à condição de

cidadão. Entretanto, é possível o questionamento acerca da possibilidade de atribuição de

responsabilidade aos seres humanos, haja vista a existência de alguns entraves que podem

dificultar essa responsabilização. O primeiro deles está centrado nos discursos dos sujeitos da

“cidade azul” e diz respeito à incongruência de se ser um ente natural e, por isso, ter atitudes

consideradas antissociais, qualificadas como desvios provocados por falha de constituição

biogenética, ou seja, o indivíduo, a partir de ações que não dizem respeito às leis naturais

(pelo menos os manuais de biologia não fazem menção à associação entre comportamento

ilegal e defeito genético98

), ser qualificado como “sangue ruim”. O caráter natural do ser

humano, que poderia justificar os desvios de conduta, ou, pelo menos, servir de atenuante na

98

Existem estudos que associam hereditariedade e comportamento. Todavia, pesquisadores como Bussab (2000),

salientam que tais evidências genéticas não atuam isoladamente, sendo dependentes do estímulo ambiental. In:

BUSSAB, Vera Silvia Raad. Fatores hereditários e ambientais no desenvolvimento: a adoção de uma perspectiva

interacionista. Revista Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, v. 13, n. 2, 2000. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/html/188/18813204/18813204.html>.

Acesso em: 22 ago. 2011.

Page 131: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

129

comunidade virtual, desqualificando a pena capital como possibilidade jurídica, é interpretado

pelo viés da já citada noção de livre-arbítrio, que faz do sujeito infrator um ser responsável

pela conscientização de si mesmo e, portanto, responsável pela solução de seu problema

biogenético, tal como um enfermo é o único responsável pela correta ingestão de

medicamento prescrito por seu médico.

O segundo entrave na responsabilização do sujeito é de ordem teórica: como

responsabilizar um sujeito que não é detentor de suas significações, não tem consciência de

seu processo de constituição, vive sob o manto da ilusão da autonomia e é, ao contrário,

ideologicamente submisso? A responsabilização do sujeito ocorre a partir do processo de sua

individualização promovido pelo Estado. Com isso, ele é uniformizado, tendo a sua dispersão

apagada. Conforme Gallo (1990, p. 155), a “[...] posição-sujeito absorve as determinações

específicas (as coerções específicas) e produz um efeito de sentido determinado, um efeito de

homogeneidade, apagando as ambiguidades.” Assim, o sujeito, determinado pela língua e pela

prática da textualização imposta pelo AIE mais atuante/presente na constituição do sujeito,

conforme Althusser (1998) – a escola –, produz seus sentidos alicerçado pelo efeito de

fechamento do texto, que deve seguir sempre uma estrutura-padrão.

O Orkut, a partir desse ponto de vista, não se configura como espaço de produção nem

legitimação do novo, pois as formas textuais, nelas se incluem os scraps, devem estar

respaldadas pelo modelo de texto jurídico, com sua estrutura e seu vocabulário próprio99

, além

de ser caracterizado pela clareza, unidade e não-contradição. Com isso, o Estado, através do

Direito, impõe ao sujeito a literalidade, a necessidade da emergência do explícito linguístico,

o que faz com que o sujeito seja (e sinta-se) responsável pelos sentidos e ambiguidades

presentes no seu texto100

, também responsável pela sua organização, ou seja, pela seleção das

formas linguísticas que compõem a sequência discursiva, bem como pelo seu fechamento.

Assim, o sujeito reveste-se da ilusão da consciência de si, vê-se como uma entidade livre,

singular, uniforme, independente, coerente e, por isso, responsável, como destaca „André‟, no

fórum “Aborto”, a seguir, características atribuídas (e necessárias) ao sujeito-de-direito para

que se processem as práticas jurídicas, afinal, conforme Mariani (2010, p. 120),

99

Reiteramos que há na comunidade virtual a tentativa, por parte da maioria dos integrantes, de uso dos jargões

do universo jurídico, bem como a demonstração de conhecimento das especificidades da área o que, muitas

vezes, gera um fenômeno equivalente à hipercorreção. Vimos anteriormente que o desvio do texto padrão, com

sua linguagem especializada, é repudiado no Orkut. 100

É importante por em relevo a distinção entre discurso e texto. O primeiro, como já vimos, diz respeito à

dispersão e aos processos ideológicos, enquanto o segundo é resultante de processos enunciativos e é marcado

pela unidade. Ambos os conceitos estão conectados, sendo um efeito do outro.

Page 132: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

130

Althusser demonstra que essa categoria do sujeito-consciente-de-si, portador de uma

identidade, consciente de suas necessidades e responsável por seus atos, é necessária

à ideologia burguesa, já que, dessa forma, é possível obrigá-lo e responsabilizá-lo

em consciência. O sujeito-consciente-de-si é, também, o sujeito-(consciente)-de-

seus-atos, complemento necessário do sujeito-de-direito.

Para que isso ocorra, o sujeito assume uma função que o permite atingir, ao mesmo

tempo, a singularidade, marcada pelos processos polissêmicos do discurso, mas,

principalmente, o repetível, marcado pelo efeito de fechamento. Referimo-nos à função-autor,

que integra o processo de individualização da sociedade, singularizando e isolando o sujeito.

O autor é a função social assumida pelo sujeito que o alça à condição de produtor da

linguagem. Dessa maneira, a autoria diz respeito aos processos enunciativos e apresenta como

princípio o agrupamento do discurso, gerando, como efeito, a unidade textual. O comentário,

no Orkut, é um interessante exemplo de funcionamento dessa função, devido a dois aspectos.

O primeiro é referente ao autor enquanto produtor de uma opinião. Assim, o sujeito constitui-

se enquanto ser politizado, cônscio da estrutura sociopolítica da sociedade, capaz de nela

intervir, promovendo ações que ele julga necessária (como o convencimento de seu

interlocutor quanto à prática do aborto ou à legalização da pena de morte). A posse de uma

opinião, como evidencia a fala de „‟101

(“Quando temos uma opinião, seja lá qual

for, é ótimo, mas devemos conhecer todos os lados que envolvem o fato”102

) qualifica o autor

como detentor de conhecimento e, em uma sociedade que ainda intitula intelectual como

imortal, o sujeito é, então, inserido na estrutura de poder vigente.

101

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”. 102

É relevante observarmos que todo sujeito acredita que sua opinião é a mais completa, mais embasada que as

demais. Dessa maneira, o seu dizer está perpassado por todos os sentidos possíveis sobre a temática discutida.

Lembremos, então, da ilusão a que está submetido o sujeito, ou seja, a de que o sentido é transparente, que ele

tem acesso a todas as significações possíveis e a ilusão de que ele escolhe o sentido a adotar, quer dizer, formula

uma opinião a respeito do assunto debatido, constituindo-se enquanto autor. Sem os esquecimentos, não seria

possível o funcionamento da autoria.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 133: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

131

Outro aspecto que contribui para a noção de autoria e também está conectada à

relevância da opinião é o modo de elaboração da sequência discursiva. Ao observamos o

discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, acima, podemos

entender que a autoria em um comentário de uma comunidade virtual não se dá somente na

opinião que é emitida, mas na maneira como se dá essa emissão. Dessa forma, a ironia

expressa pelo internauta através do elemento onomatopaico “mimimi” posto antes de

palavras/expressões cotidianas demonstram que o autor é aquele que, em seu discurso, atinge

a originalidade103

, afastando-se do lugar-comum, constituindo-se, assim, o fio do discurso,

como espaço de intervenção do sujeito. Essa observação é reforçada pela frase final do

referido discurso de „Andy Priest‟ que condena o repetível enunciativo, ou seja, a cópia de

uma formulação linguística, compreendendo-o como carência de opinião e originalidade.

