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Aqui está o nosso Trabalho de Conclusão de Curso. Uma espécie de embrião de um grande projeto.
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JOÃO SALGADO JUNIOR RÔMULO AUGUSTO OLIVEIRA AGUIAR
VIVIAN SENA CUNHA LUCAS
Uma vida, outra história
Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social
para bacharelado em Jornalismo
Orientador: Prof. Doutor Ary José Rocco Júnior
São Paulo 2010
AGRADECIMENTOS
A Deus por nos dar coragem frente aos desafios de cinco anos de estudos
Aos nossos familiares por ter paciência conosco no desenvolvimento desse projeto
Aos professores que nos acompanharam nessa caminhada
Aos nossos colegas de turma com quem compartilhamos conhecimentos, dúvidas,
questionamentos, tristezas e alegrias
A todos que contribuíram de forma positiva para chegarmos até aqui
Sumário
Introdução ................................................................................................................. 04
Pastor Waldir Alves de Souza .................................................................................. 06
Eduardo José Martins Magalhães Júnior – Dudé ..................................................... 15
Kica de Castro .......................................................................................................... 23
Gonçalo Borges ........................................................................................................ 31
Referências Bibliográficas ........................................................................................ 39
Bibliografia complementar ........................................................................................ 40
INTRODUÇÃO
Superação, essa é a palavra que combina com os relatos compostos no livro-
reportagem, pessoas com diversos motivos para reclamar e não tinham o porquê de
agradecer pela vida, mas quebraram todas as barreiras do medo e do preconceito
até conquistarem seus objetivos. O grupo formado por três estudantes começou a
pesquisar quais perfis se enquadrariam no trabalho, não poderia ser qualquer um e
sim aquelas que passaram por situações delicadas. No viés de superação se
reergueram, e hoje ajudam outros de situação igual ou semelhante as que foram
sofridas.
Com garra e determinação, o trio acredita que esse livro-reportagem pode
mudar de alguma forma o modo de pensar e agir da sociedade como um todo.
Muitos desconhecem o assunto preconceito, até mesmo por se acharem perfeitos. O
ser humano desrespeita as pessoas portadoras de qualquer deficiência física, seja
ao colocar seu automóvel na vaga preferencial, deixar de ajudar um cego a
atravessar uma avenida movimentada, olhar com descaso para um cadeirante,
dentre outros exemplos. Portanto, não há melhor forma do que eles mesmos, os
entrevistados, para contar os detalhes das situações vividas no dia-a-dia e os
obstáculos superados em suas vidas.
Em busca dos personagens, o primeiro encontrado foi o pastor Waldir, na
época era artista de teatro. Ele relatou que usava todos os tipos de drogas e a mais
utilizada foi o LSD, porque estava na moda dos anos 70. Em meio a altos e baixos
ele soube se reerguer e com a importante ajuda de sua mulher, Waldir conheceu o
evangelho, converteu-se, estudou teologia e medicina, deu aulas em faculdades
como médico legista e abriu uma casa de recuperação para dependentes químicos.
Essa primeira história virou projeto piloto na faculdade, ao passarmos pela
pré-banca fomos em busca de mais personagem e, assistindo ao SBT Repórter,
conhecemos Eduardo Magalhães, mais conhecido como Dudé, que nasceu com má
formação congênita, passou por diversos preconceitos, mas com boa educação e
vontade de vencer, superou tudo. Formado em Direito, já no estágio viu que não
tinha vocação para a área jurídica, preferiu a carreira de músico. Hoje tem um
estúdio musical, leciona, é modelo fotográfico, toca até bateria, e, detalhe, ele não
tem parte dos braços.
Após conhecer um pouco da vida e rotina de Dudé, fomos apresentados à
Valquíria Carrara, cujo nome artístico é Kica de Castro, uma publicitária que se
especializou em fotografia. No Centro de Reabilitação, onde trabalhava não estava
contente, por não saber como lidar com as pessoas deficientes que precisavam tirar
fotos para prontuários médicos. Depois de algum tempo teve a ideia de transformar
a simples sala onde atendia os pacientes, em um estúdio de fotografia. Lá os
pacientes se sentiam valorizados e Kica ficou feliz em saber que tudo aquilo era fruto
de sua inteligência, o que aumentou a auto-estima dos portadores de deficiência.
Finalmente o quarto e último personagem foi indicado pelo orientador prof.
Ary Rocco. Fizemos uma busca na internet e pegamos o contato dele para fazer a
entrevista. Gonçalo Borges é um artista plástico que também nasceu com má
formação congênita. Por não ter movimentos nos braços, quando criança adquiriu
habilidade com os pés. As limitações que impunham eram rejeitadas por ele mesmo,
com muita vontade e dedicação, trocou os membros superiores pelos inferiores e
aperfeiçoou os movimentos com a boca. Gonçalo diz que embora as dificuldades
enfrentadas na época, jamais pensou em desistir. Hoje faz parte da Associação
Pintores com Bocas e os Pés, onde aprendeu todas as técnicas de pintura. Ele é
determinado, tirou até carteira de habilitação e comenta que nunca se envolveu em
acidente de trânsito. Em seu Ateliê, no bairro da Penha, expõe todas as suas obras
de arte, é casado pela segunda vez e tem duas filhas.
PASTOR WALDIR ALVES DE SOUZA
APRESENTAÇÃO
Casado há 34 anos, pai de três filhos e avô de três netos, duas meninas e um
menino. Esse é Waldir Alves de Sousa, conhecido como pastor Waldir. Hoje está
aposentado, mas quando perguntam o que faz profissionalmente, logo responde:
“recupero vidas”.
Foi ator de teatro, enveredou-se para as drogas, foi preso e finalmente se
formou em medicina. Sua juventude foi repleta de perdas, acidentes e decepções
que o levaram a repensar qual caminho percorrer.
A seguir leia na íntegra a história desse homem que conseguiu se levantar e
hoje ajuda jovens com a mesma situação e crêem na esperança de uma vida
melhor.
A JUVENTUDE
Waldir Alves de Sousa nasceu no Hospital São Paulo, na Vila Clementino em
São Paulo há 55 anos. Sua família era simples e humilde, morava no Parque Bristol,
próximo ao zoológico da capital paulista.
Quando jovem Waldir gostava de conhecer as coisas, de criar e até mesmo
imaginar. Tinha muitos amigos, adorava freqüentar festas. Nessa época, como
muitos adolescentes, ele experimentou de tudo um pouco, mulheres, álcool e
drogas.
Aos 21 anos, o rapaz iniciou a carreira de ator no teatro, na década de 70.
