54
Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas Departamento de História Orientadora: Profª. Drª. Diva do Couto Gontijo Muniz A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823 Cecília Siqueira Cordeiro Brasília, Dezembro de 2013

Universidade de Brasília Departamento de História ...bdm.unb.br/bitstream/10483/6954/1/2013_CeciliaSiqueiraCordeiro.pdf · Resumo O presente trabalho analisa o intenso debate levado

Embed Size (px)

Citation preview

Universidade de Brasiacutelia

Instituto de Ciecircncias Humanas

Departamento de Histoacuteria

Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz

A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia

Dezembro de 2013

Universidade de Brasiacutelia

Instituto de Ciecircncias Humanas

Departamento de Histoacuteria

Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz

A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823

Monografia apresentada ao Departamento

de Histoacuteria do Instituto de Ciecircncias

Humanas da Universidade de Brasiacutelia para

a obtenccedilatildeo do grau de licenciadobacharel

em Histoacuteria

Banca Examinadora

Professora Doutora Diva do Couto Gontijo Muniz (Presidente) ndash HISUnB

Professora Doutora Ione de Faacutetima Oliveira ndash HISUnB

Mestre Fabiana Francisca Macena (Mestre e doutoranda pelo PPGHISUnB)

Brasiacutelia

Dezembro de 2013

Agradecimentos

Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo

amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave

minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha

educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu

pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena

Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e

continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora

longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio

oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela

assistecircncia

Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim

pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e

dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste

trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos

demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o

prazer de conviver os quais me formaram como historiadora

Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde

meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de

Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias

duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos

amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle

Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme

Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena

Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros

emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito

carinho

Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior

Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs

Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein

Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por

fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na

minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada

Resumo

O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral

Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O

debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava

sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A

mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram

favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam

dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave

forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os

Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal

em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se

apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do

Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade

Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo1

1 A liberdade no debate constitucional3

11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8

12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12

2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19

21 Os limites juriacutedicos19

22 O clero brasileiro25

23 O papel da Igreja no Brasil27

3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330

Consideraccedilotildees finais44

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

Universidade de Brasiacutelia

Instituto de Ciecircncias Humanas

Departamento de Histoacuteria

Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz

A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823

Monografia apresentada ao Departamento

de Histoacuteria do Instituto de Ciecircncias

Humanas da Universidade de Brasiacutelia para

a obtenccedilatildeo do grau de licenciadobacharel

em Histoacuteria

Banca Examinadora

Professora Doutora Diva do Couto Gontijo Muniz (Presidente) ndash HISUnB

Professora Doutora Ione de Faacutetima Oliveira ndash HISUnB

Mestre Fabiana Francisca Macena (Mestre e doutoranda pelo PPGHISUnB)