Desse modo, o sujeito configura-se como autor devido à sua liberdade, individualidade,

consciência, opinião e originalidade. Esses fatores fazem com que ele seja responsável pelos

seus dizeres e, por isso, enquanto sujeito-de-direito, seja passível de destituição dos direitos

humanos após constatação de inexistência de humanidade, somente possível devido ao

cometimento de delitos, como pudemos observar ao longo dessa dissertação.

4.3 DIREITOS HUMANOS: UM FENÔMENO IDEOLÓGICO

Nessa dissertação, já percorremos o caminho histórico da noção de direito e direitos

humanos e discutimos as noções de discurso, sentido e sujeito, destacando a presença da

ideologia em sua configuração. Resta-nos, então, promover a associação entre esses saberes e

a norma jurídica, entendendo-a não apenas como regra de organização da sociedade, mas

também (e talvez por conta disso) como um fenômeno ideológico: “[...] o Direito é a projeção

normativa que instrumentaliza os princípios ideológicos (certeza, segurança, completude) e as

formas de controle do poder de um determinado grupo social [...]” (WOLKMER, 2003, p.

154). Dito isso, podemos afirmar que os direitos humanos, por pretenderem-se e intitularem-

se enquanto direito, é uma prática ideológica que, como qualquer sistema jurídico, configura-

se como sendo estatal. No Orkut, a ideologia não é considerada um sistema de representações,

pelo menos não é esse o posicionamento hegemônico; ela é vista como uma postura

necessária – na maioria das vezes, de cunho somente político e/ou religioso – a ser defendida,

como demonstra Peterson em seu discurso, abaixo posto.

103

Não devemos entender originalidade como sinônimo de genialidade. Original é qualquer texto que apresenta

uma sequência discursiva única, independente dos sentidos nela inscritos.

Page 134: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

132

Ademais, a ideologia é vista como um posicionamento individual (“Falo isso que já

conheço as ideologias desse ser”)104

. Tratam-se, esses sentidos, de evidências do

funcionamento ideológico que, dissimulando sua existência, produz efeitos de sentido que

convertem a ideologia apenas em ideias e não em práticas, como teoriza Pêcheux (2009).

Pode, assim, a ideologia jurídica, por ocultar o seu funcionamento, reproduzir “[...] o jogo de

forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização

social [...]” (WOLKMER, 2003, p. 155), trazendo a marca, portanto, da classe social

dominante, fazendo com que a prática jurídica não concretize o verdadeiro interesse geral e,

dessa forma, não possa ser, o direito, considerado justo e igualitário. Reflete-se na “cidade

azul” essa configuração, pois as minorias não são evocadas nos discursos sobre direitos

humanos, como já salientamos na dissertação, com exceção da discussão que tenta estabelecer

se a pobreza é fator determinante na construção de um criminoso. A comunidade do Orkut,

então, é a representação material da ideologia dominante.

A ideologia dominante corresponde à reprodução das relações de desigualdade-

subordinação entre as regiões que compõem a cena da luta ideológica de classe, o que

significa dizer que ela funciona no interior dos AIE, que se configura como palco da luta de

classes. A ideologia dominante na comunidade, que abarca o sentido de gozo dos direitos

humanos apenas por sujeitos bem comportados, não nasceu dominante, mas tornou-se

dominante nos AIE e não se realiza sem conflitos. Portanto, os AIE “[...] não são a expressão

da dominação da ideologia dominante [...] mas sim que eles são seu lugar e meio de

realização [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 131 – grifo do autor).

A comunidade do Orkut configura-se como um espaço simbólico midiático e, por isso,

também se constitui enquanto um aparelho ideológico, que agrega como valor efeitos dos

discursos políticos, como brevemente tratamos nessa dissertação. Na “cidade azul”, a

ideologia não se impõe de forma igualitária e homogênea, fazendo com que ela não possa

“[...] ser tomada como um bloco homogêneo, idêntica a si mesma, com seu núcleo, sua

essência, sua forma típica [...] ela não existe a não ser sob a modalidade da divisão, ela não se

104

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos

humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos

para humanos direitos”.

Page 135: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

133

realiza senão dentro da contradição que organiza nela a unidade e a luta dos contrários [...]”

(PÊCHEUX, 1990, p. 8). Devido a isso, a ideologia jurídica que permite os posicionamentos

sobre direitos humanos na comunidade virtual é heterogênea, bem como os AIE, e constroem

os dois grupos antagônicos da formação social de modo diferenciado, ou seja, contribuindo de

maneira desigual para o desenvolvimento da luta ideológica.

Quando mencionamos formação social dominante no Orkut, não estamos nos

referindo à oposição clássica burguesia x proletariado, nem, mesmo já tendo citado a condição

de pobreza, trabalhamos a luta ideológica entre pobres e ricos, embora saibamos que essas

duas dicotomias são complementares às formações sociais da “cidade azul” que desejamos

destacar. Trata-se da luta entre as categorias dos „humanos direitos‟ e dos „humanos‟. Pode

parecer estranha a composição dessa díade, já que na categoria do „humanos‟ estão integrados

os „humanos direitos‟. Entretanto, retomando a concepção de que o silêncio é fundante e que,

quando falamos, silenciamos outros sentidos possíveis, fazendo do silêncio um elemento

significativo, indicamos que a categoria „humanos‟ existe para estabelecer uma posição no

discurso, ou seja, trazer à existência discursiva os „humanos tortos‟, estabelecendo-lhes

legitimação social. Dessa maneira, essa formação social, ao contrário da exata face opositora

dos „humanos direitos‟, é uma maneira mais “completa”, coerente de expor a complexa

relação de contradição-subordinação-submissão entre as formações sociais no Orkut, que vão

gerar posicionamentos variados. Ressaltamos também que a denominação escolhida põe mais

em evidência o fato de que os „humanos tortos‟ e a ideologia por eles assumida não se

constituem como elementos passivos no interior dos AIE, mas encontram-se em constante

atividade ideológica no interior do aparelho.

Pêcheux (2009, p. 132 – grifos do autor) sinaliza que “[...] a instância ideologia existe

sob a forma de formações ideológicas (referidas aos Aparelhos Ideológicos do Estado), que,

ao mesmo tempo, possuem um caráter „regional‟ e comportam posições de classe”. Advém

dessa regionalidade e da pluralidade de posicionamentos, a heterogeneidade da ideologia. As

formações ideológicas atuam nos discursos através de suas especificações, ou seja, das

formações discursivas.

Na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos” é raro localizarmos

formações ideológicas que comportem sentidos que apontem os direitos humanos como

direitos destináveis a todos os seres humanos. Devido a isso, nessa subseção, nos

concentramos em duas formações ideológicas que permitem os dizeres emergidos na

comunidade virtual, a saber: direito como ideologia e a formação ideológica „religiosa-cristã‟.