Naquela época o Brasil passava por uma série de transformações políticas e
culturais. Vivíamos o regime militar e a censura começava a se intensificar. Diversos
artistas foram exilados, porém os que ficaram faziam manifestações alternativas.
As amizades, o mundo encantado do teatro e as facilidades da noite
paulistana, levaram Waldir a conhecer o mundo das drogas. Ele usou de tudo um
pouco, começou com a maconha, depois passou a usar droga injetável e LSD.
Segundo Waldir, a sensação que a droga provocava em seu organismo era
de avançar no tempo. “Estamos em 2008 e de repente nós iríamos para 2023. Aí
que comecei a entender o que Raul Seixas dizia na música Eu nasci a dez mil anos
atrás”, explicou.
Os amigos do teatro se encontravam praticamente todas as noites na casa de
Waldir e iam direto para o quarto, lugar onde usavam as diversas drogas do
momento.
Nesta fase, seus pais e parentes não desconfiavam que o rapaz já estava
dependente do vício. Eles achavam que a alegria era por causa da juventude.
A DESCOBERTA
Certo dia, Waldir comprou um conjunto de móveis novos para o seu quarto e
quando chegou, a sua mãe estava empolgada pela conquista do filho. Resolveu
então ajudá-lo na montagem.
O rapaz não sabia como despistar o entusiasmo da mãe, afinal ali era o
reduto onde as drogas circulavam livremente. Desconversou, tentou contar piadas e
até mesmo falar sobre o teatro, mas ela queria montar o tal dormitório.
No momento em que tiravam o dormitório velho para colocar o novo no lugar,
a mãe se espantou com o que vira: várias latas de leite em pó, mas não era leite que
continha no invólucro e sim um grande estoque de maconha.
Além disso, outras drogas foram encontradas ali, como pó branco (cocaína),
cola e até comprimidos. Todo material encontrado por ela, abastecia as “festinhas”
diárias dos amigos que o ajudavam a consumir.
A mãe ficou arrasada, não sabia o que falar, simplesmente chorou. A vida
para Waldir continuou normal, de dia trabalhava e a noite fazia teatro. Na semana
seguinte alguns colegas o chamaram para ir a Embu das Artes para comer
cogumelos, mas ele recusou o convite.
A PRISÃO
Depois de um dia corrido, Waldir voltando para a casa resolveu fumar um
baseado de maconha para relaxar. Após ter andado uns 10 metros, o rapaz ouviu
um barulho e logo se desfez do cigarro.
Era uma viatura preta e branca da Polícia Civil. Logo os homens armados
desceram do veículo e pararam o jovem por terem sentido o cheiro forte da erva. O
fato de Waldir dispensar a tal droga pelo caminho não adiantou muita coisa, porque
ele tinha mais em sua bolsa.
Ele quis passar por inocente. “Moço o que é CD? Eu não sei o que é isso”,
dizia Waldir se referindo ao LSD. Com essa postura, não deu outra, apanhou
bastante, foi algemado e levado para a cadeia.
Ficou oito dias preso, na quarta-feira santa, quinta-feira, sexta-feira da paixão,
sábado de aleluia e domingo de páscoa. Essas datas ficaram marcadas na vida de
Waldir. “Na segunda tinham 78 caras na cela, eu vi de tudo ali, desde ladrão até
estuprador”, relatou.
Um primo que era sargento da Polícia Militar descobriu onde ele estava.
Então o policial contratou um advogado para tirar o rapaz daquela situação. E
quando chegou em casa se deparou com uma senhora magra e com cabelos
brancos.
Ele não reconheceu a mãe, que havia emagrecido uns 20 quilos. “Quando vi a
minha mãe naquela situação não acreditei e logo pensei no desgosto que havia
causado a ela”, definiu. A mágoa foi grande e no primeiro dia de julho de 1973 ela
faleceu.
SINCRETISMO RELIGIOSO
Waldir e sua família se diziam católicos, porém gostavam também de
freqüentar o candomblé. De manhã iam as missas e a noite ao terreiro. Ele era fiel
as atividades da religião afro brasileira. Fazia rezas, trabalhos espirituais, sacrifícios
e também acendia velas para os orixás.
O rapaz namorava uma moça que morava em Santo Amaro, zona sul de São
Paulo, próximo a Represa de Guarapiranga. Eles gostavam de freqüentar os bailes
da época.
Certo dia um primo da garota veio visitá-la, como eles já estavam de saída,
resolveram convidar o jovem, que tinha 18 anos a ir à festa com o casal. Divertiram-
se muito, principalmente Waldir, porque usou droga a vontade.
O dia estava amanhecendo quando a festa acabou. Eles fizeram um outro
tipo de passeio, dessa vez mostraram ao primo como era a Represa Guarapiranga.
A alegria e animação continuavam em um ritmo que não tinha fim. Todos
entraram na água, menos o primo. Brincadeiras daqui e dali, muita conversa e
gargalhadas.
Waldir sempre andava com uma guia em volta do pescoço, com as seguintes
cores: preta, branca e vermelha. Segundo ele, ela representava Exu (entidade do
Candomblé). Ao nadar, ele bateu na corrente e quebrou.
Desesperado chamou a namorada e o primo dela. “Vamos sair daqui, porque
a minha guia estourou e isso não é um bom sinal”, disse. Todos retornaram para a
casa da namorada, ouviram música e dormiram.
Como o primo não havia entrado na água, logo que acordou, ele insistiu para
que Waldir o levasse novamente na represa. Dessa vez, os irmãos, os primos e
alguns amigos do jovem acompanharam a nova aventura.
Caminharam uns dois quilômetros até chegar no local, que estava repleto de
pessoas. Entraram na água, brincaram, mergulharam e quando menos perceberam
já estavam no fundo da represa.
Tentaram voltar para a beira da praia e quando se deram conta, o primo já
estava afundando, só enxergavam os braços do garoto. Então Waldir nadou até ele.
Estava bem fundo, deu várias braçadas e se cansou.
Largou o menino, voltou e respirou, quando foi pegá-lo não conseguiu achar.
Todos ficaram apreensivos, mobilizaram-se, chamaram o Corpo de Bombeiros, mas
encontraram o primo morto.
A consciência de Waldir pesou. “Eu sabia que alguma coisa ruim ia acontecer.
Deveria ter tirado a guia, afinal eu tinha que ter alguns cuidados”, relatou. No dia do
enterro ele comprou de tudo, caixão branco, roupa branca e flores, mas mesmo
assim o pai do garoto não perdoou.