Brasiacutelia

Dezembro de 2013

Agradecimentos

Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo

amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave

minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha

educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu

pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena

Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e

continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora

longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio

oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela

assistecircncia

Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim

pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e

dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste

trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos

demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o

prazer de conviver os quais me formaram como historiadora

Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde

meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de

Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias

duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos

amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle

Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme

Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena

Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros

emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito

carinho

Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior

Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs

Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein

Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por

fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na

minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada

Resumo

O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral

Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O

debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava

sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A

mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram

favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam

dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave

forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os

Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal

em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se

apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do

Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade

Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo1

1 A liberdade no debate constitucional3

11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8

12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12

2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19

21 Os limites juriacutedicos19

22 O clero brasileiro25

23 O papel da Igreja no Brasil27

3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330

Consideraccedilotildees finais44

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

Agradecimentos

Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo

amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave

minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha

educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu

pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena

Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e

continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora

longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio

oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela

assistecircncia

Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim

pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e

dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste

trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos

demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o

prazer de conviver os quais me formaram como historiadora

Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde

meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de

Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias

duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos

amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle

Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme

Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena

Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros

emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito

carinho

Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior

Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs

Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein

Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por

fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na

minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada

Resumo

O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral

Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O

debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava

sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A

mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram

favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam

dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave

forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os

Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal

em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se

apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do

Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade

Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo1

1 A liberdade no debate constitucional3

11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8

12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12

2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19

21 Os limites juriacutedicos19

22 O clero brasileiro25

23 O papel da Igreja no Brasil27

3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330

Consideraccedilotildees finais44

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

Resumo

O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral

Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O

debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava

sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A

mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram

favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam

dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave

forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os

Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal

em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se

apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do

Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade

Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo1

1 A liberdade no debate constitucional3

11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8

12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12

2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19

21 Os limites juriacutedicos19

22 O clero brasileiro25

23 O papel da Igreja no Brasil27

3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330

Consideraccedilotildees finais44

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

Sumaacuterio

Introduccedilatildeo1

1 A liberdade no debate constitucional3

11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8

12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12

2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19

21 Os limites juriacutedicos19

22 O clero brasileiro25

23 O papel da Igreja no Brasil27

3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330

Consideraccedilotildees finais44

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

1

Introduccedilatildeo

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de

Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na

Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na

votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos

artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de

funcionamento da Assembleia

O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja

Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu

comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado

a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os

deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash

preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da

esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem

entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash

nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute

catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a

manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes

A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil

do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando

nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco

conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico

nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica

constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a

aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira

Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de

ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que

reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual

A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que

o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

2

deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar

agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e

que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se

reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou

o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1

Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema

levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio

segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e

liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a

conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos

absolutistas como o Poder Moderador

1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX

permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal

Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

3

1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL

A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a

ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees

seratildeo permitidas com seu culto domestico ou

particular em casas para isso destinadas sem foacuterma

alguma exterior do Templo

Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm

O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial

do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma

alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas

linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da

liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a

dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da

agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela

A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a

primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash

como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel

que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de

forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar

os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de

definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial

Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da

Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho

de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a

Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as

Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador

acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a

2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da

Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-

noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES

Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p

386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do

Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

4

Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro

celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas

Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute

dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e

seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da

Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de

VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6

As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas

integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e

estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de

primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a

incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam

salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os

paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os

Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees

parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a

relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela

exatidatildeordquo10

dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um

domingo

reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa

solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou

outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()

Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo

se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando

os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o

primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas

Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os

Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11

5 Idem

6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822

7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees

Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822

10 Idem

11 Idem

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

5

As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo

poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12

e deveriam partir para o Rio de Janeiro o

quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves

Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia

segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da

Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato

Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo

(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio

Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13

Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no

consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela

Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave

Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao

juramento sobre os Evangelhos14

Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os

trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro

cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua

dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15

O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha

encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia

histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido

deputados constituintes16

e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em

princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash

natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo

12

Idem 13

Idem 14

Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud

MENCK op cit p 124 16

Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824

foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela

proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela

proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia

Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e

Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

6

dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por

exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos

artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois

dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros

suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees

legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos

individuaesrdquo

I A liberdade pessoal

II O juiacutezo por Jurados

III A liberdade religiosa

IV A liberdade de induacutestria

V A inviolabilidade da propriedade

VI A liberdade de imprensa17

Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais

liberalrdquo18

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em

outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade

religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos

civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila

individual e a propriedaderdquo19

Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente

Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e

revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo

Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no

Brasilrdquo20

que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e

dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil

Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e

17

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por

uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de

Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que

tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de

Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e

Francisco Moniz Tavares 18

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19

BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em

httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora

UNESP 2010 p 31

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

7

garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21

ndash o

contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da

burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22

Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis

princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se

portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23

Afirma Viotti

Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos

movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se

deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de

revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam

frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A

maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar

conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves

especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada

em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da

Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves

multidotildees24

Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio

de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves

condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do

vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25

ndash do Brasil

Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e

cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma

provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor

A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos

individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas

noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador

de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e

agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de

inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura

21

Idem p 32 22

Idem p 23 23

Idem p 30 24

Idem p 31-32 25

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de

Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

8

poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra

Graham quais sejam

A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de

representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir

a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a

uma dada realidade social em determinado momento de

tempo26

Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um

lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou

natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas

quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()

enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora

natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente

articulada27

11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO

O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil

Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo

Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos

cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo

que compreenda

a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo

(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se

estenda de 1820 a 183728

26

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In

SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880

Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p

212 28

RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila

SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira

2009 p 142

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

9

A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum

que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos

desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o

Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista

somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do

paiacutes29

trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com

relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos

no corpo da lei

Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos

seus direitos de cidadatildeo30

que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada

vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma

pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo

de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que

acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo

em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31

) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que

se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas

cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo

popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando

mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32

junto ao parlamento

Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do

periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa

descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais

desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos

As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova

29

Idem p 140-141 30

Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na

consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina

Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel

O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de

HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo

Paulo Alameda 2008 31

Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys

Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado

Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32

Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA

Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e

poliacuteticas op cit

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

10

cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade

de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas

evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio

poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822

por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo

Sr Redator do Correio

() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a

escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais

coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute

jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens

manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees

agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos

nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe

quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =

vassalos =33

Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os

artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar

nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou

seja

seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do

antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista

recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de

vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a

possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34

Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35

e o zelo com o respeito

aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de

agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash

sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta

Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no

territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria

Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma

33

Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 18 34

Idem p 16 35

Idem

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

11

insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na

Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar

com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os

indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se

quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36

Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e

vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia

de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem

livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a

alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e

cidadania circulavam na sociedade

Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que

analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite

coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes

a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que

ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram

revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade

que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves

instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em

comumrdquo37

Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido

Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do

tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social

econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio

constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os

assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse

debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira

Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da

Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o

posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo

que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No

decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos

36

Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os

direitos do cidadatildeo op cit p 16 37

NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

12

deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com

relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de

direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e

nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de

vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo

das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das

galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38

Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos

altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-

americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia

tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes

retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou

a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash

ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra

associada ao moderno Estado civil de direito

12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo

Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente

citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo

XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas

reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no

ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees

que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin

Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a

dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do

seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as

noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia

Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez

ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos

pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus

partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau

propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber

38

RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

13

um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A

Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera

nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade

Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes

vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo

permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou

instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem

apreciar as vantagens desse sistema39

Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas

questotildees puacuteblicasrdquo40

jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz

votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e

era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo

encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade

entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre

elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de

nossos mais preciosos direitosrdquo41

Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito

coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo

seriamente limitadas

Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute

soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos

Portanto

O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os

cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam

liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios

privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas

instituiccedilotildees a esses privileacutegios42

Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o

indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a

39

CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no

Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40

Idem 41

Idem 42

Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo

Editora Brasiliense 2000 p 8

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

14

liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43

O

poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado

absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou

jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual

todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto

independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade

de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como

o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44

Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos

contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo

geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do

contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico

apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido

deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da

instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses

direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social

O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a

comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a

qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com

suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo

de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa

como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a

sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica

destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45

Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo

proacute-monaacuterquica46

cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a

segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens

divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza

o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro

estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas

43

BOBBIO Norberto op cit p 8 44

Idem p 11 45

Idem p 15 46

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993

p 17

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

15

(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um

ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da

vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47

Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e

liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo

de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo

do proacuteprio homem

Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave

esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam

a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por

ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()

esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48

Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um

Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para

Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida

que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por

deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil

O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir

aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos

Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais

satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de

guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das

paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de

os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao

cumprimento de seus pactos ()49

Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e

liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo

Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos

Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica

da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o

47

HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud

WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48

Idem p 45 49

Idem p 61

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

16

regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto

(1821)