Devemos fazer sobre elas uma consideração. Embora ideologia e religião estejam em

Page 136: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

134

formações ideológicas diferentes, entendemos que a religião também se constitui como uma

prática ideológica. Essa separação foi estabelecida para que fiquem claras as divergências

semânticas presentes na comunidade virtual quanto à noção de direito. Dessa forma, o direito

pode ser visto como uma entidade divina ou como uma ideologia humana. Tais significações

foram levantadas e discutidas na seção anterior. A partir das formações ideológicas traçadas,

estabelecemos duas formações discursivas que, através de processos interdiscursivos e

baseados na noção de responsabilidade, cada uma vinculada a uma ideologia científica

jurídica, permitem a emergência de sentidos na “cidade azul”. O organograma, a seguir,

resume o que expusemos.

Page 137: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

135

135

Page 138: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

136

4.3.1 “Mas eu preciso ser Outros”105

A noção de formação discursiva surgida, conforme historiografia oficial, em texto de

Michel Foucault, de 1969, foi trazida à Análise do Discurso pelas mãos de seu fundador.

Atualmente, a noção tem sofrido muitas críticas, devido a seu caráter taxionômico, pela

relação divergente entre os pensamentos foucaultianos e marxistas, dentre outras razões,

conforme Baronas (2005). Entretanto, por outro lado, há tentativas de analistas em fazer da

FD uma noção produtiva no interior do dispositivo teórico. As formações discursivas

contribuem para a definição da identidade dos enunciados e é compreendida como sendo os

modos de o sujeito se relacionar com as ideologias, estabelecendo, a partir dessa relação, o

que pode e deve ser dito por esse sujeito em uma dada conjuntura. Dessa forma, a tão

mencionada interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia se dá através da formação

discursiva que, se constitui como representação da formação ideológica, ou seja, é seu

componente, através da interligação com outras formações discursivas e a partir de uma

posição no interior dos AIE. A interpelação efetua-se a partir do processo de identificação.

Nosso trabalho não consiste em analisar a FD a fim de estabelecer sua viabilidade ou

não no trato analítico. Todavia, duas propostas de reformulação são bastante interessantes e,

por isso, vamos, nessa subseção, trazê-las para análise dos discursos da comunidade virtual,

ainda que de forma breve.

A primeira é trabalhada por Branca-Rossof (2008) que, conforme Baronas (2005, p.

736), observa a formação discursiva também “[...] em termos de conteúdo temático, estilo

verbal e estrutura composicional [...]”, em outras palavras, a partir do gênero textual no qual o

discurso foi organizado. Pêcheux, ao definir a noção de FD, o faz através da citação de

gêneros textuais, como o sermão e o panfleto. Embora, para nós, ele o faça com o objetivo de

reforçar o caráter ideológico dos discursos e das formações discursivas, privilegiando a

compreensão de FD enquanto espaço da luta de classes, sua exemplificação através dos

gêneros dá abertura para pensarmos sua associação com o processo de emergência de sentidos

pelos sujeitos.

Branca-Rossof (2008, p. 134) afirma que “[...] a arqueologia diz respeito a objetos

estabilizados, institucionalizados, ligados ao mecanismo de poder que, consequentemente, são

objeto de técnicas de conservação [...]” e chega, no decurso de seu artigo, a questionar-se

quanto à possibilidade de trabalho com a noção de formação discursiva em textos não

105

BARROS, 2004.

Page 139: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

137

institucionalizados, constituídos por “outras vozes, menos legítimas” (BRANCA-ROSSOF,

2008, p. 134). Não teceremos, nessa dissertação, considerações acerca de todas as críticas

formuladas pela pesquisadora por não se constituir em objeto de nossa pesquisa, mas essas

citações interessam a nós devido à natureza dos nossos discursos. Embora não façamos

trabalho arqueológico, a noção de formação discursiva, como salientado, advém da

arqueologia de Foucault. Dessa maneira, a crítica formulada por Branca-Rossof (2008) nos

diz respeito porque é necessário que nos questionemos se as formações discursivas elencadas

nessa dissertação são legítimas. Sabemos que o Orkut não se configura na sociedade em

espaço simbólico institucionalizado. Todavia, já salientamos, nessa dissertação, dois aspectos

que, em nosso entendimento, possibilitam a utilização da noção em nosso corpus: o primeiro

diz respeito ao entendimento do referido site de relacionamentos enquanto AIE, que agrega

características do AIE midiático, embora apresente suas especificidades. Existem vozes no

Orkut que, na sociedade „real‟, são consideradas ilegítimas, entretanto, como já pudemos

observar, existem vozes muito prestigiadas na comunidade virtual.

Citamos, na folha 87, três integrantes da “cidade azul” que são muito atuantes e

respeitados nessa rede social. A ocorrência constante de seus nomes nos tópicos indica que

eles apresentam legitimidade perante seus pares (e opositores também, já que o debate com

esses integrantes apresenta alto valor de mercado agregado, ou seja, é considerado produtivo).

Discutimos também, nas folhas 99 e 100, a atribuição de institucionalidade aos discursos do

Orkut, através de sua qualificação como discursos políticos. Ratificamos nosso

posicionamento, reiterando que podemos qualificar como discurso político todo discurso que

apresente teor político, quer dizer, que diga respeito, direta ou indiretamente, à vida política e

pública do sujeito, característica que qualifica os discursos sobre direitos humanos. A

legitimidade desse AIE e seu poder de alcance e de interpelação reflete-se no aumento

expressivo no número de associados: em 11 de janeiro de 2011 a comunidade possuía 6.698

integrantes e, conforme levantamento realizado em 22 de agosto do mesmo ano, 7.431

internautas escolheram a comunidade em questão para a emergência de sentidos sobre direitos

humanos, identificando-se com a formação discursiva dominante que norteia a comunidade,

um acréscimo de quase 10% em apenas 7 meses.

Retornemos à proposta de Branca-Rossof em associar as noções de FD e gêneros do

discurso. Na segunda seção, já tratamos, brevemente, das implicações de uma comunidade

virtual, estabelecendo o Orkut como uma “cidade azul”. O pensamento da pesquisadora é

deveras relevante, sobretudo para nosso trabalho, devido à temática. Falar de direitos

humanos implica lidar com significações não legitimadas na sociedade e, mais que isso,

Page 140: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

138

condenadas. Já mencionamos esse fato, mas é importante reiterarmos o gênero fórum virtual.

Esse gênero, ao mesmo tempo em que reconstrói o espaço do dizível, reestabelecendo as

fronteiras da formação discursiva e, com isso, agregando significações que, em outro gênero

do discurso, não seriam possíveis de serem ditas, rechaça sentidos que outrora estavam a ela

vinculados. Na comunidade do Orkut também ocorre esse fenômeno: a pena de morte é

sentido legitimado e, acreditamos, possível de emergir em outras condições de produção do

discurso, em outras situações informais, com interlocutores considerados íntimos.