A MUDANÇA
Já casado com Iara, e com dois filhos pequenos, Waldir ainda insistia com as
drogas e a religião. Sua esposa era evangélica e vivia em um outro ritmo.
Costumava ser assídua nos compromissos com sua igreja.
Todas as tardes, Iara convidava algumas senhoras da igreja em que
freqüentava para orarem em sua casa, afinal o vício já tinha tomado conta de Waldir
e a mulher não sabia o que fazer para resgatar o marido das drogas.
Certo dia ele chegou do serviço e lá estava o grupo de mulheres em oração,
na intenção da libertação de Waldir do vício. Como eram pentecostais e acreditavam
nos dons espirituais, logo a esposa foi batizada com o Espírito Santo.
Pentecostal é uma vertente dentro do cristianismo que acredita em uma
experiência direta e pessoal com Deus através do Espírito Santo. No Brasil o
movimento começou na década de 60 e hoje conta com diversas denominações,
como batistas, metodistas, assembléianos, entre outras.
Iara disse para Waldir que teve uma visão em que Deus estava limpando o
seu quarto e pediu para ele descansar. Um dos quartos da casa era para montar o
altar dos orixás e também fazer os rituais do candomblé.
Waldir disfarçou e foi até lá, porque lembrou que tinha um tijolo de maconha
guardado no tal “quartinho”. Naquela época havia um poço em seu quintal, mas a
água já era encanada.
Ele jogou a droga lá e depois fechou o poço com entulho. Ficou com medo
dos traficantes irem cobrar, mas lembrou da promessa de Deus. Além disso, ele
também fumava cigarro e sofreu para largar o vício.
Segundo Waldir tudo aconteceu naturalmente, ouvindo e sendo ministrado
pela palavra, a Bíblia. Foi batizado, colaborou na igreja como obreiro, depois foi
diácono até chegar a pastor. (todos são ajudantes, aspirantes a líderes da igreja).
SÓ A MÃO DO ANJO Como Waldir era carismático e tinha facilidade para fazer amizades iniciou um
trabalho de evangelização no Parque D.Pedro, região central de São Paulo. Lá ele
entregava folhetinhos com o endereço da igreja que pastoreava.
Para sua surpresa sempre chegava algum mendigo para ouvir a palavra e
cada vez o numero de ouvintes aumentava. Desse grupo um era freqüentador
assíduo das palestras e Waldir se sentiu incomodado e queria ajudá-lo.
Waldir chegou a pedir ajuda a um pastor mais experiente e pelo qual tinha
grande admiração. Ao explicar sua situação, esse pastor falou brincando para ele
levar os homens para casa. Mas ele levou a sério essas palavras.
Quando percebeu sempre acabava levando um para sua casa. Um, dois, três,
dez. “Nossa e agora o que fazer?”, exclamou. A rotina era acordar cedo, tomar café,
levar os filhos para a escola e trabalhar. Iara não agüentava mais tanto homem em
casa, mas quando voltava de um dia cansativo, a casa estava arrumada e a comida
feita por eles.
O coração amolecia e mais um dia eles ficaram. Ele tinha um terreno em São
Lourenço da Serra e com os dízimos e ofertas dados na igreja em que pastoreava,
construiu uma clínica de recuperação, chamada Só a mão do anjo.
Lá cada um tem a sua missão, um lava, outro passa, pinta, planta, colhe,
cozinha. Além disso, fazem terapia com pessoas voluntárias, tem aconselhamento,
aulas sobre a Bíblia. O tratamento é baseado em 12 passos de conscientização.
O primeiro deles é o reconhecimento da impotência, parecido com o
tratamento dos Alcoólicos Anônimos – AA, que compartilha experiência a fim de
resolver o problema e ajudar os outros a se recuperar.
Hoje a Clínica Só a mão do Anjo atende 40 pessoas, sobrevive de doações e
trabalhos voluntários. Para Waldir, todos que estão lá são considerados como filhos
e declara “todas as pessoas tem o direito da segunda chance, porque Deus já dizia:
atire a primeira pedra quem nunca pecou. Sem contar que temos de amar o próximo
como Cristo nos amou”, finalizou.
EDUARDO JOSÉ MAGALHÃES MARTINS JÚNIOR – DUDÉ
APRESENTAÇÃO
Cantor, ator, modelo fotográfico, técnico de som, bacharel em direito. Já foi
vendedor de instrumentos musicais e baterista em uma banda do colégio.
Esse é o Eduardo José Magalhães Junior, conhecido como Dudé. Para
aqueles que logo desistem ao se depararem com um obstáculo, com sua história,
Dudé mostra a importância da persistência.
Como ele faz isso? Vivendo.
Ele nos conta que causa impacto desde quando nasceu. Nunca foi proposital,
mas sempre causou impacto. Sempre tenta mostrar a responsabilidade de cada um
sobre sua própria vida e não gosta de ser visto como um herói. É a forma
encontrada por ele para fazer os outros evoluírem
INFÂNCIA
Abril de 1972. No dia 24 Maria de Lourdes dá a luz pela quarta vez. O marido,
Eduardo José Magalhães Martins estava apreensivo, afinal, ambos queriam que
dessa vez fosse um menino, pois já eram pais de três meninas. Para alegria de
todos nasceu Eduardo José Magalhães Martins Junior, o Dudé.
Após o parto, ela percebeu que havia algo errado. A equipe médica optou por
não mostrar o bebê por não saber como dar a notícia. Depois de muito tempo de
espera e apreensão veio a notícia: a criança nasceu com má formação congênita.
Foi um choque para a família. Mesmo assim, Maria e Eduardo decidiram que o
menino teria de viver da forma mais natural possível.
A família morava em Valença, na Bahia. Uma cidade privilegiada pela
natureza. Por ser no litoral, suas praias são um dos principais atrativos turísticos. Foi
em Valença que o Brasil teve sua primeira fábrica têxtil. Além disso, possui duas
igrejas construídas no século XVIII. Mesmo com todo esse cenário a cidade ainda
não tinha estrutura para atender as necessidades de Dudé, esse foi o motivo para
que a família migrasse para São Paulo, quando ele tinha quatro anos de idade.
Maria e Eduardo não privaram o filho dos passeios no parque, das broncas e
palmadas quando necessário e sempre tratando todos os filhos de forma igual.
Porém os pais não conseguiram privar Dudé das atribulações que o mundo traria,
um exemplo foi a freqüente mudança de colégios, graças ao preconceito e falta de
conhecimento de professores e pais de outros alunos. Essa situação foi vivida no
período de transição entre o centro de reabilitação, onde iniciou seus estudos, para
os colégios comuns.