A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na

ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos

naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a

propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a

Assembleia Nacional entendia por liberdade

Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo

prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada

homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros

membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites

apenas podem ser determinados pela Lei50

A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da

Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA

liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo

proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51

Neste

sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais

do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na

montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente

O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia

Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos

primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52

ndash natildeo estava alheio agraves

novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares

Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico

Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o

despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode

conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do

homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente

para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei

bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna

50

Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em

httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51

Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel

em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

17

menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso

respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de

tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de

nossos deveres ()53

A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de

Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na

sociedade da eacutepoca

Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum

pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se

reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a

parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54

E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical

para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes

publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia

Constituinte55

Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano

Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve

respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo

manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso

dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes

absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de

authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa

nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes

reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum

por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos

illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como

a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant

que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade

illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos

Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade

do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser

circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os

cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a

authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes

direitos torna-se illegiacutetima56

53

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54

Idem 55

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa

discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56

Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

18

Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do

Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das

ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e

principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da

proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo

os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do

liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista

portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo

que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo

dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo

Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a

conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas

antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava

ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de

vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a

Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas

quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante

sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo

poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz

respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX

Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de

dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos

jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas

galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos

assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os

direitos individuais dos cidadatildeos

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

19

2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO

21 Os limites juriacutedicos

Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e

Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57

frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como

complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual

poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58

a que a Igreja no Brasil estava submetida

Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de

Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em

1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil

Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica

portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado

Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio

da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o

padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-

se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja

ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave

vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva

ingerecircncia secular no sagrado59

O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida

agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar

a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute

Mascarenhas Menck60

essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o

primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do

57

Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2

PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife

Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista

espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida

religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II

vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de

cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil

perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59

AZEVEDO Thales de op cit p 80 60

Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro

Mascarenhas op cit p 44-56

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

20

novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na

formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma

relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da

Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia

clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash

e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas

palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)

Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento

do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para

dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal

como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior

para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor

para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas

dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua

deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em

quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma

maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade

pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz

com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute

em esplendor ()61

Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos

territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis

portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas

beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo

A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo

confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62

Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do

Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos

conquistados

Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o

papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem

de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido

possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios

61

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo

UNESP 2000 p 135 62

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

21

incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63

O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal

denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela

implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se

encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64

Segundo Menck

A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus

domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia

portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais

para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado

(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou

recursos agrave Coroa65

Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real

subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo

das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal

concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por

Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo

Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas

pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil

comenta que

tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I

o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis

quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo

papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos

territoacuterios conquistados66

Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa

Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial

brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto

entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e

que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67

Segundo

Rock Spencer

63

Idem p 46 64

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67

Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo

Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

22

E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal

uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo

daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios

(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)

como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se

como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da

Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual

exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa

incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu

fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos

aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se

verificasse mais cedo68

O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca

de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume

assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69

No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o

proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas

bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o

diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito

que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem

vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma

consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70

Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em

uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato

qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo

poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz

eclesiaacutestico71

Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash

formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de

cautelardquo 72

Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria

um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo

Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos

68

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71

Idem 72

Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente

origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo

In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006

pgs 196 e 649

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

23

existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73

Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o

eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem

o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por

medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74

Desta forma os

Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser

difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial

Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo

tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo

eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono

portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que

permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675

Dessa maneira

ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de

novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do

problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor

Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o

reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo

seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam

os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76

Cabe ressaltar que quando a

comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e

privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto

reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado

Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura

encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano

Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15

de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII

aceitou receber o monsenhor brasileiro77

Digno de nota eacute o post-scriptum das

Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que

refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute

73

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

24

() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas

servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que

ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil

conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se

nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os

que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que

estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os

Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os

Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes

Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo

deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual

dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com

prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja

SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no

uacuteltimo extremo78

Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de

um cisma79

A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A

Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a

concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que

dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves

A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer

contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito

previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro

Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e

Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os

deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito

nacionalrdquo80

e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela

Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do

Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo

diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os

privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e

Roma

Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante

durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado

78

CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387

Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do

Impeacuterio op cit p 397 80

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

25

pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de

formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional

desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar

com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81

numa clara

afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana

De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do

Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos

emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica

Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento

aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o

eram Poreacutem

nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da

tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o

fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma

parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo

brasileira no periacuteodo82

22 O CLERO BRASILEIRO

Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no

periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava

de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de

unidaderdquo83

O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios

cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O

episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com

um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro

Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)

todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era

extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a

81

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

26

inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84

tornando a administraccedilatildeo

episcopal tarefa quase impossiacutevel

Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e

social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85

Os

padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes

Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do

religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim

participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees

poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e

dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e

inconsequente86

A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87

apoiado na

tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na

Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi

uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo

por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a

reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a

Roma88

Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo

O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo

Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer

demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do

que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras

pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias

iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo

Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava

geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o

mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos

eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a

84

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op

cit p 81 85

HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86

Idem 87

Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que

concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo

multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a

Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-

32

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

27

1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o

primado do poder civil89

Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada

pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro

com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As

bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda

estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel

Kant90

Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos

revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil

O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa

portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real

explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave

Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()

Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias

satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo

de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva

a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91

Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica

disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria

entre Estado e Igreja jaacute que

ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das

prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no

domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo

daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz

embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia

ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo

romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade

para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art

5ordm da Constituiccedilatildeo92

23 O papel da Igreja no Brasil

Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente

devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem

89

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90

Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91

COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

28

cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e

desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93

e Joseacute

Geraldo de Carvalho94

que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do

paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez

principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos

feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos

Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo

imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95

sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e

injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()

como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96

natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na

historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial

Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo

imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos

e por uma ordem social humana e justardquo97

principalmente porque sempre se mostrou

presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara

sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o

envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98

Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas

vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as

violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no

periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o

relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes

durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em

geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos

imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada

Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o

catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam

respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a

organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees

catoacutelicas no territoacuterio nacional99

93

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora

Folha de Viccedilosa 1994 95

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96

PIRES Heliodoro op cit p 349 97

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98

Idem p 12 99

PIRES Heliodoro op cit p 349

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

29

Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro

de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar

hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado

Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a

Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de

Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate

suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num

universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo

povo100

Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por

redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem

como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a

nova naccedilatildeo

Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito

jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte

a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte

regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas

antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois

universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela

funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada

de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de

discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o

direito ou natildeo agrave liberdade religiosa

100

Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia

Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro

padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel

Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de

Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre

Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna

padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade

Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre

Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e

padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos

um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

30

3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823

Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o

nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos

Marquecircs de Queluz 1828101

Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e

Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio

Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de

Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102

Decidiu-se que a Comissatildeo

seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno

da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram

nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e

Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo

Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da

Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute

Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103

Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave

Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os

auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade

geralrdquo104

O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos

deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do

Imperador em 12 de novembro de 1823

Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do

Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os

direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA

101

Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso

proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O

primeiro reinado op cit p 139 e 166 102

Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de

1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional

(httphemerotecadigitalbnbr) 103

Idem 104

Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

31

liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir

no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada

Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera

dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que

no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era

liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras

ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105

Observamos pois em

seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela

sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que

movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia

A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista

que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute

concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros

muitosrdquo106

Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de

sociedade

A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila

de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito

se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a

cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he

o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o

Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz

ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107

Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm

do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi

extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para

defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30

intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na

apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados

integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no

debate sobre liberdade religiosa na Constituinte

105

Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser

transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106

Idem 107

Idem

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

32

O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres

irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo

Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a

liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe

parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no

cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o

creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e

por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar

a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo

que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse

determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma

vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com

cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua

garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o

contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108

O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao

conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa

admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser

108

Idem p 185

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

33

considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma

Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a

Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109

Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos

Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he

Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros

isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes

elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da

verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi

outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110

Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e

generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute

porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se

satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam

amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute

independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto

Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o

catolicismo Para aquele deputado

Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o

Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em

quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo

consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia

para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa

os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias

perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do

Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o

respeito devido ao Culto Nacional111

O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira

em 1792112

depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de

109

Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma

expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores

e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110

Idem p 185-186 111

Idem p 186 112

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

34

Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113

propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava

Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal

liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo

Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar

tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade

religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter

() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas

venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do

juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro

ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo

Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo

semelhante Artigo114

Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a

postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais

liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por

discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de

dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115

Alegando que a

consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o

deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o

homem na Sociedaderdquo116

natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave

uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo

Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios

que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a

convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram

Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da

Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos

natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra

Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio

dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que

acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como

poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117

E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros

ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos

113

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114

Idem p 189-190 115

Idem p 190 116

Idem 117

Idem

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

35

embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior

condiccedilatildeordquo118

Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia

por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o

tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado

com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo

de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente

professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119

Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo

mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma

alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a

hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para

ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os

constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120

com a ideia de

uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de

liberdade em sua essecircncia

O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da

supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal

soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo

de que

Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e

preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do

Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e

professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121

Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo

dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que

seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia

Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as

circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade

de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado

guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he

118

Idem p 191 119

Idem p 192 120

Idem 121

Idem

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

36

seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-

se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da

Religiatildeo122

Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo

Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a

Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando

muitos abusos e severas desordens Para ele

os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e

derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas

Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de

liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes

era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os

Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que

se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e

horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo

Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente

assumiram o Atheismo123

Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato

de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador

deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons

costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das

mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai

de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele

termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos

preparatildeordquo124