Todavia, a prática da tortura é sentido que passa a integrar, como observamos nos

discursos de „Vi‟ e „Paty‟, a seguir, a formação discursiva apenas no fórum virtual,

provavelmente porque o ciberespaço é considerado, por muitos, como “terra sem lei”, sentido

que produz o efeito de liberdade para os sujeitos-usuários, retirando-lhes a mordaça,

reduzindo, portanto, a possibilidade de sofrer retaliação, censura. Entretanto, o fórum virtual

também, enquanto gênero, permite uma prática que, fora dele, não é possível e é considerada,

do ponto de vista jurídico, uma ação ilegal: o exílio político. O ato de exilar é materializado

na comunidade através das expulsões, que são consideradas práticas normais, cotidianas,

embora não desejadas. Dessa maneira, o gênero fórum virtual contribui para a emergência dos

sentidos sobre direitos humanos, ajudando a estabelecer aquilo que pode e deve ser dito

acerca dessa categoria jurídica.

A segunda proposta de reformulação da noção de formação discursiva que nos

interessa é trabalhada pelo próprio Pêcheux (2009). Já mencionamos na dissertação que nem

sempre a tomada de posição se dá através da modalidade da identificação plena, que consiste

na ocorrência do fenômeno da reduplicação da identificação e consequente constituição do

bom sujeito, ou seja, uma repetição total e exata da forma-sujeito, que ordena e organiza a

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para

humanos direitos”.

Extraído do tópico “Olhem esse cara debatendo na comunidade DH”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos

para humanos direitos”.

Page 141: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

139

FD. Conforme Courtine (2009), uma formação discursiva pode ser reconfigurada, pois esse

processo se dá a partir do interdiscurso e é possível devido à instabilidade das fronteiras da

FD. Deve-se a isso, o fato de, no organograma, termos indicado as formações discursivas com

linha pontilhada. Não identificamos, na comunidade, a tomada de posição sob a modalidade

da identificação plena.

Ocorre, entretanto, outra modalidade, que “[...] remete para uma falha na interpelação

do sujeito, ou seja: é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode contra-identificar-se

com os saberes de sua formação discursiva [...]” (INDURSKY, 2007, p. 85). Essa segunda

modalidade de tomada de posição, da qual tratamos em folhas precedentes, instala no interior

da FD a alteridade e, com isso, justiça o seu caráter heterogêneo. A presença do Outro e a

necessidade de intercambiamento com os elementos que compõem o seu exterior contribuem

para que entendamos o funcionamento da formação discursiva.

As falhas no ritual da interpelação produzem alguns efeitos na formação discursiva: a

entrada de novos saberes, a fragmentação da forma-sujeito e a instauração de uma nova

posição-sujeito. Entretanto, para Branca-Rossof (2008), apoiada no pensamento de Dreyfus e

Rabinow, são raros os enunciados que apresentam uma capacidade de produzir os efeitos

acima elencados na formação discursiva: “[...] não se trata de atos de discurso da vida

cotidiana, mas de enunciados constitutivos da cultura de uma sociedade que só são válidos

quando uma comunidade de pesquisadores ou administradores os transmitem, comenta ou

transforma [...]” (BRANCA-ROSSOF, 2008, p. 131). Em relação a isso, em nossa análise,

não pretendemos encontrar relações interdiscursivas que geram sentidos ad eternum. Assim,

podemos visualizar a entrada de novos saberes na formação discursiva por conta de seu

interdiscurso. Tampouco, vamos fazer uma análise exaustiva de cada FD. Mas

compreendemos que é possível, no Orkut, a instauração de novos posicionamentos no interior

da formação discursiva porque, como mencionamos anteriormente, existem sujeitos com alto

capital simbólico que, devido a isso, apresentam possibilidade de transformar a formação

discursiva, ainda que os discursos sejam cotidianos, como são os do Orkut, com as

especificidades que já destacamos. Entretanto, salientamos que, embora as formações

discursivas elencadas também sejam heterogêneas e, portanto, instáveis, percebemos, nos

discursos do Orkut, a tentativa de estabilização dos sentidos, ou seja, a manutenção da

ideologia dominante e, portanto, do sentido que norteia a comunidade, ou seja, “direitos

humanos para humanos direitos”, o que faz do repetível um processo constante. Observemos

alguns pontos sobre as formações discursivas destacadas em suas relações entre si.

Page 142: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

140

Os sentidos da comunidade do Orkut sobre direitos humanos só são possíveis devido

ao intercambiamento entre as formações discursivas destacadas no organograma da página

133. Conforme indicamos no referido organograma, duas são as formações discursivas

trabalhadas. Chamaremos a formação discursiva ligada ao positivismo jurídico de DHH e a

FD ligada ao jusnaturalismo de DHI a fim de facilitar o desenvolvimento do texto. Notemos

que ambas estão vinculadas à ideia de responsabilidade, sentido que perpassa todas as

significações da comunidade virtual. Do ponto de vista histórico, o jusnaturalismo antecede o

positivismo jurídico. Tivemos a oportunidade de, na terceira seção, destacar algumas de suas

características e relacioná-las aos posicionamentos encontrados no fórum do Orkut. Dessa

forma, faremos, a respeito da formação discursiva isoladamente apenas considerações

pontuais. Interessa-nos mais, nessa subseção, a contribuição que cada FD dá à outra para que

se processe na comunidade a emergência dos discursos.

A DHI, como podemos observar no organograma, está associada a duas formações

ideológicas: uma de modo direto, a „religiosa-cristã‟, e a „direito como ideologia‟, que

apresenta uma relação indireta. Deve-se isso ao fato de que a inerência, característica básica

que a difere da outra formação discursiva, apresenta conexão com a religiosidade. Assim, o

direito apresenta relação parafrástica com o sentido de divino, ou seja, perfeição, correição.

Direito é, então, toda atividade ou atitude considerada correta que segue ou supera os padrões

comportamentais estabelecidos, sacralizando assim, a noção jurídica, o que impossibilita os

homens de questionarm o Direito, devido à sua condição de ser vivo pecador, como pode ser

verificado a seguir, no scrap de „Percival Forever‟ no tópico “Quem é a igreja para falar de

direitos humanos”. Decorre disso que ações consideradas desvios do padrão, ou melhor,

sujeitos que praticam tais ações, perdem a (ou têm constatada a falta de) divindade em sua

existência e, com isso, não são possuidores dos direitos humanos.

A relação indireta deve-se à pluralidade de ideologias jurídicas e, portanto, há a

necessidade de se estabelecer um recorte e indicar a qual corrente ideológica a DHI encontra-

se filiada, ou seja, é sua componente. Isso não quer dizer que o jusnaturalismo seja

homogêneo. Embora todas as suas doutrinas apresentem um núcleo central, ou seja, assumem

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos

humanos para humanos direitos”.