Sendo alvo de brincadeiras e gozações constantes e sem o respaldo de
legislação específica a única solução encontrada pelos pais de Dudé era novamente
mudá-lo de colégio. Dessa vez, optaram colocá-lo em uma escola particular com a
esperança que nada iria acontecer. Novamente outro engano. Em uma determinada
escola, houve por parte dos pais um abaixo-assinado convidando ele a se retirar do
colégio. Como era um convite e Dudé não havia feito nada de errado, resolveu ficar
e as demais pessoas tiveram que aceitar. Hoje, ele acredita que o preconceito é
hereditário e entende que tem de ser quebrado na infância.
Nessa época as pessoas não tinham a consciência que possuem hoje sobre
portadores de deficiência. Atualmente, o pouco de conhecimento que a sociedade
tem sobre esse tema foi à custa de muito trabalho de organizações não
governamentais, instituições e até mesmo da mídia. Recentemente a novela Viver a
vida, de Manoel Carlos e exibida na TV Globo, mostrou um pouco da realidade de
uma cadeirante. Ainda assim, muitos desrespeitam os direitos dessas pessoas.
Os pais do menino sempre diziam “se a escola não te aceitar é porque eles
não têm competência para ensinar e tê-lo lá dentro.” Certo vez, Dudé chegou em
casa chorando. Seu pai o deixou de castigo por isso. Sem entender nada, ele foi
para seu quarto. Quando se acalmou, seu José voltou e disse: “você passou por
uma situação difícil, baixou a cabeça e voltou para casa chorando. Se eu não fizer
isso, tudo o que acontecer de ruim você vai baixar a cabeça e voltar chorando. E
isso eu não quero”. Nas palestras que chegou a dar, Dudé ensinava que a melhor
maneira de combater o preconceito é mostrar que o preconceituoso está errado. Ele
mostra que todos têm condições para ser independente, porque com ou sem
deficiência física cada um tem sua limitação. Mas ao contrário de muitos, ele não
gosta de ser visto como um herói.
SÃO JUDAS E CAMARGO ARANHA
Dudé fala com carinho do Colégio São Judas Tadeu, onde fez o ensino
médio. Localizado no bairro da Mooca desde 1947 o colégio é muito conhecido na
região e tem como lema preparar os alunos para enfrentar a vida. Lá, Dudé foi aceito
e até chegou a participar de algumas bandas e festivais. Seguindo o que aprendeu
em casa, e por gostar de música, chegou a montar algumas bandas, mas sua lista
de desafios não para por aí: fez curso de teatro e trabalhou como modelo
fotográfico. Os amigos mais próximos acreditam que para ele só falta escalar o
Everest devido a tamanha disposição em encarar a vida.
Dudé sempre teve em mente que todos precisam trabalhar e estudar e, para
ele não seria diferente. Sua condição física sempre incomodou mais aos outros, do
que a ele mesmo, por isso, por volta dos 16 anos começou a trabalhar em uma
bandinha de colégio e por incrível que pareça, era ele o baterista da banda, graças a
idéia de seus amigos que amarraram as baquetas com fitas adesivas em seus
braços. Posteriormente ele resolveu assumir o vocal. Nessa época eles tocavam em
festivais e também em festas de aniversário.
Aos 17 anos participou de um festival no Colégio Camargo Aranha, um dos
primeiros colégios técnicos do estado de São Paulo, com cursos voltados para área
de administração. A escola fica na Rua Marcial, 25. Para muitos jovens, o colégio é a
chave para entrar no mercado de trabalho. Já para Dudé foi a entrada oficial para o
mundo da música. Lá, um grupo de rapazes mais velhos que ele tinham uma banda
de blues. Ao assistirem a apresentação sua resolveram convidá-lo para ser o novo
integrante do grupo.
A RUA TEODORO SAMPAIO Dudé começou a tocar nos bares da noite paulistana e para completar a
renda mensal, durante o dia trabalhava como vendedor de instrumentos musicais em
uma loja da Rua Teodoro Sampaio. A rua é conhecida pela grande concentração de
lojas de instrumentos musicais e equipamentos para som. Dudé era vendedor do
setor de cordas e, como não tinha as mãos para tocar, decorava todos os manuais
dos instrumentos, para conseguir dar instruções aos compradores e assim se tornar
um dos melhores vendedores. Sempre deixava os instrumentos ligados a um
amplificador e quando aparecia alguém interessado em comprar um violão, ou
guitarra, ele dava as especificações do aparelho e incentivava o cliente
experimentar.
IGREJA N. SRA. DO BOM CONSELHO, NANDO FERNANDES E O
LAR S. FRANCISCO
A Igreja Nossa Senhora do Bom Conselho foi outro local relevante na vida de
Dudé. Construída em 1945 a igreja é muito solicitada para realização de
casamentos, para Dudé, foi um local de outras realizações. Lá ele começou a
aperfeiçoar suas técnicas de canto. Posteriormente ele continuou com o
aprimoramento com o professor Nando Fernandes.
Nando é cantor e dá workshops de canto. Já trabalhou com diversas bandas
de Rock. Foi um percurso de seis anos. Em seu blog, Dudé relata que o professor
era muito exigente e ele o agradece por isso.
Em 2000, Fernandes disse ao rapaz que ele tinha condições de dar aula e foi
o que ele fez. Dudé começou a lecionar canto para adolescentes com algum tipo de
deficiência no Lar Escola São Francisco, entidade sem fins lucrativos que dá
assistência a crianças e adultos com deficiência. Com isso, Dudé percebeu que
estava ajudando os jovens na concentração, na coordenação motora e nas
dificuldades de fala e respiração.Para ele, melhorar a coordenação e o grau de
comunicação é importantíssimo para que a pessoa curse uma faculdade ou consiga
um emprego.
Dudé foi juntando umas economias com o dinheiro que ganhava com o
trabalho de professor de canto. O objetivo deu certo: ele comprou equipamentos
para poder dar aulas em casa e comprar a aparelhagem necessária para que em
2007 montasse um estúdio de gravação. É, ele também é produtor musical.
MIX MENESTRÉIS
A Companhia Mix Menestréis tem o Projeto Cadeirantes, com o qual
ministrava cursos a cadeirantes. Posteriormente esse mesmo projeto passou a
trabalhar também com deficientes visuais. Posteriormente passou a trabalhar com
pessoas portadoras ou não de deficiência. O grupo se apresenta no teatro Dias
Gomes.