O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa

replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125

ndash sussurros

daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia

Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o

taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso

122

Idem p 193 123

Idem p 194 124

Idem p 194-195 125

Idem p 195

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

37

O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais

redatores da Carta de 1824126

afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica

Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente

em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por

discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese

eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de

ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia

era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se

fundamental para esse desenho

Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa

dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos

illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127

O deputado segue defendendo sua

posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber

contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo

Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de

indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou

respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e

Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela

religiatildeo128

O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo

do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no

ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele

refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez

permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees

heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende

de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um

Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo

complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar

suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha

crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem

mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais

126

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127

Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128

Idem

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

38

impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os

homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a

Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo

pode ter ingerecircncia na outra129

Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem

ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo

basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem

necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em

liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130

Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram

favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se

ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas

luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode

resultar ao Brasil mal algumrdquo131

Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam

ameaccedilados por conta da liberdade religiosa

Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a

supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de

Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de

cousas de outro Mundordquo132

Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e

distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do

Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos

assuntos eclesiaacutesticos

Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na

sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados

Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133

Ele insiste em ressaltar usando de

toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa

repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria

ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos

129

Idem p 197 130

Idem p 198 131

Idem p 199 132

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133

Idem p 205

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

39

Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o

juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado

Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade

religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio

Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134

repetiu que a Constituiccedilatildeo

estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135

e que

por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o

artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em

termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o

ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo

ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136

Compatiacutevel com sua postura elitista

ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar

tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela

Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A

uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo

poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem

a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no

exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma

outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a

tranquilidade puacuteblica137

Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e

Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior

Montesuma afirmou que a seu ver

os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a

Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas

outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos

inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o

homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()

porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto

(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem

Religioso138

134

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974

apud MENCK op cit p 138 135

Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136

Idem 137

Idem p 211 138

Idem p 212

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

40

A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e

Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de

Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar

os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito

discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou

barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo

igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139

Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do

Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma

toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da

Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de

seacuteculos do Padroado Reacutegio

Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o

princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da

Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do

paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma

naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados

manifestarem-se em apoio

Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado

nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da

Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por

tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo

referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()

noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a

dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se

desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir

e que a Igreja se limita a chorar por elle140

Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente

da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este

foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute

aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da

139

Idem 140

Idem p 213

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

41

liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao

enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash

oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo

Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema

a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo

5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais

cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que

ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do

Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que

participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs

redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar

do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto

na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas

do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja

consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino

Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto

constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute

apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se

enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash

nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por

diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na

uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o

catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus

cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

42

ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo

XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se

ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder

temporal e espiritual

Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a

liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou

de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das

esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu

tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a

Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo

Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes

defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros

no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo

faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos

desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em

perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo

Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir

os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do

catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia

respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado

sobre ela

Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que

representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer

apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo

Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio

Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa

defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o

substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira

em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o

era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as

mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio

da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

43

dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo

se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia

Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por

ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de

Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo

do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como

culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre

liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em

torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que

desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde

que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses

brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser

perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e

o Culto Nacional

Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como

originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva

liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da

segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento

mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para

realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que

tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo

ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que

cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do

Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa

Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

44

Consideraccedilotildees Finais

A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual

ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada

Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas

liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e

um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes

pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa

O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823

delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos

deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal

com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja

Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo

vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras

juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos

agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia

natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

45

Referecircncias Bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do

Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial

2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos

Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da

Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca

Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)

Bibliografia de apoio

ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010

AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o

padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978

BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de

(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm

ed Satildeo Paulo Difel 1974

BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo

Paulo Editora Brasiliense 2000

BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S

(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1970

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

46

CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte

e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho

Editorial 2003

CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no

Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994

COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo

Paulo Editora UNESP 2010

FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias

para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012

GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas

reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e

ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160

GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de

Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo

ANPUHMarco Zero nordm 20 1990

GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)

Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de

interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo

II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980

LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da

Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza

2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

47

MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e

as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado

Universidade de Brasiacutelia 1995

NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG

Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009

NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-

1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003

PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e

testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000

PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora

Massangana 1982

PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca

Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012

PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do

cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e

cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008

PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo

Editora SA 1946

RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito

antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

48

WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre

EDIPUCRS 1993

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013

49

DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE

Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de

conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823

foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a

textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e

que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo

de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou

formato

Ceciacutelia Siqueira Cordeiro

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013