Page 143: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

141

a lei jurídica como sendo natural, eterna e imutável, legitimando, assim, sentidos que indicam

a pena de morte como a única solução viável para a criminalidade, pois a imutabilidade da lei

é interpretada como indicação da imutabilidade do homem, pode-se indicar que três doutrinas

jusnaturalistas diferentes encontram eco na comunidade virtual, sobretudo as duas primeiras

conjugadas: a cosmologia valoriza a natureza das coisas. Esse é um dos sentidos mais

relevantes da “cidade azul”, por também nortear as demais significações. Já vimos que,

embora o comportamento seja interpretado como critério na atribuição dos direitos humanos,

ele está vinculado, para os sujeitos do Orkut, à natureza do ser humano. Dessa forma, a

natureza humana será tomada como ponto de partida para a constituição do direito,

ressaltando-se que, em verdade, essa natureza é considerada pelos internautas como

proveniente de Deus, quer dizer, o ser humano, que é dotado de racionalidade, é a expressão

material da razão divina, feito à imagem e semelhança do Criador. Dessa maneira, no interior

da DHI, o direito passa a ser compreendido como “[...] uma transferência de obrigações

providenciada por Deus no ato da criação [...]” (HECK, s.d., p.16), sendo, portanto, natural

porque imanente à natureza divina. Percebe-se, então, que a doutrina teológica, que tem em

Deus a instância normativa e é contemporânea da aristocracia feudal, encontra-se diluída na

cosmologia, construindo, assim, a base de sustentação, no Orkut, das significações dos

direitos humanos como direitos naturais. A terceira doutrina jusnaturalista é a antropológica e

diz respeito às razões humanas.

A DHH na sociedade em geral, por sua amplitude e pela classe social a qual está

vinculada, geralmente, é tida como a dominante. Tal fato não ocorre na “cidade azul”. Essa

formação discursiva é marcada pelos sentidos de direito como entidade coercitiva, pela

valorização da neutralidade (embora saibamos da impossibilidade de sermos neutros, pois a

linguagem é palco da manifestação das lutas de classes e o discurso, então, é fruto de

processos ideológicos) e do tecnicismo formalista, e “[...] sua validade e imputação

fundamentam-se na própria existência de uma organização normativa hierarquizada [...]”

(WOLKMER, 2007, p. 161). Observemos que todas as características que elencamos nesse

parágrafo para a DHH também se encontram filiadas à DHI. Isso ocorre devido a dois fatores:

no diálogo entre as formações discursivas, a DHH assume os sentidos de imutabilidade e

inerência provenientes da DHI.

É necessário entendermos que o caráter imutável não diz respeito às leis106

, mas à

natureza do ser humano. Dessa forma, o sujeito inscrito na DHH também assume a pena de

106

Acreditamos que os sujeitos filiados à DHI deslizam-se constantemente entre as duas formações discursivas

no momento de atribuir sentido à imutabilidade da lei. Não há expresso na comunidade, por parte desses sujeitos,

Page 144: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

142

morte como punição exemplar por entender que o sujeito-infrator tem sua natureza, essência

corrompida. Isso faz com que o sentido básico da DHI também seja assumido pelo indivíduo

interpelado pela DHH, convertendo-se em uma das mais importantes significações da

comunidade: a inerência. Assim, é inerente à condição de humano direito a atribuição de

direitos humanos. Para que se processe, conforme sentidos assumidos pelos sujeitos, a

instauração da pena capital e o reequilíbrio social, é necessária, de acordo com suas filiações,

a assunção do sentido da lei enquanto criação de uma instituição estatal, princípio da DHH,

por configurar-se em elemento “palpável” para os sujeitos, o que permite vislumbrar a

mudança no código penal e, portanto, a realidade dos direitos humanos. Ademais, é

importante ressaltarmos que os sujeitos encontram-se no interior de AIE, que permite a

circulação do sentido do Estado enquanto instituição legisladora legítima.

É interessante observarmos que o direito reveste-se de um estatuto capitalista e

configura-se como algo a ser possuído e o sujeito-de-direito enquanto proprietário, um ser

consumidor, cujo preço é o comportamento condizente com a estrutura sociopolítica vigente,

incluindo nessas normas comportamentais a restrição discursiva, quer dizer, a impossibilidade

de emergência de alguns sentidos, ocorrendo, como já dissemos algumas vezes, esse

funcionamento também na comunidade virtual, sob a forma dos silenciamentos. Essa é uma

prática determinada pela DHH que, por representar a ideologia jurídica positivista, diz

respeito à manifestação da vontade humana. Conforme Wolkmer (2003, p. 159), “[...] a

concepção ideológica do liberalismo jurídico-burguês definia, claramente, que, em face de sua

lei, todos eram livres e iguais, mas sob a condição de que todos fossem e se tornassem

burgueses [...]”, compelindo o sujeito a assumir as mesmas significações e comportamento,

bem como restringindo, dessa forma, o que se pode interpretar, na comunidade, por vontade

humana. Dessa maneira, o homem, para os sujeitos do Orkut, apresenta desejos que não

condizem com o ideal de fraternidade postulado pelo discurso oficial dos direitos humanos, e,

além disso, coloca-se como sujeito participativo dos interesses da coletividade devido ao fato

de pagar os impostos estabelecidos pelo aparelho estatal, sentido presente em discursos

oriundos de campanhas veiculadas pelo Estado que atribuem o “ser” cidadão à prática do voto

– obrigatório – e regularização fiscal, como, por exemplo, as campanhas anuais para

pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU e do Imposto sobre a Propriedade

de Veículos Automotores – IPVA, como evidencia o discurso de a seguir, no

tópico "Aborto”.

que as leis não mudem. Todavia, há menção apenas na aplicação da pena capital, o que nos faz entender que a

„correção‟ dessa lacuna jurídica é suficiente para atribuir às leis o estatuto de eternidade.

Page 145: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

143

Essas observações, embora caracterizem os sentidos da DHH, também são possíveis

de serem feitas com referência à DHI, haja vista a abertura dessas formações discursivas a

seus exteriores, o que faz com que ocorra a entrada desses novos saberes, promovida pela (e

também promovendo) a falha no ritual de interpelação. Assim, mesmo identificando-se com a

DHH, e, portanto, sendo por ela interpelado, o sujeito assume o sentido de direito enquanto

propriedade, assim como em detrimento da universalidade, prioriza os interesses individuais e

considera o Estado como o exclusivo legitimador jurídico.

Desejamos finalizar essa seção tecendo um breve comentário acerca da correlação

estabelecida pelos orkuteiros: direitos humanos = direitos dos manos. Embora, como já

dissemos, não haja, na “cidade azul”, a referência explícita, de modo assertivo e hegemônico,

à pobreza como causadora da criminalidade, indicamos haver a ressignificação, pelos sujeitos,

da expressão “manos”, gerando novo efeito de sentido. Relativo às culturas das periferias

urbanas, normalmente utilizado ao lado da palavra “minas”, uma gíria para meninas, o termo

em questão representa os rapazes da comunidade periférica: por ter o costume de chamarem-

se pela designação “irmão”, o grupo estabeleceu uma nova gíria para constituir uma marca

identitária: “manos”. Todavia, podemos perceber que a filiação ideológica que permite essa

atribuição de sentidos, ou seja, „mano‟ como sinônimo de „irmão‟, não é a mesma assumida

pelos sujeitos do Orkut, que identificam esse termo com a ideia de marginalidade,

estabelecendo, assim, novas relações parafrásticas. Entendemos, assim, haver uma prática

discriminatória, pois criminosos oriundos de classes sociais de alto poder aquisitivo, bem

como os políticos, não são incluídos nos discursos da “cidade azul”, nas significações sobre

direitos humanos que excluem os sujeitos que praticam ações delituosas, ainda sendo

considerados humanos direitos ou, ao menos, tendo preservada a sua humanidade.