Foi com os Menestréis que Dudé virou ator. O convite foi feito por um dos
integrantes, no Metrô, quando ele seguia para um ensaio de sua banda. Dudé foi
convidado a assistir um espetáculo, após a apresentação foi convidado para uma
festa do elenco. Foi assim que ele começou a se entrosar com os outros integrantes.
De início era só amizade com o grupo, depois Dudé começou a namorar uma
das atrizes. E com isso passou a freqüentar todos os espetáculos. Até que um dia,
ao ser entrevistado junto com o grupo, Deto Montenegro, um dos responsáveis do
Projeto Cadeirante, anunciou que iria abrir vagas para trabalhar com pessoas sem
deficiência. Ao saber disso, Dudé foi conversar com Deto, e por sempre estar
presente nos espetáculos e conhecer o grupo, foi convidado a participar de uma
montagem. Foi assim que começou a sua carreira nos palcos.
BANDA, ESTÚDIO E VIDA DE MODELO
Em 2008, Dudé montou uma banda chamada Easy Rockers Cover Band. O
grupo agregaria parceiros de outros grupos aos quais ele tinha participado. A banda
toca rock clássico, ou classic rock, como os mais aficionados chamam. Dudé é o
vocalista e a banda já caiu nas graças da Kiss FM de São Paulo, uma rádio que toca
somente esse estilo de rock. Os locutores da emissora gostam muito da banda e os
Easy Rockers Cover Band participaram de um evento patrocinado pela rádio. Desde
então passaram a ser promovidos pela Kiss.
.
No mesmo ano, Dudé se descobriu como modelo fotográfico. Reencontrou a
fotógrafa Kika de Castro, uma profissional cuja história será contada neste trabalho.
Eles já se conheciam em 2003 e foi em 2007 que retomaram o contato Kica o
convidou para um trabalho e foi assim que Dudé se tornou modelo. Kica também fez
as fotos do CD e DVD da banda além de fotografar as apresentações Em novembro
de 2008, Dudé apareceu no Programa SBT Repórter. Eles puderam mostrar o seu
trabalho.
CONSIDERAÇÕES
Para Dudé, a situação atual do deficiente físico hoje ainda é complicada e
ainda tem muita coisa para ser conquistada. Ao menos hoje há a discussão sobre o
tema. Ele e sua família tiveram a consciência que não estavam errados a respeito de
Dudé querer estudar e trabalhar, tanto que ele chegou a cursar Direito com
especialização na área criminal, mas não prestou o exame de ordem da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), porque enquanto estagiava, percebeu que não
tinha vocação para a área jurídica.
Ele fala que percebeu a mudança de comportamento da sociedade a partir da
década de 1990. A diferença é que hoje se pode discutir com a sociedade, além de
um respaldo maior da lei, muito diferente das décadas de 1980 e 1970.
Dudé detesta ser encarado como batalhador ou como falado anteriormente,
super herói. Ele acha que o quanto mais o deficiente tenta provar para sociedade
que é capaz, mais ele é visto de forma diferente. Dessa forma o deficiente se vê de
uma forma diferente e passa a se achar um mártir.
Dudé acredita que vivendo de uma forma mais natural possível é melhor,
afinal ninguém tem que provar nada a ninguém. “Eu tenho essa coisa de me ver
naturalmente. Eu namoro, eu caio na balada, tenho meu trabalho, minhas contas
igual a todo mundo. Já estudei, tenho vontade de estudar mais coisas, tudo
encanado de uma forma muito natural e não porque eu tenho que mostrar para os
outros e se vocês me permitem dizer, eu quero que os outros se fodam. Eu faço
para mim, é a minha vida que está em jogo. Eu faço o que é prazeroso, vantajoso,
faço tudo o que percebo, que posso evoluir como ser humano”, declara.
KICA DE CASTRO
APRESENTAÇÃO
Nada foi pensado, planejado ou premeditado, mas a vontade de fotografar era
latente desde pequena, quando seu pai, um fotógrafo amador, tirava fotos dos
familiares.
Formada em Publicidade e Propaganda, trabalhou em diversas agências, mas
quando menos esperou, lá estava ela novamente envolvida com a fotografia, dessa
vez em um centro de reabilitação.
Tudo era muito mecânico, mandar o paciente tirar a roupa, segurar a placa
com a sua numeração de prontuário e tirar a foto. Ainda não era dessa forma que
ela, Valquiria Ferreira Carraro, mais conhecida como Kica de Castro gostaria de
trabalhar e mostrar o seu talento.
Teve uma grande idéia, simplesmente buscou nos acessórios o que precisava
para trabalhar de maneira diferente. Usou a fototerapia, para resgatar a auto-estima
dos pacientes, resolveu montar uma agência para modelos com deficiência física,
em 2007.
De lá para cá não parou mais, conseguiu uma parceria com a Visible, uma
agência de Berlim, realizou um desfile de moda inclusiva e também participou de
diversos programas televisivos, como o SBT Repórter e Xuxa.
O INÍCIO Após seis anos de trabalho em agência publicitária, Kica resolveu ir atrás de
seus sonhos, o de trabalhar com a fotografia. Foi à procura de emprego fixo, até que
encontrou um anúncio de jornal que dizia: Procura-se fotógrafo (a).
Resolveu arriscar e semanas depois foi convidada a participar de uma
entrevista. O emprego então chegou, mas para sua surpresa era para trabalhar com
pessoas deficientes.
Sua função era fazer fotos para o prontuário dos pacientes, o que facilitava
para o acompanhamento do médico. Era tudo muito automático, mandar o paciente
tirar a roupa, segurar uma placa com o número do prontuário e tirar a foto.
A sensação que isso causava não era boa. Faltava alguma coisa. “Confesso
que o começo, assim como tudo, foi muito difícil. Eu não sabia como chegar às
pessoas e elas não sabiam como falar comigo”, comentou.
Vendo essa dificuldade, ela resolveu falar com uma amiga, que trabalhava no
setor de Psicologia e disse que não conseguia desenvolver o seu trabalho da
maneira que queria. “As pessoas entram no meu setor e não acham que lá é um
estúdio fotográfico, a gente não tem comunicação, não estou me sentindo uma
fotógrafa”, desabafou.
Então foi aconselhada pela colega a trabalhar da forma com que ela sabia
fazer. Não deu outra, aproveitou o final de semana e fez umas comprinhas na
famosa Rua 25 de Março, no centro de São Paulo. Conhecida como o maior
shopping popular a céu aberto no Brasil por onde circulam 800 mil pessoas por dia
em épocas festivas.