Vemos, então, que a DHH atua no processo de emergência de sentidos sobre a

categoria analisada na dissertação, possibilitando que os pobres sejam alijados do processo

jurídico, ratificando o sentido de direito enquanto propriedade. Embora a DHI atue com mais

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Page 146: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

144

frequência na interpelação dos sujeitos do Orkut, devido ao sentido de inerência dos direitos

humanos, entendemos que é o diálogo entre as duas formações discursivas que possibilita os

sentidos hegemônicos na comunidade virtual.

Page 147: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

145

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo de escrita dessa dissertação, constantemente nos referimos à análise de

discursos da comunidade virtual ou aos sentidos do Orkut. Não pretendemos com esses

dizeres indicar que exaurimos as possibilidades de análise, nem mesmo que atingimos todos

os sentidos possíveis sobre direitos humanos nesse sítio do Orkut, até porque, segundo

Pêcheux (2011, p. 291), “[...] a Análise do Discurso não pretende se instituir em especialista

da interpretação, dominando „o‟ sentido dos textos, mas somente construir procedimentos

expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito.” Procuramos

demonstrar quais eram as significações hegemônicas, em uma tentativa de compreendermos o

processo de constituição do sentido “direitos humanos para humanos direitos” que norteia a

comunidade.

O nosso percurso de análise pautou-se na pergunta que intitula essa dissertação:

“direitos humanos para humanos direitos?”. Dessa forma, entendemos que esse trabalho

dissertativo parte da reflexão do homem sobre o homem, suas relações com a sociedade e com

seus pares. Assim, pudemos perceber que os direitos humanos, embora sejam constituídos

como categoria jurídica, funcionam como categoria moral, destituídos do caráter de

juridicidade. Dessa maneira, a pergunta norteadora desse trabalho, na comunidade virtual,

apresenta como possibilidade apenas a assunção do sentido que a afirma, ou seja, os direitos

humanos devem ser atribuídos somente a indivíduos merecedores do gozo de tal premiação.

Entretanto, é possível afirmarmos que a pergunta que norteia a dissertação não

perpassa a comunidade virtual, pois as significações sobre direitos humanos não emergem a

partir de questionamentos dos sujeitos, mas de certezas pautadas na prática em sociedade,

que, aos seus olhos, os excluem da efetiva participação cidadã. Dessa forma, entendemos que

a assunção do sentido “direitos humanos para humanos direitos” configura-se como a única

reação possível para o sujeito internauta aos elementos que o incomodam, como a crescente

criminalidade, que o priva da plena vida em sociedade. Assim, para nós, não há

questionamento, pois, para que ele venha à tona é necessária a existência de duas ou mais

possibilidades de realização dos direitos humanos, ou seja, são destinados aos humanos ou

são destinados aos humanos direitos, o que não ocorre na comunidade virtual. Entendemos

que o sujeito do Orkut é um sujeito sem escolha e, devido a isso, a pergunta que nós tentamos

responder nessa dissertação não se configure como uma possibilidade para ele.

Entendemos ainda que a inexistência de escolha por parte do sujeito cibernético deve-

se à necessidade de sua reafirmação enquanto ser humano, tais como os movimentos de

Page 148: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

146

afirmação dos grupos sociais minoritários, como os negros e as mulheres. Assim, em uma

tentativa de fazer do sujeito um ser jurídico, condizente com a pós-modernidade, é constituída

uma forma única de se ser humano e, com isso, as manifestações que se afastam do modelo-

padrão comportamental traçado são destituídas de humanidade e, assim, dos direitos

humanos. Com isso, queremos afirmar que, para significar os direitos humanos, é importante

para os internautas a definição de quem eles são, pois os referidos direitos podem ser a única

forma de resgatar a humanidade dos indivíduos e, portanto, da sociedade.

Ademais, a inexistência, na comunidade virtual analisada, de tópicos que discutam a

tipologia de direitos humanos indica que essa categoria configura-se como uma reafirmação

do local social almejado pelos internautas: cidadão. Dessa forma, os direitos humanos são

atribuídos apenas aos humanos direitos, pois a cidadania exige não apenas o gozo de direitos,

mas, sobretudo em nossa sociedade, a realização de deveres. É por isso, por exemplo, que

elementos destacados como demonstração genuína da cidadania e da democracia em pleno

século XXI ainda funcionam como obrigação, ou seja, através da figura deôntica do dever,

como o direito ao voto. Assim, vemos que os direitos humanos são configurados como

deveres humanos e, a posteriori, convertem-se, ou melhor, podem converter-se em „direito‟.

Dessa maneira, os humanos direitos são os „escolhidos‟ por constituírem “o” grupo capaz de

estabelecer essa conversão.

Com vistas ao que foi possível depreender dos discursos emergidos na comunidade

virtual analisada, esperamos ter contribuído para as discussões que tentam estabelecer se os

direitos humanos constituem-se em disciplina jurídica. Para isso, acreditamos que as

significações sobre tais direitos no Orkut possam indicar um caminho, já que se configuram

como sentidos que circulam na sociedade, ampliando a instância jurídica, interpretando o

direito não apenas como a norma produzida por um grupo específico, mas como sentido que

estabelece o modus vivendi na sociedade. Como consequência, entendemos que as discussões

sobre DH no Orkut contribuam também para a ampliação da noção de sujeito jurídico, tão

cara ao Estado de direito, no qual, pelo menos do ponto de vista teórico, vivemos, em

oposição ao antigo Estado de nascimento. Dessa forma, o sujeito jurídico não é apenas aquele

ser dotado de direitos e deveres, mas também aquele que reflete sobre sua condição jurídica e

política, e atua para que suas significações sobre o direito não sejam interpretadas como

meros devaneios de um sujeito pseudo-consciente, mas sejam entendidas como possibilidade

a ser analisada pela coletividade.

Esperamos ter colaborado também para que a percepção do site de relacionamentos

Orkut não seja mais vinculada apenas a posicionamentos que o interpretam como espaço de

Page 149: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

147

adolescentes desocupados, pessoas solitárias ou somente como demonstração de popularidade

de pessoas exibidas, narcisistas, através da exposição da sua vida particular. O Orkut é

também espaço em que o sujeito tem ampliada a possibilidade de exercer a sua liberdade de

expressão, no sentido de que, para os internautas, há liberdade no espaço virtual e, portanto, a

comunidade do Orkut apresenta menos restrições para os sujeitos se posicionarem, ou seja,

para a sua prática discursiva, em comparação ao mundo fora do ciberespaço (sensação

experimentada, provavelmente, por estar o sujeito interpelado, tendo a ilusão de não tê-las.

Surgem, no Orkut, como pudemos observar, novas formas de submissão do sujeito, como as

ameaças de expulsões dos tópicos/comunidade). Assim, o sujeito emite significações, ainda

que impossíveis para além do espaço virtual, acerca de temas polêmicos (a quem podem falar

tão abertamente sobre suas preferências punitivas, como a tortura e a pena de morte, no

mundo „real‟?) e/ou temas que são necessários para a constituição da sua subjetividade, como

as crenças religiosas.

Finalizamos esse trabalho dissertativo ratificando que, embora as discussões sejam

pautadas na busca pela resposta à pergunta “direitos humanos para humanos direitos?”,

entendemos que ela não seja o resultado mais importante, mas compreendemos que o

estabelecimento da pergunta, ausente na comunidade virtual, seja o ponto principal do

trabalho, afinal a vida jurídica, para nós, implica um eterno questionamento de si, de suas

necessidades humanas e, por fim, da concretização dos direitos e dos indivíduos enquanto

sujeitos jurídicos.

Page 150: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

148

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Homem. In: _______. Dicionário de filosofia. 5.ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2007.

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,

1998.

ALVES, José Augusto Lindgren. A Declaração dos direitos humanos na pós-modernidade. In:

_______. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 21-41

ARAÚJO, Júlio Cesar; LOBO-SOUSA, Ana Cristina. Considerações sobre a intertextualidade

no hipertexto. Revista Linguagem em (Dis)curso, Palhoça, SC, v.9, n.3, set/dez 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. 4.ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-337.

BARONAS, Roberto Leiser. Formação discursiva: vale a pena lutar por ela. Revista Estudos

Linguísticos XXXIV. Campinas, 2005. Disponível em:

<http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publica-estudos-

2005/4publica-estudos-2005-pdfs/formacao-discursiva-vale-a-pena-

1670.pdf?SQMSESSID=a38ffc79c82bcbe561e1c641326fd16c>. Acesso em: 22 fev. 2011.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 8.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

_______. Retrato do artista quando coisa. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

BITTAR, Eduardo C. B. O jusnaturalismo e a filosofia moderna dos direitos: reflexão sobre o

cenário filosófico da formação dos Direitos Humanos. Revista Panóptica. 13.ed., 2008.

Disponível em:

<http://www.panoptica.org/artigosjulout08/PANOPTICA_013_001_017.pdf>. Acesso em: 5

jan. 2011.

BOBBIO, Norberto. O modelo jusnaturalista. In: BOBBIO, Norberto; BOVERO,

Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Brasiliense,

1986. p. 13-100.

_______. Teoria do ordenamento jurídico. 6.ed. Brasília: Editora UNB, 1995.

_______. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995b.

_______. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo:

Editora UNESP, 1995c.

_______. Teoria da norma jurídica. São Paulo: EDIPRO, 2001.

_______. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

Page 151: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

149

BRANCA-ROSSOF, Sônia. Condições de produção. In: CHARAUDEAU, Patrick;

MAINGUENEAU, Dominique (Org). Dicionário de Análise do Discurso. 2. ed. São Paulo:

Contexto, 2006. p. 114-115

_______. Formação discursiva: uma noção excessivamente ambígua? In: BARONAS,

Roberto Leiser; KOMESU, Fabiana (Orgs). Homenagem à Michel Pêcheux: 25 anos de

presença na Análise do Discurso. Campinas: Mercado de Letras, 2008. p. 127-148.

BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 2. ed. Campinas: Editora

da UNICAMP, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato (org). Pierre

Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 156-183.

______. Sobre o poder simbólico. In: _______. O poder simbólico. 10.ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2007. p. 7-16

CAZARIN, Ercília Ana. Posição-sujeito: um espaço enunciativo heterogêneo. In:

INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Org). Análise do discurso:

mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. p. 109-122.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos direitos humanos. Disponível em:

<http://www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 10 jul 2008.

CORRÊA, Cynthia Harumy Watanabe. Reterritorializações no não-lugar da rede social

Orkut. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 271 p.

COSTA, Gilberto. Nova classe média tem maioria feminina, branca e com mais de 25 anos,

Agência Brasil. 8 ago. 2011. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-

08-08/nova-classe-media-tem-maioria-feminina-branca-e-com-mais-de-25-anos>. Acesso em:

01 set. 2011.

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado

aos cristãos. São Carlos: EDUFSCAR, 2009.

CRUVINEL, Mônica Vasconcellos. Rastros virtuais de uma morte (a)enunciada: uma

análise dos discursos do suicídio pelas páginas “brasileiras” do Orkut. Dissertação (Mestrado

em Linguística). Unicamp. Campinas, 2008. 198 p.

DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da

memória. 2.ed. São Paulo: Pontes, 2007. p. 23-32.

DEMO, Pedro. Pesquisa Qualitativa. In: _______. Metodologia do conhecimento científico.

São Paulo: Atlas, 2000. p. 145-159.

_______. Pesquisa qualitativa: busca de equilíbrio entre forma e conteúdo. Revista latino-

americana de Enfermagem. Ribeirão Preto, v.6, n.2, p. 89-104, abr.1998. Disponível em:

Page 152: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

150

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-

11691998000200013&script=sci_arttext&tlng=PT>. Acesso em: 10 jul 2008.

DORNELLES, Jonatas. O Orkut e a terceira forma de sociabilidade. Revista Ciências

Sociais Urbanas. vol. 41, n. 3, p. 163-171, set/dez 2005, Unisinos.

EISENBERG, José; LYRA, Diogo. A invasão brasileira do Orkut. Revista ciência hoje. Vol.

38. n.º 226, 2006.

FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.

4.ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A abordagem sócio-histórica como orientadora da

pesquisa qualitativa. Cadernos de pesquisa. n. 116, p. 21-39, jul2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-5742002000200002&script=sci_arttext&tlng=em>.

Acesso em: 10 jul 2008.

GALLO, Solange Leda. Texto: como apre (e) nder essa matéria? Análise discursiva do

TEXTO na escola. 1990. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade de Campinas,

Campinas, 1990.

_______. Autoria: questão enunciativa ou discursiva? Revista Linguagem em (Dis)curso,

vol. 1, n. 2, jan/jun 2001. Disponível em:

<http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/172/18

6>. Acesso em: 1 abr 2011.

GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Sentido, sujeito e memória: com o que sonha nossa

vã autoria? In: GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise; BARONAS, Roberto (Orgs).

Análise do discurso: as materialidades do sentido. 2.ed. São Carlos: Claraluz, 2003.

GRIGOLETTO, Evandra. A autoria no hipertexto: uma questão de dispersão. Revista digital

Hipertextus, n. 2, jan 2009. Disponível em: <http://www.hipertextus.net/volume2/Evandra-

GRIGOLETTO.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2011.

GUIMARÃES, Gilma. Descartes: contribuições à educação. Disponível em:

<http://terra.cefetgo.br/cienciashumanas/humanidades_foco/anteriores/humanidades_5/textos/

aprovados/fil_Descartes.pdf>. Acesso em: 1 jan. 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A,

2005.

HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992.

HECK, José N. De Cícero a Grotius: breve história do direito natural. Disponível em:

<http://search.4shared.com/q/10/breve%20hist%C3%B3ria]>. Acesso em: 30 nov. 2010.

HENCKAERTS, Jean-Marie. Estudo sobre o direito internacional humanitário

consuetudinário: uma contribuição para a compreensão e respeito do direito dos conflitos

armados. Disponível em: <http://www.icrc.org/web/por/sitepor0.nsf/html/review-857-

p175/$File/review-857-p175.pdf> Acesso em: 3 mar. 2010

Page 153: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

151

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009.