Lá, Kica comprou de tudo, como: bijouteria, cacarecos, acessórios e até
revistas, como a Playboy. Lançada no Brasil pela editora Abril, em 1975, durante a
ditadura militar. É uma revista de entretenimento e erótico, voltado para o público
masculino e todo mês apresenta uma modelo, atriz ou personalidade diferente na
capa, como Claudia Ohana e Vera Fischer.
Quando chegou na instituição ninguém acreditara no que vira. “Parecia uma
“muambeira” na segunda-feira”, revelou a fotógrafa. A atitude começou a surtir
resultados, ela colocou um espelho no setor, deixou estojo de maquiagem para as
meninas; para os meninos, gel e pente.
Deixou também exemplares da Playboy e da G Magazine. Quando as
pessoas chegavam perguntavam para que servia aquelas revistas e ela dizia:
“estamos fazendo uma prévia para as publicações”, então as pessoas olhavam com
uma cara mais animada e isso ajudou a ficar mais próxima dos pacientes.
A partir daí, os pacientes começaram a ser tratados como pessoas e não
números. Segundo Kica, em vez de um local para fotografar imagens para
prontuários, elas encontravam um estúdio fotográfico e tinham pelo menos uns cinco
minutos com suas vaidades.
Passaram a conversar mais, contavam seus sonhos. No lugar das “fotos de
presidiários” – forma como os pacientes tratavam aquela foto para os prontuários –
eles sentiam mais humanos. “Aquilo foi mexendo comigo. Independente da condição
física, ainda são seres humanos”, declarou Kica.
Foi então que a fotógrafa percebeu que os pacientes tinham problemas com
auto-estima e novamente procurou a amiga psicóloga. Preocupada, ela relatou que
as pessoas a procuravam e se abriam com ela, como se fosse uma analista, com
isso surgiu a idéia de trabalhar com a fototerapia.
A fototerapia resgata a auto-estima das pessoas através das fotos. Em 2003,
o começo do trabalho, parecia uma brincadeira, mas em 2005 algumas pacientes
começaram a cobrar resultados no mercado de trabalho. “Com algumas dificuldades,
consegui colocá-los no mercado de trabalho, mas em trabalhos de promoção”, mas
não era exatamente o que queriam fazer.
De acordo com Kica, eles desejavam mais. “Infelizmente no Brasil não achei
nada na publicidade que pudesse atender as expectativas”, detalhou. Então, ela
começou a buscar idéias na internet e descobriu um concurso de beleza da “Mais
bela cadeirante”, realizado na Alemanha e também um reality show feito só com
cadeirantes na França, mas ainda não era o que queria.
Aqui no Brasil, ela chegou a ver um ensaio fotográfico com a vereadora de
São Paulo, Mara Gabrilli, que é tetraplégica e logo pensou: “se a Mara fez esse
ensaio sensual, por que eles também não podem fazer isso?”, questionou.
Em 2007, Kica largou a instituição e montou uma agência sem se desvincular
das atividades fotográficas sociais, pelas quais trabalha até hoje.
A AGÊNCIA KICA DE CASTRO Na agência os modelos fazem o book para ser apresentado para o mercado
publicitário. “A publicidade é um mercado amplo, tem espaço para todo o mundo, só
que cada um tem que saber o seu limite e onde pode atuar”, relatou.
Não é toda pessoa que entra na agência que pode trabalhar como modelo
fotográfico, não são todos que podem atuar nas passarelas. Segundo Kica, quando
a pessoa chega, ela avalia a personalidade.
Se a fotógrafa vê a necessidade de resgatar a auto-estima, pede ajuda as
amigas psicólogas, até porque ela não tem o conhecimento técnico, mesmo assim
costuma pontuar cada pessoa a sua realidade.
Kica faz uma análise do mercado junto com o modelo e aponta as áreas em
que ele pode atuar. “Procuro dar o realismo para as pessoas, mas de uma forma
sutil. Temos que saber, dentro de nossas possibilidades e da nossa vontade, o que
fazer ou não”, afirmou.
Em 2008 ela fechou uma parceria com uma agência em Berlim, na Alemanha,
a Visible e a partir daí começaram a surgir trabalhos para os seus modelos.
Recentemente Kica recebeu proposta de estilistas que trabalham com moda
inclusiva. Segundo ela, a sociedade está se preocupando com esse público, pois
passou a vê-los como consumidores e não como coitados.
Mesmo assim, o preconceito e a resistência em trabalhar com pessoas com
algum tipo de deficiência ainda é muito grande. “Se não fosse a lei de cotas, muitos
deles não estariam no mercado de trabalho”, comentou.
FATO ENGRAÇADO E MARCANTE
O trabalho é sério, mas tem hora que as brincadeiras são necessárias até
mesmo para descontrair. Certa vez, ela tinha uma pauta e o tema era sensualidade
e ela pensou como fazer isso, até mesmo para quebrar o paradigma, porque muitas
pessoas acham que o deficiente físico é coitadinho.
Então Kica pensou em não fazer as fotos no estúdio e sim em um lugar
diferente, mais precisamente um motel. Depois veio outra questão, quem ela iria
chamar?
É claro que ela não pensou duas vezes. “Vou chamar o Dudé, afinal com ele
não tem tempo ruim”, refletiu. Ele concordou, mas tinha outro problema para ser
resolvido, quem seria a modelo para fazer esse trabalho com o músico?
Ela conversou com ele sobre isso e pensou em fazer as tais fotos com “a
modelo” e ele sugeriu uma amiga de Curitiba, conversaram pelo msn e ela aceitou o
convite. Marcaram para se encontrar em um motel próximo a casa de Dudé, até
mesmo para não terem problemas com o deslocamento.
Não deu certo, porque eles, os modelos se precipitaram e foram na frente,
apenas ligaram para a fotógrafa dizendo que os dois o aguardavam no quarto, então
Dudé orientou a dizer que era repórter, quando chegasse no local.
Ela percebeu que todos os funcionários ficaram olhando até chegar no quarto.
Fecharam a porta, mas de cinco em cinco minutos o interfone tocava e cada hora
era uma coisa, trocar o lençol, o tapete, as toalhas. Eles não paravam de tirar as
fotos e percebiam que os funcionários olhavam com aquele ar de “o deficiente
pegando a gostosona”.
Como ela tinha horário para entregar as fotos, resolveu deixar os dois lá e
adiantar o serviço. Quando abriram a porta para se despedir, ainda empolgados
falavam de como foi bom, do prazer e a camareira ficou olhando com ar de espanto
e a Kica falou “calma, não é nada disso que está pensando”.