INDURSKY, Freda. Da interpelação à falha no ritual: a trajetória teórica da noção de

formação discursiva. In: BARONAS, Roberto Leiser (Org). Análise do discurso:

apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. São Carlos: Pedro

e João Editores, 2007. p. 75-87.

INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Houaiss eletrônico. Versão monousuário 1.0. São

Paulo: Objetiva, 2009.

ISHAY, Micheline R. (Org.) Direitos humanos: uma antologia. Principais escritos políticos,

ensaios e documentos desde a Bíblia até o presente. São Paulo: EDUSP, 2006.

KELSEN, Hans. A doutrina do direito natural. In: _______. A justiça e o direito natural.

Coimbra: Almedina, 2001. p. 99-153

LAFER, Celso. A ONU e os direitos humanos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 25, p.

169-185, 1995. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v9n25/v9n25a14.pdf>. Acesso

em: 25 jul. 2008.

_______. Apresentação. In: BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier,

2004. p. V – XVIII.

LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988.

LEITE, Leonardo Queiroz. O direito internacional dos direitos humanos: reflexões sobre a

Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua influência no ordenamento jurídico

brasileiro. Disponível em:

<http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/O%20Direito%20Intern

acional%20dos%20Direitos%20Humanos%20-

%20reflexoes%20sobre%20a%20Declaracao%20Universal%20dos%20Direitos%20Humanos

%20e%20sua%20influencia%20no%20ordenamento%20juridico%20brasileiro.pdf>. Acesso

em: 5 dez. 2010

LEVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

_______. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

MAGALHÃES, Belmira; MARIANI, Bethania. Processos de subjetivação e identificação:

ideologia e inconsciente. Revista Linguagem em (Dis)curso, Palhoça-SC, v. 10, n. 2,

mai/ago 2010. Disponível em:

<http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/1002/100207.pdf>. Acesso em: 15 dez.

2010.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão do suporte dos gêneros textuais. Disponível em:

<http://BBS.metalink.com.br>. Acesso em: 18 abr. 2011.

Page 154: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

152

MARIANI, Bethânia. Textos e conceitos fundadores de Michel Pêcheux: uma retomada em

Althusser e Lacan. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 54, n. 1, p. 113.127, UNESP,

2010. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/2882/2656>. Acesso em: 14

mai. 2011.

MBAYA, Etienne-Richard. Gênese, evolução e universalidade dos direitos humanos frente à

diversidade de culturas. Estudos avançados II, São Paulo, n. 30, p. 17-41, 1997. Disponível

em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v11n30/v11n30a03.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2009.

MÉNDEZ, Emilio García. Origem, sentido e futuro dos Direitos Humanos: reflexões para

uma nova agenda. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 1, número 1,

p. 7-19, 2004. Disponível em:

<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18297/Origem_Sentido_e_%20Futuro_d

os_Direitos.pdf?sequence=4>. Acesso em: 5 dez. 2010.

MONDIN, Batista. O homem, quem é ele?: elementos de Antropologia Filosófica. São

Paulo: Paulus, 1980.

OLIVEIRA, Gilvan Müller de (Org.) Declaração universal dos direitos linguísticos: novas

perspectivas em política linguística. Campinas: Mercado de Letras, Associação de Leitura do

Brasil; Florianópolis: IPOL, 2003.

ORLANDI, Eni. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4.ed. Campinas: Pontes,

2002.

_______. O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo. In: INDURSKY, Freda;

FERREIRA, Maria Cristina Leandro (org.). Análise do discurso: mapeando conceitos,

confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. p. 11-20.

_______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6.ed. Campinas: Editora da

Unicamp, 2007b.

_______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5.ed. Campinas:

Pontes, 2007c.

_______. Discurso e leitura. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

PÊCHEUX, Michel. Remontemos de Foucault à Spinoza (1977). In: MALDIDIER, Denise.

L’inquietude du discours. Paris: Cendres, 1990. Tradução de Maria do Rosário Gregolin.

mimeo.

_______. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. 2.ed. São Paulo:

Pontes, 2007. p. 49-57.

_______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4.ed. Campinas: Editora

da UNICAMP, 2009.

_______. Sobre os contextos epistemológicos da Análise de Discurso. In: ORLANDI, Eni

(Org). Análise de discurso: Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, 2011. p. 283-294.

Page 155: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

153

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Os sessenta anos da declaração universal: atravessando um mar de

contradições. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 9, p. 76-87,

2008. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/sur/v5n9/v5n9a05.pdf>. Acesso em: 2 jun.

2010.

PINSKY, Jaime. Os profetas sociais e o deus da cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY,

Carla Bassanezi (Orgs). História da cidadania. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 15-27.

PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos.

Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 20-47, 2004.

Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/sur/v1n1/a03v1n1.pdf>. Acesso em: 12 set. 2009.

PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattias Pascal. São Paulo: Editora Nova Alexandria,

2007.

POSSENTI, Sírio. Ainda sobre a noção de efeito de sentido. In: GREGOLIN, Maria do

Rosário Valencise; BARONAS, Roberto (Orgs). Análise do discurso: as materialidades do

sentido. 2.ed. São Carlos: Claraluz, 2003.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Cap. 1, 5

e 7.

SACHS, Ignacy. O desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos. Estudos

Avançados 12, São Paulo, n. 33, p. 149-156, 1998. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/ea/v12n33/v12n33a11.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2011.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27.ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

SILVA, Carolina Parreiras. Sexualidades no ponto.com: espaços e homossexualidades a

partir de uma comunidade on-line. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Unicamp.

Campinas, 2008.

SILVA, José Afonso da. A Declaração de Direitos. In: _______. Curso de direito

constitucional positivo. 18.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

SOARES, Maria Victória de Mesquita Benevides. Cidadania e direitos humanos.

Disponível em: <http://www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 10 jul. 2008.

SZKLARZ, Eduardo. Quando começa a vida? Revista Super Interessante: 30 maiores

mistérios da ciência. 2007. 240. ed. Disponível em:

<http://super.abril.com.br/revista/240a/materia_especial_261570.shtml?pagina=1>. Acesso

em: 4 jul. 2011.

TAVARES, Fernando Horta. O direito nas sociedades primitivas: algumas considerações.

Disponível em:

<http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/Ano2_08_2003_arquivos/Docente/O%20Direito%20

nas%20Sociedades%20Primitivas.doc>. Acesso em: 10 jan. 2011

TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e Psicanálise: elementos para uma abordagem do

sentido no discurso. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

Page 156: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no ... (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena,

154

VASAK, Karel. La larga lucha por los derechos humanos. Unesco Courier, 1977.

XAVIER, Antônio Carlos dos Santos. O hipertexto na sociedade da informação: a

constituição do modo de enunciação digital, 2002, Tese (Doutorado em Linguística).

Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002. 220 p.

XAVIER, Antônio Carlos dos Santos. SANTOS, Carmi Ferraz. O texto eletrônico e os

gêneros do discurso. Veredas, Revista de Estudos Linguísticos. Juiz de Fora, v.4, n. 1, p.

51-57, 2000.

WOLFF, Francis. As quatro concepções do homem. In: NOVAES, Adauto (Org). A condição

humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo:

Edições SESC SP, 2009. p. 37-73.

WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e ideologia. In: _______. Ideologia, Estado e direito.

4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 154-179.