Explicou para o gerente sobre a tal matéria e ele ficou olhando com uma cara
sem graça. A fotógrafa percebeu que nessa hora ele perdeu a oportunidade de fazer
o motel mais conhecido, até mesmo por causa da sua atitude. Ela teve que retocar
todas as fotos que saiam o nome do estabelecimento.
AMIZADE COM O DUDÉ
Dudé é um rapaz que não tem “papas na língua”, ou seja, fala o que
realmente pensa independente quem esteja com ele. Quando Kica trabalhava no
centro de reabilitação, o Dudé participava de um programa que dava orientações
para o mercado de trabalho na mesma instituição que ela trabalhava.
Neste local era preciso preencher uma ficha e a recepcionista querendo ser
solidária, perguntou se ele gostaria que ela o ajudasse. O músico disse que não
tinha necessidade e a moça retrucou “estou aqui para isso, não é incômodo
nenhum”. Novamente ele recusou a ajuda e pediu a caneta, mas a funcionária foi
insistente.
Dudé não se conteve e falou alguns palavrões, entregou a caneta e foi falar
com a chefe dela. A recepcionista ficou reclamando da postura do rapaz para as
pessoas que estavam na espera. Neste momento, a fotógrafa presenciou o
desentendimento dos dois e deu risada.
Depois disso, o rapaz foi encaminhado para o setor de psicologia e em seu
histórico contava sobre a sua agressividade. Kica resolveu conversar com ele e no
final deram muitas risadas. Depois perderam o contato um com o outro.
Em 2007, Kica já com a agência de modelos, resolveu mandar um e-mail para
ele explicando o seu trabalho, os projetos e convidou o moço para uma sessão de
fotos. Ele foi ao estúdio e de lá para cá, nunca mais parou. Fotografar, atuar, cantar
e até lutar boxe são tarefas indispensáveis no seu dia-a-dia.
GONÇALO BORGES
APRESENTAÇÃO
Gonçalo Aparecido Borges, mais conhecido como Gonçalo Borges nasceu
com uma deficiência nos membros superiores causada pela natureza. Nasceu em
Novo Horizonte, interior de São Paulo.
Aparecida, a mãe de Borges amamentava o menino na roça, local onde a
família trabalhava e foi lá que começou a fazer peripécias com os pés, derrubava
moringas de água e garrafas de café, tudo isso para substituir a função das mãos.
Por falta de recursos hospitalares, teve que conhecer a cidade grande, São
Paulo para entender melhor a sua deficiência e também buscar tratamento médico.
Passou pelo Hospital das Clínicas e em seguida foi para a AACD (Associação
de Assistência à Criança Defeituosa), onde aprendeu diversas atividades, dentre
elas, a pintura.
Quando se tornara jovem, um amigo apresentou a Associação Pintores com a
Boca e os Pés e lá foi aprovado como artista bolsista. Passou a receber para estudar
desenho e pintura.
Ele foi o primeiro a fazer displayers de celular no Brasil, com contrato
exclusivo com a Motorola, quando enveredou para o ramo de serigrafia e acrílico.
Hoje Gonçalo dá palestras, aulas de pintura, vende quadros e faz exposições.
A INFÂNCIA
Em 8 de janeiro de 1952, nasceu em Novo Horizonte, interior de São Paulo
uma criança de forma diferente. As pernas para cima dos ombros e entre elas os
braços, foi nesse cenário que a avó, Albertina Rosa recebeu Gonçalo Borges, depois
de fazer o parto da própria filha.
A família era composta de seis pessoas, ele, o pai, a mãe, a avó e mais dois
irmãos. A casa em que morava era humilde e feita de pau a pique, ou seja, as
paredes eram de ripas, varas entrecruzadas e barro.
Enquanto os pais trabalhavam na roça, Borges não ficava sozinho, porque
tinham medo. Eles levavam o garoto para o campo e em sua memória, foi lá que
aprendeu a trocar as mãos pelos pés, simplesmente abrindo garrafas de água e
café.
Segundo Gonçalo, sua infância foi muito boa, várias amizades foram
conquistadas e muitas brincadeiras para passar o tempo. “Eu gostava de ficar com
os pés descalços, brincava de bolinha de gude, carrinhos e até mesmo empinar
pipas”, comentou. Devido à deficiência, tudo isso era feito com a boca e os pés.
Com fama de briguento, jogava bolinha de gude, mas media os palmos com
os pés. De certa forma, os amigos não achavam certa a atitude dele, porque os
demais faziam com as mãos, ou seja, Borges sempre levava vantagem na
brincadeira e aí começava a confusão.
Às vezes sua mãe o deixava de castigo por aprontar e ser encrenqueiro. Mas
bastava um amigo ir chamá-lo para brincar e a dona Aparecida não resistia, lá ia o
moleque novamente para a rua.
IDADE ESCOLAR
Como não havia recursos hospitalares na cidade e orientados por outras
pessoas, mudou para a capital paulista, São Paulo, mais precisamente na Penha.
Foi morar no mesmo quintal de alguns parentes, juntamente com os pais, irmãos e
avó.
Conheceram o Hospital das Clínicas e virou matéria de estudos dos médicos,
onde até se submeteu a fazer uma cirurgia no braço esquerdo para facilitar os
movimentos. Isso ajudou muito o garoto.
Com sete anos, ainda não sentia o preconceito por parte das pessoas,
somente com oito anos pôde sentir na pele, quando passou a freqüentar a escola.
O primeiro obstáculo, sua mãe sentiu na pele quando tentou matricular o filho
no colégio. A diretora da instituição foi resistente e alegou que não poderia deixar o
menino a participar das aulas, porque atrapalharia outras crianças, iria chamar
atenção, devido escrever com a boca ou os pés.
Depois dessa tentativa, dona Aparecida procurou a Associação de
Assistência à Criança Deficiente, a AACD. Lá aprendeu a ler, escrever, nadar,
mergulhar e até mesmo datilografar. Com muito bom humor, ele até brinca “ou seria
pedilografar?”.
A Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD tem como missão
promover a habilitação e reabilitação de pessoas deficientes, não tem fins lucrativos
e está no seu 59º aniversário. Hoje, localizada num terreno doado pela prefeitura na
rua Ascendino Reis, próximo a estação Santa Cruz do metrô, zona sul de São Paulo.
Segundo Gonçalo, o centro de reabilitação só é bom para quem vai reabilitar
fisicamente, no caso dele era somente educação. “Meus pais fizeram de tudo e eu
fiquei interno devido à escola, foi muito interessante porque lá aprendi a desenvolver
a boca, escrever e manusear as coisas”, comentou.
Com o mesmo método que adquiriu com as brincadeiras, ele usou para iniciar
os desenhos e a pintura. “Obtive o primeiro contato com materiais de artes, como
papel de desenho, lápis, pincel, tinta aquarela e guache”, definiu.
Nessa época participou de vários concursos e campanhas educativas,
também ganhou prêmios. “Participei de campanhas promovidas pelo Estado e
ganhei prêmios, um deles o da Unicef. Continuei adquirindo conhecimento e a cada
dia me superava”, relatou.
Ficou na AACD durante seis anos e devido passar muito tempo interno, ele
teve que fazer novas amizades e reentrosar com os irmãos, afinal só voltava para a
casa nas férias escolares.
ASSOCIAÇÃO PINTORES COM A BOCA E OS PÉS
Aos 17 anos, Borges conheceu a Associação Pintores com a Boca e os Pés -
APBP, que é internacional, mas tem uma sede no Brasil, localizado em Moema,
zona sul de São Paulo.
A APBP proporciona ao deficiente uma vida mais independente, porque os
membros e sócios aprendem a pintar com as bocas e os pés. Todos os trabalhos,
como cartões, calendários e quadros são vendidos e o dinheiro é repassado par o
próprio artista.
Depois de conhecerem o trabalho artístico de Borges, ele passou a receber
para estudar desenho e pintura, como artista bolsista. Após um ano, sua obra foi
publicada nos cartões de natal da instituição.
A associação reproduz os trabalhos de todos os artistas e manda para a sede
internacional, na Suíça e lá eles reproduzem, vendem e depois repassam o valor
para cada um.
VIDA PESSOAL
Gonçalo não nega que foi bastante namorador e extrovertido na juventude.
“Fui muito zoeiro, paqueirador, ia muito em bailes e tive uma adolescência gostosa e
saudável”, comentou.
Ele também tem dois históricos de relacionamento. Foi casado com Celiana,
com quem teve uma filha chamada Aparecida, a Cidinha, que está com cinco anos.
Gonçalo se orgulha por ter a guarda da menina.
Hoje ele está casado com Fabiana, uma moça jovem, de apenas 30 anos e
grávida, a poucos dias de ganhar uma menininha, a Maria Heloisa. Segundo
Gonçalo, a Cidinha está bem ansiosa para a chegada da irmãzinha.
A menina já trata a madrasta como mãe e aparentemente as duas se dão
bem. “A Cidinha começou a chamar a Fabiana de mãe, ocorreu tudo naturalmente. A
minha filha precisa ter uma referência de mãe e era isso que estava faltando para
completar a nossa felicidade”, comentou Borges.
ESTUDOS
Depois que Borges começou a receber pela Associação Pintores com a Boca
e os Pés, com a venda dos trabalhos, resolveu voltar a estudar. Dessa vez, o artista
preferiu cursar Propaganda e Marketing, na Escola Superior de Propaganda e
Marketing – ESPM.
Fez também especialização na Faculdade Belas Artes e seguiu a carreira
como ilustrador, em uma agência de publicidade. “Por ser independente e já ter o
meu dinheiro, eu mesmo arcava com os meus estudos”, declarou.
A carreira de ilustrador não deu certo, mas mesmo assim ele não desistiu de
trabalhar. Conheceu uma pessoa que trabalhava com Silkscrean e como Gonçalo
não tinha nada a perder, resolveu montar o negócio com o moço.
No terceiro mês após a abertura do novo ramo, Borges viu que o sócio não
tinha dedicação, então resolveu desfazer a sociedade e continuar o trabalho sozinho
em seu quintal.
O início não foi nada fácil, começou a fazer ilustrações, livros técnicos e de
informática. Em seguida aprendeu serigrafia e ampliou os trabalhos da empresa de
Comunicação Visual.
Fabricou também display de acrílico para celulares, na época foi o primeiro no
Brasil a produzir, com contrato exclusivo da Motorola, o único fabricante que existia.
Gonçalo se orgulha em falar que nunca teve um registro em sua carteira
profissional. “Minha carteira profissional ainda é virgem, mas eu fui e sou
empregador. No meu ateliê, antigamente era uma empresa voltada para eventos e
eu tive vários funcionários e pessoas terceirizadas”, enfatizou.
UMA GRANDE CONQUISTA Seu maior desafio foi conseguir tirar a carteira de habilitação. Quando foi
fazer exame no Detran, o médico pediu para que ele entregasse o RG com as mãos,
o que era impossível. “Não tem como eu entregar com as mãos, se as minhas
habilidades estão nos pés”, declarou.
Foram três anos para conquistar a tão sonhada carteira de motorista, depois
que recorreu ao Conselho Nacional de Trânsito. Hoje são quase 30 anos dirigindo.
Ele confessa que já dirigiu nas estradas e viajou pelo menos para seis estados
brasileiros.
Seu carro é adaptado e foi ele quem criou e patenteou o próprio sistema. O
volante fica no assoalho para dirigir com os pés. Quando precisa dar a seta, utiliza
uma espécie de vareta controlada com a boca. Gonçalo garante que só se envolveu
em um acidente de trânsito, mas confessa que não foi o culpado.
BRINCANDO COM O JOGO DE PALAVRAS Como Gonçalo Borges é uma pessoa muito brincalhona, fizemos um jogo de
palavras, que ele define o que pensa. Segue abaixo:
Amor – bom relacionamento com a família e o próximo.
Ódio – muito instantâneo, depende do momento.
Saudade – muito cruel, momento que paramos para refletir e lembrar o
passado.
Alegria – estar bem.
Vida – um círculo, uma roda, faz parte.
Sucesso – trabalho, esforço, dedicação e suor.
Esperança – é a última que morre.
Morte – fim, mas encaro como uma passagem.
Tristeza – sofrer uma ação de perda irreparável.
Refúgio – fora do meu vocabulário.
Curiosidade – primeiro instante da formação de uma vida, não o nascimento.
Preconceito – rejeição por outra pessoa, pior atitude do ser humano.
Hoje, aos 58 anos Gonçalo Borges busca surpreender as pessoas e inovar
com o seu trabalho. Dá curso de pinturas em seu ateliê, faz palestras de motivação e
expõe suas obras de artes, além de se dedicar na Associação Pintores com a Boca
e os Pés.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GATTAI, Zélia. Anarquistas graças a Deus. 1 ed. Rio de Janeiro: Record 1979.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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